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sumário

INICIADA 30 ANOS
ANTES, A AUTOESTRA
DA LISBOA-PORTO SÓ
FICARIA CONCLUÍDA
EM SETEMBRO DE 1991

JORGE SIMÃO
Esta é a segunda de quatro edições especiais da Revista

40 ANOS que o Expresso está a publicar para marcar os 40 anos


da fundação do jornal, no dia 6 de janeiro de 1973.

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Depois de um primeiro número (6 de abril), no qual passámos em revista a primeira
década de existência do Expresso (de 1973 a 1982), publicamos agora mais uma Revista
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especial, desta vez com os grandes acontecimentos ocorridos em Portugal e no Mun-
do no período compreendido entre 1983 e 1992. Um período que fica marcado pela
entrada do nosso país na CEE, pelo nascimento do Bloco Central, pela emergência e
apogeu do cavaquismo, pelo desmoronamento do bloco soviético, pelo avanço do
betão e das autoestradas e pela modernidade proporcionada pelo admirável mundo
novo das caixas multibanco, dos telemóveis, das grandes superfícies comerciais. São
83 A 92 A SEGUNDA as imagens destes “anos do otimismo” que passamos em revista nesta edição, numa
DÉCADA DO EXPRESSO escolha que desta vez esteve a cargo de Alberto Frias, o segundo editor de fotografia
EM IMAGENS DA ÉPOCA
do Expresso. No dia 25 de agosto publicaremos a terceira Revista especial (1993-2002)
e em 3 de novembro a quarta e última (2003-2012), ficando então completo um cole-
cionável com um total de 600 páginas que constituirá um valioso manual sobre a
história de Portugal e do mundo dos últimos 40 anos.

6 8 134 140 142 144 146


PLUMA EM CARTAS
OPINIÃO VINHOS
CAPRICHOSA OPINIÃO MANUTENÇÃO À MESA ABERTAS
MIGUEL JOÃO
CLARA RUI LUÍS JOSÉ COMENDADOR
SOUSA PAULO
FERREIRA RAMOS PEDRO QUITÉRIO MARQUES DE
TAVARES MARTINS
ALVES NUNES CORREIA

CAPA: UM CUMPRIMENTO ENTRE AS DUAS ALEMANHAS, DIAS DEPOIS DO DERRUBE DO MURO DE BERLIM. FOTOGRAFIA DE ANTÓNIO PEDRO FERREIRA

REVISTA 16/JUN/12
pluma caprichosa

OS GLORIOSOS ANOS 80
Foram os anos da libertação de cinema estavam à pinha e mendiga- aliás José Manuel Rosado, a quem eu
cultural e sexual, antes de a sida vam-se bilhetes, os espetáculos e as tinha dado uns conselhos jurídicos que o
aparecer como uma bigorna exposições tinham gente a deitar por fora, tinham safado e sobre o qual tinha escrito
os cinemas ainda tinham néones e cada um texto que o tinha feito chorar (o
estreia transbordava para noites de vigília travesti pode chorar, um homem é que
QUE POSSO DIZER? ÉRAMOS FELIZES. Pode- a discutir as vantagens de Rohmer e não chora). A Lydia apareceu de camisa e
-se argumentar que éramos felizes por- Kurosawa. As livrarias eram palcos de um calça, com a cara a brilhar dos restos do
que éramos jovens, ou que éramos felizes teatro pessoal e eram um lugar de encon- espetáculo e uns quilos de orquídeas nos
porque éramos inconscientes. Eu acho tros, com os livreiros nossos amigos braços para me oferecer. Tinha ido ao
que éramos felizes porque éramos livres. dispondo Tennessee Williams ou e.e. Mercado da Ribeira, ainda os mercados
Esta liberdade era como sal marinho que cummings, Whitman ou Pessoa, Herberto eram mercados. Na mesa ao lado, Mário
fica no corpo depois do mar, uma coisa ou Cesariny, Saramago ou Cardoso Pires, Soares conspirava e olhava divertido. O
que faz bem à saúde. As mulheres e os Maria Velho da Costa ou Ruben A., como verso de Ricardo Reis: “Lídia, ignoramos.
homossexuais libertavam-se, não havia chocolates suíços. Nasceu a Assírio & Somos estrangeiros onde quer que esteja-
óbvia distinção de raças nem de classes, e Alvim, do Hermínio Monteiro. Tudo dava mos”. O Rosado apareceu morto e quase
os costumes da cultura e do pensamento uma discussão cultural e os espadachins todos aqueles travestis se suicidaram,
eram manifestos. Os anos 80 foram os diletantes ficavam horas na esgrima. A mundo cão que inspirou um romance ao
anos da libertação cultural. E sexual, antes cultura era, como se diz hoje, um gran- António Lobo Antunes.
de a sida aparecer como uma bigorna. de mercado. As pessoas falavam em De dia, alguns de nós trabalhavam. Toda a
Era pecado ser-se inculto e este ser-se pessoa e não tinham telemóvel nem gente ganhava pouco dinheiro mas nunca
inculto não significava digerir cultura 493 amigos no Facebook. se falava de dinheiro. Eu comecei no
como quem pratica boas ações antes da Havia a poesia e havia a noite e as duas Expresso no começo dos 80, vinda do “JL”,
confissão, significava que tudo era cultura encontravam-se no Bairro Alto e no com um texto longo sobre García Már-
6 e tudo era interessante. Lisboa era a Frágil, o covil sagrado do Manuel Reis, quez. A Revista do Expresso começou nos
capital e fervilhava de ‘cultura’. Os ciclos com a Margarida Martins (fundadora da anos 80 e era, claro, um projeto cultural,
Abraço) de guarda. O Frágil era um lugar editado pelo Vicente Jorge Silva e um
à parte no cálculo das probabilidades. grupo de mafiosos culturais nos quais eu
///CLARA Tudo era provavelmente possível. O me incluí. Tudo era passado a pente fino.
///FERREIRA nosso underground. A Factory. Toda a A liberdade era assistida pela iconoclastia
///ALVES gente todas as noites se encontrava por e podíamos deitar abaixo do pedestal
ali. Ali apresentámos o Eduardo Lourenço umas musas e uns bonzos. Só escrevía-
(que tem hoje uns 20 anos) a uma atriz mos sobre o que nos interessava, para o
bonita. Achámos que ele ia gostar. Ali nos bem e para o mal. E a Revista tornou-se
amámos uns aos outros, como manda um diktat. Os críticos pontificavam. Éra-
Deus. E nos insultámos uns aos outros. Os mos um grupo feroz, com o Eduardo
poetas adejavam por perto, o Al Berto Prado Coelho e a Teresa Coelho, o Miguel
perseguindo anjos noturnos de asas Esteves Cardoso, o António Mega Ferreira,
cortadas e o Cesariny sentado no passeio o Augusto M. Seabra, o Alexandre Melo e
às 4 da manhã a dizer, já se vão embora? muitos outros, atacando na área dos
Ainda é tão cedo. Vimos um esboço da livros, da música, do cinema, da arte, do
madrugada em casa de uns amigos escri- pensamento. Eu tornei-me ‘famosa’ com
tores em Azeitão (nunca se sabia onde a um texto a deitar abaixo um dos “Diários”
noite ia morrer) e quando o primeiro raio do intocável Torga. O grupo foi-se alargan-
de sol arredava os vampiros, o Cesariny do, alguns foram embora para outras
declarou com solenidade que lhe apetecia paragens mas creio que todos concorda-
ir a Almada. Almada? Oh, Mário, Almada riam que os anos 80 foram dos melhores
não tem piada. E ele: minha menina, anos das nossas vidas. E os políticos?
Almada é Nova Iorque. Havia gente de outro calibre. Ter conheci-
Ainda havia cafés e tertúlias. Ia-se a do Cunhal, Sá Carneiro, Zenha, foi, sei isso
Madrid à movida e ao Almodóvar. Fuma- quando olho para a engravatada mediocri-
va-se entre pratos. Um dia fui almoçar ao dade, um privilégio. Lídia, ignoramos. R
Pap’Açorda com o travesti Lydia Barloff,

REVISTA 16/JUN/12
opinião

POR MIGUEL SOUSA TAVARES


Os dez anos entre 1983 e 1992 marcam, por cá, a entrada de Portugal na
CEE, o primeiro recurso ao FMI, a emergência de Cavaco Silva e o nasci-
mento do bloco central, das grandes superfícies comerciais, do telemó-
vel e das televisões privadas. Lá fora, cai o maior símbolo da Guerra
Fria, o muro de Berlim, e Saddam lança a primeira das guerras do Golfo

1983-92: DO CAOS
AO SONHO EUROPEU
COM A MORTE de Sá Carneiro e Amaro da sa, arrastando no seu triste fim o do seu
8 Costa em Camarate, e com o falhanço do mentor. Desgastados ambos por essa luta
governo dos sucessores (Pinto Balsemão e feroz, prejudicados o governo e o país pelo
Freitas do Amaral), os anos oitenta consoli- enfrentamento constante entre Presidente e
dam-se sob o signo do general-Presidente primeiro-ministro, Eanes e Soares acaba-
Eanes — reconduzido contra a vontade de riam ambos exauridos, como dois pugilistas
Sá Carneiro e Mário Soares, em 1980. O ao fim de 15 assaltos, abrindo caminho para
Presidente-esfinge, que pusera na ordem a a emergência do terceiro personagem
esquerda militar que se julgava “revolucioná- decisivo deste período: Cavaco Silva. Mas
ria”, que trouxera a paz civil ao país depois vamos por ordem, até lá chegarmos.
da grande bebedeira dos anos setenta, era, Em Junho de 83, pela mão de Soares e Mota
no seu rigor e austeridade, com o seu ar Pinto, a democracia portuguesa inaugurava
sisudo e grave, uma espécie de referente dos uma nova fórmula de governo, a que gran-
invocados valores militares de honradez e de parte dos portugueses ficaria para sem-
intransigência, face ao que ele via como a pre alérgica: o bloco central. O governo
insustentável leveza (ou leviandade) dos PS-PSD, sob a chefia de Soares, impõe uma
políticos. Tornara assim seus inimigos incon- revisão constitucional que termina com a
ciliáveis os dois homens a quem a democra- “República em transição para o socialismo”
cia civil (e não há outra) mais ficou a dever e a “sociedade sem classes” e põe fim à
em Portugal: Sá Carneiro e Mário Soares. presença tutelar dos militares na vida políti-
Morto Sá Carneiro, a primeira metade da ca, extinguindo o Conselho da Revolução
década de 80 vai ficar marcada pela luta (que se despedira chumbando por quatro
sem tréguas entre Eanes, o militar antipo- vezes a tímida Lei das Privatizações). Aber-
líticos, e Soares, o político antimilitares. tos ao capital privado sectores até aí fecha-
Mais tarde, e por força das circunstâncias dos, os primeiros a avançar são os bancos:
dessa luta, Eanes sucumbirá ele próprio à os Espírito Santo regressam do exílio para
tentação política, ao ponto de criar um novo retomar o banco que fora seu, os Mellos
partido a partir de Belém — o qual, passado fundam o Banco Mello, os empresários do
o deslumbramento inicial, se revelaria um norte, liderados pelo potentado emergente
dos maiores embustes da política portugue- de Américo Amorim, criam de origem o

REVISTA 16/JUN/12
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ILUSTRAÇÕES DE HUGO PINTO

Em junho de 83, a democracia portuguesa


inaugurava uma nova fórmula de governo,
a que grande parte dos portugueses ficaria
para sempre alérgica: o bloco central
REVISTA 16/JUN/12
opinião Miguel Sousa Tavares

BCP — que vai inaugurar um tipo de gover- o rosto por uma inflação de 30% e uma e do próprio PS, com a direita, o PCP e a
nação feita pelos quadros e não pelos accio- praga nacional de salários em atraso nas extrema-esquerda, apesar da contestação da
nistas e que, em diversos aspectos, vai empresas, enquanto o passeavam nos rua e da iminência do desastre, ele sabe que
revolucionar, para melhor, a banca portugue- campos para que visse vacas mortas de o essencial está para lá disso. O essencial é
sa: em lugar dos balconistas desgravatados sede (e lá colocadas estrategicamente...). fazer-nos entrar na CEE, dar a Portugal uma
que atendiam os clientes como quem faz Erros próprios, porém, apenas disfarçavam nova dimensão política e económica que
um frete, eis que agora havia gente bem o fundamental. De meio século de Estado para sempre nos coloque ao abrigo das
educada atrás do balcão, que parecia genui- Novo e três anos de PREC, Portugal saíra tentações totalitárias e proporcione à econo-
namente interessada em dar o melhor com a firme convicção de que não havia mia portuguesa o apoio necessário para dar
destino ao nosso dinheiro. A extrema-es- vida sem o Estado e de que, portanto, se as o salto definitivo do subdesenvolvimento
querda gritava, indignada, mas os clientes coisas corriam mal, se a economia não para o primeiro mundo. Sem o fiel escudei-
descobriam que tinham direitos, como funcionava, as empresas não investiam, a ro Mota Pinto ao lado, mas com o apoio
consumidores. Seguir-se-iam as devoluções produtividade não existia, os funcionários determinante de Ernâni Lopes nas Finanças
ainda pendentes de todas as terras expro- públicos não viviam desafogadamente, se as e Jaime Gama nos Estrangeiros, Soares
priadas pela Reforma Agrária e as desocupa- empresas públicas eram um caos, se a sigla conduz sozinho e já na fase de rescaldo do
ções das últimas empresas sob gestão dos da TAP significava Take Another Plane, se a que seria o seu último governo, a parte final
trabalhadores. Definitivamente, a Revolução seca matava o gado ou as chuvas destruíam e decisiva das negociações com a CEE. Não
estava morta e enterrada e só poderia re- as colheitas, se os incêndios devastavam as foi tarefa fácil, pois, ao contrário do que hoje
gressar sob a forma de loucura passageira. matas preparando-as para a desenfreada se possa imaginar, a entrada de Portugal
Em nome da “traição ao espírito do 25 de eucaliptização que se seguiria, tudo era numa Europa, então a doze, tinha a oposi-
Abril”, nascem então as FP-25 de Abril, que responsabilidade do Estado e do governo ção da direita e dos comunistas e as reticên-
trazem a Portugal uma coisa desconhecida: que o dirigia. O “bom povo português” — cias de sectores do próprio PSD, onde esta-
o terrorismo urbano em democracia, com empresários, trabalhadores, funcionários — va, por exemplo, Cavaco Silva. E não foi
assaltos, bombas, mortos e feridos. As FP-25 esperava, calmamente, que “eles”, os políti- fácil, porque se complicaram alguns dossiês,
vão aterrorizar o país durante dois anos, até cos, produzissem enfim um governo capaz como aqueles que tinham de nos desemba-
ao dia 20 de Junho de 1984, quando encontra- de governar Portugal como Portugal indis- raçar de décadas de acordos bilaterais com
ram pela frente o pior dos adversários: um cutivelmente merecia: uma crença também a Espanha. Na véspera da assinatura conjun-
juiz de instrução sem medo. De um só golpe, arrastada até aos dias de hoje. E enquanto ta do Tratado de Adesão, madrugada fora
10 com um raide brilhantemente preparado, Soares se afadigava em governar e o seu no Palácio das Necessidades, Jaime Gama,
fruto de uma investigação perfeita, o juiz ministro das Finanças, Ernâni Lopes, tenta- por Portugal, e Fernando Morán, pela Espa-
Martinho de Almeida Cruz desmantela as va pôr alguma ordem no descontrolo das nha, discutiam ainda a alteração do acordo
FP-25, prendendo dirigentes e operacionais e finanças públicas, o PSD gozava o melhor de pescas em vigor entre os dois países e de
revelando ao país a identidade do seu chefe da sua situação, conseguindo uma experiên- que a Espanha, compreensivelmente, não
“Óscar”: Otelo Saraiva de Carvalho, apanha- cia de sucesso em quadratura de círculo: queria abrir mão. (Para se ter uma ideia do
do como um amador, com um diário das estava no governo para as benesses e os que estava em jogo, basta lembrar que,
actividades das FP, supostamente escrito em lugares, mas era simultaneamente oposição durante o PREC, um militar, graduado em
código, que qualquer criança decifraria. Ao às medidas impopulares e às dificuldades secretário de Estado das Pescas, não se
mesmo tempo, todo o pessoal político dos de toda a ordem que a coligação enfrenta- coibira de explicar na RTP que assinara um
dois maiores partidos portugueses, incluindo va. Em Fevereiro de 85, desgastado pelas acordo mediante o qual a Espanha ficava
os caciques locais, tomava conta do aparelho lutas intestinas dos barões, Mota Pinto dona de todos os lagostins pescados em
de Estado, dando origem à expressão “bloco renuncia ao governo e, três meses depois, o Portugal, enquanto nós ficávamos com
central dos interesses” — um arranjo e seu coração, que já desistira da política, direito a pescar chicharro em Espanha,
tradição que perdura até aos dias de hoje. No desiste também do resto.] porque os gostos alimentares dos portugue-
governo, entretanto, o PS acartava com o Mas, como de costume, Mário Soares vira ses eram mais para o chicharro do que para
principal dos males: o infeliz Mário Soares antes e além dos outros: sobre a espuma da o lagostim... Aquilo a que se poderia chamar
via-se de novo obrigado a chamar o FMI política diária, apesar das guerrilhas de a “doutrina do carapau à espanhola”).
para resgatar as finanças públicas e dava desgaste com Eanes, com as facções do PSD Em Junho de 85, com pompa e esperança,

