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ANAIS

Apoio/Patrocínio:
III CONGRESSO NACIONAL
E II CONGRESSO INTERNACIONAL
DE LITERATURA E GÊNERO

Da resistência à subversão: corpos que se (trans)formam

10 a 12 de maio de 2017

UNESP – Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖


Câmpus de São José do Rio Preto
IBILCE – Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas

ANAIS

São José do Rio Preto


UNESP/IBILCE
2020
Diretora
Profa. Dra. Maria Tercília Vilela de Azeredo Oliveira
Vice-Diretor
Prof. Dr. Geraldo Nunes Silva

Programa de Pós-Graduação em Letras


Coordenadora: Profa. Dra. Giséle Manganelli Fernandes
Vice-Coordenador: Prof. Dr. Alvaro Luiz Hattnher

Chefia do Departamento de Letras Modernas


Chefe: Profa. Dra. Marilei Amadeu Sabino
Vice-Chefe: Profa. Dra. Cláudia Maria Ceneviva Nigro

Comissão Organizadora
Profa. Dra. Cláudia Maria Ceneviva Nigro Profa. Ms. Geovânia Pereira dos Reis Machado
(Unesp/IBILCE) Profa. Dra. Michelle Rubiane da Rocha Laranja
Profa. Dra. Juliane Camila Chatagnier Garcia (IFSP)
Profa. Dra. Edilene Gasparini Fernandes (FATEC Profa. Dra. Divanize Carbonieri (UFMT)
Rio Preto) Prof. Dr. Flávio Adriano Nantes (UFMS)
Profa. Dra. Maraíza Almeida Ruiz de Castro Profa. Ms. Manoela Caroline Navas
Prof. Ms. Davi Silistino de Souza Prof. Ms. Lucas de Castro Marques
Profa. Suelen Najara de Mello Prof. Ms. Leandro Henrique Aparecido Valentin
Profa. Dra. Maria Cláudia Rodrigues Alves Alberto Oliveira Junior
(Unesp/IBILCE) Profa. Dra. Gisele de Oliveira Bosquesi
Prof. Ms. Fernando Luís de Morais

Organizadores dos Anais


Profa. Dra. Cláudia Maria Ceneviva Nigro Profa. Dra. Juliane Camila Chatagnier Garcia
(Unesp/IBILCE) Prof. Ms. Lucas de Castro Marques
Profa. Dra. Michelle Rubiane da Rocha Laranja (IFSP)

Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Congresso Nacional de Literatura e Gênero (3. : 2017 : São José do Rio Preto, SP)
Anais [do] 3. Congresso Nacional e 2. Congresso Internacional de
Literatura e Gênero [recurso eletrônico] : 10 a 12 de maio de 2017, São José do Rio Preto-
SP / [Organização de Cláudia Maria Ceneviva Nigro ... [et al.]. – São José do Rio Preto :
UNESP/IBILCE, 2020
386p. : il. (algumas color.), tab.

Temática do evento: Da resistência à subversão: corpos que se (trans)formam


E-book
Requisito do sistema: Software leitor de pdf
Modo de acesso:
http://congressoliteraturaegenero.blogspot.com/2020/07/anais-eletronicos.html
ISBN 978-65-990334-2-1

1. Literatura - História e crítica - Teoria, etc. 2. Identidade de gênero na literatura.


3. Análise do discurso literário. I. Congresso Internacional de Literatura e Gênero (2. :
2017 : São José do Rio Preto, SP) II. Nigro, Cláudia Maria Ceneviva. III. Universidade
Estadual Paulista (Unesp), Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, São José do
Rio Preto. IV. Título. V. Da resistência à subversão : corpos que se (trans)formam.

CDU – 8.015

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca do IBILCE


UNESP - Câmpus de São José do Rio Preto
Bibliotecária: Luciane A. Passoni
CRB-8 7302
SUMÁRIO

TÍTULO PÁGINA
Apresentação 7
Cláudia Maria Ceneviva Nigro
Juliane Camila Chatagnier Garcia
Michelle Rubiane da Rocha Laranja

Investigação sobre processos de subjetivação e dos discursos da 8


sexualidade e religião em jovens homossexuais
Leonardo Estrada de Aguiar
Henrique de Oliveira Lee

Deus Faz, o diabo tempera – relato de processo criativo 15


Tauane Nunes Alamino

Cecília Meireles e a literatura brasileira de autoria feminina 26


Lorena Santos de Araújo

A literatura negro-africana de expressão francesa: uma nova forma de 36


resistência ao colonialismo
Providence Bampoky

Retrato de rapaz, de Mário Cláudio: homoerotismo e efabulação 46


Renan Augusto Barili

Análise sobre lugares sociais destinados às mulheres em Anoiteceu no 58


Bairro de Natália Correia
Juliana Coetti Basso

Masculinização, silenciamento e objetificação das mulheres na Segunda 69


Guerra Mundial
Fernando Ribas Camargo
Jacob dos Santos Biziak

O fazer lygiano em a Disciplina do amor: leituras possíveis e/ou 79


interditadas
Fabrícia Rodrigues Carrijo

A autoridade materna na escrita negra feminina 88


Consoelo Costa Soares Carvalho

Discutindo o conceito de Mammy estadunidense com personagens negras 101


em A resposta (2015) de Kathryn Stockett
Luiz Henrique dos Santos Cordeiro
Prisão e empoderamento: o erotismo na paródia bíblica de Saramago 111
Bruno Vinicius Kutelak Dias

Violência contra a mulher negra escravizada: um estudo de Um defeito de 122


cor
Laís Maíra Ferreira

A homossexualidade no conto O segredo de Brokeback Mountain 132


Antony Eduardo Galvão
Marly Catarina Soares

George Sand e as Transformações da Nova Mulher do Século XVIII 142


Dolores Aparecida Garcia
Simone Sanches Vicente Morais
Henrique de Oliveira Lee
Lucy Ferreira Azevedo

A representação do universo feminino na distopia Feios (2016), de Scott 151


Westerfeld
Luciana Ferreira Leal

Anaïs Nin e o despertar erótico de suas personagens transgressoras 162


Renata da Silva Leite
Eliana Alda de Freitas Calado

A representação do gênero feminino no romance O casamento da minha 172


mãe (2005), de Alice Vieira
Jucimar Lopes

A Bolsa Amarela, de Lygia Bojunga Nunes: a representação da infância e a 182


questão identitária
Thais Oliveira Kalil Modesto
Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira

Inversão de arquétipos em Jogos vorazes: a posição de herói assumida pela 191


personagem feminina Katniss Everdeen
Guilherme Augusto Louzada Ferreira de Morais

O eu femino na obra Debaixo da minha pele de Doris Lessing 200


Simone Sanches Vicente Morais
Dolores Aparecida Garcia
Henrique de Oliveira Lee

O papel e a escrita: um leitura de ―O Papel de Parede Amarelo‖, de 210


Charlotte Perkins Gilman
Lucianne Christina Fasolo Normândia Moreira

A condição feminina do Oitocentos, nas páginas do semanário ―O sexo 223


feminino‖
Aparecida Maria Nunes
Literatura e jornalismo no Oitocentos: o discurso da poetisa Narcisa 238
Amália em favor da instrução intelectual da mulher, no semanário O sexo
feminino
Nataly Rafaele Ternero
Aparecida Maria Nunes

A escrita de Natália Correia: rasura e subversão em D. João e Julieta 250


Andrezza Jaquier Pigozzo de Oliveira

Corpos violados, corpos libertos: uma leitura de A cabeza de Medusa, de 265


Marilar Aleixandre
Karina de Oliveira

Relações de poder em Breath, eyes, memory de Edwidge Danticat: o 276


agenciamento das personagens femininas
Ana Flávia de Morais Faria Oliveira

De Juliana, Matilde e Juracis: um olhar sobre as mulheres do universo 285


literário de Dinorath do Valle
Vera Lúcia Guimarães Rezende

Gênero e violência em o remorso de baltazar serapião, de valter hugo mãe 295


Penélope Eiko Aragaki Salles

O espaço como vetor de construção do sentido em ―Linda, uma história 305


horrível‖, de Caio Fernando Abreu
Suzel Domini dos Santos

Cecília Meireles: entre a poesia e a tradução 315


Jacicarla Souza da Silva

A performatividade como empoderamento subalterno na personagem 325


Luisa Rey e Robert Frobisher em Cloud Atlas, de David Mitchell
Davi Silistino de Souza

Corpo escrito – a mulher erótica: a poesia de Maria Teresa Horta 335


Natália Salomé de Souza
Vinícius Carvalho Pereira

A feiura física feminina na sátira de Afonso X 345


Vanessa Giuliani Barbosa Tavares

Capitu e Lavínia: duas mulheres, um mesmo destino? 355


Adriana da Costa Teles

A escravidão sobe ao palco: uma possível leitura da questão de gênero nas 363
peças Mãe e O Demônio Familiar de José de Alencar
Maria Domingos Pereira Ventura
Angela Maria Rubel Fanini
Liberdade e submissão: a inversão de papéis ―femininos‖ e ―masculinos‖ 374
em ―La escuela de la carne‖ de Yukio Mishima
Bruna Wagner, Henrique de Oliveira Lee
Apresentação

Premissas sobre gêneros claramente definidos para homens e mulheres não são
sustentadas na lógica contemporânea. O gênero pode ser construído por meio de uma
repetição de atos estilizados em contextos específicos. Os termos masculinidade e
feminilidade podem não se referir a um fator constitutivo do gênero; podem ser vistos
como diferenças socialmente impostas e hierarquizadas pelo androcentrismo e
misoginia. Atualmente, somos o que reivindicamos. Representações são solicitadas. O
gênero é ―definido‖ quando alguém necessita preencher / dar sentido a sua própria
existência, na maioria das vezes por meio de modelos de sujeitos fixos. A lógica é
política, não é? Tais afirmações objetivam abordar o vasto terreno onde se implantarão
temas relativos ao gênero e suas ligações com a literatura e a linguagem.
Desse modo, considerando todas as informações e perspectivas debatidas, as
discussões de gênero estão encaminhando para a pluralidade, desligando-se de
dualidades arcaicas. O objetivo do evento foi, em suma, estimular o livre debate e o
compartilhamento de ideologias acerca do gênero.
Nossos estudos sobre gênero na literatura existem há mais de uma década, com o
objetivo de apresentar ideias, maneiras de pensar além do padrão sexista, no qual nos
encontramos imersos. Apesar de haver muitos grupos pesquisando gênero pelo Brasil,
essa discussão ainda se mostra em desenvolvimento na região de São José do Rio Preto
e no Estado de São Paulo. A fim de trazê-las aos nossos alunos e a toda a comunidade
envolvida, idealizamos todo o projeto de interfaces entre literatura e gênero. O que
iniciou como o I Congresso Nacional de Literatura e Gênero, teve sua terceira edição,
dando continuidade à proposta de âmbito internacional, envolvendo pesquisadores de
todo o país e do mundo.
O III Congresso Nacional e II Congresso Internacional de Literatura e Gênero,
sob o tema ―Da resistência à subversão: corpos que se (trans)formam‖, realizado na
Unesp/IBILCE, em 2017, foi palco de profícuo debate para diversas pesquisas que
procuram questionar os padrões e trazer, para a leitura e interpretação de obras
literárias, pontos de vista plurais acerca das questões em torno do tema do evento. Os
resultados de alguns desses trabalhos estão aqui disponíveis para o livre
compartilhamento de ideias, reforçando a pluralidade dos estudos desenvolvidos.
Boa leitura!

Cláudia Maria Ceneviva Nigro (Unesp/IBILCE)


Juliane Camila Chatagnier Garcia (Unesp/IBILCE)
Michelle Rubiane da Rocha Laranja (IFSP)

7
Investigação sobre processos de subjetivação e dos
discursos da sexualidade e religião em jovens
homossexuais
(Investigation about the subjetivation process and the speeches of sexuality
and religion in homossexuals youth)

Leonardo Estrada de Aguiar1, Henrique de Oliveira Lee2


1-2
Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT)

leonardo_estrada_aguiar@hotmail.com; holiveiralee@gmail.com

Abtract: This work is part of a research Project, which is still in progress, and aims to find out
the subjetivations process of homossexuals christians youth by semi-structured interview, in a
purpose of understanding, through the experiences participant‘s reports how happens the
articulations between sexual orientation and religious orientation, as well as the elements that
allows the individual to make such arrangement. Once, at first, both the religious speeches
about homosexuality, and the speeches articulated by LGBT movements related to
christianism are antagonistic, it‘s necessary to think about the mutiples relations and
arrangments make it out individually by any subject, considering especially the way that
everyone combines these elements.
Keywords: Subjetivation; Homosexuality; Religion; Speech; Psichology.

Resumo: O presente trabalho é parte de um projeto de pesquisa, que ainda se encontra em


desenvolvimento, e tem por objetivo averiguar os processos de subjetivação de jovens cristãos
homossexuais por meio de entrevistas semiabertas, no intuito de apreender, através dos relatos
de experiências dos participantes como se dá a articulação entre a orientação sexual e a
orientação religiosa, bem como os elementos que permitem a cada indivíduo a realização de
tal arranjo. Uma vez que, à princípio, tanto os discursos religiosos sobre a homossexualidade,
quanto os discursos articulados pelos movimentos LGBT com relação ao cristianismo são
antagônicos, faz-se necessário pensar sobre as múltiplas relações e arranjos realizados
individualmente por cada sujeito, considerando de modo especial a maneira como cada um
realiza as combinações destes elementos.
Palavras-chave: Subjetivação; Homossexualidade; Religião; Discurso; Psicologia.

Compreende-se que toda prática humana se constitui como uma prática


discursiva, no sentido de articular elementos dispersos da realidade de modo que se
torne possível atribuir sentido a partir destas conexões, e é nesta relação que cada
indivíduo se constitui naquilo que se denomina subjetividade. O contexto histórico,
religioso, familiar, econômico, social, cultural, entre outros, compõe o universo de
possibilidades que oferecem a cada indivíduo um conjunto de elementos passíveis de
serem combinados de inúmeras maneiras.
É nesta articulação que ocorrem os chamados processos de subjetivação, isto é,
os processos que se referem ao modo como cada um se compreende e se constitui como
um sujeito legítimo enquanto parte da relação sujeito-objeto, no qual o próprio se
contém em ambas as partes de tal relação (CASTANHEIRA, 2012). Modos estes que
são produzidos historicamente, o que significa dizer que estes se modificam no decorrer
da história e são particulares a cada período (CARDOSO, 2005).

8
Desse modo, quais são os fatores que levam alguns a associar de uma
determinada forma e não de outra? Quais as condições que propiciam que alguns
sujeitos efetuem combinações de exclusividade entre elementos concorrentes? E quais
os aspectos que permitem a produção de subjetividades capazes de realizar a síntese de
elementos antagônicos entre si? Tais questões orientam o desejo de compreender a
construção de subjetividades homossexuais em relação ao discurso cristão.
Antes de mais nada parece-nos importante iniciarmos a discussão pensando
primeiramente a relação dos discursos sobre a sexualidade a partir do uso dos termos
que hoje em dia são comuns. Neste caso, parece-nos essencial prestarmos atenção nos
sentidos e significados histórica e socialmente construídos acerca dos termos
relacionados à sexualidade.
Portanto, parece ser necessário saber que uso dos termos heterossexualidade e
homossexualidade é recente, e tornam-se conhecidos a partir do artigo escrito pelo Dr.
Kiernan em 1892 (KATZ, 1996).Não que o tema da sexualidade não ocupasse lugar de
importância nos debates anteriores, muito pelo contrário, a sexualidade é tema de
discussões desde os filósofos da Grécia antiga (FOUCAULT, 1999; FOUCAULT,
1998a; FOUCAULT, 2005).
O primeiro uso conhecido da palavra heterossexual nos Estados Unidos data de
maio de 1892, em um artigo do Dr. James G. Keirnan, publicado em um jornal de
medicina de Chicago (KATZ, 1996). Nesse contexto, este termo não tinha o significado
de sexo normal, mas se referia a uma perversão sexual, uma manifestação anormal da
sexualidade. Os heterossexuais de Kiernan eram associados a uma condição mental de
―hermafroditismo psíquico‖, isto é, possuíam a atração sexual masculina por mulheres e
ao mesmo tempo a atração sexual feminina por homens. Estes heterossexuais
apresentavam desejo sexual por ambos os sexos, aquilo hoje muito possivelmente
chamaríamos de bissexualidade.
O artigo do Dr. Kiernan ainda possui a mais antiga publicação conhecida do
termo homossexual nos Estados Unidos, que para ele se tratava de pessoas com ―estado
mental geral do sexo oposto‖, definidos claramente como invertidos.
Outro aspecto importante de se perceber no trabalho de Kiernan é que apesar da
novidade presente em seu estudo com o uso dos termos heterossexual e homossexual,
seu estudo ainda era orientado pelo antigo ideal de sexo como atividade eminentemente
reprodutiva e mantenedora da espécie.
O uso do termo heterossexual tal qual conhecemos tem sua origem nos estudos
de Richard von Krafft-Ebing (KATZ, 1996). Em 1983, o psiquiatra vienense Krafft-
Ebing publica seu livro Psychopathia Sexualis with Especial Reference to Contrary
Sexual Instinct: A Medico-Legal Study, tornando-se o mais famoso trabalho sobre as
patologias sexuais no ocidente.
Para Krafft-Ebing, o heterossexual possuía o instinto sexual reprodutivo, erótico
e sempre de sexo diferenciado, e ao contrário de Kiernan, não possui atração sexual
pelos dois sexos, mas somente por um e o oposto. Também orientado pelo ideal sexual
reprodutivo, seu estudo retrata a heterossexualidade como a normalidade erótica, uma
vez que apenas em tal configuração seria possível a reprodução. E, portanto, seu termo
gêmeo, o homossexual, significaria o desejo pelo mesmo sexo, patológico por não ser
reprodutivo.
De acordo com Katz, o

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―uso dos termos hetero-sexual e homo-sexual ajudou a tornar a diferença entre os sexos
e o eros as características distintivas básicas de uma nova ordem social, linguística e
conceitual do desejo. Seus hetero-sexual e homo-sexual ofereceram ao mundo moderno
dois erotismos de sexo diferenciado, um normal e bom, outro anormal e ruim, uma
divisão que viria a dominar a nossa visão do século XX do universo sexual‖ (1996, p.
40).

Neste sentido, estudos como estes disseminaram através do discurso biomédico


padrões de ―normalidade‖ sexual, sustentando a ideia de uma determinada orientação
sexual fisiológica normal em detrimento de outra doentia, reiterando o binarismo
sadio/patológico, normal/anormal. Outrossim, no século XX esta bioética determinista
contribuiu no sentido de consolidar a noção de uma heterossexualidade como um fator
irredutível da natureza.
Ainda sobre algumas contribuições aos estudos sobre a sexualidade, Michel
Foucault, em seus três volumes de A história da sexualidade (FOUCAULT, 1999;
FOUCAULT, 1998a; FOUCAULT, 2005), discorre primorosamente sobre a
arqueologia do exercício das práticas sexuais, no sentido de explanar como a
sexualidade e os discursos a seu respeito foram ao longo da história se modificando e se
constituindo de modo a consolidar o tecido das relações sociais tendo em vista o poder
com o qual tais relações estão imbuídas.
O mesmo autor ainda pontua, no decorrer dessa obra, as implicações da ascensão
ao poder político e econômico da Igreja Católica nos processos de subjetivação. Os
dispositivos de controle utilizados pela igreja atuam de forma a circunscrever os modos
de produção de subjetividade, em consonância aos dogmas e crenças religiosos que por
sua vez são responsáveis em delinear aquilo que é, onde é e de que forma é ou não
permitido, se configurando como uma tecnologia de si, tal como explica Foucault
(FOUCAULT, 1988b).
Aqui, entende-se como tecnologia de si aquelas

―[...] que permitem aos indivíduos efetuar, com seus próprios meios ou com a ajuda de
outros, um certo número de operações em seus próprios corpos, almas, pensamentos,
conduta e modo de ser, de modo a transformá-los com o objetivo de alcançar um certo
estado de felicidade, pureza, sabedoria, perfeição ou imortalidade‖ (FOUCAULT,
1988b, p. 323-324).

