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Alguns Aspectos da Hermenêutica

Filosófica e Jurídica*
Some Aspects from Philosophic and Juridic Hermeneutic

Marcia Andrea Bühring


Advogada, Professora da UCS, Especialista em Direito Público pela UNIJUI e
Mestranda em Direito pela UFPR.

Palavras-chave: hermenêutica, hermenêutica filo-


sófica, hermenêutica jurídica RESUMO
Key-words: hermeneutic, hilosophic hermeneutic,
A abordagem da “Hermenêutica Filosófica” com
juridic hermeneutic
ênfase na compreensão, aplicação e interpretação é fun-
E-mail: buhring@uol.com.br damental, pois com a viragem lingüística, inverteu-se
o objeto do fundamento, rompendo a relação sujeito-
objeto para sujeito-sujeito, assim, a verdade ligada ao
método, é um caminho para a busca da racionalidade.
Por outro lado, é observado com a “Hermenêutica Ju-
SUMÁRIO rídica”, a importância da sistemática, bem como a
hermenêutica jurídica crítica, comprometida, trazen-
do o intérprete como agente da transformação social.
Introdução;
1 Hermenêutica filosófica; 1.1 Compreensão,
aplicação e interpretação; 1.2 Aristóteles: sua
ABSTRACT
hermenêutica sempre atual; 1.3 A viragem The approach of “Philosophic Hermeneutic”, with
lingüística; 1.4 A linguagem no mundo; 1.5 A emphasis on understanding, applying and
questão do método; interpretation, is fundamental, because with the
linguistic turn, the object of the fundament breaks the
2 Hermenêutica jurídica; 2.1 Interpretação
relationship between subject-object, turning to subject-
do direito; 2.2 Sistema jurídico; 2.3 Método sis- subject, so, the true linked to the method is one way for
temático e tópico retórico; 2.4 Hermenêutica ju- the search of rationality. On the other way, is observed
rídica no Brasil; 2.5 Hermenêutica jurídica that the systematic is important for the “Juridic
crítica; Hermeneutic”, so far the critical juridic hermeneutic is
Considerações finais; engaged, and arise the interpreter as an agent of social-
transformation.
Referências bibliográficas.

* Monografia apresentada na disciplina de Filosofia do Direito, como requisito parcial à conclusão do curso de Mestrado
Interinstitucional em Direito, Universidade Federal do Paraná – Universidade de Caxias do Sul, com professor Dr. CELSO LUIZ
LUDWIG.

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Introdução ficos. A filosofia, portanto, fala sobre o


mundo e as ciências falam dentro do mun-
hermenêutica representa a mais
do”.3
importante forma de interpretação
do sentido das palavras e ciências. Para a concretização deste tra-
E, por uma questão didática, separou-se o balho faz-se necessário o entendimento do
desenvolvimento do trabalho em três mo- objeto central de investigação – a herme-
mentos, ou épocas históricas:1 Ser, Consci- nêutica. Dessa forma, “a palavra ‘herme-
ência e Linguagem. Dessa forma, estando a nêutica’ tem sua raiz no deus da mitologia
hermenêutica inserida no terceiro momen- grega ‘Hermes’. A imagem do deus alado
to, ou seja, na linguagem, bem sabemos que está ligada a ‘apoio, cipo, coluna’”.4 Este é
esta divisão não é pacífica, pois segundo identificado como um deus egípcio, que fa-
alguns doutrinadores a história não pode ser zia a interpretação entre a linguagem dos
dividida paradigmaticamente. Nesse senti- deuses e a dos homens comuns-mortais.
do, poderíamos ainda analisar um quarto Hermes é o mensageiro dos deuses. A nor-
paradigma: o da Vida, estudado por ma é produto de Hermes a partir da
HENRIQUE DUSSEL,2 que se estrutura a concretização do sentido de um texto atri-
partir de uma visão, uma ideologia aponta- buído pelos deuses.
da. Tal paradigma, no entanto, não signifi- A base de nossa investigação é as
ca a superação da linguagem. contribuições hermenêuticas de HANS-
Trabalha a hermenêutica com GEORG GADAMER, ou seja, este autor
uma categoria central: a da Totalidade. Esta “pretende liberar a hermenêutica da
categoria será utilizada como sustenta- alienação estética e histórica para estudá-
bilidade para o entendimento do primeiro, la em seu elemento puro da existência
do segundo e do terceiro paradigma, ou seja, humana. As investigações de GADAMER
estes caracterizam-se como Totalidade e o se dirigem ao estudo das condições de
quarto paradigma seria o da Universalida- possibilidades da interpretação e da
de. Essa constatação é possível, segundo compreensão, em especial no âmbito das
ERNILDO STEIN, porque a filosofia tem ciências humanas, estabelecendo carac-
“como tarefa fundamental desenvolver um terísticas e pressupostos fundantes de uma
discurso sobre a totalidade e essa totalida- teoria geral da compreensão, de matriz
de é o mundo que envolve, como condição nitidamente heideggeriana”, efetuando o
de possibilidade, todos os discursos cientí- que se pode designar “de giro ontológico em

1 HABERMAS, J. Pensamento Pós-metafísico – estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990, p. 22.
2 DUSSEL, H. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. São Paulo: Vozes, 1999.
3 STEIN, E. Aproximações sobre a hermenêutica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996, p. 11.
4 BRANDÃO, J. de S. Mitologia grega. Vol. 2, Petrópolis: Vozes, 1987, p. 181. Ver também em SPAREMBERGER, R. F. L. Da
hermenêutica à hermenêutica constitucional dos direitos fundamentais. Dissertação de Mestrado apresentada na UFPR em
19.06.2000, p. l.

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direção ao que vem a ser o objeto da com- filosofia e seu procedimento, havendo uma
preensão: a linguagem”.5 inversão do objeto para fundamento, rom-
pendo-se com a relação sujeito-objeto, e,
Para atingir os objetivos desta pes-
passando-se à relação sujeito-sujeito, acar-
quisa, propomo-nos a desenvolvê-la em dois
retou que a filosofia da linguagem levanta a
capítulos. No primeiro, tratar-se-á da
pretensão de ser filosofia primeira em rela-
hermenêutica filosófica, abordando a idéia
ção à filosofia de ARISTÓTELES.
de compreensão, aplicação e interpretação.
Ainda nesse capítulo abordar- se-á a Passou-se, assim, do conhecimento
hermenêutica aristotélica sempre atual; a para a linguagem, que é fundamental, sen-
viragem lingüística; a linguagem no mundo do anterior à nossa presença no mundo. A
e a questão do método. No segundo capí- questão do método é problemática, em ra-
tulo, desenvolver-se-á aspectos da herme- zão de ser tido como o elo de ligação para a
nêutica jurídica e da interpretação do interpretação do Direito, pois toda verda-
direito, bem como o sistema jurídico, o de está ligada ao próprio método, que não é
método sistemático e o tópico retórico. Com simplesmente uma via, um caminho, mas
essas considerações pretender-se-á analisar um caminho para a busca de algo – a
a hermenêutica jurídica no Brasil e suas racionalidade.
principais implicações.
Dentro da hermenêutica jurídica, dá-
Dentro da hermenêutica filosófica, se destaque à interpretação do Direito como
iremos trabalhar com a compreensão, sen- um todo, a exemplo de uma lei, que deve
do esta, antes de mais nada, uma pré-com- levar o intérprete (juiz) a aplicar ao caso
preensão que se tem das coisas, é um juízo concreto, o constante do ordenamento,
que trazemos conosco. A interpretação necessitando, porém, de um conhecimen-
pode trazer “pré-conceitos”, pré-concep- to prévio, do caso em questão, que lhe é
ções, influenciando nas valorações, não é dado pelas partes, através das provas. Não
um ato posterior e complementar à com- se separa, portanto, a aplicação da compre-
preensão, pois compreender é interpretar. ensão. Entra aqui o sistema jurídico que é
A aplicação é tão importante e essencial um conjunto de princípios e tópicos, nor-
como a compreensão e a interpretação, pois mas e valores, com função de dar cumpri-
compreender é também aplicar. mento tanto aos princípios como aos
objetivos da Constituição. A ordenação sis-
A atualidade hermenêutica em
temática é fundamental, assim como a tó-
ARISTÓTELES se constata justamente
pica, que é uma técnica do pensamento que
porque ele é o filósofo que mais amplamen-
se orienta para o problema.
te reflete sobre a questão do papel da razão
frente à ética. Assim, com a viragem lin- Por fim, nos propomos a esclarecer
güística, ou a mudança no modo de se ver a alguns aspectos importantes da herme-

5 GADAMER, H. G. Verdade e método. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de MEURER, F. P. Revisão
da tradução de GIACHINI, E. P. 3. ed., Petrópolis: Vozes, 1999. Cf. também em SPAREMBERGER, op. cit., p. 22.

