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n.

º 8 | dezembro 2008 | € 2,50

John Bellamy Foster | Fred Magdoff | John


Newsinger | Jim Straub | Bret Leibendorfer
Immanuel Wallerstein | Carlos J. Castro
Sumário

Editorial............................................................................................................. 5

Implosão financeira e estagnação. De volta à economia real........................... 7


John Bellamy Foster e Fred Magdoff

América certa ou errada. Relações anglo-americanas desde 1945...................... 35


John Newsinger

Braddock, Pensilvânia. Para fora da fornalha em direcção ao fogo.......................... 45


Jim Straub e Bret Lienbendorfer (fotografias)

Os custos humanos do crescimento económico....................................... 57


Immanuel Wallerstein

Por que falha a economia ortodoxa?........................................................... 63


Carlos J. Castro

Ficha Técnica
MR - edição portuguesa: n.º 8 | Dezembro 2008 | preço - € 2,50 | propriedade - Fernando
Ramalho | tradução e revisão - Fernando Ramalho | grafismo, imagem e paginação - Nancy Matta-
-Clark | Zion Edições, Pcta. D. Miguel I, n.º 6 - 3.º Esq., 2830-259 Barreiro, www.zionedicoes.org,
zionedicoes@gmail.com.

Monthly Review: editor - John Bellamy Foster | editor associado - Michael D. Yates | editor
assistente - Claude Misukiewicz | editor da MRzine - Yoshie Furuhashi | gestor de circulação e
negócio - Martin Paddio | redacção - 146 West 29th St., Suite 6W, New York, NY 10001,
tel. 212-691-2555, fax 212-727-3676, www.monthlyreview.org, mrmag@monthlyreview.org.
Editorial

O testemunho histórico que o antigo presidente da Reserva Federal (FED) norte-


-americana Alan Greenspan prestou perante a Comissão do Congresso para a Su-
pervisão e a Reforma Governamental, a 23 de Outubro de 2008, representou uma
reviravolta tão surpreendente para um indivíduo que já foi apelidado de «Maestro» e
«Oráculo», que poderia ser justamente intitulado «A pedagogia de Alan Greenspan».
Acusado de ser o responsável pelo enorme e cada vez maior desastre económico,
Greenspan reconheceu que ficou «chocado e consternado» pela emergência daquilo
a que chamou um «tsunami no crédito que acontece uma vez em cada século». Num
esforço para justificar a completa incapacidade de previsão da FED, Greenspan ex-
plicou que os modelos de activos supostamente sofisticados em que ele e outros na
comunidade financeira haviam confiado se baseavam quase exclusivamente na ex-
periência das últimas duas décadas, um período de rápida expansão financeira, e não
foram capazes de incorporar os impactos negativos visíveis a partir de uma pers-
pectiva histórica de longo prazo. Como ele próprio referiu, «Todo o edifício intelec-
tual […] entrou em colapso no Verão do ano passado, porque os dados imputáveis
nos modelos de gestão de risco cobriam geralmente apenas as últimas duas décadas,
um período de euforia. Tivessem, pelo contrário, os modelos sido enquadrados de
forma mais apropriada nos períodos históricos de esforço, e as exigências de capital
teriam sido muito mais elevadas e o mundo financeiro estaria hoje de muito melhor
saúde» («Greenspan Testimony on Sources of Financial Crisis», The Wall Street
Journal, 23 de Outubro de 2008; ver também «Greenspan Says He Was Wrong on
Regulation», The Washington Post, 24 Outubro de 2008).
A extrema curteza de vistas da construção de modelos num «período de euforia»,
ignorando os «períodos históricos de esforço», significa que a realidade histórica da
acumulação de capital esteve simplesmente ausente da análise. Como explicou Marx,
a sobreprodução de capital conduz inevitavelmente a períodos de desvalorização ma-
ciça, através dos quais o sistema prepara o terreno para uma expansão subsequente.
«É muito negativo», notou Floyd Norris, colunista económico do The New York
Times, «que o Sr. Greenspan nunca tenha gostado do trabalho de Hyman Minsky,
que compreendeu que a estabilidade está a desestabilizar e que virão tempos em que
a própria acalmia dos mercados, bem como a ausência de risco aparente, levará os in-
vestidores a assumirem riscos cada vez maiores». Efectivamente, Minsky, inspirando-
-se no trabalho de Marx, Keynes e Kalecki (ver o artigo de John Bellamy Foster e Fred

5
Magdoff na presente edição), desenvolveu uma análise da instabilidade financeira,
como «defeito inerente da economia capitalista, que implica o perigo de uma pro-
funda depressão e uma prolongada estagnação – se a função governamental de em-
prestador de último recurso falhar. Foi essa hipótese de instabilidade financeira – em
conjunto com a interacção entre a estagnação e a financeirização, como enfatizámos
durante anos nestas páginas – que esteve mais conspicuamente ausente dos mode-
los arcanos construídos por Greenspan e outros economistas ortodoxos. Como re-
sultado, «todo o edifício intelectual» da economia neoliberal demonstrou-se falível e,
hoje, atingiu visivelmente o «colapso» (Floyd Norris, «Greenspan’s Lament»,
norris.blogs.nytimes.com, 23 de Outubro de 2008). Quem estiver interessado num
tratamento mais completo e sistemático destas questões poderá ler o livro de John
Bellamy Foster e Fred Magdoff, The Great Financial Crisis: Causes and Consequences [A
Grande Crise Financeira: Causas e Consequências], a ser publicado pela Monthly
Review Press em Janeiro de 2009.
Como István Mészáros demonstra poderosamente no seu novo trabalho, The
Challenge and Burden of Historical Time [O Desafio e o Fardo do Tempo Histórico]
(Monthly Review Press, 2008), os problemas profundos da acumulação de capital
que hoje observamos devem-se aos «imperativos estruturais» do capitalismo. Isso signi-
fica que «é impossível alterá-los significativamente sem imaginarmos um quadro
estrutural qualitativamente diferente». O objectivo de Mészáros neste livro é fornecer os
meios intelectuais com os quais, nas palavras do presidente venezuelano Hugo
Chávez, «tomar a ofensiva – em todo o mundo – para um movimento em direcção
ao socialismo». Aconselhamos vivamente os leitores da Monthly Review a adquirir este
livro e a estudá-lo, transmitindo a outros as ideias que ele avança para «um quadro
estrutural qualitativamente diferente» de sociedade.

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Implosão financeira e estagnação
De volta à economia real
John Bellamy Foster e Fred Magdoff*

Mas, podem perguntar, não irão os poderes colmatar as lacunas e abortar a crise antes de ela ter
sequer hipótese de se desenvolver? Sim, certamente. Isso, por agora, é um procedimento operativo
padronizado, e não podemos excluir que tenha sucesso, do mesmo modo ambíguo que teve
após o crash do mercado de acções em 1987. Se assim for, teremos todo o processo a avançar
de novo e num nível mais elevado e precário. No entanto, mais cedo ou mais tarde,
da próxima vez ou ao virar da esquina, não terá sucesso […]
Estaremos então numa nova situação, tão inédita como
as condições a partir das quais emergiu.
– Harry Magdoff e Paul Sweezy (1988)1

«A primeira regra do banco central», escreveu recentemente o economista James


K. Galbraith, é que, «quando o barco começa a afundar, os banqueiros centrais têm
que pagar a fiança, custe o que custar»2. Perante uma crise financeira de uma magni-
tude sem precedentes desde a Grande Depressão, a Reserva Federal (FED) e outros
bancos centrais, apoiados pelos seus ministérios das Finanças, têm estado a «pagar a
fiança, custe o que custar» desde há mais de um ano. Com início em Julho de 2007,
quando o colapso dos dois hedge funds da Bear Sterns que haviam especulado forte-
mente em títulos suportados por hipoteca assinalou o começo de um enorme es-
touro do crédito, o conselho de administração da FED e o Departamento do Tesouro
dos Estados Unidos entraram em ebulição perante a implosão da finança. Inunda-
ram o sector financeiro com centenas de milhares de milhões de dólares e promete-
ram disponibilizar mais uns biliões, se necessário – operando a uma escala e com um
leque de ferramentas sem precedentes.
Com uma grande carga de dramatismo, o presidente da FED Ben Bernanke e o se-
cretário do Tesouro Henry Paulson surgiram perante o Congresso na noite de 18 de
Setembro de 2008, informando os legisladores, a fazer fé nas palavras do senador
Christopher Dodd, «que estamos, literalmente, a dias de uma completa falência do
nosso sistema financeiro, com todas as implicações que isso pode ter internamente
e globalmente». A isso seguiu-se, de imediato, a apresentação por parte de Paulson

7
de um plano de emergência para um salvamento da estrutura financeira no valor de
700 mil milhões de dólares, no qual os fundos públicos seriam utilizados para com-
prar os títulos suportados por hipoteca sem valor (o chamado «lixo tóxico»), detidos
pelas instituições financeiras3.
A explosão do descontentamento e da oposição popular que se seguiu à proposta
de Paulson provocou uma revolta inesperada na Câmara dos Representantes, que re-
jeitou o plano de salvamento. Apesar disso, bastaram uns dias para que o plano ori-
ginal de Paulson (com algumas alterações destinadas a dar cobertura política para
que os representantes alterassem o seu voto) fizesse o seu caminho no Congresso.
No entanto, assim que o plano foi aprovado, o pânico financeiro espalhou-se glo-
balmente, com as acções a cair a pique em todo o mundo – um bom sinal de que os
especuladores começavam a compreender a verdadeira dimensão da crise. A resposta
da FED foi, literalmente, inundar a economia de dinheiro, assumindo expressamente
o compromisso de ser o comprador de último recurso para todo o mercado dos tí-
tulos comerciais (dívidas de curto prazo emitidas por empresas), potencialmente até
um valor de 1,3 biliões de dólares.
Ainda assim, apesar da tentativa de despejar dinheiro no sistema para potenciar a
recuperação das operações de crédito mais básicas, a economia encontrou-se no ter-
ritório da armadilha de liquidez, resultando numa acumulação de dinheiro e numa
cessação de créditos interbancários por serem demasiado arriscados para os bancos
em comparação com a mera conservação de dinheiro. Uma armadilha de liquidez
ameaça quando as taxas de juro nominais caem para próximo do zero. A ferramenta
habitualmente utilizada para fazer baixar as taxas de juro perde a sua eficácia devido
à incapacidade de empurrar as taxas de juro para menos de zero. Nessa situação, a
economia é tomada por um aumento súbito daquilo a que Keynes chamava a «pro-
pensão para acumular» dinheiro ou activos de tipo monetário como os títulos do
Tesouro.
O receio em relação ao futuro, dado o que acontecia no aprofundamento da crise,
significou que os bancos e outros agentes do mercado procuraram a segurança do di-
nheiro. O impulso para a liquidez, parcialmente reflectido nas compras de títulos do
Tesouro, empurrou a taxa de juro sobre esses mesmos títulos para baixo de uma
fracção de 1 por cento, ou seja, para o território da armadilha de liquidez4.
Face ao que a Business Week chamou uma «idade financeira gelada», à medida que
o crédito cessava, as autoridades financeiras dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha,
seguidas pelas restantes forças do G-7, anunciaram que comprariam participações
accionistas nos grandes bancos, de modo a injectar capital directamente, recapitali-
zando os bancos – uma espécie de nacionalização parcial. Entretanto, expandiram os
seguros de depósitos bancários. Nos Estados Unidos, o governo ofereceu uma ga-
rantia de 1,5 biliões de dólares em nova dívida sénior emitida por bancos. Como re-
feria o The New York Times a 15 de Outubro de 2008, apenas um mês depois do
colapso do Lehaman Brothers que determinou a crise bancária, «Com tudo incluído,
o custo potencial para o governo do último pacote de salvamento atinge os 2,25 bi-
liões de dólares, triplicando a dimensão do pacote original de 700 mil milhões, que
se centrava na compra de activos em dificuldades dos bancos»5. Mas apenas uns dias

8
mais tarde, o mesmo jornal elevou a sua estimativa dos custos potenciais totais dos
salvamentos: «Em teoria, os fundos que serviram para tudo, desde os salvamentos da
Fannie Mae e da Freddie Mac e os da empresa da Wall Street Bear Sterns e da segu-
radora American International Group até ao pacote de resgate financeiro aprovado
pelo Congresso para assegurar as garantias necessárias aos mercados financeiros se-
leccionados [como os títulos comerciais], atingem, na verdade, um número muito
elevado: a estimativa é 5,1 biliões de dólares»6.
Apesar de tudo isto, a implosão financeira continua a espalhar-se e a aprofundar-
-se, ao mesmo tempo que as contracções agudas na «economia real» estão à vista de
todos. Os maiores construtores de automóveis dos Estados Unidos estão a atraves-
sar sérios défices económicos, mesmo depois de Washington ter concordado, em
Setembro de 2008, em conceder à indústria um empréstimo a juros baixos de 25 mil
milhões de dólares. A construção de moradias baixou para o mínimo dos últimos
vinte e seis anos. Espera-se que o consumo atinja um declínio recorde. O emprego
está a reduzir rapidamente7. Dada a severidade do choque financeiro e económico,
há hoje um receio generalizado entre os que estão no centro do poder empresarial
de que a implosão financeira, mesmo que seja suficientemente estabilizada para per-
mitir a liquidação das múltiplas insolvências, leve a uma estagnação profunda e du-
radoura, como a que atingiu o Japão na década de 1990, ou mesmo a uma nova
Grande Depressão8.
A crise financeira, como é acima referido, foi inicialmente compreendidacomo uma
ausência de dinheiro ou liquidez (o grau a que um activo pode ser rapidamente tran-
saccionado e convertido de pronto em dinheiro com preços relativamente
estáveis). A ideia era que esse problema de liquidez poderia ser resolvido através de
injecção de mais dinheiro nos mercados financeiros e da redução das taxas de juro.
Porém, há muitos dólares à solta no mundo financeiro – mais hoje que antes – e
o problema é que os que detêm esses dólares não querem emprestá-los aos que
podem não ser capazes de os devolver, que são quase todos os que hoje precisam de
dólares. Portanto, a situação deve ser entendida como uma crise de solvência em
que o capital próprio das instituições financeiras norte-americanas e britânicas – e
muitas outras na sua esfera de influência – foi bastante afectado pelo declínio
do valor dos créditos (e créditos titularizados) que detêm, em suma, dos seus
activos.
De um ponto de vista contabilístico, a maioria dos grandes bancos norte-america-
nos estava insolvente em meados de Outubro, tendo como resultado uma erupção
de fusões fulgurantes, incluindo a compra da Washington Mutual e da Bear Stearns
pela JPMorgan Chase, a absorção da Countrywide e da Merril Lynch pelo Bank of
America e a aquisição da Wachovia pela Wells Fargo. Tudo isto consolidou um sec-
tor bancário mais monopolista, com o apoio do governo9. A injecção directa de di-
nheiro público nos bancos na forma de compra de acções, em conjunto com
consolidações bancárias, permitirá, na melhor da hipóteses, ganhar o tempo neces-
sário para que a grande massa de créditos questionáveis possa ser liquidada de uma
forma ordenada, restaurando a solvência, mas no contexto de uma muito mais baixa
taxa de actividade económica – a de uma séria recessão ou depressão.

9
Nesta crise em degradação, mal um buraco é tapado abrem-se de imediato outros.
A extensão completa da perda de valor das hipotecas titularizadas, das dívidas dos
consumidores e das empresas e dos diversos instrumentos que procuraram combi-
nar essas dívidas com formas de seguro contra o incumprimento (tais como as
«obrigações de dívida suportadas por activos sintéticas», que têm permutas
crédito-dívida «empacotados» com as CDO) é ainda desconhecida. As categorias
fundamentais desses instrumentos financeiros foram reavaliadas em baixa para 10 a
20 por cento no curso da falência da Lehman Brothers e na tomada da Merrill
Lynch10. À medida que cortes agudos no valor desses activos são aplicados unifor-
memente, o património base das instituições financeiras vai desaparecendo em con-
junto com a confiança na sua solvência. Por essa razão, os bancos estão a fazer aquilo
que John Maynard Keynes previu que fizessem em tais circunstâncias: entesourar di-
nheiro11. Subjacente a tudo isto está a deterioração das condições económicas das
famílias na base da economia, debilitadas por décadas de congelamento dos salários
reais e crescimento das dívidas de consumo.

«Ela» e o emprestador de último recurso

Para compreender o significado histórico pleno destes desenvolvimentos, é ne-


cessário olhar para o que é conhecido como a função de «emprestador de último re-
curso» do governo norte-americano e de outros governos capitalistas. Essa função
toma hoje a forma de oferta de liquidez ao sistema financeiro durante uma crise, se-
guida pela injecção directa de capital nessas instituições e, finalmente, sempre que
necessário, por nacionalizações totais. Foi este compromisso assumido pelo Estado
de ser o emprestador de último recurso que, ao longo dos anos, deu confiança ao sis-
tema – não obstante o facto de que a superstrutura financeira da economia capita-
lista fez crescer desmesuradamente a sua base naquilo a que os economistas chamam
a economia «real» de bens e serviços. Nada é, porém, mais assustador para o capital
que a entrada em cena da FED e de outros bancos centrais a fazer tudo o que podem
para salvar o sistema e a não conseguirem prevenir o seu afundamento – algo visto
previamente como impensável. Apesar de a FED e do Departamento do Tesouro
norte-americano terem intervindo maciçamente, as dimensões profundas da crise
parecem continuar a iludi-lo.
Alguns designaram esse processo como um «momento Minsky». Em 1982, o eco-
nomista Hyman Minsky, famoso pela sua tese da instabilidade financeira, colocou a
questão crítica: «Será que “ela” – a Grande Depressão – pode acontecer de novo?».
Não há, como ele sublinhou, uma resposta fácil a esta pergunta. Para Minsky, a ques-
tão fundamental era saber se um descontrolo financeiro pode prejudicar uma eco-
nomia real já em problemas – como na Grande Depressão. O sistema financeiro,
inerentemente instável, cresceu em escala ao longo das décadas, mas assim sucedeu
também com o governo e a sua capacidade de servir como emprestador de último
recurso. Minsky observou que «Os processos que motivam a instabilidade financeira
são uma parte inescapável de qualquer economia capitalista descentralizada – ou seja,
o capitalismo é inerentemente defeituoso –, mas a instabilidade financeira não tem

10
necessariamente que conduzir a uma grande depressão; “ela” não tem necessariamente
que acontecer» (itálicos nossos)12.
Aqui está, porém, implícita a visão de que «ela» continua a poder acontecer de novo
– mesmo se apenas porque a possibilidade de explosão financeira e instabilidade cres-
cente podem, de modo concebível, aumentar desmesuradamente a capacidade do
governo para responder rápida e decididamente. Teoricamente, o Estado capitalista,
particularmente o dos Estados Unidos, que controla o que conta para uma moeda
mundial substituta, tem a capacidade de prevenir uma crise tão perigosa. A principal
preocupação é uma «deflação da dívida» (um fenómeno explicado pelo economista
Irving Fisher durante a Grande Depressão), como mostrou não só a experiência dos
anos 1930, mas também a do Japão nos anos 1990. Nessa situação, como Fisher es-
creveu em 1933, «a deflação causada pela dívida reage sobre a dívida. Cada dólar de
dívida que continue por pagar transforma-se num dólar maior, e se o sobreendivi-
damento com o qual começámos for suficientemente grande, a liquidação da dívida
não consegue manter-se com a queda de preços que causa». Posto de outra forma,
os preços caem à medida que os devedores vendem activos para pagarem as suas dí-
vidas e, à medida que os preços caem, as dívidas remanescentes devem ser repagas
em dólares mais valiosos que os que os que haviam sido emprestados, causando mais
incumprimentos e conduzindo a preços ainda mais baixos e, portanto, a uma espiral
deflacionária13.
A economia ainda não está numa situação tão grave, mas o espectro assoma. Como
assinalou Paul Asworth, economista-chefe norte-americano na Capital Economics,
em meados de Outubro deste ano, «Com a taxa de desemprego a subir rapidamente
e os mercados financeiros em tumulto, quase tudo aponta para a deflação. A única
coisa que podemos esperar é que a pronta acção dos decisores políticos possa even-
tualmente ter um efeito de antecipação». «As economias do mundo rico», advertiu a
The Economist no início de Outubro, «estão já a sofrer um impacto ligeiro desta
“deflação da dívida”. A combinação da queda dos preços das casas com a contrac-
ção do crédito está a forçar os devedores a cortar gastos e a vender activos, o que,
por sua vez, pressiona os preços das casas e outros mercados de activos para baixo
[…] Uma queda generalizada nos preços do consumidor só pioraria as coisas»14.
A mera suspeita de que tais acontecimentos poderiam ter hoje lugar na economia
norte-americana deveria, supostamente, ser enfrentada pela função de emprestador
de último recurso, baseada na perspectiva de que o problema seria principalmente
monetário e poderia, ao mais pequeno sinal de perigo, ser sempre resolvido por meios
monetários através da inundação da economia com liquidez. Nesse sentido, o presi-
dente da FED, Ben Bernanke, proferiu uma comunicação em 2002 (na qualidade de
governador da FED) significativamente intitulada «Deflation: Making Sure “It”
Doesn’t Happen Here» [Deflação: assegurar que «ela» não acontece aqui]. Nessa co-
municação, Bernanke afirmou que havia diversas formas de assegurar que «ela» não
aconteceria de novo, apesar da crescente instabilidade financeira:

O governo norte-americano dispõe de uma tecnologia composta por


máquinas de impressão (ou, nos dias de hoje, pelos seus equivalentes

11
electrónicos) que lhe permitem produzir tantos dólares quantos quiser prati-
camente de borla. Através do aumento dos dólares em circulação, ou mesmo
apenas da ameaça convincente de o fazer, o governo norte-americano conse-
gue também reduzir o valor de cada dólar em termos de bens e serviços, o que
é equivalente a aumentar os preços em dólares desses bens e serviços. Pode-
mos concluir que, no contexto de um sistema de papel-moeda, um governo
determinado pode sempre gerar um nível mais elevado de despesa e, por
conseguinte, inflação positiva.

