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A ESCOLHA DE MELISSA

Ramiro Marques

2004

Dedico este livro a todas as pessoas que conheci e que me contaram as suas histórias.

1
UM

O avião começou a perder altitude. O Pedro olhou pela janela e viu uma ilha
acastanhada, quase careca, cercada de azul. O avião fez-se à pista e o casario, branco e
cinzento, da Cidade da Praia, deu lugar a várias línguas de alcatrão, rodeadas de areia
suja e arbustos rasteiros. Aquela paisagem era-lhe familiar, embora não visitasse a ilha
havia dez anos. Quando deixou o avião, uma onda de calor bateu-lhe na cara. Ao fundo
das escadas, o alcatrão fumegava. Duas raparigas, impecavelmente vestidas com uma
farda dos TACV-Airlines, receberam-no com sorrisos e desejaram-lhe as boas-vindas.
Ele agradeceu, encaminhou-se para o hangar e procurou um táxi. Trazia apenas um saco
de mão. O taxista era um rapaz de pele escura e cabelo rapado. Não disse nada durante
os dez minutos da corrida e passou o tempo a sorrir. Do rádio, saiu uma música agitada
que o Pedro não reconheceu. O rapaz abanava a cabeça, acompanhando o ritmo da
canção. O carro chiava nas curvas e o taxista acenava aos outros condutores, como se os
conhecesse a todos. Quando o carro chegou ao Plateau, disse ao rapaz que parasse junto
dos correios. Era uma rua silenciosa, rodeada de moradias com dois e três pisos, com
portas de madeira muito altas, janelas com portadas, pequenas varandas de ferro forjado
e grandes terraços. Aquele era o antigo bairro da pequena burguesia local: funcionários
da administração colonial, militares e comerciantes. Agora, grande parte das casas
estavam desabitadas e em mau estado. O piso era de alcatrão e os passeios, de pedras
escuras, estavam polvilhados de pequenas crateras. Havia gatos estendidos nos passeios,
junto aos muros decrépitos, a lamberem, cuidadosamente, o pêlo empoeirado. Um cão,
com o pescoço e as orelhas cobertas de carraças, coçava-se contra uma parede por
rebocar. Nos quintais, as bananeiras e mangueiras curvavam-se, obedecendo à força do
vento. Uma velha, de cabelo quase rapado, abriu o postigo da porta e deitou a cabeça de
fora, fixando os olhos piscos no homem que acabava de chegar. Ao fundo, via-se um
bocado de azul: o mar largava pequenas ondas sobre a areia preta. Havia barcos
ancorados no porto e, na encosta, viam-se dezenas de pequenas casas com paredes por
rebocar. Dir-se-ia que as casas estavam em construção, sempre prontas para levarem um
novo piso. Crianças pequenas, seminuas, brincavam nas estradas e carreiros
empoeirados. Mais perto do mar, junto da areia preta, sacos de plástico, presos a cactos
rasteiros, agitavam-se ao vento.
O Pedro entregou ao rapaz uma nota de quinhentos escudos de Cabo Verde.
Olhou em redor. A porta da casa da Melissa estava semiaberta. Segundos depois, ela
meteu a cabeça de fora e acenou com a mão. Havia dez anos que não lhe punha a vista
em cima. Era aquela a sua nova casa! A casa que o Macaco comprara e que estava agora
a restaurar. Ele fixou o olhar no número da porta, o 28 A, e entrou no corredor escuro.
A Mel beijou-lhe a boca e disse:
-Ai, nem acredito que és tu!
-Parece um sonho!
-Sobe, amor, a minha casinha é no 2º e no 3º pisos! O 1º piso também é meu,
mas está alugado.
-Estás rica, meu amor! – disse ele, soltando uma gargalhada.
-Não gozes! Olha que eu estou mesmo!
-Amorzão, estás na mesma! Linda! – disse ele, enrolando o braço à volta da
cintura fina da Melissa.

2
-Não mintas, sim? – Passou-lhe a mão, carinhosamente, pelo pescoço. - Até um
cego vê que eu estou mais velha!
-Tu, mais velha! Estás ainda melhor! Eu é que estou velho.
-Não vejo um único cabelo branco! Estás igual! – Olhou para ele de alto a baixo.
– Ai, que saudades eu tinha desse sorriso!
Subiu as escadas atrás dela. Eram umas escadas de cimento vermelho, sem
corrimão, ladeadas de paredes, pintadas de amarelo. A casa estava em obras. O 1º piso
estava alugado. No 2º piso, havia materiais de construção, paredes por rebocar e
ferramentas. O 3º piso estava escassamente mobilado. O corredor, cheio de luz, que
vinha do terraço, tinha as paredes por pintar. Encostado à parede, uma estátua de
madeira, com meio metro de altura, que o Macaco trouxera de Moçambique.
-Amorzão, há anos que esperava por este momento! – disse ela. – Anda ver o
meu filho!
O bebé ainda não tinha três meses e dormia, de barriga para baixo, em cima da
cama. Estava deitado entre duas almofadas. Era um bebé de pele clara e cabelos lisos.
Só o nariz, um pouco achatado, denunciava o sangue africano que lhe corria nas veias.
-Não é parecido contigo, pois não?
-É a cara do pai! Tem o sorriso do Macaco, a pele clara, e até o mesmo sorriso.
Olha aqui! – disse ela, mostrando ao Pedro uma fotografia do marido.
Pedro olhou para a fotografia e viu que o italiano era um homem de meia-idade,
cabelos escuros e fartos, olhos pequenos e faiscantes, boca grande, escancarada num
sorriso trocista.
-O Macaco deve estar doido de contente!
-Não cabe em si de alegria! Ainda não esteve com o filho! Coitado, só o viu em
fotografia. Repara bem nas orelhas dele! Grandes como as do pai!
Pedro reparou que o marido dela tinha umas orelhas saídas para fora, em forma
de abano, que lhe pareceram duas pequenas antenas parabólicas.
O Macaco era o marido da Mel. Ela chamava-lhe Macaco, ele chamava-lhe
Macaquinha e o Miguel era o Macaquinho. Mas o verdadeiro nome dele era Arturo.
-Anda daí, amorzão, quero contar-te todas as merdas que me aconteceram nos
últimos dez anos – disse ela, empurrando-o para a cozinha.
A cozinha era um espaço acanhado, com chão de cimento, paredes amarelas,
tectos com manchas de humidade, um fogão em frente da porta, uma mesa de pinho
junto à janela que dava para um quintal vizinho, um lava-loiças, um frigorífico, uma
máquina de fazer sumo e um microondas. Ela começou a fazer sumo de tomate, kiwi e
cenoura.
-Não ligues à desarrumação, amor. Estamos em obras, isto vai ser tudo
restaurado. O Macaco é que faz todos os trabalhos. Sabes, ele faz tudo, e na perfeição:
trabalho de pedreiro, de canalizador e até de carpinteiro. Tive sorte com este homem.
Sabe fazer tudo, ganha bom dinheiro e é bom na cama.
-Tiveste sorte! Podes crer! – Pedro sentou-se e ficou a ver a Melissa a cirandar
pela cozinha. Admirou-lhe a cintura fina e o pescoço alto.
-Foi o único macaco que me fez bem! Até tu me deste um pontapé no cu! –
Olhou para ele e riu-se. - Os outros só me fizeram cagar merda!
-Quando é que compraste a casa?
-Há menos de um ano. Comprei-a a uma velha que emigrou para Boston. É a avó
da Suzi, uma moça desmiolada. – Levou o dedo indicador à testa e sorriu. - A velhota
foi ter com o filho à América e vendeu isto barato.
-São três pisos, na melhor zona da Praia, com a melhor vista possível – disse ele,
enrolando os braços à volta dela e beijando-lhe os cabelos longos e fartos que lhe caíam

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pelas costas. -Ela voltou-se e ofereceu-lhe os lábios grossos. O Pedro passou-lhe a
língua pelos dentes, uns dentes de uma brancura imensa.
-O Macaco teve de interromper o restauro da casa há coisa de três meses. Foi
para a Guiné-Conacri, numa missão de urgência. Está a ganhar uma pipa de massa.
Aqueles gajos da União Europeia são generosos: pagam bem. Mas o Macaco também é
bom, é o melhor na especialidade dele e além disso sabe fazer tudo e fala cinco línguas:
italiano, francês, português, inglês e crioulo. Na perfeição!
-Mel, casaste com um tipo singular! – disse, encostando o corpo ao dela.
Ela tinha uma cintura delgada, a bem dizer todo o corpo dela era esbelto e
sinuoso. A pele, ligeiramente escura, era lisa e brilhante. Dançava enquanto falava,
acompanhando as palavras com os braços, as mãos e as pernas, sem nunca permanecer
quieta. E ria, ria muito. A voz continuava tão doce como quando ela tinha vinte e quatro
anos. As palavras dela soavam a música.
-Tu é que foste o culpado! Lembras-te daquele dia, em Lisboa, em que me deste
um pontapé no cu?
-Lembro e peço-te perdão.
-Até que foi melhor assim. – Ela inclinou-se e beijou-lhe a boca - Eu estava
disposta a casar com aquele Zé, um filho da puta que só queria foder, fodia, fodia sem
parar, e eu deixava, apesar de não gostar dele nem um bocadinho e estava disposta a
casar com o cabrão só para me manter perto de ti.
-Eu sei que fazias isso por mim. Mas, naquela altura, eu não podia ficar contigo.
As minhas duas filhas eram muito pequeninas!
-Sempre as tuas filhas a empatarem! – disse ela, desalentada.
O Pedro lembrou-se daquela tarde, dez anos atrás, nos Restauradores. Foram
almoçar a um restaurante barato da Baixa de Lisboa. Ele estava a beber a bica quando
ela lhe perguntou se queria fazer amor. Ele respondeu que não. Um manto de tristeza
caiu sobre a cara da Mel e o sorriso que lhe enfeitava a boca desapareceu, dando lugar a
uma expressão de tristeza, visível no silêncio e nos lábios cerrados.
Viu-a pela última vez a subir as escadas da estação do Rossio, onde ia apanhar o
comboio para a Amadora. Ela voltou-se e acenou com a mão. Disse qualquer coisa que
o Pedro não conseguiu ouvir. Ele levantou o braço e enfiou-se no parque de
estacionamento dos Restauradores. Mordeu os lábios de raiva e saiu de lá coberto de
vergonha.

-Bolas! Ainda bem que eu não casei com o Zé! Sabes que o filho da puta casou
com outra e passa os dias a dar-lhe porrada! Já viste do que eu me livrei? Levar porrada
dum gajo daqueles? Feio como o diabo! – Soltou uma gargalhada. - A mãe dele é que
gostava muito de mim, queria ver-me casada com ele, dizia que eu era boa cozinheira e
que saberia tratar do filho como nenhuma outra! Pobre mulher! Estava disposta a
comprar um apartamento para nós! E eu ia aceitar se tu tivesses dito que me querias
perto de ti. Mas tu disseste para eu regressar a Cabo Verde e eu voltei a casa. Nem lhe
disse nada: fiz a mala, meti-me num avião e vim para aqui. Bem, antes disso, ainda
andei um tempo a passear pelo Algarve, onde conheci aquele algarvio, viúvo, que tinha
uma cabana na praia e que fodia, fodia sem descanso. Onde é que aquele diabo ia
arranjar tanta energia? Sempre, sempre pronto para o combate!
- Eu sei! Já me contaste a história do algarvio. Foi um ano depois que conheceste
o italiano, não foi?
-Não foi logo. Eu conto-te tudo mais tarde. É uma história longa e andei a comer
muita merda até encontrar aquele macaco.
-Voltaste para aqui ou para o Mindelo?

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-Estive no Mindelo um tempo e depois vim para aqui. Trabalhava nos TACV de
dia e ainda fazia uma perninha num restaurante de uma amiga, à noite. Caguei muita
merda, sabes? Precisava de tocar dois empregos para pagar as contas.
-E foi no restaurante que conheceste o italiano?
-Foi. O Macaco ia lá jantar, olhava muito para mim, convidou-me para ir à praia
e eu fui.
-Apaixonaste-te por ele, hem?
-Qual quê! Mas eu lá seria capaz de me apaixonar por outro homem! Nunca
deixei de te amar, mesmo quando me deste um pontapé no cu! – disse ela. E pegando-
lhe na cara, aproximou-se e pediu: - Dá cá essa boca linda!
-Mas ele apaixonou-se, não?
-Coitado, o Macaco estava farto de viver sozinho, tinha acabado de se divorciar
de uma puta maluca que o trocou por outra mulher e que lhe fez a vida negra! Levou-lhe
o filho para França e ficou-lhe com o dinheiro. Estava carente, coitado. No dia em que
fomos à praia, fizemos amor logo que chegámos a minha casa. Havias de ter visto!
Andava com uma fome! Eu não parava de rir, ao vê-lo a tirar e a pôr camisinhas, com
um à vontade incrível!
-E por que razão não me falaste nele? Quer dizer, até deixaste de responder às
minhas cartas!
-Não foi isso! É que eu tive de ir com ele para Moçambique! Andei por lá quase
quatro anos, a comer o pão que o diabo amassou, a cagar merda por todo o lado! Aquilo
ali não havia nada para comer. Tivemos dias em que só comíamos mandioca! E aquela
guerra, meu Deus! Havia bombas em todo o lado. Tu deste-me um pontapé no cu e ele
deu-me a mão. Que querias que eu fizesse? Afinal, o Macaco foi o único homem que
me tratou bem. E ele ama-me, sabes? Às vezes, diz-me: “todas as mulheres me traíram;
só espero que tu não faças o mesmo!”
-E eu a mandar cartas para os TACV e para todas as agências, enquanto andavas
com o italiano no meio das bombas e dos macacos!
- E dos crocodilos e dos elefantes! – disse ela. - Oh, amorzão! Estou tão contente
por nos termos reencontrado! Mi é de-bósa, bo é de-minha!
-O quê? – perguntou o Pedro, sem perceber o que ela estava a dizer.
-Tens de aprender crioulo, amorzão! Eu disse: sou tua e tu és meu!
Depois de percorrerem as quatro divisões do 3º piso, foram para o terraço. O
edifício dos correios, com dois pisos, estava vazio porque era domingo. À esquerda,
havia meia dúzia de casas baixas, com as portadas fechadas e mangueiras nos quintais.
Mas ao fundo, o mar, muito azul, lançava pequenas ondas brancas sobre o areal escuro.
Um barco de grandes dimensões estava ancorado no porto, mas sem vivalma. O sol
queimava, mas uma aragem fresca, vinda do mar, tornava o terraço habitável. E foi ali,
com ela encostada à parede, a olhar para o mar, que fizeram amor.

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DOIS

Arturo casou com a Mel poucos dias depois de fazer 52 anos. A cerimónia foi
rápida e simples. Ela levava um vestido comprido, branco, que mandara vir do Senegal.
Era um vestido tradicional africano. Os cabelos pretos, longos e fartos, tapavam-lhe as
costas. Estava bonita mas não sorria. As amigas disseram que ela estava com um ar
triste. Quando Pedro viu as fotografias, pôde comprovar a tristeza do rosto dela. Arturo,
pelo contrário, sorria de orelha a orelha.
Compraram a casa algumas semanas depois de casarem. Ela deixou o
apartamento alugado, num prédio pintado de amarelo, numa rua que já conhecera
melhores dias, em frente a um largo de terra batida, onde se viam algumas acácias de
pequeno porte, inclinadas pela força do vento. Ele encheu uma pick-up com a escassa
mobília que possuía, numa moradia à beira-mar, no bairro das embaixadas, muito perto
da Prainha, e disse ao motorista para despejar tudo no número 28 A da Rua dos
Correios. A Mel não trouxe mobília. Deixou tudo a uma amiga do Mindelo que acabava
de chegar à Cidade da Praia, sem emprego e com um bebé nos braços.
Passaram os primeiros nove meses sem fazerem nada. A bem dizer, apenas
dormiam e faziam amor. Nos intervalos, ela cozinhava e ele fazia pequenos arranjos na
nova casa. Ela gostava de o ver em tronco nu, com uns calções cheios de nódoas e uns
chinelos de plástico nos pés. O Arturo só saía para comprar ferramentas. Não se dava
com mais ninguém na Cidade da Praia. Sem amigos, nem hábitos de sair à noite, Arturo
levava uma vida monacal, inteiramente dedicada à sua jovem mulher e ao restauro da
casa. A visita à drogaria exigia uma volta pequena, já que a melhor loja de ferramentas
ficava em frente do hospital da cidade, a pouco mais de cem metros de casa. A visita à
casa das ferramentas era o passeio preferido do italiano. Pelo caminho, gostava de
observar as vendedoras, sentadas em pequenos bancos de madeira, debaixo das acácias
ressequidas, em frente do hospital. Havia-as velhas e novas, e algumas transportavam os
bebés, às costas, enrolados em panos garridos. Ali vendia-se de tudo: mangas, pinhas,
morangos, laranjas, comida feita, maços de cigarros e pacotinhos com piripiri, salsa e
coentros. As moscas cirandavam em volta da comida, mas ninguém parecia preocupar-
se com isso. Nem os bebés, agarrados às costas das mães, se davam ao trabalho de
enxotar as moscas que, aos magotes, se fixavam, como lapas, à volta dos olhos e do
nariz.
Havia uma velha que gostava de se meter com ele. Erguia a cabeça e, mostrando
uns dentes impecavelmente brancos, dizia:
-Patrão branco, leve isto para a senhora feliz. – Ele, mais por pena do que por
necessidade, aceitava o saco de morangos e entregava duas moedas de cem escudos à
velha mulher.
Quando Mel o acompanhava, a vendedora dizia:
-Oh, Felicidade, pede ao teu marido branco para te comprar morangos!
A Mel dizia:
-Mas eu não me chamo Felicidade!
-Não é preciso ter o nome para ser felicidade! – respondia a mulher.

A Mel enchia-lhe a barriga de doces, sobretudo doce de manga com queijo


fresco, que o italiano adorava e comia desalmadamente. Quando acabava o doce, o
Arturo dizia, fazendo uma cara de bebé:

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-A macaca só sabe maltratar o macaquinho, não é? – Batia com os punhos no
peito como se fosse um símio. - O macaquinho mata-se a trabalhar e a macaca passa o
tempo de barriga para o ar, a profitar como se estivesse de férias!
Utilizava a palavra profitar a torto e a direito, dava gargalhadas, abria as pernas
e os braços e punha-se a saltar como se fosse um macaco. Ao ver que a Mel se
desmanchava a rir, ele aumentava a frequência dos saltos, baixava os calções até aos
joelhos, agarrava no sexo e punha-se a esfregá-lo, dizendo:
-O macaquinho pequenino só profita a tocar punheta, não é? É macaco
trabalhador, um escravo desgraçado que foi comprado por uma preta sem sentimento!
A Mel ria e dizia:
-Ai, tu que és o patrão branco agora viraste escravo de preta?
-Sim, eu sou um macaco branco que virou escravo de uma cona preta! – dizia o
Arturo, puxando o pénis com força e dando saltos atrás dela. Depois, encostava-se ao
rabo da Mel, fingia que estava a copular e acrescentava: - Sou escravo desta cona preta!
Sou escravo desta cona preta!
A Mel fugia dele, refugiando-se no terraço, e ele, correndo atrás dela, dizia,
mostrando-lhe o sexo murcho:
-Vês o que lhe fizeste! O desgraçado ficou assim, torto e mole, de tanto
trabalhar!
-Então esse escravo é preguiçoso e eu vou arranjar outro que trabalhe melhor e
que nunca se canse de trabalhar para esta cona preta, não é assim?
-Tens de arranjar mais três ou quatro escravos porque dois não chegam! – Dava
um salto em frente e esticava o pénis murcho. - Essa cona preta é tão quente que mais
parece um forno de assar caralhos! Nunca se cansa de profitar! Não! Quatro são
poucos! Tens mas é de arranjar um regimento! Melhor! Todas as forças armadas da
República de Cabo Verde!
-Não chegam! Preciso de mais!
-Ai sim! Então pedimos ajuda às forças armadas italianas!
-Isso! Isso! – dizia a Mel, correndo para o sofá, naquilo que era um sinal para o
Arturo se meter em cima dela, dando início a mais uma tarde de sexo.

Uns meses depois de casarem, a menstruação deixou de aparecer. A Mel


percebeu que estava grávida, mas só anunciou a boa-nova ao Arturo depois de ter feito
um teste de gravidez. Ele recebeu a notícia com berros de alegria. Começou a correr por
toda a casa, dando saltos, com os braços esticados a imitar um macaco, e só acabou
quando chegou ao terraço e se pôs a gritar para quem o quisesse ouvir “VOU SER
PAPAI!!!” Era uma sexta-feira. O pessoal dos correios veio à janela e ele continuou a
gritar “VOU SER PAPAI!”. Segundos depois, ouviu-se uma salva de palmas, vinda das
janelas do edifício dos correios. A Mel juntou-se a ele, acenou ao pessoal dos correios e
disse:
-É o meu primeiro filho!
Ouviu-se uma nova salva de palmas, a Mel agradeceu e empurrou o Arturo para
dentro de casa.
-Amorzão, tens de dar a notícia aos teus pais e ao teu filho!
-Aos meus pais! Para quê? Eles não merecem!
-Ao menos ao teu filho!
-´Tá bem, manda-lhe um mail!
A Mel ligou a net, entrou na página do yahoo, digitou a senha de acesso e
escreveu:

7
Rafaelo,
Nem sabes como o teu pai e eu estamos felizes! Espero que possas partilhar
connosco esta felicidade. Vais ter um irmãozinho. Quero dizer, ainda não sei se é um
menino ou uma menina mas eu quero tanto que seja um rapaz que até já arranjei nome
para ele: Miguel! Dizias que não gostavas nada de ser filho único. Daqui a sete meses,
já não serás. Recebe um grande beijo do teu pai e outro da Melissa.

O Arturo bateu, repetidas vezes, com a mão direita na barriga e, fazendo uma
voz de criança, disse:
-Macaco está esfomeado! Macaca trata mal o macaquinho! São horas de almoçar
e não há nada em cima da mesa!
-Sim, macaco tem razão! Tua macaca quer matar-te à fome para casar com
macaco novo!
-Estás a ver! Eu tenho razão! Queres matar o teu macaco velho à fome!
A Mel deu uma gargalhada, abriu o frigorífico e tirou de lá três pratos com
comida: uma lasanha, duas postas de atum com tomate, cebola, lentilhas e mandioca e
um prato de borrego assado com mandioca e ervilhas. Abriu a porta do microondas e
meteu lá dentro o prato com lasanha.
-Chega?
-É pouco! Só três pratinhos para o teu macaco velho? – Deu três saltos, imitando
um macaco. - Nem sobremesa, nem nada?
-Ah, meu macaco guloso e barrigudo, marido debochado, que passa o tempo a
refilar e a pedir comida! Toma! Enche esse bandulho, essa barriga de macaco velho,
com doces, que é para eu te trocar por um macaco novo, musculoso e elegante! – E dito
isso, tirou do frigorífico três pratinhos com doces: bolo de laranja, doce de manga com
queijo fresco de cabra e bolo de café.
-Só três pratinhos? Nem um pudinzinho, nem um arroz-doce para o teu macaco
trabalhador, um macaco electricista, serralheiro, pedreiro, canalizador e fodedor!
A Mel ria e dava pulos e, batendo com a mão direita na barriga dele, disse:
-Isto não é uma barriga de macaco! É uma barriga de elefante! Com tanto doce
qualquer dia precisas de um espelho para veres a pila!
O Arturo baixou os calções, agarrou no pénis e, fazendo movimentos com a mão
para cima e para baixo, disse:
-Esta pila mole está velha, já só serve para mijar!
-Ai, eu vou arranjar um macaco novo, vais ver! Um macaco que coma menos e
foda mais!
-Eu sou um macaco velho desgraçadinho, é isso que eu sou, um macaco
trabalhador, um escravo sem direitos!
-Pronto! Anda cá, meu macaco, eu não vou arranjar macaco novo! Vou ficar
com este, que fode pouco mas é muito trabalhador!
-Um macaco escravo que ganha muito dinheiro, não é?
-Sim, um macaco velho que ganha muito dinheiro que é para o nosso Miguel ser
Presidente da República quando for grande!

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TRÊS

A Suzi tinha a pele mais escura do que a Mel. Corria-lhe nas veias o sangue dos
primeiros escravos que chegaram à ilha de Santiago. Descendia de uma das mais antigas
famílias da ilha e a avó era proprietária de duas casas coloniais na rua dos Correios. A
casa onde vivia a Mel fora da avó da Suzi. A rapariga tinha um andar dançarino e um
corpo roliço e elegante. O cabelo, crespo e muito curto, dava-lhe um ar de rapazinho,
mas o rabo, duro e empinado, e os seios, atrevidos, anunciavam a sua feminilidade. Os
lábios eram grossos e os olhos, negros e brilhantes, tinham a forma de duas amêndoas.
A íris faiscava sobre a brancura imensa do globo ocular. Quando sorria, mostrava uns
dentes brancos e, como era de baixa estatura, erguia o pescoço delgado quando falava
com alguém. Desde que a avó partira para Boston, a Suzi repartia o seu tempo entre a
casa da Mel, onde comia e dormia por vezes, e uma lojinha de roupas de criança num
pequeno centro comercial, junto do edifício do Tribunal Militar. Tinha acabado a escola
secundária e esperava ganhar uma bolsa de estudos para continuar os estudos na
Europa.
A irmã, acabada de chegar à ilha, depois de cinco anos em Cuba, onde se
formara em Ciências Jurídicas, recusava-se a dar-lhe guarida, acusando-a de ser uma
desmiolada, incapaz de agarrar as oportunidades, eternamente à procura de um homem
rico que a levasse para longe dali. Mas a Suzi tinha azar com os homens. Eles
desejavam-na mas ela não os sabia escolher. Um dos últimos que lhe calhara em sorte,
fora um italiano, dono de uma loja de animais, que a queria levar para a Itália, mas que
ela recusara com o argumento de que não queria passar a vida atrás de um balcão, ainda
por cima a vender rações para animais! Com um corpo daqueles e uma cara que tinha
tanto de bonita como de exótica, a Suzi achava-se digna de coisa melhor e como acabara
de fazer vinte anos era ainda muito cedo para pôr termo à sua desesperante busca.
O italiano é que não desistia. De três em três meses, viajava até à ilha do Sal,
hospedava-se num hotel de quatro estrelas, e pedia para ela ir ter com ele. A Suzi não se
fazia rogada. Agradava-lhe a ideia de passar uma semana fora da capital, num hotel com
todo o conforto, comida boa e variada, tardes estendida na praia e noites nas discotecas
e bares de Santa Maria. Da primeira vez que estivera com o italiano, há dois anos atrás,
ele prometera comprar um pequeno apartamento de duas assoalhadas na aldeia de
Palmeira, a duzentos metros do mar. A ideia agradava-lhe. Talvez pudesse alugar o
apartamento a outros italianos e viver da renda durante todo o ano. Cada vez que o via
ou lhe telefonava, a Suzi insistia na promessa de compra do apartamento, mas o italiano
arranjava sempre uma nova desculpa para adiar a compra. Da última vez que esteve
com ele, desagradou-lhe particularmente a insistência com que ele a queria ver a
trabalhar na loja de animais e os cinco dedos de carne que lhe saíam para fora do cinto.
Estava mais gordo, tinha menos cabelo, as costas, de uma cor leitosa, salpicadas de
sinais e os dentes, amarelos e cariados. A cara, branca e bexigosa, estava cravada de
crateras e pontos negros e o nariz, afilado, tinha uma pilosidade que lhe dava um ar
tosco e rude. Era um homem desengraçado, a caminho da meia-idade, divorciado pela
terceira vez, sem grandes qualidades físicas ou intelectuais, que herdara a loja de
animais, e continuava a viver com a mãe numa casa grande mas velha, situada em
Verona, bem perto do teatro romano. A Suzi também não gostava da forma como ele
ressonava, de boca aberta, libertando sons animalescos, envoltos num eterno mau hálito
que nem o mascar de pastilha elástica eliminava. Quando o italiano pegava no sono,
emitia uns barulhos que faziam lembrar o tambor de uma máquina de lavar roupa em

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movimento e, por vezes, largava uns sons agudos, em forma de assobio, que se
assemelhavam aos travões de um carro velho com falta de óleo. Quando falava, soltava
salpicos de saliva que atingiam o interlocutor com a força e a dispersão de uma
saraivada de balas.
A Mel dizia para ela aproveitar, porque homens assim não havia muitos. Afinal,
o italiano era divorciado, portanto livre e desimpedido, tinha uma situação financeira
razoável e, embora não fosse lá grande coisa como homem, tinha dois braços, duas
pernas, dois olhos, uma boca, o nariz no lugar e, segundo o que a Suzi dizia, gostava de
sexo e era bom na cama.
A Suzi chamava pela Mel quase sempre à mesma hora. Fechada a loja para
almoço, a rapariga dirigia-se para a rua dos Correios, parava em frente da casa que fora
da sua avó, e gritava:
-Mel! Dona Melissa! Sou eu! Abra a porta!
Em tempos, havia uma campainha mas a Mel mandou-a retirar porque não
gostava de ser incomodada. Se a quisessem visitar, bem podiam telefonar a avisar.
Como tinha uma caixa postal e o edifício dos correios ficava do outro lado da rua, nem
precisava que o carteiro lhe batesse à porta. É que não era fácil descer e subir os três
lanços de escada!
Quando a Mel não estava a fazer amor com o Arturo ou a dormir a sesta, logo
que ouvia os gritos da Suzi, vinha à varanda e dizia para ela esperar um pouco. Descia
as escadas, com passos lentos, e abria a porta de entrada. A rapariga subia as escadas
atrás dela, à espera do habitual convite para almoçar, e era certo e sabido que ia
aproveitar a ocasião para abrir a caixa de correio electrónico, ler os mails do italiano e
responder, se estivesse com paciência para escrever. Sempre que abria a caixa de
correio electrónico, a rapariga navegava durante horas, esquecia-se de ir para a loja, e só
quando a Mel lhe dizia que já era tempo de acabar com aquilo, porque a Internet, em
Cabo Verde, custa uma fortuna, é que a rapariga levantava o rabo da cadeira e voltava
as costas ao computador sem se dar ao trabalho de desligar a net. Quando a Suzi descia
as escadas, em passo lento, parava a meio e dizia para a Mel, que a observava do
corredor:
-Dona Melissa, não há para aí uma nota de mil que eu pago-lhe depois?
A Mel ia buscar a carteira, que guardava num bolso de um vestido africano,
pendurado no guarda-fato, tirava uma nota de mil escudos cabo-verdianos e dava-os à
rapariga, que se limitava a esconder a nota no bolso e a sussurrar:
-Obrigado, Dona Melissa! Altamente! A senhora é mesmo baril! Eu depois
pago!
A Suzi nunca pagava, a bem dizer o dinheiro que ela ganhava na loja mal dava
para a renda do quarto, mas a Melissa não se ficava a perder. Anotava o empréstimo
num caderno de apontamentos e, no final do mês, mandava a conta para a avó da Suzi, e
a velhota mandava o cheque, com a quantia exacta, todos os seis meses.