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nêutica jurídica no Brasil e da hermenêutica como instrumento e equipamento das re-


jurídica crítica, que é comprometida, cons- presentações, adquirem, como reino inter-
trutiva, no sentido do “justo”, sendo o in- mediário dos significados lingüísticos, uma
térprete um agente desta transformação dignidade própria. As relações entre lingua-
social. gem e mundo, entre proposição e estados
das coisas, substituem as relações sujeito-
1 Hermenêutica filosófica objeto”. Transforma-se assim o trabalho de
constituição do mundo em estruturas gra-
É impossível falar em hermenêutica maticais deixando de ser tarefa da chama-
sem antes nos referirmos aos “paradigmas”
da subjetividade transcendental.7
e à “crise dos paradigmas”6 epistemológicos
da história da filosofia, ou seja, paradigma é Tais considerações nos remetem para
uma teoria fundamental, que é reconheci- a discussão do surgimento da hermenêutica
da pela comunidade científica, há um con- filosófica. Nesse sentido, poderíamos de-
senso, com delimitações nas investigações monstrar as contribuições hermenêutico-
de uma disciplina, são as crenças, as per- filosóficas de SCHLEIERMACHER,
cepções, os valores, o método. Todavia, isso DILTHEY, BETTI, mas optamos como fio
é, na verdade, um estudo dos cientistas. A condutor deste texto por trabalhar com a
crise inicia-se com o surgimento de uma obra de GADAMER, Verdade e Método.
nova ciência, a ciência revolucionária. A Para este autor, a hermenêutica indica uma
verdade também é um paradigma, ou seja, “mobilidade fundamental de pré-sença, a
é o que se aceita como verdade num deter- qual perfaz sua finitude e historicidade, e a
minado momento. partir daí abrange o todo de sua experiên-
Para HABERMAS, não existe um cia de mundo. Que o movimento da com-
“porto seguro”, sendo que o único lugar é a preensão seja abrangente e universal, não é
linguagem. Passou-se do paradigma da filo- uma construtiva de um aspecto unilateral,
sofia do ser para o paradigma da filosofia da mas está, antes, na natureza da própria coi-
consciência, e deste para o paradigma da sa”. Sua obra aborda três grandes partes: a
filosofia da linguagem, o que constitui um análise da obra de arte, da história e da lin-
corte profundo. “A partir deste momento, guagem, e nelas diz que há um acontecer
os sinais lingüísticos, que serviam apenas da linguagem.8

6 Segundo KUHN, T. S. A Estrutura das revoluções científicas. 3. ed., São Paulo: Perspectiva, 1992, defende a tese de que a
ciência se transforma paradigmaticamente e não simples evolução do conhecimento científico. No prefácio, ele aduz: “Considero
‘paradigmas’ as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções
modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência”, p. 13. E no posfácio – 1969, ele menciona que “... na maior
parte do livro o termo ‘paradigma’ é usado em dois sentidos diferentes. De um lado, indica toda a constelação de crenças,
valores, técnicas, etc., partilhados pelos membros de uma comunidade determinada. De outro, denota um tipo de elemento
dessa constelação: as soluções concretas de quebra-cabeças que, empregadas como modelos ou exemplos, podem substituir
regras explícitas como base para a solução dos restantes quebra-cabeças da ciência normal”, p. 218.
7 HABERMAS, op. cit., p. 15.
8 GADAMER, op. cit., p. 16-17.

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Existem, nestes três níveis, da expe- esclarecer as condições sob as quais surge
riência da arte, do conhecimento histórico compreensão”. Estas condições, no entan-
e da linguagem, verdades que não são pro- to, têm de estar dadas. E mais, “os precon-
duzidas pelo método lógico-analítico. “Te- ceitos e opiniões prévias que ocupam a
mos, entretanto, um tipo de experiências consciência do intérprete não se encontram
produzindo uma verdade que não é de ca- à sua disposição, enquanto tais. Este não
ráter lógico-semântico. Essa, no fundo, é a está em condições de distinguir por si mes-
idéia da obra. E é um tipo de verdade à qual mo e de antemão os preconceitos produti-
temos acesso por caminhos totalmente di- vos, que tornam possível a compreensão
ferentes dos que estão estabelecidos pelo daqueles outros que a obstaculizam, os mal
conhecimento científico em geral”, são pos- entendidos”.11
tas as idéias do que pode-se chamar de
Destaca-se muito o retorno da ques-
hermenêutica filosófica.9
tão hermenêutica ao centro do debate fi-
1.1 Compreensão, aplicação e losófico, onde a filosofia é hermenêutica,
interpretação ou seja, a razão passa a ser vista como uma
razão hermenêutica. Definir razão como
GADAMER investiga o problema hermenêutica significa compreendê-la
hermenêutico, de caráter filosófico e não como razão prática. E procura mostrar que
procedimental, utiliza, assim, a herme- a “hermenêutica não é uma questão de
nêutica como “técnica”, sendo a primeira método, pois o método é usado como ques-
de todas as condições hermenêuticas “a pré- tão”, o problema hermenêutico se dividia
compreensão que surge do ter de se haver na velha tradição da hermenêutica em três
com a coisa em questão...”.10 A interpreta- momentos, o que ele menciona como
ção pode vir carregada de “pré-conceitos”, subtilitas, ou seja, as sutilezas, “... distin-
ou seja, pode trazer uma carga de verdade gue-se uma subtilitas intelligendi, compre-
ou pode ser ultrapassada. Então, há sempre ensão, de uma subtilitas explicandi, a
uma pré-compreensão anterior. interpretação, e, ... subtilitas aplicandi, a
A hermenêutica quer, assim, ocupar aplicação... esses três momentos deviam
o seu lugar, pois “sua tarefa não é desenvol- perfazer o modo de realização da compre-
ver um procedimento da compreensão, mas ensão”.12

9 STEIN, op. cit., p. 44. E, na p. 64, tece um comentário sobre o surgimento da hermenêutica filosófica: “segundo HEIDEGGER...
nunca somos transparência. Sempre somos um projeto já projetado, somos um jogo que já sempre foi jogado. Essa é a idéia que
GADAMER vai tomar de HEIDEGGER. Assim se faz uma passagem da situação hermenêutica para o acontecer da verdade... é
esta passagem de Ser e tempo para o livro Contribuições para a filosofia, que vai marcar propriamente o surgimento da chamada
Hermenêutica Filosófica. A GADAMER não interessa propriamente, em seu livro, aquilo que queremos e fazemos, mas aquilo
que para além do que queremos e fazemos acontecer”.
10 GADAMER, op. cit., p. 441.
11 Ibid., p. 442-443.
12 GADAMER, op. cit., p. 459.