Como é óbvio, o governo norte-americano não vai emitir dinheiro e distribui-lo à


toa (embora, como veremos mais tarde, há políticas que na prática se aproximam
desse comportamento). Geralmente, o dinheiro é injectado na economia através da
compra de activos da FED. Para estimular despesa agregada quando as taxas de juro
de curto prazo tiverem atingido o zero, a FED deve aumentar a escala da compra dos
seus activos ou, possivelmente, expandir a gama desses activos. Em alternativa, a
FED poderia encontrar outras formas de injectar dinheiro no sistema – por exem-
plo, emprestando a taxas de juro baixas aos bancos ou cooperando com as autori-
dades fiscais15.
Na mesma comunicação, Bernanke sugeriu que «uma redução fiscal financiada por
dinheiro», com o objectivo de evitar a deflação em tais circunstâncias, era, «no es-
sencial, equivalente à famosa “queda de helicóptero” do dinheiro, de Milton
Friedman – uma frase que lhe valeu a alcunha de «Ben Helicóptero»16.
Economista académico, Bernanke, que construiu a sua reputação através de estu-
dos sobre a Grande Depressão, foi um produto da perspectiva proposta de forma
mais influente por Milton Friedman e Anna Schwartz no seu famoso trabalho A
Monetary History of the United States, 1867-1960 [Uma história monetária dos Estados
Unidos, 1867-1960] de que a origem da Grande Depressão foi monetária e poderia
ter sido combatida quase exclusivamente em termos monetários. A incapacidade de
abrir as comportas no início foi, de acordo com Friedman e Schwartz, a principal
razão que explica por que o declínio económico foi tão severo17. Bernanke opôs-se
fortemente a concepções mais antigas da Depressão que a baseavam na fraqueza es-
trutural da economia «real» e no processo de acumulação subjacente. Falando no 75.º
aniversário do crash do mercado de acções de 1929, afirmou o seguinte:

Durante a própria Depressão e nas décadas seguintes, a maioria dos


economistas argumentava que os factores monetários não eram uma causa
importante da Depressão. Por exemplo, muitos observadores sublinhavam o
facto de que as taxas de juro nominais estiveram próximas do zero durante
uma boa parte da Depressão, concluindo que a política monetária tinha sido
bastante leve, ainda que não tenha produzido qualquer benefício tangível para
a economia. A tentativa de utilizar a política monetária para libertar uma eco-
nomia de uma depressão profunda foi frequentemente comparada com um
«esticar da corda».

12
Nas primeiras décadas a seguir à Depressão, a maioria dos economistas procurou
desenvolvimentos no lado real da economia, e não nos factores monetários, de modo
a encontrar explicações. Alguns argumentaram, por exemplo, que o sobreinvesti-
mento e a sobreconstrução que tiveram lugar durante a efervescência dos anos 1920
conduziram a um crash quando ficou claro que os retornos sobre esses investimen-
tos eram menores que o esperado. Uma outra teoria que chegou a ser popular foi a
de que um problema crónico de «subconsumo» – a incapacidade das famílias com-
prarem bens e serviços suficientes para utilizar a capacidade produtiva da economia
– precipitou a crise18.
A resposta de Bernanke para tudo isto foi a reafirmação clara de que os factores
monetários precipitaram (e explicaram) quase exclusivamente a Grande Depressão e
foram os principais, na verdade quase os únicos, meios do conflito dívida-deflação.
As tendências na economia real, como a emergência de excesso de capacidade na in-
dústria, têm que ser fortemente tidas em consideração. No máximo, foi uma ameaça
deflacionária a ser enfrentada pela reflação19. Ao contrário do que Bernanke susten-
tou numa outra ocasião, também não era necessário explorar a opinião de Minsky de
que o sistema financeiro da economia capitalista é inerentemente instável, visto que
essa análise dependeu da irracionalidade económica associada às manias especulati-
vas e, por conseguinte, partia do modelo da economia neoclássica do «comporta-
mento económico racional» formal20. Bernanke concluiu uma comunicação
comemorativa do 90.º aniversário do nascimento de Friedman, em 2002, com as se-
guintes palavras: «Gostaria de dizer o seguinte a Milton e Anna: em relação à Grande
Depressão, nós fizemo-la. Lamentamos. Mas obrigado, não o faremos de novo»21.
«Ela», como é óbvio, era a Grande Depressão.
No seguimento do crash bolsista de 2000, um debate surgiu nos círculos do banco
central com o objectivo de perceber se deveriam ser feitos «ataques preventivos» con-
tra as futuras bolhas de activos de modo a prevenir catástrofes económicas.
Bernanke, representando a ortodoxia económica dominante, colocou-se na van-
guarda da argumentação de que isso não deveria ser tentado, visto que era difícil
saber se uma bolha era mesmo uma bolha (ou seja, se a expansão financeira era jus-
tificada ou não pelos princípios económicos ou pelos novos modelos de negócios).
Além disso, alfinetar uma bolha era fazer um convite ao desastre, já que as tentativas
da FED para o fazer no final da década de 1920 provocaram (de acordo com a in-
terpretação monetarista) falências de bancos e a Grande Depressão. E concluía: «a
política monetária não pode ser direccionada com precisão suficiente para guiar os
preços dos activos sem arriscar estragos colaterais severos na economia […] Em-
bora não seja nunca possível eliminar a volatilidade da economia e dos mercados fi-
nanceiros, devemos ser capazes de moderá-la sem sacrificar as enormes forças do
nosso sistema de mercado livre». Bernanke defendia, basicamente, que não havia dú-
vidas, dada a natureza do sistema, que o melhor que a FED poderia fazer perante uma
grande bolha era restringir-se à sua função de emprestador de último recurso22.
No momento do pico da bolha imobiliária, Bernanke, então líder dos conselheiros
económicos de Bush, declarou de olhos semicerrados: «Os preços das casas subiram
cerca de 25 por cento nos últimos dois anos. Não obstante a actividade especulativa

13
ter crescido nalgumas áreas, ao nível nacional esses aumentos de preços reflectem lar-
gamente fortes princípios económicos, incluindo o crescimento robusto do emprego
e dos rendimentos, taxas hipotecárias baixas, taxas de formação familiar estáveis e fac-
tores que limitam a expansão da oferta de casas nalgumas zonas»23. Ironicamente,
foram essas perspectivas que levaram à nomeação de Bernanke como presidente da
FED (em substituição de Alan Greenspan) no início de 2006.
A bolha imobiliária começou a esvaziar no início de 2006, ao mesmo tempo que a
FED estava a aumentar as taxas de juro, numa tentativa de conter a inflação. O re-
sultado foi um colapso do sector imobiliário e dos títulos suportados por hipoteca.
Confrontado com a grande crise financeira que começou em 2007, Bernanke, na
qualidade de presidente da FED, pôs as máquinas de impressão a funcionar em pleno,
inundando a nação e o mundo de dólares. Cedo chegou, consternado, à conclusão de
que tinha estado a «esticar a corda». Nenhuma quantidade de infusões de liquidez
seria capaz de ultrapassar a insolvência em que as instituições financeiras estavam
atoladas. Incapazes de trabalhar bem nas suas exigências financeiras correntes – es-
tivessem eles compelidos a fazê-lo –, os bancos recusaram renovar créditos à me-
dida que venciam e acumulavam o dinheiro disponível em vez de o emprestarem e
trazerem o sistema de volta à tona. A crise financeira cedo se tornou tão universal que
os riscos de emprestar dinheiro dispararam, dado que muitos dos que previamente
precisavam de crédito estavam então, muito possivelmente, no limite da insolvência.
Numa armadilha de liquidez, como ensinou Keynes, pôr as máquinas de impressão
em funcionamento acrescenta alguma coisa à acumulação de dinheiro, mas não a
novos empréstimos e despesas.
No entanto, a verdadeira raiz do fiasco financeiro, como veremos, é muito mais
profunda: a estagnação da produção e do investimento.

Da explosão financeira à implosão financeira


O nosso argumento, em poucas palavras, é que a explosão financeira nas últimas
décadas e a implosão financeira que agora toma lugar devem ser explicadas funda-
mentalmente por referência às tendências de estagnação no interior da economia
subjacente. Um conjunto de outras explicações para a presente crise (a maioria das
quais centradas em causas próximas) tem vindo a ser avançado por economistas e
analistas. Entre essas explicações estão: o afrouxamento da regulação do sistema fi-
nanceiro; as taxas de juro muito baixas introduzidas pela FED para contrariar os efei-
tos do crash da bolha de acções da «Nova Economia» em 2000, conduzindo à bolha
imobiliária; e a venda de grandes quantidades de hipotecas «subprime» a muitas pes-
soas que não tinham a possibilidade de comprar uma casa e/ou não compreendiam
plenamente os termos das hipotecas.
Foi então dada muita atenção às técnicas através das quais as hipotecas eram em-
pacotadas em conjunto e depois «cortadas às fatias» e vendidas a investidores insti-
tucionais em todo o mundo. A fraude aberta pode também ter estado envolvida
nalgumas das mistificações financeiras. A queda do valor das casas que se seguiu ao
rebentamento da bolha do imobiliário e a incapacidade de muitos dos detentores de

14
hipotecas subprime continuarem a fazer os seus pagamentos mensais, juntamente com
as consequentes execuções, constituíram seguramente as últimas gotas que fizeram
transbordar o copo, provocando esta falência catastrófica do sistema. E poucos du-
vidam hoje que tudo piorou com o fervor desregulador, avidamente promovido pelas
empresas financeiras, que as deixou com muito poucas defesas para quando as
coisas piorassem.
Apesar disso, a raiz do problema vai muito mais fundo e deve ser procurada numa
economia real em crescimento lento, abrindo caminho à explosão financeira à me-
dida que o capital procurava «aliviar» o seu problema através da expansão da dívida
e dos ganhos da especulação. A extensão a que chegou a dívida em relação ao PIB
nas últimas quatro décadas pode ser observada na Tabela 1. Como os dados mostram,
a característica mais marcante no desenvolvimento do capitalismo durante esse
período foi o inchamento da dívida.

Tabela 1: Dívida doméstica* e PIB (biliões de dólares)

* A parte federal da dívida local, estatal e federal inclui apenas a porção detida pelo sector
público. A dívida total em 2007, quando a dívida federal detida pelas agências federais foi
adicionada, é de 51,5 biliões de dólares.
Fontes: Flow of Funds Accounts of the United States, Tabela L.1 Credit Market Debt
Outstanding, Reserva Federal e Tabela B-1, Gross domestic product, 1959-2007, Economic Report
of the President, 2008.

Este fenómeno é subsequentemente ilustrado no Quadro 1, mostrando a subida em flecha da


dívida privada em relação ao produto interno, da década de 1960 até ao presente. A dívida do sec-
tor financeiro em percentagem do PIB descolou nas décadas de 1960 e 1970, acelerou no início
da década de 1980 e disparou na segunda metade da década de 1990. A dívida das famílias em
percentagem do PIB começou a crescer fortemente no início da década de 1980 e au-
mentou ainda mais rapidamente no final da década de 1990. A dívida dos negócios
não-financeiros em relação ao produto nacional também subiu nesse período, embora
menos espectacularmente. O efeito total foi um aumento maciço na dívida privada
em relação ao produto nacional. O problema torna-se mais complexo se juntarmos
a dívida governamental (local, estatal e federal). Quando juntamos todos os sectores,
a dívida total em percentagem do PIB subiu de 151 por cento em 1959 para uns
astronómicos 373 por cento em 2007!

15
O aumento do peso da dívida cumulativa em percentagem do PIB foi um grande
estímulo para a economia, particularmente no sector financeiro, alimentando gigan-
tescos lucros financeiros e marcando a crescente financeirização do capitalismo (a
mudança na gravidade da produção para a finança no interior da economia como
um todo). O cenário dos lucros, juntamente com a financeirização acelerada, é mos-
trado no Quadro 2, que nos dá um índice temporal (1970=100) do sector financeiro
norte-americano em contraposição aos lucros não-financeiros e ao PIB. Com início
na década de 1970, os lucros financeiros e não-financeiros tenderam a aumentar ao
mesmo ritmo do PIB. Porém, no final dos anos 1990, a finança pareceu descontro-
lar-se com os lucros das empresas financeiras norte-americanas (e, a uma escala
menor, também com os lucros das empresas não-financeiras), descolando para es-
tratosfera, aparentemente sem relação com o crescimento do produto nacional, re-
lativamente estagnado. As empresas, jogando no que parecia ser um casino gigante,
conseguiram uma alavancagem cada vez maior – ou seja, apostavam frequentemente
trinta ou mais dólares emprestados por cada dólar seu que era utilizado. Isto ajuda a
explicar os lucros extraordinariamente elevados que conseguiam obter quando as
suas apostas eram bem sucedidas. Obviamente, o crescimento da finança não se li-
mitou simplesmente aos Estados Unidos, mas foi um fenómeno global com exigên-
cias especulativas por riqueza muito maior que a produção global e com as mesmas
contradições essenciais a atravessar todo o mundo capitalista avançado e as econo-
mias «emergentes».

Quadro 1: Dívida privada em percentagem do PIB


120

100

80
Percentagem do PIB

Dívida do sector não-financeiroÈ


60 


40 Ç
Dívida das famílias

20 
Ç
Dívida do sector financeiro

0
1960 1965 1970 1975 1980 1985 1990 1995 2000 2005

Fontes: ver Tabela 1.

16
Quadro 2: Crescimento dos lucros financeiros e não-financeiros em
relação ao PIB (1970=100)
3,500

3,000

2,500
Índice (1970 = 100)

2,000

Lucros financeirosÈ
1,500

1,000

Ç
Lucros não-financeirosÈ PIB
500

0
1970 1975 1980 1985 1990 1995 2000 2005

Fontes: Cálculo a partir da Tabela B-91 – Corporate profits by industry, 1959-2007. Tabela B-1
– Gross domestic product, 1959–2007, Economic Report of the President, 2008.

Já no final da década de 1980 a seriedade da situação se tornava clara para os que


não estavam ligados às formas de pensar estabelecidas. Em 1988, no aniversário do
crash bolsista de 1987, os editores da Monthly Review Harry Magdoff e Paul Sweezy de-
fenderam que, mais cedo ou mais tarde – seria impossível prever quando e exacta-
mente como –, uma grande crise do sistema financeiro que dominava a função de
emprestador de último recurso ocorreria previsivelmente. E isso aconteceria porque
toda a precária superstrutura financeira tinha, por essa altura, crescido a uma tal es-
cala que os meios das autoridades governamentais, apesar de maciças, já não seriam
suficientes para conter a avalanche, especialmente se não actuassem rápida e decidi-
damente. Como Magdoff e Sweezy sugeriram, nos próximos tempos, seria possível
que o esforço de salvamento tivesse «sucesso, do mesmo modo ambíguo que teve
após o crash do mercado de acções em 1987. Se assim for, teremos todo o processo
a avançar de novo e num nível mais elevado e precário. No entanto, mais cedo ou
mais tarde, da próxima vez ou ao virar da esquina, não terá sucesso», gerando uma
severa crise da economia.
Como bom exemplo da avalanche financeira que aí viria, eles destacaram o «alto
voo da bolsa de Tóquio» como um possível prelúdio de uma grande implosão
financeira e de uma profunda estagnação que se seguiria – uma realidade que viria a
materializar-se mais tarde, resultando na crise financeira japonesa e na «Grande
Estagnação» da década de 1990. Os valores dos activos (quer na bolsa quer nos bens
imobiliários) caíram numa quantidade equivalente a mais de dois anos de PIB. À

17
medida que as taxas de juro se reduziam a zero e o conflito dívida-deflação tomava
lugar, o Japão ficava preso numa clássica armadilha de liquidez, sem forma de reto-
mar uma economia já de si profundamente atolada de sobrecapacidade na economia
produtiva24.
Em 1987, logo após o crash bolsista norte-americano, Magdoff e Sweezy
escreviam:

No actual mundo governado pela finança, o crescimento subjacente de


mais-valia é cada vez mais insuficiente para a acumulação de capital-dinheiro.
Na ausência de uma base de mais-valia, o capital-dinheiro acumulado torna-
-se cada vez mais nominal, de facto, fictício. Vem da compra e venda de acti-
vos financeiros e baseia-se na assunção de que os valores desses activos serão
continuamente inflacionados. O que temos em curso, por outras palavras, é
uma especulação assente na crença de que, apesar das flutuações nos preços,
os valores dos activos seguirão sempre numa única direcção – para cima!
Contra esse pressuposto, o crash bolsista de Outubro [de 1987] assume um
significado de grande alcance. Ao demonstrar a falácia de um movimento de
subida infinita nos valores dos activos, expôs a essência irracional da
economia actual.25

