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NATAL DE 2006

EDIÇÃO Nº 5

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GIULIA
Lobisomem!
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Edição Especial L

LOBISOMENS!
EDITORIAL MARTHA ARGEL & GIULIA MOON
C ria do medo irracional e da escuridão da noite, o lobisomem nasceu numa época sem
energia elétrica, banda larga ou condomínios de alto luxo. Mas a urbanização e a tecnologia não
foram capazes de aniquilá-lo, e o homem-lobo é hoje mais atual do que nunca. Mais que um
humano meramente transformado em animal, ele é um retrato preciso do bicho-homem liberto da
fina pele de civilização imposta pela vida em sociedade. Em plena era da comunicação instantânea, o
lobisomem ainda traduz com exatidão nossa eterna dualidade: a razão versus o instinto. Nesta edição
do FicZine, convidamos a excelente escritora Nilza Amaral para juntas revelarmos os lobisomens com
quem todos convivemos sem perceber. Cuidado, pode haver um ao seu redor... ou dentro de você!

ESTELA GIULIA MOON

E stela lambeu os lábios. Ainda estava


claro, mas uma lua cheia afogueada já surgia
sabem como é. No caso, o que mudou foi a
disposição física de Estela, agora um dínamo de
energia e excitação. O problema era a vontade
no céu. Estava tensa. Queria uivar. Queria agir quase incontrolável de uivar, pular e correr por aí,
como uma loba. Como uma das tantas lobas que de preferência nua, num local selvagem. Ok, na
vagavam nas ruas, nos campos, na imensidão do falta de uma paisagem mais exuberante, podia
mundo. Todas assim, resfolegando de ansiedade ser ali mesmo, no asfalto estreito das ruinhas da
antes do anoitecer. Vila Madalena. Mas agora era hora de esperar, ter
paciência, ficar ali, sentada no barzinho com as
Tudo começara depois da primeira pernas musculosas cruzadas, mal-acomodadas
transa após os trinta anos. Era um cara lindo, sob uma mesinha pequena demais pro seu
bem mais novo que ela, tinha 0% de gordura corpão moldado em academia. Pois é. Paciência...
no corpo e o mesmo percentual de QI. Na época Estela franziu o nariz aquilino, farejando o ar.
ela não ligava pra esses detalhes, só sabia que Nada. Contrariada, bebericou o chope. Soprou a
dava gosto apalpar aquele corpinho rijo, firme, fumaça da última tragada do cigarro e livrou-se
viçoso... Aquele fedor de suor, dos hormônios e do toco politicamente incorreto, que descreveu
do relaxo da juventude, que Estela aspirava com um semicírculo gracioso no ar, diretamente dos
vontade, cheia de tesão. seus dedos para a sarjeta.
Se dependesse dela, desfilaria todo Lá do fundo do bar, da área de não-
dia como uma verdadeira alfa no covil dos fumantes, veio um olhar de reprovação. Um
shoppings, dos restaurantes, das praias, do agito, sujeito de gravata olhava feio pra Estela e pro
com o seu tenro amante a tiracolo. As outras cinzeiro próximo, onde os restos de cigarros
lobas salivavam, esticando e inflando os peitos malcriados deveriam ser depositados. Ela rosnou
dentro de suas blusas, camisetas e vestidinhos, baixinho. O homem tinha uns trinta anos, era
todas de olho no garotão da Estela... Que as posudo, com cara de bem-sucedido. A loba
vigiava com o canto dos olhos, sem perder mordiscou os dedos de unhas longas pintadas
nenhum movimento das rivais. Ah, nas lobas, de bege, mais claras que a sua pele. Sim, sim.
não dá pra confiar! Mulheres de todo o tipo, Afinal as coisas estavam acontecendo. Abriu a
fêmeas chiques dos Jardins, teens sardentas e boca, mostrando os dentes alvos e deixando a
bronzeadas, intelectuais de cabelinho preso, boca carnuda falar sem palavras. Leitura labial
garçonetes sexualmente contidas em seus que o estranho soube fazer muito bem.
uniformes sóbrios. Todas morrendo de inveja de
Estela. Bem, se isso também não era um tesão, Descruzou as pernas. O vestido solto,
o que era? cor de chocolate, era quase continuação da
sua pele morena. O homem engoliu o último
Isso foi há tempos atrás. As coisas mudam, gole do seu uísque e seus olhos percorreram
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Expediente
FicZine, Zine de Literatura Fantástica
Natal de 2006, Edição Nº 5
Editoras: Martha Argel e Giulia Moon
Capa: Billy Argel
Diagramação: Natalli Tami
Correspondência e pedidos de exemplares:
marthaargel@gmail.com e giuliamoon1@yahoo.com.br .
Proibida a reprodução e veiculação dos textos e imagens aqui
contidos sem autorização expressa dos respectivos autores.