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Assim, a interpretação “não é um ato linguagem, determinando a verdade ou fal-


posterior e oportunamente complementar sidade das proposições.
à compreensão, porém, compreender é sem-
A interpretação também é herme-
pre interpretar, e, conseguinte, a interpre-
nêutica, é compreensão, e o fato de não
tação é a forma explícita da compreensão”.
termos acesso aos “objetos via significado,
E, em relação a isso, “está também o fato
mas via significado num mundo histórico
de que a linguagem e a conceptualidade da
determinado, numa cultura determinada,
interpretação foram reconhecidas como um
faz com que não consigamos dar conta pela
momento estrutural interno da compreen-
análise lógica de todo o processo de
são, com o que até mesmo o problema da
conhecimento. Ao lado da forma lógica dos
linguagem passa de uma posição ocasional
processos cognitivos precisamos colocar a
e marginal para o centro da filosofia”. En-
interpretação”.14
tão “a aplicação é um momento do proces-
so hermenêutico, tão essencial e integrante Existem dois modos de compreender,
como a compreensão e a interpretação”. segundo STEIN, que seriam o compreen-
Finalizando este raciocínio, “... compreen- der de uma proposição e o compreender
der é sempre também aplicar ... ”.13 anterior, que é saber como se está no mun-
do, o existir, o sobreviver. O compreender
A aplicação é um momento do pro-
é uma qualidade do ser humano, não uma
cesso hermenêutico tão essencial e inte-
qualidade natural, mas enquanto humano.
grante como a compreensão e a interpreta-
“Podemos imaginar que existe um logos que
ção. É o que se pode chamar de “círculo
se bifurca: o logos da compreensão da lin-
hermenêutico”, não são lineares. Não exis-
guagem, que comunica e o logos no qual se
tindo interpretação fora da aplicação. En-
dá o sentido, que sustenta a linguagem”.15
tão: se compreender é sempre interpretar,
sendo conseqüentemente a interpretação a Por outro lado,16 a hermenêutica não
forma de compreensão, então o Ser que é apenas um problema epistemológico. 17
pode ser compreendido é linguagem, que já Podemos falar, em geral, de vários aspectos
está pressuposto desde o início, pois desen- da hermenêutica: há, primeiro, uma inter-
volve a idéia de que estamos envolvidos na pretação, uma compreensão ingênua,

13 Ibid., p. 459-461.
14 STEIN, op. cit., p. 18.
15 STEIN, op. cit., p. 27, menciona que HEIDEGGER irá chamar esse “primeiro logos da compreensão de uma proposição, de logos
apofântico, o logos que se manifesta na linguagem. E o outro logos, aquele que se dá praticamente no compreender enquanto
somos um modo de compreender, irá chamar de logos hermenêutico. Estes dois elementos, o logos apofântico e o logos
hermenêutico irão constituir a distinção que dará material para que se possa depois falar numa hermenêutica filosófica”.
16 Ibid., p. 46-47. E, acrescenta: “Podemos até dizer que o homem, o ser-aí, como HEIDEGGER vai dizer, não seria capaz de sentir
se não tivesse esta capacidade antecipadora da compreensão. É isso que o filósofo vai introduzir no método que desenvolve, no
objeto que se propõe a desenvolver, na revisão do método que expõe... compreender, só é possível na medida em que o homem
é um ‘ser-no-mundo’... compreender é um compreender algo como algo...”, p. 59-60.
17 Epistemologia é uma teoria ou ciência da origem, natureza e limites do conhecimento. É o pressuposto do saber.

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ametódica, assistemática, depois, há uma para que se possa explorar as diferentes atri-
interpretação de caráter gnosiológico,18 e há, buições da razão. O Direito pertence ao
enfim, a interpretação de caráter onto- mundo da racionalidade prática, e, para re-
lógico”.19 solver questões práticas se exige também
uma razão prática, sendo a razão herme-
Neste sentido, a compreensão
nêutica, o que significa: compreendê-la
que o homem tem de si mesmo e a compre-
como razão prática.
ensão que tem do ser é considerada uma
compreensão limitada, pois não consegue ARISTÓTELES tem a ética como
dar conta nem do passado, nem do futuro. “parte da ciência política e lhe serve de in-
Portanto, não conseguimos compreender trodução. O objetivo da ética seria então
algo plenamente, porque lidamos com uma determinante qual é o bem supremo para
história que nos limita.20 as criaturas humanas (a felicidade) e qual é
Existe um laço estreito que na sua a finalidade da vida humana (fruir esta feli-
origem unia a hermenêutica filológica, cidade da maneira mais elevada – a con-
teleológica e jurídica, e que somente as três templação)”.22
juntas comportam o conceito pleno de Afirma, ainda, que há duas faculda-
hermenêutica. Assim, a “própria compreen- des racionais, a primeira, que permite con-
são se mostrou como um acontecer, e filosofi- templar as coisas cujos primeiros princípios
camente a tarefa da hermenêutica consiste são invariáveis, e a segunda, que permite
em indagar que classe de compreensão, e contemplar as coisas passíveis de variação.
por que classe de ciência, é esta que é mo- Partindo deste pressuposto, de que o conhe-
vida, por sua vez, pela própria mudança his- cimento baseia-se numa correspondente
tórica”.21 “semelhança ou afinidade entre o sujeito e
o objeto de espécies diferentes, devem ser
1.2 Aristóteles: sua também especificamente diferentes. Uma
hermenêutica sempre atual destas duas faculdades racionais pode ser
A hermenêutica é sempre atual em chamada de científica e a outra de calcu-
ARISTÓTELES, porque ele é o filósofo que lativa, pois deliberar e calcular são a mes-
mais ampla e sistematicamente contribui ma coisa, mas ninguém delibera sobre coisas

18 Gnoseológico é o conhecimento.
19 Metafísica era chamada de Ontologia – onto = Ser, logia = estudo (filosofia do ser). A metafísica toma um elemento da realidade
para explicar tudo a partir desse elemento. A metafísica é o estudo em torno das causas do ser.
20 STEIN, op. cit., p. 63. E aduz: “HEIDEGGER passa a dar ao elemento hermenêutico não apenas a idéia do compreender a si
mesmo, a de compreender-se como poder-ser, mas ele passa a dar ao elemento hermenêutico também este caráter da não
totalidade do compreender, de uma limitação do compreender...”. E ainda, “A intenção da hermenêutica será esclarecer esse
pano de fundo (por trás do conhecimento metódico) da verdade que está no acontecer da obra de arte, no acontecer da história
e no acontecer da linguagem”, p. 73.
21 GADAMER, op. cit., p. 460-462.
22 ARISTÓTELES. Ética a nicômacos. Trad. Mário da Gama Kury. 2. ed., Brasília: Ed. UNB, 1992, p. 11.

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invariáveis. A faculdade calculativa, portan- por ele defendida: o problema hermenêutico


to, é uma das faculdades da parte da alma não pode estar separado do ser; não pode
dotada de razão”.23 ser um saber puro. Nisto consiste a atuali-
Para GADAMER, ARISTÓTELES zação, gadameriana da teoria aristotélica,
tem uma teoria ética, e esta estrutura, esse sem que confunda a hermenêutica com o
desdobramento o interessa, mas como “teo- saber técnico, nem moral, embora tais for-
ria hermenêutica”. Não recupera a “ética de mas de saber contenham a tarefa da aplica-
ARISTÓTELES”, mas a aplicação das re- ção, também”.26
flexões que faz da ética para a hermenêutica, São enumeradas por BERTI, razões,
“... compreender é então um caso especial ou formas de racionalidade, enfatizando a
da aplicação de algo geral a uma situação contribuição de ARISTÓTELES a este de-
concreta e particular... ”. Com isso, “ganha bate sempre atual sobre a crise da razão. São
especial relevância para nós a ética elas: 1. a apodítica, que é demonstrativa e
aristotélica,... É verdade que ARISTÓTELES a dialética, que é o dialogar; 2. o método da
não aborda o problema hermenêutico nem física, que é a ciência; 3. o método da
sua dimensão histórica, mas trata somente metafísica, que é a ciência suprema; 4. o
da apreciação correta do papel que a razão método da filosofia prática, que procura
deve desempenhar na atuação ética... ”.24 instaurar um novo estado de coisas; e por
O interesse de GADAMER não é fim, 5. a retórica, que são os discursos.
ético e sim hermenêutico, o problema do Enfatiza, assim, a contribuição de
método está determinado pelo objeto, cons- ARISTÓTELES sobre a racionalidade, so-
tituindo um postulado aristotélico geral e bre a presumida crise da razão, seu valor e
fundamental, mantendo-se “socrático na também seus limites, além da possibilidade
medida em que retém o conhecimento de reconhecer diversas “formas” de
como momento essencial do ser ético, e o racionalidade. E conclui dizendo que do
que nos interessa é justamente o equilíbrio complexo da teorização aristotélica, da ci-
entre a herança socrática-platônica e este ência e inteligência, da sapiência e sabedo-
momento do ethos a que ele mesmo deu ria, da arte, da dialética e retórica, que estas
validez. Pois também o problema hermenêutico resultam, ser uma série extremamente rica
se aparta evidentemente de um saber puro, se- de formas de racionalidade com diferentes
paradamente do ser”.25 graus de exatidão, rigor ou precisão, mas
Segundo LUDWIG, que diz: “Daí a que todas são caracterizadas pelo argumen-
atualidade hermenêutica de ARISTÓTELES, tar.27