Obviamente, essas contradições, associadas às bolhas especulativas, têm sido, até


certo ponto, endémicas para o capitalismo ao longo da sua história. Contudo, como
sublinharam Magdoff e Sweezy, em linha com Minsky, na era pós-Segunda Guerra
Mundial, a parte saliente da dívida tornou-se cada vez maior, realçando o crescimento
de um problema cumulativo e crescentemente perigoso. No livro The End of
Prosperity [O fim da prosperidade], Magdoff e Sweezy escreviam: «Na ausência de
uma depressão severa, durante a qual as dívidas são forçosamente liquidadas ou dras-
ticamente reduzidas, as medidas governamentais de salvamento para prevenir o co-
lapso do sistema financeiro estruturam os alicerces para mais camadas de dívida e
tensões adicionais no próximo avanço económico». Como refere Minsky, «Sem uma
crise e um processo de dívida-deflação para equilibrar as expectativas no sucesso dos
riscos especulativos, são induzidos um pendor de crescimento e uma estratificação
financeira cada vez maior»26.
Até ao momento em que os economistas mainstream e os analistas económicos fi-
caram eles próprios despertos para estas inconvenientes questões, elas eram rapida-
mente postas de parte. Apesar de o crescimento espectacular da finança não
conseguir criar senão agitação de tempos a tempos – por exemplo, a famosa refe-
rência de Alan Greenspan à «exuberância irracional –, a assunção prevalecente, pro-
movida pelo próprio Greenspan, era a de que o crescimento da dívida e da
especulação representavam uma nova era de inovação do mercado financeiro, ou
seja, uma alteração estrutural sustentável no modelo de negócios associada aos novos
riscos revolucionários das técnicas de gestão. Greenspan estava tão apaixonado pela
«Nova Economia» tornada possível pela financeirização, que referiu em 2004: «Não
só as instituições financeiras individualmente consideradas se tornaram menos

18
vulneráveis aos choques dos factores de risco subjacentes, como também o sistema
financeiro como um todo ganhou mais resiliência»27.
Foi apenas com o início da crise financeira em 2007 e a sua continuação em 2008
que os analistas financeiros começaram, surpreendentemente, a produzir o discurso
contrário. Manas Chakravarty, um colunista económico do sítio Internet de investi-
mentos Livemint.com (um associado do The Wall Street Journal), reconheceu a 17 de
Setembro de 2008, no contexto da falência de Wall Street, que

o economista norte-americano Paul Sweezy sublinhou há muito tempo que


a estagnação e a enorme especulação financeira emergiram como aspectos
simbióticos do mesmo impasse económico profundo e irreversível. Ele afir-
mou que a estagnação da economia subjacente significava que os negócios
estavam crescentemente dependentes do crescimento da finança para preser-
var e aumentar o seu capital-dinheiro e que a superstrutura da economia não
podia expandir-se de modo inteiramente independente da sua base na eco-
nomia produtiva subjacente. Com uma notável presciência, Sweezy afirmou
que o rebentamento das bolhas especulativas seria, portanto, um problema
recorrente e crescente.28

19
Claro que Paul Baran e Sweezy, em Monopoly Capital [Capital monopolista], e mais
tarde Magdoff e Sweezy, na Monthly Review, chamaram a atenção para outras formas
de absorção de mais-valia, como as despesas governamentais (em especial as despe-
sas militares), o esforço de vendas, os estímulos proporcionados por novas inovações,
etc.29 Mas todas essas formas, apesar de importantes, provaram ser insuficientes para
manter a economia próxima de algo como o pleno emprego e, na década de 1970, o
sistema estava atolado numa estagnação (ou estagflação) em aprofundamento. Foi a
financeirização – e o crescimento da dívida que promoveu activamente – que viria a
emergir como o estímulo à procura quantitativamente mais importante. Mas esse
processo fazia adivinhar a inevitabilidade da chegada das consequências financeiras
e dos incumprimentos em cascata.
Com efeito, alguns analistas mainstream, sob a pressão dos acontecimentos, foram
forçados a reconhecer, no Verão de 2008, que seria inevitável uma desvalorização
maciça do sistema. Jim Reid, responsável pela área do crédito do Deutsche Bank, ao
examinar o tipo de relação entre os lucros financeiros e o PIB exibidas no Quadro
2, produziu uma análise em que sustentou o seguinte:

Os lucros financeiros norte-americanos desviaram-se da média na última


década numa base cumulativa […] O sector financeiro norte-americano fez,
na última década, cerca de 1,2 biliões de dólares de lucros «excessivos» em re-
lação ao PIB nominal […] Portanto, a reversão da média [a teoria de que os
retornos no mercado financeiro, ao longo do tempo, «revertem» para um pro-
jecção média de longo prazo] sugeriria que os 1,2 biliões de dólares de lucros
teriam que ser liquidados antes de o sector financeiro norte-americano poder
ser saneado dos excessos da última década […] Dado que […] a Bloomberg
informa que 184 biliões de dólares foram desvalorizados pelos financeiros
norte-americanos até agora nesta crise, se acreditarmos que a dimensão do
sector financeiro deveria reduzir-se para os níveis verificados há uma década
atrás, poderíamos então concluir que há um outro bilião de dólares de des-
truição de valor para ir para o sector antes de regressarmos à tendência de
longo prazo nos lucros financeiros. Uma ideia assustadora e que, se estiver
correcta, conduzirá a um longo período de intervenção constante das autori-
dades tentando conter essa destruição potencial. Encontrar a dimensão apro-
priada do sector financeiro no «novo mundo» será um aspecto decisivo para
se compreender quanta destruição de lucro tem que estar em curso no sector.

A ideia de uma reversão da média dos lucros financeiros para a sua linha de ten-
dência de longo prazo na economia como um todo teve como objectivo ser suges-
tiva da extensão da transformação iminente, visto que Reid aceitava a possibilidade
de que o «mundo real» estrutural existe para explicar o peso relativo da finança. Como
reconheceu, «calcular a dimensão apropriada “natural” do sector financeiro em rela-
ção ao resto da economia é um mistério extraordinariamente difícil de desvendar».
De facto, é muito duvidoso que tenha existido um nível «natural». Mas a questão de
que uma «destruição de lucro» maciça ocorreria previsivelmente antes de o sistema

20
conseguir recuperar e que isso explicaria o «longo período de intervenção constante
das autoridades tentando conter essa destruição» deu relevo ao facto de que a crise
era bastante mais severa do que era largamente suposto – algo que só se tornou claro
mais tarde30.
O que um tal pensamento sugeria, em linha com o que Magdoff e Sweezy haviam
sustentado nas últimas décadas do século XX, era que a autonomia da finança face
à economia subjacente, associada ao processo de financeirização, era mais relativa
que absoluta e que, em última análise, um grande declínio económico – mais do que
o mero rebentamento de uma bolha e o enchimento de outra – seria inevitável. Isso
parecia ser tanto mais devastador quanto mais o sistema procurava adiá-lo. Entre-
tanto, como sublinharam Magdoff e Sweezy, a financeirização podia ainda avançar
durante algum tempo. E, efectivamente, não houve qualquer outra resposta para o
sistema.

De volta à economia real: o problema da estagnação

Paul Baran, Paul Sweezy e Harry Magdoff sustentaram infatigavelmente, desde a


década de 1960 à de 1990 (mais notavelmente em Monopoly Capital), que a estagnação
era o estado normal da economia capitalista monopolista, salvo factores históricos es-
peciais. Eles insistiram que a prosperidade que caracterizou a economia nas décadas
de 1950 e 1960 se deveu a esses factores históricos temporários: (1) a acumulação de
poupanças dos consumidores durante a guerra; (2) uma segunda grande onda de au-
tomobilização nos Estados Unidos (incluindo a expansão das indústrias do vidro, do
aço e da borracha, a construção do sistema de auto-estradas interestadual e o de-
senvolvimento dos subúrbios); (3) a reconstrução da economia europeia e japonesa,
devastadas pela guerra; (4) a corrida aos armamentos da Guerra Fria (e as duas guer-
ras regionais na Ásia); (5) o crescimento do esforço de vendas, marcado pela ascen-
são da Madison Avenue; (6) a expansão da finança, dos seguros e dos bens
imobiliários; e (7) a preeminência do dólar como moeda hegemónica. Assim que os
estímulos extraordinários desses factores desvaneceram, a economia começou a re-
gressar à estagnação: crescimento lento e aumento da capacidade excessiva e do
desemprego/subemprego. No fim de contas, foram as despesas militares e a explo-
são da dívida e da especulação que constituíram os principais estímulos à manuten-
ção da economia acima do marasmo. Não foram, porém, suficientes para prevenir o
reaparecimento das tendências de estagnação, e o problema piorou com o tempo31.
A realidade da estagnação progressiva pode ser observada na Tabela 2, que mos-
tra as taxas reais de crescimento da economia década a década nos últimos oitenta
anos. A lenta taxa de crescimento nos anos 1930 reflectiu a profunda estagnação da
Grande Depressão. A isso seguiu-se o crescimento extraordinário da economia norte-
-americana na década de 1940, sob o impacto da Segunda Guerra Mundial. Entre
1950 e 1969, hoje referida como uma «Idade Dourada» económica, a economia, pro-
pulsionada pelo conjunto de factores históricos especiais referido acima, foi capaz de
atingir um forte crescimento económico numa economia «em tempo de paz». Tudo
isso demonstrou, porém, ser temporário. A queda aguda das taxas de crescimento na

21
década de 1970 e daí para frente mostra uma tendência persistente para uma expan-
são mais lenta da economia, à medida que as principais forças propulsoras das taxas
de crescimento nos anos 1950 e 1960 minguavam, impedindo a economia de re-
gressar à sua anterior prosperidade. Nas décadas subsequentes, em vez de recuperar
a sua anterior tendência de crescimento, a economia abrandou lentamente.

Tabela 2: Crescimento no PIB real – 1930-2007

Fonte: National Income and Products Accounts, Tabela 1.1.1. Percent Change from Preceding
Period in Real Gross Domestic Product, Comissão de Análise Económica.

Como enfatizaram recentemente os economistas heterodoxos Riccardo Bellfiore


e Joseph Halevi, foi a realidade da estagnação económica que começou nos anos
1970 que conduziu à emergência do «novo regime capitalista financeirizado», uma es-
pécie de «keynesianismo financeiro paradoxal», por meio do qual a procura na economia
foi estimulada antes de mais «graças às bolhas de activos». Ademais, foi o papel lide-
rante dos Estados Unidos na geração dessas bolhas – apesar (e também por causa)
do enfraquecimento da acumulação adequada de capital –, em conjunto com a posi-
ção de moeda de reserva do dólar, que tornaram o capital monopolista financeiro
norte-americano o «catalisador da procura efectiva mundial», com início nos anos
198032. Mas essa via de crescimento financeirizado foi incapaz de produzir um avanço
económico rápido durante algum tempo e era insustentável, conduzindo a bolhas
maiores que explodiam periodicamente e trazendo a estagnação cada vez mais à
superfície.
Um elemento fundamental na explicação de toda esta dinâmica pode encontrar-
se na diminuição dos salários em percentagem do produto nacional nos Estados Uni-
dos. A estagnação nos anos 1970 levou o capital a lançar uma guerra de classe
acelerada contra os trabalhadores, de forma a aumentar os lucros fazendo descer os
custos do trabalho. O resultado traduziu-se em décadas de desigualdade crescente33.
O Quadro 3 mostra um declínio acentuado na parte dos salários no PIB entre o final
dos anos 1960 e o presente. Isso reflectiu o facto de que os salários reais dos traba-
lhadores privados não-agrícolas nos Estados Unidos (em dólares de 1982) atingiram
o pico em 1972 nos 8,99 dólares por hora e, em 2006, estavam nos 8,24 dólares (o
equivalente ao valor médio dos salários reais por hora em 1967), não obstante o
enorme crescimento na produtividade e nos lucros durante as últimas décadas34.

22
Quadro 3: Despesas com salários em percentagem do PIB
54

53

52
Percentagem do PIB

51

50

49

48

47

46

45
1960 1965 1970 1975 1980 1985 1990 1995 2000 2005

Fontes: Economic Report of the President, 2008, Tabela B-1 (PIB), Tabela B-29 – Sources of personal
income, 1959-2007.

Isso foi parte de uma redistribuição maciça de rendimentos e riqueza pelo topo.
Entre 1950 e 1970, por cada dólar adicional feito pelos 90 por cento mais pobres, os
0,01 por cento mais ricos recebiam 162 dólares adicionais. Em contraste, de 1990 a
2002, por cada dólar feito pelos 90 por cento mais pobres, os 0,01 por cento mais
ricos (hoje, cerca de 14 000 famílias) recebem 18 000 dólares adicionais. Nos Esta-
dos Unidos, os 1 por cento mais ricos em 2001 detinham em conjunto mais de duas
vezes a riqueza dos 80 por cento mais pobres. Se isto fosse medido apenas em ter-
mos de riqueza financeira, ou seja, excluindo a equidade na ocupação de casas com-
pradas, os 1 por cento mais ricos deteriam quatro vezes mais riqueza que os 80 por
cento mais pobres. Entre 1983 e 2001, os 1 por cento mais ricos arrecadavam 28 por
cento do crescimento do produto nacional, 33 por cento do património líquido total
e 52 por cento do crescimento total da liquidez financeira35.
O facto verdadeiramente assinalável sob essas circunstâncias é que o consumo das
famílias continuou a crescer de um pouco acima dos 60 por cento do PIB no início
da década de 1960 para cerca de 70 por cento em 2007. Isso só foi possível por causa
do aumento do número de famílias de dois proprietários (à medida que as mulheres
entraram no mercado de trabalho em número cada vez mais elevado), de pessoas a
trabalhar mais horas e em vários empregos em simultâneo e do aumento irreversível
da dívida de consumo. A dívida das famílias foi estimulada, particularmente nas úl-
timas fases da bolha do imobiliário, através de um dramático aumento dos preços das
casas, permitindo aos consumidores endividarem-se mais contra a sua equidade au-
mentada (o chamado efeito «riqueza») – um processo que terminou subitamente

23
quando a bolha rebentou e os preços das casas começaram a baixar. Como mostra
o Quadro 1, a dívida das famílias aumentou de cerca de 40 por cento do PIB em
1960 para 100 por cento do PIB em 2007, com um aumento especialmente acentuado
no final da década de 199036.
O crescimento do consumo, baseado na expansão da dívida das famílias, viria a
provar ser o calcanhar de Aquiles da economia. A bolha imobiliária assentava num
aumento acentuado da dívida hipotecária das famílias, ao passo que os salários reais
estavam há décadas congelados. Isso levou a que um número cada vez maior de pro-
prietários tivesse mais nas suas casas do que elas valiam, criando mais incumpri-
mentos e uma subsequente queda nos preços das casas. Os bancos, procurando
equilibrar os seus balancetes, começaram a evitar novas extensões das dívidas de car-
tões de crédito. O consumo baixou, empregos perderam-se, os gastos de capital
foram transferidos e uma espiral descendente de duração imprevista começou.
Durante os últimos trinta e poucos anos, o excedente económico controlado pelas
empresas e nas mãos de investidores institucionais, como as companhias de seguros
e os fundos de pensões, afluíram num fluxo cada vez maior de um conjunto exótico
de instrumentos financeiros. Apenas uma pequena parte do excedente económico foi
utilizado para expandir o investimento, que se manteve num estado de reprodução
simples, engrenado para a mera reposição (embora com nova e melhorada tecnolo-
gia), por oposição à reprodução expansiva. Com as empresas incapazes de encontrar
a procura para a sua produção – uma realidade reflectida no declínio de longo prazo
da capacidade de utilização na indústria (ver Quadro 4) – e, portanto, confrontadas
com a escassez de oportunidades de investimentos lucrativos, o processo de forma-
ção de capital líquido tornou-se cada vez mais problemático.

Quadro 4: Percentagem de utilização de capacidade industrial


86

85
Percentagem da capacidade de utilização

84

83

82

81

80

79

78

77
1970 1975 1980 1985 1990 1995 2000 2005

Fonte: Economic Report of the President, 2008, Tabela B-54 – Capacity utilization rates, 1959-2007.

24
Assim, os lucros foram crescentemente desviados do investimento na expansão
da capacidade produtiva para a especulação financeira, ao mesmo tempo que o sec-
tor financeiro parecia gerar géneros ilimitados de produtos financeiros para fazer uso
desse capital-dinheiro. (O mesmo fenómeno verificou-se globalmente, levando
Bernanke a referir-se, em 2005, a uma «superabundância de poupanças globais», com
enormes quantidades de capital direccionadas para o investimento a circular à volta
do mundo e crescentemente esgotadas para os Estados Unidos por causa do seu
papel liderante na financeirização.)37 As consequências disto podem ser observadas
no Quadro 5, que mostra a separação dramática dos lucros do investimento líquido
em percentagem do PIB nos anos recentes, com o investimento fixo não-residencial pri-
vado em percentagem do produto nacional a cair significativamente durante o período,
mesmo quando os lucros em percentagem do PIB se aproximavam de um nível que não
se via desde o final da década de 1970. Isso marcou, para usar os termos de Marx, uma
mudança da «fórmula geral do capital» D(inheiro)-M(ercadoria)-D’ (dinheiro original
mais mais-valia), na qual as mercadorias eram centrais para a produção de lucros,
para um sistema crescentemente orientado apenas para o capital-dinheiro, D-D’, no
qual o dinheiro cria simplesmente mais dinheiro sem relação com a produção.

Quadro 5: Lucros e investimento líquido em percentagem do PIB


– de 1960 até ao presente
10

LucrosÈ

8
Percentagem do PIB

4
Ç
Investimento líquido privado

0
1965 1970 1975 1980 1985 1990 1995 2000 2005

Fontes: Comissão de Análise Económica, National Income and Product Accounts, Tabela 5.2.5.
Gross and Net Domestic Investment by Major Type, (milhares de milhões de dólares). Tabela
B-1 (PIB) e Tabela B-91 (Lucros da Indústria Doméstica), Economic Report of the President, 2008.
Comissão de Análise Económica, National Income and Product Accounts, Tabela 5.2.5. Gross
and Net Domestic Investment by Major Type, Annual Data 1929-2006.

25
Na medida em que a financeirização pode ser vista como a resposta do capital à
tendência de estagnação na economia real, uma crise de financeirização representa
inevitavelmente o reaparecimento da estagnação endémica subjacente nas economias
capitalistas avançadas. A deleverage da enorme dívida construída ao longo das recen-
tes décadas está hoje a contribuir para aprofundar a crise. Além disso, com a finan-
ceirização bloqueada, não há qualquer outra forma visível de saída para o capital
financeiro monopolista. Nesse sentido, o prognóstico aponta para que a economia,
mesmo após a crise de desvalorização imediata estabilizar, será durante algum tempo,
na melhor das hipóteses, caracterizada pelo crescimento mínimo e por altos níveis de
desemprego, subemprego e capacidade excessiva.
O facto de o consumo norte-americano (facilitado pelo enorme défice das contas
correntes) ter proporcionado uma procura efectiva, crucial para a produção noutros
países, significa que o abrandamento nos Estados Unidos está já a provocar efeitos
desastrosos no exterior, com a liquidação financeira hoje a percorrer o mundo a alta
velocidade. As economias «emergentes» e subdesenvolvidas são apanhadas num des-
concertante conjunto de problemas. Esses problemas incluem a queda das exporta-
ções, o declínio dos preços das mercadorias e as repercussões dos elevados níveis de
financeirização no topo de uma base económica instável e altamente exploradora
– sendo, simultaneamente, sujeita a pressões imperiais renovadas por parte dos
Estados centrais.
Os Estados centrais estão eles próprios em problemas. A Islândia, que foi compa-
rada a um canário numa mina de carvão, experimentou uma completa falência fi-
nanceira, obrigando a uma ajuda exterior e, provavelmente, a um assalto aos fundos
de pensões da comunidade. Por mais de setenta anos, a Islândia teve um governo de
direita liderado pelo ultraconservador Partido da Independência, em coligação com
os partidos centristas sociais-democratas. Sob essa liderança, a Islândia adoptou a fi-
nanceirzação e a especulação neoliberal até ao pescoço e assistiu a um crescimento
do seu sector bancário e financeiro, com o total dos seus activos a crescer dos 96
por cento do seu PIB em 2000 para nove vezes o seu PIB em 2006. Hoje, aos con-
tribuintes islandeses, que não foram responsáveis por esse processo, é pedido que car-
reguem o fardo das dívidas especulativas externas dos seus bancos, resultando num
drástico declínio nas condições de vida38.