Em junho de 85, com pompa e esperança,


Portugal torna-se membro de pleno
direito do mais próspero, justo e ousado
clube supranacional do planeta
REVISTA 16/JUN/12
Um Portugal desconhecido, moderno,
solidamente implantado na Europa rica,
emergia da noite para o dia, num milagre
de que a ciência económica não tinha registo
Portugal torna-se membro de pleno direito do tomava conta do PSD, a caminho de tomar tais: eram os subsídios para os agricultores não
mais próspero, justo e ousado clube supranacio- conta de Portugal. Chamava-se Aníbal Cava- fazerem nada ou plantarem o que não iriam
nal do planeta. Ernâni Lopes, que tanto se co Silva, professor de Finanças Públicas, e o colher, os eucaliptos a que Mira Amaral chama-
batera por esse dia, declara: “acabou-se o fado!”. país recordava-se de o ter visto fugidiamente, va “o nosso petróleo verde”, os “cursos europeus
Queria ele dizer que, a partir de então, estáva- como ministro das Finanças do primeiro de formação” que recebiam magotes de dinhei-
mos colocados perante o desafio de conseguir governo de Sá Carneiro, em que subiu salários ro sem ter de prestar contas nem formar nin-
acompanhar, em todos os domínios, essa Euro- e pensões, desceu impostos e assim garantiu guém, as Universidades privadas que floresciam
pa onde, durante décadas, batêramos à porta uma maioria absoluta para a AD, tendo depois como cogumelos ou o “novo dinamismo da
como pedintes, para lá exportando os nossos desaparecido no vazio, tão logo Sá Carneiro bolsa”, com direito a programa diário na televi-
deserdados de presente e futuro. E eis que morreu e as coisas se tornaram mais complica- são pública e onde todas as acções de todas as
agora entrávamos, como iguais, numa Europa das. Em pousio há cinco anos, poupado às empresas subiam, vertiginosa e misteriosamen-
sem fronteiras — para os trabalhadores, para dores do bloco central e do FMI, Cavaco emer- te, entre 4 e 10% ao dia. Um Portugal desconheci-
os serviços, para os capitais e para as mercado- giu em grande forma: sem esperar um dia, do, próspero, moderno, solidamente implantado
rias. Mas o comum dos portugueses preferiu, dedicou-se afincadamente à tarefa de desman- na Europa rica, emergia assim, da noite para o
como se iria ver adiante, interpretar o recado telar o governo de que o seu partido fizera dia, num milagre de que a ciência económica
de outra forma: “acabou-se o fado” queria dizer parte até esse dia, com tão demolidoras críti- não tinha registo e de que ainda hoje estamos
que se tinham acabado a pobreza e o choro e cas que dir-se-ia que o PSD, de facto, nascia para reencontrar a fórmula.
que, doravante, todos iríamos ser ricos e felizes com ele. Encontrou em Eanes um aliado à Restava cumprir o sonho de Sá Carneiro e do
para sempre. Bendita Europa! altura das suas ambições e, em pouco mais de PSD: um governo, uma maioria, um Presidente.
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um mês, ambos tinham a cabeça de Soares Para as presidenciais de Janeiro de 86 (a que
A CITROËN ENTRA EM CENA. Disse Clemenceau entregue numa bandeja. Adeus, bloco central. Eanes já não poderia recandidatar-se), Cavaco
que “a ingratidão para com os grandes homens A partir de Belém, Eanes criara entretanto o produz um candidato único do centro-direita:
é o sinal das grandes nações”. No nosso caso, PRD, o partido dos “homens bons da província”, Freitas do Amaral. Contra essa candidatura
depende do ponto de vista: Mário Soares pri- que desciam à capital para ensinar decoro e apresenta-se uma esquerda dividida entre
meiro-ministro fora o homem que nos impuse- decência aos “políticos profissionais”, essa raça fidelidades e nostalgias: Maria de Lourdes
ra duas vezes o FMI, que deixara a inflação que tanto Eanes como Cavaco execravam. Em Pintasilgo, a esquerda romântica; Salgado
transformar-se num cancro que tudo destruía, Outubro, ambos sairiam vencedores das elei- Zenha, o irmão desavindo de Soares, apoiado
que, no auge das dificuldades, jurara que não ções: Cavaco com uma maioria simples, o PRD por Eanes, o PCP e os anti-soaristas do PS; e o
havia fome em Portugal — e esse seria o seu com uns surpreendentes 18% — apenas a 2% de próprio Mário Soares, a quem as intenções de
toque a finados. Mas, em 85, era também o um destroçado PS comandado por Almeida voto davam 8% e a quem, jurava-se, o país não
primeiro-ministro cuja austeridade salvara pela Santos, na ausência de um auto-exilado Soares. perdoara ainda a sua negligência governativa.
segunda vez as finanças públicas e que, saído Pensou-se que talvez se coligassem, de tão Mas o que se iria seguir, na mais extraordinária
Portugal da crise, dera ao país uma nova pers- parecidos que eram os seus mentores, mas e emocionante campanha eleitoral que eu
pectiva e um novo futuro, alicerçado nos mi- Cavaco preferiu governar sozinho e o “PSD próprio testemunhei em 38 anos de democra-
lhões a perder de vista que os seus amigos da profundo” não queria outra coisa. Os “homens cia, seria uma batalha política inesquecível.
Europa aqui viriam investir — a fundo perdido, bons” do PRD contentaram-se com fazer figura Contra todos os ventos e prognósticos, correndo
na maior parte dos casos. Aparentemente, seria de novas vedetas, entre os corredores da Assem- o país inteiro sem descanso, insultado no norte
ele a colher agora os frutos tão apetecidos de bleia e os bares de jornalistas da capital, onde e agredido no sul, Mário Soares sobreviveria à
uma rara situação de desafogo financeiro e atraíam como mel e se desbocavam como primeira volta e à batalha fratricida da esquer-
capacidade de crescimento. Mas não: guardado senhoras de bem. da, impediria por uma unha o triunfo imediato
estava o bocado para outrem. Cavaco Silva não perdeu tempo em lançar mãos de Freitas do Amaral e respirava ainda para a
Num espaço económico agora sem fronteiras, a à obra: sabia muito bem ao que vinha e aprovei- segunda volta como candidato de “toda a es-
Citroën resolveu então entrar na cena política tou a situação financeira resolvida e os dinhei- querda e do 25 de Abril” contra a “direita revan-
portuguesa. Em 17 de Maio de 85, numa sala ros europeus para se lançar de imediato numa chista”. E ganhou. A ironia da história é que
art déco do Casino da Figueira da Foz, um política obreirista de amanhãs que cantam que, Cavaco, que, no auge da campanha por Freitas
ocasional cliente da Citroën, que jurou lá ter de imediato, lhe traria a popularidade geral. Não do Amaral, declarara não poder governar com
ido apenas para rodar o seu novo modelo, era apenas o ‘betão’, as auto-estradas e os hospi- Soares a Presidente, acabaria a dar-se como

REVISTA 16/JUN/12
opinião Miguel Sousa Tavares

Deus e os anjos no primeiro mandato de chamados Saviotti, Damásio, Alhambre, versa um ano mais tarde — até que o massa-
Soares... e de relações cortadas com Freitas Berardo. Lisboa é território de um caterpillar cre do cemitério de Santa Cruz, em Novem-
do Amaral. chamado Krus Abecassis, que destrói o bro de 91, chama a atenção do mundo para
Mais irónico ainda é que o PRD de Eanes, Monumental, ameaça com o maior Luna Timor e dará depois a António Guterres a
que desbaratara o PS nas legislativas e Park da Europa e com lojas de enchidos e autoridade para exigir aos Estados Unidos e
enfrentara Soares nas presidenciais, que fado no Castelo de S. Jorge e ergue aos céus à Indonésia uma solução.
passara mais de um ano a namorar Cavaco as Torres das Amoreiras, desenhadas pelo Com Soares ainda ocupado na paz institucio-
tentando fazer parte do seu governo minori- inconfundível arquitecto da moda: Tomás nal e o PS a lamber as feridas dos erros de
tário, acaba a conspirar com o PS uma Taveira. Rosa Mota ganha a medalha de estratégia cometidos, com o povo posto em
moção de censura para derrubar Cavaco. ouro da maratona nos Jogos Olímpicos de sossego e bem tratado e a esquerda comunis-
Com Soares — já Presidente há mais de um Seul e o FC Porto é campeão europeu em ta sem terreno de recrutamento, a verdadei-
ano e ausente numa das suas incontáveis Viena (com Cavaco misteriosamente feito ra oposição ao cavaquismo viria da direita e
visitas de Estado, dessa vez ao Brasil — os Dragão de Ouro). O parque automóvel não pela mão de um partido, mas de um
“homens bons da província” aliam-se ao PS, cresce a tal ponto que é preciso lista de jornal: “O Independente”, fundado por Mi-
de Vítor Constâncio, e ao PCP e derrubam o espera para comprar carro e o aparecimen- guel Esteves Cardoso e o jovem Paulo Portas.
governo do PSD na Assembleia, confiantes to dos telemóveis vai mudar a vida dos Sob a direcção editorial de Portas, cujo
em que, a seguir, Mário Soares daria posse a portugueses como de nenhum outro povo: objectivo declarado era conseguir um dia
um governo de “toda a esquerda” — que, entre outras consequências, dispara o núme- “vender mais um exemplar do que o Expres-
afinal, o tinha eleito Presidente. Noite alta, ro de divórcios. Otelo é libertado da prisão e so”, “O Independente” tornar-se-ia um fenó-
em Carajás, na Amazónia, um descontraído Costa Freire, secretário de Estado de Leonor meno absolutamente novo no velho panora-
Mário Soares recebe o telefonema de um Beleza, é preso. Constâncio é substituído por ma jornalístico português, ainda preso de
ufano Vítor Constâncio, dando-lhe conta da Jorge Sampaio no PS e Cunhal cede o lugar uma linguagem e um estilo que o apareci-
revolução política em curso em Lisboa: os ao insípido Carlos Carvalhas, no PCP. Duarte mento de “O Independente” revelaria quão
gritos de Soares com Constâncio trespassa- Lima é líder parlamentar do PSD; Dias gasto estava. Insolente, imaginativo, icono-
ram as frágeis paredes de madeira do bunga- Loureiro é ministro da Administração Inter- clasta e com graça, “O Independente” foi
low presidencial e foram avidamente escuta- na; um tal Martins é fugazmente ministro uma lufada de ar fresco no “oásis” proclama-
dos pelos jornalistas cá fora. Nessa noite, dos Transportes, compra os novos Airbus do por Cavaco e, a breve trecho, também a
todos percebemos que o golpe estava conde- para a TAP e desaparece de cena até jamais; mais séria ameaça à fortaleza aparentemen-
12 nado ao fracasso: o democrata Mário Soares o comércio externo é com Faria de Oliveira te inexpugnável. Alimentado por fontes da
jamais daria posse a um governo que sabia (hoje, Caixa), Horta e Costa (ex-PT) e António Procuradoria-Geral da República e por
ao arrepio da opinião pública. Em vez disso, Mexia (EDP); Deus Pinheiro passeia-se entre esquecidos ou maltratados do próprio PSD,
convoca eleições antecipadas, nas quais o a Educação e os Negócios Estrangeiros; o “O Independente” fazia tremer todo o edifí-
PRD desaparece e o PSD recolhe uma históri- seu colega de golfe, Álvaro Barreto, da cio cavaquista, às quintas-feiras à noite,
ca maioria absoluta de 50,1%. E assim, pela Soporcel e dos eucaliptos, trata da Agricultu- véspera de saída do jornal. Abalou e ridicula-
mão de Soares, Cavaco cumpre o seu ra, e Mira Amaral, hoje ao serviço de Angola, rizou os créditos e as figuras do cavaquismo,
segundo sonho: o de uma maioria para tem a Indústria a cargo; a Economia é de mas destinava-se a uma elite e não conquis-
governar tranquilamente. E Soares encer- Miguel Cadilhe (ex-BCP e BPN) ou Eduardo tou votos para a direita. Em devido tempo,
ra a sua vingança sobre Eanes, o aprendiz Catroga (EDP), e as Finanças são geridas por Paulo Portas trocou de campo e foi para a
de político. Braga de Macedo, eterna reserva disponível política, onde, a duras penas, hoje conquis-
da nação; enfim, um tal Oliveira Costa, de tou o direito de viajar, como ministro dos
CAVACO SILVA — PARTE II. Com maioria Aveiro, que viria a fundar e afundar o BPN, Estrangeiros... ao lado de Cavaco Silva.
absoluta no Parlamento, dinheiros da Euro- com falcatruas em paraísos fiscais e outros Em Novembro de 89, o mundo, tal como o
pa sem fim e um Presidente (até ver) coope- crimes que tais, é o homem do fisco, o conhecíamos desde a Segunda Guerra,
rante, Cavaco Silva dedica-se ao que ele cobrador de impostos dos portugueses. Nada muda com a queda do muro de Berlim.
mais tarde chamaria “as reformas da déca- se cria, nada se perde, tudo se transforma. Provisoriamente consagrados como única
da”: na saúde, na educação, na segurança Já Durão Barroso, estrela ascendente do PSD, superpotência e vencedores da Guerra Fria,
social, na agricultura, no sistema fiscal. A ocupa-se da paz em Angola e consegue os os Estados Unidos não hesitam em atacar o
escolaridade obrigatória cresce, a mortalida- Acordos de Bicesse, de Maio de 91 — à Iraque de Saddam Hussein, que anexara o
de infantil diminui, a A-1 completa-se, a A-2 sombra dos quais o estado-maior da UNITA Kuwait e ameaçava o abastecimento de
é iniciada, a Caixa Geral de Depósitos inaugu- sai do mato para Luanda, onde será massa- petróleo ao Ocidente. Uma guerra incomple-
ra a “maior sede bancária da Europa”, em crado alegremente, numa operação planea- ta, que será retomada anos depois pelo filho
Belém nasce o “maior centro cultural euro- da e executada perante o absoluto alheamen- de George Bush. Esse ano de 91 é também
peu”, os ordenados crescem e também o to e silêncio das autoridades portuguesas. O importante em Portugal: em Janeiro, Mário
número de funcionários públicos e pensio- mesmo Durão Barroso gasta-se numa sessão Soares consegue tranquilamente um segun-
nistas, a bolsa estoira de felicidade e a “Olá- anual de negociações sobre Timor, que do mandato, esmagando nas urnas Basílio
-Semanário” está pujante de beautiful people, acaba sempre com ele e o indonésio Ali Horta — atirado às urtigas pela direita, antes
como os novos ricos nascidos do nada Alatas a concordarem em continuar a con- de, mais tarde, ser perdoado e recolhido

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O parque automóvel cresce a tal ponto


que é preciso lista de espera para comprar
carro e o aparecimento dos telemóveis
vai mudar a vida dos portugueses
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opinião Miguel Sousa Tavares

pelo PS. Em Outubro é a vez de Cavaco, que melhores das suas vidas, correspondiam ao experimentada na RTP, e o Patriarcado de
renova também a sua maioria absoluta, com dinheiro em circulação e não ao aumento de Lisboa, que se propunha fazer uma televisão
50,6% dos votos contra 29% do PS. Três riqueza produzida. Nem o estouro da bolsa e decalcada da RR-onda curta, com missa,
meses depois, o PS elege novo secretário-ge- a subsequente prisão do corretor Pedro meditação de fecho de emissão e tudo.
ral, que iria marcar a década seguinte: Caldeira fizeram soar campainhas de alar- Ganhou a Igreja Católica, que se cobriu de
António Guterres. Mas, para já, espera-o um me. E, sem o recurso à bolsa e às poupanças ridículo e de dívidas, logo tratando de se
longo e paciente caminho na oposição, dos cidadãos para lá canalizadas, como desfazer da TVI, vendendo a quem mais deu,
dedicado à tarefa de desgastar lentamente a acontece numa economia saudável, também sem curar de saber se eram baptizados ou
segunda maioria de Cavaco Silva. as empresas se viraram para o crédito não. Hoje, e sem que ninguém entenda
No início de 92, Lisboa recebe a sua primei- bancário, fácil e barato. Mas, muitas vezes, porquê, para quê e como, um novo governo
ra cimeira europeia, onde se consumam os apenas para jogarem ao Monopólio entre si, PSD prepara-se para atribuir nova licença
acordos de Maastricht, introduzindo a comprando-se, fundindo-se, tomando posi- de televisão e só uma coisa é certa: a Igreja
moeda única. Eufórico, Cavaco anuncia que ções cruzadas, brincando às Opas e aos Católica não se vai candidatar. E outra coisa
“estamos no pelotão da frente”! O PS concor- “grupos”, afectando uma riqueza que não se tornou desde logo evidente, com o apare-
da, o CDS, de Portas, e o PCP discordam produziam e uma modernidade que não cimento das privadas: governar nunca mais
violentamente, em nome da soberania passava pelo que dá trabalho e não garante voltou a ser aquele exercício tranquilo,
nacional. A moeda única garantia duas lucros imediatos: investigação, inovação, escrutinado pela televisão pública, alternada-
coisas que só podiam entusiasmar os criatividade. Além da banca, os únicos mente gerida pelo PS ou pelo PSD. Embora
portugueses: o fim da inflação e juros verdadeiros potentados eram as empresas feita tardiamente e meio a medo, embora
baixos. Em contrapartida, exigia o contro- púbicas ou as privadas que as tinham vindo consumada com o insustentável frete à
lo dos défices públicos, nunca além do substituir em regime de monopólio e o Igreja, a liberalização do audiovisual é capaz
equivalente a 3% do PIB. Os portugueses grande retalho. Portugal inteiro cobria-se de de ter sido a principal mudança, e para
escolheram ficar com as duas partes boas e grandes superfícies comerciais, como se melhor, dos anos do cavaquismo.
ignorar a parte má: de 92 para cá, todos os cobria de auto-estradas: o pequeno comér- Em 92, estamos ainda a três anos do final
governos, praticamente, se dedicaram a, cio morria aos poucos e o interior aproveita- do segundo mandato de Cavaco Silva e do
com ou sem batota, violar os limites do va as auto-estradas para ver passar os produ- nascimento do “tabu” — que nunca, verda-
défice, até chegarmos onde chegámos. tos agrícolas espanhóis que sentenciavam de deiramente, o chegou a ser. Também Soa-
Entretanto, trazida para o consumo por morte a nossa agricultura e para trazer cada res tem ainda quatro anos pela frente, mas,
14 taxas de juro tão atractivas como nunca vez mais pessoas do interior para as cidades, como de costume, ele já começa a enxergar
antes vistas, uma massa imensa de portugue- em busca do “sonho europeu”. Como sinteti- além. Sente que Cavaco há-de querer suce-
ses lançou-se nos empréstimos como uma zou Fernando Nogueira, numa festa de der-lhe no lugar e urge começar a minar-
massa de famintos se lançaria sobre um aniversário do PSD, “o bolo chegou para -lhe o terreno. Abrem-se as “presidências
banquete grátis. Impulsionados por uma todos e ainda sobrou para os restantes”. abertas”, renasce o MASP, inauguram-se as
banca diligente, pelas Cofidis e outras coisas Entretanto, Cavaco Silva cumpria uma das conferências “Portugal, Que Futuro?”, alarga-
que tais, pelos promotores imobiliários e suas promessas: liberalizar o mercado da -se e solidifica-se a “corte de Belém” — que,
pelos novos centros comerciais em cada comunicação social. Depois de abrir as mais tarde, tantos danos e maus conselhos
esquina, centenas de milhares ou milhões de licenças de rádio, depois de abandonar os traria ao seu mentor. Com a reeleição,
pessoas endividaram-se muito para lá da jornais do Estado (hoje, resta apenas o “Jor- Soares entrara na “magistratura de influên-
sua capacidade razoável de pagamento. nal da Madeira”, integralmente sustentado cia”, cujo significado autêntico era que a paz
Primeiro, para comprar carro, depois habita- pelos contribuintes e com a exclusiva missão institucional entre Belém e São Bento tinha
ção própria, depois férias no estrangeiro e de louvar todas as manhãs o Querido Líder, os dias contados. Assim terminavam estes
brinquedos electrónicos para os filhos, enfim assim que o sol se levanta), Cavaco lançou o dez anos: pedimos desculpa por esta inter-
para segunda habitação. Nunca para monta- concurso público para as duas televisões rupção, a guerra segue dentro de momen-
rem um negócio rentável, para investirem privadas. Concorreram três candidatos: tos. R
no futuro ou na sua própria reforma. As Balsemão, que de há muito estava prepara-
taxas de crescimento desses anos de estouva- do e rapidamente pôs no ar a SIC, Proença (NOTA: DA HISTÓRIA OCUPAM-SE OS HISTORIADORES.
da alegria, que muitos recordam como os de Carvalho, acompanhado de uma equipa EU, DA ANÁLISE POLÍTICA, QUE É A MINHA SOMENTE)

De 92 para cá, todos os governos,


praticamente, se dedicaram a, com
ou sem batota, violar os limites do défice,
até chegarmos onde chegámos
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Uma
década
em
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imagens
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Retratos de Portugal e do Mundo na segunda
década de vida do Expresso, através do olhar
de fotógrafos do jornal. TEXTOS DE PAULO PAIXÃO