23 Ibid., p. 114.
24 GADAMER, op. cit., p. 465.
25 GADAMER, op. cit., p. 467.
26 LUDWIG, C. L. Razão hermenêutica. Texto Inédito, p. 83.
27 BERTI, E. As razões de ARISTÓTELES. São Paulo: Loyola, 1998, p. 187.

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1.3 A viragem lingüística28 STRECK faz uma crítica do Direito,


no seu livro Hermenêutica jurídica e(m) cri-
No século XX, a linguagem passou a
se, fazendo uma análise da linguagem, que
ser objeto de reflexão bem mais intenso, nas
é uma forma de transmissão de pensamen-
mais diferentes áreas do conhecimento. A
to, ou viragem lingüística da filosofia, da
viragem lingüística ocorreu em 1958/60.
semiótica = significado e a hermenêutica
Nessa fase, a linguagem passou a assumir a
filosófica, abrindo assim caminho para sua
função de possibilidade, de condição, e rom-
hermenêutica jurídica crítica.30
peu com a relação sujeito-objeto, passan-
do-se à relação sujeito-sujeito.
1.4 A Linguagem no mundo
Linguagem é a condição para que se
A linguagem no mundo é anterior à
possa pensar a inversão de objeto para fun-
nossa presença no mundo a exemplo de
damento. Viragem significa mudança, ou
uma criança, que se localiza no mundo e
seja, mudança no modo de ver a filosofia e
será um “ser-no-mundo”, a partir de sua
no modo de ver o seu procedimento. A con-
condição de possibilidade de compreender
seqüência é que a filosofia da linguagem le-
a linguagem, que é o dasein (ser aí igual ao
vanta a pretensão de ser filosofia primeira
ponto de partida para compreensão). Um
em relação à filosofia de ARISTÓTELES.
outro exemplo é o caso de uma guerra
Passou-se, assim, do conhecimento para a
mundial, que, se não se ficar sabendo, isto
linguagem.
não existe para quem não sabe que há uma
Para HABERMAS, a guinada lin- guerra, pois o mundo só é mundo a partir
güística “colocou o filosofar sobre uma base da possibilidade de dizer o mundo, ou seja,
metódica mais segura e o libertou das a partir da linguagem. Sem linguagem não
aporias das teorias da consciência”. E “nes- há mundo. É por isso que “Deus” tira a
te processo configurou-se além disso uma linguagem dos homens na “Torre de
compreensão ontológica da linguagem, que Babel”, pois ao tirar-lhes a linguagem, lhes
torna a sua função hermenêutica, enquan- tira o mundo, deixando assim, os homens
to intérprete do mundo, independentemen- sem ação, pois eles precisam renomear
te em relação aos processos intramundanos todos os objetos para poderem se entender,
de aprendizagem e que transfigura a evolu- e é por isso que a linguagem surge da falta.
ção dos símbolos lingüísticos inserindo-os É preciso sempre ter uma pré-compre-
num evento poético originário”.29 ensão.31

28 O autor GADAMER, op. cit., p. 559, utiliza o termo “virada ontológica”; o autor STRECK, op. cit., p. 137, utiliza o termo “viragem
lingüística”; o autor HABERMAS, op. cit., p. 53, utiliza o termo “guinada lingüística”, podendo ser encontradas ainda outras formas
para designar o rompimento como: “giro”, “reviravolta lingüística” ou “linguistic turn”.
29 HABERMAS, op. cit., p. 16.
30 STRECK, L. L. Hermenêutica jurídica e(m) crise – uma exploração hermenêutica da construção do direito. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 1999.
31 STRECK, op. cit.

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266 Marcia Andrea Bühring

Em GADAMER, o desenvolvimen- bilidade de representação ou de descrição


to do fenômeno da linguagem como a ex- de uma totalidade e essa totalidade é tota-
periência humana no mundo é onde a lidade da experiência de mundo”. Haven-
hermenêutica encontra seu solo realmente do, assim, um universo fundamental do ser
ontológico, pois “na linguagem representa- humano descrito por essa experiência, e isso
se o próprio mundo. A experiência lingüís- quer dizer que a interpretação do mundo é
tica do mundo é ‘absoluta’. Ultrapassa toda a interpretação da condição fática do ser
relatividade do ‘pôr’ o ser, porque abrange humano, e mais, “o fato de, ao lado da idéia
todo o ser em si, pouco importa em que re- de experiência,... usar a expressão aconte-
lações (relatividades) se mostra. A lingüis- cer, é o que mais choca a tradição analítica
ticidade da nossa experiência do mundo e a análise lógica... acontecer da verdade,
precede a tudo quanto pode ser reconheci- esse é o grande escândalo da hermenêutica
do e interpretado como ente”. Acrescenta filosófica quando queremos falar nas ciên-
ainda que “a relação fundamental não signi- cias humanas, nas ciências de espírito”.34
fica, portanto, que o mundo se torne objeto da
Para este, a hermenêutica apresen-
linguagem. Aquilo que é objeto do conheci-
tava uma pretensão de universalidade, as-
mento e de seus enunciados se encontra,
sim como a dialética também demonstrava
pelo contrário, abrangido sempre pelo ho-
esta pretensão. Então, todos os elementos
rizonte do mundo da linguagem”. Sendo que
centrais da hermenêutica filosófica, “como
a lingüisticidade da experiência humana no
a idéia do ‘pré-conceito’, a idéia de hori-
mundo como tal, não inclui necessariamen-
zonte, a idéia da história efetual, a idéia da
te a objetivação do mundo.32
consciência da história efetual, a idéia da
Sobre o novo na hermenêutica, consciência histórica, a idéia de situação
STEIN descreve “o ser humano como ‘ser- hermenêutica, todos esses elementos en-
no-mundo’ que desde sempre já se compre- tram em questão quando se procura
ende a si mesmo no mundo, mas só se explicitar esta totalidade da linguagem que nos
compreende a si mesmo no mundo porque envolve e quando nos queremos apropriar
já antecipou sempre uma compreensão do dessa totalidade pela interpretação”. Desta
ser. Compreensão do ser não é de um ser forma, a linguagem é nossa “constituição
objetivo, objeto, mas compreensão da tota- fundamental”.35
lidade... um mundo que é a própria
transcendência”.33 1.5 A questão do método
STEIN, informa que GADAMER O método é tido como o fio condutor
procura nos “sugerir que temos uma possi- para interpretação do direito, toda verdade