as pernas da loba, indo e vindo, indo e vindo... A bota se afastou e deixou livre a mão
Estela quase podia vê-lo arfando com a língua vencida. Ele pegou no braço dela. E, juntos,
de fora, examinando a situação como um deixaram o bar. O jornal ficou lá, esquecido,
macho desconfiado. Perdera aquele ar certinho um montão de lixo na sarjeta, junto à pequena
e arrogante em algum ponto entre a boca, o guimba manchada de batom.
peito, as coxas e o cano das botas de camurça
de salto altíssimo de Estela. Ficaram assim, num ***
diálogo silencioso e cheio de malícia, durante
alguns minutos. Lua cheia plena, no alto. Estela
escovava os cabelos molhados depois do banho
De repente, ele dobrou o jornal relaxante. Olhou-se no espelho do quarto, nua,
americano que fingia ler. Olhou a conta e jogou a pele reluzindo de frescor. Sentia-se gostosa.
o dinheiro, displicente, sobre a mesa. Sinalizou Grande. Poderosa. Era sempre assim, depois de
para o garçom, apanhou o paletó, o jornal, e uma boa caçada. Fora depois dos trinta que
veio andando na direção de Estela. Uau, era um começara a caçar. Lembrava-se muito bem. O
ataque frontal? Mas o sujeito passou por ela. Ao garotão bonito viera com o papo de dar um
passar, abaixou-se para pegar o toco do cigarro tempo, enquanto armava pra cima dela com
no chão. Ah, era esse o plano? Ia jogar a guimba uma adolescente cheia de celulite. Pra cima dela,
no lixo pra dar uma lição sutil na perua mal- vejam só... Não gostava tanto assim dele, mas
educada... Mas lobas não gostam de sutilezas. uma mulher desprezada sempre quer sangue. E
Não esta loba. Com um movimento rápido, às vezes vira loba. Naquela noite, sob a luz da
Estela fincou o salto da bota no meio da mão lua cheia, transara com o jovem amante infiel.
larga e bem manicurada do homem. Uma transa cheia de raiva, de tesão e de veneno.
E, quer saber? Foi a melhor transa que tiveram
Ele não falou. Apenas olhou, atônito, em toda a relação. Mas isso não fora nada,
lá debaixo de sua pose vexatória, para a loba de comparado com o que se seguiu.
um metro e oitenta que o fitava, a boca enorme
aberta num sorriso malvado, a língua vermelha Só podia ser feitiço. E poderoso. Nunca
e sem-vergonha passeando pra lá e pra cá nos soube por que e nem como, mas o desejo que
lábios de caramelo. gritara em silêncio durante o sexo se concretizou.
O garotão esqueceu a outra, escolheu ficar com
Ela não falou também. Apenas Estela. O mesmo se deu com todos os demais,
continuou a afundar ainda mais o salto cruel na que se transformavam de imediato em fiéis
maciez da mão espalmada. Com vontade. Com companheiros. Um a cada mês, sempre na lua
volúpia. Era sangue o que queria. E o olhar do cheia. Doze por ano. Sessenta e quatro até