Uma economia política

A economia na sua fase clássica, que compreende o trabalho quer de Adam Smith,
David Ricardo, Thomas Malthus ou John Stuart Mill quer de pensadores socialistas
como Karl Marx, é designada por economia política. O nome é significativo porque
aponta para a base de classe da economia e do papel do Estado39. Sem dúvida que
Adam Smith introduziu a noção da «mão invisível» do mercado como substituta da
antiga mão visível do monarca. Mas, o contexto político e de classe da economia esteve,
apesar de tudo, omnipresente em Smith e em todos os outros economistas clássicos.
Nos anos 1820, como observou Marx, houve «desafios esplêndidos» entre economis-
tas políticos em representação de classes (e fracções de classe) diferentes da sociedade.

26
No entanto, dos anos 1830 e 1840 em diante, à medida que a classe trabalhadora
emergia como uma força na sociedade e que a burguesia industrial assegurava um
controlo firme do Estado, desapossando os interesses instalados (nomeadamente
com a abolição das Corn Laws), os economistas passaram da sua forma interroga-
tiva anterior para a «má consciência e a intenção malévola dos apologéticos»40. Cres-
centemente, o fluxo circular da vida económica foi reconceptualizado como um
processo que envolvia apenas indivíduos, consumo, produção e lucro na margem. O
conceito de classe, por conseguinte, desapareceu da economia, mas foi adoptado
pelo campo emergente da sociologia (de formas cada vez mais abstraídas das relações
económicas fundamentais). Também o Estado começou a ser visto como não tendo
nada que ver directamente com a economia e foi tomado pelo novo campo da ciên-
cia política41. A economia foi, desse modo, «purificada» de todos os elementos polí-
ticos e de classe e foi cada vez apresentada como uma ciência «neutra», centrada nos
princípios universais/trans-históricos do capital e das relações de mercado.
Tendo perdido quaisquer raízes significativas na sociedade, a economia ortodoxa
neoclássica, que se apresentou como um paradigma único, tornou-se uma disciplina
dominada por abstracções largamente sem sentido, modelos mecânicos, metodolo-
gias formais e linguagem matemática, divorciada dos desenvolvimentos históricos.
Passou a ser tudo menos uma ciência do mundo real; ao invés, a sua grande impor-
tância assenta no seu papel como ideologia autoratificadora. Entretanto, os negócios
na actualidade prosseguiram nas suas linhas fundamentais largamente esquecidos (al-
gumas vezes, propositadamente) das teorias económicas ortodoxas. A economia her-
dada tem sido incapaz de aprender as lições da Grande Depressão, ou seja, os defeitos
inerentes de um sistema classista de acumulação na sua fase monopolista, incluindo
a tendência para ignorar o facto de que o problema real assenta na economia real, e
não na economia monetária-financeira.
Hoje, nada parece mais míope que a rápida subvalorização de Bernanke das teo-
rias tradicionais sobre a Grande Depressão que identificavam as causas profundas da
intensificação da sobrecapacidade e da baixa procura – indiciando uma rejeição se-
melhante e subvalorização dos mesmos factores na actualidade. Tal como o seu men-
tor, Milton Friedman, Bernanke defendeu a perspectiva económica neoliberal
dominante nas últimas décadas, com a sua insistência de que controlando «a rocha
que despoleta a derrocada», seria possível evitar indefinidamente uma avalanche fi-
nanceira de «grandes proporções»42. Não se preocupou com o facto de que as coisas
estavam a piorar e que isso se devia aos processos reais. Ironicamente, Bernanke, o
especialista académico da Grande Depressão, adoptou o que foi descrito por Ethan
Harris, economista-chefe norte-americano no Barclays Capital, como uma política do
«não vejo mal algum, não ouço mal algum, não falo de mal algum» a respeito das
bolhas de activos»43.
É para o lado contrário, para uma ênfase nas contradições socioeconómicas do
sistema, que nos deveremos virar. Durante algum tempo, em resposta à Grande
Depressão da década de 1930, no trabalho de John Maynard Keynes e de vários ou-
tros pensadores associados à tradição keynesiana, institucionalista ou marxista – o
mais importante dos quais foi o economista polaco Michael Kalecki –, houve algum

27
revivalismo das perspectivas político-económicas. Mas, a seguir à Segunda Guerra
Mundial, o keynesianismo foi crescentemente absorvido pelo sistema. Isso ocorreu,
em parte, através daquilo a que se chamou a «síntese neoclássica-keynesiana – o que,
como destacou Joan Robinson, uma das mais jovens colegas de Keynes, teve como
efeito o desvirtuamento de Keynes – e, em parte, através da expansão do keynesia-
nismo de guerra44. No fim de contas, o monetarismo emergiu como principal resposta
à crise de estagflação dos anos 1970, em conjunto com a ascensão de outras ideolo-
gias conservadoras do mercado livre, como a teoria do lado da oferta, as expectati-
vas racionais e a nova economia neoclássica (resumida como a ortodoxia neoliberal).
A economia perdeu a sua matriz político-económica e o mundo foi conduzido de
volta ao mito da auto-regulação, dos mercados auto-equilibrados, livres dos proble-
mas de classe e do poder. O que quer que questionasse esses princípios era caracte-
rizado como político, e não económico, e era largamente excluído da discussão
económica mainstream45.
Nem é necessário referir que a economia nunca deixou de ser política; pelo con-
trário, a política que foi promovida esteve tão intimamente ligada ao sistema do poder
económico que, muitas vezes, se tornou quase invisível. A mão visível do monarca,
de Smith, transformou-se na mão invisível não do mercado, mas da classe capita-
lista, oculta por detrás do véu do mercado e da competição. Não obstante, a cada
grande crise económica, esse véu é parcialmente afastado e a realidade do poder de
classe exposta.
O pedido do secretário do Tesouro Paulson ao Congresso, em Setembro de 2008,
de 700 mil milhões de dólares para acudir ao sistema financeiro pode ter constituído
um ponto de viragem na percepção (e no escândalo) popular do problema econó-
mico, levantando pela primeira vez em muitos anos a questão da economia política.
Tornou-se imediatamente visível para toda a população que a questão crítica da crise
financeira e da profunda estagnação económica que emergia era a seguinte: quem pa-
gará? A resposta do sistema capitalista, deixada aos seus próprios mecanismos, foi a
mesma de sempre: os custos deverão ser suportados desproporcionadamente pelos
de baixo. O velho jogo da privatização dos lucros e da socialização das perdas seria
novamente jogado pela enésima vez. A população deveria ser chamada a «apertar o
cinto» para «pagar as despesas» de todo o sistema. A capacidade da maior parte das
pessoas para ver para lá desta fraude, meses ou anos à frente, dependerá, evidente-
mente, da acção de sindicatos e movimentos sociais e do grau a que o império do ca-
pital seja posto a nu pela crise.
Não há dúvidas de que a actual falência do crescimento económico e a indignação
política que gerou produziram uma ruptura fundamental na continuidade do pro-
cesso histórico. Como deve ser a aproximação das forças progressistas a esta crise?
Antes de mais, é importante rejeitar quaisquer tentativas de apresentar os sérios pro-
blemas económicos que enfrentamos como uma espécie de «desastre natural». Eles
têm uma causa, e essa causa assenta no próprio sistema. E não obstante os que estão
no topo do sistema não saudarem a crise, eles têm sido os principais beneficiários do
sistema, enriquecendo desavergonhadamente às custas do resto da população, de-
vendo, por isso, ser responsabilizados pelos fardos essenciais que hoje são impostos
à sociedade. São os ricos que devem pagar as despesas – não apenas por razões de
elementar justiça, mas também porque a melhor forma de ajudar a economia e os
mais desfavorecidos é responder directamente às suas necessidades. Não poderá
haver pára-quedas dourados para a classe capitalista pagos à custa dos contribuintes.
Mas o capitalista beneficia da inércia social, utilizando o seu poder para roubar
abertamente quando não consegue simplesmente funcionar através da exploração
«normal». Sem uma revolta a partir de baixo, o fardo será simplesmente imposto aos
mesmos de sempre. Tudo isto requer uma vaga social e económica de massas, como
sucedeu na segunda metade da década de 1930, incluindo a revitalização dos sindi-
catos e dos movimentos sociais de massas de todas os géneros – utilizando o poder
de mudar garantido ao povo pela Constituição; indo, inclusivamente, ao ponto de
ameaçar o actual duopólio do sistema de dois partidos.
O que deverá um tal movimento radical a partir de baixo, se vier a emergir, pro-
curar fazer nas actuais circunstâncias? Aqui hesitamos, não porque não haja necessi-
dade de agir, mas porque um movimento político radicalizado determinado a
erradicar décadas de exploração, desperdício e irracionalidade surgirá como uma tem-
pestade violenta, abrindo novos horizontes totais de mudança. O que quer que seja
que possamos sugerir neste momento corre o duplo risco de parecer demasiado
radical no presente e demasiado tímido no futuro.

29
Alguns economistas e comentadores liberais argumentam que, tendo em conta a
crise económica presente, nada menos que um grande programa público direccio-
nado para a criação de emprego, uma espécie de um novo New Deal, resultará. Ro-
bert Kuttner sustentou em Obama’s Challenge [O desafio de Obama] que «uma
recuperação económica exigirá qualquer coisa como 700 mil milhões de dólares por
ano em nova despesa pública, ou 600 mil milhões de dólares contando com a com-
pensação de cortes nas despesas militares. Porquê? Porque não há outra estratégia
plausível para atingir uma recuperação económica geral e restaurar o equilíbrio da
economia»46. Isso, porém, será mais difícil do que parece. Há boas razões para acre-
ditar que os interesses económicos dominantes bloqueariam um aumento dos gas-
tos do governo a uma tal escala, mesmo durante uma crise, na medida em que isso
interferiria com o mercado privado. A verdade é que as compras públicas estavam em
13,3 por cento do PNB em 1939 – valor que Baran e Sweezy, em 1966, teorizaram
como a aproximação dos seus «limites máximos» – e mal aumentaram desde então,
com as despesas públicas de consumo e investimento a situarem-se no presente nos
13,7 por cento do PNB (13,8 por cento do PIB)47. As forças de classe que bloqueiam
um grande aumento na despesa pública fora do sector da defesa, mesmo numa se-
vera estagnação, não devem, portanto, ser subestimadas. Quaisquer grandes avanços
nessa direcção exigirão uma luta de classes maciça.
Assim, não pode haver dúvidas de que as mudanças devem ser direccionadas prio-
ritariamente para a resposta às necessidades básicas das pessoas de alimentação, ha-
bitação, emprego, saúde, educação, um ambiente sustentável, etc. Assumirá o governo
a responsabilidade de proporcionar trabalho útil aos que o desejam e aos que dele pre-
cisam? Será a habitação tornada disponível (livre de hipotecas esmagadoras) para
todos, mesmo para os sem-abrigo e para os que vivem em casas degradadas? Será in-
troduzido um sistema de saúde de pagador único para cobrir as necessidades de toda
a população, substituindo o pior e mais caro sistema de saúde do mundo capitalista
avançado? Serão as despesas militares reduzidas drasticamente, prescindindo da do-
minação imperial global? Serão os ricos taxados pesadamente e os rendimentos e a
riqueza redistribuídos? Será o ambiente global e local protegido? Será o direito à
organização tornado uma realidade?
Se esses pré-requisitos elementares para um futuro decente parecem impossíveis
sob o presente sistema, então o povo deve tomar nas suas mãos a criação de uma
nova sociedade que proporcione esses bens genuínos. Acima de tudo, é necessário
«insistir que a moralidade e a economia apoiam da mesma forma o sentido intuitivo
das massas de que os recursos humanos e naturais da sociedade podem e devem ser
usados por todas as pessoas e não por uma minoria privilegiada»48.
Na década de 1930, Keynes desacreditou o domínio crescente do capital finan-
ceiro, que ameaçava reduzir a economia real a «uma bolha num turbilhão de especu-
lação», e recomendou a «eutanásia do rentista». No entanto, a financeirização é tão
essencial para o capital financeiro monopolista dos dias de hoje que uma tal «euta-
násia do rentista» não pode ser conseguida – em contravenção com o sonho de
Keynes de um capitalismo mais racional – sem um movimento que vá além do pró-
prio sistema. Nesse sentido, estamos claramente num ponto de viragem global em

30
que o mundo está talvez finalmente preparado para dar o passo, como Keynes tam-
bém previu, de repudiar o código moral alienado do «bom é mau e mau é bom» – uti-
lizado para justificar a ganância e a exploração necessária para a acumulação de capital
–, tornando-o incapaz de criar uma ordem social mais racional49. Para que isso
aconteça, é necessário que a população tome o controlo da sua economia política,
substituindo o actual sistema capitalista por algo que equivalha a uma democracia
política e económica real; aquilo que os actuais donos do mundo mais temem e
caluniam – o «socialismo»50.
25 de Outubro de 2008

Notas:
1
Harry Magdoff e Paul M. Sweezy, The Irreversible Crisis, Monthly Review Press, Nova Iorque, 1988, p. 76.
2
James K. Galbraith, The Predator State, The Free Press, Nova Iorque, 2008, p. 48.
3
«Congressional Leaders Were Stunned by Warnings», The New York Times, 19 de Setembro de 2008.
4
Manas Chakravarty e Mobis Philipose, «Liquidity Trap: Fear of Failure», Livemint.com, 11 de Outubro de
2008; John Maynard Keynes, The General Theory of Employment, Interest and Money, Macmillan, Londres, 1973,
p. 174.
5
«Drama Behind a $250 Billion Banking Deal», The New York Times, 15 de Outubro de 2008.
6
«Government’s Leap into Banking Has its Perils», The New York Times, 18 de Outubro de 2008.
7
«Single-Family Homes in U.S. Fall to a 26-Year Low», Bloomberg.net, 17 de Outubro de 2008; «Economic
Fears Reignite Market Slump», The Wall Street Journal, 16 de Outubro de 2008.
8
Ver «Depression of 2008: Are We Heading Back to the 1930s», London Times, 5 de Outubor de 2008. Sobre
a estagnação japonesa, ver Paul Burkett e Martin Hart-Landsberg, «The Economic Crisis In Japan», Critical
Asian Studies 35, n.º 3, 2003, pp. 339-72.
9
«The U.S. is Said to Be Urging New Mergers in Banking», The New York Times, 21 de Outubro de 2008.
10
«CDO Cuts Show $1 Trillion Corporate-Debt Bets Toxic», Bloomberg.net, 22 de Outubro de 2008.
11
«Banks are Likely to Hold Tight to Bailout Money», The New York Times, 17 de Outubro de 2008.
12
Hyman Minsky, Can «It» Happen Again?, M. E. Sharpe, Nova Iorque, 1982, pp. vii-xxiv; «Hard Lessons to
be Learnt from a Minsky Moment», Financial Times, 18 de Setembro de 2008; Riccardo Bellofiore e Joseph
Halevi, “A Minsky Moment?: The Subprime Crisis and the New Capitalism,” in C. Gnos e L. P. Rochon, Credit,
Money and Macroeconomic Policy: A Post-Keynesian Approach, Edward Elgar, Cheltenham, no prelo. Para as
perspectivas de Magdoff e Sweezy sobre Minsky, ver The End of Prosperity, Monthly Review Press, Nova Iorque
1977, pp. 133–36.
13
Irving Fisher, «The Debt-Deflation Theory of Great Depressions», Econometrica, n.º 4, Outubro de 1933,
p. 344; Paul Krugman, «The Power of De», The New York Times, 8 de Setembro de 2008.
14
«Amid Pressing Problems the Threat of Deflation Looms», The Wall Street Journal, 18 de Outubro de 2008;
«A Monetary Malaise», The Economist, 11-17 de Outubro de 2008, p. 24.
15
Ben S. Bernanke, «Deflation: Making Sure “It” Doesn’t Happen Here», National Economists Club,
Washington D.C., 21 de Novembro de 2002, http://www.federalreserve.gov.
16
Ethan S. Harris, Ben Bernanke’s Fed, Harvard University Press, Boston, 2008, pp. 2, 173; Milton Friedman,
The Optimum Quantity of Money and Other Essays, Aldine Publishing, Chicago, 1969, pp. 4-14.
17
Ben S. Bernanke, Essays on the Great Depression, Princeton University Press, Princeton, 2000, p. 5; Milton
Friedman e Anna Schwartz, A Monetary History of the United States, 1867–1960, Princeton University Press,
Princeton, 1963. Para perspectivas mais realistas acerca da Grande Depressão, tendo em conta a economia real,
bem como os factores monetários, e olhando para ela do ponto de vista da estagnação do investimento que,
acima de tudo, a caracterizou, ver Michael A. Bernstein, The Great Depression, Cambridge University Press,
Cambridge, 1987; e Richard B. DuBoff, Accumulation and Power, M.E. Sharpe, Nova Iorque, 1989, pp. 8492. Para
as terorias clássicas sobre a Grande Depressão, ver William A. Stoneman, A History of the Economic Analysis of
the Great Depression in America, Garland Publishing, Nova Iorque, 1979.
18
Ben S. Bernanke, «Money, Gold, and the Great Depression»; H. Parker Willis dissertação sobre
Política Económica, Washington e Universidade de Lee, Lexington, Virgínia, 2 de Março de 2004,
http://www.federalreserve.gov.
19
Ben S. Bernanke, «Some Thoughts on Monetary Policy in Japan», Japan Society of Monetary Economics,
Tóquio, 31 de Maio de 2003, http://www.federalreserve.gov.
20
Bernanke, Essays on the Great Depression, p. 43.
21
«On Milton Friedman’s Ninetieth Birthday», Conferência em Honra de Milton Friedman,
Universidade de Chicago, 8 de Novembro de 2002,
http://www.federalreserve.gov/BOARDOCS/SPEECHES/2002/20021108/default.htm. Ironicamente, Anna
Schwartz, hoje com 91 anos, referiu numa entrevista ao The Wall Street Jounal que a Fed, com Bernanke, estava
a disputar a derradeira guerra, não percebendo que a questão era a incerteza acerca da solvência dos bancos, e
não um problema de liquidez, como na escalada para a Grande Depressão. «Bernanke is Fighting the Last War:
Interview of Anna Schwartz», The Wall Street Journal, 18 de Outubro de 2008.
22
Ben S. Bernanke, «Asset Prices and Monetary Policy», comunicação dirigida à New York Chapter of the
National Association for Business Economics, Nova Iorque, 15 de Outubro de 2002,
http://www.federalreserve.gov; Harris, Ben Bernanke’s Fed, pp. 147-58.
23
Ben S. Bernanke, «The Economic Outlook», 25 de Outubro de 2005,
http://www.whitehouse.gov/cea/econ-outlook20051020.html; citado em Robert Shiller, The Subprime Option,
Princeton University Press, Princeton, 2008, p. 40.