Assim, o discurso e práticas cristãs irão oferecer ao sujeito instrumentos e um


espaço de criação/transformação de si, no sentido de contribuir, e às vezes intervir na
constituição do sujeito em prol de um ideal, de um paraíso prometido.
Na sociedade ocidental é a moral judaico-cristã que fundamenta a organização
social, e é a partir de seus critérios morais que se é determinado aquilo é certo e aquilo
que é errado. Não obstante, a sexualidade também possui uma normativa moral com
relação à forma correta de seu exercício que consistiria na heterossexualidade, querida
por Deus desde a criação e por isso a expressão natural da sexualidade humana
(CECCARELLI, 2008).
Katz (1996, p. 25) ainda nos aponta que ―geralmente supomos que a
heterossexualidade é tão antiga quanto à procriação e a luxúria de Adão e Eva, eterna
como o sexo e a diferença entre os sexos e daqueles primeiros seres humanos.
Imaginamos que é essencial e imutável e não tem história.‖ Tal crença, iminentemente
ideológica, deve ser compreendida como uma prática discursiva, no sentido de ser uma

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produção humana de um conhecimento a partir de uma regularidade de elementos
dispersos, que ganham sentido na relação entre si, e que só poderiam ser produzidas
numa realidade específica que possibilitasse tal articulação, assegurando sua
legitimidade. O que permite a afirmação de que a heterossexualidade é uma também
invenção (KATZ, 1996)!
Essa ética heterossexual está tão introjetada em nossa forma de pensar que nunca
problematizamos porquê as pessoas se atraem por sexos opostos, da onde vem esses
sentimentos, enfim, nunca encaramos isso como um problema pois, pelo contrário, a
temos como norma natural da humanidade.
Ao sustentar a existência de uma heterossexualidade natural no ser humano, o
imaginário judaico-cristão cristaliza a noção de uma manifestação sexual absoluta,
como se esta fosse uma realidade concreta, tornando, então, possível categorizar,
classificar e etiquetar as práticas sexuais (CECCARELLI, 2008). Com base em tal
imaginário, conclui-se que toda a expressão sexual que não se encaixe ao ―natural‖ é
desviante, patológica, perversa, pecaminosa (COSTA, 1992).
De forma genérica, é possível encontrar nas igrejas cristãs do Brasil três tipos de
posturas com relação à homossexualidade: 1) a rejeição da homossexualidade,
concebendo-a como pecaminosa, antinatural e em alguns casos até demonizando-a,
sendo o arrependimento e a mudança necessários para que estas pessoas sejam inseridas
dentro da igreja; 2) a aceitação da homossexualidade como uma condição inferior e
menos digna que a heterossexualidade; 3) e, a aceitação da homossexualidade como
uma expressão tão normal quanto a heterossexualidade (MESQUITA; PERUCCHI,
2016). O posicionamento mais comumente encontrado e disseminado no discurso
religioso é o primeiro, que justifica as igrejas cristãs em suas práticas regulatórias e
corretivas da homossexualidade.
Contudo, hoje é possível encontrar as chamadas Igrejas inclusivas que acolhem
esse público rejeitado pelas denominações cristãs mais tradicionais e propõem uma
leitura bíblica onde a orientação sexual e a diversidade de gênero não se apresentam
como fatores dicotômicos. Muitas vezes, até os próprios líderes destes grupos religiosos
se afirmam enquanto pertencentes do grupo LBGT, o que também contribui no processo
de identificação com os fiéis.
O discurso religioso fundamentalista sobre a homossexualidade é muitas vezes
embasado por trechos bíblicos interpretados de forma literal e oportunista, uma vez que
não são considerados o contexto histórico e cultural dos escritos, assim como são
utilizados de forma isolada com a finalidade de condenar e segregar um grupo
específico.
Outras pesquisas ainda, como a de Natividade (2007), demonstram que sujeitos
homossexuais inseridos em denominações cristãs passam por um processo especial de
ajuda e aconselhamento, em que se entende que na homossexualidade

―É certo que uma luta espiritual ocorre contra esse ―desvio de comportamento
involuntário‖, algo que não escolheu. Uma compulsão, uma doença, uma coisa que não
é natural, uma prática abominada por Deus, uma proibição bíblica, um comportamento
que pode estar ligado a ausência paterna, a criação no meio de mulheres, à influência
espiritual e maldições, são algumas das justificações baseadas em valores religiosos‖
(NATIVIDADE, 2007, p. 89-90).

Neste cenário, esta pesquisa, ainda em curso, tem por objetivo principal
investigar os modos de produção da subjetividade em jovens cristãos homossexuais,

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buscando compreender as articulações discursivas acerca da sexualidade e da religião
que permeiam suas vivências, no sentido de pontuar aspectos significativos para estes
sujeitos em seus processos de constituição enquanto indivíduos, considerando, é claro, a
indissociabilidade deste do âmbito sócio-histórico-cultural.
De modo geral, acredita-se que serão encontradas três formas de síntese entre a
vivência da orientação homossexual e a prática religiosa: a) jovens que se abstenham
das práticas religiosas pela realização da sua orientação sexual; b) jovens que se
abstenham das práticas sexuais em detrimento da participação religiosa; ou ainda, c)
jovens que conciliem estas duas instâncias, sustentando tanto a sua prática sexual
homoerótica quanto as práticas religiosas.
Outra hipótese levantada é a produção de sentimento de culpa nestes indivíduos,
uma vez que os princípios cristãos consideram a homossexualidade como um pecado, e
passível da punição divina. Ceccarelli (2008, p. 83), a partir da sua experiência clínica,
relata que ―Quase sempre, entretanto, o sofrimento devido ao fato de ser homossexual
advém muito mais de questões sociais e medos – ―o que os outros vão dizer‖, ―se os
meus pais ou amigos souberem‖, da culpa, da discriminação... – do que da sexualidade
em si.‖ Tal aspecto deve ser entendido como um importante fator na produção de
sofrimento psíquico para o qual se voltam as intervenções psicológicas.
Para a coleta de dados será utilizado a metodologia de entrevistas em grupo,
mais especificamente os grupos focais. Estes consistem numa abordagem qualitativa de
coleta de dados derivada das entrevistas grupais e que se baseia na comunicação e na
interação entre os participantes. O principal objetivo da utilização dos grupos focais é
reunir informações detalhadas sobre um tópico específico, a partir de um grupo de
participantes selecionados e que possam contribuir no estudo ao qual se propõe, no
sentido de coletar informações que possam contribuam no entendimento acerca das
percepções, crenças, atitudes sobre um tema ou um fenômeno específico (BONFIM,
2009).
Por se tratar de uma pesquisa classificada como exploratória, no sentido de
buscar compreender o processo de construção da subjetividade homossexual cristã que
se dá num universo de infinitas possibilidades que se articulam de modo muito
particular para cada sujeito, acredita-se que o trabalho com grupo seja efetivo para a
presente pesquisa dado a sua aplicabilidade no que se trata ao baixo custo de recursos
financeiros, assim como, no tocante a eficiência para a coleta de informações que
ajudam a compreender o que as pessoas consideram acerca de uma experiência em
comum. Nesse sentido, pelo caráter exploratório da pesquisa, a utilização de tal método
parece mais válida ainda, pois contribui no sentido de propiciar a partir de seus
resultados a formulação de questões mais aprofundadas acerca de algum problema ou
temática.
Ainda, segundo pesquisas (BORGES; SANTOS, 2005; BONFIM, 2009),
acredita-se que o trabalho com grupos contribua na compreensão do problema de
pesquisa por meio das informações que as interações entre os sujeitos são capazes de
fornecer, sendo esta uma das vantagens na utilização de tal metodologia.
Os dados coletados nos grupos focais serão analisados a partir da metodologia
da análise de discurso. No entanto, entende-se que na realidade a análise de discurso não
se trata exatamente de uma metodologia, mas sim de uma disciplina de interpretação
que consiste na intersecção entre epistemologias distintas da linguística, do
materialismo histórico e da psicanálise (CAREGNATO; MUTTI, 2006).

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Pretende-se trabalhar com a análise de discurso, pois, de acordo com Gregolin,
acredita-se que:

―O discurso é um suporte abstrato que sustenta os vários textos (concretos) que


circulam em uma sociedade. Ele é responsável pela concretização, em termos de figuras
e temas, das estruturas semio-narrativas. Através da Análise do Discurso é possível
realizarmos uma análise interna (o que este texto diz? Como ele diz?), e uma análise
externa (por que este texto diz o que ele diz?)‖ (1995, p. 17).

Assim, trata-se do entendimento de que o sentido que compõe um discurso não


está no termo, na palavra em si, antes, trata-se de algo simbólico, que não é fechado em
si, que não é exato. Uma vez que se propõe uma compreensão mais ampliada da
construção de sentido de um enunciado, é inevitável buscar uma análise que não
relacione a situação capaz de tal discurso ser articulado.
Dessa forma, segundo as palavras de Gregolin,

―Empreender a análise do discurso significa tentar entender e explicar como se constrói


o sentido de um texto e como esse texto se articula com a história e a sociedade que o
produziu. O discurso é um objeto, ao mesmo tempo, linguístico e histórico; entendê-lo
requer a análise desses dois elementos simultaneamente‖ (1995, p. 20).

Acredita-se, portanto, que a utilização da análise do discurso possa oferecer os


recursos e as ferramentas necessárias para a compreensão do objeto de estudo da
presente pesquisa, a saber a produção da subjetividade e os discursos sobre a
homossexualidade e a religião cristã, uma vez que partindo da complexidade de tal
temática será necessária uma metodologia que permita a contextualização socio-
histórica dos conteúdos trazidos pelos sujeitos de pesquisa.
Espera-se que a realização da pesquisa seja eficiente na análise das
possibilidades de síntese entre estes dos elementos que contribuem no processo de
subjetivação do público alvo deste estudo, no sentido de alcançar os objetivos propostos
e verificar as hipóteses levantadas, e principalmente levantando novos questionamentos
que promovam um debate construtivo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BORGES, C. D.; SANTOS, M. A. Aplicações da técnica do grupo focal: fundamentos
metodológicos, potencialidades e limites. Rev. SPAGESP, Ribeirão Preto, v. 6, n. 1, p.
74-80, jun. 2005.
CARDOSO JR., Hélio Rebello. Para que serve uma subjetividade? Foucault, tempo e
corpo. Psicol. Reflex. Crit., Porto Alegre, v. 18, n. 3, p. 343-349, Dec. 2005.
CAREGNATO, R. C. A.; MUTTI, R. Pesquisa qualitativa: análise de discurso versus
análise de conteúdo. Texto Contexto Enferm. Florianópolis, v. 15, n. 4, p. 879-84. Out-
Dez, 2006.
CASTANHEIRA, M. A. A. F. Processos de sujeição e dessujeição: a constituição do
sujeito em Michel Foucault. 2012. 96 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) –
Faculdade de Filosofia, Universidade Federal de Goiás, Goiânia. 2012.

13
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14
Deus Faz, o diabo tempera – relato de processo criativo
(God does, devil seasons – creative process report)

Tauane Nunes Alamino1


1
Pesquisadora Independente com a Cia. Do Santo Forte de Artes Cênicas

tauanealamino7@gmail.com

Abstract: The work in question is about the creative process of the play ―God does, the devil
seasons‖, in which it was created through literary, musical, autobiographical, imagery and
archetypal references including the Orishas and Pombagiras of Umbanda. In order to carry out
the work, we did personal reports on the themes inherent to the work, visits to Candomble‘s
Yard, participation and execution of Dances of Orishas courses, concepts of theatrical
anthropology and Dances of the Orishas, discussions of gender from the social and religious
point of view on the Pombagiras. The work began during the conclusion of the UEL
Performing Arts course in 2012 and remains with unfolding of the artistic research of the Cia.
Do Santo Forte outside the academic world, now the objective is to continue propagating the
discussion of gender and the role of the archetypes of Umbanda has from the artistic and
social point of view.
Keywords: Pombagira, archetypes of Umbanda, discussions of gender.

Resumo: O trabalho em questão se trata do processo criativo da peça teatral ‗Deus Faz, o
diabo tempera‘, que foi criada através de referências literárias, musicais, autobiográficas,
imagéticas e arquetípicas incluindo os Orixás e Pombagiras da Umbanda. Para realizar o
trabalho fizemos relatos pessoais sobre os temas inerentes ao trabalho, visitas a terreiros,
participação e execução de cursos de Danças dos Orixás, conceitos da antropologia teatral e as
danças dos orixás, discussões de gênero do ponto de vista social e religioso sobre as
pombagiras. O trabalho se iniciou durante a conclusão do curso de Artes Cênicas da UEL em
2012 e permanece com desdobramentos da pesquisa artística da Cia. Do Santo Forte fora do
meio acadêmico, agora o objetivo é seguir propagando a discussão de gênero e a função dos
arquétipos da Umbanda tem dentro do ponto de vista artístico e social.
Palavras-chave: Pombagira; Arquétipos da Umbanda; discussão de gênero.

Introdução
Este artigo aborda o processo criativo da peça teatral ―Deus Faz, o diabo
tempera‖1, da Cia do Santo Forte, que foi criada através de referências literárias,
musicais, autobiográficas, imagéticas e arquetípicas.
Acredito que seja importante contextualizar o meu fazer artístico e acadêmico
como autora, para apresentar um pouco das referências que já aparecem na escrita de
modo quase empírico. Sou atriz-bailarina, bacharel em Artes Cênicas pela UEL –
Universidade Estadual de Londrina, onde iniciei a pesquisa sobre os ―Arquétipos da
Umbanda para o trabalho do ator‖ no ano de 2011, com bolsa CAPES. Dentro da
Iniciação Científica, houve períodos de imersão dentro de terreiros de Umbanda e
cursos e Seminários de Dança dos Orixás com o Mestre Augusto Omolu (1962-2013).
A partir dessa pesquisa e criei a Companhia do Santo Forte Artes Cênicas, que nasceu

1
Teaser ―Deus Faz, o diabo tempera‖: https://www.youtube.com/watch?v=jjPI63JnjRs.

15
com o objetivo de criar trabalhos inspirados na religiosidade afro-brasileira. Dentro
deste coletivo realizei o projeto cultural de Dança dos Orixás realizado em uma escola
pública de São José do Rio Preto pelo Mais Cultura Nas Escolas em 2015 e o mini-
documentário ―Dança dos Orixás – O sagrado que nos move‖2 com lançamento em
2017, a Montagem do espetáculo ―Deus Faz, o Diabo Tempera‖ em 2016, contemplado
pelo Programa Municipal Cultura Para Todos na mesma cidade. Os trabalhos mais
recentes da companhia são a série de performances ―Arreda homem que aí vem
mulher‖3, e o processo criativo do trabalho ―Matrística‖.
Ao tratar da obra que é tema deste artigo, apesar de ser um trabalho que acolhia
outros artistas em um processo colaborativo, me atenho aqui apenas ao meu trabalho
como atriz, que conta além do que criamos coletivamente, com uma pesquisa acadêmica
anterior e posterior ao período de realização do espetáculo teatral.
A princípio o desejo era apenas criar uma intervenção cênica inspirada nos
Orixás e Pombagiras da Umbanda e o conto ―Desenredo‖ de Guimarães Rosa, porém a
pesquisa resultou na necessidade de propor uma reflexão sobre gênero e o feminino,
encontrar rupturas com padrões sociais trazidos com os temas abordados e além do
resultado cênico trazer também a possibilidade de registrar e disseminar as informações
encontradas na pesquisa.
Para realizar este trabalho realizei uma análise do texto ―Desenredo‖ para
criação das cenas, relatos pessoais sobre os temas inerentes ao trabalho, visitas a
terreiros, participação e execução de cursos de Danças dos Orixás, utilizando também
como referencial teórico estudos literários sobre o conto de Guimarães Rosa, conceitos
da antropologia teatral e as danças dos orixás, discussões de gênero do ponto de vista
social e religioso sobre as pombagiras.
Esta pesquisa acerca das Pombagiras se iniciou durante a conclusão do curso de
Artes Cênicas da UEL em 2012, com uma performance chamada ―Ela é bonita, ela é
mulher – Aproximação entre as Pombagiras da Umbanda e a personagem feminina do
conto Desenredo de Guimarães Rosa‖, e permanece até o presente momento com a com
a série de performances ―Arreda Homem que aí vem mulher‖ da Cia. Do Santo Forte, já
fora do meio acadêmico, e temos como objetivo seguir propagando a discussão de
gênero e a função dos arquétipos da Umbanda tem dentro do ponto de vista artístico e
social.

2
Dança dos Orixás – O Sagrado que nos move – Link para o documentário:
https://www.youtube.com/watch?v=K2dgzPmMnYM e link para o teaser
:https://www.youtube.com/watch?v=DmxrMbCkRGc.
3
Teaser ―Arreda homem que aí vem mulher: https://www.youtube.com/watch?v=6hCvepE0v3s.

16
Figura 1. Estreia - Fotógrafo Jorge Etecheber

Adotarei ao longo do artigo o termo ―sExualidade‖ aplicado por Lagos (2007),


para salientar a relação direta de Exu com o sexo, principalmente por esta ser a principal
característica que relaciona esta figura popular dos terreiros à emancipação e
independência feminina.
Reconhecemos que a Pombagira é uma figura muito potente de empoderamento
feminino no imaginário popular brasileiro. Porém, maior parte das pessoas que procura
ajuda destas entidades nos terreiros de Umbanda é para solucionar questões amorosas.
O que percebemos é que estas relações, ainda são muito idealizadas. E a figura
masculina ainda era o principal desejo dessas mulheres, mesmo que isso desencadeie
relações abusivas.
Utilizamos então no espetáculo ―Deus faz, o Diabo tempera‖, a Pombagira e
Malandro como modelos arquetípicos de gênero para discutir, além do amor, outros
fatores que envolvem a relação de um casal dentro do patriarcado. Buscamos, com isso,
estimular a reflexão do público sobre padrões de relacionamentos, com personagens que
trazem rupturas dos padrões sociais e representam grande parte da população brasileira,
inspirados pelo contexto religioso.

17
Metodologia
No início da pesquisa, ainda durante o Trabalho de Conclusão de Curso de Artes
Cênicas da UEL, realizei uma análise do texto Desenredo para criação de sequências de
movimentos que denomino aqui como ―partituras corporais‖. Este repertório físico foi
levado para o espetáculo ―Deus Faz, o Diabo Tempera‖. Durante o trabalho coletivo
com atores, encenadora e dramaturgista, trouxemos relatos pessoais sobre os temas que
dialogavam com a temática, realizamos visitas a terreiros (além dos que frequentávamos
como médiuns), realizamos cursos de Danças dos Orixás.

O Conto
Esta análise foi de extrema importância para contribuir com a pesquisa do grupo
para criar cenas do espetáculo, mas optamos posteriormente por não lidar diretamente
com o conto, visto que nossos relatos pessoais pareciam mais ricos combinados com
situações do conto e foram lapidados e misturados até ganharem um caráter ficcional.
O interesse pelo conto ―Desenredo‖ de João Guimarães Rosa se deu quando
percebi que a situação do texto também rompe com padrões sociais, no sentido em que
apresenta um homem que se submete a passar por cima do próprio ciúme e perdoar a
infidelidade de sua amada contrariando seu contexto social, e pelo fato de a personagem
feminina do conto ter semelhanças com alguns relatos sobre as Pombagiras,
principalmente por ter seu ―pecado extrovertido‖, a ―sExualidade‖ exposta e ainda
assim ser amada por Jó Joaquim.
O nome da personagem masculina do conto é ―Jó Joaquim‖, o autor faz
referência ao nome bíblico ―Jó‖, personagem que era um símbolo de paciência, e
―Joaquim‖, um nome comum que caracteriza a simplicidade da personagem. A
personagem feminina é comparada a Eva: ―Com elas quem pode, porém? Foi Adão
dormir, e Eva nascer‖ (ROSA apud TOFALINI, 2006, p. 5), por ser astuta. O nome dela
tem sete letras dispostas em ordens diversas formando quatro nomes diferentes, que não
revela um nome verdadeiro para a personagem, mas denota que ela é multifacetada,
possui um nome para cada situação, e um para cada marido, o que caracteriza a
inconstância da personagem. (TOFALINI, 2006, p. 5-6)
De acordo com Tofalini, o primeiro nome, Livíria, traz o termo ―li‖ do verbo ler,
que pode significar ver, conhecer, acompanhado de ―viria‖ a se aproximar de Jó
Joaquim; Rivília remete a ―ri‖, do verbo rir, no sentido de enganar, adicionado a ―vilia‖,
que nos remete a vilã; Irlívia se inicia com o verbo ―ir‖, ―no sentido de fugir de toda
uma situação‖ (TOFALINI, 2006, p. 6), somado a ―Lívia‖, ―supostamente
envergonhada ou pálida, lívida, de vergonha‖ (TOFALINI, 2006, p. 6); e finalmente,
Vilíria, ―vi‖, do verbo ver, combinado a ―líria‖, o ―feminino‖ de lírio, a flor que, ―afinal,
simboliza a pureza‖ (TOFALINI, 2006, p. 6). O último nome, todavia, pode ter outra
significação. A palavra Vilíria, poderia ser dividida de outra forma e proporcionar a
seguinte interpretação: ―vil‖, pessoa de mau caráter, mais ―iria‖, ―colocando no
desfecho do conto uma incógnita: a moça poderia reincidir‖ (TOFALINI, 2006, p. 6).