32 GADAMER, op. cit., p. 653.


33 STEIN, op. cit., p. 61.
34 STEIN, op. cit., p. 70-73.
35 Ibid., p. 75-76.

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Alguns Aspectos da Hermenêutica Filosófica e Jurídica 267

está ligada ao método, podendo ser deduti- vale especialmente para as ciências do es-
vo ou indutivo, pois é só através dele que se pírito, mas não significa, de modo algum,
pode dizer o Ser. E é neste campo que reinou uma diminuição de sua cientificidade, mas,
(e reina) a “analítica de ARISTÓTELES”, antes, a legitimação da pretensão de um sig-
porque diz com o método da ciência. nificado humano especial que elas vêm rei-
vindicando desde antigamente”. O que
Para LUDWIG, o termo mé-
traduz que o “fato de que, em seu conheci-
todo “indica ‘caminho’ (odos) para algo além
mento, opere também o próprio daquele que
(meta), raiz etimológica da metodologia,
conhece, designa certamente o limite do
onde o logos indica a racionalidade condu-
‘método’, mas não o da ciência. O que a
tora enquanto elemento fundante, regula-
ferramenta do ‘método’ não alcança tem de
tivo e determinante. A partir dos sentidos
ser conseguido e pode realmente sê-lo atra-
etimológicos podemos desvelar concei-
vés de uma disciplina do perguntar e do
tualmente no método uma relação intenci-
investigar, que garante a verdade”.37
onal. Um caminho que conduz para; para
além (meta)”. Desta forma, o método não é
só um meio. “É um caminho para ir em bus- 2 Hermenêutica jurídica
ca de algo, concepção assumida integral e
hegemonicamente pelo modelo moderno de Segundo LUDWIG, HANS-GEORG
ciência. A relação intencional indicada pela GADAMER “enuncia a hermenêutica jurí-
‘busca de algo’ sinaliza, ao mesmo tempo, dica para além de qualquer outra, como
para outros aspectos, qual seja, o do modo paradigmática para o esclarecimento do fe-
ou processo (talvez ‘procedimento’) adota- nômeno da compreensão”. Eis que o “texto
do no transcurso do ‘caminho’. Assim, o jurídico, uma lei por exemplo, interessa ao
logos (a razão), agora no caso da metodo- jurista a partir e em virtude de um determi-
logia, exibe a racionalidade do método”.36 nado caso dado, ou pelo menos parcialmen-
te dado”. Portanto, para a aplicação é
Temos “pré-conceitos” que trazemos
imprescindível o conhecimento histórico do
conosco. Segundo informa GADAMER,
sentido original do texto em questão. A in-
“não existe compreensão que seja livre de
clusão da aplicação como momento da com-
todo preconceito, por mais que a vontade
preensão faz com que entre a hermenêutica
do nosso conhecimento tenha de estar sem-
jurídica e a dogmática jurídica exista uma
pre dirigida, no sentido de escapar ao con-
relação de necessária preponderância da
junto dos nossos preconceitos”. Então: para
hermenêutica e é no sentido da aplicação de
que se possa garantir a verdade, não basta a
um texto jurídico, não se separa, portanto, a
certeza que a utilização dos métodos cien-
aplicação da compreensão.38
tíficos proporcionam. E, acrescenta, “isso

36 LUDWIG, C. L. A problemática questão do método. Texto inédito, p. 34.


37 GADAMER, op. cit., p. 709.
38 LUDWIG, C. L. Razão hermenêutica. Texto inédito, p. 82.

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268 Marcia Andrea Bühring

Divergência interessante se estabele- sob a ótica sistêmica, tanto inter, quanto


ce entre a hermenêutica jurídica e a intra-sistematicamente”.41 A hermenêutica
hermenêutica histórica em que o “jurista é de acordo com este pensamento “a reali-
toma o sentido da lei a partir de e em virtu- dade da realidade”.42
de de um determinado caso dado. O historia-
dor jurídico, pelo contrário, não tem nenhum 2.1 Interpretação do direito
caso de que partir, mas procura determinar Como ensina HANS KELSEN, há
o sentido da lei, na medida em que coloca duas formas de interpretação, uma é a in-
construtivamente a totalidade do âmbito de terpretação autêntica, e a outra é a inter-
aplicação da lei diante dos olhos”.39 pretação inautêntica ou (não autêntica). A
A hermenêutica jurídica é um autên- autêntica é a “interpretação do Direito pelo
tico procedimento das ciências de espírito, órgão que o aplica”, e a inautêntica é a “in-
pois tanto compreender como interpretar terpretação do Direito que não é realizada
significam conhecer e reconhecer um sen- por um órgão jurídico, mas por uma pessoa
tido vigente, e, em toda compreensão his- privada e, especialmente, pela ciência jurí-
tórica está implícito que a tradição fala ao dica”. Desta forma, todos têm direito a pro-
presente e tem de ser compreendido nessa duzir uma interpretação, mas há diferença
e como essa mediação. “O caso da herme- entre interpretação de todos, que é a
nêutica jurídica não é portanto um caso inautêntica e a dos juízes, que é a autêntica
especial, mas está capacitado para desen- (pois estes impõem interpretação).43
volver à hermenêutica histórica todo o al-
Para KELSEN, é possível mais de
cance de seus problemas e reproduzir assim
uma interpretação, havendo diferentes pos-
a velha unidade do problema hermenêutico,
sibilidades, existe uma pluralidade de nor-
na qual o jurista e o teólogo se encontram
mas possíveis para interpretação, a Lei é
com o filólogo”.40
uma moldura, hoje o texto é uma moldura
A primeira lei da hermenêutica “é no – há uma criação das possibilidades da
sentido de nenhum artigo, inciso, parágra- hermenêutica “nos limites da moldura”, pois
fo ou alínea poderão ser entendidos de for- o sujeito não faz o que deseja aleatoriamen-
ma isolada; devem, sim, ser interpretados te, somente até os limites dessa “moldura”.44

39 GADAMER, op. cit., p. 483. Cita ainda a hermenêutica jurídica, reformatória, romântica e teológica.
40 Ibid., p. 487-489.
41 STRECK, op. cit., p. 40.
42 PASQUALINI, A. Hermenêutica e sistema jurídico. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 54.
43 KELSEN, H. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 5. ed., São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 388. HANS
KELSEN era neokantiano, um positivista, para o qual a legitimação da totalidade do ordenamento jurídico é conduzida pela
norma fundamental (Grundnorm), possível de justificação racional, pois a racionalidade pura só mexe com a forma e não com o
conteúdo. A Norma Fundamental passa uma idéia regulativa da juridicidade das demais normas, vem assim a Teoria Pura do
Direito, purificada de qualquer ideologia, política, ou outra forma de ciência natural.
44 Ibid., p. 390-391.

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Alguns Aspectos da Hermenêutica Filosófica e Jurídica 269

E, acrescenta: “Se por ‘interpretação’ As palavras da lei não são unívocas,


se entende a fixação por via cognoscitiva são plurívocas, por isso “é necessário dizer
do sentido do objeto a interpretar, o resul- que, pelo processo interpretativo, não de-
tado de uma interpretação jurídica somen- corre a descoberta do ‘unívoco’ ou do ‘cor-
te pode ser a fixação da moldura que reto’ sentido, mas, sim, a produção de um
representa o Direito a interpretar e, conse- sentido originado de um processo de com-
qüentemente, o conhecimento das várias preensão, onde o sujeito, a partir de uma
possibilidades que dentro desta moldura situação hermenêutica, faz uma fusão de
existem”. E, por fim, diz que a interpreta- horizontes a partir de sua historicidade. Não
ção de uma lei não deve conduzir necessa- há interpretação sem relação social”. 47
riamente “a uma única solução como sendo
O papel que possui o juiz na inter-
a única correta, mas possivelmente a várias
pretação é extremamente importante, pois
soluções que – na medida em que apenas
é ele quem delimita o conteúdo das nor-
sejam aferidas pela lei a aplicar – tem igual
mas, mesmo que estas sejam “molduras”,
valor, se bem que apenas uma delas se tor-
situando “fora da ciência jurídica a decisão
ne Direito positivo no ato do órgão aplicador
tomada por considerações políticas... ”.48
do Direito – no ato do tribunal, especial-
Assim, “quem faz o sistema sistematizar e o
mente”.45
significado significar são os intérpretes, ra-
No processo de interpretação se pas- zão pela qual interpretar é, também e prin-
sa para a produção do sentido, enquanto a cipalmente, interpretar-se”.49
hermenêutica clássica busca reproduzir o
O Direito deve ser visto no mundo,
sentido, a outra hermenêutica (condição de
com suas “inter-relações e interações”, sob
possibilidade de “estar-no-mundo”) é pro-
pena de, “desnaturando-o, desumanizar-se
dutiva, porque produz sentido. O intérpre-
o jurista, o juiz e a função judiciária”. E,
te produz sentido, e esse sentido expressado
assim, a “superação do positivismo jurídico
pelo texto já é algo novo, é sempre um novo
é indispensável à construção de uma
texto, hermenêutica não é uma técnica. O
hermenêutica material no Direito que per-
sistema é texto, não norma. Ela só acaba
mita transpareçam e se evidenciem os in-
sendo norma a partir do momento em que
teresses em questão, demandando,
passa para o lado da interpretação produti-
inequivocamente, opções, que supõem
va, sendo que entre o texto e a norma fica
juízos valorativos sobre os dados de fato e
o processo hermenêutico, que é o modo de
de direito das situações em que se manifes-
“ser-no-mundo”.46