A DÉCADA cuja seleção fotográfica publica- seria o primeiro rasgão na Cortina de Ferro,
17
mos nesta edição mostra um período em que que escassos cinco meses depois levaria à
se assiste a uma aceleração da História — queda do Muro de Berlim e à maior mudan-
aquém e além-fronteiras. É nesta época ça geopolítica desde o fim da II Guerra Mun-
(1983-1992) que Portugal se torna membro dial: o desmoronamento da chamada Europa
de pleno direito da CEE. Por cá, dois políticos de Leste e o fim da União Soviética e do
dividem a liderança. Mário Soares começa sonho comunista. Assim, é redesenhado o
uma corrida presidencial como perdedor mapa do Velho Continente. Só num ponto as
antecipado, ganha ao sprint e reina depois ondas de choque fazem abanar mas não cair Alberto Frias
como se fosse um verdadeiro monarca. a muralha: em Pequim, na Praça Tiananmen. As imagens da década
Cavaco Silva dá ao PSD a primeira maioria Acaba a Guerra Fria, mas como consequên- 83-92 foram escolhidas
pelo segundo editor de
absoluta numas eleições legislativas, e sob o cia outras guerras começam. Nos Balcãs, fotografia do Expresso.
seu Governo o país conhece mudanças onde os nacionalismos ressurgem em força e Alberto Frias, 53 anos, é
enormes (conclusão da autoestrada Lisboa- o cheiro a morte e a pólvora volta a sentir-se. jornalista desde 1978.
Iniciou a carreira no sema-
-Porto). Portugal deixa de estar centrado Ou no Golfo Pérsico, onde o perfume do nário “O País”, trabalhou
sobre si próprio, como acontecia anterior- petróleo é um bem apetecido. Por todas estas nos jornais “O Diabo”, “O
mente, e vira-se para a Europa e o mundo paragens, entre revoluções e campos de Dia”, “Tal & Qual” e nas
agências Associated Press
lusófono. Mas o país também recebe más refugiados, cerimónias oficiais e o cidadão e Lusa, tendo nesta desem-
notícias: uma sucessão de acidentes que comum, andaram os fotógrafos do Expresso. penhado o cargo de editor
fazem centenas de mortos e deixam mossa E, das raras vezes em que isso não foi possí- fotográfico. Entrou em
junho de 1995 para os
(o incêndio do Chiado, bem na alma). Lá fora, vel, as imagens marcantes nunca deixaram quadros do Expresso, onde
a História também acelera, e muito mais de ser publicadas no nosso jornal. R é atualmente fotojornalista.
depressa. Primeiro assusta, como em Cher-
nobyl. Depois surpreende pela vertigem dos
acontecimentos. O corte de um pequeno Saiba mais em
troço de arame farpado na fronteira entre a www.expresso.pt/expresso40anos
Hungria e a Áustria, a 27 de junho de 1989,

REVISTA 16/JUN/12
A QUADRATURA
DO CENTRÃO
A 4 de junho de 1983, Mário
Soares e Mota Pinto brindam
ao nascimento do Bloco
Central. Nas legislativas de
abril, o PS vencera, sem
maioria absoluta, seguido
pelo PSD. O acordo entre os
dois maiores partidos come-
çou por ser unicamente de
aritmética parlamentar, para
suportar o Governo numa
conjuntura de grave crise.
Contudo, ao longo dos anos,
foi sedimentando os alicer-
ces de um regime paralelo.
PS e PSD revezar-se-iam até
ao presente na liderança do
Executivo (os sociais-demo-
cratas por vezes com a
muleta do CDS). A par desse
plano formal, quem governa
— reservando sempre uma
quota para a oposição de
turno — foi distribuindo por
militantes e amigos de oca-
sião as mordomias que o
controlo do aparelho de
Estado permite gerir. O
18 Bloco Central nunca mais se
repetiu, é verdade, mas as
raízes estão bem agarradas à
terra. É o ‘centrão’: uma
nebulosa destapada amiúde,
quando escândalos ou casos
de corrupção saem à luz do
dia. “O estado a que isto
chegou” (parafraseando o
capitão Salgueiro Maia) é
fruto do caldo de cultura
dessa alternância no poder.
Paradoxalmente, sempre que
o país vive momentos difí-
ceis, há quem faça da malei-
ta a mezinha. Paira então no
horizonte uma espécie de
quadratura do círculo: “Go-
verno de salvação nacional”,
entre PS e PSD.
FOTO RUI OCHÔA

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O PRIMEIRO O FMI já andara por cá, em 1977. Mas então foi tudo muito discreto. Em 1983, a
chefe da delegação do Fundo Monetário Internacional ainda tentou manter um
ROSTO registo low profile, mas a persistência dos jornalistas apanhou-a pela vez primei-

DO FMI ra à saída do Hotel Altis, em Lisboa (acompanhada por elementos da sua equi-
pa). O trabalho hoje feito com grande alarde pelo “careca, o etíope e o alemão”
(como chama Miguel Sousa Tavares aos responsáveis dos organismos da troika)
foi então assegurado pela italiana Teresa Ter-Minassian. Na década de 80, ao
seguir as receitas do FMI, com fortes custos sociais, o país que se sabia pobre
saneou as suas contas e alcançou a estabilidade macroeconómica para entrar
na então Comunidade Económica Europeia. Hoje, o país que se julgou rico e
durante muitos anos viveu acima das possibilidades (desbaratando fundos
comunitários) aperta o cinto para não ser expulso da União Europeia. Às vezes
a história quase se repete — e parece que não aprendemos grande coisa.
FOTO LUIZ CARVALHO

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UMA TROIKA Como acontecera na primeira vez, também na segunda vinda do FMI é Mário
Soares, na imagem com os ministros Almeida Santos e Jaime Gama, a dar a
PORTUGUESA, cara pelas más notícias. Em 1983, pouco após a posse, o Governo anunciou

COM CERTEZA cortes nos subsídios de bens essenciais, tornando mais caros o pão, o leite, o
açúcar, etc... Também aumentariam a eletricidade e os transportes públicos.
Houve subidas de impostos, com um célebre pelo Natal desse ano (28% do
subsídio). Foi congelado o investimento público e desvalorizado o escudo. As
atualizações salariais foram ficando bem abaixo da inflação (em 1984 iria
cifrar-se nuns hoje inimagináveis 29,3%). A crise escreveu-se então com
letras garrafais: salários em atraso para milhares e milhares de pessoas, em
muitas empresas. Foi um tempo de fome — fome a sério, com gente deses-
perada a suicidar-se. Na Igreja Católica, levantou-se a voz de D. Manuel
Martins, bispo de Setúbal, para alguns o “bispo vermelho”.
FOTO RUI OCHÔA

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UM PAÍS No início da década de 80, Portugal sofreu uma seca generali-


zada, que no verão de 1983 deixa as barragens vazias — como
DE EXTREMOS mostra esta imagem, na barragem de Belver, no distrito de
Portalegre. O terreno ressequido é imagem de uma dura bele-
za, mas nas brechas abertas esvaem-se também as esperanças
e as colheitas de agricultores. Secam as forragens e falta água
para o gado, num país muito dependente do sector primário.
Mas, como diz o povo, não há fome que não dê em fartura. A
tão desejada chuva cai a potes meses depois. Na região de
Lisboa, a 19 de novembro de 1983, ocorrem as piores enxurra-
das desde 1967 (nas quais morreram centenas de pessoas).
Agora há 10 mortos confirmados. Na catástrofe ficam à tona
tremendos erros de ordenamento urbanístico, como a constru-
ção em leito de cheia e a impermeabilização indevida de solos
— na fotografia, a várzea de Loures. Erros humanos a poten-
ciar os riscos num país, apesar da pequena dimensão, onde a
Natureza é de extremos. Reza o provérbio: “Há sol que rega e
água que seca”. Por vezes a sabedoria popular engana-se.
FOTOS RUI OCHÔA

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EL REI
D. CHICO FININHO
No início dos anos 80 vive-se o boom do rock
português. UHF, Grupo de Baile, GNR, CTT,
Trabalhadores do Comércio ou Táxi são gru-
pos que marcam o início da década, a maior
parte efémeros. Mas a voz emblemática é a de
Rui Veloso — aqui ao lado de Mário Soares e do
compositor José Niza —, em cujo primeiro
álbum (“Ar de Rock”) nasce o ‘Chico Fininho’.
Para muitos, ele é o pai do rock indígena. Uma MISTER Ultrapassado o recato imposto pelos
costumes do Estado Novo, e dobrado
doutrina envolta em nevoeiro, já que José Cid MÚSCULO o período revolucionário, em que a
reclama o trono para o Quarteto 1111 (de que fez musculatura do espírito foi exercita-
parte), com ‘Lenda de El Rei D. Sebastião’, de da noutros palcos, os portugueses
1967. Genealogias à parte, depois da música de descobrem novas modalidades,
intervenção que marcou o pós-25 de abril de como o culturismo — na imagem, o
1974, novas melodias na língua de Camões vencedor de um concurso realizado
tomam agora conta das rádios e animam, nos em Lisboa. Como as silhuetas dese-
liceus, uma geração de adolescentes suficiente- nhadas pelo recorte dos deuses
mente novos para a Revolução lhes parecer gregos, os corpos querem-se com
coisa distante. Os imaginários agora são outros: grande tamanho muscular, definição,
“Sempre a domar a cena/ Fareja a judite em harmonia e estética. Por cá houve
cada esquina/ A vida só tem um problema/ O campeões, mas nenhum com o
ácido com muita estricnina/ nervo e fibra para alcançar outros
(...) Chico fininho/ Uuuuuuh uuuuuuh”. voos — como Arnold Schwarzeneg-
FOTO RUI OCHÔA ger, o tirolês que conquistou os EUA,
em Hollywood e na política.
FOTO RUI OCHÔA

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EMIGRANTES Foi na década de 60 do século XX que se atingiu o pico da emigra-


ção lusitana, principalmente para França. Os portugueses encontra-
PORTUGUESES vam na ida para o estrangeiro uma escapatória para melhorar a

EM PARIS vida. Em 1983, o eldorado tarda em chegar à família Campos, da


Beira Alta. Vivem em Saint-Denis, nos arredores de Paris, numa
“cité de transit” (bairros criados para instalar os habitantes dos
antigos “bidonvilles”, por um período temporário que se foi tornan-
do definitivo). No “La Pampa” acantonam-se sobretudo portugue-
ses, mas também espanhóis. A família Campos passa por sérias
dificuldades. O pai está doente e desempregado, a mãe fica em
casa a tratar da lida e dos filhos, ainda menores.
FOTO ANTÓNIO PEDRO FERREIRA

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BAIRRO DE LATA
NA AMADORA
Na Grande Lisboa, nos anos 80, à
volta da capital e das cidades-dor-
mitórios há uma cintura de bairros
de lata, onde vivem centenas de
milhares de pessoas (na fotografia,
nos arredores da Amadora). Antes
de 1974, as barracas foram crescen-
do à medida das migrações inter-
nas, gente que saía do interior e
buscava trabalho no litoral. Depois
da Revolução de 25 de abril, a
vinda de cidadãos africanos do
antigo império português criou
novas geografias de habitações
degradadas. Os Censos de 1981 dão
um quadro negro: 22% dos aloja-
mentos não têm casa de banho e a
28,5% falta água canalizada.
FOTO RUI OCHÔA

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UMA VIDA
INTERROMPIDA
Com o fim do Governo
da Aliança Democrática
(AD, coligação entre o
PSD, o CDS e o pequeno
28 PPM), Mota Pinto substi-
tui Balsemão na lideran-
ça do PSD e vai a votos
nas legislativas antecipa-
das de 25 de abril de
1983. Na campanha
faltam banhos de multi-
dão para embalar os
sociais-democratas
(o PS triunfa, com um
avanço de 9%). Mota
Pinto negoceia depois
um acordo com Soares,
do qual sai o Governo
do Bloco Central. O
pacote de austeridade
aplicado pelo Executivo,
sob a batuta do FMI, dá
bons resultados no
plano económico, mas
entretanto Mota Pinto
vê minado o apoio
dentro do partido. Ga-
nha à tangente uma
votação no Conselho
Nacional e acaba por se
demitir (fevereiro de
85). Morreria de doença
súbita três meses de-
pois, com 48 anos.
FOTO RUI OCHÔA

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INTELECTUAIS Tempos houve em que muitas das principais figuras da cultura portuguesa se
empenhavam aberta e publicamente na defesa de causas. Havia o ofício (da escri-
COMPROMETIDOS ta, da música ou da pintura, por exemplo), mas havia também o cidadão que
oficiava na primeira fila. Em 29 de outubro de 1983, a Marcha pela Paz — para
assinalar a Semana do Desarmamento, promovida pela ONU — juntou na Aveni-
da da Liberdade, em Lisboa, o escritor e pintor Mário Dionísio e os escritores José
Cardoso Pires e José Saramago. Os relatos desse dia falam também da presença
de Manuel da Fonseca, Fernando Piteira Santos e Urbano Tavares Rodrigues,
entre outros. Dionísio já acabara há muito “A Paleta e o Mundo”, Cardoso Pires
publicara “O Delfim” em 1968 e Saramago o “Memorial do Convento” em 1982.
FOTO RUI OCHÔA

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ONE MAN Em outubro de 1984, o Presidente moçambicano,


Samora Machel, vem a Portugal. É a primeira visita do
SAMORA chefe de Estado da ex-colónia à antiga metrópole. Há
grande expectativa, pois Lisboa pretende o degelo
entre as duas capitais. Foi um êxito absoluto, devido ao
carisma de Machel — na fotografia, tirada em Sintra,
em perfeita sintonia gestual com Almeida Santos, um
português com Moçambique na alma, e ante o sorriso
de Mário Soares. O antigo guerrilheiro mostrou sem-
pre boa disposição, quebrando várias vezes o protoco-
lo. Mas também muita inteligência e intuição política.
E se a hierarquia do Estado ficou rendida, a vox populi
teve de dar o braço a torcer. Num país onde alastra-
vam as anedotas sobre Machel, todas com carga colo-
nialista, foi uma surpresa descobrir alguém ao mesmo
tempo com uma afabilidade natural e um perfil de
estadista. Além de mais, Samora tinha sentido de
humor, pois gostava de conhecer as últimas piadas que
diziam a seu respeito, e divertia-se muito com isso. O
último a rir é sempre o que ri melhor.
FOTO RUI OCHÔA

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A QUERELA
DO ABORTO
Nos anos 80, a discussão sobre a despenali-
zação do aborto toma conta da sociedade
portuguesa. Em 1984, a clivagem está bem
vincada (em baixo, partidários de movi-
mentos pró-vida numa ação de rua). Mas
mais do que argumentos religiosos, éticos,
científicos, sociais, políticos ou outros, a
querela que atravessa a sociedade portu-
guesa desde há décadas fica marcada por
um poema. Foi declamado em 1982, no
Parlamento, quando a deputada Natália
Correia (em cima, com Mário Soares)
respondeu ao deputado do CDS João Mor-
gado, para quem “o ato sexual é para ter
filhos”. Um excerto da intervenção, que
fez rir todas as bancadas:
“Já que o coito — diz Morgado —
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.”
FOTOS RUI OCHÔA

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A PESCA
ANTES
DA PAC
Em 1984, era assim um
dia normal no porto de
Sesimbra: as traineiras,
repletas de sardinhas,
atropelam-se para des-
carregar o produto da
faina. No momento do
desembarque vive-se a
azáfama habitual entre
os homens do mar.
Então, nas lotas e nos
mercados, o pescado à
venda é sobretudo
apanhado por embarca-
ções nacionais. Com a
entrada de Portugal na
CEE, à medida que
entram no país fundos
comunitários para o
desenvolvimento de
muitas outras atividades
económicas, a pesca (e
também a agricultura)
vai sendo sacrificada às
orientações emanadas
de Bruxelas. A quota à
disposição da indústria
36 pesqueira portuguesa
vai minguando, o que
parece, no plano estraté-
gico, um contrassenso
para um país com águas
territoriais a perder de
vista, e onde o défice
alimentar teima em
crescer.
FOTO RUI OCHÔA

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SÃO BENTO No verão de 1984, Carlos Lopes esteve para nem


embarcar para Los Angeles, onde já decorriam os
GRILL Jogos Olímpicos. Treinava em Lisboa, na Cidade Uni-
versitária, quando foi atropelado. Não ganhou para o
susto; dias depois, ganhou a primeira medalha de
ouro olímpica para Portugal, na maratona. Nos EUA,
teve direito a audiência na Casa Branca, com Ronald
Reagan. Por cá, meio país ficou acordado até de ma-
drugada para ver a prova na TV. Depois, uma receção
ao mais alto nível. Mário Soares, o primeiro-ministro,
e Mota Pinto, o nº 2 do Governo, são a guarda de
honra para Lopes e Rosa Mota (vencedora do bronze
na maratona feminina, na primeira vez que uma
mulher portuguesa subiu ao pódio nos Jogos). O even-
to foi um must, inesquecível: uma churrascada nos
jardins de São Bento. O desenrascanço lusitano impro-
visou uma ‘caixa de churrasco’ — com uns tijolos,
depois pintadinhos de branco —, onde um montão de
pedras protegia o solo do braseiro. No momento da
fotografia, a figuração dava um toque folclórico e o
bovino já parecia muito esquartejado.
FOTO RUI OCHÔA

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AGOSTINHO, No tempo em que apenas o hóquei em patins dava alegrias aos


portugueses, só um desportista conseguia vitórias internacionais,
O FIM TRÁGICO batendo-se com os melhores do mundo, numa modalidade global

DE UM HERÓI (o hóquei confinava-se a um pequeno número de países). Esse


atleta de exceção era Joaquim Agostinho, o maior ciclista nacional
de todos os tempos, o primeiro a ter projeção além-fronteiras, com
etapas ganhas na Volta à França, a prova-rainha da modalidade. A
crónica desses dias, uma autêntica epopeia de verão, foi feita
magistralmente por Carlos Miranda, nas páginas de “A Bola”.
Regressado a Portugal para terminar a carreira, no Sporting, o seu
clube do coração, Agostinho morre a pedalar e de camisola amare-
la vestida. A 30 de abril de 1984, na Volta ao Algarve, a 300 metros
da meta, um cão atravessa-se no caminho e provoca-lhe a queda.
Ainda chega ao fim, amparado por dois colegas. Pede para descan-
sar, mas as dores de cabeça persistem. É levado ao hospital de
Loulé, onde o estado se agrava. O Algarve fica então muito longe
de Lisboa, e os cuidados de saúde para casos muito graves estão
na capital. Transportado de ambulância, sem autoestrada, num
país em muitas coisas no terceiro mundo, a viagem demora uma
eternidade. Quando chega a Lisboa já está em coma, devido a uma
fratura craniana. Ainda é operado, mas nada há a fazer, morrendo
dez dias depois, a 10 de maio. O velório foi na Basílica da Estrela. O
fim trágico de Agostinho — um homem do povo, que apenas a
aptidão para o ciclismo tirou de um destino certo na agricultura
em Brejenjas, no concelho de Torres Vedras — emocionou o país.
E todos os portugueses emigrantes em França, que ao longo de
anos haviam afluído à beira da estrada para aplaudir o nosso
“Tino”, como era carinhosamente tratado no pelotão internacional.
FOTO RUI OCHÔA

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CORTINA
DE SEDA
A 8 de maio de 1985, o Presiden-
te dos EUA visita Portugal. Por
cá, as relações entre Soares
(primeiro-ministro) e Eanes
(Presidente) vão de mal a pior.
Daí que a presença de Ronald
Reagan seja aproveitada ao
máximo por Soares, já de olho
em Belém. Atrás da cortina
espreita António Carneiro
Jacinto, assessor de imprensa
do chefe do Governo. Há dias,
ao telefone, Carneiro Jacinto,
atual conselheiro da embaixada
de Portugal em Washington,
não parava de rir — e fica
sempre no ouvido a sua boa
disposição! Minutos antes,
recebera por mail esta fotogra-
fia. Recorda o filme: “Cheguei a
São Bento às oito da manhã.
Encontrei uns agentes america-
nos, com um cão, a inspecionar
o gabinete do primeiro-minis-
tro. Meti-os fora, aos berros”,
diz Carneiro Jacinto, com uma
gargalhada. Mais tarde, novo
arrufo, sobre o percurso de
Soares e Reagan até ao púlpito
43
de onde falariam à imprensa:
“Os americanos queriam que
fosse utilizada uma porta, mas
eu agarrei no braço do Soares, e
eles foram por outro lado”. É aí,
recorda o ex-jornalista, que os
americanos ficam “a barafustar
no jardim e eu vou à janela,
para os observar”. O melhor
estava para vir. Reagan foi
depois ao Parlamento, atraves-
sando para isso os jardins de
São Bento. A Casa Branca exigiu
a marcação no chão de um
corredor, de onde Reagan não
sairia. Assim se fez, o Tio Sam
manda! Só que em vez de um
“carreiro o mais possível em
linha reta”, foi traçado um
“circuito emaranhado”, para dar
ao anfitrião o máximo de tempo
ao lado do visitante. “Fintei os
tipos completamente!”, remata
Carneiro Jacinto, entre mais
umas sonoras gargalhadas.
FOTO RUI OCHÔA