18
Figura 2. Estreia no Teatro Nelson Castro - Fotógrafo Jorge Etecheber

Os Terreiros
Nas visitas a terreiros, procurei acompanhar, além da movimentação dos orixás
que serviu como treinamento e desenvolvimento de repertório corporal da cena,
especificamente a movimentação das Pombagiras.
Nas giras, rituais de desenvolvimento mediúnico em que se fazem breves
atendimentos, observa-se que as ações dessas ―moças‖ são simples e recorrentes. Em
geral elas bebem, fumam, dançam, conversam, aconselham e seduzem, tudo isso com a
função de trazer o seu Axé4 para o terreiro e os consulentes. Algumas dessas ações
foram testadas e utilizadas na cena.
Lembrando que a Pombagira não é um orixá, portanto não se enquadra na
técnica que tive contato durante os cursos de Danças dos Orixás; neste caso a dança é
uma das ações das Pombagiras no ritual, por isso procurei me atentar para as danças que
variam muito de terreiro pra terreiro e de entidade para entidade, mas a maioria das
Pombagiras que pude ver dançar nos terreiros se movimenta de modo muito
fragmentado, como se cada articulação do corpo fosse independente e dançasse por si
só. De acordo com Rodrigues:

[...] a Pomba-Gira que se utiliza de todo o apoio dos membros inferiores, pois costuma
se sustentar na meia-ponta, uma característica de sua vaidade. Por causa disto, a Pomba-

4
Energias positivas, proteção dadas pelas entidades.

19
gira é dona de uma grande elasticidade e seus pés não têm limites na execução de
movimentos. (RODRIGUES apud MAIA, p. 8, 2010)

Também há muita saliência nos quadris e uma ―sExualidade‖ exacerbada. Mas


ao contrário do que muitos pensam, elas podem também ser sutis e delicadas, em geral
procuram se mostrar elegantes. É o caso, por exemplo, da Maria Padilha, do Congá Pai
Joaquim de Angola em Londrina, que tem um gestual muito sutil e refinado, se porta
como uma dama, mas trata suas consulentes por ―puta‖, e não hesita em falar palavrões.
Além da observação, também houve o meu processo de desenvolvimento
mediúnico em que tive a possibilidade de sentir a potência de energia das Pombagiras.
Depois que já havia iniciado a pesquisa, como médium (no que diz respeito à crença
evidentemente), eu comecei a trabalhar com duas Pombagiras diferentes, a Pombagira
Sete Véus e a Pombagira da Praia. Dentro dessa experiência como médium consciente5
pude reconhecer no meu próprio corpo a movimentação, o comportamento, e a energia
destas entidades. Grande parte da dança em cena foi criada com base na memória
corporal que registrei destes momentos.

Relatos Pessoais
Durante os ensaios, eu e meu parceiro de cena Luis Andrade, sempre éramos
provocados pela diretora Fernanda Missiaggia Hernandes e o Dramaturgista Alexandre
Manchini Jr. a trazer experiências da nossa vida relacionadas a traições, opressões, ―ser
mulher‖, ―ser homem‖, ―ser mãe‖, ―ser casada‖, ―ter me separado durante o processo
criativo‖, feitiços, histórias de terceiros, fofocas, desejos, características que
admirávamos um no outro e diversas outras situações que vivenciamos, escutamos ou
imaginamos como um ―brainstoming‖ para a criação de situações dramatúrgicas.
Por motivos éticos não vou expor o que falamos nos ensaios, mas posso dizer
que foi um verdadeiro desnudamento e um grande aprendizado essa troca de
experiências. As melhores histórias foram trabalhadas e organizadas em improvisações
e posteriormente transcritas em texto.

Cursos de Danças dos Orixás


Pelo fato de as nossas maiores referencias serem da Umbanda, eu sempre
precisei buscar as danças do Candomblé e em cursos. Após diversos cursos, leituras
visitas e treinamentos, a Dança dos Orixás virou o ponto de partida para todas as
criações da Cia. Do Santo Forte.
A seleção do ator que faria parte do trabalho se deu através de uma oficina, em
que eu apresentava a mitologia do orixá, e posteriormente ensinava alguns de seus
movimentos realizados nos terreiros de candomblé e umbanda. Seguimos repetindo as
danças nos ensaios, e tanto os movimentos, as qualidades de energia e os mitos serviram
como referência para a criação cênica.
Os passos dos Orixás que foram incluídos na cena foram selecionados, na

5
MÉDIUM CONSCIENTE: na Umbanda, de acordo com a Mãe Dayane Dias de Iansã, é aquele que
incorpora a entidade e não tem controle das próprias ações, mas mesmo assim percebe, vê e sente o que
está acontecendo.

20
maioria das vezes, pela relação que encontrei dentro dos significados implícitos ou
explícitos no conto com a mitologia, ação ou elemento de cada Orixá.

Figura 3. Dança da Pombagira - Fotógrafo Jorge Estecheber

Com base na pesquisa literária e nas danças dos orixás considerei a as quatro
combinações para sete letras da personagem do conto, com quatro momentos diferentes
em que cada relação com cada homem no conto promovia uma mudança, e um novo
direcionamento da história e com isso dividir o conto em quatro partes. Nesta divisão
optei por relacionar a personagem Livíria com as Iabás6, para a criação de partituras
corporais a serem utilizadas no espetáculo. Escolhi Oxum (beleza e fertilidade), Iansã
(transformação), Iemanjá (maternidade, acolhimento) e Nanã (sabedoria ancestral).
Oxum e Iemanjá trazem a fluidez da água e Iansã a violência do vento e da tempestade,
Nanã tem o peso das águas mais profundas que se misturam a terra, todas estas
associadas ao fogo e terra que caracterizam os Exús. A personagem do conto apresenta
uma pluralidade e versatilidade que permite a junção de diversas porções femininas, e
poderia inclusive dialogar com as sete linhas, mas procurei selecionar os quatro
elementos básicos da natureza e abordá-los pelo viés das Iabás porque são diversas
qualidades de feminilidade que identifiquei dentro do conto. Também criei uma relação
sutil com os outros orixás em algumas ações, mas a dinâmica de movimentos principal
foi com base nas Iabás.

6
IABÁS: Orixás femininos.

21
Resultados
Ao concluir o trabalho e nos dar conta de que já era uma outra obra alheia ao
conto, substituímos os personagens Jó Joaquim pelo malandro Zé, e a Livíria por Maria.
Trouxemos então uma mulher que ritualiza seu corpo para usufruir do prazer e
confrontar os padrões em que vive, correndo o risco de ficar sozinha. E um homem que
precisa romper com o próprio machismo e o de toda uma sociedade em nome do amor.
Com estes e outros questionamentos que estas figuras transitaram por situações
de carinho, raiva, nojo, desejo, sexualidade, ciúme e abandono.
Zé, é uma personagem que perde a cabeça e se descontrola perante uma mulher,
vivendo o conflito de se entregar ou não a esse amor que contraria o contexto em que
está inserido. E Maria, uma mulher que não é dominada, ela domina, sabe quando se
resguardar e quando se expor, tem seu ―pecado extrovertido‖, a ―sExualidade‖ exposta e
ainda assim, principalmente por isso, é amada.
O trabalho teve algumas apresentações realizadas na cidade de São José do Rio
Preto enquanto cumpríamos a contrapartida do edital e também durante o FIT – Festival
Internacional de Teatro de Rio Preto em 2016.

Figura 4. Apresentação no FIT Rio Preto - Fotógrafo Jorge Etecheber

Tivemos um bate-papo após uma das apresentações, além do diálogo com


pessoas do público que nos procurava após as sessões. O retorno do público era muito
importante por ser uma companhia que preza a pesquisa e o aprimoramento. Houve
retornos muito positivos e construtivos, mulheres que se sentiam representadas, homens
que refletiam sobre seus privilégios, e um público da Umbanda e Candomblé que se
alegrava ao ver essas referências em cena. Houve algumas críticas e sugestões que

22
sempre foram acolhidas e pensadas em relação a nossa proposta, o que foi aprimorando
o trabalho ao longo das apresentações.

Conclusão
Após finalizar o espetáculo concluímos que a sociedade ainda não está
preparada pra lidar com o empoderamento da mulher. Com todos os acontecimentos
durante o processo de criação do trabalho e também a repercussão com o público,
percebemos que as mulheres estão se esforçando e se descobrindo fortes, intensas e
potentes. Enquanto os homens ainda preferem partir, se retirar, porque para eles ainda
não é possível ―dar conta‖ de mulheres que existem para si mesmas ao invés de viver
em função de servi-los.
Uma parte das pessoas que critica o trabalho são homens que se sentem
incomodados em se ver representados como ―agressores em potencial‖ ou em ver
mulheres (incluindo uma mãe) representada por uma mulher que se expõe de maneira
―leviana‖. É claro que nós sabemos que pessoas não se resumem ao que mostramos no
espetáculo, mas cumprimos nosso papel enquanto artistas em expor, confrontar e
subverter o ideal de herói masculino e pureza feminina que está intrínseco no ideal da
nossa sociedade, mas não na realidade.
A peça fala da relação entre um homem e uma mulher, que se identificam com
os arquétipos do malandro e da pombagira. Nessa relação existe um embate sobre o que
se espera dessa mulher, e o que ela é, de fato. Ela vai perdendo os homens ao longo da
vida, e isso aparece em sua história. No final da peça ela acaba sozinha, aquele homem
não dá conta de superar o próprio machismo para lidar com ela.
Esse ciclo se repetiu de algumas formas comigo durante o processo de trabalho.
Uma das coisas que aconteceu foi o meu casamento que se rompeu antes da estreia,
porque meu marido não aceitava que eu fizesse cenas de beijo. Os rapazes que
trabalhavam comigo, um a um foram saindo, foram substituídos, mudaram de função,
até o ator do espetáculo me falar, recentemente que não teria mais disponibilidade de
fazer a peça.
Quando eu me vi sozinha, sem a minha equipe de trabalho me lamentei durante
um tempo. Me vitimizei. Porém, quando percebi que estava encontrando ali uma
oportunidade de trabalhar sozinha, de redescobrir as minhas potências enquanto mulher
e artista decidi juntar os caquinhos, e criar algo novo. Algo só meu e que teve a
experiência com eles apenas o material bruto a ser trabalhado.
Essa é uma das vantagens de ser uma atriz-criadora. De ter tido o alimento
necessário para criar.Eu consegui, finalmente trilhar o mesmo percurso dramatúrgico
que a personagem. Agora, a performance ―Arreda homem que aí vem mulher‖, gira
independente e fluida, assim como eu estou batalhando como mulher-mãe-artista para
girar também.

23
Figura 5. Girando na estreia - Fotógrafo Jorge Etecheber

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25
Cecília Meireles e a literatura brasileira de autoria
feminina
(Cecilia Meireles and the brazilian literature of female authorship)

Lorena Santos de Araújo1


1
Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes)
1
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)

lorenaaraujo3@hotmail.com

Abstract: This work presents the importance of the writer Cecília Meireles in the Brazilian
literary world, considering the little emphasis that is given to woman writers in this point.
Cecilia Meireles, poetess of the second phase of modernism, heiress of symbolist
characteristics, journalist, painter, folklorist teacher left us a vast legacy of different ways of
making poetry. Even though in manuals of the Brazilian literature the focus on the female
authors is not enough, which shows that the literature of female authorship in the country is
subjugated, Cecília is notorious and we can see the enrichment that the author's work has
brought to the brazilian literature.
Keywords: Cecília Meireles; Brazilian literature of female authorship; Brazilian poetry.

Resumo: Este trabalho apresenta a importância da escritora Cecília Meireles no cenário


literário brasileiro, tendo em vista o pouco destaque que é dado às poetisas nesse campo.
Sendo assim, Cecília Meireles, poetisa da segunda fase do modernismo, herdeira de
características simbolistas, jornalista, pintora, folclorista e professora nos deixou um vasto
legado de diferentes formas de se fazer poesia. Ainda que em manuais da literatura brasileira o
enfoque nas autoras mulheres seja pouco, o que demonstra subjugada a literatura de autoria
feminina no país, Cecília teve notoriedade nesse âmbito. Dessa forma, constata-se o
enriquecimento que a obra da autora trouxe à literatura do país.
Palavras-chave: Cecília Meireles; Literatura brasileira de autoria feminina; Poesia brasileira.

Considerações iniciais
Em 7 de novembro de 1901 nasceu no Rio de Janeiro Cecília Meireles e faleceu
na mesma cidade em 9 de novembro de 1964. Seu pai morreu três meses antes do seu
nascimento e perdeu a mãe antes dos três anos de idade. A infância da escritora foi
marcada, como a própria autora caracteriza, por silêncio e solidão, mas ela não viu isso
de forma negativa. Cecília dizia poder arrancar muitas recordações maravilhosas dessa
época de sua vida. Foi nessa área de silêncio e solidão que os livros se abriram para ela.
A paixão cultivada pela escritora pelos livros a encaminharam ao Magistério. Em 1917
adquire seu diploma como professora na Escola Normal do Instituto de Educação do
Rio de Janeiro. O fascínio pelo saber fez também com que a escritora estudasse canto,
violão e violino no Conservatório Nacional de Música. Cecília também foi jornalista,
pintora, professora e folclorista.
Com 18 anos, em 1919, a escritora publicou Espectros, pequeno volume de 17
sonetos que, conforme Azevedo Filho (1970) menciona, é de estrutura clássica e com
pouca originalidade, mas representou um considerável estímulo à poetisa, que foi
incentivada pelo mestre João Ribeiro a prosseguir na poesia, pelo seu talento e
qualidades poéticas; e ela poderia alcançar, assim, a reputação de poetisa compatível a

26
esse talento. As obras publicadas por Cecília que sucederam Espectros foram Nunca
Mais... e Poema dos poemas (1923) e Baladas para El Rei (1925). Quanto ao
significado dessas obras, para o autor elas ―revelam bem a herança simbolista na fase
inicial de sua poesia‖ (AZEVEDO FILHO, 1970, p. 9). Nesse sentido, a autora da
segunda fase do modernismo fez parte do grupo Festa, associado à corrente de
escritores que pretendiam renovar, sem se desvencilhar do passado, ―contrariavam o
liberalismo de ideias[...] e o caráter nacionalizante do movimento modernista‖
(DAMASCENO, 1967, p. 12). E, Cecília, ao lado de poetas como Tasso da Silveira,
Murilo Araújo, Francisco Karan e Pádua de Almeida se incorporaram ao movimento
renovador. O grupo era derivado do simbolismo e, conforme menciona Azevedo Filho
(1970), apresentava características contrárias ao primitivismo modernista. Mesmo
Cecília tendo sua origem no grupo Festa, ela apresentava independência ao escrever sua
poesia, e para Azevedo Filho, a autora tinha ―êxito individual surpreendente de seus
poemas, fazendo dela a expressão mais alta da poesia nascida de mulher em nossos
dias‖ (AZEVEDO FILHO, 1970, p. 22). Ainda nesse ponto, Bosi (2006, p. 493)
acredita que não se deva dar destaque a essa associação de Cecília com o grupo
neossimbolista, visto que Cecília renega essa fase ao excluir suas obras Nunca Mais e
Poemas dos Poemas e Baladas para El-Rei de sua Obra Poética. E, segundo o crítico,
Cecília fazia adesão a essa estética neossimbolista por se aproximar da poesia como
―sentimento transformado em imagem‖. O autor ainda menciona a influência na poesia
da autora os nomes como Maeterlinck, Verlaine, Antônio Nobre e Cruz e Souza.
Foi com a obra Viagem, reunião de poemas produzidos entre 1929 e 1937, que
Cecília Meireles recebeu o prêmio de poesia pela Academia Brasileira de Letras, em
1938, sendo a obra publicada no ano seguinte, consagrando o nome da autora na
literatura brasileira. É válido mencionar que dessa obra os poemas ―Marcha‖ foram
―Motivo‖ musicados pelo cantor popular brasileiro Fagner. Do primeiro poema, foram
utilizados alguns versos, modificados na gravação e ele recebeu o título de ―Canteiros‖;
o segundo poema foi gravado integralmente, com o título mantido. Inclusive, a
musicalidade nos poemas de Cecília perceptíveis como nos elementos ritmo e
sonoridade são encontrados também em muitos poemas de Viagem. A obra contém
muitos títulos que se associam a elementos musicais, como ―Música‖; ―Serenata‖; ―A
última cantiga‖, ―Canção‖, ―Valsa‖.
Miguel Sanches Neto (2001) aborda que Viagem é de forma significativa
dedicado aos amigos portugueses de Cecília Meireles, remetendo à história de Portugal
e a chegada dos antepassados açorianos da poetisa, ―revelando assim conexões
históricas e geográficas‖ (p. 32). E ainda quanto a essa obra, um dos maiores nomes do
Modernismo, Mario de Andrade, não mediu elogios para a produção literária da autora,
como pode ser percebido em O Empalhador de Passarinho. Mario de Andrade ressalta
a forma como Cecília Meireles utilizava o metro em seus versos, não tornando isso uma
prisão, mas sim liberdade. Na seguinte passagem de O empalhador de passarinho ao
mencionar alguns versos da obra da autora, ele enaltece a forma dela de fazer poesia

Asa da luta
Quase parada,
Mostra-me a sua
Sombra escondida
Aminha vida
Num chão profundo
-Raiz prendida

27
A um outro mundo?

Ninguém entre nós para captar assim momentos de sensibilidade, quase livres, de rápida
fixação consciente, em que o assunto como que parece totalmente sem assunto. Um
pruido, um aflar leve mas grave de sensibilidade que apenas se define. Este o encanto
excepcional, a adivinhação magnífica de muitas líricas metrificadas da atual Cecília
Meireles. Poucas vezes, aliás, tenho sentido metrificação e rima tão justificáveis como
nestes poemas da poetisa. Me parece que o seu princípio estético, em última análise, é o
mesmo que leva o povo a metrificar e rimar. O metro é apenas um elemento de garantia
formalística que permite à gente se isentar de preocupações construtivas. [...] Fixada
numa fórmula embalante (ela só emprega normalmente os esquemas métricos mais
musicais) a poetisa está livre, e o movimento lírico se expande em sua delicadeza
maravilhosa. Jamais a poesia nacional alcançou tamanha evanescência tanto verbal
como psíquica. (ANDRADE, Mario de, 1972, p. 162-163).

As publicações que sucederam Viagem foram Vaga Música (1942), Mar


Absoluto (1945), Retrato Natural (1949), Amor em Leonereta (1951), Doze Noturnos da
Holanda e O Aeronauta (1952), Romanceiro da Inconfidência (1953), Pequeno
Oratório de Santa Clara (1953), Canções (1956), Romance de Santa Cecília (1957),
Metal Rosicler (1960), Poemas Escritos na índia (1961), Solombra (1963) e Ou Isto ou
Aquilo (1964). A autora também teve publicações na literatura infantil, ensaios,
traduções, estudos folclóricos, peças de teatro, composições musicais, artigos. Somado a
isso, entre outras línguas, teve poemas seus traduzidos para o francês, espanhol, o
italiano, o inglês, o alemão e o húngaro (AZEVEDO FILHO, 1970, p. 12).
Deve ser destacada também a atividade de Cecília Meireles em 1930 7 no Diário
de Notícias (um dos periódicos mais importantes do jornalismo brasileiro), em que ela
estreou no universo de crônicas, sendo responsável pela seção diária ―Página da
Educação‖. Entre alguns pontos abordados por ela estava a necessidade de uma reforma
no sistema educacional da época. A autora era contra o ensino religioso nas escolas e
fazia questão da criação de escolas mistas, para que ambos os sexos usufruíssem do
mesmo espaço. Dessa forma, a escritora dava voz aos ideários da Escola Nova,
movimento associado à educação brasileira, a fim de propiciar a democratização do
ensino.
Conforme os estudos de Damasceno (1983), em 1934, a autora realizou o sonho
de criar uma Biblioteca Infantil8 especializada, no Pavilhão Mourisco, em Botafogo, e
essa criação foi um estímulo para que outras bibliotecas dessa natureza fossem criadas
no Rio de Janeiro e no Brasil. Nesse mesmo ano, recebeu convite do Secretariado de
Propaganda de Portugal, visitou o país e fez conferências nas universidades de Lisboa e
Coimbra, apresentando as características da literatura brasileira. Em 1935, tornou-se
professora de Literatura Luso-Brasileira, da antiga Universidade do Distrito Federal.
Lecionou Literatura e Cultura Brasileira nos Estados Unidos em 1940 e posteriormente
viajou pelo México e fez conferências sobre literatura, folclore e educação. Visitou
também outros lugares como Uruguai e Argentina (1944), Europa e Açores (1954),
índia, Goa e Europa (1953), Porto Rico (1957), Israel (1958) (DAMASCENO, 1983, p.
64). Dessa forma, a autora se destacou também no campo do folclore, sendo autoridade

7
Período em que começavam a crescer as produções cronísticas de autoria feminina, devido às
oportunidades profissionais dadas às mulheres em redações de jornais.
8
A autora dirigiu a biblioteca durante quatro anos e este local hoje não mais existe.