45 Ibid., p. 390-391.
46 STRECK, op. cit., p. 16.
47 STRECK, op. cit., p. 17.
48 FREITAS, J. A interpretação sistemática do direito. 2. ed., São Paulo: Melhoramentos, 1995, p. 34.
49 PASQUALINI, op. cit., p. 54. E, mais, “as regras, sem qualquer dúvida, iluminam o caminho do intérprete, mas elas são pequenas
fontes de luz, e não o sol”, p. 76.

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270 Marcia Andrea Bühring

tam. Nessa perspectiva o trabalho do juiz 2.2 Sistema jurídico


precisa ser criativo”.50
O sistema jurídico é reconceituado
Segundo FREITAS, a interpretação por FREITAS como “uma rede axiológica
sistemática do Direito “tem por objeto o sis- e hierarquizada de princípios gerais e tópi-
tema jurídico na sua condição de totalidade cos, de normas e de valores jurídicos cuja
axiológica”, sendo o interpretar a função é a de, evitando ou superando
hierarquização dos sentidos “teleológicos dos antinomias, dar cumprimento aos princípi-
princípios, das normas e dos valores, mais os e objetivos fundamentais do Estado De-
do que simplesmente esclarecê-los”. E mais, mocrático de Direito, assim como se
a missão da hermenêutica consiste “não em encontram consubstanciados, expresso ou
tratar o intérprete como apenas passivamente implicitamente, na Constituição”.53 Assim,
reagente a um sistema posto, mas sim, em interpretar uma norma é interpretar o sis-
cuidar de prepará-lo para o árduo, penoso e tema por inteiro: qualquer exegese comete,
nem sempre bem efetuado exercício de vigi- diretamente ou obliquamente, uma aplica-
lância contínua quanto à conformidade fun- ção da totalidade do Direito. “Inegável, pois,
damentada de suas decisões e subsunções o valor para a hermenêutica jurídica da
normativas ao sistema jurídico vigente”.51 chamada ordenação sistemática, a qual de-
cididamente não pode ser confundida com
São infinitas as possibilidades de in-
um mero elemento ou método inter-
terpretação, conservando a justa reserva para
pretativo”.54
com o arbitrário e a irracionalidade. Assim,
a hermenêutica acha-se, em “dupla oposi- Neste sentido, também é importan-
ção, por um lado, ao ceticismo e, por outro, te analisar a reconceituação que FREITAS
ao dogmatismo. A sua resposta é uma só: a faz de interpretação sistemática do Direito,
busca da melhor exegese... (= hierarquização ou seja: é “uma operação que consiste em
axiológica) se revela espiralforme. Fazendo atribuir a melhor significação, dentre várias
rotações em torno do seu núcleo princi- possíveis, aos princípios, às normas e aos
piológico, o sistema, a cada leitura ou valores jurídicos, hierarquizando-os num
releitura, expande-se a partir de si mesmo”. todo aberto, fixando-lhes o alcance e supe-
Então, interpretar um texto legal significa, rando antinomias, a partir da conformação
acima de tudo, ter que se decidir por uma teleológica, tendo em vista solucionar os
entre muitas possíveis interpretações.52 casos concretos”.55

50 AZEVEDO, P. F. de. Crítica à dogmática e hermenêutica jurídica. Porto Alegre: Fabris Editor, 1989, p. 71-74.
51 FREITAS, op. cit., p. 9 e 57.
52 PASQUALINI, op. cit., p. 54-55. E cita o exemplo da hermenêutica que assemelha-se a uma cordilheira, e não a uma planície, ou
seja, sempre haverá boas ou más exegeses.
53 FREITAS, op. cit., p. 46.
54 Ibid., p. 53.
55 Ibid., p. 60.

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Alguns Aspectos da Hermenêutica Filosófica e Jurídica 271

Uma interpretação sistemática reali- Direito que se confirme dotado de efetiva


za sempre uma hierarquização axiológica,56 coerência e de abertura...” Por fim, “um
fazendo preponderar, ora uma norma supe- Direito visto, ensinado e aplicado como o
rior, ora (em caso de antinomia pendente), lídimo sistema normativo do Estado Demo-
um princípio superior, “recorrendo-se, em crático”.58
todas as hipóteses, expressa ou ocultamen-
Para ALEXANDRE PASQUALINI,
te ao princípio da hierarquização, inclusive
a interpretação sistemático-transformadora
ao lidar com princípios e regras de priorida-
funciona como “um saber consagrador, que
de, tendo em vista as exigências do próprio
procura a convergência de tudo, para que
sistema, que reclama sejam dirimidas as
nenhum princípio, norma, valor ou prece-
controvérsias, sempre na certeza de que
bem interpretar é concretizar a máxima jus- dente jurídico se isole dos demais, para que
tiça sistemática possível”.57 um se possa juntar aos outros, e todos pos-
sam atuar, mais e sempre, como um con-
Finaliza FREITAS dizendo que a in- junto sistemático, aberto e substancial”.59
terpretação sistemática é a interpretação
jurídica, por essência. “Deve o intérprete, Aduz, por fim, que essa herme-
com sabedoria, contribuir para a descober- nêutica sistemático-transformadora inter-
ta e para a formação tópica do sistema jurí- preta a si mesma, ao Direito, “como um
dico. De outra parte, é irrenunciável a luta instrumento cuja finalidade constitutiva
pela formação de um Direito dotado de está em servir de elemento de integração e
concatenação interna, sendo este um desa- de aproximação axiológicas: onde há
fio para aplicadores e legisladores: oferecer clausura, leva a abertura; onde há anti-
uma ordem que se deixe interpretar plásti- nomias, restaura a unidade; onde há lacu-
ca e maleavelmente de modo a se manter nas, proporciona a completabilidade e onde
respeitável e garantidora da segurança das há exuberância, oferece, enfim, o socorro,
relações jurídicas”. Há no fundo uma ne- mais material do que formal, da hierar-
cessidade de formação “consciente e séria quização valorativa”. Toda exegese, assim
do intérprete jurídico para a suma tarefa como todo sistema jurídico, “só poderão ser
ético-jurídica que consiste em, diante das compreendidos no seu momento inte-
antinomias, alcançar o melhor e o mais fe- grativo-hierarquizador e, em razão disso,
cundo desempenho da interpretação siste- mais próximos da senda do Direito visto
mática em todos os ramos, com o escopo como manifestação e concretização da
de fazer promissora a perspectiva de um dignidade do ser humano, na sua perene,

56 Ibid., p. 89, dá o conceito do princípio da hierarquização axiológica: “é o metacritério que ordena, diante inclusive de antinomias
no plano dos critérios, a prevalência do princípio axiologicamente superior, ou da norma axiologicamente superior em relação às
demais, visando-se a uma exegese que impeça a autocontradição do sistema conforme a Constituição e que resguarde a unida-
de de sintética dos seus múltiplos comandos”.
57 FREITAS, op. cit., p. 110.
58 Ibid., p. 205.
59 PASQUALINI, op. cit., p. 101.