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MURAIS A estada de Ronald Reagan em Portugal decorreu sob forte


contestação da esquerda, particularmente do PCP. As pare-
DA HISTÓRIA des eram nessa altura, ainda, um espaço privilegiado de
propaganda política, com um sentido apurado pela experiên-
cia acumulada desde a Revolução. Em 1983, o mundo vivia
em plena Guerra Fria — Mikhail Gorbatchov subiria ao
poder dois anos depois, e só no seguinte se ouviria a palavra
perestroika, embora em Gdansk já mexesse o Solidariedade,
de Lech Walesa. Para os comunistas portugueses, era crucial
associar Mário Soares ao Presidente norte-americano. Rea-
gan não se demorou por cá e continuou pelo mundo fora
(com Thatcher e, sobretudo, João Paulo II) a conspirar para
derrotar o regime soviético. Quanto a Soares, estava a pou-
cos meses de se instalar no Palácio de Belém, onde chegou
(também) com o voto de Cunhal.
FOTO RUI OCHÔA

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CAVACO, Em maio de 1985, Cavaco Silva chega


mais ou menos discreto ao congresso
PRIMEIRA do PSD, na Figueira da Foz. Sai de lá

ETAPA como inesperado líder — na imagem,


já vitorioso, acompanhado (da esquer-
da para a direita) por Dias Loureiro,
Fernando Nogueira, Eurico de Melo,
Amândio de Azevedo e Correia Afonso.
Segundo a lenda, Cavaco apenas que-
ria aproveitar a viagem à Figueira para
fazer rodagem ao carro. No final de
contas, o ex-ministro das Finanças de
Sá Carneiro sai do congresso como
uma máquina política afinada, com um
motor de altas rotações e pronto para
as curvas. Uma vez eleito, pouco demo-
rou Cavaco para dar um encosto em
Soares e colocar o Governo do Bloco
Central fora da estrada.
FOTO RUI OCHÔA

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A EUROPA
CONNOSCO
O slogan do título foi proferido por Mário
Soares anos antes, mas espelha na perfei-
ção a cerimónia dos Jerónimos, a 12 de
junho de 1985. Portugal assina o tratado de
adesão à Comunidade Económica Europeia,
com entrada em vigor no primeiro dia do
ano seguinte (a CEE passa a ter 12 membros
com os países ibéricos). É o corolário de
oito anos de negociações, encetadas por
Soares (na fotografia, o chefe do Governo
tem à esquerda os homólogos de Itália e de
Espanha, também socialistas, Bettino Craxi
e Felipe González). Onze anos após a queda
da ditadura, Portugal entra na Europa livre
e rica. Para os portugueses está a começar
uma era de prosperidade.
FOTO RUI OCHÔA

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NOSOTROS
CON LA EUROPA
Após a sessão nos Jerónimos, o estado-maior
da política europeia desloca-se no mesmo
dia para Madrid, onde a Espanha também se
engalanava para entrar na CEE. À noite,
depois das cerimónias oficiais, vive-se a
fiesta. Como sempre, Soares sente-se como
peixe na água. O sonho europeu é então uma
realidade para os vizinhos ibéricos e coisas
como um resgate nem se imaginam no pior
dos pesadelos.
FOTO RUI OCHÔA

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LEÃO DE OURO Nunca exibido no circuito comercial (tem 400


minutos, quase sete horas), “Le Soulier de Satin”
PARA OLIVEIRA conquista o Festival de Veneza em 1985, recebendo
um Leão de Ouro especial. É a consagração interna-
cional de Manoel de Oliveira — na fotografia, duran-
te a rodagem, tendo à sua esquerda João Bénard da
Costa. O cineasta voltará a receber o mesmo pré-
mio em 2004, pelo conjunto da carreira. Aos 103
anos, continua a trabalhar. Já tem pronto “O Gebo e
a Sombra”, inspirado na peça de teatro homónima
de Raul Brandão. Oliveira é o mais velho realizador
do mundo em atividade. “Nunca ninguém filmou
com a idade dele”, afirma o crítico de cinema do
Expresso Jorge Leitão Ramos. Sempre mais elogiado
lá fora do que cá dentro (embora nos últimos anos
rodeado de consensos), mostrou o primeiro traba-
lho em 1931 (ainda o cinema era mudo). Foi o docu-
mentário “Douro, Faina Fluvial”, exibido em Lisboa,
no V Congresso Internacional de Crítica. A plateia
deu uma “boçal pateada”, lembra Leitão Ramos.
Uma indignação somente doméstica, pois havia
estrangeiros extasiados. “Um convidado perguntou
se em Portugal se aplaudia com os pés.”
FOTO RUI OCHÔA

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O INFERNO
EM ALCAFACHE
A 11 de setembro de 1985,
dois comboios chocam
perto de Alcafache (conce-
lho de Mangualde), no
maior desastre ferroviário
de sempre em Portugal. O
acidente envolveu o Sud-
-Express (Porto/Paris) e
uma ligação regional. Tudo
se deveu a erros de comu-
nicação. Numa linha de via
única, os comboios falha-
ram a estação de cruza-
mento, tendo continuado
em rota de colisão. A dado
momento, os chefes das
estações percebem que o
embate vai ocorrer, mas
nesse tempo não havia
forma de contactar os
maquinistas. O metal retor-
cido e o desmembramento
da estrutura das rodas
(plano anterior) dão noção
da violência do choque.
Nos dois comboios havia
460 passageiros, dos quais
terão falecido entre 40 e
200, segundo as diferentes
55
estimativas. Uns morreram
devido ao embate. Como a
mulher vestida de noiva na
fotografia mostrada por
um irmão, que assim a
tentava localizar nos destro-
ços. Houve quem morresse
de asfixia, devido ao incên-
dio que se seguiu, e cadáve-
res completamente incinera-
dos. “Vi o meu marido
morrer à janela, como uma
estátua, a olhar para nós, as
chamas a consumi-lo”, disse
uma passageira então citada
pelo Expresso. Outra con-
tou: “Foi horrível, porque
estavam todos a arder vivos,
a querer sair das carrua-
gens, mas sem forças, a
morrer pendurados nas
janelas.”
FOTOS LUÍS RAMOS

/ARQUIVO EXPRESSO

REVISTA 16/JUN/12
56 OTELO Foi um dos heróis da Revolução de 1974, de que foi o comandante operacional. Uma década
depois, Otelo Saraiva de Carvalho está na prisão, no processo das FP-25 (organização terrorista
NO BANCO que na década de 80 foi responsável por dezenas de atentados, nos quais morreram cerca 20 de

DOS RÉUS pessoas). Em junho de 1984, a Judiciária lança a ‘operação Orion’ desmantelando as FP-25. Otelo
é detido e acusado de ser o mentor da organização. É em Caxias que é mais tarde visitado por
Zeca Afonso (em baixo), já muito debilitado pela doença. O julgamento (iniciado em outubro de
1985) realiza-se na cadeia de Monsanto, em Lisboa, adaptada para o efeito. Na fotografia, uma
das sessões, com Otelo ladeado por outros detidos: Humberto Machado, ao centro, e Mouta Liz.
Condenado a uma pena de 15 anos, Otelo é libertado na sequência de uma amnistia para os não
envolvidos em crimes de sangue. No total, esteve cinco anos preso. FOTOS RUI OCHÔA

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O PRIMEIRO No verão de 1985, Cavaco Silva já sorri à


vitória que chegaria meses depois. Ao puxar
TRIUNFO o tapete ao PS, o recém-eleito líder do PSD

DE CAVACO fizera cair o Governo do Bloco Central.


Mário Soares ainda quis formar outro Exe-
cutivo dentro do mesmo quadro parlamen-
tar. Mas ficou à mercê do seu arqui-inimigo,
o Presidente Ramalho Eanes — a quem
reduzira substancialmente os poderes nu-
ma revisão constitucional —, que optou por
marcar eleições antecipadas. Em outubro,
Cavaco seria o mais votado, embora com
maioria relativa. O PS, que governara em
conjunto com o PSD, pagou em exclusivo a
fatura do pacote de austeridade imposto
pelo FMI. Um novo partido (o PRD, inspira-
do por Eanes) foi o fiel da balança, rouban-
do também votos aos socialistas — que,
liderados por Almeida Santos, tiveram o
pior resultado de sempre. Tudo se conjugou
para a vitória de Cavaco. Ainda magra,
formou um Governo minoritário. Triunfos
mais robustos se avizinhavam.
FOTO RUI OCHÔA

REVISTA 16/JUN/12
SOARES:
UMA AGRESSÃO
QUE DEU VOTOS
Soares parecia um perdedor antecipado. Apeado do Governo, vira o PS esmaga-
do nas legislativas de outubro de 1985, tinha contra si um líder do PSD em
ascensão, um Presidente em fim de mandato a manobrar na sombra e, sobretu-
do, uma parte da família socialista ao lado de Salgado Zenha. No começo da
corrida, Soares tinha só 8% nas sondagens. Depois, foi sempre a subir. O gran-
de empurrão foi dado a 15 de janeiro de 1986 na Marinha Grande, tradicional
feudo do PCP, quando o candidato oficial do PS é alvo de agressão (que não
chegou a ser consumada, todavia). Soares ganha o mano a mano com Zenha
(25% contra 21%) e passa à segunda volta. Nela teria o apoio do PCP, quando
Cunhal convenceu os militantes a “engolir o sapo”. Na reta final da disputa
com Freitas, o homem que obrigara duas vezes os portugueses a “apertar o
cinto” apelou ao “povo de esquerda”. Mas a chave suplementar do triunfo
encontrou-a na capacidade de se mostrar como um combatente pela liberdade
e, ao mesmo tempo, digamos... um tipo afável, bonacheirão, até. “Soares é fixe!”
FOTO RUI OCHÔA

60

FREITAS: Candidato único da direita, Diogo Freitas do Amaral chegou a ter a vitória
numa mão. Na primeira volta das presidenciais, em 26 de janeiro de 1986, o
A VITÓRIA FUGIU antigo líder do CDS — na fotografia, numa ação de campanha no distrito do

ENTRE OS DEDOS Porto — alcançou 46% dos votos. As eleições livres e universais que haveriam
de levar pela primeira vez um civil à Presidência da República ficaram marca-
das por um clima de grande clivagem política e social, com o país dividido
entre esquerda (de início dispersa por vários candidatos) e direita. Ao longo de
semanas, com o seu inconfundível loden (um tipo de sobretudo, no caso verde,
logo adotado por muitos apoiantes, que se tornaria um dos ícones da campa-
nha), Freitas foi levado em ombros numa caminhada que parecia imparável.
Três semanas depois, na segunda volta, perdeu por uma unha negra: 138 mil
votos, pouco mais do que a lotação na altura do Estádio da Luz em dia de derby.
FOTO RUI OCHÔA

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PINTASILGO:
CONTRA A CORRENTE
Primeira, e até agora única, mulher a chefiar
um Governo em Portugal, Maria de Lourdes
Pintasilgo candidata-se às presidenciais sem o
apoio de qualquer grande partido. Gozando do
prestígio granjeado, parecia bem colocada
nas sondagens. Mas quando a luta aqueceu,
impôs-se o peso das máquinas partidárias e
dessas mesmas lógicas junto dos eleitores.
Pintasilgo congregou apoios de figuras da
esquerda e da extrema-esquerda, nos mean-
dros da cultura e, devido ao seu passado e
perfil, em sectores católicos. De certa forma, foi
a primeira campanha contra o sistema — não
contra os políticos e a política, como hoje por
vezes está na moda, mas contra certas políticas.
FOTO RUI OCHÔA

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O PRESIDENTE
DE TODOS
OS PORTUGUESES

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Desde o começo de 1986 que Portugal estava dividido ao meio, uma bipolarização entre esquerda e direita, com uma exaltação de ânimos que a
alguns lembrava os tempos mais quentes do pós-25 de abril. Na noite de 16 de fevereiro, no discurso da vitória, Soares passa uma esponja sobre essa
fratura latente, afirmando que seria “o Presidente de todos os portugueses” — na imagem, com Maria Barroso, ambos empunhando uma rosa, flor
que pelos anos fora foi ocupando o lugar do punho cerrado na simbologia socialista. Se durante a campanha parte da esquerda temia que uma vitória
de Freitas levasse uma parte da direita a cair na tentação de promover uma révanche do PREC, as palavras de Soares, ditas na hora do triunfo, tive-
ram o condão de matar à nascença qualquer eventual maquinação de sinal contrário. O primeiro chefe de Estado civil em sessenta anos foi, de facto,
o Presidente de todos os portugueses. Pelo menos no primeiro mandato, já que no segundo se entreteve no ajuste de contas com Cavaco Silva.
FOTO LUIZ CARVALHO
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TCHERNOBYL, A 26 de abril de 1986, uma explosão no reator nº 4 da central de Tchernobyl (na


Ucrânia, então parte da União Soviética) provoca o maior acidente da história
OS FANTASMAS nuclear civil. O reator entrou em processo de sobreaquecimento, devido a erro de

NÃO DORMEM manipulação. Por falta de dispositivos de controlo, entrou em fusão e explodiu. A
nuvem radioativa atingiu parte da Europa e da Ásia, contaminando uma área de
130 mil quilómetros quadrados (uma vez e meia a superfície de Portugal). Só ao fim
de dois dias começou a retirada de 350 mil habitantes. Cerca de seiscentos mil
soldados foram enviados para limpar o local (para muitos foi a sentença de morte)
e iniciar a cobertura do reator, criando um sarcófago de betão. O acidente alertou
definitivamente para os riscos da energia nuclear e foi uma machadada fortíssima
na imagem exterior da União Soviética (onde Gorbatchov já subira ao poder). O
número de vítimas nunca será conhecido com rigor (um estudo de cientistas britâ-
nicos, divulgado por ocasião do 20º aniversário, estima entre 30 mil e 60 mil mor-
tos). Mais impressivos do que os dados estatísticos são os relatos. Robert Gale,
médico norte-americano chamado para coordenar as operações de socorro, afir-
mou: “Alguns dos doentes estão tão atingidos que são eles próprios radioativos”.
Igor Kostin, fotógrafo da agência soviética Novosti, que chegou ao local dois meses
depois, conta (citado na obra “100 fotos do século”, de Marie-Monique Robin) o que
viu: “Desde pintos com oito patas, a maçãs e árvores deformadas. E nados-mortos,
com dedos palmados a irromper dos ombros.” As zonas residenciais à volta de
Chernobyl são hoje cidades-fantasma. E há fantasmas que nunca dormem.
FOTO BETTMANN/CORBIS

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<
ACIDENTES
SEM FREIO
Numa década negra para os
caminhos de ferro, a estação
de Póvoa de Santa Iria (na
Linha do Norte, nos arredores
de Lisboa) é palco, a 5 de
maio de 1986, de um acidente
de efeitos tão aparatosos
quanto trágicos. Pouco após o
meio dia, um comboio rápido
embate nas traseiras de um
regional, que se encontra
parado. Há 17 mortos e 83
feridos. O regional devia ter
recolhido a uma linha lateral,
para dar passagem ao rápido;
ou então este parava ao sinal,
que devia estar vermelho
enquanto o outro comboio
não fizesse o desvio. Nada
disso aconteceu.
FOTO LUÍS RAMOS

/ARQUIVO EXPRESSO

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(AR)RIBA A criação do concelho de Vizela foi feita a custo de suor, lágrimas e sangue. Neste caso, do deputado
do PSD Vargas Bulcão, agredido no Parlamento a 15 de maio de 1986. Pouco após a Assembleia da
VIZELA! República (AR) ter chumbado uma proposta, alguns vizelenses fazem justiça por próprias mãos,
deixando o deputado KO. Por essa altura, Vizela está em pé de guerra. É hasteada uma bandeira
americana na principal praça da vila e são também estampados pavilhões de França, Grã-Bretanha,
Líbia e União Soviética. A palavra de ordem é clara: “Não queremos ser portugueses” — muito me-
nos de Guimarães, município onde os vizelenses estão integrados. O tão desejado OK da AR só seria
dado em 1998. Vizela já fora concelho durante 47 anos, até ao início do século XV. Então com a
designação Riba Vizela.
FOTO LUÍS RAMOS/ARQUIVO EXPRESSO

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BATE, BATE
CORAÇÃO...
Eva Pinto, 54 anos,
tinha problemas cardía-
cos que apenas lhe
davam mais seis meses
de vida. A 18 de feverei-
ro de 1986, tornou-se
na primeira mulher
portuguesa a submeter-
-se a um transplante de
coração, no Hospital de
Santa Cruz, em Carnaxi-
de. O cirurgião João
Queiroz e Melo foi o
responsável por esse
avanço da medicina em
Portugal. Eva Pinto (na
imagem, ao telefone)
viveria ainda mais 10
anos.
RUI OCHÔA
NA IDADE A 25 de fevereiro de 1986 nasce em Lisboa um menino a que é dado o nome
de Carlos Miguel. Com recurso à fertilização in vitro, uma técnica de Procria-
PROVETA ção Medicamente Assistida, o país conhece o seu primeiro bebé-proveta. Um
avanço científico personificado no médico António Pereira Coelho, que deixa
Portugal ao nível de outros Estados europeus na área da medicina da reprodu-
ção. O bebé cresceu e tornou-se um rapaz forte: é o futebolista Carlos Saleiro,
formado no Sporting e que jogou na última época no Servette (Suíça).
FOTO RUI OCHÔA

REVISTA 16/JUN/12
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ESPÍRITO Entre 11 e 14 de fevereiro de 1987, os príncipes


de Gales visitam Portugal. Na imagem, Diana e
DE WINDSOR Carlos de Inglaterra ao lado de Cavaco Silva e
Maria Cavaco Silva. Dois anos após uma visita
de Estado da Rainha Isabel II, a primeira da
chefe de Estado britânica depois da instauração
da democracia em Portugal, é agora a vez do
herdeiro do trono. Por essa altura, Lady Di já
era uma das personalidades mais procurada
pelos fotógrafos, mas os problemas na vida
matrimonial dos príncipes de Gales não faziam
ainda as primeiras páginas dos tabloides. Carlos
e Diana voltariam a Portugal no ano seguinte,
por ocasião das celebrações do 6º centenário do
Tratado de Windsor, a mais antiga aliança
diplomática do mundo em vigor.
FOTO LUÍS RAMOS / ARQUIVO EXPRESSO

REVISTA 16/JUN/12
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UM SERIAL Nos primeiros dias de março de 1987, os


brandos costumes lusitanos são sobressalta-
KILLER dos por um crime brutal cometido na praia

PORTUGUÊS do Osso da Baleia, no distrito de Leiria. A


expressão serial killer entra no vocabulário
dos portugueses. Vítor Jorge, de 39 anos (na
foto da direita), mata a sangue frio sete pes-
soas. Primeiro, a tiro e à paulada, tirou a vida
a cinco (homens e mulheres, com os quais se
preparava para ter uma festa noturna no
areal). Depois foi a casa, abatendo a mulher e
a filha à facada. Alegadamente devido ao
cansaço, poupou os filhos mais novos (um
rapaz e uma rapariga). Dias depois, a poucos
quilómetros do local onde decorria a reconsti-
tuição do crime, dá à costa um cadáver que
fora atirado ao mar. O Expresso regista a ação
do juiz, especialistas forenses e autoridades
policiais. No tribunal, o homicida confessou
tudo, pedindo para ser internado para o resto
da vida. Os juízes desatenderam pareceres
psiquiátricos e consideraram tratar-se de um
criminoso normal. Condenado a 20 anos,
Vítor Jorge cumpriu apenas 14, devido a
amnistias. Foi libertado em 2001, vivendo no
estrangeiro.
FOTOS LUÍS RAMOS / ARQUIVO EXPRESSO