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QUATRO

O Pedro acordou, olhou para o relógio, e viu que eram cinco horas da manhã. O
sol entrava timidamente no quarto. A rede mosquiteira deixava passar os raios de sol,
que se projectavam na parede, em pequenos pontinhos, como se formassem uma pintura
impressionista. Lá fora, apesar do sol matinal, não havia vivalma. Ao longe, um barco
de pesca aproximou-se, silenciosamente, do porto. O piar dos pardais era o único som
que quebrava o silêncio da manhã. O Pedro olhou para o lado e viu o corpo escuro da
Mel, que estava nua, semi-tapada por um lençol branco. Ela dormia ainda. O bebé, já
acordado, de barriga para o ar, atirava as mãozinhas contra um peluche que estava preso
por um fio e seguia-lhe o movimento com um olhar inquiridor. Quando conseguia tocar
no peluche, fazendo-o abanar sobre a sua cabeça, o bebé ria e soltava sons de
contentamento.
Quando o Pedro se levantou da cama, com a intenção de ir tomar duche, como
era hábito todas as manhãs, a Mel disse:
-Onde é que vais?
-Tomar duche.
-Amorzão, não sejas tão apressado! – Bateu com a palma da mão no lençol. -
Aqui, fazemos tudo devagar.
-É do hábito, sabes.
-Não vês que a água ainda está fria! – Ela atirou o lençol para o fundo cama e
ficou nua. - Eu não tomo banho antes das onze horas, que é quando a água já está
morna. – O Pedro deitou-se, de novo, na cama, abraçou a Mel, e ela continuou: - Vamos
dar uma fodinha, sim?
O Pedro olhou para o bebé, que continuava a atirar as mãos contra o peluche,
indiferente ao que se passava ao lado, e rolou para cima do corpo nu da Mel. Beijou-lhe
a boca e sentiu as pernas dela cruzadas sobre as suas costas. Os dedos da Melissa
deslizaram pelas costas do Pedro e ela sussurrou:
-Dá cabo de mim! – Ele acariciou-lhe os seios nus. – Sou tua! – disse, cruzando
os dois braços sobre as costas dele.

O Pedro sentou-se junto da mesa da cozinha e ficou a olhar a Mel a preparar o


pequeno-almoço. Fizera uma tentativa para a ajudar, mas ela ordenou que ficasse quieto
e que a observasse. A cozinha era o território dela e via-se que cuidava do Pedro com
satisfação. A pouco e pouco, a mesa ficou cheia de pratos. Primeiro, ovos mexidos com
linguiça frita, depois, um queijo de cabra de Santo Antão, de seguida, um prato com
papaia descascada e manga aos pedacinhos. Por fim, dois copos com sumo natural: um
deles com sumo de tomate e cenoura e o outro com sumo de laranja e maçã. Ela só se
sentou quando a mesa ficou cheia e começou a comer depois de o Pedro ter saboreado a
linguiça.
-Está bom? – perguntou, sentando-se.
-Está delicioso. – Pedro não levantou a cabeça do prato.
-Agora prova o sumo. – Ela colocou o copo na mesa. – O Macaco adora os meus
sumos. Agora, coitado, está para a selva, sem ninguém que cuide dele!
Ele bebeu um gole de sumo de laranja e maçã e disse que estava muito bom.

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-Bebe agora do outro! - Ele levou o copo de sumo de tomate e cenoura à boca e
voltou a dizer que estava delicioso. A Mel sorriu e disse: - Aqui é tudo natural, tudo
feito nas calmas. Queres que faça um café da Ilha do Fogo?
-Logo! Fazes depois do almoço.
Depois de tomarem o pequeno-almoço, ela pegou no bebé ao colo e deu-lhe
mama. O Pedro observou a cena. Ela tinha uns calções de ganga muito curtos e estava
despida da cintura para cima. O bebé chupava o mamilo da mãe com evidente prazer. A
mãozinha esquerda do bebé beliscava a mama direita da Mel. Na rua, o roncar dos
primeiros carros anunciou o começo de um dia de trabalho. O som das mulheres a
tagarelarem ecoava como que vindo do fundo de um poço. Pelo corredor da casa, ecoou
um grito de mulher, vindo da rua. Alguém chamava pela Melissa. Seria a Suzi? A Mel
disse
-Deixa para lá! Ainda não são horas para se incomodar as pessoas. - O Pedro
olhou para o relógio e viu que eram dez horas da manhã.

Eram onze horas quando desceram as escadas. Ao abrirem a porta de entrada,


um bafo de ar quente, qual bofetada, bateu-lhes na cara.
-Ui, hoje está quente! – disse o Pedro.
-Nesta altura do ano é sempre assim. Sair à rua é como abrir a porta de um forno
para tirar de lá um bolo acabado de fazer!
O Pedro levava o bebé ao colo e a Mel seguia ao lado dele, com uma pequena
mochila às costas.
-Apanhamos um táxi? – perguntou o Pedro.
-Sim, na pracinha!
A pracinha ficava no coração do Plateau. Àquela hora, fervilhava de gente.
Havia pessoas em fila à entrada dos bancos, engraxadores que ofereciam os seus
serviços aos transeuntes, homens que conversavam, em pequenos magotes, encostados
às paredes e condutores que se esforçavam para encontrar um lugar de estacionamento.
Todas as noites, depois de jantar, a Mel fazia uma caminhada à volta da
pracinha. Os funcionários públicos escolhiam a pracinha para um pequeno passeio antes
de regressarem a casa. As raparigas juntavam-se à volta do coreto a saborearem gelados,
olhando, sorrateiramente, para os rapazes. Os miúdos faziam acrobacias com as
bicicletas. Pares de namorados, abraçados, esperavam pelo crepúsculo para trocarem
beijos apaixonados.
Era à volta da pracinha que se distribuíam alguns dos edifícios mais antigos da
cidade. A velha igreja, pintada de branco, enchia-se de crentes todos os domingos de
manhã. As agências bancárias, onde se acotovelavam mulheres que faziam fila para
levantarem o dinheiro enviado pelos maridos emigrantes, ocupavam o primeiro piso de
dois edifícios coloniais. Também havia cafés e cibercafés, onde rapazes e raparigas se
refugiavam do calor da tarde, em volta de cervejas frescas e sumos naturais de manga.
Sem passadeiras para peões, as ruas em volta da pracinha eram disputadas por carros e
pessoas, num entendimento perfeito que não precisava de linguagem.
Inexplicavelmente, os condutores sabiam quando deviam parar e os peões pareciam
adivinhar quando lhes era permitido atravessar a estrada.
O táxi serpenteou ladeira abaixo em direcção à praia Quebra Canelas. Na rua das
embaixadas, junto à linha do mar, havia miúdos a jogar à bola e casais de namorados
aos beijos. Uma rajada de vento lançou uma nuvem de pó sobre o pára-brisas do carro.
Ao longo da avenida que bordejava o mar, havia centenas de miúdos que regressavam
da praia. Os homens e as mulheres optavam pelos autocarros, que ali eram
amistosamente designados de Yes, talvez por causa das curvas das estradas cabo-

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verdianas ou, quem sabe, porque os motoristas dizem sempre que sim a um pedido para
pararem.
Entregaram uma nota de quinhentos escudos ao taxista e apearam-se. Junto às
rochas, havia sombra. Dirigiram-se para lá. O Pedro estendeu uma toalha no chão e
deitou o bebé. A Mel estendeu-se ao lado dele. Havia pouca gente na praia e eles eram
os únicos adultos. Avistaram miúdos a construir castelos na areia molhada e outros a
nadar um pouco atrás da linha de rebentação das ondas. Ao fundo, junto a um passeio
de cimento, dois miúdos brincavam com camionetas feitas de metal. O Pedro não
cessava de dizer, admirado, que nunca vira tantas crianças como em Cabo Verde! Na
linha de rebentação, o contraste das cebecinhas escuras da miudagem com a brancura
das ondas era comovente. Pareciam felizes, aquelas crianças, sempre risonhas, sempre a
brincar aos magotes, na mais completa segurança e liberdade. Por detrás do Pedro, o
velho hotel, agora renovado e pintado de branco e amarelo, parecia deserto. Em frente,
miúdos pescavam junto do farol.
-Ele já dorme. Anda daí. – Ela curvou-se, deu-lhe a mão e puxou por ele.
-E não há perigo?
-Não! O bebé dorme! Vamos aproveitar! – respondeu ela, puxando-o para a
água. – Antes de se separar do bebé, a Mel pediu a uma rapariga, sentada numa pedra a
escassos metros deles, que olhasse pelo Miguel.

Entraram no mar, de costas para o areal. A Mel deslizou por cima das ondas
como se fosse um golfinho brincalhão e ele seguiu atrás dela.
-Quando estive com o algarvio, dava sempre uma fodinha dentro de água. – Ela
abraçou-se ao Pedro e cruzou as pernas nas costas dele.
Nadaram durante breves minutos e depois regressaram ao areal. Ela abraçou-o,
beijou-lhe a boca e disse:
-Gostava de fazer amor contigo dentro de água.
-E achas que eu seria capaz?
-O quê, nunca fizeste?
-Dentro de água, não. Não me dou bem com o frio!
-Eu aquecia-te.
Voltaram para junto do bebé, que ainda dormia, a Mel agradeceu à rapariga,
arrastaram as toalhas em direcção à luz do sol e deitaram-se sobre elas.
Naquele dia, almoçaram no hotel Praia-Mar. De seguida, apanharam um táxi
para o mercado de Sucupira. Àquela hora, já havia pouca gente a fazer compras. As
vendedoras, quase todas mulheres ainda jovens, mostravam-lhes as peças de roupa mas
não insistiam. Algumas diziam:
-Es kusa é dretu!
-O que é que elas dizem?
-Ah, não sabes? – A Mel fez uma pausa. – Estão a dizer que isto é bom!
Ali não se regateava. A Mel comprou vários pares de cuecas made in Brasil e
depois disse:
-Vamos a pé para o Plateau!
-A pé?
-É perto! E podemos comprar mais coisas pelo caminho.
Subiram uma vereda inclinada e estreita, repleta de mulheres estendidas no chão,
umas dormiam outras ainda almoçavam, e o Pedro não parou de olhar para a enorme
diversidade de produtos que se vendiam naquele lugar: galinhas, perus, fruta, tecidos,
mandioca, laranjas, morangos…

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Quando chegaram a casa, dormiram a sesta e, ao fim da tarde, foram dar um
passeio de autocarro até ao Pensamento. Mel tinha-lhe falado na beleza do bairro e
Pedro queria visitá-lo. Eram cinco horas da tarde. Os autocarros circulavam apinhados.
Havia crianças que regressavam da escola, mães carregadas de sacos e poucos homens.
Não havia velhos. Onde estariam os velhos? A Mel disse que os velhos já tinham
morrido e os que ainda eram vivos estavam em casa. O Pensamento era um enorme
bairro de casas baixas, muitas delas por acabar, com uma enorme quantidade de
mercearias, tabernas e drogarias. Destacavam-se as velhas moradias coloniais, com
pequenos terraços, portas e janelas muito altas, com portadas de madeira, paredes
pintadas de amarelo. Havia raparigas sentadas à porta de casa, em amena e
despreocupada conversa, bebés ao colo das mães e rapazes a jogarem à bola nos
quintais empoeirados. As mulheres, à janela, conversavam umas com as outras. Quando
o autocarro chegou ao fim da linha, a Mel comprou outro bilhete e eles regressaram
pelo mesmo caminho. Alguns rapazes ainda jogavam à bola num campo de futebol
improvisado no leito seco de uma ribeira. O sol adormecia no dorso do mar. As casas
começaram a iluminar-se com uma luz fraca, amarelada, e dentro delas circulavam
sombras. Chegaram a casa quando anoitecia.
-Amanhã, levo-te à Assomada.
-Eu quero muito conhecer a Assomada. A minha agência quer que eu faça um
relatório sobre as potencialidades turísticas do interior da ilha.
-Ai, sim?
-Com a liberalização dos voos para Cabo Verde, eles querem organizar um
pacote de viagens diferente, uma coisa que permita aos turistas conhecerem o interior de
Santiago.
-A Assomada é o sítio ideal. Sabes que aquilo é muito verde?
-Verde?
-Sim! Tem muita água, muitas árvores, muita agricultura! Há muitos bananais e
muita cana-de-açúcar! Muita árvore de fruto! Mangues a perder de vista!
-E o caminho para lá?
-Estão a construir uma estrada boa! Alcatroada!

A Assomada é a segunda cidade de Santiago. Situada no interior, a meio


caminho entre a Praia e o Tarrafal, destaca-se pela verdura e pelas temperaturas mais
baixas. Quando a temperatura sobe aos trinta e cinco graus na Praia, na Assomada não
passa dos trinta. Pelo caminho, o Pedro teve oportunidade de visitar uma velha fábrica
de grogue, a bebida mais apreciada de Cabo Verde, feita a partir da cana-de-açúcar.
A Assomada parecia mais ordenada do que a Praia. Passeios bem arranjados,
árvores de maior porte, flores, bananeiras e mangueiras nos quintais, casas com paredes
pintadas e ruas limpas. Havia centenas de jovens a caminho das escolas. Depois de
percorrerem a cidade de táxi, almoçaram. Tiveram a companhia de um vereador da
Câmara Municipal, um homem novo, de pele quase branca, cabelos claros e olhos
verdes, que forneceu ao Pedro informações preciosas sobre restaurantes. O único
problema era a ausência de um hotel. Contudo, a nova estrada alcatroada permitiria um
regresso rápido à Cidade da Praia, com uma breve paragem na Praia de S. Francisco, a
poucos quilómetros da capital. Concordaram no seguinte itinerário: na ida, a estrada do
interior; no regresso, a opção pelo litoral. A Mel disse:
-O ideal era os turistas ficarem uma noite na Assomada e seguirem, no dia
seguinte, para o Tarrafal!
O vereador assentiu com a cabeça e disparou:

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-Tens razão, Melissa! A Câmara Municipal está a estudar um projecto de
construção de um pequeno hotel, na Assomada.
Depois do almoço, percorreram, abraçados, as ruas da Assomada, fizeram uma
visita à Escola Técnica, um edifício novo, pintado de amarelo, com centenas de
raparigas de uniforme azul, e regressaram à Cidade da Praia ao anoitecer, pela estrada
do litoral. Pedro anotou, num caderninho de apontamentos, com evidente interesse, o
nome das aldeias piscatórias com potencial turístico. Apesar das praias serem de areia
preta, a acalmia do mar e a tranquilidade das aldeias, faziam-no acreditar na
possibilidade de as incluir no roteiro turístico pelo interior da Ilha de Santiago.

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CINCO

O Pedro disse que ia sozinho para o aeroporto. A Mel opôs-se. Como poderia
deixá-lo ir sozinho? Queria estar com ele nem que fosse só por mais uma hora. Ambos
sabiam que ela ficaria, parada, a dizer-lhe adeus, com os olhos rasos de lágrimas, como
acontecera nas outras despedidas. Voltaria para casa, de táxi, deitar-se-ia na cama e
recusar-se-ia a comer durante o resto do dia. A almofada ficaria húmida com as suas
lágrimas, uma sensação de desespero e de perda apoderar-se-ia da sua alma e um manto
de tristeza desceria sobre ela, envolvendo a casa como uma sombra.
Ela enfiou o bebé no canguru, chamou um táxi pelo telefone e desceu as escadas
à frente do Pedro. Era manhã, mas o ar morno tocou-lhes as faces como se fosse uma
carícia. Entraram no táxi. Ela ordenou:
-Para o aeroporto!
O carro subiu a custo a estrada íngreme e sinuosa, beijando a curva do mar, para
logo se despedir dele. Numa curva apertada, debruçada sobre o porto, quatro grandes
pedras no asfalto, obrigaram o taxista a sair para fora da estrada, guinando para a direita,
numa manobra que pareceu ao Pedro uma tentativa mal sucedida de suicídio colectivo.
O carro chiou, acusando a violência da manobra, mas logo retomou a estrada.
Havia outras mulheres à entrada do aeroporto. Outras mulheres como a Mel que
se despediam dos seus homens. O Pedro fez o check-in e dirigiu-se para a esplanada-
bar, onde a Mel o esperava, sentada, com duas latas de sumo de manga sobre a mesa. O
Pedro queria falar, mas as palavras morriam-lhe na garganta. Os passageiros começaram
a entrar na sala de embarque e a esplanada ficou deserta. Beijaram-se na face. O Miguel
dormia ao colo da mãe. O Pedro entrou na sala de embarque e ficou de pé, com a cara
colada à vidraça, a ver a Mel dirigir-se para um táxi. Acenou-lhe e ela respondeu com
um beijo.
O avião ia partir à hora. Sentou-se ao lado de um português, baixo e gordo. O
homem perguntou-lhe se ia para Lisboa. Ele disse que sim. Então, o homem apresentou-
se:
-Chamo-me Francisco. – Esticou a mão. – Pode chamar-me Chico.
-Eu sou Pedro – disse, apertando-lhe a mão.
-Também vou para Lisboa. Passei aqui seis meses estupendos! – disse o homem,
rindo.
-Cabo Verde é um belo país.
-Tem tudo aquilo que um homem quer, não é? Belas mulheres, bom clima e boa
comida, porra!. – O Pedro reparou que o homem tinha a cara coberta de bexigas.
-Lá isso é! – disse o Pedro. Guardou alguns segundos de silêncio e depois
perguntou: - Vai de férias?
-Não! Vou para ficar. Já não volto, foda-se! – respondeu o homem, piscando os
olhos. – Tinha uns olhos pequenos, com o glóbulo ocular raiado de sangue e uma íris de
cor indefinida.

16
-O que é que esteve cá a fazer?
-Estive a trabalhar na construção da nova estrada para a Assomada…A trabalhar
para uns filhos da puta!
-Ai sim? Eu passei por lá e vi que havia muita gente a trabalhar. Portugueses,
não é?
-Sim! É uma empresa portuguesa. Uns cabrões. – Fez uma pausa e bateu com o
punho na parede. Pedro reparou que o homem tinha umas mãos peludas - Deram em
despedir o pessoal agora que a estrada está quase pronta, caralho! E olhe que têm outros
contratos aqui.
-Novas estradas?
-Sim, sim, novas estradas. Mas os cabrões preferem trazer malta nova e despedir
os mais antigos. – Os olhos do homem faiscaram. Franziu o sobrolho e os olhos
desapareceram sob duas almofadas de gordura. – Filhos da puta, é o que eles são!
-Então, vai daqui com pena?!
-Oh, se vou! – Deixou cair os braços, em sinal de desalento. - Deixei uma
cabritinha na Assomada que era um assombro de mulher, foda-se!. – Deu um estalo
com os lábios. - Você também deixou para trás uma bela mulher, hem?
-É verdade!
-E porque não ficou, caralho!?
-Impossível! Ela é casada com um italiano. Vim cá passar uns dias com ela
porque o italiano está no estrangeiro.
-É uma bela mulher, hem?
-Lá isso é! Imagino que a sua também era, não?
-Nem imagina! Uma foda de primeira|! Um mulherão de dezoito anos, uma
bunda rija e umas mamas redondas! – Desenhou um círculo no ar com as mãos. - E que
cara, meu Deus!
-As mulheres africanas são especiais, não é?
-Ai, meu Deus! Mais quentes, mais pacientes, elas fazem tudo para agradar a um
homem! Sempre prontas para a brincadeira! Danadinhas para a foda!
-E foi a primeira?
-A segunda. Andei com uma cabo-verdiana em Portugal. Não queira saber!
Aquilo era fogo! – Colocou os beiços em forma de bico e soprou - Uma vez, íamos de
carro, do Porto para Lisboa, não é que ela começou a despir-se até ficar nua ao meu
lado? E eu a conduzir com a mão esquerda e a mexer-lhe na rata com a direita! Parámos
na Mealhada e fomos foder para a casa de banho dos deficientes! Uivava que parecia
uma loba! – Gesticulava e os olhos dele brilhavam. - Andei com ela dois anos mas
aquilo não era mulher para um só homem, caralho! Apanhei-a com outro e mandei-a ir
dar uma curva. O engraçado é que ela casou com o tipo e eu continuei a comê-la às
escondidas! Ainda hoje a fodo sempre que passo por Vila Nova de Gaia e o cabrão do
marido não está. O gajo é camionista e faz muitos trabalhos para a Alemanha. – Soltou
uma gargalhada e deu dois saltos. – Grande cabrão! Ficou com a melhor parte! E um
valente par de cornos a enfeitar-lhe o pára-brisas!

Uma mulher com o uniforme dos TACV Airlines chamou os passageiros com
bilhete para o Sal e o Pedro separou-se do Francisco. O Pedro sentou-se, apertou o cinto
de segurança e ficou a olhar a ilha a desaparecer lentamente, à medida que o avião
tomava altitude. Meia hora depois, o avião fazia-se à pista do Aeroporto Internacional
da Ilha do Sal. Tinha de esperar quatro horas pelo voo para Lisboa. Dirigiu-se para o
restaurante e reparou numa rapariga, de olhar triste, que vagueava pelo corredor central.

17
-Vais para Lisboa? – perguntou ele. – Ela sorriu e sussurrou que ia para
Roterdão.
-Então, também vais ter de esperar quatro horas!? – Ela acenou com a cabeça e
ele perguntou: - Conheces Santa Maria?
-È a primeira vez que saio da Ribeira Brava!
-Isso é…
-Em S. Nicolau – interrompeu ela.
-Então és da Ribeira Brava! E o que vais fazer a Roterdão?
-Vou...
-Não queres ir comigo até Santa Maria? – perguntou o Pedro. - Apanhamos um
táxi, vamos ao pé do mar, comemos qualquer coisa e regressamos. - Ela sorriu, baixou a
cabeça e não disse nada. Ele voltou à carga: - Não tenhas medo, é só um passeio! Daqui
a duas horas estamos de volta!
O Pedro chamou um táxi e entraram os dois para o banco de trás. De um lado e
do outro da estrada, havia areia e pequenos arbustos ressequidos e inclinados pelo
vento. Passaram por Espargos, no centro da ilha, e pararam em Santa Maria. O Pedro
meteu uma nota de mil escudos nas mãos do taxista e disse para ele estar de volta dentro
de duas horas. Dirigiram-se a pé para a praia e sentaram-se na areia, a escassos metros
do mar.
-Não queres molhar os pés? – perguntou o Pedro.
-Não,
-Estás triste?
-Estou.
-Porquê? Tens medo de mim?
-Oh, não! Tu tens cara de boa pessoa – respondeu, sem levantar a cabeça.
-Posso saber o que tens?
-Saudade – disse, deslizando o indicador direito pela areia.
-Ah, saudade! E medo também?
-Também medo. É a primeira vez que deixo S. Nicolau.
-E o que vais fazer a Roterdão?
-Vou casar – respondeu.
-Casar?
-Sim. – Levantou a cabeça, olhou para o Pedro e deixou a areia deslizar,
suavemente, por entre os dedos.
-Com quem? Um holandês?
-Oh, não! É um cabo-verdiano. Quer dizer, ele nasceu na Holanda mas é filho de
cabo-verdianos.
-E como o conheceste?
-Ele foi às festas da Ribeira Brava. Foi no ano passado – Levantou a cabeça e
pousou os olhos no Pedro.
-E tu gostas dele?
-Eu gosto, mas não o conheço muito bem. – Fez uma pausa. - Quer dizer, nunca
mais estive com ele. Só falámos por telefone.
-E ele pediu-te em casamento?
-Sim, ele foi às festas da Ribeira Brava para arranjar uma mulher. Viu-me e
gostou de mim.
-Pareces tão nova!
-Eu? Nova? Tenho vinte e oito anos.
-Não é possível! Eu dava-te uns dezoito.
Ela soltou uma gargalhada e escondeu a cara com as mãos.

18
O Pedro perguntou se ela queria comer uma sanduíche e ela assentiu com a
cabeça. Sentaram-se numa esplanada, a dois passos do mar, e ele pediu duas sanduíches
e dois sumos. Comeram e beberam em silêncio. Ela olhou para o relógio e disse:
-São horas de irmos.
O Pedro abriu a carteira e tirou uma nota de quinhentos escudos. Ela afastou a
carteira dele e disse:
-Eu pago.
-Não! Eu é que te convidei.
-Mas eu nunca mais vou precisar destas moedas cabo-verdianas! Eu é que pago!
-Não tencionas voltar?
-Nunca mais voltarei a S. Nicolau.
-Não? Mas porquê?
-As viagens são muito caras. O Guido, é esse o nome dele, não tem razões para
voltar a Cabo-Verde. Ele nasceu na Holanda, não fala português nem crioulo e os pais e
irmãos vivem todos em Roterdão.
-Não fala português? Então, como é que falas com ele?
-Não falo.
-Não?
-Quer dizer, digo só que o amo, ele diz que me ama, e não é preciso dizer mais.
-Mas vais aprender o holandês, não é?
-Sim. O Guido disse que eu ia aprender holandês na escola nocturna.
-Vais trabalhar lá?
-Sim. Os pais dele têm um snack-bar.
-Então vais ficar bem!
A rapariga pagou a conta e seguiu, atrás dele, em direcção ao táxi. Quando
chegaram ao aeroporto, ela perguntou:
-Não queres telefonar?
-Por acaso, quero!
-Toma! – disse ela, dando-lhe um cartão da CV Telecom.
-Oh, não! Podes precisar dele!
-Nunca mais vou precisar dele – respondeu a rapariga, metendo-lhe o cartão na
mão.
-Mas tu és assim tão generosa? - Ela sorriu e baixou a cabeça.
Ele disse que ia telefonar a uma amiga que ficou na Cidade da Praia. Dirigiu-se a
uma cabina telefónica e discou o número da Mel. Do lado de lá, a voz doce da Mel:
-És tu, amorzão?
-Sim. Ainda estou no Sal.
-Morro de saudades.
-Eu também.
-A casa ficou vazia.
-O Macaco chega amanhã. A casa vai ficar alegre, de novo.
-Não é a mesma coisa.
-Eu sei que não.
-Quando voltas?
-Logo que o Macaco vá para fora.
-E voltas para ficares?
-Não sei. Ainda é cedo para pensar nisso.
-Para ti é sempre cedo. – As palavras morreram-lhe na garganta e seguiu-se um
longo silêncio.
-Não chores, amor doce.

19
-Eu não estou a chorar. Estou apenas triste.
-Amo-te.
-Pensa em mim aí em Portugal.
-A toda a hora.
-Quando estiveres com a branquela, já não pensas em mim.
-Pensarei em ti a toda a hora, meu amor.
-Eu também.
-Adeus, amor. Fica bem.
-Adeus.

Quando o Pedro voltou para junto da rapariga, ela apontou para o relógio e disse
que tinham de se separar. A fila de embarque para Lisboa era à esquerda e a fila para
Roterdão era no lado oposto. O Pedro pegou-lhe na mão e disse:
-Desejo que todos os teus sonhos se realizem. És uma mulher bonita e doce.
-Obrigado. És um homem bom.

O Francisco era o primeiro da fila. Sorriu para o Pedro e disse:


-Eh, pá, você arranja logo companhia! O que é que você tem que eu não tenho?
O Pedro deu uma gargalhada e respondeu:
-Eu sei lá! Conversa, elas gostam de conversar!
O avião ia apenas meio cheio. Quando lhe foi permitido desapertar o cinto, o
Pedro levantou-se e viu que havia lugares vagos junto do assento do Francisco. Fez-lhe
sinal e ele gritou:
-Venha para aqui!
Sentou-se junto dele. O homem pediu uma cerveja à hospedeira e depois falou
sem parar. Pediu uma segunda cerveja, mas a hospedeira respondeu que não havia
autorização para dar mais do que uma. Olhou para a hospedeira com desdém e, quando
ela lhe voltou as costas, disse:
-Foda-se! Um homem aqui morre de sede!
O Pedro ficou a saber que ele era divorciado, que tinha dois filhos pequenos, que a
mulher o deixou porque ele gostava de andar com outras mulheres e que era um
garanhão de primeira. Três horas depois, o avião descia em direcção a Lisboa.
Separaram-se. Pedro desejou-lhe boa sorte. O outro homem olhou para trás e disse:
-Até à vista!