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272 Marcia Andrea Bühring

desafiadora e verticalizante meta de perfec- zindo-se os problemas à “aporia da justiça”,


tibilização no seio deste sistema maior cha- e, mesmo assim, o esforço para conferir que
mado vida (zoé)”.60 a determinação do sistema jurídico nunca
é completo.61
2.3 Método sistemático e tópico
Sobre pensamento sistemático e da
retórico
tópica, a conclusão à qual chega FREITAS
Tem por função os métodos de inter- é que existem várias soluções dentro do sis-
pretação opor limites ao intérprete, delimi- tema jurídico, e “apenas nele e a partir dele
tando a área das soluções justificáveis, além devem ser procuradas, numa perspectiva
de evitar as arbitrárias. que, certamente, não afasta a necessidade
Segundo THEODOR VIEHWEG de aprimoramento de lege ferenda, mas
“A tópica é uma técnica do pensamento que desenganadamente conduz a uma perspec-
se orienta para o problema; os raciocínios tiva em que o Direito Positivo deve ser pen-
giram em torno dos problemas; é um estilo sado, antes de tudo, como um sistema de
de trabalho aporético; todo problema con- princípios,62 normas e valores, com todas as
creto provoca um jogo de suscitações, que sérias conseqüências metodológicas que daí
se denomina tópica ou arte da invenção”. advêm, inclusive para a colmatação de lacu-
Chama a Ciência do Direito de Jurispru- nas”. Desta forma, respeitadas possibilidades
dência, tendo como ponto de partida o caso não só residuais da tópica, na interpretação
concreto, partindo assim, do problema con- sistemática, em especial no combate às
creto para solucionar, em vez de partir da antinomias, constatando-se a falta ou insu-
norma para interpretar. Problema é tudo o ficiência das “visões unilaterais, sobretudo
que venha a permitir dar mais de uma res- em função de estas não darem conta do pro-
posta além do entendimento prévio. Assim blema da unidade dinamicamente conside-
a “jurisprudência não se vincula com a ciên- rada do pensamento jurídico. Ademais,
cia mas com a retórica. E a tópica tem uma justamente por inexistir exclusão rígida en-
posição secundária na ciência do direito, tre o pensamento tópico e o sistemático,
mas predomina na jurisprudência”. E, de qualquer modalidade de interpretação, dado
acordo com este pensamento, o legislador que hierarquizadora, denota a vocação
ou intérprete teriam, por base, um tópico unificadora e integradora do pensamento sis-
inicial “o que é justo aqui e agora”. Redu- temático”.63

60 PASQUALINI, op. cit., p. 155.


61 VIEHWEG, T. Tópica e jurisprudência. Tradução Ferraz Jr. T. S. Imprensa Federal (Coleção Pensadores Jurídicos Contemporâ-
neos). Brasília: DIN, 1979, p. 203 e ss. E acrescenta: “A palavra topos significa ‘lugar-comum’. Aporia significa ‘falta de um
caminho’, situação problemática, onde a tópica oferece orientações de como agir em tais situações, a fim de não se ficar sem
saída”.
62 Cabe aqui citar o exemplo do 18º Camelo, – integrante e ao mesmo tempo não integrante do sistema jurídico, onde os princípios
gerais são colocados como um paradoxo. Retirado do livro de STRECK, op. cit., p. 87.
63 FREITAS, op. cit., p. 148-149.

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Alguns Aspectos da Hermenêutica Filosófica e Jurídica 273

Contribui PASQUALINI com a art. 5º, da LICC, que se projeta na perspec-


assertiva de que é “sistemático, à propor- tiva da eqüidade, da lógica do razoável e
ção em que se estrutura como totalidade dos métodos teleológicos e histórico
hierarquizada de normas, princípios e valo- evolutivo”. Conclui que “numa sociedade
res jurídicos teleologicamente encadeados; estratificada, altamente complexa, contra-
tópico, à medida que a intrínseca indeter- ditória e muito desigual economicamente,
minação e abertura de tais normas, princí- aumentam as dificuldades para a avaliação
pios e valores jurídicos oferecem, dentro e do bem comum e dos fins sociais da lei, que
a partir do sistema, várias possíveis exegeses calibram a justiça da interpretação e da de-
ou projetos de sistematização”.64 cisão”.66
Por isso, não se pode afirmar “que a Quando se menciona o paradigma
tópica é apenas um meio auxiliar do pensa- epistemológico da filosofia da consciência,
mento sistemático, como predicava se diz que este acaba, morre, o que não
CANARIS, tampouco que o sistema é um acontece no sistema brasileiro, pois está vi-
recurso, até certo ponto circunstancial, no gorante ainda na relação do Direito brasi-
esforço de resolução tópica do caso concre- leiro, porque o jurista brasileiro tradicional
to, como insinuava VIEWEG”. E, ainda, acha que a hermenêutica é um método e
neste sentido, uma vez que, “em conjun- que ele é o sujeito principal, e que, através
ção orgânica e, por isso, dialética, os valo- de seu código, ele pode dizer e definir o
res são a alma das normas, parece impossível mundo. Ora, ele não é sujeito de nada, e
deixar de concluir que a tópica é a verdade sim as circunstâncias e condição de “ser-
do sistema, e o sistema, a verdade da tópi- no-mundo”. É essa questão mais ampla que
ca”. Em suma, no Direito, “liberdade e se tem de trabalhar hoje no Direito, ou seja,
vinculação originam-se de um mesmo e romper com o paradigma epistemológico da
único processo interpretativo tópico-siste- filosofia da consciência. Portanto, “romper
mático, onde a lucidez e a verticalidade da com este paradigma antigarantista de
razão enfeixam-se como as reais fiadoras do dogmática jurídica e/ou ultrapassar os obs-
sistema”.65 táculos que impedem o resgate das promes-
sas da modernidade é tarefa que se impõe aos
2.4 Hermenêutica jurídica no juristas”.67
Brasil
Segundo STRECK, no campo jurí-
No Direito brasileiro, prevalece como dico brasileiro, a linguagem ainda tem um
“regra metanormativa, extensiva e caráter “secundário, como terceira coisa que
impositiva a toda a ordenação jurídica, o se interpõe entre sujeito e objeto, enfim, uma

64 PASQUALINI, op. cit., p. 124.


65 Ibid., p. 135-137.
66 ANDRADE, C. J. de. Hermenêutica jurídica no Brasil. São Paulo: RT, 1991, p. 261.
67 STRECK, op. cit., p. 213.

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274 Marcia Andrea Bühring

espécie de instrumento ou veículo condutor de meçou a colocar a questão do ler entre as