32
24
Magdoff e Sweezy, The Irreversible Crisis, p. 76; Burkett e Hart-Landsberg, «The Economic Crisis in Japan»,
pp. 347, 354-56, 36-66; Paul Krugman, «Its Baaack: Japan’s Slump and the Return of the Liquidity Trap»,
Brookings Papers on Economic Activity, n.º 2, 1998, pp. 141-42, 174-78; Michael M. Hutchinson e Frank Westermann,
eds., Japan’s Great Stagnation, MIT Press, Cambridge, 2006.
25
Magdoff e Sweezy, The Irreversible Crisis, p. 51.
26
Magdoff e Sweezy, The End of Prosperity, p. 136; Hyman Minsky, John Maynard Keynes, Columbia University
Press, Nova Iorque, 1975, p. 164.
27
Greenspan citado, The New York Times, 9 de Outubro de 2008. Ver também John Bellamy Foster, Harry
Magodff e Robert W. McChesney, «The New Economy: Myth and Reality», Monthly Review 52, n.º 11, Abril de
2001, pp. 1-15.
28
Manas Chakravarty, «A Turning Point in the Global Economic System», Livemint.com, 17 de Setembro
de 2008, http://www.livemint.com/2008/09/17002644/A-turning-point-for-the-global.html.
29
Ver John Bellamy Foster, Naked Imperialism, Monthly Review Press, Nova Iorque, 2006, pp. 45-50.
30
Jim Reid, «A Trillion-Dollar Mean Reversion?», Deutsche Bank, 15 de Julho de 2008,
http://www.nuclearphynance.com/User%20Files/85/thought_of_jim_14july.pdf.
31
Ver Paul A. Baran e Paul M. Sweezy, Monopoly Capital, Monthly Review Press, Nova Iorque, 1966; Harry
Magdoff e Paul M. Sweezy, The Dynamics of U.S. Capitalism, Monthly Review Press, Nova Iorque, 1972, The
Deepening Crisis of U.S. Capitalism, Monthly Review Press, Nova Iorque, 1981 e Stagnation and the Financial
Explosion, Monthly Review Press, Nova Iorque, 1987.
32
Bellofiore e Halevi, «A Minsky Moment?».
33
Ver Michael Yates, Longer Hours, Fewer Jobs, Monthly Review Press, Nova Iorque, 1994; Michael Perelman,
The Confiscation of American Prosperity, Palgrave Macmillan, Nova Iorque, 2007.
34
Economic Report of the President, 2008, Tabela B-47, p. 282.
35
Correspondentes do The New York Times, Class Matters, Times Books, Nova Iorque, 2005, p. 186;
Edward N. Wolff, ed., International Perspectives on Household Wealth, Edward Elgar, Cheltenham, 2006, pp. 112-15.
36
Para uma análise de classe da dívida das famílias, ver John Bellamy Foster, «The Household Debt Bubble»,
capítulo 1 de John Bellamy Foster e Fred Magdoff, The Great Financial Crisis: Causes and Consequences, Monthly
Review Press, Nova Iorque, 2009.
37
Ben S. Bernanke, «The Global Savings Glut and the U.S. Current Account Deficit», Associação de Econo-
mia da Virgínia, 10 de Março de 2005, http://www.federalreserve.gov.
38
Steingrímur J. Stigfússon, «On the Financial Crisis of Iceland», MRzine.org, 20 de Outubro de 2008; «Ice-
land in a Precarious Position», The New York Times, 8 de Outubro de 2008; «Iceland Scrambles for Cash», The
Wall Street Journal, 6 de Outubro de 2008.
39
Ver Edward J. Nell, Growth, Profits and Prosperity, Cambridge University Press, Cambridge, 1980, pp. 19-28.
40
Karl Marx, Capital, vol. 1, Vintage, Nova Iorque, 1976, pp. 96-98.
41
Ver Crawford B. Macpherson, Democratic Theory, Oxford University Press, Oxford, 1973, pp. 195-203.
42
Friedman e Schwartz, A Monetary History of the United States, p. 419.
43
Harris, Ben Bernanke’s Fed, pp. 147-58.
44
Ver John Bellamy Foster, Hannah Holleman e Robert W. McChesney, «O triângulo imperial norte-ameri-
cano e os gastos militares», Monthly Review, n.º 6, Outubro de 2008.
45
Para uma discussão sobre a estagnação simultânea da economia e da teoria económica desde a década de
1970, ver Perelman, The Confiscation of American Prosperity. Ver também E. Ray Canterbery, A Brief History of
Economics, World Scientific Publishing, River Edge, 2001, pp. 417-26.
46
Robert Kuttner, Obama’s Challenge, Chelsea Green, White River Junction, 2008, p. 27.

33
47
Baran e Sweezy, Monopoly Capital, pp. 159, 161; Economic Report of the President, 2008, pp. 224, 250.
48
Harry Magdoff e Paul M. Sweezy, «The Crisis and the Responsibility of the Left», Monthly Review 39,
n.º 2, Junho de 1987, pp. 1-5.
49
Ver Keynes, The General Theory of Employment, Interest, and Money, p. 376 e Essays in Persuasion, Harcourt
Brace and Co., Nova Iorque, 1932, p. 372; Paul M. Sweezy, «The Triumph of Financial Capital», Monthly Review
46, n.º 2, Junho de 1994, pp. 1-11; John Bellamy Foster, «The End of Rational Capitalism», Monthly Review 56,
n.º 10, Março de 2005, pp. 1-13.
50
A este respeito, acreditamos que é necessário ir além da economia liberal e trabalhar uma crítica implacá-
vel da realidade existente. Mesmo um economista liberal relativamente progressista como Paul Krugman, lau-
reado recentemente com o Prémio do Banco da Suécia para a Economia em Honra de Alfred Nobel, torna claro
que o que faz dele um pensador mainstream, e, por isso, um elemento do topo da sociedade, é o seu forte com-
prometimento com o capitalismo e com os «mercados livres», bem como o seu desdém pelo socialismo – afir-
mando orgulhosamente que «há apenas uns anos atrás […] uma revista dedicou uma peça a um ataque às
minhas perspectivas pró-capitalistas». Paul Krugman, The Great Unraveling, W. W. Norton, Nova Iorque, 2004,
p. xxxvi. Sobre o mesmo tema, ver Harry Magdoff, John Bellamy Foster e Robert W. McChesney, «A Prizefighter
for Capitalism: Paul Krugman vs. the Quebec Protestors», Monthly Review 53, n.º 2, Junho de 2001, pp. 1-5.

* John Bellamy Foster é editor da Monthly Review e professor de Sociologia na Universidade de Oregon. É
autor de Naked Imperialism (Monthly Review Press, 2006), entre muitos outros trabalhos. Fred Magdoff é
professor emérito de Ciências das Plantas e dos Solos na Universidade de Vermont, em Burlington, professor
adjunto de Cultivos e Solos na Universidade de Cornell e director da Monthly Review Foundation. Este artigo
é o último capítulo de John Bellamy Foster e Fred Magdoff, The Great Financial Crisis: Causes and Consequences,
Monthly Review Press, Janeiro de 2009.

34
América certa ou errada
Relações anglo-americanas desde 1945
John Newsinger*

A subordinação britânica aos Estados Unidos, a chamada relação especial, como


é conhecida com optimismo em Londres, é um dado de tal forma adquirido que
raras vezes é sujeito a um escrutínio crítico. Por que será que, desde 1945, a classe do-
minante britânica e os seus agentes assumiram sem quaisquer reservas um papel su-
balterno no império norte-americano? Mais recentemente, a «relação especial» viu o
governo do New Labor apoiar activamente e tomar parte na invasão e ocupação do
Iraque face a uma opinião pública hostil. Com efeito, a maior manifestação na his-
tória britânica, a 15 de Fevereiro de 2003, foi contra a participação britânica nessa
guerra de agressão imperialista. O pretexto mentiroso e desonesto para a invasão,
em conjunto com a associação forçada com George W. Bush, destruiu efectivamente
a reputação do primeiro-ministro Tony Blair (pelo menos na Grã-Bretanha) e foi um
factor importante na sua queda. A Guerra do Iraque, juntamente com as suas polí-
ticas internas neoliberais, levou a que o número de membros do Partido Trabalhista
descesse de 400 mil em 1997 para os 150 mil actuais. Apesar disso, com o sucessor
de Blair, Gordon Brown, o alinhamento britânico pela bandeira norte-americana tem
continuado ininterruptamente, com as tropas britânicas a matarem e a serem mor-
tas no Afeganistão, numa guerra que não beneficia de um suporte popular na
Grã-Bretanha que vá além de um apoio reflexivo às tropas no terreno, aos «nossos
rapazes». Este artigo explorará as razões e a história desta subordinação voluntária.

Os trabalhistas no poder – 1945-1951

A Segunda Guerra Mundial foi levada a cabo, pelo menos no que à classe
dominante britânica diz respeito, para proteger o Império Britânico da ameaça re-
presentada pela Alemanha nazi e seus aliados. Embora a ameaça nazi tenha sido des-
truída com sucesso, o Império Britânico foi vítima dos esforços da guerra total. A
guerra deixou a Grã-Bretanha exausta militarmente e economicamente. Quando o
governo trabalhista assumiu o poder, em 1945, viu-se confrontado com uma ampla
agitação colonial e, ao mesmo tempo, com a dependência face aos Estados Unidos,
um rival imperial que pretendia substituir a influência britânica no mundo pela sua.

35
A Grã-Bretanha não tinha força militar nem económica para segurar o seu império
e foi forçada a um retraimento indesejado.
A fraqueza da posição britânica não foi imediatamente visível. Inicialmente, o go-
verno trabalhista foi capaz de restabelecer a gestão francesa no Vietname e a gestão
dinamarquesa na Indonésia através de intervenções militares sangrentas, de consoli-
dar a gestão realista na Grécia e de suprimir a esquerda na Malásia Peninsular, preci-
pitando uma revolta guerrilheira em 19481. Decisivos, porém, foram os
desenvolvimentos na Índia, onde o poder haveria de ser relutantemente submetido
a um governo do Congresso que era encarado como perigosamente de esquerda. O
que o governo trabalhista pretendia atingir era a transferência de poderes limitados
para políticos pró-imperialistas, numa Índia balcanizada onde o poder britânico con-
tinuaria a ser dominante (uma opção espantosamente similar à política norte-ameri-
cana actual no Iraque). A Índia continuaria a ser um apoiante leal do Império
Britânico, com as tropas indianas disponíveis para combater nas suas guerras e as
bases militares britânicas instaladas no subcontinente. O primeiro-ministro Nehru e
o Congresso Nacional Indiano, pressionados por uma ampla agitação popular, frus-
traram efectivamente esse plano. Ao mesmo tempo que o governo trabalhista con-
siderava seriamente uma acção policial para esmagar o Congresso, era reconhecido
a contragosto que a Grã-Bretanha não dispunha da força militar nem dos recursos
económicos para derrotar a rebelião. Ademais, Washington não financiaria uma tal
iniciativa imperial, visto que pretendia substituir o Império Britânico e não sustentá-
-lo. Como o primeiro-ministro Attlee preveniu os seus colegas de executivo, não
havia «alternativa prática» à evacuação da Índia2. O que é verdadeiramente sur-
preendente é a forma como os políticos trabalhistas foram subsequentemente capa-
zes de transformar esta história num episódio heróico de capacidade política
anti-imperialista, através da qual «deram» a independência à Índia. A perda da Índia
foi um golpe fundo que atingiu seriamente as pretensões imperiais da Grã-Bretanha.
Tudo o que os britânicos desejavam era, nesse tempo, uma parceria com os Esta-
dos Unidos em termos de relativa igualdade. Attlee e o seu secretário dos Negócios
Estrangeiros, Ernest Bevin, confiavam que a recuperação económica restauraria o
poder britânico. De facto, a decisão do governo de desenvolver armas nucleares tinha
como intenção reforçar a sua posição em relação aos Estados Unidos, e não
responder à ameaça soviética. Como insistia Bevin:

Quero que nenhum outro secretário do Negócios Estrangeiros deste país


venha a ser tratado por um secretário de Estado dos Estados Unidos como
eu fui nas minhas discussões com o Sr. Byrnes. Temos que conseguir isso
custe o que custar […] temos que ter a maldita Union Jack [bandeira da
Grã-Bretanha. N.T.] desfraldada no topo.3

No entanto, as esperanças numa relação equitativa foram rapidamente dissipadas.


Mesmo no Médio Oriente, que era visto como um interesse britânico vital, os bri-
tânicos ficaram dependentes dos Estados Unidos. Quando os iranianos nacionaliza-
ram a britânica Anglo-Iranian Oil Company (AIOC), em Maio de 1951, o governo

36
trabalhista considerou a hipótese de uma intervenção militar para derrubar o go-
verno nacionalista de Mossedegh. O ministro da Defesa britânico, Emanuel
Shibwell, avisou que se uma acção dura não fosse tomada, «o Egipto e outros países
do Médio Oriente ficariam encorajados para pensar que poderiam pôr-nos à prova;
a próxima coisa que pode ser tentada é a nacionalização do Canal do Suez»4. Os pla-
nos para uma intervenção militar foram abandonados «à luz da atitude dos Estados
Unidos […] Não podíamos arriscar uma ruptura com os Estados Unidos num as-
sunto destes»5. Afinal, o governo de Mossedegh viria a ser derrubado em 1953 por
um golpe conduzido pela CIA, apoiado pelos britânicos, que instalou o xá no poder.
Os Estados Unidos substituíram a Grã-Bretanha enquanto poder dominante no Irão
e o controlo britânico sobre o petróleo iraniano terminou.
O governo trabalhista teve que reconhecer que, tendo ainda a Grã-Bretanha inte-
resses globais, o Estado não tinha já condições para os proteger. Só os Estados Uni-
dos dispunham dos necessários recursos económicos e militares. De forma a proteger
os seus interesses globais, a Grã-Bretanha tornou-se um parceiro subordinado no
império norte-americano. Quando os interesses britânicos e norte-americanos con-
flituassem, os britânicos sacrificariam, se necessário, as suas posições, de forma a as-
segurarem que os Estados Unidos continuariam a ser os garantes dos seus interesses
globais. Esta relação viria com frequência a revelar-se difícil, muitas vezes humilhante,
mas os interesses do capital britânico estavam em primeiro lugar.

A Guerra Fria

A Guerra Fria desempenhou um importante papel na legitimação do império


norte-americano. Havendo, certamente, um verdadeiro confronto entre grandes po-
tências, a Guerra Fria também forneceu um pretexto útil e convincente para o exer-
cício do poder norte-americano pelo mundo fora. O derrube de Mossedegh, por
exemplo, foi justificado com a necessidade de prevenir um putativo golpe comunista,
mas a sua real motivação foi assegurar o controlo do petróleo iraniano. Os britâni-
cos estiveram empenhadamente associados a esse golpe. O governo Attlee não só de-
sempenhou um papel importante no estabelecimento da Organização do Tratado
do Atlântico Norte (OTAN), em 1949, como, mais tarde nesse ano, permitiu que os
Estados Unidos instalassem bases militares permanentes em solo britânico. Apesar
de ser hoje um dado adquirido, isso foi algo absolutamente sem precedentes e
representou uma revolução na política externa britânica.
O preço da aliança com os Estados Unidos tinha que ser inevitavelmente pago em
sangue. A eclosão da Guerra da Coreia, em Junho de 1950, foi inicialmente vista
como não afectando quaisquer interesses britânicos e, para mais, as forças militares
britânicas estavam já seriamente sobrecarregadas. O que se tornou rapidamente claro
foi que o envio de forças britânicas para a Coreia era absolutamente necessário para
que a «relação especial» fosse mantida. Com efeito, uma divisão da Commonwealth
viria a ser enviada para a Coreia, para lutar numa guerra que, para os britânicos, não
tinha outra racionalidade que não a de que Washington exigia esse sacrifício aos seus
aliados. Para preservar a «relação especial», o governo trabalhista comprometeu a

37
Grã-Bretanha com uma das mais brutais guerras pós-1945 – uma guerra em que os
bombardeamentos norte-americanos devastaram a Coreia e em que morreram,
provavelmente, três milhões de pessoas.
O que, na verdade, representou uma dramática demonstração da subordinação bri-
tânica foi, todavia, transformado num episódio em que os ingleses exerceram a sua
influência sobre os Estados Unidos e impediram-nos de praticarem horrores ainda
maiores. No final de 1950, o presidente Truman afirmou que os Estados Unidos es-
tavam a considerar seriamente a utilização de armas nucleares na Coreia. Isso alar-
mou os aliados europeus de Washington que estavam vulneráveis a uma retaliação
soviética e, a 4 de Dezembro, Attlee voou para Washington, tendo sido, suposta-
mente, bem-sucedido a refrear Truman. Isso não passa de ficção, uma outra tradição
inventada. O marxista Ralph Miliband caracterizou-a como «uma lenda»6. Os britâ-
nicos não impediram os Estados Unidos de utilizarem armas nucleares nem recebe-
ram qualquer garantia sobre o assunto. O máximo que conseguiram foi a promessa
de que seriam os primeiros a ser informados se e quando a decisão fosse tomada. Do
que podemos estar absolutamente certos é que, se os Estados Unidos tivessem uti-
lizado armas nucleares, o governo trabalhista teria dado o seu apoio. Afinal, Attlee já
era primeiro-ministro quando Hiroshima e Nagasaki foram bombardeadas e deu
todo o seu apoio a esses crimes. Também vale a pena notar que o governo traba-
lhista permitiu que os Estados Unidos equipassem os seus bombardeiros B-29
estacionados na Grã-Bretanha com armas nucleares e não impuseram qualquer veto
sobre a sua utilização! Apesar disso, essa pretensa influência viria a ser uma das for-
mas utilizadas por sucessivos governos britânicos para justificar a sua subordinação
aos Estados Unidos. Ao povo britânico foi assegurado que Tony Blair estava
permanentemente a refrear Goerge W. Bush. Isso era, obviamente, pura ficção.

Suez

Enquanto o governo trabalhista levou, ainda que relutantemente, a Grã-Bretanha


para uma posição subordinada no império norte-americano, o seu substituto con-
servador continuava a ter ilusões acerca da condição de grande potência da Grã-Bre-
tanha. Particularmente, os conservadores estavam empenhados em manter a posição
britânica no Médio Oriente. Ao mesmo tempo que o Iraque e a Jordânia se
mantinham satélites britânicos, o Egipto, com o apoio norte-americano, tentava li-
bertar-se do controlo britânico. Em 1952, o coronel Nasser havia chegado ao poder
e patrocinava uma guerrilha de baixa intensidade para persuadir os britânicos a sair.
Uma vez mais, os britânicos reconheceram que não tinham força para uma ocupa-
ção plena e, em Julho de 1954, aceitaram finalmente evacuar.
Essa retirada foi vista como um sério revés para a posição britânica no Médio
Oriente, problema que viria complicar-se quando Nasser nacionalizou o Canal do
Suez em Julho de 1956. Os britânicos foram publicamente humilhados. Para mais,
Nasser encorajava a oposição nacionalista à influência britânica no mundo árabe. O
primeiro-ministro Eden concluiu que, se Nasser não fosse destruído, a posição bri-
tânica estaria condenada. Visto que a Grã-Bretanha não podia actuar sozinha e que
qualquer intervenção militar teria certamente a oposição dos Estados Unidos, Eden
foi persuadido de que Nasser poderia ser derrubado por uma invasão conjunta de
britânicos, franceses e israelitas.
Eden acreditava que um ataque militar musculado não apenas removeria Nasser,
como reforçaria a posição britânica face aos Estados Unidos. Logo em 1954, quei-
xara-se que os norte-americanos «querem substituir-nos no Egipto» e que, na verdade,
«eles querem mandar no mundo»7. Enquanto o Partido Trabalhista já havia chegado
a essa conclusão, os conservadores ainda não. Teriam que ser confrontados com as
realidades da «relação especial» para que forçosamente as compreendessem.
Em conjunto com os franceses e os israelitas, Eden acordou um estratagema que faz
a duplicidade Bush-Blair em relação às armas de destruição maciça parecer uma brin-
cadeira de crianças. Os israelitas lançariam um ataque gratuito ao Egipto e depois a
Grã-Bretanha e a França invadiriam sob o pretexto da «manutenção da paz». Mesmo
sabendo o que sabemos hoje, o nível de duplicidade é de cortar a respiração. O pro-
blema foi que ninguém se deixou enganar. A administração Eisenhower não estava
preparada para tolerar acções independentes dos britânicos e não desejava ver a po-
sição britânica no Médio Oriente reforçada. A pressão política e económica norte-
americana forçou a Grã-Bretanha e a França a uma retirada humilhante. Um ponto
interessante é que os Estados Unidos também forçaram os israelitas a retirar do Sinai
(o lóbi pró-israelita não tinha ainda atingido o grau de influência que tem hoje).