20
SEIS

Arturo não trabalhava há oito meses. Nos primeiros tempos, agradou-lhe a ideia
de passar o tempo a restaurar a casa. Era uma casa suficientemente grande e antiga para
estar continuamente a precisar de reparações. Ele não queria vê-la concluída. Agradava-
lhe verificar que aquela casa dependia dele, da sua sabedoria e capacidade. No fundo,
temia que, uma vez concluída a casa, Melissa achasse que ele deixara de ser necessário.
Quando passava o olhar pela nova casa de banho e pelas portas e janelas, inteiramente
construídas por ele, sentia-se um homem realizado, dotado por Deus com muitas e
variadas capacidades. Ele conseguia ser melhor carpinteiro do que os carpinteiros,
melhor pedreiro do que os pedreiros, melhor electricista do que os electricistas. Essa
superioridade obrigava-o a fazer tudo sozinho. Desde criança, que fora dotado de uma
invulgar capacidade para aprender. São raros os homens capazes de fazerem uma
infinidade de coisas com perfeição. Ele falava cinco línguas e, ao mesmo tempo, era
dotado de grandes capacidades manuais. Aprendera todos esses ofícios sozinho.
Observava os outros e logo era capaz de fazer aquilo que vira os outros fazer. Com a
prática, conseguia aperfeiçoar o modus operandi de todos esses ofícios. Recebera o dom
do seu pai, que por sua vez o recebera do avô de Arturo, um comandante de navios,
oriundo da Sardenha, e que era uma lenda pela sua força física, capacidade de trabalho e
talentos. O avô deixara dezanove filhos, alguns em terras distantes, espalhados por
muitas ilhas do Mediterrâneo. Era um velho comandante de navio, judeu, que teve a
felicidade de assistir à criação do Estado de Israel, para onde se mudou com a sua neta
preferida. Da parte da mãe, uma judia alemã, libertada de um campo de concentração
pelas tropas americanas, recebera o gosto pela leitura, o sentido artístico da vida, mas
também a depressão crónica, a oscilação entre a euforia e a desilusão. O pai era um
judeu italiano que se dedicava a trabalhar o ouro. Havia peças suas nas melhores
ourivesarias de Milão e de Roma. Quando Mussolini subiu ao poder, o pai de Arturo
perdeu tudo. Foi preso, acusado de actividades subversivas. Encarcerado durante um
ano, trocou a Itália por Portugal, onde viria a conhecer a mulher, em 1949, depois de
esta ter sido libertada. Ela estava em Lisboa temporariamente, com a intenção de
embarcar para Nova Iorque, juntando-se a milhares de judeus que, tal como ela, viram
nos Estados Unidos da América uma terra de liberdade e de oportunidades. Uma troca
de olhares, na Brasileira, em pleno Chiado, numa tarde soalheira de Inverno, foi o
bastante para lhe mudar a vida. No dia seguinte, faziam amor num hotel dos
Restauradores. Um ano depois, nascia o Arturo. Era o ano de 1950. Arturo passou a
infância em Lisboa. Aos oito anos de idade, mudava-se, com os pais, para Milão. O pai
continuou a trabalhar o ouro e voltou a ganhar a notoriedade no negócio da joalharia.
Arturo parecia-se com o avô e recebera dele o gosto pela aventura, a força física
e a inteligência. Ao contrário da irmã, que encontrou a finalidade da vida num colonato
israelita, Arturo andou dezenas de anos à procura sem encontrar. Foi essa inquietação
que o levou a trocar um cargo bem pago numa empresa petrolífera italiana, pelo

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trabalho incerto e descontínuo em África. Fez a primeira missão na Mauritânia, onde
conheceu a primeira mulher, uma árabe de pele clara e olhos escuros, com quem casou e
teve um filho. A desconfiança, não apenas face às mulheres, mas perante tudo e todos,
foi um traço do seu carácter que se acentuou nele quando soube que a Mara o enganava
com um clérigo muçulmano. Como poderia ter-se enganado tanto a respeito dela? Como
é que não percebeu que aquele casamento, um matrimónio entre um judeu e uma
muçulmana, não poderia dar certo? Custou-lhe muito abandonar aquela criança, deixá-
lo entregue aos cuidados de uma mãe neurótica e errante, completamente subjugada à
tirania de um clérigo extremista, que via em todo o judeu um alvo a abater. Que seria do
seu filho, judeu como ele, e árabe como a mãe, às mãos de um tirano que odiava
judeus? Os primeiros anos de separação foram duros e cruéis. Arturo deixou a
Mauritânia tinha o filho dois anos de idade e só voltou a vê-lo seis anos mais tarde.
Aqueles seis anos foram uma descida ao Inferno. Mas o pior de tudo é que, nessa
descida, ele fora acompanhado pelo filho e pela mãe da criança. Ela aceitou ser uma das
quatro esposas do clérigo, vergou-se às exigências de clausura que ele lhe impôs,
recebeu, com resignação, os maus-tratos, e só quando ele morreu, num acidente de
avião, a caminho do Afeganistão, onde se ia juntar à guerra que os talibans travavam
contra os russos, é que ela acordou do pesadelo. O Arturo estava em Maputo, a trabalhar
para uma organização da União Europeia, quando recebeu uma carta dela a implorar
ajuda. Ele mandou-lhe dinheiro, alugou-lhe uma casa em Paris, conseguiu tirá-la da
Mauritânia e continuou, durante vários anos, a sustentá-la, mandando dinheiro para ela e
para o filho.
Enquanto isso, a irmã dele fizera tudo aquilo que as raparigas judias fazem em
Israel. Aprendeu hebreu, estudou religião, prestou serviço militar, tirou um curso
universitário, casou e teve duas filhas. Quando Arturo a visitou, lamentou as escolhas
que fora forçado a fazer e anteviu, no belo rosto da irmã, a felicidade que ele negara a si
próprio. Pouco depois, aceitava uma missão em Cabo Verde e iria conhecer a Mel, uma
mulher de pele escura e sorriso fácil, que o salvaria da depressão e da angústia. Voltaria
com a Mel a Moçambique e a muitos outros países de África.

Naquela manhã, Arturo acordou com a intenção de pôr um ponto final à lassidão
que há oito meses o mantinha dentro de casa. Fora ao banco no dia anterior e verificara
que a sua conta batera no zero. Se continuasse metido em casa, sem mandar o
curriculum vitae para os sítios habituais, Comissão Europeia, FAO e Banco Africano
para o Desenvolvimento, seria, em breve, obrigado a vender mais uma das suas casas,
em Itália. Tal como acontecera das outras vezes, um facto desses levantaria contra si a
ira dos pais e da ex-mulher. A Mel mantinha-se em silêncio, com receio de que ele
voltasse a insultá-la e a ameaçá-la, como acontecera nas outras vezes em que ficara
muitos meses sem trabalho. Quando Mel o via triste, em silêncio, debruçado sobre a
varanda, de olhar perdido na linha do mar, ela fazia um doce e, depois de o colocar em
cima da mesa da cozinha, dizia-lhe:
-Amorzão, não estejas triste, anda comer um docinho com a tua macaca!
Naquela manhã, a Mel fez-lhe um doce de manga com queijo fresco. Colocou o
doce numa bandeja e levou-a para o terraço. Arturo desviou o olhar da linha do mar e
fixou-o na bandeja. Ela ficou, em silêncio, à frente dele e apontou para o doce como que
a dizer-lhe que estava ali o doce, que ela o tinha feito porque queria que ele ficasse
alegre. Ele deu um passo em frente e atirou a cabeça contra a porta de madeira que
separava o terraço do corredor da casa. Depois, deu novo passo atrás e voltou a lançar-
se contra a porta, repetindo o gesto por cinco vezes. A Mel lançou-se sobre ele e
abraçou-o. Arturo afastou-a com o braço. Duas lágrimas grossas escorreram-lhe pela

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cara. Arturo encostou-se à parede e deixou deslizar o corpo até ficar de cócoras. Ela
ajoelhou-se e disse:
-Amorzão, por que estás triste?
-Cala-te! Não vês que eu sou um falhado? Tudo o que faço é mal feito! Todos
cagam em cima de mim! Todos me traem!
-Não amorzão, tu não és um falhado. Fazes tudo com perfeição e és um bom
marido!
-O que eu sou é uma grande merda! Um falhado! E tu vais fazer-me aquilo que
todos os outros fizeram: vais dar-me um pontapé no cu! Vais cuspir nesta mão que te dá
de comer!
-Não podes dizer uma coisa dessas…
-Cala-te, porra! – interrompeu ele.
As palavras morreram-lhe na garganta e ele começou a soluçar. A Mel abraçou-o
e secou-lhe as lágrimas com os lábios.

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SETE

Tu recordas o dia em que a viste pela primeira vez e perguntas por que razão a
deixaste partir sozinha. Sabias que aquela era uma mulher diferente das outras mas
receaste não seres capaz de abandonar o teu comodismo, a tua segurança, o teu
conforto. Logo que a viste, soubeste que aquela imagem te iria perseguir durante a vida.
Era uma tarde de Outono como tantas outras. Lisboa acordara coberta de uma
névoa que subia do mar. Os passeios e os jardins ficaram, se súbito, cobertos de folhas
secas. Reparaste que ela trazia vestida roupa de Verão. Tu, pelo contrário, vestias uma
camisola de lã grossa e umas calças de algodão. Foi por acaso que a Agência te pediu
para dares o curso de formação sobre gestão de carteira de clientes. Também foi por
acaso que os TACV a escolheram para participar no curso. Encontraste-a por acaso.
Entraste na vida dela sem qualquer premeditação.
Ela fixou em ti os olhos amendoados e tu não desviaste o olhar. No final da
sessão, convidaste-a para almoçar. Tinhas o carro estacionado à frente do edifício e
rolaste, com ela ao teu lado, até ao castelo de S. Jorge. Querias mostrar-lhe a vista da
cidade a partir da sua mais bonita colina. Quando ela se debruçou sobre as ameias,
abraçando o Tejo com o olhar, tu pousaste o braço sobre as costas dela e reparaste que a
pele dela era macia. Desceste a mão até à curva da cintura e notaste que ela tinha um
corpo sinuoso. Olhaste para os seios dela, uns seios pequenos e duros, e sentiste vontade
de lhes tocar. Foste almoçar com ela a um restaurante situado à entrada do castelo.
Quando estavas a comer a sobremesa, a tua mão direita deslizou para cima da mão
esquerda dela. Ela apertou a tua mão. Tu olhaste-a nos olhos e disseste:
-És linda!
Ela sorriu e guardou silêncio. Não tirou a mão debaixo da tua.
Desceste a rua de mão dada. Abriste a porta do carro e ela entrou. Depois,
entraste tu. Antes de pores o motor a trabalhar, inclinaste a cabeça sobre ela e pediste-
lhe um beijo. Ela não disse nada. Ofereceu-te a boca e tu escondeste a língua nos lábios
grossos dela. Tiveste ainda tempo de lhe dar beijos húmidos nos olhos, na face e no
pescoço. Ela tinha umas orelhas simétricas. Os cabelos, negros, compridos e
encaracolados, cheiravam a um perfume que tu não foste capaz de identificar. Mas
cheiravam bem. Não havia neles a mais pequena marca de tinta. Não cheiravam a
químicos. Eram uns cabelos naturais. Deslizaste os lábios pelo pescoço esguio dela.
Sentiste que aquela mulher te excitava mais do que as outras. Uma mulher que se dava.
Que se abria e entregava. Que falava pouco e que sorria muito. Quando o carro
arrancou, tu já estavas apaixonado. Levaste-a de regresso ao edifício de onde saíras
havia duas horas e durante a tarde nada do que tu dizias soava direito. Custava-te a
encontrar as palavras certas, esquecias-te do que ias para dizer e os teus olhos não eram
capazes de se afastarem da cara dela. Parecia que ela tinha inundado o teu cérebro e não
havia mais nada que lá pudesse entrar. Comparado com ela, tudo o resto deixara de ter
importância. No outro dia, voltaram a almoçar juntos. Disseste que a amavas. Ela disse
que também te amava. Perguntaste-lhe se podias passar pelo hotel onde ela estava

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hospedada quando fossem horas para jantar. Jantaste com ela num restaurante da Baixa
e, nessa mesma noite, já não regressaste a casa. Em vez de tomares o caminho de casa,
entraste num cabina telefónica e ligaste para a tua mulher. Respondeu a Adelaide, a mãe
das tuas filhas, a quem disseste que tinhas de ir ao Porto fazer um serviço urgente e que
só voltarias no dia seguinte. Ela ouviu-te mentir mas não perguntou nada. A Melissa
esperava-te fora da cabina. Perguntou apenas se estava tudo bem. Tu respondeste que
estava. Ela agarrou o teu braço e guiou-te até ao hotel. Era um hotel barato, situado nos
Restauradores. Subiram as escadas e entraram num quarto do terceiro piso. Já era noite
mas ainda se ouvia o barulho dos carros. O quarto estava frio. Tentaste ligar o
aquecimento, mas o aparelho não funcionava. Pediste mais dois cobertores. Viste-a
despir-se. Primeiro, ela tirou a camisola. Reparaste que ela usava um sutiã branco sobre
a pele escura. Deste um passo em frente e ajudaste-a a soltar o sutiã. Ela ficou em
tronco nu e tu abraçaste-a. Sentiste os seios dela contra o teu peito e beijaste-lhe a boca
cheia. Descalçaste os sapatos e tiraste as meias. Ela ajudou-te a tirar as calças. Quando
ela se ajoelhou, tu deste-lhe a beijar o teu sexo. Ela sabia beijá-lo. Percorria-o levemente
com a língua molhada e acariciava os teus testículos com os dedos finos e compridos.
Depois, ela sentou-se na cama e tu tiraste-lhe as calças. Pediste-lhe para ela deixar ficar
as cuecas. Ela abriu as pernas e tu escondeste a cabeça entre elas. O perfume dela
incendiava-te. Deitaste-te em cima dela e penetraste-a. Ouviste-a gemer e gritar.
Quando a última gota do teu sémen entrou nela, tu disseste que a amavas e ela sussurrou
que queria ser tua para sempre.
No dia seguinte, voltaste para casa só ao fim da tarde. A tua mulher não te
perguntou nada. Ela sabia que essa era a melhor maneira de te guardar. Beijaste as tuas
filhas nas faces e fizeste-lhes perguntas sobre a escola. Durante o jantar, permaneceste
calado. Querias falar mas não tinhas nada para dizer. À noite, afundaste o corpo no sofá
e, de olhar perdido no televisor, esperaste que a vinda do sono te libertasse do enorme
desejoso de deixares aquela casa para sempre. Sabias que, embora desejasses fugir dali,
não havia escapatória possível. Estavas encurralado, partido ao meio, incapaz de tomar
decisões. Aquela era uma sensação que te acompanhava havia muito. Estavas dividido,
entaipado, desejavas uma coisa e eras obrigado a fazer outra. Tinhas estado mais vezes
naquela situação e sabias que a tua falta de coragem, qual força paralisadora, te
impediria de tomar uma decisão. Deixarias passar o tempo à espera que acontecesse
alguma coisa. Não eras capaz de tomar a iniciativa. Deixar-te-ias arrastar pela força dos
acontecimentos. Seria mais fácil não fazer nada, deixar tudo como estava e esperar que
o tempo ajudasse a resolver o problema. Desde criança que te sentias inundado por essa
indolência, essa apatia, esse comodismo, que te impediam de dar um novo curso à tua
vida. Tal como as águas do rio, que correm necessariamente em direcção ao mar,
também a tua vida fluía empurrada pelas circunstâncias, sem que tu tivesses o poder de
dirigir o curso dela. Passaste o sábado e o domingo à espera da segunda-feira. Em vez
de ires para o escritório, telefonaste para a Agência e pediste um dia de folga. Depois,
foste ter com a Melissa ao hotel e convidaste-a a visitar Évora. A meio do caminho,
paraste o carro junto de uma velha casa em ruínas. Perguntaste-lhe se ela queria ir até lá.
Ela assentiu. Havia um campo semeado de trigo a separar a estrada da casa abandonada.
Entraste, abraçado a ela, dentro das ruínas. Ela disse que havia muito tempo que
sonhava fazer amor numa casa abandonada. Ajudaste-a a baixar as calças de ganga.
Encostaste o teu corpo ao dela e o teu pénis, duro e grosso, procurou-lhe o sexo. Ela
encostou-se à parede e o teu sexo deslizou suavemente, perdendo-se dentro dela. Ela
gritou sem medo que a ouvissem. Depois, voltaram ao carro e seguiram o caminho para
Évora. Nos dias seguintes, viajaste com ela para outros lugares. Lembras-te que a
amaste num moinho abandonado, a caminho da Foz do Arelho? E aquele dia em que a

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foste esperar à estação de Aveiro e a levaste para um hotel barato que ficava na avenida
da estação? Recordas a fúria com que a tomaste? Uma fúria desmedida, um desejo
animalesco como que o prenúncio do fim de um sonho, já que tu sabias que ela estava
prestes a partir e, nessa altura, não tinhas a certeza se voltarias a vê-la. Quando ela
estava prestes a regressar a Cabo Verde, voltaste a fazer amor com ela no quarto do
hotel. Viste-a chorar quando saíste do quarto. Ela ainda te perguntou por que razão não
podias ir para Cabo Verde. Foi então que lhe disseste que tinhas duas filhas e que não
podias separar-te delas. Disseste-lhe adeus e abandonaste o hotel, derrotado e triste.
Durante dois anos, escreveste-lhe todas as semanas. Nesse tempo, não havia Internet
nem telemóveis e as cartas demoravam semanas a chegar ao Mindelo. Ela voltou a
Lisboa dois anos depois. Estiveste com ela num hotel dos Restauradores. Ela disse-te
que estava disposta a casar com um português, um rapaz da idade dela que a amava e
que desejava fazer dela a sua esposa. Tu perguntaste-lhe se ela o amava e ela disse que
não era capaz de amar mais ninguém e que estava disposta a casar com ele só para ficar
perto de ti. Tu disseste-lhe para ela voltar ao Mindelo. Entregaste-lhe uma fotografia
tua, junto de uma roseira florida, e escreveste por detrás: “Estas rosas são para ti! Nunca
te esquecerei!” Viste-a a subir as escadas da estação do Rossio. Quando ela se voltou
para te dizer adeus, tinhas os olhos rasos de lágrimas. Julgaste que ela tinha voltado para
o Mindelo, mas estavas enganado. Ela viajou para o Algarve e andou por lá três meses,
entregando-se nos braços de um algarvio, um homem de meia-idade, que a mimou com
presentes, muito sexo, algumas viagens e muita alegria de viver. Se não posso ser do
Pedro, então serei de todos!, pensava ela, enquanto se entregava nos braços do algarvio.
Três meses depois, ela voltava ao Mindelo. Um ano mais tarde, conhecia o italiano. Foi
então que tu estiveste mais de cinco anos sem teres notícias dela. Nem podias imaginar
por onde ela andava. Enquanto tu te deslocavas todas as manhãs para o escritório,
cumprindo uma rotina que te roubava a vida, a Melissa deambulava pelas florestas de
Guiné-Conacri e calcorreava as savanas de Moçambique na companhia de Arturo, o
biólogo italiano com quem viria a casar mais tarde. Mandaste-lhe cartas para muitas
moradas, mas ela não tinha como receber essas cartas. Quando os telemóveis se
generalizaram, enviaste-lhe uma carta com o número do teu celular para uma morada
improvável, a Direcção-Geral do Turismo. Um acaso feliz fez com que a carta fosse
parar às mãos de um antigo colega de Melissa, que a guardou, e lha entregou assim que
ela regressou à Cidade da Praia. Algum tempo mais tarde, recebeste uma chamada no
teu telemóvel e reconheceste-lhe a voz. Ela disse-te que voltara à Cidade da Praia, que
estava grávida e que casara com um italiano.

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OITO

Há vários meses que Arturo não tinha notícias de novos projectos. Ocupava o
tempo a fazer pequenos arranjos em casa. A rotina diária era sempre igual: tomar o
pequeno-almoço devagar, descer ao segundo piso, procurar ferramentas, fazer pequenos
arranjos numa porta ou numa janela, tomar um duche a meio da manhã, voltar ao
trabalho, esperar pelo almoço, almoçar devagar, dormir a sesta, sexo a meio da tarde,
esperar pelo jantar, jantar devagar, deitar no sofá e ver televisão.
Há meses que Melissa ocupava o tempo da mesma forma: levantar, dar de comer
ao bebé, preparar o pequeno-almoço, brincar com o bebé, tomar duche, ida ao mercado
para comprar hortaliças, fruta e peixe, preparar o almoço, almoçar devagar, dar de
comer ao bebé, brincar com o bebé, sexo a meio da tarde, fazer o jantar, jantar devagar,
dar de comer ao bebé, deitar no sofá e ver televisão.
Da última vez que o Pedro esteve com ela, a sua rotina fora muito diferente:
levantar tarde, fazer amor, tomar o pequeno-almoço, dar de comer ao bebé, ir à praia,
fazer almoço, almoçar, dar de comer ao bebé, fazer sexo, dar um passeio de autocarro,
comer um gelado numa esplanada, jantar numa churrascaria, dar de comer ao bebé e ver
televisão deitada no sofá.
São dois homens muito diferentes, o Arturo e o Pedro!, pensou a Melissa.
Enquanto um só está bem dentro de casa, passando o tempo a fazer arranjos e a dizer
maluquices, o outro só quer passear. A minha cabeça diz-me que o Arturo é o melhor
marido que uma mulher pode desejar, mas o meu coração puxa-me para o Pedro! Ah, o
Pedro! O meu primeiro verdadeiro amor!
Arturo estava, há várias horas, em silêncio, sentado numa cadeira de lona, com
os olhos postos na linha do mar. Disse para ela:
-Quero que consultes a Dona Margarida.
Mel sabia que Arturo não tomava decisões importantes sem consultar a Dona
Margarida.
-Estás a pensar em concorrer a outro projecto, amorzão?
-Isto não pode continuar assim. O dinheiro está a acabar-se, estou farto de ficar
para aqui sem fazer nada, isto não é vida para um homem com dois filhos para
sustentar.
-Amorzão, não te preocupes com o dinheiro. – Aproximou-se dele e abraçou-o. -
Temos o depósito em escudos cabo-verdianos! Temos lá dinheiro que dá ainda para
muitos meses.
-Tenho de mandar euros para França. É preciso pagar o colégio do meu filho.
-`Tá bem, eu telefono para a Dona Margarida. – Endireitou-se e levou a mão ao
bolso. – Meu macaco, não estejas preocupado, sim?
Melissa pegou no telemóvel e falou com a vidente. Ela disse-lhe que precisava
de falar pessoalmente com os dois. Combinaram encontrar-se em casa dela, no dia
seguinte, às dez horas.

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Dona Margarida era uma mulher de idade incerta, alta e seca de carnes, cabelos
curtos, nariz europeu, lábios finos e pele escura. A cara, macia como um pêssego, tinha
a emoldurá-la um eterno sorriso. Neta de um português e de uma cabo-verdiana, filha de
um guineense e de uma cabo-verdiana, Dona Margarida tinha casa posta numa rua que
ficava nas traseiras do mercado. Era uma moradia antiga, pintada de azul, com porta e
janelas altas, um terraço e um pequeno quintal com duas árvores de fruto: uma
romãzeira e uma bananeira. Vivia sozinha desde que enviuvara. Sem filhos nem irmãos,
Dona Margarida levava uma existência solitária, dedicada aos seus santinhos e aos
clientes. Recebia as pessoas num quarto sem janelas, iluminado pela luz das velas, parco
em mobiliário, paredes brancas e chão de cimento.
Mel entrou primeiro. Arturo, sempre atrás dela, permaneceu em silêncio. Mel
contou à vidente qual era o projecto que Arturo queria ganhar. Havia uma vaga para a
Guiné-Bissau, uma coisa boa, para dois, bem paga, com o objectivo de criar materiais
curriculares de Biologia para as escolas secundárias. A mulher ouviu em silêncio. Com
um isqueiro, acendeu sete velas que jaziam sobre uma mesa redonda. No centro da
mesa, havia dois santinhos de cerâmica. Dona Margarida juntou as mãos, beijou os
santos, deu-os a beijar a Melissa e a Arturo e sussurrou meia dúzia de palavras
incompreensíveis. Depois, olhou para o Arturo e disse:
-Este projecto é para agarrar. Vai dar coisa boa. Depois da matança, vem a
bonança. África precisa de ti. Dois anos é muito tempo para um homem estar sozinho.
-Então… - interrompeu a Mel.
-Terão de ir os dois – precisou a vidente.
-Para Bissau? Com um bebé? – perguntou a Mel.
-Sim, os três.
-Não sei se é possível – interrompeu o Arturo. – Nem sempre deixam ir a
família.
Arturo agradeceu à Dona Margarida e entregou-lhe um envelope com mil
escudos cabo-verdianos. Ela agradeceu e apontou-lhes o caminho da porta. A Mel
beijou a mulher na face e o Arturo disse que fariam como a Dona Margarida desejava
que se fizesse. Quando se encontravam no passeio, ouviram a Dona Margarida a
chamar. Arturo olhou para trás e viu a vidente a chamar com a mão.
-É comigo? – perguntou o Arturo.
-Com ela! Quero falar com ela! – respondeu a mulher.
-É contigo – disse Arturo para a Melissa, batendo-lhe com a mão no ombro.
-Comigo? – perguntou a Melissa. – Só comigo? – gritou.
A vidente assentiu com a cabeça e a Melissa voltou a enfiar-se dentro da casa da
Dona Margarida, deixando Arturo do lado de fora.
-Minha querida, é contigo que eu quero falar, sim, e sem ele por perto.
A vidente acendeu mais duas velas e voltou a sentar-se. Apontou com a mão
direita para uma cadeira, fazendo sinal à Melissa para se sentar também.
-Sem ele porquê? – perguntou a Melissa, intrigada e receosa.
-O que tenho para te dizer só a ti diz respeito, minha filha. – A Melissa franziu o
sobrolho e uma nuvem de tristeza e medo desceu sobre ela. – Há outro homem na tua
vida, não é? – A Melissa não disse nada. Fechou os olhos e baixou a cabeça. – Bem, um
homem casado, um homem que encheu o teu coração e que tomou conta da tua cabeça,
não é verdade? – A Melissa abanou a cabeça em sinal de concordância. – Esse homem
pode dar cabo da tua vida. Não é de confiança. Não vai ficar contigo. É fraco. É…
-…vacila, não é? – Melissa sentiu as mãos quentes da vidente sobre as suas.
-É isso, filha. Tiraste-me a palavra da boca. Ele vacila. Recua quando devia
avançar. Foi sempre assim, não foi?

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-Sim. Foi sempre um fraco.
-Mas tu ama-lo, não é? – Melissa assentiu com a cabeça. – Mas está a chegar o
momento de todas as decisões. E ele vai recuar, ouviste? Agora vai em paz, minha filha.
Não te esqueças do que eu te disse. Ele vai recuar.
Quando a Melissa chegou junto do Arturo o seu coração saltava como se fosse o
tambor de uma máquina de lavar roupa no período de centrifugação máxima. As mãos
tremiam-lhe e os olhos pareciam cobertos com um manto de tristeza.
-O que é que tens? O que é que a velha te fez? – perguntou o Arturo, abraçando-
a com força.
-Não foi nada – respondeu ela. – É que… - As palavras morreram-lhe na
garganta, sufocadas pelos soluços. – Quer dizer…Ela…
-…ela o quê, mulher? O que é que ela te fez, porra!
-Não foi nada, amorzão. Fui-me abaixo, apenas. – Limpou os olhos e tentou
sorrir.
-Alguma coisa foi! E não foi boa!
-Não foi nada, amor. Esquece!
Arturo deixou cair os braços sobre as coxas e resignou-se ao silêncio da Melissa.
Sabia o quanto ela era teimosa e não valia a pena insistir com perguntas.

Pararam no mercado. Àquela hora, o mercado fervilhava de gente. As bancas,


repletas de bananas, mangas, anonas, hortaliças, mandioca e batatas, eram assaltadas por
dezenas de mulheres que, diariamente, ali faziam as suas compras. Mulheres, sentadas
no chão, vendiam o peixe, sobretudo atuns, que os rapazes transportavam, fazendo-os
deslizar pelos passeios de cimento. Junto à porta principal, raparigas vendiam chinelos
de plástico, sandálias, pastilhas elásticas e doçaria. Um homem, talvez o único vendedor
do mercado, oferecia costeletas de porco e chouriços, decorados com um punhado de
moscas, que ele, ingloriamente, afastava com as mãos. Melissa comprou mandioca,
morangos, coentros e batatas.