28
nesse assunto. Ela fez parte da, em 1948 da Instalação Nacional do Folclore foi
secretária do Primeiro Congresso Nacional de Folclore em 1951.
Com 20 anos de idade, a autora se casou com o desenhista Correia Dias, este que
ilustrou seus livros iniciais. Com ele, teve três filhas: A Maria Elvira, a Maria Fernanda
e a Maria Matilde. Ela ficou viúva, em decorrência do suicídio de Correia Dias
(configurando assim outra perda na vida da autora). O seu segundo casamento ocorreu
em 1940 com Dr. Heitor Grillo, com quem esteve até seus últimos dias de vida.
A morte da poetisa em 1964, conforme desenvolve Azevedo Filho, ―encheu de
luto a poesia brasileira‖ (1983, p. 14), sendo assim a poesia brasileira quanto à obra de
Cecília Meireles,

[...] tanto se enriqueceu com o seu lirismo transcendente, controlado, sóbrio, revelando
absoluto domínio do vocábulo poético, em ritmo de meio-tom, quase de confidência,
onde o tema da brevidade da vida sempre predomina, numa atmosfera de tristeza,
melancolia, silêncio e solidão. Lirismo que revela traços expressionais de natureza
barroca, decorrentes do conflito entre o corpo e a alma, vencendo sempre o espírito,
numa poesia visual, com tendência à representação gráfica e ao desenho, mas
essencialmente aérea, fluida, intemporal, ao mesmo tempo que diáfana, de musicalidade
fugidia e alheia ao drama da vida cotidiana, em virtude da introspecção e da permanente
atitude de recolhimento, de busca do profundo. (AZEVEDO FILHO, 1970, p. 14)

Entre as produções literárias de Cecília que marcaram a sua carreira está


Romanceiro da Inconfidência, publicada em 1953, que representa as tradições históricas
do país, época da Inconfidência Mineira, exaltando nossa história. A essa produção
literária Cecília dedicou dez anos de pesquisa. Com oitenta e cinco romances9, na obra,
―os versos assumem sentido de poesia épica, de cunho narrativo, sem perder as
finalidades líricas que definem a poesia de Cecília Meireles‖ (AZEVEDO FILHO,
1970, p. 115). E o estudioso afirma que a poetisa desenvolveu o que temos de melhor
dentro da corrente espiritualista ou totalista do nosso Modernismo. Murilo Mendes em
Obra Poética (p. 52) também enaltece essa produção literária e desenvolve ―Eis, no
melhor sentido, uma amostra de poesia social de alta categoria‖.
Assim como os poemas ―Marcha‖ e ―Motivo‖ da obra Viagem que foram
musicados, a obra Romanceiro da Inconfidência também passou por esse processo,
musicados, com algumas partes da obra presentes em ―Temas dos Inconfidentes‖ de
Chico Buarque. E as partes que receberam esse processo foram trechos do Romance V,
Romance XXXI e Romance LIX, respectivamente

Toda vez que um justo grita,


um carrasco o vem calar.
Quem não presta, fica vivo;
quem é bom, mandam matar.
Quem não presta, fica vivo;
quem é bom, mandam matar (MEIRELES, 2001, p. 763)

Por aqui passava um homem


— e como o povo se ria! —
"Liberdade ainda que tarde"

9
Narrativa popular em verso.

29
nos prometia. (MEIRELES, 2001, p. 830)

Foi trabalhar para todos...


Mas, por ele, quem trabalha?
Tombado fica seu corpo,
Nessa esquisita batalha.
Suas ações e seu nome,
por onde a glória os espalha? (MEIRELES, 2001, p. 894)

Poesia brasileira de autoria feminina


Na história da literatura brasileira de autoria feminina, deve-se atentar que
embora não tenha sido um espaço reconhecido como deveria para as escritoras
mulheres, em vista da soberania masculina na literatura brasileira, serão mencionadas
nesta parte algumas autoras de poesia do cenário literário brasileiro, no período anterior
à Cecília Meireles e também que surgiram na mesma época, corroborando a frase dada
por Cecília em uma entrevista para A Gazeta de São Paulo ―A mulher também tem o
que dizer‖. Ainda que outras mulheres já tivessem exercido a atividade da poesia, nos
períodos anteriores em que surgiu Cecília no cenário brasileiro, ela foi a primeira
mulher que alcançou grande expressão, e, assim:

Dentre os livros formadores de opinião numa graduação de Letras, o manual História


concisa da literatura brasileira, de Alfredo Bosi, cuja primeira edição é de 1970,
demonstra até mesmo em termos de distribuição gráfica a importância de Cecília
Meireles no panorama da poesia brasileira, sendo a única poeta a ter três (!!!) páginas
para si- a outra poeta, nomeada em ―capítulo individual‖, que logrou meia página foi a
parnasiana Francisca Julia (SALGUEIRO, 2007. p. 42)

Domingos Carvalho da Silva (1959) aborda que ainda que fossem poucas as
mulheres alfabetizadas, dos séculos XVI a XVII, havia entre elas aquelas que
desenvolviam versos. Rita Joana de Sousa é um entre os nomes de muitas poetisas
ignoradas no cenário literário brasileiro de autoria feminina. Somado a isso, o autor
menciona que, antes de 1822, apenas uma mulher teve seus versos reduzidos a letra de
forma, a poetisa, que era cega, é Ângela de Amaral Rangel. A segunda poetisa brasileira
que nos deixo algo de sua obra foi Bárbara Heliodora Guilhermina de Silveira. Outro
nome do século XIX é Beatriz Brandão. O estudioso afirma que mesmo existindo
marcas notáveis de romantismo nos seus versos, em sua obra é o gosto árcade que
prevalece.
Na fase pré-romântica destaca-se Delfina Benigna da Cunha, segunda poetisa
cega. Na fase romântica, Domingos Carvalho da Silva menciona que a poesia de autoria
feminina foi fraca e pouco expressiva na literatura brasileira. O autor desenvolve
também que ―Tal como ocorreu em Portugal, e até na França, não assinalou a lírica
nacional, entre 1835 e 1870, o aparecimento de nenhum nome de primeira grandeza
entre as cultoras de verso‖ (SILVA, 1959, p. 14). Porém, em outros países, a poesia de
autoria feminina era representada por nomes como Annete Von Droste-Hülshoff na
Alemanha; Elizabeth Barret Browning e Cristina Rosseti na Inglaterra; Emily Dickinson
nos Estados Unidos; Carolina Paulova na Rússia; Rosalia de Castro na Espanha e outras
poetisas nos países americanos de língua espanhola (Silva, 1959).

30
No Brasil, um nome que ficou conhecido na época romântica foi a poetisa e
prosadora do Rio Grande do Norte Nísia Floresta Brasileira Augusta cujo pseudônimo
literário era Dionísia de Faria Rocha. Soma-se também a esse período o nome de Adélia
de Castro Fonseca, nascida na Bahia, Rita Barém de Melo, nascida em Porto Alegre, e
Joaquina Júlia Navarro da Cunha Menezes de Lacerda, da Bahia. Entre o final do
romantismo e o momento em que se fixava o parnasianismo temos de início os nomes
Narcisa Amália e Júlia Cortines. Nomes como Amélia Rodrigues, Presciliana Duarte de
Almeida, Carmen Freire e Julieta de Melo Monteiro são contemporâneos das últimas
poetisas citadas que, segundo o autor, não podem ser omitidos.
Na coletânea ―Sombras‖ de poesia da autora mencionada Presciliana Duarte de
Almeida, ela dedica sonetos a um grande número de poetisas da sua geração e isso,
segundo Silva (1959), proporciona um levantamento quase completo das brasileiras
que, no contexto da publicação, escreviam em versos. São esses nomes: Maria Clara da
Cunha Santos, Júlia Lopes de Almeida, Narcisa Amália, Adelina Lopes Vieira; as
fluminenses Amélia de Oliveira, Ibrantina Cardona e Júlia Cortines; as gaúchas Cândida
Fortes Brandão e Andradina de Oliveira, Francisca Júlia da Silva, Amélia de Freitas
Bevilácqua, Zalina Rolim, Áurea Pires, Georgina Teixeira e outras. Entre essas, o autor
destaca Júlia Cortines Laxe como a poetisa de maior expressão no parnasianismo,
depois de Francisca Júlia. E quanto a esta última poetisa citada, ele acrescenta
―Francisca Julia é, pela altitude da sua poesia, a primeira poetisa credenciada para
figurar em qualquer antologia brasileira. É certo que a autora de Esfinges deixou obra
pouco volumosa, mas nem por isso sua contribuição pode ser menosprezada‖. (SILVA,
1959, p. 24)
No que diz respeito ao período do pós-parnasianismo, temos os nomes de Gilka
Machado, Ana Amélia de Queirós Carneiro de Mendonça e Rosalina Coelho Lisboa.
Entre esses nomes, ele destaca o de Gilka por trazer à tona a sensualidade em seus
versos, o que não era comumente visto nos versos de autoria feminina. Silva (1959)
aponta que a poetisa foi ousada nos temas e a autora de Mulher nua ―[...] foi tímida na
arquitetura do poema, sem desprezar, porém, as estrofes polimétricas herdadas do
simbolismo‖ (p. 26).
Silva (1959) ressalta a grandiosidade da poesia de Cecília Meireles e aborda que
desde a época medieval até o período em que realizou esse estudo, a autora de Viagem
representa o nome mais expressivo da poesia em língua portuguesa e ele evidencia a
pureza de expressão e a limpidez formal da autora. A esse valor ele adiciona ―Na
moderna poesia em nossa língua, talvez só Fernando Pessoa tenha reunido, a tanta força
lírica, tal síntese de expressão‖ (p. 27). Também atuaram no período do modernismo da
poesia brasileira: Henriqueta Lisboa de Minas Gerais, que surgiu como poetisa em
1936; Adalgisa Nery do Rio de Janeiro, que fez sua estreia em 1937. Quanto a temáticas
abordadas por esta última poetisa, o autor menciona que nela, diferente de Gilka
Machado, ―os assuntos eróticos são desenvolvidos [...] num sentido menos sensual do
que místico‖ (SILVA, 1959, p. 28). O autor adiciona a essa lista os nomes de Haydée
Nicolussi, natural do Espírito Santo, que residiu no Rio de Janeiro desde mais nova; ela
ganhou um concurso de contos em 1929 e, ainda que militante da poesia, conforme
menciona Silva (1959), só estreou no campo poético em 1943. Somado a tais nomes,
Silva destaca outras autoras que pelos livros que assinaram merecem ser citadas: Ionne
Stamato com Sinfonia da Dor (1938) Porque falta uma Estrela no Céu (1939) e A
Imagem Afogada (1942); Lila Ripoll com as obras De Mãos Postas (1938) e Céu Vazio;
Inah Sacundino com Quando o Surge no Oriente, Vozes da Cidade e Missanga.

31
A geração de 45 do modernismo brasileiro também foi marcada por nomes da
poesia de autoria feminina, como Maria Isabel e Jacinta Passos, embora o fato de que

Nenhuma poetisa é tipicamente ―45‖. [...] A geração de 45 é um conjunto de grandes


nomes, cada um deles dono de uma expressão própria, unidos por várias preocupações
comuns, que podem ser resumidas, na conquista de uma poesia equilibrada sem ser
convencional, livre de excessos verbais mas atenta ao problema da pesquisa vocabular,
escrita em linguagem literária sem ser acadêmica [...] (SILVA, 1959, p. 30)

À década de 40 estão associados também os nomes Alice Carmago Guarnieri,


Ilka Bruilde Laurito, Idelma Ribeiro de Faria e Adelaide Petters Lessa. Entre as poetisas
estreantes a partir de 1950, há os nomes Lais Correia de Araújo, Renata Pallottini, Edna
Savaget, Ilka Sanchez, Dulce G. Carneiro, Zila Mamede, Lilyan Schwartzkopf, Ruth
Sylvia de iranda Salles e Ruth Maria Chaves.

Um outro olhar sobre a obra de Cecília Meireles


Quando se estuda Cecília Meireles, há rótulos vinculados à autora como a
poetisa da universalidade, da transcendência, misticismo, intimismo. No entanto, há
muitos estudos que exploraram abordagens realizadas por Cecília que a crítica não
soube aproveitar. Entre alguns estudos sobre a abordagem do feminino estão o das
autoras Dal Farra (2006), Oliveira (2007) e Silva (2015). Cecília mostra-se mais intensa
do que a neutralidade em que a colocaram.
O artigo ―Cecília Meireles: Imagens Femininas‖ de Dal Farra (2006) e a
dissertação Serenas e desesperadas: representações femininas na obra poética de
Cecília Meireles de Silva (2015 apresentam em comum a não neutralidade de um eu
lírico na obra ceciliana. Segundo Silva (2015), diferentemente do que já foi posto pela
crítica quanto ao caráter neutro da obra poética de Cecília Meireles, podem ser
encontradas em alguns poemas as representações femininas preocupadas com a mulher
na sociedade como em textos ―prisão‖ da obra Dispersos; ―Balada das dez bailarinas do
cassino‖ em Retrato Natural, além de vários poemas com mulheres indianas como em
Poemas escritos na índia. Ressalta-se que na maior parte dos casos o eu lírico assume
uma posição crítica em relação à precária situação feminina apresentada.
Silva também evidencia a quase ausência de mulheres escritoras no cânone
literário, tanto no Brasil ou qualquer outro lugar. Dessa forma, uma das questões
levantadas pela crítica feminista é investigar os motivos dessa ausência.
Somado às questões apresentadas, o trabalho de Oliveira ―Figuras femininas na
poesia de Cecília Meireles‖ também apresenta a proposta de reler a obra ceciliana com o
desconforto de quem busca outros sinais contrários às questões tão firmes estabelecidas
pela crítica. Deve ser destacado então na obra ceciliana a multiplicidade de sentido dos
seus versos. Assim, a autora menciona que é muito recorrente encontrar a representação
do feminino na obra de Cecília Meireles e debruça-se nas obras Viagem (1939), Vaga
música (1942), Mar absoluto (1945) e Retrato natural (1949) par amostrar isso.
A pesquisadora Dal Farra (2006) estuda a polêmica da nomenclatura ―poeta‖ ou
―poetisa‖ atribuída à Cecília, associado ao fato de que a predominância do uso do
primeiro nome esteve muito relacionada à neutralidade considerada por muitos críticos,
da poesia de Cecília Meireles. E assim

32
É possível supor que, no caso de Cecília, o fato de sua poesia falar, muitas vezes, a
partir de um ponto de vista universalista, evitando o uso da acepção de gênero que cabe
de nascença à sua autora; o fato de sua obra, de uma maneira geral, praticar uma espécie
de ―estética da ascese‖, de ―escalada para o sublime‖, de ―ponte para o elevado‖, nas
palavras de Sanches Neto- podem explicar tal estado de coisas. É de se cogitar, pois,
que tais procedimentos poéticos concorreram substancialmente para que Cecília fosse
vista de maneira neutral a que, de certeza, o masculino ―poeta‖ podia representar com
mais propriedade (DAL FARRA, 2006, p. 347)

A autora também menciona a comparação da poesia de Cecília com a de


Florbela, de Gilka e de Adalgisa, que contrário a essa poetisas

E Cecília Meireles nunca teve a pretensão de erguer a bandeira da mulher como sua
causa, o que, todavia, não impediu que a sua obra primasse em tudo por aquilo que se
entende por feminilidade: pela delicadeza dos temas, pela musicalidade e pelas nuances
rítmicas, pela leveza de traços e sobretudo pela suave ambiência que perpassa o seu
lirismo personalíssimo, quase sempre de inspiração popular e folclórica. Mas isso não
quer dizer que o olhar sobre a condição feminina esteja ausente dos seus versos (DAL
FARRA, 2006, p. 352).

Outro estudo que foge de estereótipos dados à obra poética de Cecília Meireles ó
de Salgueiro (2007), autor que aborda a ―necessidade de produzir um abalo na estátua
que ela porventura tenha se tornado‖ (2007, p. 40). Somado a isso, acredita que é
necessário ir além da solidão em que colocaram Cecília. Assim como Dal Farra (2006),
o autor apresenta as palavras-chave associadas pela crítica à obra poética de Cecília
―levitação, espírito, transe, inspiração, sensitivo, místico‖ (SALGUEIRO, 2007, p. 41).
Entre alguns poemas mencionados pelo autor para tirar o rótulo de Cecília
Meireles, como a poetisa neutra está ―Mulher ao espelho‖ da obra Mas Absoluto, em
que a complexidade de Cecília é ressaltada e

A clássica metáfora do espelho vem servir como instrumento para especulação em torno
da identidade, discurso e práticas femininos. Sujeito cindido historicamente, a mulher
experimenta faces e disfarces distintos, musa e prostituta, santa e pecadora. Mas não
importa ―esta ou aquela‖ máscara, posto que ―tudo é tinta‖, ―por fora‖, ―moda‖. O
poema e a poeta parecem dizer: não adianta querer entronizar a mulher em papel fixo,
seja servil ou cruel, loura ou morena [...] (SALGUEIRO, 2007, p. 44).

Dal Farra (2006) apresenta também aspectos a partir dos quais pode ser vista a
questão da mulher na obra de Cecília e ―os objetos especulares, tais como o ‗espelho‘ e
o ‗retrato‘[...] auxiliam a eclodir nela o fervilhamento daquilo que a endereça no âmbito
das inquietações concernentes ao feminino‖ (DAL FARRA, 2006, p. 352).

Considerações Finais
Ao estudarmos Cecília Meireles, constatamos o substancial legado cultural que
ela deixou. O contato da autora desde cedo com estudos relacionados à cultura foi
importante para a elaboração de grandiosas obras. E, conforme foi desenvolvido nesse
estudo, a autora representou o primeiro nome que alcançou grande expressão na
literatura brasileira de autoria feminina. A poetisa recebeu muitos elogios de grandes
nomes do modernismo brasileiro, como Mario de Andrade que ressalta as rimas e

33
metrificações justificáveis de Cecília; além também dos elogios a ela dirigidos pelo
estudioso Domingos Carvalho da Silva.
No entanto, outro ponto que a poesia da Cecília Meireles nos atenta relaciona-se
ao cânone em que a colocaram associado a características como a universalidade,
espiritualidade, intimismo. Percebemos, no decorrer desse estudo, como alguns
pesquisadores se dedicaram a evidenciar que a obra ceciliana pode ultrapassar os clichês
em que a colocaram. Somado a isso, foi perceptível a quantidade de autoras na literatura
brasileira (este estudo se ateve àquelas que se dedicaram à poesia). No entanto,
supremacia masculina na literatura não permitiu um destaque a muitas escritoras. E,
com isso, a literatura perde muito, e utilizamos novamente a frase de Cecília, para,
agora, finalizar este artigo ―A mulher também tem o que dizer‖.

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35
A literatura negro-africana de expressão francesa: uma
nova forma de resistência ao colonialismo
(African negro French expression literature: a new form of resistance to
colonialism)

Providence Bampoky1
1
Universidade Estadual Paulista – Júlio Mesquito Filho (UNESP/IBILCE)

providence.bampoky@gmail.com

Résumé: L'une des caracteristiques les plus significatives de lalittérature négro-africaine, en


particulier la littérature négro-africaine d'expression française, est de privilégier la fiction à
partir de l'histoire, la littérature étant un instrument de résistance et de lutte pour la libération
de l´occupation coloniale. Le but de cette littérature qui est née du besoin de changer les
stéréotypes et de réhabiliter l'image du continent noir est, en effet, de réécrire sa propre
histoire, qui ne sera plus interprétée comme une simple annexe de l'histoire occidentale. A
partir de cette logique, lebut de cet article est de proposer une discussion sur la trajectoire de la
littérature négro-africaine d'expression française qui s´est formé etant à l'intérieur qu'à
l'extérieur du continent africain. Bien que produite dans la langue du colonisateur elle a
influencé le reveil de la conscience révolutionnaire du colonisé et a également contribué à la
déconstruction du discours hégémonique que l'Occidents´est toujours efforcé à ―[..] imposer
comme le seul que l´on pût tenir légitimement sur ce continent et ses sociétés‖ (MOURALIS,
2007, p. 215).
Mots-clés: Colonialisme; résistance; littérature negro-africaine d´expression française.