39
É particularmente interessante observar as diferentes formas através das quais os
britânicos e os franceses responderam à sua humilhação às mãos dos Estados Uni-
dos. Os franceses responderam olhando para a Europa como um contrabalanço ao
poder norte-americano e adoptaram um posicionamento resolutamente indepen-
dente. Em 1966, De Gaulle encerrou bases norte-americanas em França e não olhou
a meios para manter uma capacidade independente ao nível das armas nucleares. Os
conservadores britânicos, muito duros acerca do que entendiam ser uma traição dos
Estados Unidos, consideraram a hipótese de tomar medidas semelhantes, mas, no
final, decidiram que precisavam dos Estados Unidos para proteger os seus interes-
ses globais. Com o primeiro-ministro Macmillan, a decisão foi nunca mais desafiar
os Estados Unidos e aceitar a subordinação. Os conservadores tinham aprendido a
lição. Esta linha foi simbolizada pelo abandono (por razões de custos) das armas nu-
cleares britânicas e pela compra de submarinos Polaris aos Estados Unidos, em 1962.
Em 1958, era finalmente posto um fim à posição britânica no Médio Oriente atra-
vés do derrube do regime fantoche do Iraque. Macmillan reconheceu que os britâ-
nicos não poderiam invadir o país unilateralmente, esses tempos já lá iam, mas
pressionaram os Estados Unidos para partilharem uma ocupação conjunta. Inclusi-
vamente, os britânicos propuseram que os Estados Unidos ocupassem Bagdade,
enquanto eles ocupariam Basra. Eisenhower recusou8.

Vietname

O governo trabalhista de Harold Wilson, com início em 1964, esteve empenhada-


mente comprometido com a «relação especial», mas, no entanto, resistiu sempre à
pressão norte-americana para enviar tropas para o Vietname. Por que aconteceu isto?
Antes de mais, os britânicos estavam ocupados a combater uma revolta guerrilheira
na sua colónia da Federação da Arábia do Sul e envolvidos num confronto armado
com a Indonésia. No auge do conflito com a Indonésia, a Grã-Bretanha tinha
59 000 homens na Malásia. Wilson recusou enviar nem que fosse uma força simbó-
lica para desfraldar a bandeira no Vietname. Isto apesar do apoio diplomático que o
governo trabalhista deu aos Estados Unidos. Efectivamente, o Partido Trabalhista
deu pleno apoio aos Estados Unidos no que respeita ao Vietname, exceptuando o
envio de tropas.
As razões para isso derivaram da situação política interna na Grã-Bretanha. Se os
conservadores tivessem vencido as eleições de 1964, teriam certamente enviado tro-
pas. Da mesma forma, o líder do Partido Trabalhista que antecedeu Wilson, Hugh
Gaitskell, o candidato da direita do partido, teria enviado tropas independentemente
do nível de oposição. Wilson, contudo, foi eleito líder do Partido Trabalhista como
candidato da esquerda do partido e ficou dependente do seu apoio para sobreviver
politicamente. Enviar tropas para o Vietname teria sido demais para a esquerda do
Partido Trabalhista engolir. Sem qualquer dúvida, uma razão para a obstinação da
esquerda do Partido Trabalhista, contrastando com a incapacidade que tivera de se
opor efectivamente à Guerra da Coreia, foi que o pretexto da Guerra Fria havia per-
dido muita da sua força no final da década de 1960. A Guerra do Vietname não pôde

40
ser consistentemente justificada como uma guerra contra o expansionismo soviético.
No entanto, apesar da sua recusa de enviar tropas para o Vietname, o apoio conti-
nuado de Wilson à guerra provocou uma hemorragia de membros do partido e a
emergência de uma esquerda extraparlamentar organizada em torno da Campanha de
Solidariedade com o Vietname.
A derrota dos Estados Unidos no Vietname conduziu a uma reavaliação da «rela-
ção especial» no interior do Partido Trabalhista e do Partido Conservador. A Europa
parecia proporcionar um bloco de poder alternativo aos derrotados Estados Unidos.
O governo conservador de Edward Heath, que iniciou funções em 1970, seguiu na
verdade uma política gaullista de distanciamento deliberado em relação aos Estados
Unidos. Essa política foi decisivamente repudiada por Margaret Thatcher quando
chegou a primeira-ministra em 1979. A «relação especial» voltou então a ser a pedra
de toque da política externa britânica.

Para Bagdade e mais além

O Partido Trabalhista que venceu as eleições em 1997 era muito diferente do Par-
tido Trabalhista que esteve no poder no final das décadas de 1960 e 1970. As derro-
tas infligidas por Margaret Thatcher aos sindicatos nos anos 1980 enfraqueceram
seriamente o movimento dos trabalhadores. A correlação das forças de classe na so-
ciedade britânica havia sido profundamente reajustada em favor dos grandes capita-
listas e dos ricos. Esses desenvolvimentos reflectiram-se no Partido Trabalhista.
Alterando o nome para New Labor [Novo Partido Trabalhista. N.T.], o partido aban-
donou o seu reformismo histórico e optou pelo neoliberalismo. Os arquitectos dessa
transformação foram Tony Blair e Gordon Brown, ambos pró-americanos e, inci-
dentalmente, dedicados sionistas.
Internamente, o New Labor levou o thatcherismo mais longe do que Thatcher al-
guma vez sonhara. É espantoso como, em termos políticos, o New Labor é o go-
verno britânico mais à direita desde a Segunda Guerra Mundial e, em certos aspectos,
desde a Primeira Guerra Mundial9. O New Labor avançou para as privatizações com
um entusiasmo que envergonha os conservadores (o Serviço Nacional de Saúde e a
educação pública, por exemplo, estão a ser privatizados aos poucos), é responsável
pelos níveis crescentes de desigualdade e abandonou mesmo qualquer compromisso
sério com algo tão elementar como a «taxação progressiva». Com efeito, o New Labor
celebra-se como o partido do grande capital.
Ao mesmo tempo que o New Labor rompeu com tudo o que o Partido Traba-
lhista costumava defender no que diz respeito à política interna, o empenho britânico
na «relação especial» continuou. Quando Tony Blair chegou a primeiro-ministro, em
1997, o seu chefe de gabinete disse a Christopher Meyer, o novo embaixador em
Washington, que a sua função era «chegar à Casa Branca e manter-se por lá»10. Não
obstante a forma crua com que é posta, esta é, em poucas palavras, a política externa
do New Labor. Nesse sentido, o apoio e envolvimento britânico nas invasões e ocu-
pações do Afeganistão e do Iraque era inevitável. Quando, em Julho de 2002, o mi-
nistro dos Negócios Estrangeiros de Blair, Jack Straw, colocou algumas reservas em

41
relação à invasão do Iraque, Blair respondeu imediatamente que não apoiar os Esta-
dos Unidos «seria a maior cambalhota em matéria de política externa em 50 anos»11.
O New Labor esteve activamente envolvido na fraude e nas mentiras descaradas que
precederam a invasão. Tinha como expectativa lucrar com a vitória militar, mas, pelo
contrário, acabou por ver o seu apoio desgastado pelas consequências brutais da
guerra. Para milhões de britânicos, sobretudo pessoas que outrora apoiaram o
Partido Trabalhista, Blair ficou para sempre conhecido como «Bliar» [Trocadilho que
mistura Blair com liar, ou seja, mentiroso. N.T.].
Mesmo com a saída de Blair, o empenho do New Labor na «relação especial» per-
maneceu como estava e, além do mais, é um empenho partilhado pela oposição con-
servadora. A Grã-Bretanha está empenhada em apoiar as guerras de Washington.
Efectivamente, as forças armadas britânicas foram reconfiguradas pelo New Labor
para desempenharem esse papel. O envolvimento no Afeganistão não tem fim à
vista, mas o New Labor está também ligado a outras guerras sujas dos Estados Uni-
dos. A Grã-Bretanha está a ajudar a instalar um regime-fantoche na Somália e ajudou
a treinar o exército georgiano. O sítio Internet do Ministério da Defesa anunciou,
imediatamente a seguir à invasão georgiana da Ossétia do Sul, que exercícios milita-
res conjuntos com o exército georgiano tinham sido adiados. A informação foi ime-
diatamente retirada do ar. Igualmente, os britânicos juntaram-se aos Estados Unidos
na pressão sobre o Paquistão para que este permitisse que as forças da OTAN amea-
çassem os territórios tribais paquistaneses enquanto parte do teatro de guerra afegão.
Com efeito, quando o Tio Sam precisar de uma mão amiga, os britânicos, sempre que
possível, correrão a prestar o seu apoio e assistência, na qualidade de parceiros
menores no império norte-americano.

Notas:
1
O conflito na Indonésia foi particularmente intenso, com os britânicos a rearmar as tropas japonesas ren-
didas para combater os nacionalistas. A cidade de Surabaya foi bombardeada a partir do mar numa das
maiores batalhas. As forças britânicas mataram cerca de vinte mil indonésios antes de deixarem o controlo do
país com os holandeses. Esta «pequena guerra suja» desapareceu virtualmente dos registos. Todas as histórias
do governo trabalhista de 1945-1951, quase sem excepção, omitem esses episódios, para não referir o que tudo
isto nos diz sobre as políticas coloniais desse governo.
2
Alan Bullock, Ernest Bevin: Foreign Secretary, William Heinemann, Londres, 1983, pp. 360-61.
3
Peter John, America and British Labor, I. B. Tauris, Londres, 1997, p. 57.
4
William Roger Louis, The British Empire in the Middle East, Oxford University Press, Oxford, 1984, p. 673.
5
Louis, The British Empire in the Middle East, p. 688.
6
Ralph Miliband, Parliamentary Socialism, Merlin Press, Londres, 1979, p. 312. Ver também Michael Newman,
Ralph Miliband and the Politics of the New Left, Merlin Press, Londres, 2002, p. 111.
7
Evelyn Shuckburgh, Descent to Suez: Diaries 1951–1956, Weidefeld and Nicolson, Londres, 1986, p. 167.
8
William Roger Lewis, «Harold Macmillan and the Middle East Crisis of 1958», Proceedings of the British
Academy, 1996, p. 94.
9
Ver George Monbiot, «The government has been the most rightwing since the second world war», The
Guardian, 20 de Maio de 2008.

42
10
Christopher Meyer, DC Confidential, Weidenfeld and Nicolson, Londres, 2005.
11
Alastair Campbell, The Blair Years, Hutchinson, Londres, 2007, p. 630.

* John Newsinger é professor na Universidade de Bath Spa e é autor de The Blood Never Dried: A People’s
History of the British Empire (Bookmarks, 2006). Entre os seus outros livros contam-se Orwell’s Politics (2002) e
British Counterinsurgency (2002), ambos publicados pela Palgrave Macmillan.
Braddock, Pensilvânia
Para fora da fornalha em direcção ao fogo
Jim Straub e Bret Liebendorfer (fotografias)*

À medida que o cenário de ruína alastra, a área metropolitana de Pittsburgh esta-


belece padrões elevados. A beleza natural do Vale do Monongahela e a herança edi-
ficada da desindustrialização torna deslumbrante o cenário da derrota dos operários.
A beleza não compensa, porém, a perda de postos de trabalho. As antigas cidades
de ferro desta região foram implodidas ao longo de décadas. Nenhum lugar perdeu
uma parte tão substancial da sua população como Braddock, Pensilvânia, à saída de
Pittsburgh. Esta extensão devastada e quase vazia, pontilhada de casas abandonas, fa-
chadas de lojas e edifícios, foi outrora um marco com história da era industrial. Hoje,
depois de perder 90 por cento da sua população, parece um pesadelo no fim do
Sonho Americano.
Um edifício maciço, estilo bunker, assenta sobre os destroços na Library Street. Um
contentor de carga foi colocado no seu topo, adicionando espaço vivo a um edifício
da forma mais conspícua possível. Na porta está um letreiro: uma paródia com os
stêncis da arte popular de rua com a face de Andre the Giant, mas com a palavra
«MAYOR» em letras gordas. Atravessando a porta e subindo um lanço de escadas,
damos de caras com um homem de quase dois metros, cabeça rapada e pêra metido
entre mobiliário de couro e uma decoração avant-garde, atendendo chamadas telefó-
nicas e bebendo Yuengling. É como se o próprio Andre the Giant tivesse voltado à
vida e se tivesse instalado no Vale do Monongahela para fazer se formar em estudos
urbanos e design interior.
Não é uma residência de mayor típica. Mas Braddock não é uma típica cidade da
Pnesilvânia e o seu mayor, John Fetterman, está longe de ser o típico mayor.
«Vim pela primeira vez a esta cidade como voluntário da Americorps para traba-
lhar com jovens em risco. Fiquei abismado com este lugar, a sua história e arquitec-
tura», diz Fetterman. O mayor é uma personagem imponente; lembra um lutador
profissional, mas fala com a voz articulada do doutoramento em Políticas Públicas
que obteve em Harvard. Utilizando o seu braço esquerdo (que ostenta uma grande
tatuagem com o código postal de Braddock), Fetterman aponta para o baldio des-
troçado à volta da Library Street, como se o cenário explicasse exactamente porque
é que ele havia caído no feitiço de Braddock, quando jovem.

45
Natural de outra cidade industrial da Pensilvânia, Fetterman já conhecia o aspecto
arruinado de velhas cidades industriais. Mas Braddock está mais devastada – e estra-
nhamente pitoresca – do que qualquer outro local no estado da Pensilvânia. Ele res-
pondeu ao apelo dos desafios e dos potenciais que restam nesta cidade de ferro,
outrora próspera. E continua: «Logo após a conclusão do meu doutoramento, tive a
oportunidade de continuar a trabalhar aqui, no mesmo programa, e comecei de ime-
diato a investir o meu salário na compra de alguns destes magníficos edifícios à beira
do colapso».
Durante o processo, começou a promover a sua terra adoptiva junto dos seus ami-
gos, espalhando entre artistas que havia em Braddock espaços vivos de trabalho por
pouco dinheiro. Com a sua propensão para o desafio a crescer a cada pequeno su-
cesso, Fetterman lançou-se na corrida pelo trabalho em part-time de ser mayor da
comunidade em 2005.
Depois de ter vencido as primárias democratas por apenas um voto, John
Fetterman tornou-se o mayor de uma zona economicamente desastrosa. Iniciou um
programa de construção heterodoxo, mobilizando pioneiros urbanos para ajudar a re-
construir um lugar devastado, mas não para beneficiar especuladores. Numa parte do
país em que Braddock é apenas o exemplo mais óbvio de centenas de zonas desin-
dustrializadas, qualquer sucesso de revitalização através de critérios ecológicos e das
artes pode iluminar o caminho para que outras cidades da cintura manufactureira
possam combater a pobreza e a perda de população. Mas o problema mais vasto da
escassez de empregos projecta uma sombra sobre essas esperanças e uma nova
auto-estrada proposta para atravessar Braddock ameaça liquidar a derradeira hipótese
de a cidade ressuscitar.

Mayor de uma cidade-fantasma


«Estatisticamente falando, Braddock é a cidade mais isolada entre cidades isoladas.
Não conheço outra zona da cintura manufactureira que tenha tido uma perda de po-
pulação de 90 por cento», assinala Fetterman. E continua: «Pittsburgh, por exemplo,
continua a ter uma economia. Os poderes aí instalados estão a tentar aniquilar os
sindicatos e reorganizar as finanças da cidade. Nós nem sequer temos finanças».
A existência de Braddock é uma herança da Edgar Thompson Steel Works, que, em
1875, foi a primeira grande unidade siderúrgica instalada no país. Muitas outras fá-
bricas foram subsequentemente construídas no Vale do Monongahela, tornando-o
a capital mundial da produção de aço. Hoje, porém, a Edgar Thompson é a única que
ainda labora no vale, um sobrevivente solitário da crise da década de 1980 da indús-
tria do aço norte-americana. Apesar de Braddock ter servido originalmente para alo-
jar os trabalhadores da fábrica, nenhum dos 900 empregados que restam vive hoje
na cidade. «A principal contribuição da fábrica para a cidade é… a poluição», diz
Fetterman acerca da fábrica visível do último andar da sua casa. E acrescenta:
«Braddock a taxa mais alta de asma na infância de toda a região».
Na cidade, restam menos de 3000 residentes, de acordo com o recenseamento de
2000 (o pico de população foi de 20 879), muitos dos quais são idosos ou lutam

46
contra problemas de saúde, adição ou pobreza. Para os que restam, Braddock tem
pouco para oferecer no que respeita a emprego. Com efeito, uma boa parte dos pou-
cos empregos que restam estão ocupados por operários que se deslocam diariamente
de Pittsburgh ou dos seus subúrbios.
Leanne O’Connor, residente de longa data em Pittsburgh e trabalhador dos
correios, descreve a deslocação diária para Braddock: «A estação dos correios trans-
feriu-me para a zona limite de Braddock. No autocarro que tomava todos os dias
para chegar à Braddock Avenue, o condutor não parava de me aconselhar a tentar
arranjar trabalho noutra zona, visto que aquela era demasiado perigosa para mim».
Leanne aceitou o seu conselho logo após ter sido assaltado nesse autocarro.
«Quando era pequeno, nos anos 1980, sempre que a minha família atravessava
Braddock de carro, eu ficava abismado. Todos os edifícios abandonados… nunca
vira nada assim», lembra O’Connor. «Os meus pais diziam-me: “esta é uma
cidade-fantasma”.»

Para fora da fornalha em direcção ao fogo

Braddock é um lugar único, não apenas pelas dificuldades que actualmente en-
frenta, mas também pelo seu significado histórico. O que a Independence Hall re-
presenta para a Revolução Americana, esta região representa para o século do aço do
país. O barão Andrew Carnegie construiu a sua primeira siderurgia em Braddock e
foi ao longo do rio que ele dispôs um exército privado para lançar um ataque ar-
mado contra os trabalhadores em greve da sua fábrica de Homestead. O Frick Park,
no topo da colina que cresce a partir de Braddock, deve o seu nome ao odioso ca-
pataz que um jovem anarquista tentou assassinar como vingança pelo ataque de
Homestead. Carnegie, preocupado com a sua imagem pública, construiu a primeira
das suas muitas bibliotecas públicas em Braddock, que ainda se mantém do lado
contrário da rua onde vive Fetterman.
A região tem talvez mais história operária por metro quadrado que qualquer outra
na nação. Subindo a Braddock Avenue em direcção a este, encontramos as fábricas
de componentes electrónicos onde a Guerra Fria doméstica da América foi disputada
corpo-a-corpo nas eleições sindicais entre trabalhadores pró-comunistas e
anticomunistas. Uns quilómetros para oeste, na baixa de Pittsburgh, está o edifício
administrativo, onde o director-geral da US Steel e o seu arqui-inimigo John L. Lewis,
do Comité de Organização dos Trabalhadores Metalúrgicos, costumavam subir ten-
samente no mesmo elevador para trabalhar todas as manhãs. A América tem
obviamente muitas zonas industriais. Mas, tal como a Declaração de Independência
foi assinada apenas em Filadélfia a 4 de Julho de 1776, também só aqui é que os tra-
balhadores metalúrgicos lutaram e venceram a Batalha de Homestead a 5 de Julho de
1892.
Estas cidades do Vale do Monongahela cresceram como cidades empresariais
opressivas, construídas para albergar a força de trabalho imigrante das minas e
fábricas do século XIX. Face às suas chaminés fumegantes e ao clima de medo e
conflito, a comparação que, frequentemente, os recém-chegados faziam era com o

47
Inferno. Mas, com o passar dos anos, os residentes transformaram-se em bastiões de
prosperidade e democracia da classe trabalhadora, através de vidas inteiras de traba-
lho e poupança – e de luta titânica por negociações colectivas e direitos sindicais.
Um dos principais romances sobre a experiência imigrante na América industrial,
Out of This Furnace [Para Fora Desta Fornalha], passa-se em Braddock. No romance,
o seu autor, Thomas Bell – filho de uma família imigrante de Braddock e, ele pró-
prio, trabalhador na fábrica –, segue várias gerações da família Dobrejcak através das
permanentes dificuldades da vida industrial no Vale do Monongahela, culminando na
vitória do sindicato dos metalúrgicos no final da década de 1930.
Naquele tom não estava apenas um mero triunfalismo de frente popular. Para os
trabalhadores como os da família Dobrejcak de Braddock, os sindicatos industriais
trouxeram um mar de mudanças nas condições de vida, estatuto social e poder po-
lítico. O Sonho Americano só chegou ao Vale do Monongahela porque as suas fa-
mílias não pararam de trabalhar e de lutar por ele. Na medida em que a maioria dos
pontos de referências dessas lutas encaixam nas actuais ruínas de Braddock, traba-
lhos como Out Of This Furnace são as últimas recordações do modo como a Amé-
rica foi construída em zonas como esta.