Uma semana depois, chegou o dia da partida. Era uma manhã como todas as
outras na Cidade da Praia. Amanheceu cedo. Mal o sol lançou os seus dedos sobre a
cidade, as vendedoras puseram-se a caminho do mercado. Algumas traziam filhos a
tiracolo, pendurados num canguru improvisado, feito de um pano garrido que elas
faziam passar por debaixo das pernas do bebé, com as pontas atadas à cintura. Levavam
tudo o que conseguiam transportar em cestos de vime, em caixas de papelão ou em
sacos de plástico.
Arturo espreitou pela janela e viu um barco a chegar ao porto. As cegonhas
faziam voos rasantes sobre o barco. Apeteceu-lhe tomar um daqueles barcos e, na
companhia da Mel, fazer o circuito das ilhas. Seria bem melhor do que apanhar o avião,
numa viagem cansativa e dispendiosa até Bruxelas, ainda por cima sem ter a certeza de
que o projecto na Guiné-Bissau fosse seu. Tivera conhecimento, na véspera de partir, da
existência de mais quatro candidatos, todos homens experientes, com muitas missões
em África e várias pós-graduações em Biologia. As palavras da Dona Margarida, ditas
uma semana antes, tranquilizavam-no e davam-lhe coragem para enfrentar mais aquela
provação. Quantas vezes tivera de se submeter a idênticas viagens, a entrevistas
entediantes com burocratas da União Europeia, só para poder candidatar-se a um lugar
efémero, bem pago é certo, mas de curta duração? Fora aquela a vida que escolhera e de
pouco lhe valia estar a lamentar-se e a lamber as feridas como se fosse um cão sarnento.
Ele sempre fora assim: gostava de lamentar a sua falta de sorte e não passava um dia

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sem simular a cena do homem traído, infeliz e abandonado. A Mel iria em seu socorro,
abraçá-lo-ia, chamar-lhe-ia “meu macaquinho azarento!” e ele ficaria tão tranquilo
como um pobre e indefeso bebé nos braços da mãe.
Arturo vestiu as calças de linho, abotoou a camisa de manga curta e meteu a
gravata e o casaco dentro da mala. Há quantos meses não era obrigado a vestir-se
assim? Habituara-se a usar sempre a mesma coisa, uns calções largos, uma T-shirt e uns
chinelos de plástico e, mesmo quando precisava de sair de casa, bastava-lhe trocar os
chinelos por umas sandálias de couro e estava pronto para tudo o que fosse preciso.
Recordou a última entrevista que tivera em Bruxelas, havia um ano atrás, e foi tomado
por uma onda de desconforto. Não havia nada que lhe fosse mais penoso do que viajar
pela Europa. A Bélgica entediava-o. Aquelas florestas escuras, a chuva miudinha, o frio,
as fachadas das casas enegrecidas pelo tempo, tudo o entristecia naquele país!
Assustava-o o preço escandaloso da comida e dos transportes, a agitação das grandes
cidades e a pressa com que as pessoas viviam. Preferia mil vezes o ambiente caótico dos
bairros da Cidade da Praia, com casas por acabar, passeios a precisarem de pavimento e
sacos de plástico a esvoaçarem pelo chão, à ordem das cidades europeias, onde tudo
parecia acabado, como se os europeus tivessem chegado ao fim da história e nada mais
lhes restasse do que viver a reforma ou esperar por ela. Nunca soubera explicar a razão
do seu desconforto face ao modo de vida europeu. Toda a sua vida se lembrava de andar
a fugir de alguma coisa e o único lugar onde encontrou paz e tranquilidade foi em Cabo
Verde. Carregava em cima dos ombros o destino dos pais, a tragédia do seu povo, e a
sua vida fora, até então, um contínuo êxodo, uma incessante procura. Nisso, ele era tão
judeu como a irmã, que optara por viver em Israel, no respeito escrupuloso pelas
tradições hebraicas. A Melissa e a Cidade da Praia eram o seu porto de abrigo, longe do
qual se sentia acossado, perseguido e cansado. Suspirava pelo dia em que diria um
adeus definitivo às viagens e se entregaria a cuidar da fazenda, que tencionava adquirir
no interior de Santiago, logo que tivesse dinheiro suficiente para isso. Faria uma casa de
um só piso, no meio da fazenda, e, com a ajuda de meia dúzia de trabalhadores,
produziria o melhor café e a melhor mandioca de Cabo Verde.

Tomou o pequeno-almoço em silêncio. A Mel ficou de pé. Andava de um lado


para o outro da cozinha, para ter a certeza de que nada faltava na mesa do Arturo. De
repente, um som metálico cruzou os ares e a voz do padre, que iniciava a missa
dominical, na igreja vizinha, quebrou o silêncio. Arturo detestava aqueles cânticos!
Achava aquilo uma violação da sua liberdade individual e um atropelo ao seu direito ao
sossego. O novo padre, um homem novo e enérgico, recém-chegado do Mindelo,
colocara uns altifalantes na torre da igreja e obrigava todos os moradores do Plateau a
ouvirem a missa.
Arturo deu um salto da cadeira e berrou:
-Que raio de democracia é esta? – A Mel sorriu e ele continuou: - Porra! Vai lá
dizer ao padreco de merda que este som me está a rebentar com os colhões! – E dito
aquilo, puxou os calções para baixo e puxou os testículos, esticando-os como se fossem
as asas de um morcego.
A Mel riu com satisfação e disse:
-Amorzão, não dês cabo dos tomates! Não admira que os tenhas do tamanho dos
de um boi, já que passas o tempo a esticá-los! Parecem as orelhas de um elefante!
Arturo olhou para o relógio e viu que faltava uma hora para a partida do avião.
Deu um beijo ao Miguel, que dormia, fechou a mala e desceu as escadas atrás da Mel. O
táxi esperava-o. Beijou a Mel, entrou no carro, abriu a janela e gritou:
-Daqui a duas semanas, estou de volta!

30
O voo para Bruxelas foi penoso. Teve de esperar quatro horas no aeroporto de
Milão. Chegado a Bruxelas, instalou-se no hotel do costume e passou o dia seguinte a
preparar-se para a entrevista. Reescreveu o curriculum vitae no seu computador portátil
e respondeu a várias perguntas imaginárias, que ele sabia que iam ser feitas, porque já
tinha perdido a conta às entrevistas a que se submetera. Sabia que tinha de se submeter à
treta do costume. Perguntas idiotas sobre a política de cooperação e de ajuda ao
desenvolvimento dos países pobres! No fundo, submeter-se àqueles interrogatórios
idiotas era o preço que ele tinha de pagar para sacar uma montanha de euros aos
burocratas da Comissão Europeia!
O edifício era uma construção modernista coberta de vidro. À entrada, uma
mulher, impecavelmente vestida, cabeça pequena enterrada num pescoço curto, nariz
torto e lábios metidos para dentro, disse-lhe que o esperavam no nono piso. Arturo
subiu no elevador. Entrou num corredor comprido, ladeado de portas de vidro e andou
para a frente e para trás, a espreitar pelas vidraças, até que um funcionário lhe perguntou
se estava ali para a entrevista. Respondeu que sim. O funcionário disse para ele entrar
na última porta à direita.
A entrevista correu tão bem como das outras vezes. Ele sabia que aquele lugar
dependia menos da entrevista do que da sorte. Se os outros candidatos fossem mais
fracos do que ele, o lugar seria seu. Se fossem mais fortes, restava-lhe lamentar a perda
de tempo e de dinheiro numa viagem inglória e cansativa.
Quatro dias depois, uma voz feminina anunciava-lhe, pelo telefone, que o lugar
era dele. Assinou o contrato e o seguro de vida e viajou até Paris. Há dois anos que não
via o filho. Como estaria ele? Como é que ele o iria receber? E a mãe do rapaz? No
último e-mail, o filho usara uma linguagem estranha, com algumas referências “à
vontade de Alá!”. Sabia que a mãe o educara na tradição muçulmana, mas estava longe
de imaginar o que tinham feito à cabeça do rapaz. Ao telefone, o filho parecera-lhe
ainda mais estranho. Fez referências despropositadas à Palestina, invocou a Jihad,
afirmou que a verdadeira justiça estava na aplicação da Shariah e falou repetidas vezes
em procurar um novo sentido para a vida. Arturo ficou preocupado e tinha boas razões
para isso.
Rafaelo esperava-o na estação dos caminhos-de-ferro. Estava mais alto e tinha a
barba comprida. Nunca fora parecido com o pai. Desde bebé que tinha a cara da mãe e,
agora, as feições árabes surgiam acentuadas pelos cabelos encaracolados e pretos, o
nariz comprido, os lábios em forma de coração, quase femininos, a pele escura e os
olhos pretos, redondos e fundos. Arturo ficou satisfeito por não ver a mãe do rapaz. Da
última vez que estivera com ela, perdeu a cabeça, insultou-a, amaldiçoou o dia em que a
conheceu, mas acabou por lhe dar cinco mil euros para ela pagar uma dívida antiga.
Rafaelo sorriu e deu-lhe um beijo na face. Arturo disse-lhe que o achava mais
alto e forte e que estava contente por o ver de perfeita saúde. O rapaz disse-lhe que a
mãe estava de férias na Holanda, em casa de uma amiga. Arturo ficou satisfeito com a
boa notícia: iriam ter a casa só para os dois e ele não precisaria de enfrentar a fera.
Meteram-se num táxi. Trinta minutos depois, o Rafaelo mandava parar o carro. Arturo
recolheu a mala e seguiu atrás do filho. Subiram no elevador e saíram no oitavo piso. O
apartamento ficava num daqueles prédios incaracterísticos, rodeados de outros prédios
iguais, nos subúrbios de Paris. Arturo deu três passos em direcção à janela e viu o
minarete da mesquita que se erguia a pouco mais de cem metros do seu nariz. Nas
paredes dos prédios, havia grafitos escritos em língua árabe. Sentou-se. O filho ficou de
pé.
-Mudámos de apartamento há pouco tempo.

31
-E porquê?
-A mãe zangou-se com a Margot e tivemos de deixar a casa dela. – Rafaelo deu
dois passos em direcção à janela. – Foi há coisa de um ou dois meses.
-Ainda bem que já não precisas de estar em casa dessa mulher. Sempre achei que
ela era uma má influência - disse Arturo.
-Lá estás tu com a mania de saber o que é que é bom para mim! – Rafaelo deu
dois murros na parede.
-Sou o teu pai, não sou?
-E daí? – perguntou o rapaz, mantendo-se de costas voltadas.
-É suposto os pais preocuparem-se com os filhos.
-Preocupação tardia e desnecessária! – Voltou-se para o pai.
-Não estás comigo porque não queres.
-Foste enfiar-te no meio da selva.
-Em Cabo Verde, não há selva.
-Pois não! Há pedras e pó, que ainda é pior.
-Não sabes do que falas, filho.
-Sei sim, já lá estive.
-Não saíste de lá por causa das pedras.
-Pois não, foi por causa da negrinha.
-A negrinha tem nome.
-Sempre a preferiste a mim. – Deu dois passos em frente e apontou o dedo para o
pai. - E agora até tens outro filho! Tens idade para ser avô, não para ser, de novo, pai.
-Não sejas estúpido!
-E ainda vais ter mais! Ela é muito nova, há-de querer mais um filho, um que
saia a ela, pretinho, como ela é!
-Não sejas racista! Não te esqueças que tens sangue árabe! Tens a pele quase tão
escura como a Mel.
-Eu sou muçulmano e tu és judeu.
-Não venhas com essa merda das religiões. Eu sou judeu e tu és árabe e judeu.
És as duas coisas. – Arturo levantou-se, deu dois passos em frente e olhou directamente
nos olhos do filho. - Tens sangue judeu e sangue árabe!
-Pois sim, mas tu nunca me deixaste aprender o árabe! Querias que eu
aprendesse o hebreu!
-Foi uma opção que eu tomei porque achei que era melhor para ti! Não fazia mal
nenhum aprenderes o hebreu!
-Pai, não gozes comigo! Querias que eu perdesse tempo a aprender a língua dos
colonos, dos opressores, dos que nos roubaram os lugares santos?
-Quem é que te ensinou essas falsidades?
-Não é da tua conta! E não são falsidades! – berrou o rapaz. – Eu ando a estudar
Teologia.
-Com os talibans? Agora deste em seguidor do Bin-Laden?
-Não tens nada como isso! Nunca te preocupaste comigo, não é agora que vou
dar-te satisfações.
-Não sejas parvo! Quem é que te paga as contas? Quem é que te pagou a viagem
a Meca?
-Fizeste apenas a tua obrigação. Tens dado bem mais à negrinha! Compraste-lhe
uma casa e encheste-a de jóias!
-Fizeram-te uma lavagem ao cérebro?
-Eu fiz o que tu devias ter feito: regressei às origens!

32
-E regressar às origens é andar com os talibans? É pregar o ódio contra as outras
religiões? É acabar morto e rodeado de destroços porque um maluco qualquer nos
convenceu de que é nosso dever fazer explodir um cinto com dinamite numa paragem
de autocarro?
-Pai, tu não sabes de nada. – Rafaelo voltou, de novo, as costas ao pai e disse,
num tom ameaçador: - Tornaste-te um estranho, não queiras tornar-te um inimigo.
-Não sei de nada? Julgas que não leio os jornais? Que não vejo os noticiários? –
Levantou o braço direito e apontou o dedo rente ao nariz do filho .- Que não sei quem
manda esses jovens idiotas para a morte?
-Não me apontes o dedo, ouviste? Julgas que tenho medo de um judeuzinho de
merda?
-Judeuzinho de merda? – Rafaelo recuou e encostou as costas à janela. – Ouve,
filho, eu sou o teu pai! Agora tens de ouvir, porra! Já viste alguma vez um desses chefes
religiosos caminhar para a morte com um cinto de explosivos à cintura? Não viste, pois
não? Sabes porquê? Porque esses canalhas amam a vida! Mandam para a morte jovens
fracos de espírito, jovens assim como tu!
-Cala-te! Não sabes o que dizes!
-Custa-te a encarar a verdade? Mas há mais! Já viste algum filho dessa gente,
desses tipos que pregam a guerra santa e defendem o martírio, fazer-se explodir? Não
viste, pois não? Sabes porquê? Porque os filhos desses pregadores do ódio e da morte
amam a vida, amam a boa vida e esperam viver até serem velhos, como qualquer pessoa
inteligente aliás!
-Tornaste-te um deles, é o que foi! Um inimigo! Já não és um adversário! És um
inimigo! Um alvo!
-Não quero continuar com esta guerra verbal! – disse o Arturo. – Onde é a casa
de banho?
O rapaz apontou para a direita e Arturo desapareceu no corredor mal iluminado.
Tomou um duche demorado. Quando deixou o quarto de banho, o filho já não estava em
casa. Deixara um papel em cima do televisor. Arturo leu:
Há comida no frigorífico que dá para dois dias. Não acredito que queiras ficar
mais tempo. Se eu não regressar a casa logo à noite, não fiques preocupado. Quando
estás em Cabo Verde, ao lado da tua negrinha, também não queres saber se eu durmo
em casa ou fora de casa. E não voltes a chamar-me Rafaelo, entendido? Eu agora
chamo-me Mohamed!
Depois de ler o papel, Arturo ficou com a certeza de que tinha perdido o filho
para sempre. Não chegou a pôr a roupa no guarda-fatos. No dia seguinte, regressou a
Cabo Verde.

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NOVE

Quando andavas pelas ruas de Maputo, aquelas ruas com nomes capazes de fazer
sorrir um europeu, nomes como Karl Marx, Engels, Lenine e Mao, estavas longe de
imaginar que a tua vida iria dar uma volta de trezentos e sessenta graus. Tinhas doze
anos e ainda continuavas a acreditar no teu pai. Julgavas que a Melissa era apenas mais
uma daquelas jovens mulheres que serviam para saciar a libido do Arturo. Achavas
muito natural que ele, um homem que caminhava rapidamente para a velhice, quisesse
preencher os últimos anos que lhe restavam com aventuras inconsequentes. Ias com eles
ao velho mercado, um edifício colonial apinhado de tendas e pequenas lojas, a maior
parte de indianos, onde se vendia um pouco de tudo, desde medicamentos a artesanato
local, e, quando a fome começava a incomodar, acompanhava-los ao restaurante
Escorpião, onde te deliciavas com uma refeição que misturava ingredientes africanos
com culinária portuguesa.
Apesar da tua antipatia pela Melissa, houve bons momentos no tempo que
passaste em Maputo. Um dia disseste ao teu pai que querias visitar o Kruger Park, na
África do Sul. Querias ver os animais selvagens em liberdade e o teu pai fez-te a
vontade. Foram os três num jipe alugado. Quando chegaram à fronteira, perdeste-te do
teu pai. De repente, ficaste no meio de centenas de homens, que falavam Xhosa e outros
dialectos desconhecidos, e ninguém parecia interessado em ajudar-te. Havia polícias de
fronteira, que olhavam para ti como se fosses uma coisa desnecessária e inútil, e que se
limitavam a dizer: “para trás!” Andaste por ali perdido mais de duas horas até ouvires
uma voz conhecida a chamar por ti: era o teu pai. Ele abraçou-te, enxugou-te as
lágrimas e tu sentiste-te seguro. Duas horas depois, chegavas a uma das entradas do
Kruger Park. O teu pai comprou-te uns binóculos e tu empoleiraste-te no jipe, de olhar
perdido na savana à procura de leões, girafas e elefantes. Não foi preciso esperares
muito para os veres. Percorreram os trilhos sempre dentro da viatura e depois pararam
num restaurante cercado de arame farpado. Depois de almoçarem, continuaram a visita.
Quando a noite se anunciou, oferecendo-te um pôr-do-sol que te pareceu um grande
incêndio na linha do horizonte, o teu pai disse que tinham de voltar. Tu querias
continuar a viagem pelo Kruger Park – o teu pai tinha dito que era precisa uma semana
para visitar o parque todo! – mas o Arturo conduziu o jipe de regresso a Moçambique.
Nunca mais esqueceste aquele dia. Ficaste a saber que havia uma ténue possibilidade de
seres feliz ao lado do teu pai. Quando regressaste a Maputo, voltaram os teus
problemas. Passaste a culpar o Arturo e a Melissa por todos os teus fracassos. Já antes
tinhas feito o mesmo com a tua mãe. Foi a partir daí que começaste a ficar roído pela
amargura e pelo ressentimento. Na inocência dos teus doze anos de idade, julgavas-te
abandonado por todos.
A ruptura deu-se quando o teu pai se preparava para ir almoçar ao velho Clube
Naval. Discutiram muito sobre a importância da Melissa na vida do Arturo e tu ficaste a
saber que ele seria capaz de optar por ela se tivesse que escolher um de entre os dois.
Era a segunda vez que te sentias traído e abandonado. A primeira fora quando a tua mãe

34
decidiu viver com outra mulher, deixando-te aos cuidados da tua avó. O segundo
abandono veio na pior altura. Estavas a iniciar a adolescência e começavas a interrogar-
te sobre o sentido da vida.
Regressaste a Paris duas semanas depois. A tua mãe recebeu-te com a mesma
impaciência de sempre. Passavas dias sem conversar com ela e habituaste-te a contar
apenas contigo para resolver os problemas do dia-a-dia. Sentias-te tomado pela solidão.
Consumias as tardes sozinho, em frente do televisor, à espera do regresso a casa da tua
mãe. Tinhas treze anos quando entraste, pela primeira vez, numa mesquita. Foste levado
por um colega mais velho que, por sua vez, fora recrutado por outro colega mais velho,
numa cadeia sem fim, que ia enchendo as mesquitas de França de rapazes e raparigas
descontentes e ressentidos. Mudaste de nome no dia em que fizeste catorze anos. Entre
os teus novos amigos, todos te passaram a conhecer por Mohamed e o teu nome de
baptismo, um nome cristão, foi caindo em desuso. Nos grupos de estudo, que se iam
formando em redor da mesquita, tomaste contacto com o Islão, encheste a cabeça de
ódio e de ressentimento com vídeos da Palestina, e participaste em debates e discussões
sobre o renascimento do Islão e a guerra santa contra os judeus e os seus aliados.
Começaste a encher o teu vocabulário de palavras como a Jihad e a Shariah. As
incertezas e interrogações, que ameaçavam o teu futuro como uma sombra,
desapareceram, de súbito, sob a claridade do Corão e do Hadith, em cuja leitura diária
encontraste respostas rápidas para todos os problemas. À noite, navegavas na net à
procura dos sítios islâmicos, onde os grupos com os nomes mais incríveis alojavam
vídeos de Bin Laden e ensinavam a fabricar bombas. A cada atentado atribuído à Al-
Qaeda, tu rejubilavas, pensando que a vingança estava aí e que a vitória do Islão sobre
os cruzados era apenas uma questão de tempo. Passaste a viver num mundo fechado ao
exterior, um mundo com uma linguagem própria, e começaste a apreciar a nova liturgia
e a entusiasmares-te com os discursos inflamados dos militantes islâmicos que, a pouco
e pouco, foram tomando conta das escolas e dos serviços de apoio social ligados às
mesquitas. Em pouco tempo, foi-te impossível viver fora desse mundo. Quando fizeste
quinze anos, tomaste a decisão de estudar Teologia. Ias ser um militante e um teólogo
do Islão, um homem importante e sábio, que iria integrar a legião de combatentes contra
os cruzados. Sentiste, pela primeira vez na vida, que pertencias a um lugar, a um tempo,
a um mundo. Deixaste de te sentir abandonado. Não irias conhecer o desemprego nem a
pobreza. Ficarias livre da traição e da deslealdade. Deixarias de estar só. Não terias de
viver num mundo que desprezava os teus valores. Começaste a viver em circuito
fechado, entraste num mundo sem contradições, parado no tempo, avesso à inovação, ao
risco e à incerteza.
Deixaste crescer a barba, abandonaste a escola pública e começaste a olhar para
a relação que a tua mãe mantinha com aquela mulher como uma coisa feia, uma
degradação moral. Quando o teu pai te visitou, em Paris, já tinhas decidido ir para a
Palestina. Começaste a preparar-te para isso. Mas até lá, precisavas ainda de aprender
muita coisa nova. A tua impaciência era a tua fraqueza. Antes do martírio, havia muita
coisa para fazer em Paris: recrutar novos militantes, aprender a fazer bombas, e,
sobretudo, estudar Teologia.
De ora em diante, passaste a ver o teu pai como aquilo que ele verdadeiramente
era: um judeu, um herege, um inimigo do teu Islão. Um infiel.

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DEZ

Conheceste bem cedo o preço da solidão e do abandono. Tinhas dois anos de


idade quando o teu pai saiu de casa. A tua mãe, jovem rebelde e insegura, entregou-se
nos braços de um homem mais velho que quis abusar de ti. Nunca mais esqueceste
aquelas mãos suadas a deslizarem pelas tuas pernas de menina como se fossem os
tentáculos de um polvo. Aqueles olhos, saídos das órbitas, raiados de sangue, chispando
de desejo, continuam a surgir a meio do sono, em pesadelos recorrentes que te deixam
prostrada, alagada em suor e a tremer de pânico. Como é possível que aquela boca
cavernosa, cravejada de dentes cariados, continue a envolver-te num persistente mau
hálito que te faz, muito justamente, ter nojo de todos os homens que bebem álcool?
Como poderias esquecer aquela saliva peganhosa, quase espessa, que se pegava á tua
pele como cola? Tu lavavas, lavavas, esfregavas a pele mas aquele cheiro não saída de
ti!
Foste acolhida pela tua avó, uma viúva ainda jovem, olhos claros e pele escura,
cheia de genica e de força, que dedicou a vida a criar e a educar as netas. Viste-a
entregar-se a muitos homens, aprendeste com ela a arte da sedução, mas não herdaste
dela a força de vontade, a coragem e a persistência, que fizeram dela uma mulher bem
sucedida. Nas raras vezes que visitaste a tua mãe, tiveste de fugir das mãos e do olhar
do homem que vivia com ela. Disseste à tua mãe que tinhas medo daquele homem, mas
ela chamou-te doida e tomou o partido dele. Começaste a ter pesadelos. Acordavas,
alagada em suor, com a visão de um homem de barbas, pescoço curto, olhos escuros a
cirandarem em almofadas de gordura e braços compridos, que se precipitava sobre ti,
tentando agarrar-te. Tu fugias por um corredor escuro, sem portas nem janelas, até que,
morta de cansaço, te deixavas cair no chão. Era então que o vias deitar-te sobre ti e, com
aquela língua comprida e pegajosa, envolver a tua pele num imenso casulo que era
como que uma gigantesca teia de aranha que te cobria como se fosses um pássaro preso
numa gaiola.
A pouco e pouco, deixaste de visitar a tua mãe até que acabaste por cortar
relações com ela. Quando ela foi viver para Lisboa, recebeste a notícia com indiferença.
Tiveste o primeiro namorado bem cedo. Tinhas catorze anos quando te entregaste a um
rapaz mais velho, por quem te apaixonaste logo que o viste. Ele era militar no Mindelo
e fora tirar um curso na Cidade da Praia. Gostaste de o ver fardado, passo firme e
decidido, pele morena, nariz comprido, olhos negros e cabelo muito curto. Quando ele
voltou ao Mindelo, dois meses depois, deixaste de ter notícias dele. Choraste de saudade
e de tristeza durante várias noites. A tua amargura só passou quando te entregaste a
outro rapaz, tão bonito como o primeiro, mas aconteceu com esse o que tinha sucedido
com o anterior. E seguiram-se muitos outros rapazes até que lhes perdeste a conta e o
nome. Quando fizeste dezoito anos, juraste que não querias mais envolvimentos
amorosos com rapazes. Daí em diante, serias tão interesseira como aquelas mulheres,
ainda jovens, que tu vias abraçadas a homens mais velhos. Esses homens deixaram de te
meter nojo e começaste a vê-los como presas fáceis da tua beleza. Foi então que

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conheceste o italiano. Achaste-o feio e desinteressante mas, quando ele falou em levar-
te para a Itália, onde tinha casa e uma loja de animais, começaste a vê-lo com outros
olhos. Mas depois apareceu o português, o Joaquim, um homem bonito, bem-falante e
com dinheiro, e, durante uns tempos, quiseste agradar aos dois.
Aprendeste com a tua avó a desconfiar dos homens. Foi por isso que te
envolveste com o Joaquim, aquele homem educado e cortês que conheceste em casa da
Suzi, e com quem fizeste amor na tarde em que o viste pela primeira vez. Entregaste-te
com fúria e ele ficou pasmado perante tanta sensualidade, tanta vontade de agradar.
Andaste com o italiano e com o português durante alguns meses até surgir a
oportunidade por que esperavas: ganhaste a bolsa para estudar numa universidade
portuguesa. O Joaquim estava à tua espera no aeroporto de Lisboa e levou-te para um
pequeno apartamento que ele alugara em Almada. Perguntaste-lhe por que razão não
ficou contigo na primeira noite em que chegaste a Portugal e ele não respondeu.
Soubeste, dias depois, que ele era casado e tinha duas filhas da tua idade. Referia-se a
elas como as gémeas. Descobriste, meses mais tarde, que elas estudavam na tua
universidade e que partilhavam contigo, sem te conhecerem, sem saberem do teu
segredo, salas de aula, bar e cantina. Por vezes, viajavas com elas, para Lisboa, no
mesmo autocarro. Sentavas-te atrás delas e ouvia-las falar da mãe, do pai, dos
namorados, sem suspeitarem que aquela rapariga, de pele escura, que se sentava no
banco de trás, vivia num apartamento pago com o dinheiro do pai delas, a quem se
entregava com volúpia e satisfação, quase todos os dias. Foi com elas que aprendeste
muita coisa sobre o Joaquim. Ficaste a saber que ele era um bom pai para as filhas, que
as mimava com toda a espécie de presentes, que se zangava com elas quando chegavam
tarde a casa, que quis proibir uma delas de namorar um homem mais velho porque não
achava apropriado entregar uma filha de vinte anos a um homem de quarenta.
Aprendeste com elas que o Joaquim receava a velhice, perscrutava, com impaciência, a
cara, todas as manhãs, olhando-se ao espelho com o receio de encontrar uma nova ruga,
um novo sinal de velhice.
Quando falavas ao Joaquim na necessidade de ele tomar uma decisão definitiva
em relação à mulher dele, ele respondia-te com um encolher de ombros ou mudava de
conversa. Em breve, começaste a suspeitar de que ele nunca seria capaz de se separar da
mulher. Um dia perguntaste-lhe a razão. As palavras morreram-lhe na garganta,
gaguejou e, passados uns segundos, disse que era muito difícil pôr termo a uma relação
de trinta e cinco anos. Foi então que tu fizeste as contas e chegaste à conclusão de que,
quando tu nasceste, ele já vivia com a mãe das gémeas há quinze anos. Nessa tarde,
choraste durante horas. Sabias que irias ser a segunda para sempre, a amante, a negrinha
que lhe saciava o desejo, e foi então que voltaste a lembrar-te das palavras da tua avó
acerca dos homens. Saíste de casa sem rumo certo. Sabias apenas que querias entregar-
te a outro homem, dizer-lhe para usar e gozar o teu corpo até à exaustão. Encontraste-o
à entrada de um bar e foste com ele para um prédio em construção onde te entregaste
como se fosses uma puta vadia. Quando ele te perguntou o nome, respondeste que,
naquela noite, não havia nomes, apenas corpos anónimos, corpos suados e revoltados,
incapazes de pensar, apenas carne com carne, sangue com sangue, saliva com saliva.
Nunca chegaste a saber o nome daquele homem, nem sequer a gravar a cara dele na tua
memória, mas aquela noite marcou a tua vida para sempre.

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ONZE

Finalmente, veio Bissau. Arturo atendeu o telefonema numa manhã de Agosto e


percebeu imediatamente que tinha ganho o concurso para o projecto mais cobiçado de
África. Uma voz de mulher disse-lhe, num francês irrepreensível, que ia passar a ligação
a Monsieur Jean-Jacques Ourty. Uma voz de homem, que ele reconheceu como sendo a
de quem lhe fizera a entrevista duas semanas atrás, disse o que ele esperava ouvir: se ele
quisesse partir para Bissau na semana seguinte, o lugar seria dele. Iria ganhar doze mil
euros por mês, mais um subsídio de integração no valor de trinta mil euros. A estadia e
viagens ficariam por conta dele. Atendendo a que se tratava de um projecto inserido
num país considerado perigoso, não apenas devido às doenças, mas também aos
conflitos étnicos, não era permitido levar a família. Teria de permanecer sozinho, em
Bissau, com autorização para visitar a família de três em três meses.. Respondeu
afirmativamente sem necessidade de consultar a Mel. Quando se tratava de projectos tão
bem pagos, a resposta só podia ser afirmativa e não valia a pena adiá-la por um ou dois
dias, porque era insensato encarar a possibilidade de recusar uma proposta daquelas.
A Mel observava-o atentamente a dois metros de distância, com o filho agarrado
às pernas, e um sorriso estampado na cara. Ela teve a noção imediata de que aquele
telefonema anunciava contrato grande. Quando ele lhe contou a conversa que tivera
com o homem de Bruxelas, ela deu uma estrondosa gargalhada e ofereceu-lhe os lábios.
Depois, disse:
-És o meu herói! Orgulho-me de ter o marido mais inteligente do mundo!
-Sim, um macaco trabalhador que vai fazer de ti uma mulher rica e deste
bambino o futuro Presidente da República de Cabo Verde! – E, sem deixar de a abraçar,
perguntou: - Ouve lá, o nosso bambino pode ser Presidente da República, ou não? Será
que aqui o Presidente da República tem de ser filho de pai e mãe cabo-verdianos?
-Amorzão, estás a esquecer-te de que já és cabo-verdiano e que o nosso
macaquinho nasceu aqui?
-Ah, pois é! Sabes, o filho deste macaco e desta macaca vai ser mesmo o
Presidente da República destas ilhas perdidas no Oceano Atlântico. Regista o que eu te
estou a dizer, macaca do teu macaco!
-Ouve – interrompeu a Mel – quanto é que vais ganhar?
-Nem acreditas!
-Porra! Deita lá esse número para fora! Matas-me de curiosidade!
-Vá, dá lá um palpite!
-Cinco mil?
-Mais, muito mais!
-Dez mil?
-Mais um pouco!
-Onze?
-Doze, doze mil euros por mês, minha macaca! Casaste com um homem rico!
Um Midas! Vou fazer de ti uma mulher rica! Mas cuidado com esse carpinteiro do
Mindelo que anda por aí a comer-te com os olhos! Não tarda, e eu fico com uns cornos
de madeira! – disse ele, colocando os indicadores esticados sobre a testa.
-Ah, ah! Andas com ciúmes do carpinteiro!