Resumo: Uma das tendências significativas da literatura negro-africana, com especial ênfase
para a literatura negro-africana de expressão francesa, é privilegiar a ficção a partir da história,
sendo a literatura um instrumento de resistência e de luta de libertação das mazelas coloniais.
A intenção dessa literatura que nasceu do ímpeto de mudar os estereótipos e de reabilitar a
imagem do continente negro é, de fato, reescrever sua própria história, que não será
interpretada como um mero anexo da história ocidental. A partir dessas considerações, o
propósito desse trabalho é propor uma discussão sobre o percurso da literatura negro-africana
de expressão francesa que se formou tanto dentro como fora do continente africano. Embora,
produzida na língua do colonizador influenciou o despertar da consciência revolucionária do
colonizado e contribuiu, também, para a desconstrução do discurso hegemônico que o
ocidente sempre se esforçou a ―impor como o único que se pode manter legitimamente sobre
esse continente e suas sociedades‖ (MOURALIS, 2007, p. 215).
Palavras-chave: Colonialismo; resistência; literatura africana de expressão francesa.

Ao lado das injustiças e da violência que o Regime do Indigenato 1 acarretava na


colônia do Senegal, houve a construção das bases de uma educação colonial. O acesso à
escola colonial pelos indigènes representava uma nova virada do processo de
colonização. Emergia das camadas sociais locais, em particular, das Quatre

1
O Regime do Indigenato ou mais conhecido como Code de l´Indigénat ou l´Indigénat constituía um
conjunto de regras e normas disciplinares concebidas nas colônias francesas para o controle e a repressão
das populações chamadas ―indigènes‖.

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Communesdu Senegal2, uma elite intelectual literária. Porém, a administração colonial
interessava-se em oferecer uma educação com base num sistema fundamentado,
essencialmente, em discriminatórios. O que leva a avultar a dupla intenção do ensino
colonial, carregado por um lado, de impor aos colonizados a cultura francesa e, por
outro lado, de continuar formando auxiliares a serviço da administração e do
colonizador. Por trás dessa ação benevolente, escondia-se a necessidade de fornecer os
subsídios pressupostos apropriados aos indigènes para que eles pudessem continuar
colaborando efetivamente com o assentamento da administação colonial. Além disso, os
indigènes que seguiam o ensino colonial, ascedem, apenas, a cargos e posições de
subalternos como: auxiliares administrativos, professores indigènes. Destacando que, os
seus diplomas e suas qualificações profissionais não eram reconhecidas fora dos
territórios da AOF (África Ocidental Francesa).
Conforme salienta Joseph Gaucher, a intenção de escolarizar os povos
colonizados já tinha surgido, em 1816, em Saint-Louis, uma das primeiras comunas do
Senegal onde foi mandado um professor da metrópole para administrar uma escola
destinada a dar às crianças desta comuna um ensino bilíngue: francês e uolof, uma das
línguas locais mais faladas no Senegal, atualmente codificada (GAUCHER, 1968). Pela
primeira vez na história da colonização dessa região, o ensino dos nativos ia ser feito
com uma das línguas locais, no entanto, essa ideia foi logo descarta definitivamente, em
1829, pela adminstração francesa.
Importante salientar que, nesse período, o sistema educacional colonial francês
não se limitava, somente dentro das Quatre Communes du Senegal, as instituições
educionais espalhavam-se progressivamente em todos os territórios da
AOF,considerando que a categoria alvo nesse processo de escolarização era oriunda dos
espaços de ―administração direta‖, considerados como uma continuidade da metrópole.
Todavia, foi após a abolição do Regime do Indigenato, pelo decreto de fevereiro
de 1946, que foram feitas reformas no sentido de generalizar o ensino colonial em todos
os territórios, sem distinção de classes sociais e equipará-lo ao da metrópole. Esse
período coincidia com o final da Segunda Guerra Mundial, momento em que o mito do
colonizador caía drasticamente tanto nas colônias quanto na metrópole. Todavia, o
período da Segunda Guerra tornava-se o palco de uma nova postura do povo africano
em relação ao colonizador. A isso, juntava-se o levante dos Tirailleurs Sénégalais3 que
buscavam o reconhecimento pelo esforço de guerra ao ver melhorar suas condições de
vida e suas relações com a administração colonial: direito de se envolverem mais na
política administrativa das suas comunidades, de serem tratados com mais respeito e
dignide.
Foi nesse panorama social e político que surgiu o movimento da literatura
africana de expressão francesa nessa região da Áfica Ocidental, que aos poucos foi

2
Conhecidas sob o apelido de Quatre communes du Sénégal, as cidades de Saint-Louis, Gorée, Rufisque
e Dakar eram concebidas como se fossem uma continuidade da metrópole francesa no continente negro e,
cujos organização e funcionamento políticos eram instituídos com base nas características próprias de
uma sociedade colonial.
3
É importante lembrar que a lei do Indigenato submetia todos os originários dos territórios conquistados
ao alistamento militar. Já na Primeira Guerra Mundial, os africanos haviam combatido pela França em
todas as frentes. O recrutamento e o alistamento militar (muitas vezes forçados) aumentaram a partir de
1930, na véspera da Segunda Guerra Mundial, engrossando as fileiras dos Tirailleurs Sénégalais
(Atiradores Senegaleses). Eles eram comumente chamados de Tirailleurs Sénégalais mesmo sendo
recrutados em qualquer possessão colonial francesa da AOF.

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substituindo uma literatura oral4 (contos, provérbios, lendas) que já existia no continente
negro. É fundamental lembrar que a literatura africana de expressão francesa, que
nasceu sob a influência ocidental, teve suas premissas na primeira década do século XX,
no continente americano, especificamente nos Estados Unidos, com as primeiras
manifestações lideradas por intelectuais negros que reivindicavam o fim da alienação e
da segregação racial.
Neste processo de luta, o movimento Black Harlem Renaissance, também
conhecido por New Black desencadeou um amplo movimento de consciência histórica,
política e cultural, baseado no reconhecimento do povo negro e na igualdade dos
direitos. Assim, foi nessa onda de contestação que apareceu, em 1903, o primeiro livro
escrito por um negro, intitulado The Souls of Black Folk em que William Edward
Burghardt Du Bois, um dos adeptos do movimento de New Black e defensor da causa
denuncia as exações feitas aos negros, enaltece a cultura africana e incentiva a
emancipação do negro.
A efusão desta obra constituiu por muito tempo um arcabouço teórico para a
mobilização de movimentos literários africanos. A partir desse momento são lançadas as
bases da literatura negro-africana, em virtude do movimento do New Black. No decorrer
do tempo, essa literatura ganha uma dimensão mais abrangente com a publicação do
romance anticolonialista, Batouala (1921) de René Maran.
Considerado o precursor da literatura negro-africana, René Maran, de origem
guianesa, formou-se em Paris no âmbito do ensino colonial, antes de ser nomeado
administrador colonial na África. Dessa experiência surgiu Batouala (1921),
considerado como ―verdadeiro romance negro‖ (CHEVRIER, 1989) e que viria a
receber no mesmo ano o prêmio literário ―Goncourt‖, apesar de ter suscitado uma
indignação profunda, não só no meio dos defensores da literatura colonial, exótica e
idílica, como também no das políticas coloniais. No seu romance, Maran critica com
uma lógica implacável os abusos e a política de exploração da administração francesa
na colônia da Oubangui-Chari (Atual África Central), fustiga, sobretudo, os textos da
nova elite intelectual indigène mais preocupada em imitar na sua narrativa os cânones
estéticos e culturais europeus do que denunciar as realidades sociais que gangrenavam
as colônias. Como explica (LEBEL, 1931, p. 87), as temáticas desenvolvidas por esses
escritores visavam, em particular, a promover um certo reconhecimento dos seus
escritores na metrópole, porém, sua estrutura literária propriamente dita, revelava de
forma nítida a intenção desses romancistas de fazerem a promoção e a valorização da
sua produção para um público leitor ocidental.
Nessa conjuntura de narrativas romanescas, podemos citar os seguintes
romances senegaleses: Les trois volontés de Malick, (1920) de Amadou Mapaté Diagne.
Esse romance autobiográfico pode ser considerado como ―cânone‖ da literatura
senegalesa, nesse sentido em que constitui o primeiro texto romanesco, de expressão
francesa, escrito por um indigène da colônia do Senegal. No romance, o narrador opta
por representar o desejo de Malick, personagem principal, de se formar na escola do
homem branco com intuito de romper suas tradições e costumes que ele considera
ultrapassados e arcaicos. Na mesma sequência, aparecem Karim, (1935) de Ousmane
Socé; Force-bonté, (1926) de Bakary Diallo.

4
―Podemos definir a literatura oral, por um lado, como o uso estético da linguagem não escrita e, por
outro, o conjunto dos conhecimentos e das atividades que nela se relacionam‖ (ENO BELINGA, 1978, p.
7).

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Como indica o título do romance, Force-bonté revela a grande admiração, que
nutre sua personagem, pelo poder colonial da França, após uma aventura como
Tirailleurs Sénégalais ao lado do exército francês. Como a maioria das publicações
deste período, o retrato mais incisivo dessa obra literária é o do negro assimilado e
moldado à ideologia do colonizador, no sentido de que ele adula e valoriza os símbolos
deste, em detrimento da sua cultura de origem.
Seduzidos pelo brilho artificial da civilização francesa, esses romances escritos
nos moldes metropolitanos participavam da legitimação da dominação e validavam os
estereótipos coloniais. Longe de representar uma literatura negro-africana que quebra os
paradigmas da civilização europeia e a assimilação cultural, destaca-se nessas escrituras
a relevância em adular a ―grandeza da França‖ e promover no espaço tradicional
senegalês, o modo de vida ocidental, mas sem evocar o contexto de exploração e
opressão no qual essa literatura estava inserida Lebel (1931).
Do ponto de vista temático, os primeiros textos literários, produzidos por
intelectuais africanos assimilados, ajudaram, de fato, a reforçar a imagem distorcida
feita sobre a civilização africana. Uma produção que (MIDIOHOUAN, 1986) qualificou
de ―romance colonial negro-africano‖, uma vez que, produzida num contexto e espaço
marcado pela política de assimilação e de alienação. Lembrando que naquela altura, as
Quatre Communes constituíam os espaços literários mais influentes da África
Ocidental, entretanto, tornavam-se um dos viveiros dos negros assimilados (FERRO,
1996, p. 276). Isso justifica, sem dúvida, a ideologia assimilacionista e a representação
pouco combativo que se destacava nessa literatura. Observamos que durante todo o
período de 1920 a 1930, essa conjunto de produção literária africana contribuiu
especialmente para elogiar o colonizador, descartando qualquer crítica sobre as
consequências nefastas do colonialismo.
Em meados de 1930 a véspera das independências, essa tendência de exaltação e
adulação vai ser relegada por um tipo de deslize ideológico caracterizado por uma forte
produção poética fundamentada na afirmação cultural do negro (KESTELOOT, 1963).
Formado nas escolas coloniais, o grupo de estudantes negros vivendo na Europa,
especificamente em Paris, revelaram por meio das suas escritas uma nova forma de ver
o mundo. O grupo era composto pelo guianês Léon Gontran Damas (1912-1978), pelo
martinicano Aimé Césaire (1913-2008), precursor do conceito de negritude e pelo
senegalês Léopold Sédar Senghor (1906-2001). Trata-se de uma geração politizada,
inserida no processo de libertação dos povos colonizados e engajada na difusão de
ideias de negação ao colonialismo.
Preocupados pelos abusos do sistema colonial e pelas experiências vividas na
metrópole, o grupo de estudantes começaram a refletirem e a problematizarem
seriamente a sua condição enquanto homem negro e colonizado. Dentro deste contexto,
eles começaram a buscar formas de combater a máquina repressiva do sistema colonial
e de reconquistar a dignidade do negro, dando ênfase à questão racial. A partir disso,
foram lançadas as bases de uma literatura aguçada com o intuito de libertação. Como
explica Senghor: ―O objetivo da Negritude é construir uma sociedade sem raças, onde o
homem poderá finalmente aceder à liberdade, à justiça e à paz‖ (SENGHOR, 1975, p.
22).Com efeito, o movimento literário visava à construção da personalidade e da
consciência negra, além disso, a denunciar o pensamento eurocêntrico, criando um
sentimento de positividade da cultura do negro.
A história do movimento da Negritude recebeu um novo alento, principalmente,
a partir da publicação, em 1939, do poema intitulado Cahier d´un retour au pays natal.

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Nesse poema, Césaire retraça as condições sociais e morais do povo martinicano,ao
posicionar-se como porta-voz da raça negra humilhada por muito tempo pelo
colonizador. Césaire e os seus partidários assumem-se como fiéis defensores de uma
sociedade condenada ao silêncio, mas também de todos os negros da diáspora
condenados a ficar mudos. A partir daí, o negro deixa de encarnar o papel de vítima,
para assumir o papel de realizador, produtor e ator da sua história e do seu destino. Uma
tomada de consciência que Fanon descreve no seu romance Pele negra e máscaras
brancas (2008), da seguinte maneira:

O negro […] se for para a Europa terá de repensar a sua condição. Porque o negro na
França, no seu país sentir-se-á diferente dos outros. [...] o negro inferioriza-se. A
verdade é que o inferiorizam (FANON, 2008, p. 25)

De acordo com Fanon, a metrópole representa para o escritor um espaço de


alienação e de frustação, onde o intelectual negro no seu cotidiano não deixa de parecer
um ser inferior. Ora, descobrimos assim, junto à personalidade do negro, um complexo
de inferioridade em relação ao branco. Uma situação social que caberá a ele aceitar ou
rejeitar.
Com base nessa ideologia consolidou-se uma luta de ruptura com a ordem
colonial francesa, mas, sobretudo nasceu o desejo de resgate de uma identidade cultural
própria do povo negro. Para fustigar de maneira explícita a opressão racial e a
dominação cultural colonialista, Césaire e Senghor lançaram, em 1934, a revista literária
chamada L´Étudiant Noir como veículo de denúncia e contestação do movimento da
negritude contra o sistema colonial.
Reunindo todos os estudantes negros em Paris e sem distinção de origem, a
revista incentivava os escritores a voltarem às suas origens africanas e condenava a
imitação ocidental – justificando-se, assim, o sentido do título da revista L´Étudiant
Noir – umamaneira explícita de exaltar a capacidade criativa do negro, de rejeitar o
modelo cultural do colonizador e de colocar o movimento da Negritude a serviço da
causa política maior. Assim, vale notar que por meio desta militância, a revista saiu
como um instrumento literário indispensável para a libertação do povo africanoao
facilitar uma larga propaganda da ideologia do movimento literário.
Aliás, é necessário chamar a atenção para o fato de que o movimento da
Negritude, ao longo do tempo, ganhou uma dimensão política, aproximando-se da
proposta essencial do Pan-africanismo e ensejou uma imensa produção literária
repartida em quatro blocos, conforme as diferentes formas de colonização: a literatura
negro-africana de expressão francesa, para os países de língua oficial francesa; a
literatura negro-africana de expressão inglesa, para os países colonizados pelos
britânicos; a literatura negro-africana de expressão lusófona, para os países de língua
oficial portuguesa e a literatura magrebina de expressão francesa, para os países árabes
do Magrebe.
Como instrumento de resistência à exploração colonial, esses diferentes tipos de
literatura, que se formaram tanto dentro como fora do continente africano, embora,
produzidas na língua do colonizador, tiveram importante contribuição política e cultural
na emancipação dos povos africanos. Ambos influenciaram, de diferentes formas, o
despertar da consciência revolucionária na África, conforme explica Bernard Mouralis:

As literaturas africanas produzidas nas línguas europeias nascem a partir do momento


em que os escritores manifestam a vontade de substituir seu próprio discurso pelo

40
discurso que o Ocidente mantinha sobre a África e que ele se esforçava a impor como o
único que se pode manter legitimanente sobre esse continente e suas sociedades
(MOURALIS, 2007, p. 215)5

Nessa perspectiva, a literatura negro-africana revela-se como uma negação à


literatura ocidental e ao pensamento coloniais, tornando-se um espaço de protesto e de
reivindicação. A intenção dessa literatura é, de fato, reescrever sua própria história, que
não será interpretada como um mero anexo da história ocidental. Assim, desconstruir o
discurso colonial é uma maneira de reabilitação do continente africano. Na efetivação
dessa empreitada, que corroborava com a luta contra o colonialismo, a literatura negro-
africana lançou mão de artifícios que tiveram como principal objetivo ressaltar a
africanidade dessas produções.
Nesse período de ascensão do movimento da negritude, mais especificamente,
após a Segunda Guerra, foi publicada uma série de romances denunciando as mazelas
da colonização. Dentro desse contexto, o romance de expressão francesa conheceu um
grande sucesso, que contribui para realçar a contestação do aparelho de alienação
colonial. Com essa necessidade, a literatura negro-africana de expressão francesa
articulou-se em torno de diversas correntes romanescas entre as quais podemos apontar
as mais importantes: os romances de contestação ou romances anticolonialistas, os
romances históricos, os romances de formação ou romances de viagem e os romances
de desencanto, que surgem nos anos pós-independência.
A literatura negro-africana de expressão francesa conquistou um marco poderoso
com o surgimento dos romances de contestação. Sendo os mais virulentos no processo
de descolonização do discurso hegemônico, esses textos de protesto e de denúncia
social testamunham da maturidade dos seus autores pela veemência do tom ou da
sutileza que usam para desvelar o sistema de exploração colonial. O caráter incômodo
de que se reveste esse corrente literário revela a importância da literatura negro-africana
como forma de resistência.A tomada de consciência da sua condição de subalterno
libertou esses romancistas que decidiram, por meio das suas personagens, afirmar sua
identidade cultural e combater as injustiças da administração francesa. Isso deu-se
através da personagem do velho camponês, recompensado por um serviço prestado à
administração colonial em Le Vieux nègre et la médaille (1956),de Ferdinand Oyono;
do jovem rural em busca de uma vida melhor na cidade em Ville cruelle (1954), de Eza
Boto; do olhar ingênuo de um garoto em Une vie de boy (1954), de Ferdinand Oyono,
ou ainda, por meio da maturidade de jovens sindicalistas revoltados em Les bouts de
bois de Dieu (1960), de Ousmane Sembène.
Os romances históricos retratam a memória dos heróis do passado,
contemplando a recuperação deste e a revalorização da cultura africana, que fora negada
pelo colonizador. Os textos mais representativos dessa corrente literária são: Crépuscule
des temps anciens (1962), de Nazi Boni; Soundjata ou l'épopée mandingue (1960),de
Djibril Tamsir Niane.
Os romances de formação, entre os quais se destacam: Unnégre à Paris (1959),
de Bernard Dadié; Le Docker noir (1956), de Ousmane Sembène; Sous l'orage (1957)

5
―Les littératures africaines produites dans les langues européennes naissent à partir du moment où les
écrivains manifestent la volonté de substituer leur propre discours à celui que l´Occident tenait sur
l´Afrique et qu´il s´efforçait d´imposer comme le seul que l´on pût tenir légitimement sur ce continent et
ses sociétés‖ (MOURALIS, 2007, p. 215).