Braddock
As contribuições de Braddock para o cânone do realismo social continuaram até
ao nosso tempo, em especial com os filmes de Tony Buba. Buba – tal como Bell,
filho de uma família de operários imigrantes – cresceu em Braddock quando a cidade
era a comunidade relativamente próspera que gerações de trabalhadores lutaram para
criar. Quando era jovem, depois de um período em que trabalhou em fábricas da re-
gião, Buba foi para a universidade estudar realização de cinema, no contexto do
fermento cultural de 1968.
«Quando regressei à cidade para visitar a minha família, nos anos 1970, as mu-
danças em Braddock começavam a notar-se», recorda Buba. «Como naquela situação
em que não vemos os nossos avós durante anos e depois, quando os vemos, pare-
cem-nos tão velhos. Foi isso que aconteceu ao ver como estava Braddock quando cá
voltei. Eu pensei, bem, aqui está o meu material de estudo. Pensei que tinha que do-
cumentar esta forma de vida antes que ela desaparecesse.»
Como sublinha Buba, a cidade era, em parte, uma vítima do seu próprio sucesso.
«Depois de um par de gerações de metalúrgicos com bons contratos colectivos, tor-
nou-se possível que os trabalhadores mudassem para outras regiões. Quer dizer, estas
casas foram construídas mesmo ao lado do ruído e da sujidade da fábrica. Os traba-
lhadores começaram a ter a capacidade de ter uma casa um pouco mais para os su-
búrbios e um carro com que se deslocarem para o trabalho. Isso era um exemplo de
sucesso; era, na verdade, uma coisa boa.» A emergência dos grandes centros comer-
ciais e cadeias comerciais nos subúrbios também dizimou os antigos pequenos ne-
gócios do outrora famoso corredor de retalho de Braddock. O declínio que Buba
começou a documentar sofreu uma guinada feia e inesperada na década de 1980,
quando a crise da indústria do aço empurrou para o desemprego centenas de milha-
res de pessoas no Vale do Monongahela. «Acreditem ou não», continua Buba, «no
final da década de 1970, pensávamos que Braddock tinha batido no fundo. Haviam
sido feitos estudos que diziam que perderíamos até doze mil pessoas e que ficaría-
mos por aí!» Buba ri-se amargamente.
O pior estava ainda por chegar. A indústria do aço entrava numa infinita espiral de
despedimentos, encerramentos de fábricas, reduções de salários e direitos, greves e
uma ruptura quase total da sua força de trabalho. A região de Pittsburgh sofria com
execuções hipotecárias e despejos, falências, suicídios, alcoolismo, violência e deses-
pero. Braddock, embora tivesse começado a quebrar algumas décadas antes da crise
do aço de 1984, sentia que poderia vir a afundar muito mais.
Esses acontecimentos atingiram toda a gente na região, mas algumas comunidades
suportaram um fardo mais pesado que outras. O filme de Buba Struggles In Steel [Lutas
no Aço] descreve uma batalha histórica que os afro-americanos empreenderam
– contra as empresas do aço, mas também contra elementos do sindicato dos meta-
lúrgicos – para lutar pelo acesso igual aos bons empregos na fábrica. Pelo final da dé-
cada de 1970, como resultado dessa luta, um número substancial de trabalhadores
negros forçou a contagem do tempo de serviço (porque o seu tempo de serviço não
contava para nada, tinha sido sempre negado aos negros o acesso a melhores
empregos quando a eles se candidatavam) e dos anos ocupados em posições de
liderança nas estruturas sindicais, mas tudo isso viria a perder-se com os encerra-
mentos das fábricas.

49
Além do racismo no emprego, havia também o problema residencial em relação aos
negros do Vale do Monongahela. Como nota Buba, «Havia uma separação clara.
Tudo estava, na verdade, orientado para que os brancos ocupassem os subúrbios». A
comunidade afro-americana da região vivia a situação duplamente precária de não ter
tido acesso aos benefícios de gerações de trabalhadores industriais, que lhes permi-
tira assegurar poupanças e tempo de serviço antes de os encerramentos começarem,
e de serem impedidos de viver noutras zonas. A par da crise do aço, ocorreu uma des-
locação para direita no país e, com ela, vieram os cortes nos gastos sociais da era
Reagan. Com os flagelos da cocaína, da SIDA e da violência de rua endémica, locais
como Braddock enfrentaram uma «tempestade perfeita» de devastação urbana.
Os réquiemes cinemáticos por Braddock, de Buba, não são, porém, os filmes mais
conhecidos que ali foram filmados. As primeiras cenas da versão de Cormac
McCarthy da obra-prima apocalíptica The Road [A Rua], com Viggo Mortensen como
protagonista, foram filmadas em Braddock. O desempenho de um papel de destaque
é um golpe real para uma pessoa desesperada por fazer qualquer coisa numa cidade,
e só existiu graças ao esforço constante do mayor para promover Braddock junto dos
sectores criativos do país.
O filme oferece um desfecho triste para o arco histórico de Braddock.
Anteriormente cenário para um romance em que os imigrantes trocam uma
empresa infernal na cidade por uma humilde mas sólida casa, por via da
sua ética no trabalho e da sua luta colectiva, Braddock é hoje o pano de
fundo de aspecto realista para uma outra descrição de um escritor realista
da América depois do holocausto nuclear.

Mayor John Fetterman


A questão que enfrentam o mayor Fetterman e os residentes que restam em
Braddock é a seguinte: quando uma cidade passa da fornalha para a rua – do Inferno
ao Céu e, depois, de volta ao Inferno –, o que virá a seguir?

Empregos ecológicos e campos de basquetebol

«Temos vindo a fazer uma dupla aproximação», diz Fetterman em resposta àquela
questão. «Por um lado, temos que melhorar no fornecimento de serviços funcionais
e no espaço urbano para a base residente que existe. Quando assumi funções,
Braddock não tinha um único campo de basquetebol. Não tinha parques. Não tinha
sequer um lugar para passear o cão, excepto a estrada.»
Dada a ausência de equipamentos básicos de vida urbana, nos três primeiros anos
do seu mandato houve alguns progressos rápidos. Fetterman destaca os feitos à me-
dida que vamos passando por eles durante mais uma visita guiada à cidade: os pri-
meiros campos de basquetebol de Braddock foram construídos e os seus espaços
verdes funcionais aumentaram substancialmente com a conversão dos lotes aban-
donados em parques e jardins. Um projecto de agricultura apoiado pela comunidade,
chamado Pittsburgh Grow, opera hoje numa quinta urbana.
As boas intenções e o trabalho árduo só vão tão longe quando não há recursos.
Fetterman assinala que «Braddock é uma comunidade do Acto 47». A designação re-
fere-se às provisões legislativas da Pensilvânia para as municipalidades (muitas delas
velhas cidades metalúrgicas como esta) que tenham deixado de dispor de uma base
fiscal que lhes permita autofinanciarem-se. Ele apresenta os factos da vida de uma ci-
dade quase totalmente falida com uma descontracção desarmante: «Não teríamos
sequer dinheiro para manter o serviço 112 se não tivéssemos essas garantias do
estado».
Tendo em conta esta realidade, Fetterman continua: «Portanto, a segunda parte do
trabalho que eu estou a tentar fazer é trazer novas coisas. Novas pessoas, nova ener-
gia, novas actividades económicas. Se não formos capazes de começar a substituir as
pessoas e a base fiscal, estamos perdidos. É, portanto, isso que podemos mudar.»
Fetterman tem estado a promover a cidade junto de artistas e urbanistas que procu-
rem espaços baratos para viver e trabalhar, longe das aspirações e dos custos de
hipercidades como Nova Iorque.
«Já recebemos cerca de vinte pessoas novas, até agora. O número continua a ser
baixo», concede o mayor, «mas o que eu penso é que o que é importante ver é que
essas pessoas criativas vêm das que são consideradas as cidades principais – como,
por exemplo, Providence, São Francisco, Nova Iorque, Boston. Se as pessoas esco-
lhem deixar capitais culturais como essas para viver num lugar como este, que,
necessariamente, não dispõe dos equipamentos a que estão habituadas, penso que isso
diz alguma coisa a respeito da nossa capacidade de repovoar Braddock».
O périplo de Fetterman por Braddock termina enfim num local onde antes estivera
um convento e escola católica, que ele e alguns desses outros cidadãos de Braddock
estão a converter numa galeria de arte. Michael LeFevre – um jovem pintor comer-
cial que veio para aqui com a sua mulher à procura de uma casa que nunca teriam sido

51
capazes de pagar em Portland – está a ajudar a concluir o tecto do edifício. Dois ou-
tros revivalistas de Braddock, John Feldman e Helen Wachter (respectivamente, um
recém-chegado e uma residente de longa data na região), mostram os frutos do seu
trabalho na recuperação da preciosa arquitectura histórica a que tem vindo a ser dada
nova utilização.
Feldman – que chegou a Braddock a convite de Fetterman – entusiasma-se a en-
fatizar as nobres intenções dos recém-chegados, como ele. A instalação de artistas em
zonas urbanas pobres como esta tem muitas vezes o efeito não desejado de provo-
car um tipo de desenvolvimento que expulse os seus residentes, mas apesar de
Braddock ter perdido a maioria dos seus habitantes, continua a haver três mil razões
para preocupação com a descaracterização da cidade. Feldman insiste, porém, que
«Ouvi pessoas que conhecemos noutras zonas de Pittsburgh troçarem do que aqui
fazemos e dizerem que pensam que vamos expulsar pessoas. Mas nunca ouvi isso da
parte das pessoas que aqui vivem».
A residente de longo prazo na zona norte de Braddock e directora executiva da
Biblioteca Carnegie de Braddock, Vicky Vargo, está contente com o trabalho dos
recém-chegados, mas acompanha algumas das preocupações acerca do seu impacto
potencial. «Penso que é possível, se chegarem muitas pessoas, que as coisas mudem.
Mas o que acho importante», continua, «é que não tomem a cidade de assalto, a es-
gotem e depois se vão embora para a próxima paragem». Os novos pioneiros de
Braddock com quem ela já contactou «têm sido muito respeitosos. Aqueles com
quem já tive algum contacto têm a preocupação de perguntar à comunidade quais são
as suas necessidades, qual é a sua visão para a cidade».
Com efeito, se a estratégia de Fetterman é melhorar os serviços urbanos para os
residentes mais antigos e, simultaneamente, atrair novos residentes criativos, alguns
dos resultados mais dinâmicos advêm da mistura dessas duas vertentes. Um novo
residente utiliza o seu talento de muralista para trabalhar com jovens num mural gi-
gante: «Bem-vindo a Braddock». Fetterman defende os pequenos negócios clássicos
que ainda existem, e, por exemplo, o bar Elks Lodge recuperou os seus clientes
abrindo-se a dezenas de novos clientes e promovendo espectáculos punk. Muitas re-
novações do-it-yourself estão em curso em igrejas, lojas, casas e outros edifícios em que
nenhum bloco fica intocado pelos novos entusiastas de Braddock.
Tony Buba duvida que os esforços em curso levem à descaracterização. «A cidade
perdeu 90 por cento da sua população! Os edifícios nunca serão todos ocupados.
Toda esta região tem mais propriedades vazias do que as que terá alguma vez capa-
cidade de ocupar, mesmo desde os anos 1980», afirma. Seguramente, Braddock é um
terreno um pouco menos convencional que o que permite uma boa mobilidade nos
distritos de Brooklyn ou São Francisco. É longa a viagem de bicicleta até aos campi
universitários de Pittsburgh (mesmo numa boa bicicleta) e o Vale do Monongahela
não tem tantos yuppies a vender casas como o de Silicon, na Califórnia.
Buba compara os recém-chegados aos activistas locais que começaram por reabrir
a biblioteca onde Vicky Vargo trabalha, dizendo que, «No final dos anos 1970, um
grupo de activistas juntou-se para reabrir a abandonada Biblioteca Carnegie e
desenvolveu uma série de grandes programas. Fazia parte do espírito da época,

52
quando uma série de socialistas dos anos 1960 […] estava a empregar-se nas
siderurgias, a envolver-se no sindicato» e a produzir um conjunto de meios
mediáticos e de arte na vida operária da região.
Não temendo uma superabundância de sucesso dos actuais esforços para fazer
reviver Braddock, Buba vê um abismo entre os recém-chegados e os antigos
residentes na cidade. «Honestamente, se compararmos o que estes miúdos estão a
fazer com a última onda de activismo, o grupo que fez a biblioteca estava muito mais
ligado à comunidade negra de Braddock. Porque nesses tempos, é bom recordar, os
negros não tinham acesso a essa biblioteca. Portanto, reclamar a biblioteca foi um
projecto que gerou um grande entusiasmo popular. Havia a energia da luta pelos
direitos civis e de outras lutas. Não sei se vejo isso nos dias de hoje.» Para Buba,
o futuro de Braddock resume-se ao emprego. «Para que a região volte a ser o que
foi, as pessoas precisam de empregos bem pagos e as famílias precisam de boas
escolas.»
Vargo concorda e sublinha que as preocupações com o dia-a-dia dos residentes
mais antigos da cidade não conseguem, necessariamente, captar a atenção mediática
como as aventuras artísticas conseguem. Pensando num redesenvolvimento do local
onde anteriormente se situava uma fábrica, no limite da cidade, ela diz: «O
desenvolvimento desse local deverá, supostamente, incluir um complexo industrial,
novas casas e um parque. O objectivo é sermos capazes de recuperar alguma
base económica que nos permita mantermos os jovens aqui. Se isso se ligar aos
projectos em que o mayor está a trabalhar, penso que podemos vir a ver alguns
avanços.»
Também o mayor Fetterman colocou uma boa parte do seu esforço na criação de
emprego. «Com os contactos que temos em grupos que desenvolvem empregos em
serviços para jovens, consolidámos um programa de empregos de Verão para
jovens.» Fetterman – geralmente, uma pessoa reservada e tímida – brilha
verdadeiramente quando fala dos empregos de Verão. «Em 2006, tínhamos empre-
gos para cinquenta adolescentes. Eles decidiram sobre o que fazer e o programa
transformou, num único Verão, um lote abandonado num jardim. Tivemos uma taxa
de retenção de 90 por cento», vangloria-se Fetterman. «Nem a Google consegue
manter 90 por cento dos seus empregados!»
Fetterman continua: «Os empregos ecológicos e as artes são actualmente a
vanguarda dos empregos em Braddock. Conseguimos juntar o bem-estar social com
a ecologia, que, antigamente, era apenas uma espécie de escolha dos consumidores
de luxo. No próximo Verão, esperamos ter setenta e cinco postos de trabalho.
Precisamos de mais, visto que no último Verão tínhamos noventa tarefas para
cinquenta postos de trabalho.» Os gangues e o tráfico de droga são os principais
empregadores dos jovens, além do programa de Fetterman, e muitos morrem na
violência das ruas todos os anos. Fetterman tem a data de cada uma dessas mortes
tatuada no seu braço direito, ao passo que no outro tem o código postal de Braddock.
Ele conclui que «O que me mantém a pé à noite é: o que aconteceu aosoutros
quarenta putos que nesse Verão não conseguimos enquadrar num posto de
trabalho?»

53
Michael LeFevre a trabalhar na renovação de
uma antiga escola católica
A última estocada no coração de Braddock

Há uma forte lógica ambiental subjacente ao programa de Fetterman para


Braddock. Os primeiros novos negócios a abrir durante o consulado de Fetterman
foram duas oficinas – uma que converte máquinas a gasóleo, de forma a trabalharem
com a alternativa ecologicamente sustentável do «biocombustível», e outra que
constrói mobiliário a partir de materiais reciclados. Além disso, Braddock passou de
um lugar sem parques para uma cidade que dispõe de um grande jardim e de uma
quinta urbana – e Fetterman tem assento na agência que está a trabalhar para
transformar a siderurgia abandonada Rankin num parque nacional e num museu ao
ar livre da história industrial da região. Além desses esforços populares, há uma visão
ecológica maior implicada em todo o projecto de reocupação do espaço urbano
devastado. Numa época de subida em flecha dos preços do petróleo e deaquecimento
global, nas próximas décadas, os Estados Unidos serão forçados a reduzir a sua pe-
gada carbónica para uma dimensão sustentável. No entanto, o ambiente construído
que o país produziu nos passados cinquenta anos tornará uma tal frugalidade
extraordinariamente difícil. Os quilómetros sem fim dos subúrbios desordenados
que se estendem da cintura manufactureira até à cintura do sol, cheios de enormes
McMansões e de trajectos diários de 90 minutos, serão uma fonte de profundos
problemas económicos à medida que os preços da energia sobem.
Reconstruir Braddock representa um plano diferente: mantermo-nos na cidade
que já construímos. Recuperar e renovar a arquitectura de dimensão humana, linda,
mas desagregada, são os objectivos últimos da reciclagem. Como Fetterman reitera
uma e outra vez, «Em Braddock podemos encontrar novas utilizações adaptadas de
um mundo urbano que a América deixou para trás».
Um ambientalismo tão inovador torna a actual ameaça à existência de Braddock
em algo difícil de engolir. Não obstante o enorme potencial de umaBraddock
economicamente viável e ecológica, a Comissão Turnpike da Pensilvânia está
a recuperar velhos planos de construção de uma nova auto-estrada de quatro
vias, com portagem, atravessando a cidade. A auto-estrada Mon-Fayette
proposta proporcionaria a alguns automobilistas um meio rápido de deslocação à
custa da demolição de uma boa parte de Braddock e dos seus arredores.
Fetterman nutre pouco mais que um desprezo exasperante pelo facto de que os
primeiros projectos públicos pensados para Braddock durante décadas servem para
retalhar a cidade. «Esta auto-estrada é uma monstruosidade com trinta e cinco anos
e vem de uma mentalidade antiquada, ao estilo de Robert Moses, para o planeamento
urbano que outras regiões estão finalmente a pôr para trás das costas», refere
Fetterman. «A ideia parece ser subvalorizar os custos, obter a necessária aprovação
e instalá-la onde hoje é a Braddock Avenue.»

55
Quando falamos de um indivíduo que devotou tanto esforço para fazer reviver
uma cidade que muitos haviam pensado que era um caso perdido, o pessimismo de
Fetterman acerca do que acontecerá a Braddock com a Mon-Fayette parece pouco
habitual e exagerado. «Essa auto-estrada seria a última estocada no coração de
Braddock.»

* Jim Straub é lavador de pratos e activista do movimento dos trabalhadores. Bret Liebendorfer é jornalista
e fotógrafo. A base de ambos é Colombus, Ohio.