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O ÚLTIMO
CAPÍTULO
DO IMPÉRIO
Em 1987, é escrita a
última página da aven-
tura portuguesa no
Oriente e, em simultâ-
neo, são apagados os
últimos resquícios do
império colonial que
em tempos dominou
boa parte do mundo.
Portugal e China acer-
tam os termos da trans-
ferência para Pequim
da soberania de Macau,
território chinês sob
administração lusitana
desde meados do sécu-
lo XVI. Na fotografia, o
primeiro-ministro,
Cavaco Silva, cumpri-
menta o líder chinês,
Deng Xiaoping, no
Palácio do Povo, em
Pequim, pouco antes da
assinatura do acordo
de transferência do
território. A descida da
bandeira portuguesa na
77
região ficaria aprazada
para 20 de dezembro
de 1999.
FOTO RUI OCHÔA

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O MOTIM A 6 de novembro de 1987 estala


um motim na Penitenciária de
< SEGUE Lisboa, aparentemente desenca-

DENTRO DE deado por um conflito entre um

EM CADA ESQUINA MOMENTOS


detido e um guarda. A cadeia,
visitada nessa manhã pelo minis-
UM AMIG0 tro da Justiça, Fernando Noguei-
ra, está sobrelotada, potenciando
A 23 de fevereiro de 1987 morre José Afonso. Vai a enter- assim os confrontos. Os detidos
rar em Setúbal, terra adotiva, “cidade sem muros nem da degradada ala C querem
ameias”. Num tributo ao criador de “Grândola Vila More- melhores condições. Vivem-se
na”, o povo “desceu à rua num dia assim”, era uma tarde horas de grande tensão: os amoti-
fria. Estão lá figuras conhecidas, companheiros das canti- nados queimam colchões e ma-
gas e das lutas, como Luís Cília e Alípio de Freitas (na deiras; a polícia de choque acor-
imagem, carregando o caixão, em primeiro plano). Mas há re, com grande aparato. Indife-
muitas pessoas anónimas, “gente igual por dentro, gente rente ao ambiente, explosivo, um
igual por fora”. Foi fácil chegar ao último encontro com o guarda prisional prepara-se para
trovador da liberdade: “Amigo, maior que o pensamento,/ começar o turno, carregando a
por essa estrada amigo vem”. Uma banda toca no funeral cesta da merenda e o garrafão de
e nessa altura metem-se a milhas os “vampiros”, esses cinco litros, atestado da pinga da
“mordomos do Universo todo”. E agora, Zeca? — “O que praxe. Para o português de gema
faz falta?”. “O que faz falta é acordar a malta”. A tarde nada pode atrapalhar o farnel.
foge, fica mais escuro, cai a noite nas margens do Sado. FOTO RUI OCHÔA
Chega a hora dos “filhos da madrugada”, e todos os filhos
da madrugada têm alma de marinheiro: “Navegamos de
vaga em vaga/ não soubemos de dor nem mágoa/ pelas
praias do mar nos vamos/ à procura da manhã clara”.
FOTO RUI OCHÔA

REVISTA 16/JUN/12
A BANQUEIRA
DO POVO
Em 1988, no Tribunal
da Boa-Hora, em Lis-
boa, tem início o julga-
mento de Maria Branca
82 dos Santos. Era conheci-
da como Dona Branca,
a ‘banqueira do povo’.
Dava juros de 10% ao
mês quando a banca se
ficava pelos 30% ao
ano. A engenharia
consistia em pagar os
juros com o montante
dos novos depósitos,
que surgiam em catadu-
pa, confiando que os
clientes nunca levanta-
riam todo o dinheiro. A
bolha estourou quando
houve uma afluência
em massa para levan-
tar a massa. Ficou de
mãos a abanar quem se
tinha fiado na garantia
do produto tóxico avant
la lettre. Dona Branca
foi condenada a 10
anos de prisão, saiu em
liberdade mais cedo,
devido ao precário
estado de saúde. Viveu
os últimos dias num
lar, cega e na miséria.
Morreu em 1992.
FOTO RUI OCHÔA

REVISTA 16/JUN/12
84

PRIMEIRA
GREVE GERAL
CONJUNTA
Pela primeira vez, CGTP e UGT
promovem uma geral conjunta, a 28
de março de 1988. O pacote laboral
em preparação pelo Governo de
Cavaco Silva é a razão do protesto.
Os transportes públicos praticamen-
te estão parados (ao lado, motoristas
de autocarro em greve), deixando
muitas ruas quase desertas. Em
Lisboa, por exemplo, só circulam sete
carruagens do metropolitano. Os
direitos dos trabalhadores estavam
então mais protegidos, e num ponto
aqueles tinham também maior segu-
rança: o desemprego era de 5,6%,
valor que hoje seria recebido de
braços abertos pelo Governo, sindica-
tos, empresários, trabalhadores e
público em geral.
FOTO RUI OCHÔA

REVISTA 16/JUN/12
OS OLHARES
PERDIDOS
DA REVOLUÇÃO
Onze anos depois da Lei
Barreto, trabalhadores
de cooperativas agríco-
las do Alentejo iniciam,
a 26 de junho de 1988,
uma Marcha da Refor-
ma Agrária, que termina
em Lisboa passados dois
dias. “Não à nova lei do
latifúndio” é a palavra
de ordem. O sonho da
coletivização dos cam-
pos do sul durou pouco
tempo e a profundidade
dos olhares destes três
manifestantes, parecen-
do vaguear no infinito, é
um espelho da impossibi-
lidade real dessa empre-
sa. É como se da árida
planície tivessem vindo
pregar num deserto: já
ninguém os ouve.
O país agora está noutra
safra, a descobrir os
fascínios da Europa. Nos
86 campos do Alentejo,
como noutras leiras de
terreno — além de
muitas outras atividades
—, é lançada à terra
uma nova cultura: os
subsídios da CEE.
FOTO ANTÓNIO PEDRO

FERREIRA

REVISTA 16/JUN/12
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REVISTA 16/JUN/12
88

REVISTA 16/JUN/12
CHIADO
EM CHAMAS
Na madrugada de 25 de
agosto de 1988, o cora-
ção de Lisboa acorda em
sobressalto, devorado
pelas chamas. Um incên-
dio deflagra na Rua do
Carmo e alastra rapida-
mente: os carros dos
bombeiros não conse-
guem entrar, pois aquela
via está obstruída. O
obstáculo são umas
floreiras plantadas no
eixo da rua — uma
polémica obra do presi-
dente Krus Abecasis.
Propaga-se depois nou-
tras direções, entre as
quais à Rua Nova do
Almada (na fotografia
do plano anterior). A
partir do castelo de São
Jorge (imagem ao lado)
vê-se bem a força des-
truidora das chamas,
que engolem lojas e
escritórios, alguns deles
em edifícios do século
90 XVIII. O Chiado nunca
mais foi o mesmo e
Lisboa também não. A
zona tinha então ainda
uma forte centralidade,
para lazer e compras —
o centro comercial das
Amoreiras era recente,
sendo então a única
grande superfície do
género na capital.
FOTOS RUI OCHÔA

REVISTA 16/JUN/12
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REVISTA 16/JUN/12
ESCOMBROS
NO CORAÇÃO
DE LISBOA
A meio da tarde, quando
ainda fumegam os
últimos focos de incên-
dio, há zonas, como a
Rua Nova do Almada,
que parecem ter sido
alvo de um bombardea-
mento. Tudo são escom-
bros. No Chiado arde-
ram mais de sete deze-
nas de escritórios e
outras tantas lojas.
Alguns estabelecimentos
emblemáticos do comér-
cio lisboeta ficaram
reduzidos a cinzas:
Armazéns do Chiado,
Estabelecimento Eduar-
do Martins, a Ferrari,
Casa Batalha, Valentim
de Carvalho, o Grandel-
la, entre muitos outros.
Cerca de duas mil pes-
soas perderam os postos
de trabalho. Morreram
duas pessoas. O plano de
92 reconstrução do Chiado
foi entregue ao arquiteto
Siza Vieira.
FOTO RUI OCHÔA

REVISTA 16/JUN/12
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REVISTA 16/JUN/12
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UM JARDIM Em 1988, Alberto João Jardim cumpre o déci-


mo ano à frente do Governo Regional da Ma-
PARA TODAS deira. Já era obra, mas hoje ainda por lá conti-

AS ESTAÇÕES nua. Nesta festa popular percebe-se melhor o


que já se pressentia e o tempo haveria de
confirmar: Jardim sabe dançar e acompanha
qualquer música. Mas com tantas obras, com
muito asfalto e betão, umas a custar os olhos
da cara, outras com a conta escondida debaixo
da bananeira, o bailinho virará um bico de
obra, com a dívida da região a embalar, como
se deslizasse numa levada. O lobo marinho
terá a maior prova de fogo — governar sem
dinheiro, o que o fará lançar, mais uma vez, o
odioso para o Governo da República. Mesmo
que este seja do seu próprio partido. Mas nem
essa partitura o demove. Na banda da Madeira
manda ele — e por lá é o maestro quem esco-
lhe os bombos da festa.
FOTO RUI OCHÔA

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O MAIOR
ACIDENTE
AÉREO
EM PORTUGAL
98 Até hoje, foi o desastre de
aviação que mais vítimas fez
em solo nacional: 144, todos
os que iam a bordo. A 8 de
fevereiro de 1989, cerca das
14h, ao aproximar-se da pista,
um Boeing 707 da Indepen-
dent Air despenhou-se na
Serra do Pico Alto em Santa
Maria, Açores. Quase todas as
vítimas (não havia portugue-
ses) eram italianas. Haviam
saído de Bérgamo e iam
passar férias à República
Dominicana, com escala
técnica na ilha do Atlântico.
Devido aos prejuízos causa-
dos pelo acidente, provocado
por erros humanos (do con-
trolador, mas sobretudo do
piloto), a companhia aérea
norte-americana viria a falir
no ano seguinte. O impacto
na serra, a 546 metros de
altitude, deu-se a uma veloci-
dade de 426 kms/hora, dei-
xando destroços do aparelho
e pedaços de corpos espalha-
dos por uma vasta área.
FOTO LUÍS RAMOS/ARQUIVO

EXPRESSO

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TIANANMEN: Em maio de 1989, encorajados pela visita a Pequim do Presidente


soviético, Mikhail Gorbatchov, centenas de milhares de estudantes
UM TOTEM chineses manifestam-se na Praça Tiananmen, exigindo democracia no

DA LIBERDADE país. A repressão do regime é brutal, com tanques na rua e tropa a


disparar sobre civis. Nunca se soube ao certo o saldo da matança:
talvez um milhar de mortos, talvez vários. Muitas foram também as
detenções. Na manhã seguinte ao massacre, os tanques continuam a
ditar as leis. Na imensidão da praça, um homem faz frente à coluna.
Durante um quarto de hora tenta barrar o avanço dos militares. Nunca
se soube a sua identidade, nem o que lhe aconteceu a seguir. Se há
imagens que permanecem vivas na retina coletiva esta é uma delas, e
o chinês desconhecido é um símbolo da liberdade para todo o mundo.
Vinte e três anos depois, a democracia ainda não chegou ao Império
do Meio e o respeito pelos direitos humanos é conceito intraduzível
para chinês. Curiosamente, o facto de o manifestante não ter sido
esmagado pelos tanques fez que o regime de Pequim tenha usado esta
mesma imagem para dizer que nunca houve qualquer tipo de chacina
em Tiananmen.
FOTO BETTMANN/CORBIS

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SECOS
& MOLHADOS
A 21 de abril de 1989, manifestantes que
exigem mais direitos sindicais — folga
semanal, direito de defesa na justiça
disciplinar, melhoria nas remunerações
e nas condições laborais — são reprimi-
dos no Terreiro do Paço, em Lisboa.
Tudo normal, não fossem polícias a ser
metidos na ordem por polícias — com
canhões de água e à bastonada. O con-
fronto entrou na história, e no anedotá-
rio lusitano, como Secos & Molhados.
Em boa verdade, os contendores distin-
guiam-se sobretudo pelo aspeto da farda
— com os sindicalistas encharcados.
Cavaco Silva declarou que o movimento
estava instrumentalizado por forças
“extremistas”, de que faziam parte “co-
munistas e alguns socialistas”. Quando a
PSP iniciava uma renovação geracional
(efetivos mais jovens e com escolaridade
superior), o incidente permitiu perceber
que, afinal, havia “polícias de rosto
humano”, gente como nós.
FOTOS RUI OCHÔA

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JOÃO SOARES Em setembro de 1988, João Soares está às portas


da morte após um acidente aéreo na Jamba, o
“IMAGENS
SOBREVIVE bastião da UNITA. Com o militante socialista estão DO PURGATÓRIO”...
NA JAMBA o deputado do CDS Nogueira de Brito e o social-de-
mocrata Rui Gomes da Silva. Os três haviam-se ... é o título de uma das reporta-
deslocado àquela zona de Angola numa ação de gens dos enviados do Expresso
apoio a Jonas Savimbi. Soares foi depois tratado Benjamim Formigo e António
num hospital de Pretória, onde cerca de mês e Pedro Ferreira, dois dos primei-
meio mais tarde é visitado pelos enviados do ros jornalistas a entrar nos
Expresso — no preciso momento em que um campos de refugiados de Har-
médico lhe retira o gesso. A convalescença impe- shin e Hartisheik, nos confins
diu Soares de participar na campanha eleitoral da Etiópia. Em maio de 1989,
para a Câmara de Lisboa, em que era o candidato estes acampamentos, com
número 3 da lista conjunta do PS e do PCP. quase meio milhão de almas
FOTO RUI OCHÔA famintas, são a tábua de salva-
ção para quem foge da guerra
na Somália. Os jornalistas
viram “um cenário onde se
exprimem os limites do deses-
pero e da esperança”. É como
se os “deserdados do mundo”
vivessem “entre o céu e o infer-
no”: “O céu que os liberte desta
para outras vidas; o inferno
donde fugiram por força de
guerras e perseguições”. Um
elemento de uma ONG relata:
“Quando aqui chegaram eram
esqueletos vivos”.
FOTO ANTÓNIO PEDRO FERREIRA

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E UM DIA No outono de 1989, os graffiti coloridos são já um prenúncio dos


tons da festa que se adivinha. Polícias da Alemanha Federal
O MURO vigiam o muro, junto à Porta de Brandenburgo, sem que se veja

FOI MESMO vivalma, mas a calma é apenas aparente. Símbolo de duas


visões do mundo, o muro de Berlim cai a 9 de novembro de
ABAIXO 1989. Três dias depois (imagem da direita), continua a euforia
popular, junto à Potsdamer Platz. No verão surgira a primeira
brecha na Cortina de Ferro, quando a Hungria cortou o arame
farpado que a separava da Áustria. Encorajados por Gorbat-
chov, os alemães de Leste intensificaram os esforços para che-
gar ao Ocidente, levando o Governo da RDA a ceder. Rasgado o
muro, a sucessão de acontecimentos é vertiginosa, com a queda
de outros regimes no Leste da Europa. Um ano mais tarde a
Alemanha estará reunificada e faltará pouco para a desintegra-
ção da União Soviética. O sonho comunista chega ao fim.
FOTOS RUI OCHÔA E LIONEL CIRONNEAUX/AP

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O FIM De todos os regimes depostos na sequência da queda do Muro de Berlim, o fim


de Ceausescu foi o mais fulminante e o mais sanguinário — como também a sua
DA DITADURA ditadura fora a que usara mão mais pesada. Ao longo de mais de quatro décadas,

ROMENA o líder romeno mandou prender e eliminar adversários políticos. O princípio do


fim começa a 17 de dezembro, na cidade de Timisoara. Protestos da população,
que alastrariam à capital, dão lugar a repressão da polícia. Ceausescu ainda tenta
travar os ventos da História. A 21 de dezembro, num comício, promete melhorar
as condições da segurança social e aumentar as reformas. Debalde. Nove dias
após os protestos em Timisoara, os pratos da balança estão definitivamente
trocados. Ceausescu é detido e condenado sumariamente à morte, num simula-
cro de julgamento que demora duas horas. Na tarde de Natal de 1989, é executa-
do por militares — nas ruas, estes controlam toda a situação e garantem a transi-
ção do poder para Ion Iliescu. Os cadáveres de Nicolae e da mulher, Elena, caí-
dos na neve, são exibidos nessa noite na televisão romena.
FOTOS RUI OCHÔA

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MANDELA A 11 de fevereiro de 1990, chega simbolica-


mente ao fim o regime de apartheid na África
< EM LIBERDADE do Sul, com a libertação de Nelson Mandela, o
líder histórico do ANC (na imagem, ao lado da

MARÉ NEGRA então mulher, Winnie). Mandela foi o preso


46664 (o nº 466 do ano de 64) da prisão da
EM PORTO SANTO Ilha de Robben, onde passou 27 anos. No
processo exemplar de transição vivido na
Na passagem de ano de 1989, o petroleiro espanhol “Aragon” África do Sul, que haveria de consagrar Man-
derrama 25 mil toneladas de crude no Atlântico, ao largo da dela como Presidente num escrutínio livre e
Madeira. As autoridades portuguesas parecem ter fé em que a universal, cada voto contando o mesmo
maré afaste o perigo, mas duas semanas depois o desastre independentemente da cor da pele do eleitor,
ecológico toca a terra, banhando as areias de Porto Santo. A foi decisivo outro político: Frederik de Klerk,
mancha tem 20 quilómetros de comprimento por dois de o último Presidente do regime de segregação
largura, e 30 a 40 centímetros de espessura. Fica patente a racial, iniciado em 1948. Na altura em que
falta de capacidade de resposta para uma catástrofe de tais Mandela voltava a respirar o ar da liberdade,
dimensões. Em primeiro lugar, tanto responsáveis militares um líder de um movimento político de sul-a-
como civis, do poder central e local, tentaram minimizar os fricanos negros, Oscar Mpetha, afirmava ao
efeitos, só cedendo perante as evidências. O único equipamen- Expresso: “A tampa da caixa foi aberta. Não
to existente no país para combater acidentes desta natureza só há hipóteses de voltarem a fechá-la”.
chega à ilha três dias depois de o crude ter entrado pela praia FOTO ULLI MICHEL/REUTERS
— e são apenas 100 metros de barreiras. A tropa estacionada
em Porto Santo, depois reforçada com efetivos do Funchal, é
decisiva no combate ao desastre. Mas fartou-se de ser carne
para canhão. Ao terceiro dia de trabalhos forçados, esteve
quase a promover um levantamento de rancho. “Viemos para
aqui sem uma muda de roupa, sem poder avisar ninguém, já
estamos fartos”, disse um militar citado então pelo Expresso.
FOTO CLARA AZEVEDO/ARQUIVO EXPRESSO

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ESTABILIDADE
COMUNISTA
No final de outubro de 1990,
em Lisboa, o líder histórico
do PCP, Álvaro Cunhal,
abraça o candidato do
partido às presidenciais,
Carlos Carvalhas. No ano
seguinte, na eleição que deu
o segundo mandato a Soa-
res, Carvalhas teve 13% dos
votos. Ao escolher Carva-
lhas, o PCP envia um sinal à
contestação interna — vozes
dissonantes como José Luís
Judas são excluídas da
comissão de apoio ao candi-
dato. Ao mesmo tempo, dá
um empurrão no delfim.
Com efeito, dois anos de-
pois, Carvalhas sucede a

SOBE & DESCE Em 1990, na Bolsa de Lisboa as cotações deslizam por causa da guerra do
Golfo, atenuando as subidas do ano anterior. Só em 1989 a praça lisboeta
Cunhal, ficando como secre-
tário-geral do PCP até 2004.
CAPITALISTA começara a recuperar do trambolhão dado dois anos antes. Então, ao crash FOTO LUIZ CARVALHO
de Wall Street, somara-se a célebre frase de Cavaco, que provocou uma
debandada: “Os portugueses estão a comprar gato por lebre.” Antes disso, o
céu parecia ser o único limite ao capitalismo português: “Isto é melhor que
a Dona Branca, aqui dá 5% ao dia”, dizia um corretor citado pelo Expresso.
FOTO ANTÓNIO PEDRO FERREIRA