41
de Seydou Badian; Kocoumbo, l´étudiant noir (1960), de Gérard Aké Loba, por sua vez,
encenam, na sua narração, uma tomada de consciência das personagens principais após
um longo período de ilusões e desilusões, de encontros e desencontros na metrópole,
bem como a volta às suas terras natais. Motivadas pela ascensão nas colônias, elas se
vêm obrigadas a absorverem muitos dos valores ocidentais, durante as fases da sua
formação. Talvez seja L´Aventure ambiguё (1961), de Cheikh Hamidou Kane, um dos
romances que exemplifica melhor, já pelo título, a questão de conflito cultural, que
nasce do contato com a civilização ocidental.
Personagem principal do romance, Samba Diallo, jovem estudante peulh, tendo
no seu percurso frequentado sucessivamente, a escola corânica e a escola francesa,
chamada de l´école nouvelle (KANE, 1961), desloca-se para Paris com o intuito de
continuar seus estudos em filosofia, os quais causaram um profundo dilema. De volta à
terra natal, a pedido do pai, Samba Diallo enfrenta dificuldades para conciliar as
tendências contraditórias das culturas europeia e africana. A estadia fora da sua terra
marcou um momento culminante de deterioração da sua educação e dos seus valores
muçulmanos. O jovem estudante não consegue enxergar mais com os mesmos olhos sua
própria cultura, encontrando-se incapaz de se integrar e de se atentar aos usos e
costumes da sua comunidade de origem; sobretudo, de praticar ou assumir suas
obrigações religiosas.
Confronta-se com um modo de pensar totalmente oposto. Ao espiritualismo da
sua cultura, sobrepõem-se o racionalismo e o materialismo do ocidente, que de fato,
deixa-o numa situação ambígua. Imerso em um hibridismo cultural, o seu
questionamento existencial, embora sofrido, virá traduzir-se no transcorrer da narrativa
em sua morte precoce. Com efeito, mesmo se a temática desenvolvida nessa literatura
de ficção não responda necessariamente às expectativas do contexto de denúncia ao
colonialismo, o romance constrói um discurso relevante que abre uma nova visão da
literatura negro-africana, uma vez que, sublima uma mudança nas estruturas sociais –
expõe aspectos importantes da educação muçulmana e da cultura peulh6. Para além
disso, convida os leitores africanos a refletirem sobre uma forma de conciliar, de
maneira equilibrada, as culturas pelas quais são impregnados.
Cabe considerar que no início, o movimento da Negritude desempenhou um
papel relevante na tomada de consciência do povo africano, na valorização da sua
identidade e na de todos os negros da diáspora. As ideias formuladas pelo movimento
da Negritude constituíram, de fato, o ponto central da afirmação da identidade africana.
Uma conscientização que deu um vigoroso impulso à luta pelo fim da discriminação, da
opressão – à luta pela libertação das colônias do jugo europeu. Todavia, logo após a
década de 60, uma nova realidade impôs-se às sociedades africanas recém-
independentes: como lidar com um mecanismo administrativo capitalista, herdado do
sistema colonial, associado a questões de sobrevivência cotidiana.
Os povos recém-independentes esperavam da elite intelectual, em particular da
elite do movimento da Negritude, cuja maioria tomara cargos administrativos ou
presidenciáveis em seus países de origem (caso do Senegal, com Leopold Sédar

6
Maior grupo étnico da África Ocidental, os peulhs são pastores nômades disseminados sobre o território
onde eles formam grupos minoritários e fortemente hierarquizados. Muitos apegados aos valores
tradicionais, eles valorizam a probidade, a inteligência e a sabedoria. Essas informações, talvez,
justificam, por um lado, a dificuldade do protagonista de introduzir uma cultura ocidental nesse círculo
fechado.

42
Senghor), um maior envolvimento nas questões sociais e econômicas dos países que
passaram a dirigir. Como ressalta o etnólogo francês Georges Balandier: ―a
independência conquistada impõe obrigações imediatas: a de construir a nação nova, a
de provocar o desenvolvimento econômico‖ (BALANDIER, 1965, p. 139)7.
A transferência do poder nas mãos do Ocidente para as mãos da elite negra torna
essa teoricamente responsável pela vida política e econômica dos seus países. Porém, a
questão racial e de afirmação da identidade cultural já não constituem um discurso de
interesse para o público africano. Esperava-se dos movimentos literários e da nova elite
uma mudança de foco tanto no plano literário quantono político. Mas, como explica
Fanon, o paradoxo da elite da Negritude é que na sua preocupação de afirmar e de
recuperar os valores culturais africanos, ela acaba retomando o discurso colonial da
reconstrução identitária e da invenção da África (FANON, 1979).
Começa-se a perceber no novo sistema político africano uma herança do
colonialismo – uma continuidade da ideia de alienação e da opressão do negro pelo
negro. Assim, para inverter essa situação assistimos, nos anos pós-independência, a
emergência de uma importante força de denúncia social, formada por uma geração de
romancistas neocoloniais, no sentido de organização política. Esses escritores, que
buscam novos rumos e experiências ficcionais, continuam ligados ao fenômeno
colonial, mas estando mais centrados nas questões que afetam essas sociedades em
plena mutação. Os seus textos deixam de serem veículos de preocupações de cunho
puramente cultural para passarem a transmitir as preocupações políticas dos seus
autores. O tom de desilusão e de denúncia à violência e à corrupção dos novos
dirigentes africanos constituíram as marcas essenciais dessas narrativas. Nesse contexto,
podemos citar: Le soleil des indépendances (1968), de Amadou Kourouma, Le mandat
(1966), de Ousmane Sembène; Le Devoir de violence (1968), de Yambo Ouologuem;
Tribaliques (1971), de Henri Lopes, romances que põem em evidência as falhas da nova
gestão política que ameaçam o equilíbro dos valores culturais do continente africano ao
mesmo tempo em que alertam sobre a formação de uma nova classe burguesa burocrata,
maniqueísta, que colabora com a ideologia colonial.
Outro ponto importante a ser destacado nesse sentido é que o sistema educativo
colonial promoveu, também, o processo de emancipação da mulher africana. Destaca-se
na década de 90, a efervescência de um movimento literário feminista. Esse movimento
constituiu, de fato, o primeiro grito francófono de reabilitação dos danos causados à
mulher africana. Escrita por mulheres africanas, a literatura feminista introduziu um
discurso de denúncia das desigualdades de gênero no universo público quanto privado
nas sociedades africanas. Ela trouxe, também, à tona questões ligadas à infertilidade, à
poligamia, à mutilação genital, em outras palavras, essa literatura representava a posição
da mulher e suas incessantes lutas pela inserção e pelo reconhecimento dos seus direitos
nas sociedades africanas.

7
―L´indépendance conquise impose des obrigations immédiates: celle de construir la nouvelle nation,
celle de provoquer le développement économique‖ (BALANDIER, 1965, p. 13).

43
Considerações finais
Esboçando em linhas gerais o desenvolvimento dos nossos argumentos,
podemos dizer que, independentemente das suas causas e de outros fins a ela
associados, a colonização foi sempre definida como uma ação exercida por um povo
civilizado sobre um país de civilização considerada inferior, com finalidade de
dominação e de aproveitamento dos seus recursos naturais. Embora, agredidos e
oprimidos em diferentes graus, os povos colonizados nunca foram elementos passivos
desse processo de exploração; sendo agentes conscientes das mudanças sociais. Dito em
outras palavras, eles se posicionaram como autores da sua história, não simplesmente
vítimas como possa parecer. Após a resistência armada à ocupação, os movimentos
literários revelaram-se como uma forma eficiente de luta e de resistência contra o poder
colonial.
Nessa dinâmica, a política de assimilação tinha contribuído para o surgimento
dessa elite letrada muito coesiva, que ganhou posição de influência na formação de
valores e atitudes da população em geral. O surgimento e a consolidação de vozes
críticas literárias, oriundas do ensino colonial tanto no interior como no exterior do
continente africano, foram determinantes na transição para um conceito mais amplo de
luta pela libertação dos povos colonizados, pois contribuiu sem dúvida para o
rompimento da hegemonia cultural europeia sobre a África e para a subversão do
monopólio da representação. Embora seja recente, a literatura negro-africana continua a
ser a via privilegiada para expor o descontentamento das massas, mesmo que muitos
dos autores acabem por não se afastar tanto do poder como, inicialmente, pretendiam ou
como nós podemos ser induzidos a acreditar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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45
Retrato de rapaz, de Mário Cláudio: homoerotismo e
efabulação
(Retrato de rapaz, by Mário Cláudio: homoeroticism and efabulation)

Renan Augusto Barili1


1
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
1
Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (FAPESP)

renan.augusto.barili@gmail.com

Abstract: Through this article, we intend to analyze the novel Retrato de rapaz (2014), by
Mário Cláudio, from the point of the "homoeroticism", with the purpose of reflecting about the
image of the renaissance artist Leonardo da Vinci, transformed into a fictional character in the
novel, so that we can decentralize it from the canon at the margin. The efabulation proposed
by the Portuguese writer allows to discuss the occurrence of a possible "hygienization"
imposed under the history, which relegated, to a second level, all the sexualities that were
separated from a compulsory heteronormative logic.
Keywords: Retrato de rapaz; Mário Cláudio; homoeroticism.

Resumo: Pretendemos, por meio deste artigo, analisar o romance Retrato de rapaz (2014), de
Mário Cláudio, a partir da aplicação do viés ―homoerotismo‖, com a finalidade de refletir
sobre a imagem do artista renascentista Leonardo da Vinci, transformado em personagem
ficcional na obra, de forma que consigamos descentralizá-la do cânone à margem. A
efabulação proposta pelo escritor português permite discutir sobre a ocorrência de uma
possível ―higienização‖ imposta sob a História, qual relegou, a um segundo plano, todas as
sexualidades que se desvinculavam de uma lógica heteronormativa compulsória.
Palavras-chave: Retrato de rapaz; Mário Cláudio; homoerotismo.

Introdução
O romance Retrato de rapaz, do escritor português contemporâneo Mário
Cláudio1, foi galardoado em 2014 com o Grande Prémio de Romance e Novela da APE
(Associação Portuguesa de Escritores), um dos mais importantes e relevantes de
Portugal. Tal obra pertence a uma ―Trilogia dos Afetos‖, conjunto de obras ficcionais
cujo enfoque central reside na representação de relações afetivas entre personagens com
idades muito distintas. O primeiro título, Boa Noite, Senhor Soares, lançando em 2008,

1
Mário Cláudio, pseudônimo de Rui Manuel Pinto Barbot Costa, nasceu em 1941, na cidade do Porto,
local onde ainda reside. Escritor, poeta, dramaturgo e ensaísta, tem sido destaque e considerado um dos
mais notórios autores das últimas décadas em Portugal, publicando um vasto número de obras, que lhe
renderam diversos prêmios, tais como o Grande Prémio da Novela e do Romance da APE (Associação
Portuguesa de Escritores), com Amadeo, em 1985; o Grande Prémio Gulbenkain de Literatura para
crianças e jovens, por Olga e Cláudio, em 1986; o Prémio Pen Clube Português de Ficção, em 1997, por
O pórtico da glória; o Prémio de Crónica da APE, em 2001, por A cidade no bolso; o Prémio Pessoa, em
2004; o Prémio Alberto Pimenta do Clube Literário do Porto, em 2005; o Prémio Virgílio Ferreira, em
2008; o Prémio Autores SPA/RTP, de Melhor Livro de Ficção Narrativa, em 2012, com Tiago Veiga:
uma biografia; em 2014 o Grande Prémio de Romance e Novela da APE, com Retrato de rapaz; e em
2017 o Prémio D. Diniz e o Grande Prémio de Literatura dst com Astronomia.

46
relata a aproximação e o possível interesse entre o protagonista, António, e Bernardo
Soares (semi-heterônimo de Fernando Pessoa), transformado em personagem ficcional.
Já o segundo título, Retrato de rapaz (2014), detém-se na efabulação da relação entre
Leonardo da Vinci e um dos seus discípulos, Gian Giacomo Carpotti da Oreno, mais
conhecido como Salai. Por fim, encerrando esse conjunto, em 2015, Mário Cláudio
lança o romance O Fotógrafo e a Rapariga, que narra o relacionamento entre o escritor
C.L. Lewis e uma garota de dez anos de idade, possivelmente aquela que o inspirou a
criar o renomado texto Alice no país das maravilhas.
Neste artigo, objetivamos analisar a obra Retrato de rapaz, procurando observar
as relações entre as personagens, Leonardo da Vinci e Salai, a partir do viés do
homoerotismo, conceito explanado e defendido por muito teóricos, qual permite
transcender e descentralizar a imagem do artista do cânone para à margem, além de
contribuir para uma maior visibilidade de textos literários que trabalham a temática das
mais diferentes subjetividades sexuais.
Para trilhar o caminho de nossa reflexão, é imprescindível iniciarmos com
algumas breves considerações sobre o conceito de ―homoerotismo‖ aqui agenciado,
posto que o seu uso abrange e acolhe diferentes vertentes segmentadas pelos estudos
sobre as sexualidades. A crítica que desempenha o papel e defende o emprego desse
viés é vasta e aglomera os/as mais diversos/as escritores(as) e ensaístas, por isso,
escolhemos partir dos estudos realizados pelos pesquisadores brasileiros Emerson da
Cruz Inácio (2002), José Carlos Barcellos (2002), Eliane Berutti (2002) e João Silvério
Trevisan (2002), autores importantes quando a temática vincula-se ao homoerotismo. A
fim de realizarmos um diálogo conciso e coerente sobre as suas aplicações em textos
literários, outro ensaísta, não menos importante, será utilizado, como é o caso do
argentino Adrián Melo (2005). Dessa forma, articularemos a obra Retrato de rapaz e a
temática, visualizando as relações e as afetividades, entre as personagens centrais, como
característica norteadora a ser discutida na análise.
Com isto, esperamos atingir nossos objetivos e analisar uma importante obra do
extenso projeto literário de Mário Cláudio, um dos nomes mais importantes da literatura
portuguesa contemporânea. Dentre as suas mais recentes publicações, Retrato de rapaz,
permite repensar transcendentemente a imagem de Leonardo da Vinci, a partir de uma
possível especulação efabulatória de sua homossexualidade e suas incidências sobre
uma certa rigidez ao cânone ocidental, permitindo, assim, salutarmente rasurar normas e
conceitos heteronormativos pré-estabelecidos.

Homoerotismo e literatura
A partir dos estudos pioneiros realizados por Jurandir Freire Costa2 (1995) e,
mais adiante, por Emerson da Cruz Inácio (2002), torna-se perceptível que o conceito
homoerotismo surge para abarcar todas as diferentes formas de relacionamento erótico e
afetivo entre duas pessoas do mesmo gênero – masculino/masculino ou
feminino/feminino -. Neste sentido, entendemos que, aqui, o homoerotismo pode
constituir um conceito funcional para análise do romance de Mário Cláudio, em virtude

2
Jurandir Freire Costa é um importante psicanalista e escritor brasileiro. Pioneiro nos estudos sobre
homoerotismo, a leitura de suas obras é indispensável para tratar e compreender o assunto. Entre as suas
principais obras, vale destacar A inocência e o vício: estudos sobre o homoerotismo (1992) e A face e o
verso: estudos sobre o homoerotismo II (1995).

47
dos seus mecanismos baseados na noção de desejo, e não necessária e unicamente de
sexo (INÁCIO, 2002).
A utilização do termo possibilita uma difusão e permite alcançar um número
maior de pluralidades ligadas às sexualidades e, consequentemente, às identidades de
gêneros dentro do romance em estudo, pois, partindo das relações de desejos e
eliminando qualquer tipo de associação com as genitálias, o homoerotismo pode ser um
caminho de suporte para analisar as relações afetivas dentro da efabulação
marioclaudiana, posto que possibilita trabalhar não somente com as relações sexuais,
mas com as mais amplas noções de desejos e afetividades.
Dentro da Crítica Literária, José Carlos Barcellos discute a respeito de como o
termo é utilizado e a forma como o seu uso possibilita e contribui para analisar textos
literários que se aproximem ou fazem uso da temática. Segundo ele,

Em termos de Crítica Literária, é de vital importância para a análise de determinadas


obras, precisamente por não impor a elas ou a seus personagens modelos ou identidades
que lhes são estranhos.[...] O próprio fato de a palavra só existir na forma de substantivo
abstrato (homoerotismo) ou de adjetivo (homoerótico/a) impede a atribuição arbitrária
de uma identidade ou de uma tipologia previamente construída aos personagens em
questão. [...] A abertura dada pelo conceito de homoerotismo é imprescindível para
qualquer trabalho que não se atenha exclusivamente a uma forma específica e bem
delineada de relação ou identidade homoerótica, como a pederastia grega, a sodomia
medieval ou as identidades gays contemporâneas. (BARCELLOS, 2002, p. 21-22)

Ou seja, na perspectiva do ensaísta brasileiro, no exercício crítico, a utilização


do conceito de homoerotismo é completamente viável e compatível para se analisar
determinadas obras onde a ênfase sobre as sexualidades aparece como temática. Seja o
repertório de personagens balizado sob o signo do cânone histórico ou não, fato é que a
leitura do viés homoerótico torna-se um caminho perfeitamente cabível para uma
investigação sobre essas personagens que, muitas vezes, são deixadas à margem. Além
disso, um trabalho crítico que consente com esta ótica não deixa de apontar para um
caminho mais apropriado para se analisar as mais diferentes e amplas relações afetivas
ou eróticas.
E, aqui, chegamos à discussão a respeito da temática que permeia o romance
Retrato de rapaz, de Mário Cláudio: as relações afetivas e homoeróticas presentes na
sua trama ficcional. Antes de qualquer pergunta a respeito sobre esse aspecto, é preciso
compreender que, ao destacarmos esta ênfase no romance do escritor português, não
estamos colocando a obra em questão num nicho direcionado exclusivamente aos
indivíduos LGBTTQ3, mas entendemos que tal temática pode e deve ser sensivelmente
observada por quaisquer outros leitores, sobretudo, aqueles que se interessam pelo
assunto tratado, além de incorporar as mais diversas subjetividades sexuais. Neste
sentido, concordamos com a lição deixada por Eliane Berutti:

Gostaria de responder a última pergunta proposta nesse trabalho (para quem se destinam
os estudos gays e lésbicos?), com a seguinte afirmação: para todos os que se interessam
por estudos sobre a sexualidade. Restringir o alvo desses estudos apenas ao público gay
e lésbico é, sob minha ótica, bastante limitado. Conforme já foi discutido, pode-se
questionar qual seria, em primeiro lugar, esse público-alvo. Ademais, também cumpre

3
LGBTTQ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Queers).

48
repetir aqui uma pergunta acima formulada: estudos gays e lésbicos têm por objeto
exclusivamente gays e lésbicas, ou devem incluir outras minorias sexuais?
[...]
Já que as diferenças entre as minorias sexuais são distintamente visíveis, porém,
dificilmente delimitadas, torna-se imprescindível incluir aos estudos gays e lésbicos a
discussão sobre outras minorias. Devido ao interesse cada vez mais crescente por esses
estudos [...], acredito que empobreceria fechar as portas para os que não se encaixam
nesta conceituação. (BERUTTI, 2002, p. 142-143)

Partindo da discussão realizada acima, vale relembrar, aqui, o pensamento de


João Silvério Trevisan, quando afirma que o ponto crucial e o de partida para os
estudosé o dever de ―falar de uma literatura homoerótica enquanto nascida do ponto de
vista da temática homossexual‖ (2002, p. 165), e não remeter à sexualidade do
escritor/escritora, pois da mesma forma que um texto literário de temática heterossexual
pode ser escrito por uma pessoa que se afaste dessa sexualidade, o mesmo pode ocorrer
com um texto de dicção visivelmente gay, por exemplo, e que seja de autoria de alguém
que nada tenha de semelhante a essa subjetividade sexual. Logo, restringir e segmentar
a literatura de acordo com as sexualidades de seus leitores e/ou de quem a escreveu não
acrescenta nada de positivo, muito pelo contrário, posto que tal atitude apenas acabar
por reforçar a hierarquização existente entre os grupos nos mais diversos polos culturais
e sociais. Pois bem, o viável é, sim, discutir e entrelaçar pensamentos teóricos para
conseguir analisar os mais distintos textos literários, evitando, assim, certos lugares-
comuns de padronização e diferenciação das artes produzidas pelos grupos
marginalizados em relação as dos grupos voltados para uma orientação heterossexual.
Neste sentido, a afirmação de João Silvério Trevisan ensina-nos a recair em erro
grosseiro:

[...] Assim como nunca vi cientistas buscando ―provas‖ da heterossexualidade genética


nas pessoas, também nunca ouvi ninguém procurar definir o que seria uma literatura
masculina, branca e heterossexual. Simplesmente porque se pensa sempre do ponto de
vista hegemonicamente masculino, branco e heterossexual, diante do qual o diferente é
ser feminino, negro e homossexual. E vamos cair outra vez no velho conceito de
normalidade: uma literatura ―normal‖ contraposta a uma literatura de ―minorias‖, a ser
misericordiosamente aceita – ou rechaçada, por desinteressante, menor, circunstancial.
(TREVISAN, 2002, p. 164)

O conceito de homoerotismo vinculado à literatura, então, contribui para analisar


de uma forma mais abrangente e menos excludente os tipos de textos que envolvem as
mais variadas ―sexualidades periféricas‖ (FOUCAULT, 2014, p. 56). Tal atitude
beneficia o texto analisado por abranger de forma natural e isenta de julgamentos
morais as performances e os desejos sexuais das personas retratadas na obra. A partir da
análise de um leitor, cuja perspectiva compreende e atribui novos caminhos a ser
discutidos em prol de uma maior visibilidade e resistência, é permitido abrir novas
portas para a discussão e a disseminação do conteúdo, assim como a obra Retrato de
rapaz será, aqui, discutida. Neste sentido, o romance em análise permite repensar a
própria história ocidental e a transcendência do ícone canônico Leonardo da Vinci, a
partir da visão sobre uma possível homossexualidade do artista.