essências e corretas exegeses dos textos legais. linhas, a descobrir, atrás do texto, o texto
Essa lógica do sujeito, é dizer, o ser é sem- não escrito, na medida em que mais que a
pre em função do sujeito, que provém de verdade do texto, no texto está o sentido
Descartes, é rompida pela viragem lingüís- que envolve, abrange e carrega a verdade
tica”, (com WITTGENSTEIN e do texto, através dos processos histórico e
HEIDEGGER). “Lamentavelmente – e aí culturais”.70
está assentada uma das faces da crise De acordo com o pensamento
paradigmática –, o campo jurídico brasileiro de STEIN, a hermenêutica poderia parecer
continua sendo refratário a essa viragem lin- acrítica, ou até mesmo ingênua, mas pelo
güística”.68 contrário, ela nos dá uma consciência críti-
ca (aquela que não está inteiramente de
2.5 Hermenêutica jurídica crítica
acordo com o seu tempo) “na medida em
No contexto da teoria crítica do di- que ela forma a nossa consciência histórica
reito, surge a hermenêutica jurídica crítica, e nos permite assumir uma situação histó-
que é comprometida, construtiva, no sen- rica determinada, o mais possível transpa-
tido do “justo”, sendo que o intérprete é rente em um momento determinado,
um agente desta transformação social, atu- através de fusão de horizontes e na dilui-
ando assim como “criador”. Essa teoria crí- ção de horizontes, de maneira que não fi-
tica do Direito fundamenta-se em um novo quem presos a um conjunto de
modelo de ciência, elaborado pela epis- ‘pré-conceitos’ dos quais não nos libertare-
temologia contemporânea, em razão do mos inteiramente como seres históricos e
questionamento efetuado pelos tradicionais fáticos”.71
paradigmas científicos.69
A razão hermenêutica por mais crí-
Em geral, diz-se que a hermenêutica tica que ela seja não tem a força-poder de
não é crítica. Teríamos um pensamento crí- eliminar os “pré-conceitos” e nas decisões
tico e um pensamento hermenêutico, judiciais o resultado é formado tanto por
“como se o pensamento crítico fosse aque- conceitos como por “pré-conceitos”, onde
le capaz de dar todas as razões de uma afir- o juiz aplica o silogismo e convicções. Des-
mação. E como se o pensamento ta maneira, a teoria crítica se coloca como
hermenêutico fosse menor... ”. E, pela vi- algo real transformador, de forma que o “di-
são “crítica dos textos a hermenêutica é reito não é o passado que condiciona o pre-
capaz de ver nelas mais do que elas são ca- sente, mas o presente que constrói o futuro”.
pazes de ver. A tradição hermenêutica co- E, é por isso que a “fonte mais autêntica de

68 Ibid., p. 44.
69 COELHO, L. F. Lógica jurídica e interpretação das leis. 2. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 182 e 308.
70 STEIN, op. cit., p. 46 e 52.
71 Ibid., p. 73-74.

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Alguns Aspectos da Hermenêutica Filosófica e Jurídica 275

toda a transformação é a jurisprudência, gando-a, abre caminho para o desassossego


refletindo a realidade social, além da dou- social e a insegurança jurídica”. Assim, se
trina e também dos costumes. Assim como “quiserem atentar ao clamor da vida, os ju-
o direito existe para transformar a ordem, ristas precisam desviar-se dos pressupostos
construindo um mundo mais humano, as- positivistas, compreendendo que seu traba-
sim, também a hermenêutica jurídica apre- lho sobre o ordenamento jurídico há de ser
senta a crítica do que ocorre no mundo”.72 crítico e abrangente dos diferentes aspec-
tos de sua inserção social, que exprimem
As teorias críticas são um con-
aspectos diversos da projeção humana no
junto de críticas de paradigmas dominan-
mundo”.74
tes, do senso comum dominante dos
juristas, e, contêm um significado como o Exige-se hoje um trabalho
trazido por COELHO, que diz: “não é o criativo dos juízes, buscando soluções que
sentido da norma que impõe ao jurista, mas sejam “capazes de ensejar a harmonia soci-
é o jurista que estabelece o sentido da nor- al e o aperfeiçoamento da ordem jurídica”.
ma de acordo com sua formação cultural e E, assim, tenta- se mostrar as “poten-
ideológica, de sorte que é o jurista a única e cialidades do processo hermenêutico, em
autêntica fonte do direito”.73 Na verdade, a que se insere o poder criativo dos juízes,
hermenêutica jurídica crítica torna o intér- adaptando as leis à concretude dos fatos,
prete um criador, atribuindo significados, precisando-as, modificando-as, suprindo-
revelando pressupostos ideológicos, torna- lhes as lacunas, em face de novas necessi-
se assim, na prática, a “única e autêntica dades humanas ou de caracteres novos que
fonte do direito”. se acresçam a velhos fatos ou, ainda, de for-
mas diversas de valorizar os mesmos fatos,
Em nome da segurança jurídica,
advindas da evolução social”.75
quer-se “manietar o juiz e minimizar a fun-
ção judicial. Sucede que esse juiz-compu-
Considerações finais
tador, esse aplicador mecânico de normas,
cujo sentido não lhe é dado aferir, este juiz Por representar, a hermenêutica, a
assim minimizado e desumanizado, não é, mais importante forma de interpretação do
de forma nenhuma, capaz de realizar a se- sentido das palavras e ciências, estando
gurança jurídica”. Preso à teoria, fica impe- centrada numa categoria central, da Tota-
dido de ver acontecer a vida, “o mais que lidade, tomou-se as contribuições her-
poderá fazer é semear a perplexidade social menêuticas da obra Verdade e Método de
e a descrença na função que deveria HANS-GEORG GADAMER como ponto
encarnar e que, por essa forma, nega. Ne- fundamental de nossas considerações, por

72 ANDRADE, op. cit., p. 152.


73 COELHO, op. cit., p. 182.
74 AZEVEDO, op. cit., p. 25.
75 AZEVEDO, op. cit., p. 69.

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entender ser ele um grande marco na his- mais humano”, neste sentido temos a con-
tória da filosofia e da interpretação tribuição hermenêutica jurídica que faz a
hermenêutica. crítica do que acontece no mundo, tornan-
do o intérprete um criador do Direito, atri-
Os objetivos desta pesquisa, desen-
buindo significações, portanto seu trabalho
volvidos nos dois capítulos, primeiro – den-
deve ser crítico, criativo, na busca das me-
tro da hermenêutica filosófica, com a
lhores decisões, adaptando-se as leis aos
compreensão, (ou da pré-compreensão que
fatos, frente às novas necessidades huma-
se tem das coisas), a interpretação e aplica-
nas e também às novas realidades.
ção, além da discussão/contribuição sem-
pre atual que ARISTÓTELES traz com suas Não há como se separar a compre-
ponderações sobre o papel da razão relacio- ensão da aplicação, nem a aplicação da in-
nado com a ética, também a viragem lin- terpretação, elas estão interligadas, e, mes-
güística, com o rompimento da relação mo certo de todas as dificuldades inerentes
sujeito-objeto, que passou para a relação su- ao processo, e as dificuldades que o próprio
jeito-sujeito, a questão da linguagem no intérprete (juiz) enfrenta diariamente com
mundo, que é anterior a nossa presença no a questão da “decisão justa”, deve-se conti-
mundo, e o problema do método, são fun- nuar a perseguir a verdade e a justiça, como
damentais para a compreensão da impor- um ideal a ser atingido, buscando-se a
tância que possui a filosofia ontem e hoje. concretização da garantia constitucional de
Tudo gira em torno da filosofia, não há como acesso à ordem jurídica, o mais justa possí-
discutir outros ramos/matérias do Direito vel. Havendo uma necessidade crescente
sem se fazer uma menção a ela. do aprofundamento crítico em relação ao
Direito.
Neste sentido, também no segundo
Existe, na verdade, uma necessida-
capítulo – dentro da hermenêutica jurídica,
de muito grande em se formar intérpretes
com ênfase na interpretação do Direito como
jurídicos, com uma visão ampla, conscien-
um todo, além da análise da importância que
te, séria, para o desempenho da tarefa/fun-
possui a discussão do que seja o sistema jurí-
ção, árdua por sinal, que, encontrando-se
dico, o método sistemático e tópico, com a
frente às antinomias (contradição entre
abordagem de aspectos importantes da
duas leis ou princípios), possa ele fazer a
hermenêutica jurídica em nosso país e da
melhor interpretação sistemática, fazendo
hermenêutica jurídica crítica, comprometi- do Direito um verdadeiro sistema normativo
da, construtiva, atribuindo-se ao intérprete do Estado Democrático, tendo-se o desejo
essa função de agente transformador da rea- e a esperança de decisões “justas”.
lidade social na qual nos encontramos.
Nas decisões judiciais, percebe-se Referências bibliográficas
tanto os “conceitos como os ‘pré-concei- ANDRADE, Christiano José de. Hermenêutica jurí-
tos’”, e, desta forma, a teoria crítica coloca- dica no Brasil. São Paulo: RT, 1991.
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