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DESESPERO A primeira guerra do Golfo, em 1991, deixa os


curdos — cerca de 26 milhões de pessoas disper-
PELA AJUDA sas por vários países, uma nação sem Estado —

ALIMENTAR entre vários fogos. Para os curdos que vivem no


norte do Iraque — historicamente, a etnia foi uma
das principais vítimas de Saddam Hussein —, a
solução é a fuga para a Turquia. Aqui, as tropas
norte-americanas montam um campo de refugia-
dos. Em cima de uma camioneta que carrega sacos
com ajuda alimentar, o enviado do Expresso Luiz
Carvalho vê a sua máquina fotográfica quase
engolida pela angústia de quem apenas estende a
mão em busca de um naco de pão.
FOTO LUIZ CARVALHO

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FUGA PARA Primeiro para escaparem ao espectro da guerra, que sentiam


inevitável após o ultimato da coligação ocidental (com os EUA à
A JORDÂNIA cabeça) a Saddam Hussein, depois para sobreviverem às bom-
bas que os “aliados” começaram a despejar massivamente sobre
o Iraque a partir de 17 de janeiro de 1991, milhares de iraquianos
fizeram-se à estrada com o que podiam. A salvação estava na
Jordânia, aonde se chegava depois de percorrer centenas de
quilómetros de deserto. Mas sendo então a autoestrada de Bag-
dade para a fronteira jordana a única via que ligava o Iraque ao
mundo, era também por ela que passavam os abastecimentos do
regime de Saddam, pelo que não foi poupada aos bombardea-
mentos — e houve muitos refugiados que não tiveram a mesma
sorte dos da fotografia, não conseguindo chegar à fronteira.
FOTO LUIZ CARVALHO

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UMA GUERRA
EM DIRETO
O primeiro conflito do Golfo torna-se na primeira
guerra mostrada em direto pelas televisões. As ima-
gens da CNN são retransmitidas por canais de todo o
mundo. Na memória ficam os céus de Bagdade, à
noite, rasgados por tiros de antiaéreas contra os
bombardeamentos norte-americanos. Um cenário
visto horas a fio, dias consecutivos. Como informação
não é grande coisa, mas o jornalismo é cada vez mais
um espetáculo. Em cima, um hospital iraquiano.
FOTOS RUI OCHÔA E PATRICK DE NOIRMONT/REUTERS

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A GUERRA
À DISTÂNCIA
No esforço de países
ocidentais durante a
Guerra do Golfo,
militares portugue-
ses participaram em
missões de patrulha-
mento no Mediterrâ-
neo Oriental. Embo-
ra tivessem como
destino uma zona
relativamente afasta-
da do verdadeiro
palco do conflito, a
despedida entre
familiares antes da
partida para a guer-
ra é sempre um
momento duro.
Como esta mulher e
o filho, abraçados
em Lisboa, que não
se querem separar.
FOTO ANTÓNIO PEDRO

FERREIRA

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A ESTRADA No Koweit desde 2 de agosto de 1990, quando


Saddam mandou invadir o que considerava a 19ª
DA MORTE província do Iraque, os iraquianos decidem retirar
do emirado quando a operação “Tempestade do
Deserto”, lançada pelos EUA, a isso os obriga. No
regresso a casa, após terem incendiado poços de
petróleo e deixado um rasto de devastação, as
tropas de Saddam carregam tudo o que consegui-
ram pilhar, de frigoríficos a rolos de papel higiéni-
co. O caminho mais rápido para Bagdade é a
grande autoestrada que conduz à fronteira iraquia-
na, cujas faixas se assemelham a um gigantesco
engarrafamento em hora de ponta. Para os norte-
-americanos, os bombardeamentos pouco mais
são do que um jogo de tiro ao alvo. Das 80 mil
toneladas de bombas despejadas durante a Guerra
do Golfo, na qual morreram 300 mil iraquianos e
200 norte-americanos, uma boa parte caiu sobre a
“estrada da morte”, como viria a ficar conhecida.
No fim, havia muitos corpos carbonizados e um
amontoado de veículos de todas as espécies, como
um imenso ferro-velho a perder de vista e com
veículos ardendo aqui e ali.
FOTO PASCAL GUYOT/AFP/GETTY IMAGES

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MESQUITA
DE LISBOA
Mesquita Central de Lisboa, num
momento de oração, durante o
Ramadão, no início dos anos 90.
Inaugurado em 1985, o templo da
Praça de Espanha, de dimensões
muito maiores do que as dos
outros então existentes, foi-se
enchendo com a afluência a
Portugal de um número crescen-
te de imigrantes (maioritariamen-
te oriundos da Guiné-Bissau)
seguidores da religião de Maomé.
A integração da comunidade
muçulmana em Portugal é abso-
lutamente pacífica, sem qualquer
sobressalto.
FOTO LUIZ CARVALHO

JOÃO PAULO II Em maio de 1991, no aniversário de Fátima, o Papa João Paulo II


visitou Portugal. Na menos mediática das suas três deslocações ao
EM PORTUGAL nosso país, além de ter estado no santuário mariano, foi aos Açores e
à Madeira. Em Lisboa, encontrou-se com jovens no Estádio do Restelo.
FOTO RUI OCHÔA

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CAVACO Bicesse, nos arredores do Estoril, entra na geografia de Angola em 31 maio de 1991. Na Escola
de Hotelaria decorrem as negociações entre o Governo de Luanda e a UNITA, que deram ao
JUNTA INIMIGOS país um acordo de paz. O texto é assinado depois em Lisboa, no Palácio das Necessidades, e

ANGOLANOS selado por um aperto de mão entre José Eduardo dos Santos e Jonas Savimbi, patrocinado
por Cavaco Silva. Para os angolanos, os Acordos de Bicesse permitiram uma cessação de
hostilidades e abriram caminho à realização de eleições livres. Seria sol de pouca dura, é
verdade... Para a diplomacia portuguesa, foi um êxito, presenciado de perto por observadores
norte-americanos e soviéticos, num dossiê coordenado por Durão Barroso. Para Cavaco
Silva, em particular, foi um dos maiores feitos num ano em cheio. Angola fora até aí o caso
mais delicado no relacionamento com as antigas colónias. Ao conseguir a paz, Cavaco reco-
lhia os louros, não só no plano bilateral como no contexto das organizações internacionais.
FOTO RUI OCHÔA

REVISTA 16/JUN/12
UMA VITÓRIA
DE BETÃO
Em 6 de outubro de 1991,
Cavaco Silva obtém a
segunda maioria absoluta
125
numas legislativas — algo
que nenhum político portu-
guês fizera até então ou
faria depois disso. Cavaco
(em cima, ao lado da mu-
lher, na noite das eleições)
inicia, assim, a reta final de
um consulado à frente do
Governo que durou uma
década, um recorde nacio-
nal. Para o êxito de 1991
contribuiu a política de
construção de vias, a cargo
do ministro Ferreira do
Amaral. Símbolo maior do
“ferreirismo” como arma
eleitoral é a conclusão da
autoestrada entre Lisboa e
Porto, iniciada em 1961
mas que só em 1991, 30
anos depois, foi terminada,
com a abertura da ligação
entre Torres Novas e Con-
deixa (na imagem, traba-
lhos nesse troço). O asfalto
passa a ser a melhor forma
de medir o progresso do
país.
FOTOS JORGE SIMÃO

E RUI OCHÔA

REVISTA 16/JUN/12
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ERA UMA VEZ


NA UNIÃO SOVIÉTICA
Em agosto de 1991, elementos da linha dura do regime
soviético promovem um golpe de Estado em Moscovo,
depondo o Presidente Mikhail Gorbatchov (à esquerda,
na foto), de férias na Crimeia. Há reações populares,
nas quais emerge o líder da Federação Russa, Boris
Ieltsin (à direita). Num momento-chave das movimen-
tações militares, Ieltsin sobe a um tanque para conde-
nar os golpistas. O putsch falhara. No final deste ‘faroes-
te à moda do Kremlin’, resta uma imagem do Parla-
mento russo semidestruído, à frente do qual posa um
grupo de soldados. Gorbatchov volta a Moscovo e
retoma as funções, mas o seu poder torna-se honorífi-
co. O homem forte já é Ieltsin. No dia de Natal de 1991,
Gorbatchov assina a sua renúncia. A União Soviética
chegava ao fim.
FOTOS PETER TURNLEY/CORBIS E PIKO/AFP/GETTY IMAGES

REVISTA 16/JUN/12
O PRESIDENTE
REI
Se no plano interno
Mário Soares inaugu-
127
rou com as presidên-
cias abertas uma
nova forma de fazer
política, no capítulo
externo desdobrou-
-se em viagens,
algumas marcantes
pelos laivos de exotis-
mo. Uma delas foi à
Índia, em janeiro de
1992. Ao visitar
Jaipur — cidade
onde no final de
março as procissões
de elefantes anun-
ciam a Holi, a festa
da primavera —, o
chefe de Estado e a
sua vasta comitiva
tiveram direito a um
passeio de paquider-
me. Em Belém Soa-
res encontrou um
poder à sua medida:
o desempenho que
fez do cargo deixou-
-lhe a auréola de
uma espécie de
rei-monarca.
FOTO LUIZ CARVALHO

REVISTA 16/JUN/12
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PRESIDÊNCIA No primeiro semestre de 1992, seis anos depois da entrada na


CEE, Portugal assume pela primeira vez a presidência do Con-
PORTUGUESA selho. A incumbência começou a ser notícia muito antes, devi-

DA COMUNIDADE do à polémica sobre a construção do Centro Cultural de Belém


(CCB), em Lisboa, edificado porque faltava ao país uma infraes-
trutura adequada. Os adversários do CCB insurgiam-se, entre
outras razões, contra a excessiva proximidade aos Jerónimos.
Alguns dos críticos, como o sociólogo António Barreto, refe-
riam-se ao CCB como “centro comercial de Belém”. Mas o CCB
lá se fez e recebeu os grandes da Europa — na fotografia de
família, Cavaco Silva está ladeado pelo Presidente francês,
François Mitterrand (à sua direita) e pelo chanceler alemão
Helmut Kohl. Portugal gabava-se então de ser um “bom aluno”.
FOTO RUI OCHÔA

REVISTA 16/JUN/12
NASCIMENTO A 7 de fevereiro de 1992 é assinado o Tratado de Maas-
tricht, cidade holandesa que assim fica ligada à transfor-
DA UNIÃO mação da Comunidade Europeia em União Europeia.

EUROPEIA Na imagem, os ministros portugueses dos Negócios


Estrangeiros, João de Deus Pinheiro, e das Finanças,
Jorge Braga de Macedo, entre responsáveis dos 12
Estados-membros que rubricaram o Tratado da União
Europeia. Sobre o que viria a seguir, foram poucas as
vozes dissonantes. Uma foi a de Miguel Torga, que
escreveria no seu “Diário” (Volume XVI): “Anestesiados
previamente pelos invasores e seus cúmplices, somos
agora oficialmente europeus de primeira, espanhóis de
segunda e portugueses de terceira.”
FOTO RUI OCHÔA
129

A 1ª EMISSÃO
DA TV PRIVADA
A 6 de outubro de 1992 arrancam as emissões da SIC,
a primeira estação de televisão privada em Portugal.
Depois seria a vez da TVI. Chegaria mais tarde a hora
dos canais por cabo, nacionais e internacionais. A
cara do primeiro noticiário da SIC é a da jornalista
Alberta Marques Fernandes, hoje na RTP. A televisão
em Portugal nunca mais seria a mesma, e o país
também não. O telespectador passa a ter uma liberda-
de de escolha nos canais de TV — o que, parecendo
natural, demorou muito tempo a conquistar.

REVISTA 16/JUN/12
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BANDEIRAS
AO VENTO
Angola conhece em setembro de 1992 as primei-
ras eleições da sua história, legislativas e presi-
denciais, possibilitadas pela assinatura dos Acor-
dos de Bicesse, no ano anterior (na imagem, um
autocarro de apoiantes do MPLA). O país benefi-
ciou da aragem que o fim da Guerra Fria levou a
muitos pontos do globo. Na eclosão e manuten-
ção da guerra civil em Angola, iniciada em 1975,
tiveram papel importante as duas superpotên-
cias. Se a União Soviética apoiava o regime de
Luanda, os EUA, com uma logística dada pela
África do Sul, fomentava o movimento guerrilhei-
ro. Com a rendição do comunismo, afrouxou a
vontade de financiar. Mas as tréguas duraram
pouco. A UNITA contestou os resultados e um
clima de guerra voltou a tomar conta do país. As

CORAÇÕES Se há imagens que valem mil palavras, imagens


verdadeiras mil vezes repetidas — como as do massa-
bandeiras e outra panóplia eleitoral desaparece-
ram novamente do mapa. O conflito só termina-
AO ALTO cre de timorenses por militares indonésios, em no- ria em 2002, após a morte de Savimbi.
vembro de 1991, no Cemitério de Santa Cruz, em Díli FOTO RUI OCHÔA
— fazem crescer uma cadeia de solidariedade que
nunca mais retrocede. Antes de a comunidade inter-
nacional despertar para a causa, com a atribuição do
Prémio Nobel a Ramos-Horta e a D. Ximenes Belo, já
há muito que o coração dos portugueses estava com
Timor.

REVISTA 16/JUN/12
O TRIUNFO
DA NÃO-EUROPA
Entre 10 e 13 de junho de
1992, o cadáver de uma
mulher, rodeado de vidros
partidos, fica abandonado
numa praça de Sarajevo. O
cerco à cidade durou até
1995, mas em certas frentes
o conflito no território
jugoslavo (de 1991 a 2001)
arrastar-se-ia mais tempo.
Nos Balcãs, depois da Segun-
da Guerra Mundial, o Velho
Continente volta a ser dilace-
rado pela força das armas.
Pensa-se que houve 250 mil
mortos e 2,5 milhões de
refugiados. Os desapareci-
dos contam-se aos milhares.
Mais negra é a brutalidade
dos quadros: limpezas
étnicas, assassínios e viola-
ções em massa, valas co-
muns. A barbárie assomou à
Europa — quando muitos
europeus pensavam que
isso só seria possível nou-
tros continentes. Para al-
guns algozes houve apenas
132 uma justiça tardia; para
outros, a total impunidade;
para as vítimas, perdas sem
reparação possível. As
guerras balcânicas foram o
triunfo do nacionalismo
exacerbado, de povos com
uma genética de ódio mú-
tuo — mas olha-se para o
mapa, com mais ou menos
ferocidade, e isso é uma
constante sem fronteiras, ao
longo da História. Em Saraje-
vo e em muitos outros
pontos da ex-Jugoslávia
deu-se o triunfo da não-Eu-
ropa, da sua tribalização.
Convém mirar este passado
recente. Sobretudo nestes
dias de incerteza, quando a
fortaleza europeia, erguida
para evitar repetições de
guerras como a de 1939-45,
abre brechas pelas quais se
entrevê um futuro sombrio.
FOTO ANTOINE GYORI/

SYGMA/CORBIS

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REVISTA 16/JUN/12
opinião

POR RUI RAMOS


O período 1983-92 foi o dos anos do otimismo. Portugal integrou-se na
Europa e abriu-se uma era de consumo, de que são símbolos o surgi-
mento das caixas multibanco e os restaurantes da cadeia McDonald’s

A DÉCADA EM QUE
A HISTÓRIA ACABOU

NUNCA UMA DÉCADA começou tão mal, nun- aflições tinham também uma raiz estrutu-
134 ca uma década acabou tão bem. Em 1983, ral. Desde o fim do Estado Novo que o
Portugal iniciava a segunda cura de “austeri- consumo público crescia mais do que a
dade” receitada pelo FMI em menos de produção nacional. Em consequência, as
cinco anos. O país continuava sem notícias despesas do Estado, que equivaliam a me-
da sua entrada na CEE. Na Europa, vivia-se nos de 20% do PIB em 1974, representavam
mais um acesso da Guerra Fria, com a mais de 40% em 1983. Para cobrir a diferen-
“crise dos euromísseis”. As salas de cinema ça entre despesa e receita, o Estado abusou
tremiam com o filme “The Day After” e a do crédito. A dívida pública passou de 10%
ideia do inverno sem fim que se seguiria a do PIB em 1974 para 70%. Os juros e amorti-
uma guerra nuclear. zações tomaram o lugar da guerra colonial
Passada uma década, em 1992, o mundo era como primeira rubrica da despesa.
outro. Portugal assumia a presidência Em março de 1983, o líder da oposição
rotativa da UE, no auge do seu segundo Mário Soares admitiu a urgência de “um
período de maior crescimento económico plano de estabilização assente num consen-
do século XX. Na Europa, o comunismo so nacional”. Mas o mundo, em 1983, não
acabara e a Alemanha estava unificada. estava para consensos. Nos EUA e em
Ninguém sabia ao certo o que se passara. Inglaterra, os esforços de Reagan e de
Nos EUA, Francis Fukuyama, recuperou Thatcher para contrariarem a “estagfla-
Hegel para explicar que a história tinha ção” e o avanço soviético, através da
chegado ao fim. A tese foi seriamente flexibilização das economias e de novos
discutida por toda a gente. armamentos, provocavam greves e mani-
festações. O ambiente internacional era
CRISE E CONFRONTO. Em 1983, os indicado- de confronto. Em 1 de setembro de 1983,
res financeiros e económicos pouco distin- a força aérea soviética abateu um avião de
guiam Portugal dos países da América passageiros sul-coreano, matando 269
Latina em bancarrota. Os défices comercial pessoas. Foi uma era de violência, que
(16% do PIB) e orçamental (mais de 10%) também fez notícias em Portugal, onde as
eram os maiores desde 1922. Podia-se FP-25, última erupção do terrorismo esquer-
culpar o “choque do petróleo”. Mas as dista, exploravam o negócio das bombas,