49
Leonardo da Vinci sob a ótica homoerótica: uma análise de Retrato de rapaz
Para se compreender mais facilmente a relação entre Leonardo da Vinci e o seu
discípulo Salai no romance em questão, pode-se dizer que a obra O Banquete, de Platão,
aparece como um intertexto paradigmático ao longo da narrativa. Nesta, é descrita um
problemático e importante discurso durante a realização de um banquete, onde a
concepção de amor é discutida e celebrada por diversas personagens. Alguns dos
discursos dizem respeito sobre a relação amorosa entre homens, como são os casos das
falas de Sócrates e Diotime. Estas, talvez, sejam as mais relevantes e cabíveis para
entender a consolidação de uma forma específica de afetividade, em o Retrato de rapaz,
na medida em que, durante o enunciado, é discutida a forma como o amor estaria
relacionado ao desejo de imortalidade, e este à paixão sexual.
Segundo eles, este seria o ato que domina as ações dos homens, pois, a partir
dele, pode-se distinguir e separar os homens em duas categorias: primeira, a dos homens
fecundos segundo o corpo, ou seja, aqueles que amam as mulheres e que podem
reproduzir e serem substituídos, atingindo a imortalidade através de suas gerações; e a
segunda, a dos homens fecundos segundo o espírito, que se relacionam com outros
homens ainda jovens e que buscam, em suas almas, alguém para ensinar e plantar os
seus conhecimentos. Exatamente nesse processo educativo de ensinar e amar um jovem,
estaria presente a relação mestre-discípulo, aqui, visivelmente representada na relação
estabelecida entre Leonardo da Vinci e Salai. Na obra El amor de los muchachos:
Homosexualidad& Literatura, Adrían Melo discute, em um de seus ensaios, sobre a
Grécia Antiga e a importância que Platão teve na reflexão sobre o amor das mais
diversas e amplas formas, incluindo a homossexualidade e a contemplação dos corpos
dos meninos:

Pero el diálogo más celebrado por el amor homosexual es el Banquete o Simposio de


Platón. Los siete discursos pronunciados por sus personajes han legado las imágenes y
las metáforas más perdurables sobre el más profundo de los sentimientos humanos. El
amor en sus diversas formas y manifestaciones: a la belleza, al vino, a los cuerpos
bellos, a los muchachos, a los placeres de la vida, a Eros, al Bien, a los discursos y a las
palabras como medio de complacer a los dioses. (MELO, 2005, p. 177-178)

A obra é introduzida com a chegada do pequeno Gian Giacomo Caprotti da


Oreno, aos dez anos de idade, no ateliê de Leonardo da Vinci, obrigado, pelo pai, a
trabalhar para se sustentar e sobreviver. Logo no início da trama, há uma visível
exposição do interesse e do desejo sexual, despertados pelo pequeno no artista. A partir
de poses que remetem a posições eróticas, a imagem de Giacomo é construída sob o
signo da sedução e da provocação. No entanto, ainda que o garoto não esteja atrelado a
essas práticas, mesmo esboçando uma inocência infantil, o narrador sugere que o
mesmo possuía conhecimento de certas performances marginais e da prostituição:

O mestre levantou os olhos das linhas da missiva, e pousou-os com vagar no garoto que
se lhe especava ali, de pernas ligeiramente afastadas nas calças que não lhe chegavam
aos tornozelos. [...] Aos dez anos, sabendo o que sabiam da vida as putas do Borghetto,
foi com alegria que Giacomo ouviu esta ordem mais, carregada do condão de dissipar
nele quanto de temor lhe restasse, «Despe-te-lá!» (CLÁUDIO, 2014, p. 14)

50
O fascínio que o garoto despertava em Leonardo não pairava apenas no âmbito
dos desejos eróticos e sexuais, mas alcançava espaços mais importantes e essenciais na
vida do mestre: a inspiração para produzir novos desenhos e pinturas. No instante em
que a sedução afeta o lado mais criativo e singular do artista, fazendo com que ele se
sinta apto a desenhar um retrato de Giacomo, ambos cravam fixamente os seus olhares,
atitude que resulta em um conhecimento prévio sobre a personalidade tentadora do
aprendiz, surgindo, então, o apelido que perdurará toda a sua vida e se tornará o seu
novo nome: ―Salai‖ (que significa ―diabinho‖, em português).
Honrando o apelido a que lhe foi atribuído, Salai, cometendo uma de suas
peripécias, acaba roubando trinta e cinco liras do amo que estavam guardadas. E, como
forma de reforçar a sua perversão, deixou os atilhos da bolsa soltos, justamente para que
Leonardo percebesse que foi enganado e roubado. Entretanto, ao descobrir o furto, o
Homem demonstra prazer e felicidade, pois sabia que iria punir o garoto da forma como
quisesse, e assim o fez. Tempos depois, chega ao ateliê um guarda-roupa com muitas
peças que, solicitado a um alfaiate, foram confeccionadas exclusivamente ao aprendiz,
porém, o pedido tornou-se inútil porque o artista resolve rasga-las e, como forma de
castigo, exige que Salai passe todo o tempo nu.
Ora, não deixa de ser proposital o intuito por de trás de sua ordem, já que, em
momento algum, foi pensada a humilhação que o ato traria, mas, apenas, no deleite em
poder admirar o corpo desnudo do menino. Tal ocorrência embate e sublinha fortemente
o tipo de afetividade que ocorria entre eles, tal como fora explicado pelo sociólogo
argentino. Segundo Adrian Melo,

Podemos hablar de Salai, el aprendiz de Leonardo da Vinci (1452-1519) que robaba


punzones de plata en el taller del genio, que sustraía dinero de la bolsa de los clientes y
revendía las herramientas de Leonardo para comprarse golosinas.
En una época tan apasionadamente prendada de la belleza física y en donde Leonardo,
al decir de sus biógrafos, la buscaba por las calles de Florencia desde el albur hasta la
puerta del sol, ―acechando sus fugitivos reflejos en ojos desconocidos, en el cabello de
transeuntes ocasionales‖, la hermosura de Salai, con su grácil figura y su pelo fino y
ondulado, había enamorado al artista al punto de permitirle esos y otros excesos.
(MELO, 2005, p. 215)

Atento leitor destas nuances do artista renascentista italiano, Mário Cláudio


recria esta ambiência em o Retrato de rapaz, na medida em que a relação construída
entre os dois passa a ser percebida e avaliada pelas pessoas, não somente as
desconhecidas, mas também aos demais aprendizes de Leonardo, causando desconforto
e inveja entre eles. Salai, que era o mais recém-chegado ao ambiente, conseguiu crescer
e conquistar o artista rapidamente, diferente daqueles que já habitavam e trabalhavam
há muito mais tempo e que não recebiam os mesmos privilégios e atenção. De acordo
com o narrador marioclaudiano:

Milão inteira reparava em tais desconchavos, e os que com ambos se iam cruzando
trocavam piscadelas de olho, ou encolhiam os ombros, a insinuar um relacionamento
entre eles que talvez fosse preferível deixar por esclarecer. [...] Principiaram a circular
então histórias extraordinárias, que se recusava o grande génio a comer fosse que o
catraio não houvesse provado antes, que o incumbia a cada passo de soltar os galináceos

51
da capoeira dos vizinhos, e que condenava o desgraçado a esfregar-lhe o corpo com
óleo de benjoim, quando não a limpar-lhe o cu de cada vez que se levantava da latrina.
(CLAUDIO, 2014, p. 22-23)

Assim posto, é nítida a forma como o relacionamento construído entre ambos foi
se desenvolvendo e se transformando em um convívio muito mais intenso e com novas
particularidades. Vale destacar que, para leitores menos prevenidos, que prefiram não
olhar com sensibilidade a relação traçada entre as duas personagens, é notável como o
narrador vai tecendo os comportamentos dos protagonistas que extrapolam toda uma
convenção ideológica, dogmática e opressora imposta, já que as condutas desviantes
dessa lógica heteronormativa estão direcionadas aos conceitos de errado e de ridículo,
pois os ditos ―normais‖ e ―únicos‖ não atrairiam atenção e bisbilhotices alheias em
razão de que nada de excêntrico e inovador teriam a ser assistido por espectadores
fascinados e alucinados por performances ex-cêntricas.
Conforme o convívio e a intimidade entre o mestre e o seu amo crescia e os
desejos tornavam-se ainda mais intensos e possíveis de serem realizados, as
performances sexuais entre eles também começavam a ser estabelecidas dentro de seus
espaços privados:

Por mais de uma vez, e a meio da noite, quando a cabeçorra surgia alumiada pelo
borralho da forja, e tal e qual como uma divindade afável, mas castigadora, eis que o
Homem, emergindo do resto de um sonho bonito, ou de um horrendo pesadelo, se
achegava aos tropeções ao catre onde o miúdo se encolhia num sono de tranquilidades.
Abanando-o energicamente, obrigava-o a sair da sua rodilha de mantas, e como se ele
mesmo não houvesse despertado ainda, ordenava o seguinte, «Finca-te nas patas
posteriores, alça-te nas dianteiras, e upa! arreganha-me essa dentuça!» O pequeno
obedecia, hipnotizado por aquele olhar azulíssimo, e sacudindo a grenha de caracóis
dourados, executava as suas piruetas diante do que o sustentava, e lhe concedia abrigo,
e que não cessava de esculpir. (CLÁUDIO, 2014, p. 26-27)

Vale ressaltar, aqui, que o romance de Mário Cláudio, em momento algum


incentiva qualquer prática criminosa em relação à pedofilia, tendo em vista que as
relações sexuais com crianças/adolescentes eram práticas recorrentes na Renascença,
justamente para sublinhar e demarcar a submissão que deveria existir entre eles e os
homens mais velhos, além dos atos não serem caracterizados como crimes. Neste
sentido, Adrián Melo discute a respeito da supervalorização dos jovens, nesse período, e
como tal prática aparece de forma muito recorrente na literatura. De acordo com o
sociólogo argentino,

El Renacimiento inauguró el triste tópico de la obsesión con el sentido de la belleza


transitoria de la juventud, y la inevitable contrapartida: la sobrevaloración de los años
mozos, el desprecio por la vejez y la angustia de envejecer. En la literatura de amores
masculinos eso redituó en escenas repetidas de hombres mayores contemplando lasciva
y desesperanza da mente bellos adolescentes, o llegando al patetismo de intentar
disimularlos estragos del tempo – con afeites, tinturas o botox – y seguir conquistando
los cuerpos y los corazones de los más jóvenes (MELO, 2005, p. 47)

Com o passar dos anos e a conversão de Salai em adolescente, os seus desejos e


anseios de ascender socialmente cresciam e a forma encontrada para acumular dinheiro

52
para tal mudança de vida foi através do roubo e da prostituição. E, para isso,
independente de que lhe fosse pedido, Salai não se recusava a se submeter, sofrendo
quaisquer tipos de humilhações e desejos que lhe fossem solicitados:

Os proventos todavia que lhe alimentavam o mealheiro não resultavam apenas dos seus
furtos, mas também, e porventura muito especialmente, dos favores que ia concedendo,
ao colocar o próprio corpo à disposição de tutti quanti. Nessas actividades acederia
Salai ao plano mais alto da escala social de Milão, envolvendo-se com quanto
aristocrata o requisitasse, quer na base da rigorosa contratação, quer na dos afectos
fingidos, para participar de bacanais sem fim. Desnudado das suas fatiotas,
excessivamente flamejantes para merecerem o aval do bom gosto da elite, exibia-se ele
como Deus o deitara ao mundo, e à mão de semear, nas inúmeras relações em que o
utilizavam, quer como agente, quer como joguete, em ribaldarias eróticas de variado
teor. Cobriam-no então de grinaldas de flores, atribuindo-lhe o papel de Pã, ou de
Diónisos, obrigavam-no a sujar os beiços com vinho licoroso de rara extracção,
empoavam-no de farinha, de confetis, ou de lantejoulas, e inventavam para ele
desempenhos impagáveis. [...] E se enfrentava Salai com indizível tristeza, não desistia
este porém de vender a alma àqueles que mais lhe davam. (CLÁUDIO, 2014, p. 41-42)

A par dos acontecimentos e mudanças ocorridas, o artista Renascentista ainda


sentia-se na obrigação de transpassar os seus ensinamentos ao discípulo, que, agora,
aprendia a desenhar e a pintar com a ajuda do mestre, conduta que embate diretamente
com a discussão em torno do conceito de ―Amor‖, proposto por Platão, e que Mário
Cláudio revisita para criar a relação entre Leonardo da Vinci e Salai. Nesta, parece o
autor buscar um exercício de disseminação dos conhecimentos e aprendizados da
personagem-mestra à personagem-discípulo, numa tentativa de reprodução intelectual,
operando, assim, uma transmissão da sabedoria para as gerações futuras:

Quantas e quantas vezes não tomaria Leonardo na sua mão esquerda, canhoto como era,
a mão direita de Salai, seu pupilo, guiando-a no contorno de um desenho, ou no acerto
de um tom. Igual à águia que inicia o voo a sua cria, e que a si mesma se impõe dosear
ternura com austeridade, sabedora de que sem a constante presença daquela o benéfico
efeito desta jamais se manifesta, o mestre empenhava-se em sentir entre os seus dedos
do aluno, cedendo primeiro à natural fraqueza, mas logo a disciplinando em obediência
ao império silencioso a que não conseguia furtar-se. E deste modo se fechava entre
ambos um novo pacto de amor, estabelecido sobre a consciência do amante que do
serviço ao amado deriva a única e incondicional liberdade. (CLÁUDIO, 2014, p. 51-52)

É importante ressaltar, aqui, a possibilidade de utilizar o conceito do


homoerotismo como uma das chaves possíveis para análise da obra. Se, por um lado,
Retrato de rapaz investe num diálogo com a história e com algumas personagens
referenciais, por outro, não se pode perder de vista que todo o seu enredo constitui
matéria ficcional e desenvolve um possível Lado B dos fatos, daí permite ser estudada
pelos mais amplos e antagônicos vieses. Entretanto, fundamentar-se nas discussões
sobre as sexualidades significa dar possibilidade a se pensar sobre a ocorrência de uma
possível higienização imposta sob a História e a Cultura em geral, já que, em
contrapartida, a proposta de repensar a imagem canônica de Leonardo da Vinci, agora,
sob a ótica homoerótica, não deixa de dar visibilidade a certos grupos, quase sempre
representados sob os signos da exclusão e do apagamento histórico e social.

53
Ignorar a sexualidade de um dos principais artistas do mundo, no sentido mais
atemporal da palavra, poderia acarretar, de acordo com uma lógica patriarcal de
privilégio, a exclusão de subjetividades e performances das mais contrastantes nuances,
além de tentar descriminar todo o seu conjunto de trabalho e de descobertas, pois, se,
dentro de uma práxis dominante, ele tivesse se envolvido com uma mulher, tal detalhe
poderia estar incluso e discutido nos mais diversos textos biográficos sobre o artista,
privilegiando, assim, as suas realizações. No entanto, como os registros confirmam esta
ausência, abrindo uma lacuna relevante sobre as práticas e subjetividades do intelectual
renascentista, é muito mais cabível, dentro do discurso e da lógica henetonormativos,
ocultar e esconder possíveis detalhes que insinuem uma ―perversidade imoral‖. Detalhe,
aliás, que poderia desmoralizar todas as suas conquistas e o seu próprio nome.
Voltando a obra, em poucas passagens podemos encontrar momentos em que
Salai se demonstra complacente e cortês em relação a Leonardo, sendo muito mais
visível a ocorrência de suas desavenças ou de seus comportamentos que possam gerar
algum tipo de descontentamento em relação ao mestre. No trecho a seguir, encontramos
a demonstração de uma reciprocidade completamente benévola e que demonstra o
carinho e o afeto que o discípulo também sentia. Ainda que tais gestos não possam estar
relacionados a uma afetividade confessa entre dois amantes, eles permitem uma leitura
da relação das duas personagens masculinas pelo viés homoerótico, pois, conforme
discutido em tópicosanteriores, esse conceito abrange as mais diferentes ligações e
performances entre dois homens ou duas mulheres:

A chuva torrencial que desta feita o acolheu, e que desde a fatídica manhã não deixara
de cair, formava poças no chão onde o pobre enfiava os pés de borzeguins esburacados.
E ao alcançar os aposentos que a Signoria colocara ao dispor do artista, esgueirou-se
para a câmara deste, e foi dar com ele, dobrado sobre si mesmo, e nessa posição fetal
que tão bem calha aos sedentos de amor, aos órfãos, e aos melancólicos.
Aconchegando-se ao Homem, e a tiritar de frio, o eterno aprendiz murmuraria estas
palavras foscas sem a certeza de ser ouvido, «Não estejas triste, querido Mestre, amanhã
não choverá.» (CLÁUDIO, 2014, p. 71)

Um pouco mais adiante nos deparamos com uma das mais belas criações de
Mário Cláudio, trecho sobre o ornitóptero4 projetado por Da Vinci, metáfora que
permite ser associada com a incessante buscapela liberdade, qual está atrelada ao ato de
―voar‖ livremente fora da gaiola. Pois poder levantar o voo sem as amarras e as
repressões de ter de viver preso e ser condicionado a uma estrutura que em nada lhe
apetece não deixa de ser muito similar ao lugar em que as ―sexualidades periféricas‖
(FOUCAULT, 2014, p. 56) ocupam e são tratadas. Acreditamos que, no romance, o
desejo de abrir as asas e possuir a sua independência e a decisão sobre a própria vida
podem e devem ser lidos como formas de comportamento da personagem artista chegar
a um estatuto transcendente na obra, ainda que a sua ambição também esteja

4
Projetado no século XV, o ornitóptero, ou a ―máquina voadora‖, se resume a um equipamento com asas
acopladas aos ―braços‖, remetendo a anatomia de uma ave, ideia surgida após séries de estudos e
pesquisas que o artista realizou sobre o voo de diferentes espécies de animais e insetos. Tais resultados o
influenciaram a projetar essa revolucionária máquina que mais tarde veio se tornar exemplar para as
ciências e as engenharias.