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-E esse Pedro, será que ele não vem aqui na minha ausência?
-Qual Pedro? Não vejo esse homem há mais de oito anos e se ele aparecesse à
minha frente já nem o reconheceria! – mentiu a Mel.
Há muito que Melissa se arrependera de ter confidenciado a Arturo a relação
amorosa que mantivera com Pedro. Pela maneira como ela falara dele, Arturo ficou a
saber que aquela relação fora assunto sério. Daí em diante, a sombra de Pedro pairaria
sobre as cabeças deles como uma nuvem negra a anunciar mau tempo. Volta e meia,
Arturo perguntava-lhe pelo Pedro.
-Esse sacana não é boa peça! Não te esqueças de que ele te deu um pontapé no
cu quando mais precisavas dele!
-Continuas com ciúmes dele, não é?
-Não foste tu que me disseste que ele foi o homem da tua vida? Como é que
queres que não tenha?
-Eu disse isso? Devia estar doida!
-Bom, deixa isso para lá! Vamos lá falar da compra de nova casa, está bem? Para
alugarmos, percebes?
-Sabes, amorzão, falaram-me num belo apartamento, a poucos metros do
restaurante O Poeta, com uma linda vista sobre o mar, que está a ser vendido por bom
preço! Zona boa, fácil de alugar a estrangeiros!
-Vamos ver esse apartamento amanhã! Combinado? – Ela assentiu e pousou a
cabeça sobre o ombro dele.

No dia seguinte, logo pela manhã, Arturo recebeu um novo telefonema. A ex-
mulher precisava, urgentemente, de falar com ele. Havia problemas com o filho,
problemas graves. Há mais de dois anos que não tinha notícias da mãe do rapaz e o que
quer que tivesse acontecido só podia ser coisa muito complicada. Num francês perfeito,
a mãe do rapaz contou-lhe o que acontecera com o Mohamed. O filho do Arturo
cumprira as ameaças que fizera uns meses antes, quando se encontrara com o pai, em
Paris. Mohamed partira para a Palestina, na companhia do seu mentor e mestre de
Teologia, um tal Abdulah, a quem ele chamava de pai, desde que trocara a frequência
do Liceu pela escola da mesquita, onde começou a passar os dias e as noites, na
companhia de outros jovens franceses recém-convertidos ao Islão. Disposto a libertar os
lugares santos da ocupação sionista, o rapaz aderiu a um grupo de fanáticos que davam
pelo nome de Cavaleiros de Maomé e que estavam dispostos a dar a vida pela causa do
Islão, fazendo-se explodir, com um cinto de dinamite, numa paragem de autocarro de
uma qualquer cidade israelita.
Arturo recebeu a notícia com tristeza mas sem surpresa. Aquele rapaz tinha a
cabeça cheia de ódio e ele sentia-se culpado por isso. Fora ele que o abandonara quando
lhe era mais necessário ter um pai por perto. Fora a mãe que o trocara pelos braços de
uma mulher, com quem viveu os anos em que um filho mais precisa de uma mãe.
Mohamed fora abandonado por todos e não admira que se tivesse refugiado onde
encontrou segurança e certezas. Abdulah dera-lhe tudo isso e ainda um propósito de
vida. Embora sentindo-se culpado pelo que estava a acontecer ao seu filho, Arturo
achava-se injustiçado. Por que razão aquilo lhe estava a acontecer a ele? Pais assim
havia-os aos milhares por esse mundo fora sem que os filhos deles se tornassem
terroristas!

39
DOZE

Dois helicópteros israelitas sobrevoaram a casa de dois pisos onde Mohamed


vivia na companhia de dois jovens, um palestiniano e outro francês, um pouco mais
velhos do que ele, e a quem ele chamava de irmãos. Quando o zunido das hélices dos
helicópteros deixou de se ouvir, o rapaz palestiniano subiu ao terraço. Estava uma noite
estrelada e um bafo quente acertou-lhe na face. Pôs-se de pé e acenou para a janela de
uma casa térrea, que ficava nas traseiras. Por detrás da vidraça, reconheceu a cara de
Abdulah, que respondeu ao aceno com um movimento de mãos, que o rapaz interpretou
como querendo dizer que se preparava para se juntar a eles. O rapaz desceu as escadas a
correr e gritou para Mohamed:
-Abdulah, nosso pai, vem juntar-se a nós!
Mohamed suspirou de alívio. Sabia que os israelitas andavam à procura de
Abdulah mas não fora ainda desta vez que o encontraram. Assim que Abdulah chegara
de Paris, correram notícias, em Gaza City, sobre um novo grupo de combatentes
islâmicos, com ligações à Al-Qaeda, constituído por jovens islâmicos nascidos em
França, que se juntavam à guerra santa contra os sionistas, em solo da Palestina.
Depressa, a notícia chegou aos ouvidos dos bufos que trabalhavam para os serviços
secretos israelitas. Não havia tempo a perder. Os helicópteros voltariam mais vezes e os
bufos estavam atentos às movimentações dos recém-chegados a Gaza City. Os
combatentes islâmicos, vindos de Paris, eram extremamente vulneráveis e fáceis de
detectar. Poucos falavam árabe e aqueles que dominavam a língua do Profeta faziam-no
com um sotaque estranho que denunciava as suas origens europeias.
Aquela iria ser a noite do martírio. Mohamed estava preparado para morrer.
Com a alegria estampada no rosto, o rapaz francês não parava de andar para trás e para a
frente, projectando a sua sombra nas paredes.
-De que te ris? – perguntou-lhe Mohamed?
-É a antevisão dos sionistas mortos que me faz sorrir! – Soltou uma gargalhada
seca e nervosa.

Desde que chegara a Gaza City que Mohamed sabia que a presença de
helicópteros queria dizer apenas uma coisa: alguém denunciara a presença de militantes
no bairro. Durante os meses de preparação mental e militar, quer na mesquita, em Paris,
quer no campo de treino, nos arredores de Gaza City, ensinaram a Mohamed que só
havia um tipo de gente pior do que os judeus: os traidores, os bufos, aqueles que
trocavam a fidelidade à Pátria e ao Islão pelo dinheiro dos israelitas. Havia bufos em
toda a parte. O dinheiro dos judeus comprava terra, casas e homens. Quando ele aceitou
a missão suicida, sabia que havia fortes possibilidades de ser descoberto pelos
helicópteros israelitas que, naquelas condições, faziam apenas uma única coisa:
lançavam dois mísseis sobre a casa onde supostamente se encontravam os militantes do
Islão, fazendo-a ruir como um castelo de cartas.
Encontrava-se naquela casa há apenas dois dias. Nas últimas duas semanas, tinha
conhecido seis casas diferentes. Não era aconselhável passar mais do que duas noites
em cada uma. Aquele bairro da Cidade de Gaza era controlado pelas Brigadas dos
Mártires de Al-Aksa, um movimento terrorista com fortes ligações à organização de

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Yasser Arafat. O grupo a que Mohamed pertencia, os Cavaleiros de Maomé, era
constituído por jovens nascidos fora da Palestina, a maior parte dos quais com poucos
conhecimentos de árabe, recém-chegados da Europa e recém-convertidos ao Islão.
Devido à sua falta de experiência política e militar e ao seu radicalismo religioso, eram
encarados com alguma suspeição pelas forças de segurança da Autoridade Palestiniana,
pelo que contavam com escassos apoios financeiros e logísticos, estando, regra geral,
entregue a si próprios em células clandestinas que não excediam os três membros
liderados por um chefe religioso, que lhes dava orientação psicológica e lhes apontava
os alvos, e um chefe militar, que lhes proporcionava treino em explosivos. O dinheiro
para financiar as missões e para sustentar as células adormecidas, durante os meses ou
anos de preparação das missões, provinha, regra geral, das mesquitas francesas, alemãs
e belgas e das associações de caridade, espalhadas por todos as comunidades
muçulmanas da Europa. Em duas décadas, os radicais muçulmanos criaram uma rede de
instituições e grupos que abrangia todas as grandes cidades europeias. A rede
proporcionava ajuda e apoio, satisfazendo todas as necessidades do dia-a-dia. Havia
grupos que emprestavam dinheiro sem juros, as mesquitas proporcionavam creches e
escolas a custo baixo, as instituições de caridade fundavam lares para a terceira idade e
os chefes religiosos davam orientação e apoio psicológico a jovens e adultos. Na maior
parte das grandes cidades europeias, mas sobretudo em França, Bélgica, Grã-Bretanha e
Espanha, era possível a um jovem muçulmano ser educado, arranjar emprego, pedir
dinheiro emprestado e casar, sem precisar de contactar com pessoas estranhas à sua
comunidade.

Quando o som dos helicópteros esmoreceu, Abdulah deixou a casa térrea e


dirigiu-se ao covil de dois pisos onde Mohamed se refugiara na companhia de mais dois
combatentes. Assim que viu os rapazes, deu ordens para continuarem a tarefa. Não era
fácil colocar um cinto de explosivos. Para que os explosivos não se fizessem notar por
debaixo do vestuário dos rapazes, era necessário distribuir muito bem a carga,
aumentando o seu poder de destruição com pregos que se espetariam nos corpos das
vítimas que estivessem a alguns metros do suicida.
Depois de colocados os cintos, os rapazes vestiram os anoraques e gravaram
uma mensagem em vídeo. Mohamed falou do desprezo que sentia pela Europa e pelos
Estados Unidos da América, incapazes de levantarem um dedo contra aquilo que ele
considerava ser a ocupação sionista. Terminou a sua breve alocução com uma oração.
Saíram, logo de seguida, da casa e enfiaram-se num táxi que os transportou ao porto
onde os esperavam dois pescadores que lhes indicaram o barco que os levaria a uma
aldeia israelita a poucos quilómetros dali.
Mohamed sabia que havia uma elevada possibilidade de o barco de pesca ser
interceptado pelos barcos-patrulha israelitas, que vigiavam as águas do Mediterrâneo,
mandando parar os barcos de pesca suspeitos e metralhando aqueles que não o
quisessem fazer. Havia um sistema de cotas que permitia aos pescadores palestinianos
irem ao mar, mas os barcos-patrulha israelitas exerciam uma vigilância apertada sobre
todos eles. Desde que o Muro fora construído, a única possibilidade de fazer um
atentado suicida em Israel era por mar, a partir de Gaza. Contudo, das várias dezenas de
tentativas feitas, apenas uma saíra vitoriosa, quando dois palestinianos conseguiram
fazer-se explodir, à entrada de um porto israelita, a escassos metros de uma patrulha
militar. A lei das probabilidades jogava contra Mohamed e ele tinha ordens para se fazer
explodir em caso de abordagem por um barco-patrulha, matando, também, os
pescadores palestinianos que lhe ofereceram transporte no barco. Eram danos colaterais,

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um risco que valia a pena, tendo em conta a grandeza do objectivo: causar o maior
número possível de vítimas ao inimigo sionista.
Um foco de luz iluminou o barco e uma ordem, dita em árabe, fez com que o
piloto parasse o barco. Mohamed e o companheiro recolheram ao porão e deitaram-se
debaixo de um emaranhado de redes de pesca. Quatro soldados israelitas, de
metralhadora em punho, revistaram o barco e fizeram perguntas aos pescadores.
Queriam saber se tinham licença para pescar naquela noite, de onde eram e a que horas
tencionavam regressar a casa. Um dos soldados parou, por instantes, em frente do
monte de redes, sob o qual se escondiam os rapazes, mas não chegou a olhar para o
chão. Passados alguns segundos, retrocedeu e subiu por umas escadas em caracol que o
levou ao convés onde se encontravam os pescadores. Durante mais alguns minutos,
Mohamed continuou a ouvir palavras em árabe e em hebraico, palavras que ele não
entendia porque o seu conhecimento de árabe limitava-se a algumas frases de O Corão,
que ele memorizara com a ajuda de Abdulah. Foi o companheiro que lhe disse que os
soldados estavam de partida e que podiam abandonar o esconderijo. Quase por milagre,
Mohamed conseguira iludir os soldados. O piloto disse qualquer coisa em árabe que
Mohamed não percebeu e o barco recomeçou a sua marcha lenta. Ao longe, Mohamed
viu dezenas de luzinhas a brilhar. À medida que o barco se aproximava da costa, as
luzinhas transformaram-se em candeeiros e ele pôde vislumbrar vários jipes do exército
israelita que patrulhavam as ruas do colonato.
O capitão do barco veio ao encontro deles e disse-lhes:
-Estão a ver este barquinho a remos? – Eles olharam para um pequeno barco,
que não devia ter mais de dois metros de comprimento, e assentiram com a cabeça. – O
piloto continuou: - Bom, agora ficam entregues à vontade de Alá! Que Ele vos proteja!
É nessa casca de nós que vão ter de chegar à margem!
Dois pescadores colocaram o barco na água e, de seguida, ajudaram os rapazes a
descer por uma corda. Era necessário evitar o contacto com a água para não dar cabo
dos explosivos. O mar estava calmo. Ao longe, Mohamed viu as luzes da aldeia e
algumas pessoas que saíam para o trabalho. O alvorecer aproximava-se. Só com muita
sorte eles chegariam à aldeia sem serem vistos pelas patrulhas. Remaram com cuidado
até à margem, procurando evitar os focos de luz que poderosos holofotes projectavam
sobre as águas. Esconderam o barco atrás de um rochedo e percorreram o areal a
rastejar. Tinham combinado seguir caminhos diferentes. Se um fosse apanhado, o outro
poderia ter mais sorte. Despediram-se com quatro beijos e invocaram o nome de Alá.
Era a última vez que estariam juntos. Daí em diante, cada um estaria entregue à sua
sorte. Esperavam encontrar-se no Paraíso.

42
TREZE

Arturo recebeu a notícia quando estava a tomar o pequeno-almoço no hotel. Um


empregado de mesa trouxe-lhe o fax, num envelope fechado, em cima de uma pequena
bandeja de metal. Ele abriu o envelope e leu:
Arturo, estou a dar-te esta notícia com o coração a sangrar. O nosso filho está
preso numa cadeia de alta segurança, em Israel, acusado de tentar cometer um
atentado suicida. Informaram-me, ontem, que ele foi interceptado por um patrulha do
exército israelita, numa pequena aldeia, quando se preparava para se fazer explodir
junto a uma paragem de autocarro. O companheiro, que viajou com ele num barco de
pesca palestiniano, faleceu, ao fazer-se explodir num café cheio de israelitas que
tomavam o pequeno-almoço. Por favor, contacta-me urgentemente. Alguém tem de ir a
Israel. Não podemos deixar o nosso filho sem apoio judicial. Como tu és judeu, talvez
possas interceder por ele com mais facilidade do que eu, que sou muçulmana.
Arturo levantou-se da mesa e correu para o átrio do hotel. Para seu desespero,
não havia ninguém na recepção. Esperou alguns segundos, chamou pelo empregado em
português, crioulo e francês, mas ninguém apareceu. Aqueles minutos de espera
pareceram-lhe uma eternidade. Precisava, urgentemente, de telefonar para a irmã, que
vivia em Israel. Ela estaria a par do caso, saberia, com exactidão, o que se passara e
prontificar-se-ia a ajudar no que fosse preciso. Há quase dois anos que não tinha
notícias dela, mas sabia que ela estava bem colocada para desencadear o apoio judicial
ao Rafaelo, já que trabalhava nos serviços de informação do exército. Sabia que ela
tinha duas filhas. Na última carta que ela lhe escrevera, dizia que tinha uma filha no
exército e outra a estudar nos Estados Unidos da América. Distanciara-se da irmã
quando se apercebeu do radicalismo religioso dela, um fervor místico que a levara a
filiar-se num movimento hebraico extremista. Lamentara o facto de ela se ter mudado
de Telavive para um colonato situado em Gaza, um colonato que aos olhos da
comunidade internacional e dos judeus moderados constituía uma ocupação ilegítima de
território palestiniano. Arturo não tinha a mais pequena simpatia pelos judeus radicais e
achava-os tão culpados da guerra interminável que opunha Israel aos palestinianos
quanto os extremistas árabes. Uns e outros alimentavam-se do ódio, agarrando-se a uma
interpretação errada dos textos sagrados. Eram ambos culpados de o seu filho ter
decidido, de um momento para o outro, mudar o nome, de Rafaelo para Mohamed, e
com esse gesto ter cortado com a componente hebraica da sua herança. O processo de
lavagem ao cérebro a que o Rafaelo fora submetido, transformando-o em poucos anos
num radical sedento de vingança, era o produto de dois extremismos, o árabe e o
hebraico, que se alimentavam mutuamente num festim contínuo onde os ingredientes se
resumiam ao ódio a ao sangue. Como era possível que aquilo estivesse a acontecer com
o seu filho? Um rapaz saudável e bonito que tinha à sua frente um projecto de vida em
aberto, que tinha condições para ser tudo aquilo que quisesse! Logo agora que a vida
estava a correr tão bem ao Arturo! Tinha condições económicas para pôr o rapaz a
estudar nas melhores universidades americanas ou inglesas! Vieram-lhe à mente
recordações da infância do Rafaelo: imagens repetidas, que enchiam a sua cabeça tão
depressa como desapareciam, como se fossem relâmpagos numa noite de trovoada! Viu
o rapaz a abraçá-lo quando ele o encontrou na fronteira de Moçambique com a África
do Sul, depois de andar perdido durante duas horas no meio de uma multidão anárquica

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para quem a existência de uma criança perdida dos pais era um acontecimento tão
insignificante como a presença de uma mosca na vidraça de uma janela. Recordou o
sorriso do Rafaelo quando viu um elefante bebé atrás da mãe, a poucos metros do jipe
em que se faziam transportar pelo Kruger Park. Depois, as imagens do Rafaelo
desapareceram tão depressa como haviam chegado. Arturo voltou ao presente e o
presente era difícil de entender e mais ainda de aceitar.
Arturo não negava a sua condição de judeu, nem sequer procurava afastar-se da
tradição hebraica, e sentia orgulho em ser filho de judeus perseguidos pelo nazismo e
pelo fascismo, mas olhava com desprezo para os que queriam implantar, em Israel, uma
teocracia. Por sua vez, a irmã dele criticava-lhe a falta de crença na religião hebraica, o
casamento com uma mulher islâmica, de quem tivera um filho, e ainda o facto de ele
nunca ter querido fixar-se na Terra Prometida. Aos olhos dela, os judeus de todas as
partes do mundo tinham o dever histórico de se fixarem em Israel, contribuindo, com o
seu regresso, para a criação do Grande Israel, o qual incluía não só a Cisjordânia mas
também a Faixa de Gaza. Agora, o filho! Aquele filho que ele nunca soubera amar, mas
que estava disposto a amar, daí para a frente, como um pai deve amar um filho. Um
filho preso. Um filho que quis morrer para matar o maior número possível de pessoas,
que tinham em comum apenas o facto de serem israelitas.

Um rapaz alto e magro, de cor escura, com uniforme azul, entrou no átrio do
hotel em passo lento. Arturo reconheceu-o. Chamou-o e disse que precisava
urgentemente de telefonar para Israel. O rapaz levou-o para dentro do escritório e fez-
lhe a ligação. Do outro lado, ninguém atendeu. Arturo ligou mais uma dúzia de vezes,
sem resultado. Subiu, no elevador, até ao quarto e ligou a televisão. Sintonizou a CNN à
procura de notícias frescas de Israel. Passados cinco minutos, ouviu o que não queria
ouvir:
Mohamed, antes chamado Rafaelo, um francês de dezanove anos de idade, filho
de mãe árabe e pai judeu, foi preso quando se preparava para detonar um cinto com
explosivos numa aldeia piscatória israelita, a poucos quilómetros de Gaza. O
companheiro dele, também francês e com vinte anos de idade, fez-se explodir, à
entrada de um café, quando foi abordado por um patrulha israelita, provocando a
morte de duas mulheres e dois homens. De seguida, surgiram imagens da irmã de
Arturo, com a cara coberta de lágrimas, a afirmar perante as câmaras de televisão que
uma das raparigas assassinadas era a filha dela. Arturo levou as mãos à cabeça e gritou:
-Isto não pode ser verdade! Que mal fiz a Deus para isto me acontecer?
Andou de um lado para o outro do quarto, berrando cada vez mais alto, e lançou
a cabeça contra a parede. Uma dor forte na testa fê-lo cair no chão. Bateram à porta do
quarto e perguntaram se ele precisava de ajuda. Ele ficou em silêncio e enroscou-se
como se fosse um bicho-de-conta. Naquele momento, não queria ver ninguém. Estava
entregue a si próprio e à sua crónica falta de sorte. Vieram-lhe à memória as imagens do
filho, acusando-o de o ter abandonado, de o ter trocado por uma mulher mais nova e de
ter preferido a tranquilidade de Cabo Verde, onde passava meses e meses sem fazer
nada, à vida agitada de Paris, onde teria podido ganhar a vida e continuar a tomar conta
do rapaz. Culpava-se pelo afastamento de Rafaelo das origens e tradições europeias,
pela revolta que ele sentia em relação a tudo o que lhe lembrasse o pai, a história dos
judeus e o modo de vida ocidental, que o rapaz, instigado sem dúvida pelos
ensinamentos de Abdulah, considerava um produto da cultura judaico-cristã. Se ele
tivesse continuado a trabalhar na Europa, teria acompanhado o crescimento do filho,
teria exercido nele uma influência positiva e saberia protegê-lo da influência negativa de
homens da estirpe de Abdulah. Agora era demasiado tarde para lamentar a opção feita.

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Alguns minutos depois voltaram a bater à porta do quarto. Arturo não se deu ao trabalho
de responder. Manteve-se quieto, deitado no chão, com os olhos marejados de lágrimas
e uma dor aguda na testa. De repente, alguém abriu a porta do quarto. Um homem gordo
e alto ajudou-o a levantar-se e levou-o para o quarto de banho. De seguida, desapertou-
lhe a camisa e salpicou-lhe a testa com água fria.
-Desmaiou? – perguntou o homem gordo.
-Quer dizer…aconteceu uma coisa terrível – As palavras morreram-lhe na
garganta e começou a soluçar. – Uma coisa horrível…impossível de suportar.
-O que foi? – perguntou o homem gordo, com um olhar inquiridor. - Posso
ajudá-lo?
Arturo levantou a cabeça e fixou os olhos no homem gordo que o segurava por
debaixo dos braços. Um fio de suor escorria pela testa enrugada do homem e os olhos
dele cirandavam sobre dois grandes papos de gordura.
-Ninguém me pode ajudar – disse Arturo. – Pôs-se de pé. – Foi uma desgraça.
-Venha daí até ao bar do hotel. Uma bebida forte vai fazer-lhe bem – disse o
homem gordo, enquanto empurrava o Arturo para a saída do quarto.
-`Tá bom, eu vou – disse Arturo, libertando-se das mãos suadas do homem.
No bar, depois de engolir dois uísques, Arturo lembrou-se de que precisava de
telefonar para a Mel. Chamou o recepcionista e disse-lhe que queria telefonar. Deu-lhe
o número de telefone da Mel e o rapaz fez a ligação.
-Mel, aconteceu uma desgraça ao Mohamed!
-Ao Rafaelo, amorzão?
-Sim, ao Rafaelo.
-O que foi, conta-me já!
-Está preso em Israel…
-Preso? – interrompeu a Mel.
-Sim, preso. – Fez uma pausa e suspirou. - Foi apanhado quando estava prestes a
fazer-se explodir à entrada de um colonato.
-Meu Deus, que grande merda!
-E não foi só isso! Ele ia com outro rapaz que se fez explodir, matando dois
homens e duas mulheres, uma delas era a minha sobrinha.
-A tua sobrinha?
-Sim, amorzão, a filha da minha irmã que vive em Israel!
-Porra, não pode ser! Isso não pode ter acontecido!
-A Mara é que me avisou do sucedido. Mandou-me um fax esta manhã. Ela quer
que eu vá a Israel para dar apoio ao Rafaelo.
-E tu vais, amorzão? – Mel fez uma pausa à espera da resposta dele. - Vais dar
cabo desse projecto em Bissau, um projecto tão bem pago?
-Tenho de ir, amorzão, não há alternativa!
-E a muçulmana, não pode ir?
-Ela acha que eu tenho mais hipóteses de o defender porque sou judeu.
-Ai, amor, que grande merda em que o Rafaelo se meteu. Estou a ver que
também vai sobrar para mim. Não te esqueças de que tens um filho aqui, em Cabo
Verde, e que nós precisamos muito de ti.
-Como poderia esquecer-me? O nosso bambino está sempre no meu
pensamento!
-Amorzão, faz o que achares melhor, mas volta depressa para Bissau!
-Uma semana em Israel deve chegar para me inteirar da situação e arranjar-lhe
um bom advogado.
-Ciao, amorzão, tem cuidado e dá notícias!

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-Ciao, amor da minha vida!