REVISTA 16/JUN/12
135
ILUSTRAÇÃO DE HUGO PINTO

Em 1983, os indicadores financeiros e económicos


pouco distinguiam Portugal dos países da América
Latina em bancarrota. Os défices comercial
e orçamental eram os maiores desde 1922
REVISTA 16/JUN/12
opinião Rui Ramos

assaltos e atentados. Entre 1980 e 1987, o norte. A península de Setúbal ficou a ser única estação de televisão, proporcionava
mataram 13 pessoas, entre as quais um conhecida pelos “salários em atraso”. Os querelas constantes. O PSD exigia “refor-
bebé de 4 meses. distritos do Porto, Braga e Aveiro, ao contrá- mas estruturais”, uma expressão inventada
Em junho de 1983, depois das eleições de rio, afamaram-se pela prosperidade dos nesta época. Em fevereiro de 1985, Mota
abril, PS e PSD formaram o governo do patrões de têxtil e calçado, às vezes pouco Pinto demitiu-se.
Bloco Central, com Mário Soares a primeiro- escrupulosos no uso da mão de obra e no Já ninguém pensava no FMI e todos pensa-
-ministro e Mota Pinto a vice-primeiro-mi- pagamento de impostos, mas que souberam vam nas eleições presidenciais de 1986. A
nistro. A solução foi inspirada pela necessi- aproveitar a desvalorização do escudo e o presidência fora despromovida pela revisão
dade de negociar a ajuda do FMI. Mas fim da recessão na Europa, em 1984. Não foi constitucional de 1982. O general Eanes,
também pelo esgotamento político-ideológi- por acaso que os primeiros bancos privados porém, soubera manter-se no centro dos
co. A AD falhara. Soares já pusera o “socia- portugueses fundados depois de 1974 nasce- debates, pelo expediente de deixar os seus
lismo na gaveta” em 1977. Em 1983, viu ram no Porto: o BPI e o BCP, em 1985. apoiantes especularem sobre o lançamento
François Mitterrand fazer o mesmo, depois Talvez também não fosse por acaso que o de um novo partido. Contou com o aplauso
de dois anos de veleidades socialistas terem Futebol Clube do Porto chegou a campeão do PCP, satisfeito pela modificação de um
levado a França à beira da falência. europeu em 1987. sistema partidário em que estava isolado. O
O programa acordado com o FMI seguiu os A grande “contestação social” não aconte- Partido Renovador Democrático nasceria
trilhos conhecidos: desvalorização do ceu. 1984 foi, de acordo com o Ministério do em fevereiro de 1985, com o empenho
escudo, redução de subsídios, aumento de Trabalho, o ano com menos greves e greves público da mulher do presidente, Manuela
impostos. A taxa anual de inflação chegou mais curtas desde 1979. A economia “infor- Eanes. Mas faltava-lhe o Estado-maior que
aos 30% e o desemprego aos 10%. Fora do mal” e uma agricultura de part-time atenua- o eanismo tivera na década de 1970.
governo, toda a gente gritava que a austeri- ram aflições, tal como a emigração, embora 1985 foi um ano crucial. Em primeiro lugar,
dade estava a matar a economia. Pior: em longe do nível da década de 60 (saíram do lado da CEE. O “processo de adesão”
junho de 1984, foi preciso reforçar a austeri- 10.000 pessoas por ano, na maior parte tinha sido exasperante. Em janeiro de 1984,
136 dade. Pior ainda: em março de 1985, o FMI para as Américas). O ajustamento acabou perante a falta de resultados, Soares amea-
acusou o governo de não ter cumprido o por ser um sucesso. O défice da balança çou trocar a integração europeia por um
acordo e reteve a última tranche de 90 comercial desceu para 1% do PIB em 1986. reforço dos laços com os EUA. Mas em
milhões de dólares. Catástrofe? Não. O Com a ajuda do preço do petróleo, que caiu junho, Mitterrand marcou finalmente uma
governo limitou-se a contratar um emprés- 70% em relação a 1980. data para a entrada portuguesa (1 de janei-
timo de 500 milhões de dólares nos merca- A agitação destes anos foi sobretudo políti- ro de 1986). O comboio arrancou. A 12 de
dos internacionais. ca. Desapareceram as grandes manifesta- junho de 1985, nos Jerónimos, foi assinada
É que se a austeridade matara uma econo- ções e os partidos perderam militantes. a adesão. O governo caiu logo a seguir. Já
mia, deixara crescer outra. Tal como aconte- Nem por isso a elite partidária deixou de se não era preciso e o novo líder do PSD,
ceu na América Latina, também em Portu- movimentar com energia. Apareceram Cavaco Silva, estava ansioso por se libertar
gal o ajustamento pôs em causa a indústria regularmente questões para fraturar o da subordinação ao PS. A candidatura
pesada das grandes empresas estatais ou Bloco Central. Em janeiro de 1984, foi a presidencial de Freitas do Amaral serviu-
protegidas pelo Estado, e deixou florescer a despenalização do aborto, que escandali- -lhe para isso.
indústria ligeira de pequenas e médias zou a igreja e por aí o PSD. Em julho, foi a
empresas, viradas para as exportações. Lei da Segurança Interna, que aterrou a O TEMPO DAS SURPRESAS. As eleições legisla-
Tornou-se notório o contraste entre o sul, consciência de esquerda do PS. O tempo tivas de 5 de outubro de 1985 revolveram a
onde se aglomerava a indústria estatizada, e distribuído a cada um dos partidos na RTP, relação entre os partidos. O PSD ficou à

Com a maioria absoluta do PSD em julho


de 1987 houve a sensação de fim de uma
época. O eanismo evaporou-se, o PCP
começou a perder votos e dirigentes,
a extrema-esquerda parecia extinta
REVISTA 16/JUN/12
frente, com 29,8% dos votos, beneficiando do
modo como os eanistas, com 18%, secaram o
PS, reduzido a 20,8%. Cavaco Silva derrotou
também o CDS, cujo líder, Lucas Pires, fez
então a que foi até hoje a única campanha
liberal em Portugal. À frente de um governo
minoritário, Cavaco estreou-se aumentando as
pensões e o salário mínimo.
As eleições presidenciais de fevereiro de
1986 foram a primeira surpresa política
desta época. Mário Soares, arrancando com
8% de intenções de voto, derrotou primeiro
Salgado Zenha, o candidato do PRD e do
PCP, e depois Freitas do Amaral (com 51,1%
dos votos contra 48,8%). Eleito pela esquer-
da contra a direita, Soares não seguiu essa
linha. Considerou sempre Eanes e o PCP como
inimigos principais, e nunca esqueceu que à
frente do PS estavam os seus antigos críticos
internos. Proporcionou assim a segunda sur-
presa, quando, em 1987, as oposições se congre-
garam para derrubar Cavaco Silva. Soares
recusou qualquer alternativa assente nessa
conjugação heteróclita e deu ao PSD, a 19 de
julho de 1987, a oportunidade de provar que o
sistema eleitoral, afinal, não impedia maiorias
absolutas de um só partido. Cavaco reuniu
50,2% dos votos e venceu em todos os distritos,
menos três (Setúbal, Évora e Beja).
Houve a sensação de fim de uma época. O
eanismo evaporou-se. O PCP começou a
perder votos e dirigentes (como Vital Morei-
ra e Zita Seabra). A extrema-esquerda pare-
cia extinta, sem o deputado da UDP e com
Otelo Saraiva de Carvalho na prisão (desde a
operação policial contra as FP-25 em junho
de 1984). Todos os indicadores financeiros
eram agora relativamente saudáveis. A
inflação caíra pela primeira vez abaixo dos
10%. A economia crescia 4% ao ano. O gover-
no tinha margem de manobra para dar boas
notícias.
Mas no fim dos anos 80 não foi o noticiário
doméstico que fascinou os portugueses. A
queda do preço do petróleo teve outro efeito,
ao provocar uma tentativa de reforma da
União Soviética, dirigida por um novo líder,
Mikhail Gorbatchov, que em 1985 fez o mundo
aprender as palavras perestroika e glasnost. A
26 de abril de 1986, o acidente nuclear de
Tchernobyl deu a medida da degradação do
sistema soviético. Depois, veio a retirada do
opinião Rui Ramos

Afeganistão e finalmente da própria Europa Em 1991, já sem surpresa, Soares seria reelei- profissionais intelectuais, científicos e técni-
de Leste, onde os tiranos comunistas, sem a to com 70,3% dos votos e Cavaco com 50,6%. cos de 7,2% para 17,1%. Esta gente mais
proteção de Moscovo, não resistiram à educada e qualificada dispunha também de
avalancha de insurreições populares. Na OUTRA CULTURA INTELECTUAL. Portugal era mais recursos e fontes de informação.
noite de 9 de novembro de 1989, por volta agora um país em que se pensava de outra Desde 1986 que antenas parabólicas davam
das 11 horas, uma Europa estupefacta assis- maneira. Em 1984, a evocação de George acesso a canais internacionais (como a
tiu às mais sensacionais imagens desde a II Orwell mereceu mais espaço na imprensa CNN). Em 1989, o governo autorizou rádios
Guerra Mundial, com a rutura do muro de do que o centenário de Marx no ano ante- privadas locais e abriu concurso para dois
Berlim por uma multidão gigantesca. Por rior. Orwell representava duas coisas novas canais de televisão privados. A SIC, dirigida
fim, a própria União Soviética acabou no em Portugal: a preocupação com a liberda- por Francisco Pinto Balsemão, começou a
caixote de lixo da história. de individual, num meio em que os intelec- emitir em 6 de outubro de 1992.
Não se tratou de uma simples vitória do tuais falavam sobretudo de revolução, e o As referências renovaram-se: o poeta
“liberalismo”. A União Soviética desaparece- influxo anglo-saxónico, numa sociedade até para citar nas ocasiões oficiais era agora
ra, mas também os líderes ocidentais que a aí francófona. Pessoa, e não Camões; Carlos Lopes ou
haviam confrontado, como Reagan e That- Subitamente, toda a gente começou a citar Rosa Mota sucediam a Eusébio; o humo-
cher. Em 1987, o filme “Wall Street”, de Karl Popper, que Mário Soares convidou rista de que todos repetiam as frases era
Oliver Stone, fixara os clichés da denúncia para vir a Lisboa em 1987. Também outros Herman José, em vez de Solnado; o ro-
dos chamados yuppies, que haviam substituí- movimentos, como o pós-modernismo, mancista mais vendido e traduzido era
do os hippies. A 19 de outubro desse ano, a ajudaram a desatualizar as ortodoxias do José Saramago, em vez de Ferreira de
crise das bolsas permitiu aos críticos da passado. Era o que convinha a uma socieda- Castro; o pensador do regime era Eduar-
desregulação agitar o fantasma de 1929. de que se sentia mais complexa e em que do Lourenço, em vez de António Sérgio...
Toda a gente ia começar a procurar uma era possível estar na moda de várias manei- Mas se houve um autor que definiu a
Terceira Via, entre a social-democracia e o ras (com um visual à new wave ou com um época foi Miguel Esteves Cardoso. Em
138 liberalismo. ar de corretor da bolsa). Os bares do Bairro 1983, tinha 33 anos e começou a publicar
Em Portugal, foi Cavaco Silva, um keynesia- Alto substituíram as sedes de partido da no Expresso a coluna ‘A Causa das Coi-
no, quem tentou protagonizar o novo con- década de 70. A tolerância tornou-se a sas’. O seu impacto pode medir-se eleito-
senso, conjugando uma política de privatiza- principal virtude no Ocidente. O vírus da ralmente. Em 1987, encabeçou a lista do
ção e flexibilização da economia com a sida, identificado em 1981, poderia ter PPM ao Parlamento Europeu e o partido,
expansão do emprego público e do Estado acentuado o estigma de comportamentos por isso, teve 155.990 votos (2,77%), por
social, tudo empacotado num europeísmo até aí tratados como “desviantes”. Teve o contraste com os 23.218 votos das legisla-
fervoroso. Para isso, dispôs do pacífico efeito contrário. tivas (0,41%). O governo convidou-o a
convívio do Presidente Soares. Foi como se Para definir o espírito do tempo, falou-se escrever as Grandes Opções do Plano.
o projeto do Bloco Central, que previra a de individualismo, hedonismo ou permissi- Em 1988, com Paulo Portas, fundou um
presidência de Soares e o governo do PSD, vidade. Havia muito mais gente preparada novo semanário, “O Independente”.
se tivesse afinal consumado. Soares, com para ser sofisticada. Os anos médios de
jeito, usou a presidência para limpar os escolaridade da população portuguesa OS ANOS DO OTIMISMO. Em 1986, Hans
rancores deixados pelo PREC. O noticiário passaram de 60% da Europa ocidental em Magnus Enzensberger visitou Lisboa e não
político resumiu-se a “casos” (a prisão de um 1970 para 80% em 1990. Na população ativa, foi caridoso: “Podíamos estar em Istambul
ex-secretário de Estado da Saúde em 1990 a proporção de diretores e dirigentes subiu ou Jerusalém. O Oriente está perto”. Numa
ou a demissão do governador de Macau). de 1,6% em 1981 para 11,4% em 1992 e a dos praça, um médico falecido no século XIX

Na noite de 9 de novembro de 1989,


uma Europa estupefacta assistiu
às mais sensacionais imagens desde
a II Guerra, com a rutura do Muro
de Berlim por uma multidão gigantesca
REVISTA 16/JUN/12
A 3 de abril de 1992, Cavaco Silva
colocou o escudo no Sistema Monetário
Europeu. Foi, talvez, a maior decisão
tomada na década de 1983-1992.
Era o caminho da moeda única
continuava, em estátua, a curar doentes. Al- possessões vulgares. A percentagem de domi- vembro de 1992, a guerra recomeçava.
guém explicou a Enzensberger: “Se entrasse cílios com vídeo atingiu rapidamente 40%.
num hospital português, também sentiria Em 1989, começou o serviço de telefone O GRANDE SALTO EM FRENTE Portugal aderira a
necessidade de recorrer ao dr. Sousa Martins”. móvel, que em 1992 tinha dois operadores e uma CEE em movimento e a que a unificação
Era um país irreal, que confiava as poupan- 30 mil utilizadores. alemã deu mais velocidade. 1992 foi o ano do
ças, não ao banco, mas à dona Branca, uma Nesta década, a sociedade assentou numa mercado único, com o fim das barreiras não
velha que vivia num pequeno apartamento e estrutura produtiva diferente. Os serviços tarifárias. Foi também o ano do Tratado da
prometia um juro de 10% ao mês. ocupavam 55,2% da força de trabalho em União Europeia, dito de Maastricht, prevendo
Foi este país que Portugal quis deixar de ser 1992, contra 41,6% em 1981. A atividade agríco- a moeda única (7 de fevereiro de 1992). Em
e que nestes anos se convenceu que estava a la reduziu-se (11,6%). Era ainda uma sociedade Portugal, para facilitar a europeização, fez-se
deixar de ser. Entre 1986 e 1992, voltou a mais concorrencial. Em 1983, as dez maiores uma revisão constitucional extraordinária, a
crescer mais do que a Europa. O PIB per empresas do país eram estatais, assim como 17 de novembro de 1992. A Europa era agora
139
capita português, em relação à média da todos os bancos. A revisão constitucional de tudo. O resto do mundo pertencia ao passa-
Europa Ocidental, passou de 53% a 64%. 1989 abriu a possibilidade de total privatiza- do: a 13 de abril de 1987, em Pequim, tinha
Nunca se alcançara tanta convergência em ção das empresas estatais e do fim dos mono- sido assinado o acordo para o trespasse de
tão pouco tempo. As “ajudas comunitárias”, pólios públicos. Macau à China.
muito faladas, ajudaram: valeram, em termos O otimismo pareceu plausível. Em 1993, A 3 de abril de 1992, Cavaco Silva colocou o
líquidos, 1,4% do PIB anualmente. O desempre- Samuel Huntington interpretou a década escudo no Sistema Monetário Europeu. Foi,
go caiu de 10,2% para 4,1%. O Estado investiu anterior como a da “terceira vaga da democra- talvez, a maior decisão tomada na década de
em telecomunicações e estradas. A autoestra- tização”, com mais de 30 países da Europa e 1983-1992. Era o caminho da moeda única,
da de Lisboa ao Porto foi finalmente concluí- da América Latina a estabelecer democracias. com enormes consequências para a indústria
da em setembro de 1991, 30 anos depois do Nem tudo correu bem. A 4 de junho de 1989, de exportação que entre 1983 e 1986 tirara o
início. O consumo aumentou, facilitado pelas na China, o governo comunista esmagou os país da crise. Com o iminente acesso da China
caixas automáticas da rede Multibanco, inicia- contestatários. Mas os casos de transição feliz aos mercados ocidentais e com a Europa de
da em 1985, e pelos novos centros comerciais, eram mais notórios. Em 1990, a África do Sul Leste a competir pelas deslocalizações indus-
de que as Amoreiras, em Lisboa, foram o libertou Nelson Mandela e iniciou negocia- triais (para Portugal já só sobrou a Autoeuro-
primeiro exemplo, em 1986. A percentagem ções para o fim do apartheid. Em 1990-91, a pa), ia fazer-se a experiência de obrigar a
de domicílios com automóvel subiu de 36% grande coligação que anulou a ocupação do economia portuguesa a modernizar-se ainda
para 54%. Mas talvez nada fosse tão simbólico Kuwait pelo Iraque ilustrou a harmonia da mais, competindo sem os salários baratos
da nova idade do consumo como a inaugura- era democrática. induzidos pela desvalorização da moeda. Ia ser
ção, em maio de 1991, do primeiro restauran- O novo Portugal tentou desempenhar o seu o grande salto em frente.
te da McDonald’s em Portugal. papel. A 31 de maio de 1991, no Estoril, o gover- A oposição, durante muito tempo, só pudera
Uma das obsessões da época foram as novas no juntou José Eduardo dos Santos e Jonas pegar no “cavaquismo” pela “arrogância”. Mas
tecnologias de informação. A 30 de março de Savimbi num acordo para o fim da guerra civil em 1992, a taxa de crescimento da economia
1985, o governo em peso foi à Gulbenkian em Angola. O sucesso foi menor em Timor. O caiu (1,5%). A próxima crise estava no ar. Soa-
receber de Alvin Toffler, o guru da “socieda- massacre do cemitério de Santa Cruz, a 12 de res, atento, mudou. Em julho de 1992, já Cava-
de pós-industrial”, a boa nova sobre o adven- novembro de 1991, repôs o caso nos noticiá- co Silva o acusava de “obstrução sistemática”.
to da “era da informação”. Nos anos seguin- rios. Mas o barco “Lusitânia Expresso”, em Na Europa, a guerra da Jugoslávia fazia reviver
tes, os vídeos, os CD, os walkman e os primei- março de 1992, não conseguiu chegar à ilha. crueldades arcaicas. A história ia recomeçar. R
ros computadores pessoais tornaram-se Em Angola, também tudo se desfez. Em no-
em manutenção

A NOSSA MOVIDA

E Lisboa mexeu-se, avozinha de todas as discotecas gay —, Não no Plateau. Aqui começaram a separar-
contagiada por Madrid começou por ser o primeiro local onde era -se as águas... uns betos mais arrebitadotes.
possível fugir ao pesadão Portugal do pós- Metros abaixo, ainda não havia sinais dos
-25 de Abril. Nem era gay nem hetero. Era irmãos Rocha nem do grupo K.
DE ESPANHA SOPRAVAM VENTOS pouco tolerante e espampanante. E, ao contrário É verdade... há aqui uma amálgama crono-
usuais. Eram rabanadas, sopradelas, tempes- do que podem vender as crónicas sociais, a lógica da década. A memória tem destas
tades secas, trovoadas multicolores. Do lado sociedade portuguesa dos anos 80 não coisas. Algumas terei visto ou imaginado
de lá chegava um termo novo: movida. E primava pela aceitação de novas ideias. A no olhar de pós-adolescente universitário
também queríamos. E quisemos. E, sejamos roupa da Maçã, loja de Ana Salazar, na Rua de escudos contados para três imperiais e
francos, até tivemos. À nossa maneira. do Carmo, não era propriamente consen- um shot e muito jornal lido? O Reininho
Em meados dos anos 80 estava aberta a sual; os “vanguardistas” tipo londrino acaba- num fantástico blazer de ombros largos a
jugular movidense lisboeta, que era compos- vam insultados na rua (sim, passear no conversar com o Pragal da Cunha? O
ta pelo Trump’s, no Príncipe Real, pelo Chiado era melhor ser a passo largo), os Miguel Esteves Cardoso e o Carlos Queve-
Frágil, no Bairro Alto, e pelo Plateau, nas “neorromânticos” esses... ui. Ora o Trump’s, do e os irmãos Coimbra a preparar “O
ainda inocentes e esconsas Escadinhas da sendo já um local de excessos, passava mais Independente”? Como era possível eles
Praia. Tão pouco mas tanto. O suficiente por um conluio de extravagâncias, do que escreverem assim? E não serem de esquer-
para dizer “Lisboa me mata”? Bom, não era uma porta selecionada por opção sexual. da e terem pinta?
140 fácil na altura ousar. A 500 metros, a multidão amontoava-se E as Amoreiras e a polémica? As Amorei-
O Trump’s, ali ao Príncipe Real — hoje a perante a incompreensão. A porta do Frágil! ras iam acabar com Lisboa, arruinar o
Milhares de horas a discutir a psique da comércio tradicional e arrasar a estética
Anamar, primeiro, e da Guida Gorda, de- da cidade. Embargar. Bah! Tomás Taveira
///LUÍS pois. As duas infames ‘porteiras’. Milhões de não cedeu. E ficará na história por causa
///PEDRO pessoas barradas. Mas quem é que elas da porcaria de umas cassetes em que se
///NUNES pensam que são? Não se perdoa. Fica sem- filma a sodomizar umas wannabe no seu
pre uma ponta de rancor. próprio escritório — no que foi o primeiro
O Frágil ‘criou’ o Bairro Alto. O Frágil ‘escândalo sexual’ do pós-25 de abril. Nisso
e o Pap’Açorda. Tudo o que lá há hoje foi um precursor. Hoje safava-se, com
começou em potência quando o Manel tanto YouTube.
Reis abriu um e o Fernando Fernandes e Lembro, no início dos anos 80, o anúncio da
o sócio abriram o outro. morte do António Variações. Foi algo que
Mas a questão era mesmo entrar no Frágil. comoveu transversalmente a sociedade
Stresse. (Nessa altura ainda não se chama- portuguesa. Terá sido — nunca foi confirma-
va “stresse” ao stresse). A luz sobre a porta da — a primeira morte de uma personalida-
cinzenta metálica, campainha. A cara de pública portuguesa com sida. Mas, verda-
entediada a olhar para nós — vestidinhos de seja dita, isso foi algo a que não foi dado
com roupinha bem “prafrentex” — e... muito relevo. Hoje, a sida parece estranha-
umas vezes sim, outras vezes não. Ora, mente ‘esquecida’. Mas a sua chegada foi
esta decisão perfeitamente bizarra e aleató- aterradora e teve um impacto escabroso na
ria — e que hoje compreendemos enquan- nossa relação com o sexo, os outros e a
to catch de marketing — tornou-se um ato morte. Inicialmente, descansou os hetero. E
de conversa: uma indignidade, um privilé- os não-junkies. Mas já faz 30 anos que uma
gio, um “nunca mais lá vou!”, um “eu entro noite de sexo causal desprotegido passou a
sempre!” um “eu quero que essas gajas ser uma roleta russa. Aliás, já ninguém se
se...” O Bairro Alto foi o imã da movida lembra de como era não ser assim. Pensan-
madrilena em Lisboa. O local Almodovaria- do bem, isso é que é incrível.
no por excelência. Acho que foi mais ou menos isto. R

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142

///À MESA nha Tradicional Portuguesa”


(1982), de Maria de Lourdes Modes-
to, pilar fundamental da codifica-

SÍNTESE E SIGNO DOS 80 ção da nossa cozinha regional.