macho, mesmo na dor, mesmo com vontade agora. Amantes belos, fogosos, insaciáveis, com
de meter a mão naquela mulher, insistia em os quais só podia fazer sexo uma única noite.
percorrer os caminhos meio obscuros, meio Todos aqueles machos deliciosos! O problema era
reveladores, por debaixo da saia cor de chocolate, o dia seguinte. Estela tinha que enxotá-los. Eles
dando maior bandeira do seu tesão. uivavam e ganiam, mas, no final, iam embora,
os rabos entre as pernas, o olhar magoado. Ah, o
Então, sob os olhares curiosos, ainda que podia fazer? Não tinha espaço em casa para
com a mão sob o jugo do salto agulha torturante, um canil. E nem dinheiro para comprar tanta
o homem ajoelhado aproximou os lábios da ração...
bota. E a beijou.
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Mas o garotão, ela fez questão de de coisas profundas. Quem, afinal, entende?
manter. Caminha todos os dias com ele. Leva-
o ao veterinário, mantém todas as vacinas em Estela abriu a janela e olhou para o
dia. Comprara até umas roupinhas de frio no céu, deixando o vento pentear os seus cabelos.
petshop pra ele, que, por sinal, parece bem feliz Viu as estrelas, ah, tantas estrelas! Um longo
com a sua nova vida. uivo começou a brotar de sua garganta. Do
quintal, os uivos dos dois machos juntaram-se
Pois é, hoje era lua cheia mais uma ao seu.
vez. E havia mais um macho no seu quintal. Um
tipo arrogante, cheio de pose. O garotão não E a noite, por um breve instante, foi
gostou muito da concorrência, mas acabou deles. Só deles.
se conformando. Afinal, mesmo com o seu QI
pequenininho, sabia, pela experiência, que logo
o novato seria enxotado como os outros. Pelo Giulia Moon,
menos ele achava que sim. Ela achava que publicitária paulista, escreve para internet desde
talvez. o ano de 2000. Especialista em Horror, a sua
ocupação predileta é assustar leitores, fãs, amigos
e inimigos com histórias arrepiantes de vampiros,
Estela pingou duas gotas de perfume lobisomens, canibais, mortos-vivos, extra-terrestres,
no seu pescoço. Às vezes sentia falta de um assombrações e monstros em geral. Tem três livros
macho fixo. Alguém diferente, com quem de contos publicados: Luar de Vampiros; Vampiros
atravessaria a noite e alcançaria o dia sem se no Espelho & Outros Seres Obscuros e A Dama-
perder nesse labirinto confuso de desejos e Morcega. Desde meados de 2005, Giulia atua como
instintos desenfreados. Não para desfilar entre co-editora da Scarium Megazine, revista de Ficção
as outras lobas, mas para compartilhar algo Científica, Fantasia e Horror. Para ler mais contos
de Giulia Moon, acesse www.giuliamoon.com.br .
maior. Mais profundo. Mas lobas não entendem