CATORZE

Quando eras pequena, todos admiravam a tua beleza. A tua pele era escura e
luzidia: herdaste a cor da tua mãe. Os teus cabelos eram negros, encaracolados e longos,
os olhos amendoados e o pescoço, comprido e estreito. Recebeste do teu pai a coragem,
a inteligência, a franqueza e o orgulho. E da tua mãe, a beleza e o gosto pela aventura.
Aprendeste a ler antes de entrares na escola. Vias o teu pai, que era professor primário,
a preparar as lições do dia seguinte, sentavas-te sobre os joelhos dele e repetias o que
ele lia, associando os sons às imagens dos livros. Quando ele estava na escola, tu
escapulias-te para o quarto dele, abrias a gaveta da secretária onde ele guardava os lápis,
canetas e cadernos, e começavas a escrever e a desenhar. Foi com naturalidade que
terminaste o Liceu com notas elevadas. Nessa altura, já estavas afastada do teu pai.
Quando ele se enfurecia com a tua mãe, ralhando por coisas sem importância,
ameaçando-a e insultando-a, tu tomavas o partido dela, colocavas o teu corpo franzino
entre os dois e, abraçada a ela, pedias ao teu pai que se fosse embora de casa. Ficavas
enojada com o hálito a álcool que lhe saia da boca quando ele falava. A pouco e pouco,
ele tornou-se um estranho. Nunca chegaste a compreender a razão de tanta revolta, de
tanta amargura! Quando o viste pegar na mala e dirigir-se ao aeroporto, sem sequer te
dar um beijo de despedida, ficaste aliviada. Há muito tempo que esperavas por aquele
momento. Daí em diante, tinhas a tua mãe só para ti. De quando em quando, o teu pai
mandava uma carta de Lisboa, dizia que estava bem, mas tu sabias que ele continuava
tão violento como sempre fora. Pouco depois, arranjaste emprego nos TACV. Ao
contrário da maioria das raparigas de Cabo Verde, tiveste o primeiro namorado bastante
tarde: aos dezassete anos. Ele era médico, olhava muito para ti quando tu e a tua mãe se
deslocavam ao Centro de Saúde, e um dia esperou-te à saída dos escritórios dos TACV e
perguntou se podia levar-te, de carro, a casa. Tu acenaste com a cabeça em sinal de
concordância, entraste no carro, e não disseste nada quando ele te levou em direcção ao
porto. As tuas amigas mais velhas tinham-te contado mil histórias sobre a primeira vez e
tu esperavas, com ansiedade, por esse momento. Sabias que era assim que as coisas se
passavam no teu país. Tinhas curiosidade em saber como era estar com um homem e
querias verificar se aquilo que as tuas amigas diziam sobre os homens era verdade ou
pura fantasia. Quando ele parou o carro, tu deixaste que as mãos dele pousassem nas
tuas pernas nuas. Ele enrolou o braço direito à volta do teu pescoço e o teu coração
começou a bater desalmadamente. Pousou a mão suada sobre os teus seios pequenos e
ouviste-o arfar. Depois, ele inclinou-se, puxou-te para ele e beijou a tua boca. Sentiste o
coração dele a bater junto do teu peito. Ele tinha uns lábios grossos, bem desenhados,
uns olhos verdes, muito grandes, uma pele clara, a pele de um branco. As mãos dele
cirandavam pelos teus seios pequenos e duros. Arfava como um animal ferido. Ficaste
quieta e em silêncio. Reparaste que ele tinha pingos de suor junto às sobrancelhas.
Quando ele meteu os dedos no teu sexo, não ficaste incomodada porque sabias que era
assim que tinha de ser. Fechaste os olhos e abriste as pernas. Ele meteu o braço por
debaixo das tuas pernas e puxou o banco para trás. Disse-te para te deitares nele. Tu
deixaste escorregar o corpo e, sempre de olhos fechados e em silêncio, sentiste os dedos
dele dentro de ti. Ele beijava a tua boca com sofreguidão e tu tiveste de o afastar com as
mãos porque estavas com dificuldade para respirar. Ao princípio, foi agradável sentires

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os dedos dele à entrada do teu sexo. Mas depois, uma sensação de desconforto tomou
conta de ti. Pediste-lhe para ele parar. Ele parecia não perceber a razão do teu pedido.
Estava com vontade de te agradar. Então, ele debruçou a cabeça sobre o teu colo e
deslizou a língua sobre o teu sexo. Foste inundada por uma onda de calor que subia do
ventre até à cabeça e não foste capaz de calar os gritos que saíam de dentro de ti. Sentias
que estavas prestes a perder a consciência e, de repente, deste por ti a rir às gargalhadas
sem saber porquê. Entregaste-te no dia seguinte. Estavas com ele deitada na areia escura
e vias a espuma branca das ondas a bater nas rochas. O sol deitava-se na linha do mar e
a praia estava deserta. Viste-o desabotoar a braguilha e deixaste que ele conduzisse a tua
mão. Olhaste para cima, sobre o ombro dele, e viste uma mancha cor de laranja, como
se um incêndio de grandes proporções lavrasse entre o céu e o mar. O céu cobriu-se de
fogo. Quando ele rodou sobre ti, abriste as pernas e, em silêncio, sentiste o sexo dele,
duro e grosso, deslizar na tua vagina. Ele entrou dentro de ti sem dizer nada. Beijava a
tua boca com sofreguidão. Tu sentiste um certo desconforto quando ele se separou de ti
e ficaste triste pela pressa com que ele te levou de regresso a casa. Anoitecia. A lua,
muito iluminada, fazia o seu caminho, elevando-se por cima do mar. Os candeeiros
projectavam a sua fraca luz sobre os passeios e as pessoas deslizavam como sombras a
caminho das suas casas. Depois dele, conheceste outros homens, mas nenhum te tocou
tanto como o Pedro. Eras ainda muito jovem quando o viste, pela primeira vez, em
Lisboa, num curso de formação para operadores turísticos. Quando ele te disse que era
casado e tinha duas filhas, tu já estavas apaixonada por ele. Voltaste ao Mindelo com
uma fotografia dele, junto de uma roseira florida. Ele escreveu por trás: “Esta rosa é
para ti; nunca te esquecerei!” Mostraste, muitas vezes, essa fotografia a amigas tuas e
quando elas te perguntavam quem era esse homem moreno, bonito de cara e com um
sorriso encantador, tu, inchada de orgulho, dizias que aquele era o homem da tua vida.
Entregaste-te a outros homens porque o Pedro não soube guardar-te junto dele. Houve
um moçambicano, com quem fizeste sexo até à exaustão, mas por quem não sentias
nada. Ainda hoje estás para saber como é que ele era capaz de estar tantas horas de
mastro erguido! E, no entanto, nunca o amaste, achava-lo divertido e sensual mas não
foste capaz de sentir uma pontinha de amor por ele. Passaste tardes inteiras a fazer amor
com aquele homem. Ele perseguia-te pela casa, com o sexo levantado a tapar-lhe o
umbigo e tu fingias que estavas a fugir dele e que ele te queria violar. Quando ele te
apanhava, quem o violava eras tu. Lembras-te? Saltavas para cima dele e chicoteavas-
lhe o peito, os ombros e as coxas. Ele dizia que era o teu escravo e que tu eras a patroa
preta, que se servia dele, que o moía de pancada por ele não estar à altura das tuas
exigências. Mas estava. Quanto mais lhe batias, mais ele se excitava e tu aproveitavas e
fazias deslizar aquele pénis gigante para dentro de ti. Cavalgavas e ele só se dava por
rendido quando tu, cansada de tanta carne dentro de ti, ordenavas que ele parasse.
Então, ele encharcava-te as entranhas e urrava como um animal ferido, mas não eram de
dor os gritos. Eram de prazer. Depois, houve um estudante português, com quem viveste
um mês, e que, tal como os outros, acabou por se afastar. Engraçado…Não consegues
lembrar a cara desse. Apenas recordas as pernas peludas, grossas e musculadas, que tu
gostavas de percorrer com os lábios. Há coisas assim: não te lembras da cara mas
consegues reproduzir, com exactidão, muitas das palavras dele. Seria por ele ter um
discurso tão diferente dos outros homens? O rapaz falava com uma língua de veludo,
sempre cortês e cuidadoso com as palavras. Houve, ainda o algarvio, com quem
passaste três meses de luxúria e diversão, nadando, comendo marisco e fazendo amor
numa cabana de pescadores. Numa cabana, não; em muitas cabanas de pescadores.
Sabias que aquilo não podia durar para sempre e que viria o dia em que terias de voltar
a Cabo Verde. Percorreste a costa algarvia nos braços desse homem. A bem dizer ele

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não fazia nada. Era um daqueles pré-reformados que abundam em Portugal, na casa dos
cinquenta anos de idade, pele curtida pelo sol, barriguinha a sair das calças, sempre com
uma cerveja na mão e um prato de caracóis em cima da mesa. O desgraçado passava o
tempo a beber e a comer mas tinha uma pedalada do caneco para o sexo! Levava-te para
uma cabana de pescadores, uma simples barraca de madeira com o telhado de lata, chão
de terra, sem janelas, apenas uma porta de madeira mal amanhada, a poucos metros do
areal, e fodia, fodia até rebentar de cansaço. A quantidade de barracas de madeira e
telhado de lata que há pela costa de Portugal! Não fizeste amor dentro delas todas, mas,
ainda assim, enfiaste-te numa boa dúzia delas. Onde é que o algarvio ia buscar
autorização para entrar naquelas barracas nunca chegaste a saber! Será que havia um
código secreto entre todos aqueles pré-reformados que se refugiaram no Algarve, que
dava autorização a uns e outros para usarem as barracas para esse fim? Uma vez
perguntaste ao algarvio, meio a sério, meio a brincar, quem é que lhe dava autorização
para entrar nas barracas e ele respondeu, com um sorriso nos lábios, que era membro de
uma associação secreta de homens de meia-idade que passavam o tempo a fornicar
mulheres desamparadas. De meia-idade? Largaste uma gargalhada e chamaste-lhe porco
velhadas. Quando te despediste do algarvio, não ficaste saudosa. Voltaste a Cabo Verde
disposta a não mais regressar a Portugal. Querias esquecer o Pedro, encontrar um
homem livre e ter um filho. Foi então que apareceu o Arturo. Não tinhas notícias do
Pedro havia quase dois anos e, valha a verdade, estavas convencida de que nunca mais o
ias encontrar. O Arturo foi o único homem que soube cuidar de ti. O único que não se
foi embora. Quando o convidaste para almoçar em tua casa, não conhecias ainda as
qualidades dele. Ele ficou entusiasmado com os teus dotes culinários e tu gostaste de o
ver a comer com satisfação e deleite. Depois da sobremesa, um doce de papaia como só
tu sabes fazer, ele deitou-se contigo no sofá e fizeram amor. Casaste com ele numa
cerimónia simples e acompanhaste-o em muitos projectos, em países tão distantes como
Moçambique e Guiné-Conacri, e foi ele que te deu o que nunca antes tiveste: uma casa,
uma casa tua, na melhor zona da Cidade da Praia, uma vida desafogada e um filho, o
bebé que há muito procuravas ter e não podias porque nenhum dos homens que amaste
antes te parecia suficientemente seguro. Pouco depois de engravidares, um antigo
colega dos TACV trouxe-te uma carta com o carimbo de Portugal. O teu coração pulou
de excitação, de medo e de esperança. Há vários nãos que não tinhas notícias do Pedro.
Ligaste, naquela mesma tarde, para o número do telemóvel do Pedro. Ouviste-lhe a voz
e tudo recomeçou. O amor, que estava adormecido, cresceu, de novo, dentro de ti. A
tranquilidade, que há muito tinhas conquistado, cedeu o lugar à inquietação. Assim que
o Arturo viajou para fora de Cabo Verde, tu tiveste a primeira visita do Pedro. Viveste
com ele, na casa que o Arturo comprou para ti, amaste-o com todas as tuas forças, e
continuaste a esperar por ele quando te despediste na sala de embarque do Aeroporto da
Cidade da Praia. Daí para a frente, passaste a chamar-lhe de “amor grande”. O Arturo
passou a ser apenas o teu “amorzão”. O Pedro incendiava o teu corpo e enchia a tua
alma. O Arturo dava-te a segurança e a tranquilidade. Fazia-te rir com as macaquices
dele. Sabias que era errado entregares-te aos dois, mas a tua cabeça pedia uma coisa e o
teu coração exigia outra. Obedeceste às ordens do teu coração.

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QUINZE

Era a primeira vez que a Suzi saía de Cabo Verde. Quando o avião se imobilizou
numa pista do aeroporto de Lisboa, ela suspirou de alívio e imitou os outros
passageiros, batendo palmas. Percorreu os corredores do aeroporto de Lisboa atrás dos
seus desconhecidos companheiros de viagem e parou junto ao carrocel das bagagens.
Recolheu a mala e seguiu pelo corredor em direcção à saída. Pôs-se na fila dos
passageiros de fora da União Europeia e entregou o passaporte a um homem, de
uniforme azul. O funcionário examinou o passaporte, deteve-se no visto, olhou, com
cuidado, para a cara dela, sorriu, devolveu-lhe o passaporte e disse para ela avançar. Ela
agradeceu e encaminhou-se para a saída. Tinha receio de que o português não a
esperasse. Estivera com o Joaquim apenas uma vez, em casa da Melissa, há um ano
atrás e, a partir daí, tivera com ele breves contactos através da Internet. Durante as três
horas e meia de voo, tentou definir a relação que estabelecera com o Joaquim, mas não
fora capaz de encontrar uma palavra que a caracterizasse. Não eram namorados, muito
menos noivos e não havia nada que tornasse aquela relação minimamente segura. Ela
via nele protecção e segurança, pelo menos nos primeiros tempos de vida em Lisboa.
Agradava-lhe o facto de ele ser um homem de meia-idade, com dinheiro e posição
social, alguém a quem ela podia recorrer em caso de aflição. Estava disposta a investir
naquela relação e não queria ser vista como uma rapariga a quem ele recorria apenas
para despejar os tomates. Nunca lhe perguntara se ele era casado, embora suspeitasse
que fosse, porque ele nunca se referira ao assunto. No último e-mail que recebera do
Joaquim, ele dizia que lhe arranjara um pequeno apartamento com cozinha e quarto, não
muito distante da universidade. Isso bastava para ela se sentir feliz. Estava prestes a
realizar o seu sonho, o objectivo de tantas raparigas da idade dela: deixar as ilhas e vir
para a Europa.
Quando ela deixou o corredor comprido que dava acesso ao grande átrio das
chegadas, viu um homem, de baixa estatura, cabelos claros, cara triangular e nariz
comprido, que sorria e acenava com a mão. É ele!, pensou. Ela gritou:
-Joaquim! Oh, Joaquim! – Correu para ele, de braços abertos.
-Suzi! Por fim, em Lisboa! – exclamou ele, abraçando-a.
-Altamente baril! – disse ela.
Saíram do átrio das chegadas, de mãos dadas, sem receio de serem vistos, e
correram para o parque de estacionamento. Entraram no Honda Civic. Protegidos pela
escuridão do parque de estacionamento, beijaram-se. Depois, o Joaquim pôs o motor do
carro a trabalhar e partiram em direcção ao Campo Grande. Quando avistaram o estádio
do Sporting, o Joaquim apontou para a direita e disse que era ali que iam jantar. O carro
guinou e enfiou-se no parque de estacionamento do edifício. Ele perguntou o que é que
ela queria comer e ela respondeu:
-Uma piza. Seria altamente!
-Uma piza? – perguntou o Joaquim, admirado.
-Sim, há meses que não como uma piza.
Depois de jantarem, o Joaquim levou-a ao cinema. Era quase meia-noite quando
voltaram a entrar no carro.
-Para onde me levas? – perguntou ela.

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-Para o teu apartamento.
-Oh, que baril!
O carro atravessou as ruas quase desertas da cidade, com a Suzi de nariz de fora
da janela.
-Lisboa é linda!
-Amanhã, vais vê-la de dia.
O Honda deixou Lisboa para trás e atravessou a ponte 25 de Abril com a Suzi de
olhos arregalados sobre as luzes da cidade, o porto, as docas e a margem sul, que vinha
ao encontro deles.
O Joaquim estacionou o carro em frente de um prédio de sete pisos e disse:
-É aqui!
Subiram no elevador até ao segundo piso e, quando chegaram à porta, ele deu-
lhe a chave para a mão e disse:
-É este o teu apartamento! Abre a porta! – Ela abriu a porta e ele entrou atrás
dela.
O apartamento não tinha mais do que setenta metros quadrados, mas a cozinha
estava bem equipada e o quarto de banho era funcional e bonito. Entre a cozinha e o
quarto de banho, havia uma divisão ampla, que servia de quarto, escritório e sala de
estar. As paredes estavam pintadas de branco e o chão era de madeira clara. A janela
ainda não tinha cortinados, mas a sala dispunha de cama, roupeiro e secretária. A
rapariga percorreu a sala de nariz no ar e, sorrindo, disse para o Joaquim:
-Compraste isto tudo para mim? Que altamente!
-Quer dizer, o apartamento não foi comprado, foi alugado, mas o que está cá
dentro fui eu que comprei, sim senhor. – Ela abraçou-o e beijou-lhe a boca. – Não tens
de te preocupar com nada, nem com o pagamento da electricidade, nem com o gás ou
com a água.
-És um anjo!- disse a rapariga, beijando-o, de novo, na boca.
-Não queres tomar um banho? – perguntou ele, acercando-se do quarto de
banho.
-Quero, pois! – Fez uma pausa e correu para o quarto de banho. - Tomamos os
dois?
-Sim, os dois! Há meses que esperava por este momento!
-Eu também, meu querido.
Despiram-se e deitaram-se na banheira, cada um para o seu lado, ela com as
pernas afastadas e ele com as pernas juntas, metidas entre as dela.
-És muito linda!
-Achas? Não achas que tenho a pele demasiado escura?
-Escura? A tua pele excita! – respondeu o Joaquim, continuando a ensaboá-la
vagarosamente.
-Tenho os seios pequeninos. – Ela meteu a mão direita no seio esquerdo e ficou
a examiná-lo. – Gostava de as ter maiores.
-Assim, são lindas. Cabem na palma da mão. – Ele acariciou-lhe os seios.
Quando a água começou a arrefecer, saíram da banheira e ela pediu-lhe para ele
se voltar de costas.
-Quero enxugar a tua pele! – Pegou na toalha e embrulhou nela o corpo do
Joaquim. – Depois, vou untar o teu corpo com óleo e dar-te massagens. Gostas de
massagens?
-Adoro! Como tu és doce!

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O Joaquim caminhou, atrás dela, para o quarto e deitou-se, na cama, de barriga
para baixo. Ela sentou-se sobre as ancas dele e derramou um frasco de óleo nos braços,
ombros e costas.
-É bom?
-Delicioso! Continua…
-Mais abaixo?
-Em todo o lado. De frente também.
Pousou os lábios no peito dele e mordeu. Ele gritou de dor.
-Não gostas, não?
-É bom demais!
-Gosto de morder e de ser mordida, sabes?
-Eu também. Uh! É altamente! Muito baril!
-Aguentas? – Ela levou a boca no pescoço dele e mordeu forte. – Posso deixar
marcas? Posso?
-É melhor não!
-Então, eu mordo com doçura. – Ela deslizou a boca pelo peito dele e mordeu os
mamilos. – Posso, aqui? – Apontou mais para baixo.
-Aí, não.
-Tens medo que te morda aqui? – perguntou ela, agarrando-lhe o sexo com as
duas mãos. – Ele franziu as sobrancelhas. - Está bem, eu não mordo. Mas posso beijar,
não é?
-Isso, isso, beija.

Joaquim chegou a casa de madrugada. Entrou no quarto de banho, despiu-se e


abriu o chuveiro. Deixou correr a água durante alguns segundos. Esticou a mão para ver
se a água estava quente. Entrou no poliban, inclinou a cabeça e deixou a água quente
escorrer-lhe pelo corpo. Ensaboou-se. Queria anular o cheiro a perfume barato.
Esfregou as nádegas, o peito e as pernas com força. Ouviu passos no corredor. Seria a
mulher? Sim, era a mulher. Ela abriu a porta do quarto de banho e estacou, olhando para
ele. Ele sorriu. A cara da mulher estava envolta numa névoa acinzentada mas o Arturo
conseguiu ver que ela respondera ao seu sorriso com outro sorriso. Ela estava nua.
Parecia mais jovem, envolta numa espécie de bruma. Ela deu um passo em frente,
pegou na toalha e enrolou-a ao corpo do marido. Joaquim beijou-lhe a boca.
-Vieste tão tarde, amor! – disse ela, curvando-se para lhe enxugar as pernas.
-A reunião acabou mais tarde do que eu estava espera – mentiu o Joaquim. –
Estás linda! – Meteu as mãos debaixo dos ombros dela e puxou-a para si. – Que boca
linda!
-Eu não me importo que tu fodas com outras! – disse ela. – Sorriu e enroscou a
cabeça no ombro dele. – Desde que não ames outra mulher. – O Joaquim afagou-lhe os
cabelos e guardou silêncio. – O que é que tem dar umas fodas numa galdéria qualquer!
Quer dizer, desde que uses camisinha, estás a ver? Se isso te faz feliz, que mal tem isso?
-Quando eu foder com outra, queres que eu te diga?
-Para quê? Fode e pronto! Só quero que a esqueças, mais nada! – Ela levantou a
cabeça e beijou-lhe a boca. – Eu quero é que tu sejas feliz!
-És uma mulher de cinco estrelas!
-Só quero ser a mulher que tu amas, sabes? – Ele sorriu e não disse nada. –
Amas, não amas?
-Amo, sim! Como é que não poderia amar uma mulher como tu! Uma mulher
tão doce!

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-Vamos deitar, sim? – Ela empurrou-o para fora do quarto de banho e ele meteu-
lhe um braço por debaixo das nádegas e outro por cima dos ombros e transportou-a até
ao quarto. – Quero que me fodas! – disse ela.
-Agora? – perguntou ele, deitando-a sobre a cama. – Ela abriu as pernas, esticou
os braços e começou a chamá-lo com as mãos. – Queres mesmo foder agora? Não é
tarde?
-Desde quando é que é tarde para foder? – Largou uma gargalhada. – Anda daí!
Dá-mo!
Joaquim encaixou o corpo entre as pernas dela e afundou a boca naquelas coxas
brancas e grossas. Gostava de ver o sexo dela a abrir-se lentamente, como se fosse uma
flor do deserto em contacto com o orvalho da manhã.
-Fode-me, meu amor!

Fizeram amor como dois adolescentes. Ela adormeceu com as pernas sobre as
nádegas dele e Joaquim foi tomado por uma insónia que o manteve acordado até de
madrugada. Comparou o corpo da mulher com o corpo da jovem que acabara de deixar
naquele apartamento alugado de Almada e concluiu que, apesar de a Suzi ter um corpo
de adolescente, a mulher ganhava-lhe aos pontos em doçura e em sabedoria. Seria capaz
de trocar a mulher por uma rapariga da idade das suas filhas? A ideia parecia-lhe
despropositada. É certo que o Joaquim gostava de fazer amor com uma mulher mais
nova, mas a dependência que sentia em relação ao corpo e às palavras da mãe das suas
filhas tornava impossível essa imaginária troca. Com as outras mulheres, ele gostava de
passar um bom bocado, uma noite no máximo; com a sua mulher ele gostava de passar
uma vida. Gostava da maneira como ela cuidava dele, da forma como se deixava amar e
da doçura com que se entregava.
Quando adormeceu, o Joaquim chegara à conclusão que, desta vez, tinha ido
longe de mais! Alugar um apartamento e mobilá-lo só para dar umas fodas numa
galderiazinha da idade das suas filhas? Além de arriscado, era insensato. Mulheres
jovens e boas havia por aí aos montes, dispostas a entregarem-se sem pedirem nada em
troca! Tinha de dar um jeito naquilo! E dar um jeito significava travar a fundo naquele
relacionamento!

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DEZASSEIS

Os motores do Airbus rugiram, impelindo o avião para cima com uma força que
colou os passageiros aos assentos. Arturo olhou pela minúscula janela à sua esquerda e
viu a cidade de Bissau desaparecer atrás do avião. Tinha pela frente oito horas de voo.
Habituado a longas viagens de avião, adormeceu passados minutos. Fez uma paragem
em Dakar e outra em Paris. Amanhecia quando o avião começou a perder altitude e a
paisagem árida de Israel despontou por debaixo das nuvens que se desfaziam em fiapos
levados pelo vento. O rugido do motor aumentou de intensidade e volume e Arturo
sentiu as rodas do avião a tocarem no asfalto. Passados breves minutos, o avião
imobilizou-se e uma voz feminina disse, em inglês, francês e hebreu, para os
passageiros se manterem sentados e com os cintos apertados. Arturo estava impaciente
para deixar o avião. Como trazia apenas um saco de mão, não precisava de parar para
recolher a bagagem. Por fim, a mesma voz feminina anunciou que os passageiros
podiam desapertar o cinto de segurança e deixar o avião. Arturo foi o primeiro a
levantar-se. Saiu do avião e entrou directamente numa longa manga que o conduziu ao
interior de um enorme edifício com uma cúpula de metal e vidro. Era a primeira vez que
punha os pés em Israel, mas como estava habituado à sinalética dos aeroportos, foi-lhe
fácil encontrar o caminho de saída. Tomou a fila dos cidadãos estrangeiros e sujeitou-se
a uma demorada inspecção, que incluiu perguntas e passagem por um detector de
metais. Quando se libertou do último controlo, reconheceu a irmã, que lhe acenava com
a mão, no meio de outras pessoas, que esperavam familiares e amigos. Abraçou-a e
beijou-a. Com os olhos rasos de lágrimas, pediu-lhe desculpa. Ela encolheu os ombros,
quis falar mas as palavras morreram-lhe na garganta. Ele voltou a pedir-lhe perdão e ela
começou a soluçar convulsivamente.
-Não há palavras para exprimir a raiva que eu sinto – disse ele.
-Porquê ele? – perguntou a irmã. – Por que razão tinha de ser a minha filha!
-Fui eu o culpado desta tragédia. Abandonei-o quando ele mais precisava de
mim.
-O que ele fez não tem perdão!
-Um pai não pode deixar de perdoar um filho – disse o Arturo.
-Não me peças que lhe perdoe. – Fez uma pausa e olhou para ele com gravidade.
– Traiu as raízes dele, deixou-se levar pelo ódio e é tão culpado pela morte da minha
filha como o outro terrorista que se fez explodir.
-Ele é teu sobrinho, sangue do teu sangue, precisa a tua ajuda!
-Como te atreves a pedir-me que o ajude?
-Não conheço ninguém aqui e ele também não. Não peço que lhe perdoes apenas
que me ajudes a encontrar um bom advogado.
-Estou aqui porque és meu irmão. Não estou aqui por ele!

53
-Ajuda-me a encontrar um bom advogado.
-Parece-me que estás a pedir demais. Estás a falar com uma mãe que acabou de
perder a filha, nas circunstâncias que ambos conhecemos. – Fez uma pausa. - Vamos
apanhar um táxi! – Ela limpou as lágrimas com um lenço e apressou o passo em
direcção à saída.
Ao chegar à ampla praça de táxis, já no exterior do edifício das chegadas
internacionais, Arturo sentiu um bafo quente beijar-lhe as faces e teve dificuldade em
manter os olhos abertos devido à intensa luz solar. Piscou os olhos, esfregou-os com a
mão e, a pouco e pouco, habituou-se à luminosidade. Entraram os dois num táxi e a
irmã dele sussurrou, em hebreu, a morada.
Entraram no átrio de um edifício de dez pisos, com a fachada de vidro, e
submeteram-se a um controlo de rotina. Primeiro, pediram-lhes para eles porem de lado
todos os objectos metálicos sobre uma passadeira rolante. Depois, o guarda disse para
eles abrirem as pernas e os braços e se sujeitarem ao detector de metais. Por último, um
segurança fez-lhes uma revista manual. Ultrapassado o controlo de entrada no edifício,
subiram no elevador e saíram no quinto piso. A irmã disse-lhe que o Governo colocara à
disposição dela, um apartamento mobilado, em Telavive, para ela usufruir de
acompanhamento médico e psicológico, logo após a tragédia provocada pelo atentado
terrorista, de forma a poder beneficiar da ajuda dos melhores profissionais de Israel. Em
Telavive, ela podia ultrapassar, mais facilmente, a perda da filha, em contacto com
outras mães que haviam perdido os filhos em incidentes semelhantes. O regresso ao
colonato, onde ela vivia sozinha, desde a morte do marido, far-se-ia apenas quando ela
fosse capaz de ultrapassar os traumas causados pela morte da filha. De momento, era-
lhe impossível pensar na possibilidade de viver, sozinha, numa casa que estava repleta
de lembranças da filha desaparecida. A outra filha viajou, à pressa de Nova Iorque, para
assistir ao funeral da irmã e regressou aos Estados Unidos da América quatro dias
depois.

54
DEZASSETE

O Joaquim entrou no apartamento disposto a pôr um travão naquela relação com


a Suzi. Não sabia onde estava com a cabeça quando alugou o apartamento para a
rapariga, dispondo-se a pagar-lhe a electricidade, o gás e a água. Ao longo da sua vida,
estivera vezes sem conta naquela situação. Ao princípio, parecia destemido, ia em
frente, era capaz de fazer qualquer coisa para atrair uma mulher. Passado algum tempo,
aquela paixão começava a esfriar, levava a mão à cabeça e dizia para si próprio que
tinha ido longe de mais. Era incapaz de deixar de andar com outras mulheres, mas a
ideia de um compromisso sério com outra, um compromisso que fizesse perigar o
casamento dele, era-lhe simplesmente insuportável. Tinha uma vida boa. Duas filhas
encantadoras. Uma mulher disposta a perdoar-lhe todas as infidelidades. Um bom
emprego. Que mais poderia desejar? Durante a noite anterior, desenhou uma estratégia e
estava disposto a pô-la em prática. Diria à Suzi que se precipitara. Dar-lhe-ia um mês
para arranjar um quarto. Estava disposto a pagar-lhe os primeiros meses da renda. Vê-
la-ia de vez em quando, mas não com a regularidade que ela desejava. Estava disposto a
colocar os pontos nos is: ela era livre para arranjar outro homem. Ele desejava-a, queria
fazer amor com ela, mas não a amava.
Ela recebeu-o com aqueles calções curtos que o deixavam desarmado, incapaz
de pronunciar uma palavra. Tinha umas pernas altas, escuras e sinuosas. Um top
minúsculo tapava-lhe os seios, descobrindo-lhe a barriga lisa, com um umbigo perfeito
e uma penugem loura a perder-se por debaixo do cinto de cabedal. Os seios dela subiam
e desciam, acompanhando o movimento do coração. Reparou na boca grossa da rapariga
e nos olhos brilhantes, deliciosamente rasgados. Começou por dizer-lhe que tinha ido
longe de mais, que estava com medo que a mulher descobrisse, que tinham de arranjar
outra solução. A rapariga parecia não querer acreditar no que ouvia. Os olhos dela
ficarem rasos de lágrimas. Cerrou os punhos e franziu o sobrolho. Depois, perguntou:
-O que é que te fiz para mudares de ideias?
Surpreendido com a pergunta, Joaquim guardou silêncio. Uma expressão
preocupada ensombrou o seu rosto. Ele não lhe prometera casamento. Apenas dissera
que a ia ajudar e estava a cumprir, escrupulosamente, a promessa. Arranjou-lhe
apartamento e pagava-lhe a renda, telefone, gás e electricidade. Tinha ido longe demais.
Agora, propunha-lhe uma solução menos perigosa, mais segura: pagar-lhe-ia o aluguer
de um quarto durante alguns meses.
Ela voltou à carga:
-Responde, porra! O que é que fiz?
Ele deu dois passos em frente e parou junto da janela. À sua frente, o rio Tejo
confundia-se com o mar. Lisboa repousava, ao fundo, imperturbável, como se fosse um
postal ilustrado. De costas para a Suzi, ele disse:
-Não fizeste nada! O problema não és tu; o problema sou eu!
-Mas porquê? Estávamos tão altamente!
-Não sei.
-Já te cansaste de mim? – Ele não respondeu. Continuou de costas voltadas. –
Porra! Fala!
Joaquim voltou-se para ela e disse:

55
-Estás a ser ingrata! Fará assim tanta diferença trocares esta casa por um quarto
em Lisboa? – Levantou o braço direito e apontou para fora. - Não vês que não tenho
condições para tu continuares aqui?
-O que estás a dizer-me é que sou uma mulher por conta, uma putazeca ao teu
dispor, a quem dás uns presentes para me poderes foder quando te dá na real gana! –
Bateu-lhe com os punhos no peito.
-Se queres pôr as coisas nesses termos, então, é isso – disse ele, imperturbável.
-Então, está bem! Vou comportar-me como aquilo que sou.
-Seja como tu quiseres! – disse o Joaquim, encaminhando-se, apressadamente,
para a saída.
Ela correu atrás dele e agarrou-lhe os braços.
-Não penses que desapareces assim, sem uma explicação! – gritou.
-Eu não vou desaparecer. Apenas preciso de pensar.
-Estás farto de mim, não é? Já não tenho novidades para te dar! Pois fica a saber
que és um fraco! Um merdas! Um milhão de vezes mais baril!
Ele libertou-se os braços das mãos dela e disse:
-Se é isso que tu achas, então não temos mais nada a dizer um ao outro!
-Ai, isso é que temos! Sabes que mais? És um banana na cama! Um mole! Até o
italiano era melhor do que tu!
Arturo abriu a porta do apartamento e fugiu para a rua.
Lá fora, corria um ar fresco. O vento empurrava as nuvens em direcção ao mar.
Entrou no carro e tomou o caminho da ponte 25 de Abril. Precisava de sair dali, ganhar
tempo para pensar. Chegara a altura de fazer um balanço da sua vida. Olhou-se ao
espelho do retrovisor do carro e viu um rosto de velho. Pela primeira vez, sentiu que era
um velho ridículo, um ancião que queria fazer-se passar por jovem, nos braços de uma
rapariga da idade das suas filhas. Que diria ele, se soubesse que um homem da sua idade
andava com uma das suas filhas? Começaria por sentir nojo. Depois, diria que estava
perante um velho patético. Velho patético, era o que ele era. Estava a representar a velha
cena do cinquentão que, com medo de perder a virilidade, partia à conquista de
mulheres novas, querendo, dessa forma, provar a sua vitalidade.
Regressou a casa com o sol a deitar-se no dorso do mar. A mulher esperava-o
para o jantar. Notando-lhe um ar de preocupação, ela perguntou:
-Querido, o que se passa contigo? Há uns dias para cá que andas com uma
sombra no rosto!
Uma sombra no rosto? Como ela o conhecia bem!, pensou. Não é fácil
abandonar uma mulher que lê o pensamento do seu homem. Trinta e cinco anos de vida
em comum, milhares de histórias partilhadas, quantas aflições e alegrias! Joaquim
deitou-se no sofá e disse à mulher que não tinha fome. Fechou os olhos e fingiu que
dormia. Passou em revista os marcos mais significativos dos últimos trinta anos. A
compra da primeira casa, o nascimento das gémeas, a morte dos pais dele, a doença dele
há dez anos atrás, a forma diligente e carinhosa como ela o acompanhou antes e depois
da cirurgia ao coração, as viagens ao Egipto, ao México e ao Vietname, a entrada das
gémeas na universidade e tantas outras coisas que ele registara em centenas de
fotografias, diligentemente arquivadas numa dezena de álbuns, que ela andava a
digitalizar para poder guardar em CDs. Estava decidido a pôr um ponto final na sua
relação com a Suzi. Não a iria ver mais!
Sentiu a mulher a aproximar-se dele, abriu os olhos e viu a mão dela, uma mão
que ele conhecia bem, a cair-lhe suavemente sobre os cabelos. Ela ajoelhou-se e curvou
o corpo sobre ele. Ofereceu-lhe a boca. Ele beijou-a.
-O que tens, amor? – perguntou ela.