Sem falsa modéstia, o “Livro de
Bem Comer” (1987), do autor
destas linhas, incidindo sobre a
POR JOSÉ QUITÉRIO natureza cultural da comida e do
que lhe anda ligado, nas perspeti-
NO ÂMBITO TEMPORAL deste número da Revista, edição ocorreu em 1981, muitos outros vas histórica, antropológica, socio-
relembremos sinteticamente alguns factos e fastos de índole regional ou concelhia foram lógica e literária. Em meados de
gastronómicos dos anos 80. levados à prática: quando culturalmen- 1989, a Biblioteca Nacional de
Assistiu-se a uma nova mentalidade, relativamente te estruturados, um dos melhores Lisboa realizou uma importante
às décadas anteriores, que levou à progressiva veículos de assunção e divulgação. exposição sobre “Livros Portugue-
tomada de consciência por parte do poder local Ainda no domínio da inventariação ses de Cozinha”. Pela primeira vez
(autarquias, comissões e regiões de turismo) de que patrimonial, a produção livreira não — e honra lhe seja feita por este
a gastronomia regional constitui um património, foi de todo escassa, embora raramente reconhecimento cultural e institu-
quantas vezes o mais relevante, que urge preservar, ultrapassasse o nível de meros catálo- cional — foi possível empreender
valorizar e dar a conhecer. Festivais e concursos gos de receitas, muitas vezes impreci- uma viagem em redor da nossa
gastronómicos brotaram como cogumelos. Além de sas, redundantes ou inúteis. De deixar memória gastronómica registada.
um de cariz nacional, o de Santarém, cuja primeira marca na década e no porvir, “Cozi- Passando dos livros aos trabalhos

REVISTA 16/JUN/12
zes, como os vizinhos espanhóis, de sala interior nos anos 90, originariamente uma
ressuscitar tascas e petiscos em suas espécie de jardim de inverno. Na lista de comi-
qualidades e dignidade perdidas. das igualmente um rol de velhos conhecidos.
No campo dos alimentos, fomos Numericamente, são 8 Entradas e 9 Pratos
brindados com o aparecimentos de Principais (6 de peixe e 3 de carne) incluídos
frutos exóticos — kiwi, manga, lima, nas Sugestões do Dia. Na parte fixa, 3 Sopas, 13
lichia, papaia, goiaba, abacate — que Entradas, 4 Mariscos (note-se que meia dúzia
vieram enriquecer a panóplia gustati- das entradas são também mariscosas), 10 Peixes
va. Os congelados continuaram em e 9 Carnes. Um leque muito variado, a satisfazer
força; aliás, mais vale um bom conge- quase todos os desejos, em puro estilo nacional.
lado que um falso fresco. A indústria Provemos. Roubado ao sector carnal para
alimentar vai chegando a tudo e com funcionar de entrada, os “pastéis de massa
ela os aditivos e os edulcorantes, os tenra com feijão verde” (¤18,50) foram três,
produtos de aviário, os sucedâneos de muito bons, a massa exterior própria atochadi-
toda a ordem, a carne com hormonas, nha de carne bem temperada na consistência
o cultivo artificial de peixes, as frutas correta, seis batatinhas primeiro cozidas e
envernizadas e insípidas. depois salteadas, o feijão verde com toque
Em relação à utensilagem culinária, o precioso de vinagre branco. Igualmente puxa-
micro-ondas marcou a década. Nunca da para função entradeira, a “açorda real” (¤31)
prestou para cozinhar, tornou-se exibiu abundância de lagosta e camarão,
vantajoso na descongelação de boa textura, gordura percetível sem
cozinhados ou no seu sim- que se possa considerar azeitada,
RDA
ples aquecimento. PAP’AÇO AIA, 57 impossível fazer melhor. O “baca-
ATAL
Uma única nota interna- RUA DA A lhau com broa de milho” (¤21)
LISBO
cional: o proclamado . 2 13 46 4 811 redundou numa feliz aliança
TEL AOS
enterro da nouvelle cuisine (FECHA S ligada por molho bechamelizado,
O
francesa. Não tão nova DOMING DAS excelentes grelos de nabo, manten-
U N
E ÀS SEG ÇO)
quanto isso e cavalgada A O A LM O do o ligeiro acre, servidos à parte.
por inúmeros copistas e Aos “filetes de pescada com arroz de
oportunistas (quantidade da berbigão” (¤19) faço o melhor elogio, o
143
dose inversamente proporcional à de rivalizarem com os do Porto, três espéci-
elevação da fatura), os seus mais mes altos e estreitos, impecáveis de frescura,
NUNO BOTELHO

sábios mandamentos hão de perdurar leveza de polme e sábia fritura, arroz caldoso e
e influenciar a evolução culinária gostoso. Com cenoura e chouriço, o tubérculo
posterior. em puré, tudo bem na “alcatra de vitela estufa-
Vamos agora a um restaurante, da em vinho tinto com batata-doce” (¤18).
ainda existente, que possa de algum “Costeletas de borrego panadas” (¤26) em
práticos e públicos, frenética foi a modo simbolizar esse tempo que quatro unidades, bonitas e boas mas a precisa-
abertura, pelo menos nas grandes estamos a relembrar. Voto sem rem do contraste do sumo de limão, batatinhas
cidades, de novos restaurantes. grande hesitação no Pap’Açorda. idênticas às já referidas, esparregado honestíssi-
Movimento que já vinha da década Inaugurado a 5 de março de 1981, por mo. Não é a melhor técnica para o valorizar
anterior, quando muitos retornados obra e graça de Fernando Fernandes (assado no forno, sempre, ou guisado, consoan-
das ex-colónias se lançaram na restau- (transmontano, ex-estudante de te as peças), todavia o “cabrito frito” (¤19,50)
ração como modo de ganhar a vidi- Economia e então coproprietário deu o melhor que é possível em fritura.
nha. O boom adquiriu novos contor- dum restaurante alentejano na Costa Doçaria vasta e sugestiva, com os velhos clássi-
nos, protagonizado por artistas de da Caparica) e José Miranda (ex-comis- cos “mousse de chocolate” (¤7) e “tarte de
belas e malas-artes, mundanos(as), sário da TAP e ex-guia de turismo, de ameixas pretas” (¤7) provados e aplaudidos.
futebolistas, modelos, trapistas, can- raízes beirãs), auxiliados por Manuel Carta de vinhos com datação, muitos a copo e
tantes, curiosos, gente d’algo, merca- Reis (capitão da noite bairro-altina e com garrafas no total de 42 tintos, 25 brancos
dores, além, claro, dos profissionais não só), desde logo caiu no goto de e 6 borbulhentos. O serviço que me coube,
bem ou mal preparados. À inevitabili- uma certa clientela na vanguarda da eficiente e simpático.
dade de refeiçoar perto do local de movida lisboeta então centrada no Caro, sim, mas assim como assim já leva trinta
trabalho, em tempo escasso e dinhei- Bairro Alto, tornou-se perduravelmen- e um anos de justificado e merecido sucesso. R
ro curto, correspondeu a importação te um local de culto e, sobretudo,
da fast-food aliada a essa moderna como lá se comia muito bem, nunca
versão da manjedoura que é o come- deixou de ser frequentadíssimo. Os leitores podem comentar
-em-pé. Assim surgiram burundangas Revisitemo-lo, pois. Fisicamente está e votar este e outros restaurantes
em www.escape.pt
deploráveis, já que não fomos capa- na mesma, desde a remodelação da

REVISTA 16/JUN/12
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///VINHOS

POR
JOÃO PAULO
MARTINS

ANOS 80
O FIM DE UMA ERA
As convulsões que se seguiram ao 25 vam ao assunto) e idas ao estrangeiro para como João Portugal Ramos, José
de abril de 1974 não foram propria- incentivar a exportação. Aos poucos foram Maria Soares Franco ou Manuel
mente vantajosas para o sector do nascendo os primeiros produtores-engarrafa- Vieira começavam a elevar o pata-
vinho e por isso, ao entrar na década dores, como Luis Pato e Miguel Champali- mar da qualidade dos vinhos, o perío-
de 80 estávamos na ressaca dos anos maud, e as empresas renovaram-se, marcando do exclusivista das cooperativas e das
loucos, da Reforma Agrária, das um lugar no nosso panorama, em alguns casos empresas bairradinas chegava ao fim.
144 ocupações, do fim de vários projetos até hoje, como o Esporão. A década acaba por As Caves São João atravessaram um
agrícolas que tiveram de ser refunda- conhecer também o fim de uma era, de um longo deserto e muitas casas fecha-
dos quando as propriedades foram período longo em que os vinhos das adegas ram ou perderam carisma, como as
devolvidas aos antigos donos. Por cooperativas eram o baluarte das várias re- Caves Império, Borlido, Barrocão,
isso a década não foi de grandes giões onde estavam implantadas; na época Fundação, Montanha, só para citar
inovações. Essa avalancha inovadora faziam furor os Garrafeira dos Sócios de Re- algumas. Mas o final da década foi
vamos guardá-la para a década de guengos, os rótulos de cortiça da Cooperativa um período em que se preparou o
90, como a seu tempo veremos. Mas de Borba ou os Garrafeira da Cooperativa nosso novo mundo: os projetos a
o período que vai de 1983 a 1992 não do Redondo, isto no Alentejo. Já na serem subsidiados pela CEE
deixou de ser muito interessante. E Bairrada foi a década de ouro da começaram a ser traçados
HEGA
um deles não tem que ver com a Cooperativa de Vilarinho do Bairro, VINHO C NAIS e, entre novos plantios e
produção mas sim com o nascimen- de onde saíram vinhos ultrafamo- AOS JOR DO DE novas adegas, preparou-
PERÍO
to, ainda que tímido, do interesse da sos. Da região chegaram-nos FOI NO U E N A S- -se o terreno para o
2Q
1983-199 DA QUE
imprensa pelo vinho. Foi assim que vinhos excelentes, da colheita de CEU , A IN terramoto da década de
ES-
O INTER
semanários como “O Jornal” e o 1985 e, sobretudo, da de 1988, TÍMIDO, PRENSA 90, quando nada ficou
Expresso começaram a dedicar espa- pequena mas ultraconcentrada SE DA IM INHO igual ao que era. No vinho
PELO V
ço aos assuntos do vinho, normalmen- colheita que ainda hoje nos surpreen- do Porto a década ficou
te associados à gastronomia e à de. As empresas armazenistas da região marcada por duas declarações
crítica de restaurantes. Foi nesta faziam furor entre os apreciadores. Eram clássicas de vintage, o de 1983 e o
década que nasceu o “Jornal dos muitas, mas de entre elas destacavam-se as de 1985, esta última assombrosa, mas
Vinhos” e a “Revista de Vinhos”, e Caves São João, com os seus ícones Frei João, que se veio a revelar cheia de proble-
que se começou a ouvir falar de Porta dos Cavaleiros e Reserva Particular. Era mas. Da declaração generalizada, um
jantares vínicos, apresentações, etc. A uma época de ouro que estava a chegar ao vinho sobressaiu como um tesouro:
produção começou então a perceber fim, como chegara ao fim o império colonial, Fonseca 85, um autêntico diamante
que ao interesse do público havia que que durante décadas servira de esponja e que que, polido pelo tempo, está agora
responder com publicidade e apresen- tudo (vinicamente falando) absorvia. À medida (finalmente) a começar a dar um boa
tações das novidades à imprensa que alguns produtores equacionavam tornar- prova. Mas dará ainda nos próximos
(ainda que uma mão chegasse para -se engarrafadores e deixavam de ser sócios 50 anos. Que sorte para a minha
enumerar os jornais que se dedica- das adegas, à medida que jovens enólogos, descendência... R

REVISTA 16/JUN/12
SELEÇÃO * QUINTA DO CARMO
GARRAFEIRA TINTO 1987
DA DÉCADA
Região: Alentejo
Castas: Alicante Bouschet,
Aragonês e Trincadeira
Produtor: Júlio Bastos
Preço: €35
Último grande tinto do Carmo
antes da chegada dos france-
* PORTA DOS CAVALEIROS ses do Château Lafite, enolo-
COLH. SELEC. TINTO 1985 gia de João P. Ramos. Impres-
siona como hoje ainda se
Região: Dão mantém tão poderoso e
Castas: várias bebível. É um vinho que
Produtor: Caves São João deixa saudades, quando se vê
Preço: €27,50 a garrafa a acabar.
Não era difícil encontrar melhor.
Este tinto, produzido em grandes Dica: Pode ser polivalente e
quantidades era um must. E ligar bem com queijos ou
continua em muito boa forma. enchidos alentejanos.
Dica: muito elegante e agora
pouco encorpado, poderá ligar
bem com pratos delicados e,
melhor, com sobremesas de
ovos-moles.

145

* FONSECA VINHO
DO PORTO VINTAGE 1985

Região: Douro
Castas: vinhas velhas de castas
misturadas
Produtor: Fonseca Guimaraens
Preço: €160
* LUIS PATO VINHAS Este colosso exige que a
VELHAS TINTO 1988
garrafa fique 2 dias na posição
Região: Bairrada vertical antes da decantação,
Casta: Baga que é obrigatória. As borras
Produtor: Luis Pato que ficam guarde-as para
Preço: €29,50 temperar perdizes estufadas.
Durante anos foi um tinto
difícil mas chegou à atuali- Dica: beba a solo mas a tempe-
dade numa forma surpreen- ratura não deverá ultrapassar
dente, cheio de força e os 16/17º (decantador no frio
vigor, agora amaciado pelo uma hora antes de servir).
tempo.

Dica: este grande tinto


beneficia com decantação
e pode ligar muito bem
com carnes vermelhas
grelhadas ou o leitão à
Bairrada.

OS PREÇOS REFEREM-SE À GARRAFEIRA DE CAMPO DE OURIQUE, EM LISBOA

REVISTA 16/JUN/12
cartas abertas

COMO EU CONTRIBUÍ PARA


A QUEDA DO MURO E PARA
OUTRAS COISAS ASSIM
mas do FMI não são para cumprir... acreditar no poder e na força que os
///COMENDADOR
Claro que o Gorbatchov sabia tudo o que russos tinham na época. Mas a verdade é
///MARQUES
se passava no país. Na época, ele tinha que, dois meses depois da conversa,
///DE CORREIA
uma série de espiões do KGB em Portugal, Cavaco Silva (um senhor magro, que
para não falar do Partido Comunista parecia um manequim da Rua dos Fan-
Onde o nosso Comendador Português, que funcionava como uma queiros, segundo diziam na altura, e
nos dá uma visão da História sucursal do Kremlin, e tinha grandes, tinha sido ministro das Finanças) ganha-
que talvez seja demasiado médios e pequenos intelectuais ao seu va surpreendentemente o Congresso do
pessoal, quiçá não muito real serviço, como o prof. Vital Moreira ou a PSD e punha fim à coligação PS/PSD.
drª Zita Seabra. Por isso, não lhe menti, Esse senhor magro haveria de, mais
A PRIMEIRA VEZ QUE VI Mikhail Gorbat- embora as notícias não fossem nada boas: tarde, transformar-se no Presidente
chov foi no dia 19 de março de 1985, oito — Aquilo vai mal, porque o FMI faz Cavaco Silva que apela à unidade do PSD
dias depois de ele ter sido eleito secretário- muitas exigências, saca-nos o 13º mês e e do PS para, em conjunto com o FMI,
-geral do Partido Comunista da União há muito desemprego. Ainda por cima, o ajudarem o país a ultrapassar a grave
Soviética. Nessa altura, a União Soviética PS e o PSD estão coligados e não há crise em que se encontra.
era um país, ser comunista era uma oposição! No entanto, apesar de Portugal estar
alternativa de poder e ser secretário-geral — Isso é terrível — atalhou o Gorbatchov numa situação muito delicada, houve
do Partido Comunista valia mais do que — Sempre defendi que deve haver eleições que o tal Cavaco Silva ganhou. E
146 ser outra coisa qualquer naquele país. oposição, desde que seja ineficaz, claro. E depois, como acontece em tantos países
Gorbatchov era, pois, um tipo importante. o que pensas fazer para pôr fim a isso? democráticos, houve mais eleições, desta
Nesse dia, virou-se para mim e disse: — Nada — respondi-lhe — Não tenho vez presidenciais, que foram ganhas pelo
— Ó Comendador, como vão as coisas ideias... senhor de meia-idade que até então fora
em Portugal? — Eu trato disso — respondeu-me o primeiro-ministro. Portugal teve um
Portugal era na altura um país que russo com ar confiante. grande período de desenvolvimento,
estava sob a tutela do FMI e cumpria um Podem dizer que é coincidência, ou não fazendo muitas Parcerias Público-Priva-
programa de ajustamento das e contraindo imensa
financeiro porque, por dívida.
algum motivo estranho, Mas o mais engraçado é
tinha gasto de mais no que o meu amigo Gorbat-
passado. O Governo era de chov telefonou-me três
coligação entre o PS e o anos depois a perguntar se
PSD e o primeiro-ministro estava tudo bem e a pedir
era um tipo de meia-idade ideias para melhorar a sua
chamado Mário Soares, popularidade. E eu dei-lhe
que já tinha sido primeiro- uma péssima sugestão:
-ministro duas vezes, — Acaba com o muro de
ministro dos Negócios Berlim e ganhas imensa
Estrangeiros umas cinco e popularidade!
era o fundador do PS. Ele concordou. Mas quem
ILUSTRAÇÃO DE CRISTIANO SALGADO

Curiosamente, esse tipo de havia de dizer que o


meia-idade, que a esquer- Soares e o Cavaco ainda
da abominava, tornou-se, aí estão para as curvas e
mais tarde, o Presidente que ele, a quem se deve
Mário Soares e, mais tarde uma das coisas mais
ainda, o grande e vetusto decentes do mundo, ia
anticapitalista Mário Soa- acabar a fazer anúncios
res que acha que os progra- da Pizza Hut.

REVISTA 16/JUN/12

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