LOBISOMEM! NILZA AMARAL

Q ue era lobisomem descobri por


acaso. Não que isso me incomode ou a alguém
lei e às sextas-feiras, durante o passeio noturno
pelo centro da cidade, o banquete estará pronto.
Percebo no entanto que haverá uma exigência
nesse século vinte e um pleno de aberrações dos meus sentidos. O sangue deverá estar fresco
humanóides. Mas nessa sexta-feira sangrenta o e quente. E então todas as sextas, à meia-
cheiro de carne humana desperta meu apetite. noite, hora dos mistérios e da lua maior, e da
Afinal o cardápio está alucinante. Corpos de incógnita, o uivo aparece. Vigoroso, exigente.
todas as idades, alguns ainda conservando os Sinto que meus pêlos se eriçam ao desejo, e o
adornos da juventude há pouco perdida, outros meu corpo franzino se avoluma. Meus braços
imbuídos das características da morte, formas crescem e meus caninos se alongam. Um mistério
variadas para agradar ao gosto mais exigente. fascinante da natureza. E eu, que há bem pouco
Jovens donzelas de carne fresca, apetitosos tempo aceitava qualquer convite para deixar
garotos ainda impúberes, velhos gastos com a cidade desvairada no fim de semana, agora
ossos à mostra, enfim uma seleção atraente anseio pela sexta-feira, pela noite, pelos tiros
para gourmet algum reclamar, exibiam-se na de metralhadora, pelo ribombar extasiante que
bandeja de asfalto. Nessa noite de carnificina, prenuncia delírios noturnos. O que há com você,
o desejo inexplicável daquelas carnes sangrentas dizem as namoradas ocasionais, resolveu se
desencadeia o primeiro surto do que será esconder no apartamento?
não a minha maldição mas a iniciação de um
prazer incontido. Descubro que não precisarei Lógico, argumento, tentando ser
ser necessariamente um assassino. Não haverá convincente, quem quer ser atingido pelas
o desconforto de matar a vítima escolhida. A balas perdidas? Mais um motivo para fugirmos
polícia local providenciará o farnel a serviço da daqui, pegarmos uma bela praia, um bom motel.
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Criaturas ingênuas não suspeitam de que suas as levam ao delírio, levam-me à mais completa
vidas correm perigo em minha companhia satisfação orgástica já provocada por um adulto
às sextas à noite. A ansiedade é tanta que mutante. Que venham as sextas-feiras, esse dia
esses diálogos impertinentes aquecem o meu glorioso em que até a lua se transmuta para
interior, os pêlos se eriçam, e a transformação encantar com seus raios prateados os escolhidos
se anuncia precoce. Depois eu ligo se mudar de da sorte.
idéia, respondo apressado, ansioso pelo prazer
que só a solidão me proporcionará. Beatriz, Acordar na minha cama de lençóis de
a mais exigente. Exige a minha presença, cetim prateado, limpo e lavado do ritual da noite
compromissos, não é mulher de ficar. Diante dela anterior, excita a minha imaginação ao ponto de
o medo aparece. O temor de atacá-la, de devorá- querer declarar ao mundo a minha felicidade.
la aos poucos, de saborear a carne apetitosa e Mas como felicidade só cabe aos pobres de
perfumada. Beatriz, segunda conversamos, tenho espíritos, decido que conservar sem elucidar o
trabalho extra me esperando. Fim de semana? mistério, transformará minha pacata vida de
Prometo que será o último. Promessa repentina, executivo na mais alucinante aventura. Jamais,
gotas de suor aflorando, sexo exigindo, não a entretanto, poderei prescindir de Beatriz, do seu
consumação do ato carnal, mas a consumação cheiro de mulher, das suas formas roliças, o fator
da fome voraz que me transporta à dimensão desencadeante da minha transformação. Ah, hoje
do orgasmo jamais experimentado por um ser é sábado. Meus caninos descansarão, meus pêlos
humano. Ah, Beatriz, se o desejo de amor me se acalmarão e eu serei por mais uma semana o
impele ao seu encontro, o apetite voraz me faz cavalheiro esperado. Mas as sextas continuarão
recuar. Ora, que sentimento louco é esse nada no calendário. E a lua no céu, brilhará mais
peculiar a um mutante filho da lua? Aos poucos nessa noite de evocação, de chamamento.
a sanidade e a memória se diluem. E a fuga para
o nada se inicia. Misturo-me aos mendigos de
rua, é fácil, afinal um mutante das sextas que Nilza Amaral
se cobre de pêlos surgidos do nada e mostra publicou vários livros, entre os quais dois de
caninos alongados não é surpresa nesse mundo literatura fantástica, A Balada de Estóica (1980)
e O Dia das Lobas (1993). Publicou, ainda, Modus
de transformações. As abandonadas da sorte, Diabolicus (1992) e O Florista (1998). Textos seus
adolescentes assexuadas aproximam-se curiosas, apareceram em várias coletâneas, as mais recentes
que dentes grandes, para o que servem? Ah, o sendo o livro de arte RioErótico, de Otto Stupakoff
cheiro daquele sangue quente e novo, afinal (2006) e Contos de Escritoras Brasileiras (2006).
elas pedem, querem conhecer o lado do sexo É colaboradora freqüente de fanzines e revistas
abnormal e inconseqüente, nada têm a perder de literatura fantástica e também de websites
e eu, tudo a ganhar. Para te comer, minha culturais. Conhecida e respeitada no mundo
literário brasileiro, participa ativamente da União
chapeuzinho, e entre suas risadas, o roçar dos Brasileira de Escritores (UBE). Endereço na internet:
dentes em sua pele fina, a vibração de seu corpos www.geocities.com/~rebra/autoras/10port.html .
novos, o acarinhamento de meus pêlos longos,
de unhas compridas rasgando a carne, se não