56
-Estou triste!
-Conta-me o que te apoquenta.
-Não podes ajudar.
-Porquê?
-Cheguei a um ponto da minha vida em que tudo me parece aborrecido. Nada me
entusiasma.
-Nem as tuas filhas? As nossas gémeas?
-Nada me entusiasma. Parece que já não há nada de novo na minha vida.
-Devíamos ter tido outro filho. Lembras-te quando eu te pedi e tu disseste que
não tinhas paciências para mais um bebé?
-Como estou arrependido. Como lamento ter-te dito para abortares.
-Era um rapaz, lembras-te?
-Não me fales disso que me magoas.
-Agora, é tarde.
-Temos de viver com aquela imagem, a imagem de um pequeno corpo, coberto
de sangue, nas mãos do médico, umas mãos papudas a deitarem aquele corpo num
caixote do lixo.
-Não sejas cruel, amor. – Ela deixou cair os braços sobre as pernas como se
fossem dois galhos secos. – Como eu me arrependo!
-Teria agora dez anos!

57
DEZOITO

Arturo não podia ter escolhido pior altura para ir a Israel. No exacto momento
em que ele deixava Bissau, o pequeno Miguel adoecia. Melissa passou o dia a tirar a
febre ao bebé e, quando o termómetro chegou aos 39 gruas, pegou na criança e levou-a
às urgências do hospital. Embora a criança estivesse a arder em febre, foi-lhe barrado o
caminho por um homem alto e magro, que se colocou em frente da porta e disse para ela
esperar na fila.
-Como é que eu vou esperar na fila com um bebé a arder em febre? – gritou,
empurrando o homem.
-Não ouviu o que eu disse? – O segurança gesticulava.
Melissa baixou a cabeça e furou por baixo do braço direito do homem. Correu
pelo corredor com o homem atrás dela e entrou de rompante num gabinete médico que
tinha a porta aberta.
-Agarrem essa mulher! – gritou o homem.
-O que é que se passa? – perguntou a médica, levantando os olhos de um maço
de papéis.
-Doutora, o meu bebé está muito doente! – respondeu Melissa, colocando o bebé
sobre a secretária da médica.
-Doutora, essa mulher entrou sem licença! – gritou o segurança.
-Calma, calma! – ordenou a médica. – Deixe-me ver a criança.
A médica examinou o bebé, concentrando a sua atenção nos olhos e na boca.
-Tem 39 de febre! – disse a Melissa.
-De ser uma otite. A criança não está nada bem! – A médica fez uma pausa e, de
seguida, dirigindo-se ao segurança, perguntou – E você, o que é que está para aí a fazer
especado? – O segurança rodou os calcanhares e desapareceu no corredor.

Quando Melissa chegou a casa, depois de aviar a receita numa farmácia do


Plateau, tocou o telefone.
-Dona Melissa?
-Suzi? Tudo bem?
-Não! Tudo mal! – A Suzi fez uma pausa. – O sacana do português abalou.
-Foi-se embora? Deixou-te sozinha?
-Sim. Veio cá ontem com uma conversinha de merda. – Fez uma pausa. – Sabe
como é, deu-lhe para ter medo da mulher! Que era perigoso, que era isto, que era aquilo,
só esquisitices, está a entender? O filho da puta acabou por me dizer para eu me mudar
para um quarto alugado!
-Não tens para onde ir?
-Não. Não tenho aqui família.
-Mas o filho da puta alugou o quarto ou não?
-Qual quê? Foi-se embora, zangado comigo. Altamente, não acha! – exclamou,
soltando uma gargalhada seca.
-E agora?
-Vou voltar. Será que o italiano ainda me vai querer?
-Sei lá! Ele é doido por ti! É bem capaz!

58
-Preciso de dinheiro para comprar o bilhete de avião.
-E se pedisses ao italiano?
-Achas?
-Sim! Se ele não te pagar o bilhete, então eu mando-te o dinheiro.
-Está bem. Do baril!
-Liga para ele já! Ele que te compre o bilhete pela Internet. Diz-lhe que tens
saudades, pede-lhe desculpa, dá a entender que queres ficar com ele.
-Vou já fazer isso, Dona Melissa!
-Desta vez, agarra a oportunidade! Nunca achei que tivesses cabeça para os
estudos!
-Não estou a gostar nada de Portugal!
-Não?
-Nada mesmo!
-Que te sirva de emenda! Casa com o italiano!
-É o que vou fazer se ele ainda me quiser!
-Vai querer!
-Acha?
-Quando ele te vir, não resiste!
-Dona Melissa, mil vezes obrigado! Foi altamente falar consigo!
-Cuida de ti! Faz tudo direitinho como eu te disse!
-Beijinhos ao Miguel! Ele está baril, não está?
-Tem febre, coitadinho! Dá pena!
-Febre?
-Mas vai ficar bom! Já fui com ele à médica!
-As melhoras do menino, Dona Melissa!
-Obrigado! Juízo nessa cabeça!

Melissa marcou o número do telemóvel do Joaquim. Reconheceu a voz dele.


-Está? Quem fala?
-Melissa!
-Melissa? Que surpresa? Estás boa?
-Nem por isso! O Miguel está com febre e acabo agora de saber que abandonaste
a Suzi, assim sem mais nem menos!
-Melissa, não dava para aguentar mais!
-Sempre soubeste que ela era imatura! Parecias gostar da imaturidade dela, não
era?
-Eram exigências a mais! Não consegui suportar!
-Enquanto havia novidade, conseguiste suportar, não foi?
-Melissa, não desconverses! Meteu-se-lhe na cabeça que eu era obrigado a
sustentá-la!
-E não foi isso que lhe prometeste?
-Quer dizer…Eu pedi-lhe para ela se mudar para um quarto, em Lisboa, ao pé da
Universidade! Ela não quis!
-Foste um grande sacana!
-Não podia suportar mais a situação!
-Deste cabo da vida dela. Vai deixar de estudar. Regressa para a semana!
-Melhor para ela! O lugar dela é aí!
-És um filho da puta! – De repente a chamada caiu. O Joaquim tinha desligado.
Melissa meteu o telemóvel no bolso e sussurrou:
-Os homens são todos uns filhos da puta! Todos, não. O Arturo não é!

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DEZANOVE

Chegou, finalmente, a autorização para Arturo visitar o filho. Quando as


autoridades policiais souberam que o rapaz era meio judeu e que o pai era filho de uma
judia libertada de um campo de concentração nazi, passaram a olhar para Arturo de
maneira diferente. Como que por magia, as portas abriram-se. Bastou-lhe uma semana
para convencer as autoridades de que era justo tratarem o caso de uma forma especial.
Aquele caso era diferente dos outros. O rapaz, que estava preso numa penitenciária de
alta segurança, nos arredores de Telavive, não era um terrorista vulgar. Alguns jornais
publicaram artigos de página inteira sobre o estranho caso do rapaz judeu que queria
cometer um atentado suicida. Outros, um pouco mais rigorosos, referiam-se ao terrorista
islâmico, que era filho de pai judeu. Nas cadeias de televisão, psicólogos, antropólogos
e cientistas políticos dissecaram, durante semanas, que tipo de motivação levara aquele
rapaz a querer fazer-se explodir num país que dera abrigo a milhões de judeus como ele.
O que falhara na educação do rapaz para se ter entregue nas mãos de radicais islâmicos
que odiavam tudo aquilo que era valorizado pela tradição judaica?

Depois de revistado e de ter passado pelo detector de metais, um guarda alto e


gordo, de cabelos ruivos, cabeça enterrada nos ombros e pernas arqueadas, disse a
Arturo que o filho o esperava na sala doze do segundo piso. Arturo subiu as escadas
atrás do guarda. As mãos tremiam-lhe e pequenas gotas de suor formaram-se junto às
sobrancelhas. Como é que Rafaelo o ia receber? Passara a noite a ensaiar perguntas e
respostas e agora, que estava prestes a ver o filho, não se lembrava de nada do que
prometera dizer-lhe.
-Espere aqui por um colega meu! – disse o guarda, voltando-lhe as costas.
Arturo esperou de pé ao fundo de um corredor. Qual seria a porta que lhe daria
acesso à sala onde o filho o esperava? O corredor era comprido e estreito. Arturo contou
cinco portas que davam acesso a outras tantas salas.
-É o senhor Arturo? – perguntou um homem de uniforme, que falava em hebreu
com sotaque russo. - O homem estendeu a mão para Arturo.
-Sou sim – respondeu, apertando-lhe a mão.
-Vladimir! Gostaria de o ter conhecido em circunstâncias diferentes!
-Eu também, eu também!
O homem colocou o polegar num dispositivo electrónico, ao lado da porta, e esta
abriu-se. Arturo viu o filho, algemado nos pés e nas mãos, sentado, junto de uma janela
com grades de ferro. A janela dava para um pátio onde vários prisioneiros jogavam à
bola.
-Meu filho! Meu filho! – gritou Arturo de braços levantados para o rapaz.
Rafaelo não se mexeu.
Arturo abraçou o filho e beijou-lhe a testa. Rafaelo permaneceu quieto, mas os
olhos ficaram rasos de lágrimas.
Arturo queria falar mas as palavras morriam-lhe na garganta. Ficou em silêncio,
abraçado ao filho, durante alguns minutos.

60
-Estão a tratar-te bem? – perguntou. – Não obteve resposta. – Bateram-te? –
insistiu.
O rapaz disse que não com a cabeça.
-Tem meia hora. Aconselho-o a não perder tempo – disse o guarda. - Deve ter
coisas importantes a falar com ele sobre o julgamento.
Arturo assentiu com a cabeça.
-Meu querido filho, não desesperes. Eu vou tirar-te daqui.
-Eu já morri – interrompeu.
-Deixa-me falar. Ouve apenas. A única maneira de saíres daqui é mostrares
arrependimento. Diz-lhes que foste enganado, que eras muito jovem, que foste
manipulado. – O rapaz baixou a cabeça e esfregou os olhos com as mãos. – Não te
esqueças de que és judeu. Aproveita este tempo para aprender hebreu. Trago-te estes
livros. – Arturo colocou sobre os joelhos do rapaz uma gramática e um dicionário de
hebreu. – Arranjei-te dois advogados, dois israelitas que falam francês. Eles vão ajudar-
te. Só peço que faças tudo aquilo que eles te pedirem para fazeres. Confia neles. Confia
em mim. Corta essa barba, sim? Se seguires os meus conselhos, não vais apanhar mais
do que cinco anos de prisão. Serás levado para uma prisão onde só há israelitas. Terás
direito a visitas frequentes. Poderás retomar os estudos.
-E quem é que virá visitar-me? – perguntou o rapaz, levantando a cabeça e
olhando o pai nos olhos. – A minha mãe não virá, com toda a certeza! É árabe!
Muçulmana! E tu? Tu voltarás para os braços daquela negrinha e daquele teu filho! E eu
ficarei aqui, sozinho, a apodrecer!
-Não sejas injusto! Virei eu! Por enquanto, não te posso prometer nada. Estive a
pensar… - Arturo fez uma pausa. - …A pensar em vir para aqui viver!
O rapaz deixou cair uma lágrima. Naquele instante, Arturo sentiu que o filho
estava de volta. Passaram-lhe pelo cérebro recordações havia muito esquecidas: o dia
em que viu o filho dar os primeiros passos, em que lhe ouviu as primeiras palavras, as
tardes que passaram juntos a pescar, a viagem ao Kruger Park…
-Meu filho, peço-te perdão por ter sido tão mau pai! – Abraçou, de novo o filho
e sentiu a mão dele sobre a sua. – Meu querido filho, vamos recuperar o tempo que
perdemos!
-Vou tentar!
-Oh, meu filho! Vejo renascer a esperança.
-E a tia? Vai perdoar-me?
-A seu tempo, irá! É cedo ainda. Ela está muito ferida. – Fez uma pausa. -
Perdeu a filha.
-Pai, eu não sabia! Sabia lá que a minha prima estava de serviço naquele
colonato! Foi azar a mais! Correu tudo mal! Antes tivesse morrido eu. Acabava-se o
sofrimento.
- Por favor, filho, não fales mais disso. Esquece o que aconteceu. Não foste tu
que a mataste! Tu não mataste ninguém!
-Mas queria matar!
-Mas não mataste! Estás preso por outras razões. Não és um assassino! Poderias
ter sido mas não és!
-Pai, estou, de novo, sem raízes, sem saber quem sou, perdido numa solidão que
rói e mata.
-Tens-me a mim, filho! Dá-me algum tempo e, por favor, desta vez confia em
mim. Eu venho para Israel. Arranjarei emprego aqui, em Telavive, para poder visitar-te
todos os dias.
-Quando é o julgamento?

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-Ainda não está marcado. Disseram-me que se realizará dentro de seis meses.
-Quanto mais depressa melhor, pai!
-Tudo vai melhorar depois do julgamento. Vais poder ter visitas todos os dias.
-E vais trazer aquela mulher e aquele teu filho?
-Sim, filho. E tu vais aprender a amá-los.
-Não lhe posso dar mais tempo! – interrompeu o guarda, com voz grave.
Arturo olhou para o guarda e assentiu com a cabeça. Pegou nas mãos do filho e
beijou-lhe a testa.
-Meu querido filho, amanhã terás a visita dos advogados. Não percas a
esperança, sim? Corta essa barba, está bem? – Rafaelo assentiu com a cabeça.
Quando se dirigia para a porta de saída, olhou para trás e viu o filho a chorar. O
guarda fechou a porta e acompanhou Arturo até à saída do edifício.

62
VINTE

Estavas habituada a ser deixada para trás. Quando alguém que amavas era
obrigado a fazer escolhas, sabias que eras tu a sacrificada. Fora assim com os homens
que amaste. Ia ser também com Arturo. Quando ele te telefonou a dizer que tinha de
abandonar o projecto em Bissau e que estava disposto a vender a casa em Montpellier
para pagar aos advogados israelitas, tu tiveste vontade de o insultar. A custo,
conseguiste controlar-te. Disseste apenas que estavas habituada a levar pontapés no cu.
Ele ainda disse que tinha de fazer aquilo pelo filho e tu perguntaste-lhe:
-Qual filho?
Ele não percebeu a intenção da tua pergunta. Pediu-te desculpa e desligou.
Não chegaste a guardar o telemóvel no bolso. Marcaste o número do Pedro e
pediste-lhe para ele ir ter contigo, nem que fosse por apenas cinco dias. Ofereceste-lhe
para pagar o bilhete de avião.
-Quando queres que eu vá? – perguntou ele.
Tu respondeste:
-Amanhã!
-Já?
-Sim, mim é dôde na bó! – disse ela.
-O quê? O que é que estás a dizer?
-Que te amo.
No dia seguinte, foste esperá-lo ao aeroporto. Achaste-o mais velho. Pelo
caminho, disseste que o conhecias há quinze anos e que, cada vez que o vias, ele
renovava a promessa de ficar contigo. Tinhas perdido a conta às vezes que ele
antecipara datas, que tu sabias que iriam chegar sem que as promessas fossem
cumpridas.
Fizeste amor com ele no velho colchão que se encontrava no quarto de arrumos,
uma pequena assoalhada, mal iluminada e sem janelas, onde guardavas as coisas que já
não usavas. Ele beijou o teu corpo com ternura e disse-te palavras que só ele sabia dizer.
Depois de tomares um duche rápido, foste com ele a uma churrascaria. Era a segunda
vez que lá ias com o Pedro. Ele levou o bebé ao colo e o teu rosto resplandecia de
contentamento quando disseste ao taxista para parar. Foste a primeira a sair do táxi e a
primeira a sentar-se na esplanada do restaurante. Disseste à empregada, uma rapariga de
cabelos muito curtos, pescoço alto e olhos negros, muito grandes, que querias bifanas de
porco, grelhadas no carvão. Enquanto esperavas que a rapariga trouxesse as bifanas,
pousaste a mão direita sobre a mão esquerda do Pedro e ficaste, em silêncio, a olhar
para ele. Perguntaste:
-Por que razão não pode ser assim todos os dias? - Ele não respondeu. Olhou
para o lado, franziu o sobrolho e suspirou. – Seria tão fácil ficares aqui para sempre!
-Não há nada que eu possa fazer, por enquanto. O meu trabalho é lá, não aqui –
murmurou o Pedro, sem olhar para ela.
-Podias trabalhar aqui. Há tanto que fazer na área do turismo. Com a tua
experiência… - Ela fez uma pausa. – Ganharias aqui o dinheiro que quisesses.

63
-E as minhas filhas? – Levou a mão à cabeça e puxou os cabelos. - Como
poderia passar sem elas? Deixar de as ver!
-E eu? De mim não tens pena? Será que ninguém tem pena de mim?
-Aguenta mais um tempo.
-Mais ainda? Não é isso que eu tenho feito desde sempre? Esperar…Esperar…
-Tens de ser paciente!
-Passar dias e noites sozinha a recordar-te…
-Valia mais não me teres conhecido, não era?
-Sei lá! Já não sei nada! Só sei que sofro quando estás longe.
-Tens o italiano.
-Se ele fosses tu…
-Mas ele é bom para ti, não é?
-É um bom marido. O problema é que eu não o amo. É a ti que eu amo.
-Mas…
-Sou burra, não é? Continuar a amar-te depois do que fizeste!
De repente, o telefone tocou. A Melissa atendeu.
-Oi, amorzão! – Tapou o telefone com a mão e, mexendo os lábios, disse para o
Pedro que era o Arturo.
-Como está o macaquinho?
-Esse, está sempre bom. Anda pela casa, agarrado aos móveis, a brincar com
tudo o que encontra. Só gosta de fios, telefones e coisas assim. E tu, como estás?
-Já estive com o Rafaelo. Ele está arrependido. Tenho uma coisa para te dizer
que te vai aborrecer.
-Diz lá! Não me mates de curiosidade!
-Tenho de ficar aqui.
-Aí? Em Israel?
-É a única maneira de ajudar o Rafaelo.
-E perdes o projecto de Bissau?
-E quero que tu também venhas para aqui.
-Mas como?
-É fácil arranjar trabalho aqui. Vou pedir a naturalização. Esta vai ser a nossa
nova pátria.
-Assim, de repente?
-Mando-te e-mail mais logo a explicar tudo. Agora, não posso. Um beijo grande.
Adeus.
Arturo desligou o telefone sem lhe dar tempo para despedidas. Melissa ficou
pregada ao chão, sem palavras, a olhar para a cara do Pedro, que continuou sentado e
em silêncio.

64
VINTE E UM

Arturo escreveu a carta, a pedir a cessação da sua colaboração no projecto de


Bissau, com tristeza e com medo. Sabia que, a partir daquele momento, nunca mais
ganharia um projecto financiado pela União Europeia. Justificou a sua decisão com
motivos particulares, mas não quis especificar quais. Foi a uma estação de correios de
Telavive e registou a carta. Daí em diante, a sua vida nunca mais seria a mesma.
Decidira ficar em Israel, naturalizar-se israelita e procurar trabalho. Na véspera,
telefonara para um advogado amigo, de Montpellier, pedindo-lhe que tratasse da venda
da casa. Tinha pela frente muita coisa para fazer. Trazer a Melissa e o bebé para
Telavive, convencer a irmã a perdoar o sobrinho e – o maior de todos os trabalhos –
levar as autoridades judiciais israelitas a acreditarem no arrependimento do Rafaelo.
Nos dias seguintes, e a conselho dos advogados, iria desdobrar-se em entrevistas na
televisão e nos jornais, contando a sua história e a história dos pais, de modo a virar a
opinião pública a favor do filho, criando as condições para que o tribunal optasse por
uma pena reduzida e levasse em linha de conta as atenuantes e circunstâncias.

Chegou, finalmente, o dia da segunda visita ao Rafaelo. Arturo encontrou-o


triste e nervoso. Estava de pé junto à parede, de olhos postos na janela com grades.
-Filho! – disse Arturo, pousando a mão direita no ombro dele. – Rafaelo guardou
silêncio e permaneceu de olhos postos no átrio da prisão, onde alguns presos jogavam
basquetebol.
-Rafaelo! – insistiu o pai.
-Rafaelo ou Mohamed? – perguntou o rapaz, virando-se para o pai. – Já não sei
quem sou. Antes de teres chegado aqui, eu sabia que era o Mohamed, tinha um Deus,
Alá, e seguia os ensinamentos do Profeta, Maomé, agora já não sei mais nada. Pedes-me
para ser aquilo que não sou, como é que queres que eu me sinta?
-É para teu bem, filho! É a única maneira de encontrares uma saída para esta
situação.
-Mas eu sou muçulmano! Não me peças para fingir ser algo que eu aprendi a
odiar! – disse o rapaz batendo com as mãos nas pernas.
-Bolas, filho, custa assim tanto libertares-te desse ódio? É assim tão importante a
religião?
-É. Sem ela fico perdido. – Baixou a cabeça e enterrou o pescoço nos ombros. –
Perdido, completamente perdido.
-Talvez possas guardar isso tudo e também ser judeu. Talvez possas abraçar o
Corão e a Tora. – Fez uma pausa. – Tu és tudo isso porque és produto do encontro de
duas tradições, a islâmica e a judaica. Não deves renegar nenhuma!
-Mas como, pai? – Arturo sentiu um arrepio na coluna ao ouvir a palavra pai. –
Como é que posso reclamar as duas tradições se elas se combatem e se excluem há
tantos séculos? Como é que posso estar calado perante a ocupação da Palestina?
-Então, faz como eu fiz. Assume uma posição céptica, deixa de acreditar naquilo
que não pode ser provado pela Ciência. A Tora e o Corão são apenas livros escritos por

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homens, não são a palavra de Deus! Por que razão iria Deus interessar-se por nós, se os
humanos ocupam apenas escassos segundos do calendário do Universo? Estes cinco
biliões de humanos são um pequeníssimo grão de areia nessa praia sem fim que é o
Universo.
-Se deixarmos de ter fé, tudo fica sem sentido!
-E por que razão há-de haver um sentido para as coisas?
-Se não houver, a vida é absurdo!
-Filho, devias ler Espinosa, sabes, aquele filósofo judeu, que viveu no século
XVII, nos Países Baixos. Lê-lo, ajuda a relativizar as coisas, a perceber que nós, os
humanos, não temos assim tanta importância face à grandeza extrema do Universo!
-Pai, não estou com cabeça para discussões teológicas – disse o rapaz, voltando
as costas ao pai.
-Ocupemos, então, o tempo que nos resta com coisas mais práticas. – Deu dois
passos e voltou a estar de frente para o rapaz. - Olha, filho, a data do julgamento.
-Já há data?
-Sim, filho. Será em Setembro. Faltam apenas três meses.
-Três meses – repetiu o rapaz. – E haverá tempo para preparar a minha defesa?
-A tua defesa é dizeres a verdade. É o arrependimento.
-A verdade é que eu estava disposto a matar o maior número possível de judeus!
-Mas agora já não estás, não é? E isso é que tem importância. A verdade é que
foste enganado! Fizeram-te uma lavagem ao cérebro, filho!
-Não tenho assim tanta certeza!
-Olha, repara, já pensaste por que razão aquele Abdulah não foi convosco? O
natural seria ele ter-se juntado a ti e ao outro desgraçado que se fez explodir no café,
não achas? – Rafaelo disse que sim com a cabeça. Arturo continuou: - Sabes onde é que
ele está, filho? Vivo, vivinho, e em liberdade. E o teu amigo? E tu? O teu amigo está
morto e tu estás aqui!
-Mas isso não altera em nada o facto de eu ter querido matar o maior número
possível de judeus!
-Filho, deixa isso para lá! Por favor, aprende hebreu, corta essa barba, diz-te
arrependido e lê a Tora!
-Não sei se resulta, pai. Soube aqui que para ser considerado judeu é preciso ser
filho de mãe judia.
-O quê? – perguntou o pai, incrédulo.
-É isso! Sendo filho de mãe muçulmana, sou, à face das leis judaicas,
muçulmano.
-Quer dizer, e os teus avós, ambos judeus, não interessam para nada?
-Não!
-Nem o facto de a tua avó ter sido libertada de um campo de concentração?
-Talvez isso pese alguma coisa.
-Então, jogaremos com isso. Temos isso a nosso favor.
-Receio que não chegue, pai.
-Tem esperança.
O guarda, que acompanhou Arturo à sala da visita, anunciou, com voz grave,
que o tempo estava a terminar.
-Vai, pai, eu fico bem.
-Ah, deixa-me dizer-te…- Fez uma pausa e, com a voz embargada, continuou:
-A tua tia parece disposta a testemunhar a teu favor. Ficou muito contente por saber que
eu ficarei a viver em Israel.
-Mas ficas mesmo, pai? Isso é para valer?

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-Fico, filho. Não sairei daqui enquanto não fores, de novo, um homem livre.
-Olha que pode demorar muitos anos!
-Não mais do que cinco anos, podes crer.
O guarda disse que o tempo terminara e Arturo despediu-se do filho com um
beijo na face. Quando o guarda se preparava para fechar a porta, Arturo olhou para trás
e viu o filho a sorrir.

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VINTE E DOIS

Melissa largou o telefone e, com a voz embargada pela emoção, disse ao Pedro
que o final se aproximava. Ele não percebeu o que ela queria dizer e perguntou:
-O final de quê?
-O fim da indecisão e dos adiamentos – respondeu. – O Macaco fica em Israel e
quer que eu vá ter com ele. – Fez uma pausa, franziu o sobrolho e rematou: - É uma
viagem sem regresso. A não ser…
-A não ser o quê? – interrompeu o Pedro.
-A não ser que queiras ficar comigo. Já!
-Já?
-Ele quer que vá ter com ele muito em breve. Desistiu do projecto na Guiné
Bissau e fica a trabalhar em Israel. – Nova pausa. – Por causa do filho.
-O terrorista?
-Sim aquele estafermo de merda que veio ao mundo só para foder o pai.
-Estamos lixados!
-Ai, isso estamos! Com esta é que ele nos arrumou. O nosso futuro está nas tuas
mãos! Tens de fazer uma escolha!
-Uma escolha? – perguntou o Pedro, surpreendido.
-A tua escolha, sim!
-E se não quiser escolher?
-Então, será a minha escolha! – Melissa bateu com a mão no peito e repetiu: - A
minha escolha!
-E ficávamos a viver de quê?
-Que merda! Arranjas aqui emprego com toda a facilidade! – Melissa cerrou o
punho e bateu com ele na mesa. - Temos esta casa, posso alugar a outra loja, não achas
que ficamos com o suficiente? – Pedro não respondeu. Mordeu o lábio e voltou-lhe as
costas. – Olha para mim, porra! – Melissa bateu-lhe nas costas. - Para que é te
preocupas tanto com a merda do dinheiro?
-Porque não sei viver sem ele. Porque tenho duas filhas, em Portugal, que dão
uma despesa do caraças! Porque quero que não lhes falte nada, porra!
-Então, já tomaste a decisão, não é? Vais voltar para lá! – Pedro não respondeu.
Ficou quieto, com os braços esticados e a cabeça baixa. – Então, vai-te embora! Podes ir
já hoje! E não voltes a desinquietar-me! Não quero mais mensagens nem e-mails.
Esquece-me! Obrigaste-me a fazer esta escolha! Uma escolha definitiva!
Pedro abraçou-a e pediu-lhe desculpa. Ela empurrou-o para trás e, sem olhar
para ele, disse que o queria esquecer. Voltaram, em silêncio, para casa. Quando
chegaram a casa, ela ordenou que ele se fosse embora. Ele recolheu as roupas, a
máquina de barbear e a escova de dentes. Ela ficou a vê-lo a guardar a roupa na mala e,
quando ele a agarrou, de novo, para se despedir, ela gritou:
-Vai para o diabo que te carregue! Cobarde de merda! Desaparece da minha
vista e não me peças desculpa porque eu não te perdoo!
Melissa, de costas voltadas para a escada, ouviu os passos dele, como se fossem
o rufar de um tambor numa cerimónia fúnebre, até o estrondo da porta de entrada lhe
lembrar que não voltaria a ver aquele homem. A única coisa sensata a fazer, era

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esquecê-lo. Foi buscar as fotografias dele e rasgou-as. Agarrou no telemóvel e apagou o
número do Pedro. De ora em diante, passaria a viver apenas para o seu filho, Miguel, e
para o seu homem, Arturo, o único homem que a amou, o único que lhe fez bem.
Limpou as lágrimas que lhe banhavam a face e marcou o número do Arturo.
-Amorzão, sou eu outra vez!
-Despacha-te! Diz o que queres! Paga-se uma fortuna!
-Quero ir para aí agora!
-Agora?
-Amanhã. Pode ser?
-Impossível. Ainda não tenho casa nem emprego. Aguarda mais uma ou duas
semanas.
-Depressa, sim? Não posso estar aqui mais tempo sem ti.
-Ciao, amorzão.
-Adeus, amor da minha vida.