Instalação numa igreja abandonada


Os custos humanos do crescimento económico
Recensão ao livro de Amiya Kumar Bagchi, Perilous Passage: Mankind and The Global As-
cendancy of Capital (Rowman & Littlefield, Lanham, 2005)

Immanuel Wallerstein*

O grande debate nas ciências sociais nos últimos dois séculos, pelo menos, foi o
de saber como considerar o crescimento económico extraordinário do mundo mo-
derno. Conhecemos bem o quadro. A maioria esmagadora dos autores argumentou
que a história é a da ascensão do Ocidente. Houve, porém, duas versões opostas a
esta narrativa. Uma é a interpretação Whig [partido político inglês constituído no
final do século XVII, antecessor do Partido Liberal. N.T.] da história, que argumenta
que houve um firme progresso social, intelectual e moral cuja explicação assenta
nalgumas características particulares do Ocidente (frequentemente, apenas da Ingla-
terra). Nessa versão, o mundo está hoje a atingir o ponto mais elevado desse pro-
gresso. A segunda versão é a do marxismo, que sustenta que a ascensão do Ocidente
é parte de uma história mais vasta de um firme desenvolvimento histórico dialéctico
e conflitual. Nessa versão, a actual ordem mundial dominada pelo Ocidente será
substituída por uma outra fase de desenvolvimento histórico, na qual o capitalismo
será suplantado pelo comunismo.
Nos últimos vinte e poucos anos, houve uma importante contrateorização à «as-
censão do Ocidente», centrada numa discussão da história chinesa. Ela sustenta que
a China foi o centro de uma espécie de sistema-mundo durante um largo período de
tempo, temporariamente eclipsado nos últimos dois séculos pela chamada ascensão
do Ocidente, e que o pêndulo está agora (inevitavelmente) a voltar a um mundo
centrado na China.
Amiya Bagchi não concorda de todo com a interpretação Whig da história nem
compra a narrativa centrada na China. Pelo contrário, oferece-nos uma versão
seriamente modificada do modelo marxista. Ou, nas suas palavras,

este livro junta as abordagens dos historiadores da guerra e as do marxismo


e dos teóricos do sistema-mundo, para caracterizar a emergência e operação
do capitalismo realmente existente enquanto sistema que se lança num com-
bate ilimitado, apoiado quando necessário pelas armas, pela conquista de força
de trabalho, recursos não-laborais e mercados. (p. XI)

57
Sendo que Bagchi não é seguramente o primeiro a argumentar contra a ideia de que
os mercados e o comércio livre são os elementos-chave do desenvolvimento capita-
lista, ele quer fazer mais do que simplesmente atacar essa perspectiva enquanto des-
crição analítica do mundo moderno. Ele deseja centrar a sua atenção no grau a que
o crescimento económico sob o capitalismo está muito pouco correlacionado com
o desenvolvimento humano, mesmo no Ocidente. O seu livro é uma tentativa de
analisar em detalhe o sofrimento humano que foi a base das «vantagens obtidas pelas
classes dominantes europeias» (p. XIV).
E ao mesmo tempo que concorda com a tese da escola centrada na China de que
o Ocidente não teve vantagens económicas significativas sobre os chineses e os in-
dianos antes do século XIX, envolve-se em controvérsia com essa escola numa ou
duas questões importantes. Uma é o significado do que aconteceu no início do
século XIX nos países em industrialização liderados pela Grã-Bretanha. Ele diz que

há uma diferença crucial entre um Estado (como a China da dinastia Qing)


que reina com o objectivo de uma acumulação ilimitada e uma ordem social
e política (como a Inglaterra hanoveriana) que promove uma forte centrali-
zação de poder económico e, por conseguinte, facilita o crescimento da
indústria baseada na fábrica. (p. XV)

A segunda divergência é uma espécie de argumento «e depois?». Suponhamos,


como propõe Bagchi, que a China teria emergido no século XIX como o poder
económico e militar supremo, e não o Ocidente. Teria resultado na mesmo «margi-
nalização e empobrecimento uma grande quantidade de pessoas em todo o mundo»
(p. XVI), em benefício das elites chinesas, em vez das elites ocidentais. No que
considera ser uma visão não-dialéctica de Gunder Frank e Kenneth Pomeranz
baseada na economia neoclássica e monetarista, Bagchi sustenta que

não podemos ver a história humana como a de uma disputa entre países
diferentes pelo mercado global nem podemos confinar a nossa atenção ao
trabalho das forças passivas do mercado. (p. 11)

Para Bagchi, o capitalismo, e não o Ocidente, é o réu. E o estrago que causou não foi
apenas a espoliação material. Bagchi insiste no estrago causado pelas duas ideologias do-
minantes que acompanharam o capitalismo – a do racismo e da missão civilizadora (em
continuidade dos conquistadores ibéricos à administração Bush) e a do malthusianismo
e do darwinismo social, traduzido numa perspectiva de que os recursos do mundo são
limitados e, portanto, devem apenas ser partilhados pelos «mais capazes».
Tal como para a maioria dos teóricos marxistas do imperialismo – ele cita especi-
ficamente Hobson, Hilferding, Luxemburgo, Bukharine e Lenine –, Bagchi resume
as suas discordâncias com clareza:

Tenho uma grande diferença em relação à maioria das teorias que apresento
brevemente. Com base, parcialmente, no trabalho de Ragnar Nurkse e

58
Matthew Simon, mostrei que as colónias não-brancas eram sobretudo fontes
de riqueza extraída pelos poderes capitalistas, e não eram destinos do seu in-
vestimento líquido, excepto talvez em determinadas fases breves. Em poucas
palavras, as colónias não eram meros objectos de conquista; elas também
proporcionavam um rendimento significativo aos seus colonizadores. (p. 271)

Basicamente, a argumentação de Bagchi é apresentada num breve prefácio. O resto


do livro apoia pela evidência os seus argumentos. A primeira parte expõe a sua po-
sição teórica e procura também explicar a construção do conceito de milagre euro-
peu. A segunda parte reconstrói a história europeia entre os séculos XVI e XVIII, de
modo a explicar o progresso do Ocidente. A terceira parte elabora os tipos de estrago
humano causado no mundo não-Ocidental em resultado do triunfo do capitalismo
em todo o mundo. «Muita da celebração do milagre europeu é baseada na arte do es-
quecimento» (p.81). A quarta parte concentra-se nos perigos que a humanidade
enfrenta no presente face ao crescimento capitalista.
As forças de trabalho magistral são enormes. Bagchi vê o mundo moderno como
um mundo capitalista, um mundo que funda as suas origens no século XVI. Nesse
aspecto, ele é fiel à visão de Marx:

Acho que a noção de capitalismo enquanto modo de produção continua a


ser útil para distinguir, digamos, a China e a Índia do século XVIII da Ingla-
terra ou da Holanda do mesmo período. Essa utilidade é plenamente
consistente com a minha utilização ocasional da ideia de hierarquias nos
circuitos de troca, que Braudel tão frutuosamente empregou. (p. 177)

Além disso, Bagchi analisa este mundo capitalista não em termos da dimensão do
crescimento que ele tornou possível, mas da dimensão do desenvolvimento que ele
tornou possível, e, a esse respeito, ele é muito insuficiente. Um dos principais servi-
ços que presta aos leitores é o cruzamento da literatura demográfica com a espe-
rança de vida, a literatura sobre saúde pública e a prevenção e cura de doenças, os
dados sobre nutrição, os níveis de rendimento e as diversas formas de trabalho
coercivo, dando-nos, desse modo, um quadro matizado do desenvolvimento humano
ao longo do tempo e por todo o mundo bastante diferenciado em função da
geografia, grupo etário e género.
O autor também apresenta um quadro comparativo completo do desenvolvimento
económico histórico da China, da Índia e do Japão, bem como a sua relação com o
que aconteceu na Europa e na América do Norte. É difícil sugerir um outro traba-
lho que consiga fazer isso num espaço tão reduzido, com tanta clareza e baseado
numa correspondência tão extensiva com a literatura empírica.
A minha única reserva é que, para alguém tão devotado na dissecação dos mitos
académicos, Bagchi presta muito pouca atenção à literatura, hoje extensa, que coloca
bastante em questão a «revolução industrial» como algo que ocorreu principalmente
na Inglaterra e num dado momento temporal (do final do século XVIII ao início do
século XIX).

59
Na verdade, ele próprio faz uma certa ponte com a ideia das duas, ou talvez três,
«idades axiais» – sendo a primeira a que vai do final do século XVIII ao início do sé-
culo XIX, a segunda do final do século XIX ao início do século XX (e nalguns lu-
gares, «apenas depois de 1945») e uma terceira possível que ocorreria hoje. Ele afirma
que a melhoria nas condições de vida dos europeus ocorre apenas na sua segunda
idade axial. Não diz nada sobre o que, supostamente, está a acontecer na terceira.
Mas Schumpeter já tinha mostrado no seu livro sobre os ciclos de negócios que
«idades axiais» semelhantes – Schumpeter não as designa assim – podem ser encon-
tradas no período que vai do século XVI ao século XVIII. Não é que a produção com
máquinas não seja importante. Do que se trata é, pelo contrário, que essa produção
foi gerada através de uma série de saltos em frente que continuaram durante séculos.
Tal como inventou o conceito de milagre europeu, por utilidade ideológica, há boas
razões para acreditar que o Ocidente (mais especificamente, Arnold Toynbee) in-
ventou o conceito de uma única «revolução industrial», também com semelhantes
propósitos ideológicos.
Mas, referida a minha maior reserva, devo dizer que é refrescante ter a voz de
Bagchi em coro com a muito pequena lista de trabalhos importantes sobre as origens
e o desenvolvimento do mundo moderno. O facto de ele ser um indiano com os pés
bem assentes na própria história económica da Índia dá-lhe uma vantagem sobre o
processo total que lhe permite inserir elementos nos nossos esforços colectivos que,
de outra forma, nos escapariam. Podemos apenas esperar que o livro tenha uma
grande difusão pública internacional.

* Immanuel Wallerstein é investigador sénior na Universidade de Yale. Mais recentemente, publicou


European Universalism: The Rhetoric of Power (The New Press, Nova Iorque, 2006).

61
Por que falha a economia ortodoxa?
Recensão ao livro de Michael Perelman, Railroading Economics: The Creation of the Free
Market Mythology (Monthly Review Press, Nova Iorque, 2006)

Carlos J. Castro*

Paul Krugman, em Development, Geography, and Economic Theory [Desenvolvimento,


geografia e teoria económica], afirma que a razão pela qual algumas teorias econó-
micas não são largamente assumidas pelos economistas é o facto de elas não
poderem ser modeladas matematicamente. E prossegue destacando muitas boas
ideias que não podem ser modeladas matematicamente. Michael Perelman, na obra
que aqui tratamos, sustenta que há outra razão que explica por que os economistas
não aceitam essas teorias: algumas teorias são rejeitadas por razões ideológicas, visto
que, em economia, a ortodoxia é o mercado livre. Perelman cita Francis A. Walkner,
o primeiro presidente da Associação Económica Americana, que disse que esse
laissez-faire «não era meramente o teste da orotdoxia económica. Era utilizado para de-
cidir se um homem era ou não um economista» (p. 102). Por outras palavras, ser um
economista, especialmente na era pós-soviética, exigia que concordássemos com o
mercado livre – ou seja, que acreditássemos que o mercado aloca eficientemente os
recursos e que a tarefa do economista é acertar os preços.
O livro de Perelman é uma crítica radical desse tipo de economia – o que é hoje
praticado. Para alguns de nós que estudámos economia, e que discordamos do para-
digma teórico que está por trás dela, o que Perelman diz soa correcto. Nas aulas de
economia, muito poucos professores permitem discussões filosóficas. Os estudan-
tes são treinados para construir a maximização da utilidade e modelos de equilíbrio
sem uma discussão da filosofia política e do paradigma teórico que se esconde por
detrás. Nesse sentido, os estudantes aceitam muitas das assunções que, supostamente,
sustentam esses modelos. Por exemplo, na teoria económica – que foi reduzida à mi-
croeconomia –, é assumido que mais é melhor, que os indivíduos são racionais (ou
seja, são indivíduos maximizadores da utilidade) e que o mercado é eficiente. Os es-
tudantes, quer porque concordam com a filosofia do liberalismo económico quer
porque não são despertos para o problema, acabam por aceitá-lo como um retrato
fiel da realidade social. É-lhes dito que os modelos económicos são abstracções e
que isso acontece porque a economia, tal como outras ciências sociais, constrói

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teorias para explicar o comportamento dos indivíduos e dos grupos. As pessoas não
têm que perceber por que é que fazem o que fazem, mas podemos explicar o seu
comportamento com base nas teorias económicas testadas pelos factos.
Será mesmo assim? O problema desta lógica é que é demasiado geral e pode jus-
tificar qualquer abstracção teórica. A verdadeira questão é saber se os factos supor-
tam o paradigma teórico. Perelman sustenta que no caso da economia ortodoxa não
suportam. De acordo com ele, os modelos utilizados pelos economistas da teoria
microeconómica são os do mercado livre e esses modelos não reflectem nem a forma
como o mundo funciona nem como deveria funcionar. Outras ciências sociais, como
a sociologia, têm uma diversidade de paradigmas. Na economia, a principal filosofia
da profissão é a do liberalismo económico, tal como foi exposto pelos economistas
clássicos, com a excepção óbvia de Marx, e pelos marginalistas, que iniciaram a eco-
nomia neoclássica. Na microeconomia, a filosofia política de Adam Smith, David
Ricardo, William Stanley Jevons, Carl Menger, Leon Walras, Alfred Marshal e Milton
Friedman aplicada aos problemas económicos domina a profissão. Em sociologia,
este paradigma teórico é conhecido por escolha racional; Garya Becker, que ganhou
o Prémio de Ciências Económicas em Memória de Alfred Nobel por aplicar este pa-
radigma às questões sociológicas, chama-lhe simplesmente «a visão económica». Esta
tradição, obviamente, é bastante adaptável à modelação económica, e isso acontece
talvez porque está no centro de uma profissão que lida basicamente com números.
A matemática dá-lhe um ar rigoroso e científico.
É por essa razão que a economia afirma ser uma ciência direccionada para a
explicação dos fenómenos económicos. Supostamente, não é um empreendimento
intelectual apenas pela arte. Os modelos económicos têm que explicar o mundo fora
da torre de marfim – o mundo real. Perelman desmantela a teoria económica domi-
nante, expondo como a ideologia do mercado livre corre contra um empreendimento
científico. Ele mostra como o modelo microeconómico básico de oferta e procura é
essencialmente um modelo de mercado livre. Ele discute a forma como isso não con-
sidera despesas fixas, e portanto não consegue explicar o investimento. Portanto, a
profissão é deixada com tais noções não-científicas, como o «espírito animal», com-
pletamente incongruentes com o indivíduo racional que está na base da microeco-
nomia. Como não consegue explicar o investimento, não consegue considerar as
«barreiras à entrada», que foram o que ligou os oligopólios aos monopólios, as mes-
mas coisas que dominam o capitalismo tardio. Por outras palavras, não consegue
explicar como funciona o mundo real.
Perelman também discute por que o mundo não deveria funcionar de acordo com
a lógica do mercado livre. Foi já demonstrado que o mercado falha consecutivamente.
Dos caminhos-de-ferro do século XIX à Grande Depressão, aos escândalos econó-
micos da década de 1980, à recente bolha imobiliária e crise financeira, para citar
apenas alguns exemplos relativos aos Estados Unidos, o mercado provou ser irra-
cional do ponto de vista da sociedade como um todo. Não admira que os homens
de negócios, como mostra Perelman, nunca tenham estado totalmente comprome-
tidos com a ideia do mercado livre, e, nesse sentido, tivessem sempre apelado à in-
tervenção dos governos assim os seus interesses estivessem em causa. Perelman fornece-nos

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evidência empírica de que homens de negócios como Andrew Carnegie e
J. P. Morgan não estavam convencidos das virtudes do mercado livre. Mesmo eco-
nomistas como John Bates Clark, conhecido como o proponente do mercado livre
e professor de economia neoclássica, abandonou este modelo na prática, visto que
percebeu que o capitalismo estava a tornar-se menos competitivo, como era de-
monstrado pelo exemplo dos caminhos-de-ferro. Clark era contra o mercado livre na
prática, ao mesmo tempo que o ensinava como teoria económica na universidade.
Aquilo a que Perelman chama a «atitude esquizofrénica em relação à competição»
(p. 98) pode ser explicado pelo facto de que ela enfrentou um fosso entre a teoria e
a prática, que é basicamente o que acontece hoje com alguns economistas liberais. Foi,
pelo menos, o que nos informou o The New York Times acerca de Paul Krugman e
Lawrence Summers, que defendem os mercados livres e o comércio livre, mas que
vêem agora que, na vida real, há muitos problemas, como os da desindustrialização
dos países ricos e a perda de empregos bem pagos que veio atrás. O seu problema é
que eles têm uma ideologia e acreditam na sua teoria. A crença firme na microeco-
nomia é que se o mundo funcionasse como a teoria, ou seja, se houvesse um mer-
cado livre, haveria eficiência e crescimento económico e toda a gente seria feliz. Mas
isso é uma crença, não um facto. O mercado livre acabou de produzir uma grande
bolha imobiliária e uma crise bancária, tal como a economia política marxista havia
previsto, e a crise representará mais dificuldades para milhões de trabalhadores em
todo o mundo. Um ethos científico impõe que, se teoria não explica os factos, a teo-
ria está errada. Será que Krugman e Summers vão livrar-se da teoria ou vão ser
esquizofrénicos como foi Clark em relação à ideologia do mercado livre e a prática?
Há, certamente, uma parte da economia que lida com mercados não-competitivos.
Mas isso é relegado para a segunda parte dos manuais de microeconomia e é ensinado
no final do programa. Aí, as curvas da oferta e da procura, derivadas das curvas dos
custos marginais e dos benefícios marginais, tornam-se a fundação da profissão.
Outros aspectos da economia, como a economia do trabalho, a economia urbana ou
a economia ambiental, são construídos à volta dos conceitos ensinados na primeira
parte, a da microeconomia, que lida com mercados competitivos.
Assente na crítica de Marx da economia política e da crítica de
Ba r a n e S weez y d a e c o n o m i a , a c r í t i c a d e Pe r e l m a n a p o n t a p a r a o
centro da teoria económica. A sua exposição e focos ajudarão as
pessoas a compre e n d e re m p o r q u e é q u e a g ra n d e m ai o ri a d o s e c o-
nomistas acredit a m n o m e rc a d o l iv re e a p o i a m a a g e n d a d o c o m é r-
c i o l iv r e, b e m c o m o p o r q u e é q u e e l e s f a l h a r a m n a p r e v i s ã o d a
actual crise banc á ri a . E l e d e s ve n d a a f o r m a c o m o e s ta i d e o l o g i a é
empregue na «na t u ra l i z a ç ã o » d e u m s i s t e m a c o n c e b id o p a ra a a c u -
mulação infinita. Ao mesmo tempo, ele dá-nos um foco sobre os de-
feit os da perspec t iva t e ó ri c a q u e t e m s i d o h e g e m ó n ic a n a s ú l t i m a s
d u a s d é c a d a s e q u e p r o m e t e u r i q u e z a s i n d i z í ve i s p a r a t o d o s, m a s
que, pelo contrá ri o, d e g ra d o u a s c o n d i ç õ e s d e v i d a d a m a i o ri a d o s
trabalha dores, ac e l e r ou a d e s t r u i ç ã o a m b i e n t a l e a u m e n t o u a d e s i -
g u a l d a d e s o c i a l n o i n t e r i o r e e n t r e a s n a ç õ e s. A t r av é s d i s s o, e l e

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a j u d a - n o s a ve r p a r a l á d o s c o n s t r a n g i m e n t o s d o d e b a t e e c o n ó -
m i c o, p e r m i t i n d o - n o s c o l o c a r g r a n d e s q u e s t õ e s a r e s p e i t o d e q u e
tipo de economi a p o d e ri a , ve rd a d ei ra m e n t e, se r v ir a s n e c e s s id a d e s
humana s e que su b s t i t u í s s e a q u e é m ov i d a p el a lógica do capital.

* Carlos J. Castro ensina Sociologia no Clark College, em Vancouver, Washington.

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