MARIANA E O LOBO MARTHA ARGEL

-N ão acredito que você tenha feito


aquilo, mocinha.
forma, não podia retrucar, pois era de fato
culpada das acusações.
– Escrever na prova de Português
Mariana manteve-se em silêncio, os aquela história pavorosa, em vez de responder
olhos perdidos na chuva que os limpadores às questões – continuou a mãe. – O que deu em
varriam do pára-brisas. O trânsito complicado você, Mariana? Sempre achei que você gostava
reduzia a velocidade do carro e prolongava a da Letícia, porque inventou algo tão horrível?
duração do trajeto entre a escola e a casa. Estava Mariana não apenas gostava da
à mercê das repreensões da mãe. De qualquer professora de Português, ela a venerava. Por
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isso mesmo tivera de escrever a história de O olhar de Mariana foi do caderno para
como, logo depois daquela mesma prova, um a mãe, aflito.
lobisomem sanguinário invadira a sala de aula e, – Eu não quero ir para a escola. Eu
ante o olhar impotente da professora, trucidara preciso... – ela se interrompeu, relanceando os
os alunos um a um. No final da história, ele olhos pelo caderno. A mãe nunca entenderia.
transformara a própria Letícia em um lobisomem – Está chovendo.
como ele, e juntos passaram a atacar também as Uma ruga de perplexidade surgiu entre
outras classes. as sobrancelhas da mãe.
– Se eu fosse a Letícia, jamais a perdoaria. – Mariana, que é isso? Você nunca
Você vai ter problemas com seu pai, menina, se inventou desculpas para faltar à escola. Além
ela exigir que você seja expulsa da escola. E eu disso, eu sei que você tem prova na primeira
vou dar razão a ela. aula. Arrume-se e esteja na cozinha em cinco
Mariana sabia que a professora não minutos – e fechou a porta.
exigiria nada. Letícia entendia o que havia Não adiantava resistir. Olhou de relance
acontecido, e os motivos de Mariana para ter para o lobisomem que também a olhava.
feito o que fizera. A professora só tinha levado Será que ele sairia do quarto para que ela se
o caso ao conhecimento da diretora porque não trocasse? Provavelmente não. Ela apanhou uma
poderia justificar o sumiço da prova. Afinal, roupa qualquer e carregou-a para o banheiro.
Mariana apenas seguira as instruções que ela Ao voltar, encontrou o lobo deitado como uma
própria lhe dera, poucas semanas antes. esfinge em sua cama, exibindo o mesmo sorriso
Mas a mãe não sabia nada disso. meio canino, meio humano. Olhando-o de rabo
– Minha filha, você tem que parar com de olho, inquieta, ela colocou na mochila o
essa mania absurda de escrever histórias de material escolar do dia, junto com o caderno de
terror assim tão sangrentas. Por que não escreve anotações. Quando se encaminhou para a porta,
poesias, por exemplo? Na sua idade, eu... ele se ergueu, disposto a segui-la.
Mariana sorriu e a ladainha de sua mãe se – Não vou levar você para a escola.
tornou ruído de fundo. Tudo, afinal, terminaria – Tente me impedir – desafiou ele,
bem. Ela por fim podia relaxar, depois de um dia sorrindo.
de terror e angústia. – Minha mãe não vai deixar você entrar
no carro.
*** Ele gargalhou, divertido, jogando a
cabeça para trás.
Naquela manhã, Mariana continuou na – Você sabe que ela não pode me ver. Só