Duas semanas depois, Melissa e o filho chegavam a Telavive. Arturo e a irmã


esperavam-nos. Em Israel havia homens e mulheres de cor negra que se reclamavam
descendentes da Rainha do Sabah e que, por isso, mantinham viva uma forma de
judaísmo que tinha tanto de arcaico como de romântico. Muitos deles, chegaram a Israel
vindos da Etiópia, havia apenas uma dúzia de anos. Melissa pôde ver alguns no
aeroporto, vestidos com o uniforme da polícia israelita, e achou-os imensamente
bonitos, altos e musculados, com uma pele muito escura e brilhante, nariz afilado e
lábios europeus. São estes os judeus da Etiópia!, pensou.
Quando se abraçou a Arturo, ela disse-lhe meio a brincar, meio a sério:
-Aqui também há pretos!
Arturo sorriu e deu-lhe um beijo na boca. Ela pôs-lhe o filho nos braços e ele
cobriu a testa da criança com beijos. Depois, disse, apontando para o lado:
-Esta é a minha irmã.
Melissa beijou a irmã do marido na face.
-Sou a Sara – disse ela.
-E eu sou a Melissa – respondeu. – Mas que criança tão linda!
-É o Miguel! O nosso menino!
Puseram-se os três a caminho da saída do edifício das chegadas internacionais e
entraram juntos num táxi.
-Vens para ficar, não é? – perguntou Sara.
-Claro! Tem de aprender hebreu depressa – disse o Arturo. – Ela aprende bem.
Sabias que ela fala quatro línguas?
-Oh, não me digas!
-Português, crioulo, francês e italiano.
-Quer dizer, italiano ainda ando a aprender – corrigiu a Melissa.
-E agora vais aprender o hebreu.
-Importas-te que eu te ensine hebreu? – perguntou a Sara.
-Se não te der muita maçada!
-É que conseguimos alugar apartamento no prédio onde está a Sara. Vê bem a
nossa sorte! – acrescentou Arturo.
O táxi parou à entrada do prédio e os três encaminharam-se para o átrio,
sujeitando-se a uma revista minuciosa por parte de dois seguranças.
Era um apartamento pequeno mas confortável. Escassamente mobilado, tinha,
no entanto, tudo o que era preciso para viver. Melissa passeou os olhos pelos dois
quartos, pela sala, pela cozinha e pelo quarto de banho e exclamou:

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-Isto é uma beleza!
Soltou uma gargalhada e lançou-se sobre a cama. O Miguel deambulou pela
casa, agarrado aos móveis e aos sofás. Arturo deixou-se cair para cima dela e afogou-lhe
as palavras com os lábios. Quando ela conseguiu libertar-se de Arturo, sussurrou:
-Vamos dar uma fodinha, amorzão!
-E o Miguel?
-Liga a televisão num canal de desenhos animados.
Arturo agarrou no filho e sentou-o no sofá em frente do televisor. Sintonizou um
canal de desenhos animados e ordenou à criança:
-Fica aí, bem quietinho, a ver os bonecos! – O garoto espetou os olhinhos no
televisor e bateu as palmas.

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VINTE E TRÊS

Quando a Suzi chegou à Cidade da Praia já não encontrou a Melissa em casa.


Soube, pelas vizinhas, que ela se ausentara com a criança e que ia ficar muito tempo
sem regressar. A primeira coisa que a Suzi pensou fazer, foi telefonar para a Mel, a
pedir-lhe que ela lhe emprestasse um quarto. Uma casa vazia é sempre um chamariz
para os ladrões, pensou. Remexeu na bolsa e tirou de lá a agenda. Procurou e encontrou
o número do telemóvel da Melissa. Dirigiu-se aos correios e pediu uma ligação para
Israel.
-Oi! Sou eu, a Suzi!
-Suzi! Estou em Israel!
-Já voltei!
-Onde estás?
-Aqui, na Praia, em casa de uma amiga.
-Olha, vais gastar um dinheirão com esta chamada. Manda-me um e-mail!
-Sabe o que é? Queria pedir-lhe um quarto emprestado.
-Um quarto?
-Sim!
-Tenho de falar com o Macaco! Assim, de repente, não pode ser!
-`Tá! Fale com ele! Eu mando um e-mail a explicar. Beijos! Fique altamente!

Uma semana depois, o italiano chegou ao aeroporto da Cidade da Praia e a Suzi


esperou-o à saída das chegadas internacionais. Ele vinha mais gordo. E estava mais
calvo. Apesar disso, ela recebeu-o com um grande sorriso e entregou-lhe a boca, que ele
beijou com sofreguidão. Foram os dois de táxi até ao hotel Praia-Mar, onde se alojaram.
Depois de jantarem, ela deu o seu melhor para lhe mostrar que o queria, que o desejava,
que estava pronta para casar com ele. No dia seguinte, a Suzi fez uma visita à Dona
Margarida. A Melissa não parava de elogiar os dons da velhota e os serviços dela eram
apreciados por muitas famílias do Plateau. Dizia-se que adivinhava o futuro e que era
infalível a antecipar sucessos e falhanços em casos amorosos. Suzi continuava com
dúvidas acerca de um relacionamento estável com o italiano e receava ter de passar o
resto da vida, atrás de um balcão, a vender rações para animais domésticos. Quando se
olhava ao espelho, via uma cara exótica, uns lábios cheios, em forma de coração, um
pescoço alto e um corpo elegante. Os homens olhavam para trás quando ela passava.
Continuava a achar que ainda tinha possibilidades de casar com um homem rico, bonito
e não muito velho.
A velha mulher recebeu-a à entrada da casa com efusivos cumprimentos e
felicitações pelo regresso.
-Minha filha, fizeste bem em regressar! – Espetou-lhe dois beijos na testa e
empurrou-a para dentro de casa.
A Suzi caminhou atrás da velha por um corredor escuro. Havia santinhos dentro
de molduras penduradas nas paredes. Um gato preto roçou o pêlo nas pernas dela e
miou. Entrou numa sala apertada, cheia de móveis velhos e santinhos de barro. O gato
seguiu-a. A velhota acendeu três velas, que logo projectaram nas paredes uma luz
bruxuleante e fraca.
-Ora, diz-me cá ao que vens – disse a velha, pegando-lhe nas mãos. – O gato
saltou para o colo da velha e pôs-se a lamber-lhe o braço.

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A Dona Margarida tinha umas mãos quentes, que pareciam vibrar em contacto
com as da rapariga. Grossas veias azuis, vindas dos pulsos, espraiavam-se pelos dedos
como se fossem o delta de um rio a derramar águas poluídas no mar.
-Dona Margarida, lembra-se de eu lhe ter falado naquele italiano que gosta
altamente de mim?
-O italiano gordo que te queria levar para Itália?
-Sim, esse!
-Voltou, não foi? – Os olhos da velha brilharam no escuro.
-Está cá e quer levar-me para Verona.
-Mas tu não gostas da ideia de passares a vida atrás de um balcão, não é
verdade? – O gato levantou a cabeça e olhou para a Suzi como se, também ele, estivesse
à espera da resposta.
-É! Mas, se calhar, não tenho alternativa.
-Receio que não tenhas. – Levantou a cabeça para cima e olhando para o tecto,
continuou: - Vejo que ele te ama, que ele é bom homem, que já sofreu muito com outras
mulheres, que quer que lhe dês filhos.
-E vou ser altamente feliz, Dona Margarida?
-Sim, vais ser mimada. Vai depender de ti. Só tens de renunciar aos outros
homens. – O gato esticou o pescoço, deu um salto e desapareceu no corredor.
-Então, vou aceitar o pedido dele. Se calhar, já não volto a ver a senhora. Ele
quer levar-me para Itália ainda este mês.
-Vai, filha, que estás em boas mãos. – A velha levantou-se e beijou a rapariga na
testa.
-Quanto lhe devo, Dona Margarida?
-Minha filha, dás o que quiseres e puderes.
A Suzi passou uma nota de quinhentos escudos cabo-verdianos para as mãos da
velha e saiu. Dobrou a esquina e entrou no mercado que, àquela hora, regurgitava de
vida. Mulheres, com os bebés às costas e cestos sobre a cabeça, ofereciam, em crioulo,
mandioca, batatas, pepinos, tomates e cenouras. A rapariga furou por entre a multidão e
parou junto a uma banca coberta de anonas, um fruto delicioso que se trinca como uma
manga e que é sumarento como um ananás, e disse para a vendedora:
-Senhora, queria dois quilos!
Regressou de táxi ao hotel Praia-Mar. O italiano esperava-a no quarto. Tinha
acabado de tomar banho. Estava nu, de pé, junto à janela. Ela reparou na falta de
graciosidade dele. As pernas, tortas e magras, pareciam dois galhos secos. A barriga,
proeminente, caía-lhe, pesadamente, para a frente. O peito metido para dentro e os
ombros curtos davam-lhe um ar semiesco. É com isto que eu vou casar?, pensou a
rapariga A Suzi abriu o saco de plástico e mostrou-lhe as anonas.
-Oh!, anonas! – exclamou. – Aqui chamam-lhe pinhas, não é? Há quanto tempo
eu não me deliciava com elas!
-São para ti, amorzão. Eu sei que tu adoras pinhas. São altamente!
Amorzão? Vou passar a minha vida a chamar amorzão a isto! Que porra de
vida!, pensou ela.

Três semanas depois, estavam a caminho de Itália, num avião dos TACV, com
escala em Lisboa. Afinal, a Suzi não iria precisar do quarto emprestado. Verona
esperava-a, bem como a futura sogra, uma mulher imensamente gorda, com uma cabeça
colorida enfiada nos ombros, que a recebeu, em casa, com rolos no cabelo. No dia
seguinte, sem saber uma palavra de italiano, estava, de pé, encostada ao balcão da loja
de animais, a atender clientes.

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O casamento realizou-se um mês depois, num dia chuvoso e frio, com a
assistência de uma dúzia de italianos barulhentos, que olhavam para ela como se
estivessem perante um ser vindo de outro planeta.
A lua-de-mel, em Cuba, foi curta. Havia que regressar rapidamente a Itália
porque a loja não podia continuar fechada. Quando chegou ao aeroporto de Milão, vinda
de Cuba, reparou, satisfeita, que os homens olhavam para ela com ar de gulosos.
Constatou, também, que ali havia muitos homens bonitos. Ao aproximar-se do táxi que
a levaria à estação dos caminhos-de-ferro, onde apanharia o comboio para Verona,
deixou-se levar por pensamentos que eram uma antecipação do futuro: Não vou ficar
muito tempo agarrada a este traste velho! É só o tempo necessário para arranjar um
destes homens bonitos!

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VINTE E QUATRO

Pedro tinha a mulher à espera no aeroporto de Lisboa. Quando ele lhe telefonou,
na sala de embarque do aeroporto internacional do Sal, ela sentiu, pelo tom da voz, que
alguma coisa tinha corrido mal em Cabo Verde. Ele viu-a, a acenar, logo que entrou no
corredor que dava acesso ao átrio das chegadas internacionais. Reparou que ela estava
bonita. Tinha cortado os cabelos e trazia umas calças justas e curtas, que lhe davam um
ar de adolescente.
-Tu, aqui?! – exclamou ele, beijando-a, de seguida, nos lábios.
-Apeteceu-me vir.
-Estás bonita! Parecias uma das nossas filhas!
-Não gozes, está bem?
-Verdade! Pareces mais nova! – Encaminharam-se para a saída.
-Não achas a blusa muito decotada? – perguntou ela, passando os dedos pelo
peito.
-Bem, um pouco. – Fez uma pausa. – Mas fica-te bem. Tens umas belas mamas!
-Sabes uma coisa? – perguntou, chegando a boca ao ouvido dele. – Apetece-me
foder.
-A mim também. – Riu e passou-lhe os dedos pela face. – Trouxeste o carro? –
Ela respondeu que sim. – Então, vamos para casa.
Era uma manhã de domingo. A cidade parecia vazia. Rolaram pela ponte 25 de
Abril como se fossem os únicos habitantes de Lisboa.
-As nossas filhas? – perguntou ele, quando subia no elevador.
-Ah!, esqueci-me de te dizer. Foram passar uns dias a casa da Antónia, aquela
amiga do Porto!
-Então quer dizer que temos a casa só para nós, não é?
Ela beijou-lhe a boca e depois disse:
-Só para nós!

Pedro habituara-se ao corpo da mulher, um corpo roliço e duro, que encaixava


nele com se mais de trinta anos de vida em comum tivessem afeiçoado as formas e o
volume, fazendo com que os corpos deles se tornassem num único mecanismo, perfeito
e sem fissuras, que respondia em simultâneo e com igual nível de intensidade. Depois
de fazer amor com outras mulheres, havia nele uma urgência de voltar para casa, como
se tivesse ficado órfão e desamparado. Comparava o corpo da mulher com o corpo das
outras e concluía que trinta anos a fazer amor com ela tinham criado nele uma
habituação, quase um vício, um desejo intenso de partilhar com ela aquele cheiro, uma
mistura de odor a sexo e a suor, que nela constituía um afrodisíaco e noutras um
pormenor desagradável. Gostava particularmente da forma como ela se enroscava nele,
do calor que emanava da pele dela e da doçura com que ela o beijava. Havia entre eles
uma cumplicidade na linguagem, sobretudo na forma como partilhavam o discurso
erótico, que funcionava como uma sinalética que os guiava no caminho da sensualidade
e da sedução, incendiando-os com a mera audição de algumas palavras-chave. Com as
outras mulheres, ele tinha de se dar ao trabalho de descodificar as mensagens e de
adaptar o seu discurso ao universo cultural e ideológico delas. Ora, esse processo nem
sempre era fácil. Por vezes, ele ficava pedido, não sabia interpretar os sinais que elas
emitiam e a chama erótica apagava-se tão depressa como havia surgido. O que lhe

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agradava mais na mulher era a forma como ambos se entregavam ao jogo da
dominação. Quando ele se entregava e, de forma passiva, se sujeitava a ser um
instrumento erótico nas mãos da mulher, era capaz de voar a grandes alturas e planar
longamente como se estivesse no limiar de perder a consciência. Outras vezes, era ela
que se oferecia, submetendo-se aos caprichos dele, sem recear um certo nível controlado
de violência que, ao magoar, ao provocar dor, andava associado a uma descarga erótica
de grande intensidade. Com as outras mulheres, era preciso negociar, interpretar, tentar
adivinhar e nem sempre era possível o entendimento dos corpos. Por vezes, fazia a si
próprio a pergunta: se é assim tão bom fazeres amor com a tua mulher, o que é que
procuras nas outras? O Pedro nunca foi capaz de encontrar uma resposta. Talvez esse
desejo poligâmico tenha natureza genética e seja um resquício dos tempos recuados em
que os primeiros homens tinham necessidade de espalhar o sémen pelo maior número
possível de mulheres para assegurarem a sobrevivência da espécie!

Assim que Pedro começou a acariciar-lhe os seios, sentiu que o corpo da mulher
se abria como uma flor do deserto ao cair das primeiras chuvas. O corpo dela deslizava
pelo seu como uma cobra sobre a areia. Ele beijou-lhe os seios e desceu, suavemente,
até ao umbigo. Deslizou os dedos pela penugem loura que lhe descia do umbigo até ao
púbis.
-Como mexes bem – sussurrou ela.
Pedro contornou-lhe a cintura com a mão direita. Escorregou os dedos pelas
nádegas dela e afundou-os entre as coxas que se afastaram lentamente.
Ela escancarou as pernas e, com as duas mãos sobre a cabeça dele, empurrou-o
para baixo. O sexo dela abriu-se como um fruto maduro e sumarento. Ele escondeu a
boca no emaranhado de pêlos húmidos. Fincando as mãos sobre o colchão, ela arqueou
o corpo e apertou a cabeça do Pedro com as coxas.
-Vem! – disse ela, puxando-o para cima.
A mulher cruzou as pernas sobre as nádegas dele e ele entrou suavemente.
-Quero-te só para mim – disse.
-Também te quero.
-Nunca me vais deixar, pois não? – Ele não respondeu. – Ela insistiu: Não me
trocas por outra, pois não?
-Não! Não tenho razões para o fazer. – Fez uma pausa. Ela sorriu quando ele
disse – Nunca mais volto a Cabo Verde.
-Não? E o projecto da Assomada e do Tarrafal, aquela ideia de promover
turismo do interior?
-Já não vai para a frente. – Os olhos dela iluminaram-se de alegria. – Quer dizer,
pelo menos, por enquanto.
-Sabes, cada vez que ias a Cabo Verde eu ficava roída de ciúmes. Tinha medo de
te perder. Aquelas mulheres gostam de foder!. Tenho ouvido histórias… - Ele tapou-lhe
a boca com a mão.
-Nada tens a recear.
-Amo-te – sussurrou ela.

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VINTE E CINCO

Arturo levou a boa-nova ao filho numa tarde quente e luminosa de Agosto. O


juiz aceitara como válidas as certidões de nascimento de Arturo e de Rafaelo e o
Ministério Público não colocou reservas à veracidade das histórias acerca do avô e da
avó do rapaz. Era ponto assente para todas as partes que o réu era neto de uma judia
libertada de um campo de concentração nazi e de um judeu que fora perseguido por
Mussolini e conhecera a prisão e o exílio. Dessa forma, estava garantido o
reconhecimento de que Rafaelo era um filho da diáspora e do holocausto. O Ministério
Público reconhecia aqueles factos como atenuantes e pedia uma sentença mais leve,
embora não prescindisse de invocar as leis de combate ao terrorismo. Se fosse
condenado, Rafaelo teria de passar um máximo de dez anos na cadeia, mas havia
hipóteses de a pena ser encurtada em alguns anos. Uma vez condenado, Rafaelo podia
beneficiar de saídas temporárias, caso conseguisse convencer o juiz de execução de
penas de que a sua adesão ao judaísmo era sincera e verdadeira e de que o seu interesse
em prosseguir estudos, em Israel, era genuíno. Tudo somado, Rafaelo talvez viesse a
cumprir uma pena de apenas cinco anos de cadeia e talvez pudesse beneficiar de saídas
da prisão depois de cumprir os dois primeiros anos.
Foi com alegria estampada no rosto que Rafaelo ouviu o pai dar-lhe as boas-
novas e se dispôs a redobrar o seu interesse pelos estudos da Tora e do hebreu, pois
sabia que se aparecesse em tribunal a responder às perguntas do juiz e da acusação em
hebreu, ganharia, mais facilmente, a simpatia da opinião pública. Arturo sabia que
estava a lidar com uma falsa conversão e, na verdade, não lhe interessava nada que o
seu filho trocasse uma religião por outra. O que ele desejava era que a cabeça do rapaz
fosse tocada por uma onda de cepticismo que o levasse a ser crítico em relação a todos
os fundamentalismos e radicalismos religiosos ou políticos. Ao que tudo indicava, era
isso que estava a acontecer. Vendo a esperança crescer nos olhos do filho, Arturo quis ir
mais além: propôs-lhe a visita semanal de um rabino, que o iria familiarizar com a
história do judaísmo, não com o objectivo de o converter à religião de Moisés, mas com
o fim de o libertar de certos preconceitos religiosos que os ensinamentos de Abdulah lhe
tinham incutido. Surpreendentemente, Arturo aceitou a sugestão, não sem antes avisar o
pai de que era impensável uma adesão ao judaísmo, uma religião que Rafaelo aprendera
a ver como antiquada, falsa e cheia de superstições. Arturo não só ficou satisfeito como
aliviado. Por um lado, verificava que os alicerces da crença islâmica estavam a ser alvo
de um forte abalo na cabeça do rapaz. Por outro, via que ele não estava interessado em
libertar-se de uma superstição para aderir a outra, tão antiquada, mesquinha e prejudicial
como a primeira. Nada mais lhe agradava do que antecipar o gozo de ver o filho
assumir-se como um cidadão, francês ou israelita, isso não interessava muito!, imune a
todas as religiões e dotado de um forte sentido crítico da realidade.
Quando Arturo se despediu do filho, naquela tarde quente de Agosto, estava
certo de que tudo ia correr como estava previsto e de que os melhores dias da sua vida
estavam ainda para chegar. A Melissa esperava-o à saída do edifício da prisão, dentro de
um carro que Arturo comprara com o dinheiro do seu primeiro salário como professor
de Biologia e de Francês, num colégio privado local. Em breve, a Melissa poderia,
também, juntar o seu salário ao do marido, aplicando os seus conhecimentos de Francês,
Português e Inglês, assim que surgisse uma oportunidade.

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Arturo guiou o carro pelas avenidas largas e luminosas de Telavive, de olhos
postos nos arranha-céus de arquitectura modernista, os quais davam um agradável ar
cosmopolita à cidade, e disse para a mulher que começava a gostar de Israel. Ela sorriu
e disse que o clima não era diferente do clima de Cabo Verde.
-Vamos ficar por cá? – perguntou ele, pousando os olhos nela.
-Eu faço o que tu quiseres – respondeu ela.
-Esta é uma terra boa para quem vem de fora. Aqui, há gente de todo o lado, de
todas as culturas e línguas.
-Até há pretos! – Riu e pousou a mão esquerda sobre a perna de Arturo. – Mas
olha que são pretos bonitos! Aqueles etíopes!
-Deram-te voltas à cabeça, não foi?
-Por acaso até deram. – Fez uma pausa. – Mas não precisas de ter ciúmes.
-Depois do julgamento do Rafaelo, compramos uma casa fora da cidade. Uma
casa com um belo quinhão de terreno para eu me dedicar à agricultura. Quero produzir
tomates, pepinos e alfaces para exportação. Logo que eu conseguir vender a casa de
Montpellier, começamos à procura de um terreno.
-Estás a falar a sério, amorzão!
-Lembras-te do meu sonho? Afinal, é aqui que o vamos realizar. Poderia ter sido
em Cabo Verde, mas o destino não quis. A pátria de um homem é onde estão os que ele
ama.
Melissa curvou-se e pousou a cabeça no ombro dele. Ele desviou, por
momentos, os olhos da estrada e beijou-lhe os olhos e a boca.

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VINTE E SEIS

Por fim, o dia do julgamento chegou. Era um dia quente e seco como todos os
outros. Rafaelo entrou na sala de audiências de olhos fixos no vazio e com um rosto
inexpressivo. Os jornalistas acotovelavam-se nas últimas filas da sala e um clima de
excitação tombou sobre o tribunal, obrigando o juiz a chamar a atenção dos presentes
para a necessidade de respeitarem o silêncio e a compostura. Os noticiários da manhã
referiam-se ao julgamento do jovem terrorista que, na prisão, aprendera a falar hebreu e
se convertera ao judaísmo. Um dos canais de televisão abriu a emissão com um debate
sobre as possibilidades e os riscos de uma conversão tão apressada ao judaísmo. Os
especialistas presentes, dois teólogos, um filósofo e um psicólogo divergiram na forma
como interpretavam o fenómeno. Enquanto os teólogos pareciam inclinados para a tese
da falsa conversão, ou seja, de uma adesão interesseira e oportunista ao judaísmo, o
filósofo rematava com a tese de que o rapaz estava a caminho de encontrar uma visão
laica do mundo, afastando-se quer da perspectiva islâmica quer da visão judaica, e o
psicólogo dizia acreditar na sinceridade e autenticidade da conversão, atendendo à idade
do rapaz e ao trauma provocado pela morte da prima. No final, ficaram dúvidas sobre a
sinceridade da conversão, mas houve unanimidade na necessidade de condenar o rapaz
a uma pena curta. Todos concordaram que o rapaz sofrera uma longa e profunda
lavagem ao cérebro, fruto do abandono a que foi sujeito pelos pais e da imersão rápida
numa cultura extremista. Embora, à face das leis judaicas, Rafaelo não fosse
considerado um verdadeiro judeu, não era possível esquecer que a avó fora libertada de
um campo de concentração nazi e o avô, igualmente judeu, passara um ano nas prisões
de Mussolini e se vira obrigado ao exílio. No fundo, o rapaz era filho da diáspora e do
holocausto e, portanto, não podia ser tratado como um vulgar terrorista islâmico.
Arturo, de mão dada a Melissa, ocupou um lugar na frente. O advogado de
defesa, olhando para Arturo, levantou o polegar, numa clara indicação de que estava
certo da vitória. Seguiu-se um longo interrogatório a cargo do procurador do Ministério
Público, com Rafaelo a responder umas vezes em francês e outras em hebreu, com uma
desenvoltura e tranquilidade que surpreendeu a assistência. Arturo estava orgulhoso do
seu filho: aprendera a falar hebreu em pouco mais de seis meses! Depois, foi a vez das
perguntas do advogado de defesa, quase todas a incidirem sobre o arrependimento de
Rafaelo e sobre as técnicas de lavagem ao cérebro usadas nas mesquitas e nas escolas
corânicas. Por fim, o advogado teceu algumas considerações sobre o passado dos avós
do rapaz e sobre o abandono a que fora sujeito, pelo pai e pela mãe, durante a
puberdade. Arturo corou quando ouviu o advogado defender a tese do abandono mas o
seu rosto iluminou-se ao ver que o juiz e o procurador do Ministério Público abanavam
a cabeça em sinal de concordância.
O julgamento decorreu em dez sessões, ao longo de três semanas. Por fim, foi
pronunciada a sentença. Tal como Arturo esperava, o rapaz foi condenado a cinco anos
de cadeia e levado, de imediato, para uma penitenciária onde se encontravam apenas
reclusos israelitas. Arturo não foi capaz de suster as lágrimas quando ouviu a sentença.
Eram lágrimas de alegria e de esperança. Rafaelo manteve-se imperturbável. Contudo,
ao ser levado de volta ao carro celular, acenou ao pai e sorriu, fazendo o sinal de vitória
com os dedos.
Por essa altura, já Arturo tinha comprado uma pequena quinta, situada a trinta
quilómetros de Telavive, onde iniciara a construção de uma moradia e preparava o

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terreno para o cultivo de legumes. Continuava ainda a dar aulas de Biologia e de
Francês, mas lograra transferência para uma pequena cidade mais próxima da quinta.
Em breve, deixaria de viver numa casa alugada e mudar-se-ia para a moradia que estava
a construir com as suas próprias mãos. O Miguel dera entrada no jardim-de-infância e,
revelando-se um futuro poliglota, dava ordens em português, fazia queixas em italiano e
contava em hebreu. O pior era quando ele falava as três línguas ao mesmo tempo!
Melissa ocupava o seu tempo entre as aulas no colégio, onde leccionava francês e
italiano, e os cuidados com o filho. Havia ainda tempo para longos passeios nos fins-de-
semana, umas vezes pelo deserto, outras a uma remota praia do Mar Morto. A
adaptação ao modo de vida, em Israel, fora mais fácil do que parecia e essa facilidade
tinha uma explicação: os israelitas constituem uma amálgama multicultural de muitas e
variadas origens. A bem dizer, eles chegaram a Israel vindos de todo o lado.
Nos meses que se seguiram ao julgamento, a história de Arturo e a tragédia que
atingiu o filho foram alvo de muitos comentários e mereceram as atenções de canais de
televisão e jornais de todo o país. Arturo não se furtou a participar no debate, mais por
saber que, dessa forma, podia ajudar o filho a encontrar o equilíbrio e a esperança. Nas
inúmeras entrevistas que deu, defendeu, com convicção, a possibilidade de coexistência
pacífica das duas tradições religiosas e culturais, afirmando que o futuro de Israel e dos
países vizinhos residia no aprofundamento do multiculturalismo e da democracia e na
influência crescente de uma visão laica do mundo, assente na defesa da tolerância, da
convivência, do espírito crítico e da diversidade. Numa das entrevistas, que deu muito
que falar e foi sujeita a críticas violentas por parte dos extremistas religiosos, Arturo foi
ao ponto de defender que, quer em Israel quer nos países vizinhos, as práticas religiosas
deviam ser vistas como um assunto da vida privada e que o Estado devia abster-se de se
imiscuir em assuntos que apenas diziam respeito à consciência de cada indivíduo. È
claro, Arturo estava consciente de que as suas propostas tinham ainda um longo
caminho para andar, mas estava certo de que elas apontavam para uma via segura em
direcção a um futuro de paz, tranquilidade e realização pessoal e social. Não fora esse o
caminho que a Europa percorreu, ao longo de tantos séculos marcados pela destruição,
perseguição e morte? Se resultou com a Europa, não havia razões para acreditar que não
resultasse, igualmente, no Médio Oriente. E foi com estas palavras de esperança - que o
filho ouviu com aprovação na cela de uma penitenciária dos arredores de Telavive - que
Arturo deixou o estúdio de televisão e se encaminhou, sorridente e confiante, para o seu
novo jipe, que o levou de regresso à quinta, onde começara a produzir algumas das
melhores e mais saborosas alfaces de Israel.

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