cama depois de acordar, embalada pelo barulho você me enxerga, Mariana.
da chuva lá fora. O tempo chuvoso lhe dava A mãe apareceu de novo à porta. O
preguiça, e vontade nenhuma de ir à escola, lobisomem estava certo. Como da outra vez,
ainda mais tendo prova na primeira aula. O tempo ela sequer percebeu sua presença no quarto da
escoou enquanto, olhos fechados, confortável, filha.
ela deixava as idéias vaguearem à vontade, – Vamos logo, venha tomar o café e já
a imaginação livre para ir aonde quisesse. saímos.
Pensamentos soltos dançaram em seu cérebro, Cabisbaixa, Mariana colocou a mochila
aos poucos se encadeando, organizando-se sem às costas e saiu do quarto. O lobisomem pulou
que ela planejasse, e quando percebeu era tarde da cama e foi atrás dela, num trote macio de
demais. Eles se transformaram numa história, fera traiçoeira.
que criou vida e se contou sozinha, sem que ela Na cozinha, ela fez uma tentativa
pudesse impedir. desesperada.
Assustada, ela abriu os olhos e, claro, a – Tô com o estômago meio revirado,
seu lado estava o enorme lobo negro, de corpo mãe, enquanto você toma o café eu espero na
quase humano e grandes garras afiadas. O olhar sala – quem sabe em uns poucos minutinhos ela
intenso cravava-se nela e dentes perigosos conseguisse pelo menos...
preenchiam um sorriso perverso. – Nada disso. Tome seu café. Imagina
– Você não vai conseguir – ele disse, e ir pra escola sem comer, não tem o mínimo
soltou um uivo de satisfação. cabimento.
De um salto ela se levantou e correu até Ela obedeceu calada, sob o olhar atento
a escrivaninha. No preciso momento em que do lobisomem sentado no tapete diante da pia.
pegou o caderno de anotações, a porta se abriu – Preciso ir no banheiro, mãe – se
e o rosto de sua mãe apareceu. pudesse levar o caderno...
– Ainda bem que já está de pé, querida. – Então vá, depressa. Vou dando a
Dormi demais, estamos atrasadas. Vista-se já, partida no carro. Dá a mochila aqui que eu
tome o café e vamos embora. já levo. Apresse-se, ok? – mais uma tentativa
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frustrada. – Mariana, você está pálida. Está se
Daí a instantes estavam a caminho. sentindo mal?
Mariana ia sentada na frente, ao lado da Com a mão trêmula ela estendeu a prova
mãe. O lobisomem instalou-se atrás, mas daí para a professora, que percebeu haver algo muito
a pouco enfiou meio corpo entre os bancos errado. Intrigada, ela pegou a folha e passou os
das duas, e ficou olhando o caminho. Tinha a olhos rapidamente pelo texto recém-escrito.
boca aberta e a língua meio de fora, e Mariana Percorreu-o até o final, cada vez mais pálida.
se perguntava como é que a mãe podia não Ela ficou imóvel por uns instantes, os
sentir seu bafo pestilento de carniceiro. As ruas olhos arregalados de susto. Então se ergueu,
estavam desimpedidas apesar da chuva. Lá se ia abriu os braços para Mariana e abraçou-a
a esperança de Mariana de que, paradas num com ternura, enquanto um choro convulsivo
congestionamento, ela pudesse escrever ao dominava a garota.
menos algumas linhas. Chegaram na escola bem
na hora. Nem bem cruzou o portão, soou o sinal ***
para a primeira aula.
Mariana correu para a classe com o lobo Mariana não se preocupava com a reação
negro trotando atrás. Ela se instalou na carteira de Letícia a sua horrível história. Ao contrário de
e ele se acomodou a seu lado. Letícia entrou sua mãe, a professora levava a sério o talento
ante que pudesse pegar o caderno de anotações. dela como escritora. Tinha sido ela mesma
Deu bom dia aos alunos, pediu que guardassem quem, semanas atrás, alertara Mariana com
cadernos e apostilas, e distribuiu as provas. palavras muito sérias, ao descobrir sua incrível
O papel a sua frente, com as perguntas imaginação e grande perícia com as palavras.
impressas. – Todos os contos de terror existem numa
A caneta na mão. outra dimensão e passam para a nossa através
Mariana não tinha alternativa. da imaginação de escritores como você. Quando
Assim que a professora desejou a uma história de terror aparecer em sua mente,
todos boa prova, lançou-se ao trabalho. Não você deve escrevê-la imediatamente, transformá-
podia perder um minuto. Seu coração batia la em ficção antes que ela se materialize como
descompassado. Sequer leu as perguntas. realidade. Jamais, jamais, permita que essas
Escreveu sem parar enquanto o tempo corria. histórias se tornem reais, e nunca corra riscos.
Vinte minutos se passaram, trinta, quarenta. A Você deve sempre passar para o papel os contos
aula estava terminando, ela também terminava que surjam em sua mente. Me promete que vai
de escrever. fazer isso?
Quando levantou os olhos por um Solene, Mariana prometeu.
instante, encontrou os do lobisomem fixos nela. Letícia nem pensaria numa punição.
– Não há tempo, a aula já está Afinal, a professora sabia que, naquela manhã
terminando. Assim que o sinal tocar, eu atacarei. chuvosa, Mariana tinha salvado muitas vidas,
Você será a primeira – ele disse numa voz grave, confinando à folha de papel o lobisomem que
faminta, que a encheu de terror. poderia ter sido real.
– Eu não vou deixar – ela sussurrou,
enquanto retomava a escrita, furiosamente.
Faltavam duas frases. Uma. Com um
suspiro de satisfação, ela escreveu as últimas
Martha Argel
é escritora e doutora em ecologia, tendo publicado
palavras e colocou o ponto final. Quando ergueu seis livros de ficção e três científicos. Seu
os olhos, o lobisomem deu um uivo horripilante lançamento mais recente é O Livro dos Contos
e desapareceu no ar. Enfeitiçados (Landy Editora) com sete histórias
Ela tinha conseguido de magia, bruxas e encantamentos. Atualmente
O sinal tocou. trabalha para a WCS (Wildlife Conservation
– Entreguem as provas, todos. Society), coordenando uma série de livros sobre
Ainda assustada por ter conseguido as aves brasileiras. Saiba mais sobre seu trabalho
terminar a história tão em cima da hora, ela visitando o site www.marthaargel.com.br e o blog
se levantou e foi até a professora. Os joelhos vampirapaulistana.blogspot.com .
tremiam como gelatina.

NOSSA CAPA: a capa deste número traz uma ilustração inédita de Billy Argel, que além de artista plástico e
publicitário, é guitarrista da banda Lobotomia. Conheça suas criações em http://billyargel.blogspot.com .
DIAGRAMAÇÃO E ARTE: Natalli Tami é a nossa nipônica diretora de arte.
Contatos pelo email info@natalli.net .
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