54
direcionada a trilhar outros caminhos. Porém, a partir da forma como o acontecimento
com a experimentação do ornitóptero é construído, não deixa de ser notável a sensação
de libertação e a harmonia que paira sob o mestre:

E a pequena cabine, situada sob a secção do engenho que grosso modo correspondia à
quilha do pássaro, continha duas tábuas de comprimento e largura de um indivíduo de
uma compleição normal, destinadas aos tripulantes. Aí deitados de bruços, e de maneira
a articularem entre si o movimento das mãos, necessário à descolagem, mestre e
discípulo ocupariam os respectivos níveis, Leonardo o superior, e Salai o inferior. [...] A
neblina da manhã, ocultando o vale, dissipava-se gradualmente em farrapos, e ia
oferecendo à vista dos circunstantes o contraste entre o verde dos campos e o azul do
céu. [...] Erguendo a voz estentoriamente, a fim de sufocar a fúria de Bóreas e Euro, de
Noto e Zéfiro, e apelando muito mais à gratificação e orgulho do jovem do que à
satisfação da sua vaidade, o génio festejou assim a magna proeza, «Cá vamos, meu
Filho, porque nada existe de mais digno das estrelas do que o amor de quem o sente
como nós.» (CLÁUDIO, 2014, p. 76-77)

Interessante observar a importante reviravolta que ocorre na trama romanesca,


com a chegada de um novo discípulo ao ateliê, Francesco Melzi, iniciando um ciclo de
desesperança e estranhamento entre eles, e que ocorre após o eterno discípulo ser
rebaixado e trocado pelo novo garoto. A partir desta cena, há uma espécie de nova
supervalorização do mestre, deixando Salai num lugar inferior e de menos importância,
posto que o novo integrante surge para ocupar um patamar muito mais elevado do que
aquele em que discípulo já esteve. Tal acontecimento não deixa de estar associado
àquela supervalorização e àquele desejo sexual pelos jovens, tão comum nessa época,
como foi discutido anteriormente a partir dos estudos de Adrián Melo. Tal desinteresse
do artista pelo jovem está diretamente ligado ao seu crescimento e à sua transição à fase
adulta.
A paixão que Leonardo sentia por Melzi, no entanto, passa a ser descrita como
um sentimento efêmero e dissemelhante ao amor, espécie de misto de intuito
provocativo e de brio direcionados ao discípulo, ela começara a causar nele um grande
arrependimento e infelicidade. Só, então, foi capaz de perceber a forma como Salai era
insubstituível e como apenas ele era o único capaz de lhe fazer bem. Ainda que o novo
assistente possuísse uma beleza radiante e uma inteligência invejável, além de ser
descendente de uma linhagem nobre, Melzi despertava no mestre uma grande
irritabilidade e desconforto. Era inevitável o reconhecimento de que a paixão e o
encantamento acabaram, e o que restava guardado em seu nobre coração era o
verdadeiro e puro amor pelo antigo discípulo:

De facto Melzi não substituiria Salai, e Leonardo aperceber-se-ia da insuportável falta


deste, logo nos dias seguintes à chegada a Amboise. [...] A mais do que isto irritava-se o
artista com a exiguidade dos temas que Francesco Melzi trazia para o diálogo de ambos,
sempre confinado à obra, e nem sequer à recente, mas à que por aquele fora efectuada.
Pungia-o deste modo a saudade do discípulo eterno, tão atreito a arrebatamentos como a
contrições, tão pronto a revoltar-se como a pedir perdão, e tão inclinado à euforia que
exige a cumplicidade como à melancolia que reclama o abraço. [...] A cada instante
aguardava ele que, desprezando interditos e conveniências, o aprendiz lhe surdisse pela
alcova adentro, arredando com um rude gesto do braço o que se propunha cortar-lhe o
avanço, e ajoelhasse à beira do leito em que o amo se preparava para dormir, tudo igual
ao que fizera no passado. Beijar-lhe-ia então os dedos lívidos, segredando-lhe ao

55
ouvido, «Aqui estou, meu Pai, regressado a ti, e à tua beira ficarei até que a noite se
acabe.» (CLÁUDIO, 2014, p. 105-106)

Passado-se alguns anos, e o enredo da obra sendo direcionado ao seu término,


Salai se dedica a cuidar do Homem que sempre o protegeu e que agora se tornara um
ancião enfermo e que necessitava de cuidados especiais para as mais simples atividades.
Novamente, os dois tem um ao outro como uma entidade una para a sobrevivência, para
além da constatação de que o discípulo se sentia no dever de zelar e oferecer a
felicidade e o bem-estar aos momentos finais de vida daquele que sempre o fez tão bem.
Pressentindo a morte próxima, Salai resolve partir, ―não como desistem os
covardes que não podem amar, mas como escolhem os heróis que entregam o coração
para além da caducidade dos dias‖ (CLÁUDIO, 2014, p. 130). Aquele que foi criado
desde criança, educado e passou a maior parte da vida servindo e amando Leonardo,
prefere ir embora com a sua imagem vívida e feliz, ao ter guardada em sua memória a
dor da partida e o seu angustiante fenecimento.
Dessa forma, não deixa de ser notável a maneira como Mário Cláudio conseguiu
transcender a imagem de Leonardo da Vinci dentro da ficção, trabalhando justamente
com a questão em que a maioria dos estudiosos silencia ou simplesmente discute a
partir de uma higienização disciplinadora e normativa, e tratando como um suposto
―desvio momentâneo‖: a sua (possível) homossexualidade. Ou seja, o projeto
efabulador do escritor português não deixa de perfazer o caminho reverso que os demais
escritores, geralmente, estão acostumados a realizar: do centro canônico à margem,
transferindo, assim, um dos mais importantes e consagrados artistas do Renascimento às
situações menos privilegiadas.

Conclusões
A obra Retrato de rapaz tornou-se, neste sentido, extremamente importante para
se discutir, aqui, certos textos de teor homoerótico na literatura portuguesa
contemporânea. Além disso, com a sua leitura, não será possível pensar historicamente
como as ―sexualidades periféricas‖ (FOUCAULT, 2014) sempre foram deixadas a um
segundo plano, sofrendo desvalorizações e sendo inferiorizadas em comparação com a
heterossexualidade, que sempre foi vista e tratada como a única sexualidade
verdadeiramente existente e natural?
Sendo assim, neste sentido, a personagem Leonardo da Vinci construída e
transcendida de seu lugar-comum no romance de Mário Cláudio não deixa de incitar
uma reflexão sobre a formação dos cânones e da própria História. Supondo a
homossexualidade do artista e a sua continuidade como modelo e referência das artes,
não deixa o autor português de ampliar e tratar mais igualitariamente as diferentes
subjetividades sexuais, sem as hierarquizar entre características diminutivas ou
avaliativas dentro de uma valorização e de uma efetiva canonização. Assim posto,
seriam, enfim, desconstruídos certos argumentos e ideologias existentes e estabelecidos
em discursos hierarquizantes e excludentes.
Por fim, analisar a obra Retrato de rapaz, a partir do viés do homoerotismo,
permite pensar a imagem da personagem Leonardo da Vinci, também como um cânone,
de maneira que transcenda positiva e construtivamente os moldes clássicos
solidificados, contribuindo, assim, para uma maior visibilidade de textos literários com
ênfase sobre essa temática. A partir de sua descentralização para à margem, permite-se

56
pensar como essa nova imagem do artista poderia contribuir para uma desmitificação de
conceitos perpetuados, além de tornar perceptível a complexa subjetividade da história,
sem esquecer como ela poderia ter sido.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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metodológicas e práticas críticas. In: SOUZA JÚNIOR, José Luiz Foureaux (org.).
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BERUTTI, E.B. Estudos Gays e Lésbicos no Século XXI: imitação ou devoração
cultural?. In: SOUZA JÚNIOR, José Luiz Foureaux (org.). Literatura e Homoerotismo:
uma introdução. São Paulo: Scortecci, 2002, p. 123-144.
CLÁUDIO, M. Boa Noite, Senhor Soares. Lisboa: Publicações Dom Quixote,
2008.
_______________. Retrato de rapaz. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2014.
_______________. O Fotógrafo e a rapariga. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2015.
COSTA, J.F. A face e o verso: estudos sobre o homoerotismoII, São Paulo: Editora
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__________. A inocência e o vício: estudos sobre homoerotismo. 4ª. Ed. Rio de Janeiro:
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FOUCAULT, M. História Da Sexualidade 1: a vontade de saber. São Paulo: Editora
Paz e Terra, 2014.
INACIO, E.C. Homossexualidade, homoerotismo e homossociabilidade: em torno de
três conceitos e um exemplo. In: SANTOS, Rick & GARCIA, Wilton (org.). A escrita
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MELO, A. El amor de los muchachos. Homosexualidad& Literatura. Buenos Aires:
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PLATÃO. O banquete (O simpósio ou Do amor). Tradução revista, prefácio e notas de
Pinharanda Gomes. Lisboa: Guimarães Editores, 1986.
SANTOS, R. & Garcia, W (org.). A escrita de Adé: perspectivas teóricas dos estudos
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SANTOS, R.J. PoÉtica da diferença: um olhar queer . São Paulo: Factash: Hagrado,
2014.
TREVISAN, J.S. Pedaço de mim. Rio de Janeiro: Record, 2002. TREVISAN, João
Silvério. Pedaço de mim. Rio de Janeiro: Record, 2002.
VALENTIM, J.V. Corpo no corpo: homoerotismo na narrativa portuguesa
contemporânea. São Carlos: EdUFSCar, 2016.

57
Análise sobre lugares sociais destinados às mulheres em
Anoiteceu no Bairro de Natália Correia
(Review about social positions designated to women on Anoiteceu no Bairro
by Natália Correia)

Juliana Coetti Basso1


1
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

julianacoetti@gmail.com

Abstract: The present research aims to analyze the work Anoiteceu no Bairro (1946) by the
portuguese writer Natália Correia (1923-1993). The period when her workwas published was
determined by Salazar‘s government, a political regime implemented in 1933, on the aegis of
António de Oliveira Salazar entailing the portuguese population in a period of
authoritarianism, anti-liberalism, repression and censorship, in particular the women. With the
creation of an organization called Mocidade Portuguesa Feminina, women were being shaped
to perform their role as housekeepers and exemplary mothers. In this context, it is important to
analyze the representation Natália Correia gives to women on her work considering the
characterization provided by Simone de Beauvoir on her Le Deuxième Sexe (1949), showing
in which extent the ideas of both women converge.
Keyords: Female representation. Natália Correia. Portuguese Literature.

Resumo: A presente pesquisa objetiva analisar a obra Anoiteceu no Bairro (1946) da escritora
portuguesa Natália Correia (1923-1993). O período em que sua obra foi publicada era
marcado pelo governo de Salazar, um regime político implementado em 1933 sob a égide de
António de Oliveira Salazar, deixando a população portuguesa imersa em um período de
autoritarismo, antiliberalismo, repressão e censura, em particular às mulheres. Com a criação
de uma organização chamada Mocidade Portuguesa Feminina, as mulheres começaram a ser
moldadas para desempenharem seus papeis apenas como donas-de-casa e mães exemplares.
Nesse contexto, é importante analisar a representação que Natália Correia dá às mulheres,
considerando a caracterização adotada por Simone de Beauvoir em sua obra O Segundo Sexo
(1949), mostrando em que medida as ideias dessas duas escritoras convergem.
Palavras-chave: Representações Femininas. Natália Correia. Literatura Portuguesa.

Breve análise sobre a autora: contexto, leituras e perspectivas


Essa análise se debruça sobre a obra Anoiteceu no bairro (1946), romance
escrito por Natália Correia, autora reconhecida nos meios literários portugueses.
Escritora polêmica nas suas afirmações e categórica na defesa dos seus princípios,
Natália Correia ficou conhecida pela sua postura contrária a todos os meios de repressão
da liberdade das mulheres, dos homossexuais e de todos que, de alguma forma foram
atingidos pela censura do Estado Novo português.
Nesse contexto ditatorial, foi criada em 1937 a Mocidade Portuguesa Feminina
(MPF) a cargo da Obra das Mães pela Educação Nacional, organização que, de acordo
com Irene Flunser Pimentel em seu texto A mocidade portuguesa feminina nos dez
primeiros anos de vida datado de 1998, teria tido como objetivo cultivar em suas
―filiadas‖ a providência e o gosto pela vida doméstica, orientando-as para a, então, visão
do papel da mulher em sua família. Segundo o comissário nacional da MP, Francisco

58
Nobre Guedes, a direção da MPF deveria marcar limites ao modernismo e à
desenvoltura das jovens, para que a mulher portuguesa mantivesse suas virtudes cristãs
e caseiras (PIMENTEL, 1998).
Durante sua trajetória, Natália Correia foi uma personagem da vida cívica
portuguesa de relevante intervenção (parlamentar, subversiva e político-ideológica),
sendo que uma de suas lutas se debruçava sobre a visibilidade do papel reivindicativo
da mulher nesse momento em que a MPF propunha formar a futura mulher, cristã e
portuguesa, educadora e servidora social, mãe e esposa obediente, cujo lugar na nação
era a família e cuja ação se caracterizava pela colaboração e cooperação com os
homens, esposos ou governantes (PIMENTEL, 1998).
A escritora de Breve História da Mulher e outros escritos (1947) foi eleita para o
Parlamento em 1980, como deputada pelo PPD/PSD1, numa altura em que a
despenalização do aborto protagonizava os movimentos feministas na Península Ibérica,
e em que as mulheres representavam apenas 9% das cadeiras.
Apesar de não se intitular feminista, Natália Correia utilizava-se da expressão
Matrismo, que acabava por se relacionar aos movimentos feministas em voga e faz com
que suas obras possam ser lidas a partir desse paradigma, sendo que evoca o espírito da
presença feminina tematicamente e não se conforma com lugares-comuns numa época
predominantemente masculina.
Embora haja alguns pontos em que se distanciava das convenções tradicionais
das ideias feministas, Natália Correia toma seu lugar ao questionar o feminismo
enquanto postura repressora das diferentes maneiras de ser mulher ou enquanto postura
cerceadora dos homens (VALENTIM, 2015, s/p.), pois para ela, aceitar o feminismo
sem questioná-lo seria submeter-se a regras, o contrário do que almejava, como deixou
claro em entrevista a Antónia de Souza, em que afirmou:

Acho que não vale a pena a mulher libertar-se para imitar os padrões patristas que nos
têm regido até hoje. Ou valerá a pena, no aspecto da realização pessoal, mas não é isso
que vem modificar o mundo, que vem dar um novo rumo às sociedades, que vem
revitalizar a vida. Ora bem, a mulher deve seguir as suas próprias tendências culturais,
que estão intimamente ligadas ao paradigma da Grande Mãe, que é a grande reserva, a
eterna reserva da Natureza, precisamente para os impor ao mundo ou pelo menos para
os introduzir no ritmo das sociedades como uma saída indispensável para os graves
problemas que temos e que foram criados pelas racionalidades masculinas. É no
paradigma da Grande Mãe que vejo a fonte cultural da mulher; por isso lhe chamo
matrismo e não feminismo (CORREIA, 2004b, p. 65).

É importante salientar que Natália Correia não nega os princípios feministas,


mas evoca a ideia do matrismo como uma força criadora e não cerceadora de
possibilidades, uma vez que a autora ansiava por um ―surto de uma literatura feminina e
de um comportamento feminino que ofertam à nossa sociedade [a portuguesa] uma
reinterpretação da vida, uma outra visão da vida‖ (CORREIA, 2004b, p. 63), anseio
que, em maior ou menor grau, seria atingido a partir da Revolução de 1974. Tal
ambição é de grande importância, pois, na obra aqui analisada, a autora mostrará de
forma clara a projeção de um porvir incerto, mas libertador, a uma de suas personagens
femininas, sendo esta, a única que apresentará alguma perspectiva de futuro.

1
Partido Social Democrata.

59
Leituras e Leitores
Apesar das ideias norteadoras defendidas abertamente por Natália Correia
citadas acima – dentre outras questões como sua posição favorável ao aborto – no
decorrer das pesquisas elaboradas, foi possível perceber uma carência no que diz
respeito a análises de suas obras a partir de uma perspectiva que ultrapassasse ora a
visão pautada em sua postura perante o movimento surrealista, ora pelo viés (não)
religioso, sendo que questões centrais como o papel da mulher em personagens que
aparecem desde suas primeiras publicações como o romance aqui proposto, sequer são
mencionadas pela crítica.
Como forma a exemplificar o que foi escrito acima, convém apresentar, nesse
momento, um breve levantamento sobre como a autora foi analisada pela crítica no
período de 1940 a 2000, a partir da investigação de artigos publicados em uma revista
online.
Para o levantamento dos posicionamentos críticos das obras de Natália Correia
foi utilizada a base de dados da revista Colóquio Letras, criada em 1971 e dirigida, a
princípio, por Hernâni Cidade (1887-1975), autor de obras de história da literatura e
cultura e professor nas Universidades do Porto (1919-1930) e de Lisboa (1931-1957), e
por Eduardo Prado Coelho (1920-1984), professor catedrático de Literatura Portuguesa
Moderna na Faculdade de Letras de Lisboa, sendo posteriormente adicionadas ao corpo
editorial personalidades como David – Mourão Ferreira e Nuno Júdice. E como aporte
teórico, observou-se sua projeção a partir da ideia da Estética da Recepção de Jans
Robert Jauss.
Com sua aula inaugural na Universidade de Constança, que, em 1969 foi
publicada sob o título A História da Literatura como Provocação à Teoria Literária,
Hans Robert Jauss impulsionou significativamente a questão de se pensar o leitor dentro
da experiência literária, reivindicando também a maneira de se pensar a história a partir
da análise das diferentes experiências estéticas de leitores de épocas distintas,
reconhecendo na relação leitura-leitor, um elo que ocasiona variações interpretativas no
que se refere à obra.
O leitor passa a ser a terceira instância mediadora da história da literatura
pautada em três pilares: o da produção, o da recepção e o da comunicação. A partir da
Estética da Recepção, compreende-se historicamente a literatura, baseando-se na
experiência estética do leitor, o que torna possível, como consequência, atualizações na
leitura de uma mesma obra a partir dessa experiência estética (JAUSS, 1994, p. 73).
Em sua obra, Jauss apresenta sete teses que compõe essa forma de se pensar.
Oautor apresenta o conceito de horizonte de expectativas, em que o saber prévio do
leitor determinaria a recepção de uma obra, a novidade apresentada pela literatura
dialogaria com as experiências possuídas pelo leitor, pois, para ele:

A obra que surge não se apresenta como novidade absoluta num espaço vazio, mas, por
intermédio de avisos, sinais visíveis e invisíveis, traços familiares ou indicações
implícitas, predispõe seu público para recebê-la de uma maneira bastante definida
(JAUSS, 1994, p. 28).
Para o levantamento, foram analisados nove textos acessados pela palavra-chave
Natália Correia, sendo que o período de pesquisa abrangido foi de 1940 a 2000. A partir
da leitura desse conjunto, foi possível observar que, apesar de ser uma escritora que
contou com obras publicadas desde os anos de 1940, tendo como a primeira delas o
texto infanto-juvenil Grandes Aventuras de um pequeno herói (1945), na revista

60
Colóquio Letras a primeira entrada encontrada com relação a uma de suas obras data
somente de 1967 com a análise feita por Carlos Porto sobre a peça teatral A Pécora.
O período em que ocorreu o maior número de publicações envolvendo as obras
de Natália Correia a partir das datas em que as obras analisadas foram publicadas data
dos anos de 1980, contando com cinco textos; mais três textos no período dos anos de
1970 e um texto no ano 2000. Tematicamente, foi possível observar uma grande
preferência da crítica por tratar da escrita poética da autora com fortes temáticas
voltadas ora ao surrealismo, ora a temas religiosos, o que pode ser percebido na tabela
apresentada, ferramenta permitida pela Estética da Recepção.

Quadro 1: Levantamento de textos encontrados sobre a escritora Natália Correia no período de


1970 a 2000.
Ano/ Autor/ título Título da obra Gênero da Assunto tratado pela Observações
edição/ analisada de obra crítica gerais
páginas Natalia Correia analisada
Nº 11 (Jan. Luis de A mosca Poesia  Linguagem/Esti Análise de poesia
1973). Miranda Iluminada lo com lapsos de
Rocha/ ―Também a Mosca prosa; crítica
p. 70-71 Natália Iluminada é uma sobre excesso
Correia. A obra carregada de semântico na
mosca violência‖ escrita de Natália
iluminada ―[...] é o texto onde Correia.
(creio) a oralidade
da poesia de Natália
Correia encontrou
até hoje a sua
melhor realização‖.
Nº 12 (Mar. Nelly -- Contos,  Surrealismo Enquadramento
1973) Novaes Teatro, de Natalia
Coelho/ Romance e Correia na
p. 68-74 Linguagem e Poesia. estética
ambiguidade surrealista
na ficção
portuguesa
contemporâ
nea
Nº 61 (Maio Fernando O Dilúvio e a Poesia  Surrealismo Poesia marcada
1981) Guimarães/ Pomba ―Se considerarmos pela influência
Natália globalmente a surrealista com
p. 72 Correia. O poesia de Natália contestação de
Dilúvio e a Correia verificamos certos valores
Pomba que nela se faz historicamente
sentir, marcada aceites que dão
como está pela a Natália um
influência teor ímpar
surrealista, uma quando
grande e envolvente comparada a
capacidade autores do
imaginativa [...]‖. surrealismo de
 Infância e forma geral2.
amor
―[...] vai de novo ao

2
Grifos meus.

61
encontro do «canto
enorme» em que o
lirismo, aqui
sobretudo marcado
pelo tema da
infância e do amor,
se confronta com as
encruzilhadas e
desvios duma
imaginação [...]‖
Nº 81 (Set. C. Kong- A Ilha de Circe Romance  Linguagem/Esti Linguagem e
1984) Dumas/ lo olhar
Natália ―[...] inscreve-se na humorístico da
p. 85-86 Correia. A corrente da autora.
Ilha de pesquisa de uma Linguagem
Circe nova linguagem, de provocativa.
um ritmo que adere
aos sobressaltos do
subconsciente [...]‖
―Natália Correia
prefere à gíria
enganosa do
Professor as
palavras
evocadoras, muitas
vezes excessivas, a
linguagem sibilina
das criadas [...]‖.
Nº 87 (Set. Carlos A Pécora Teatro  Linguagem/Esti Traça panorama
1985) Porto/ lo sobre obras
Natalia “Peça difícil, mas dramáticas da
p. 98-100 Correia. A peça genial, A autora.
Pécora – Pécora aguarda um
1967 palco, aguarda o
corpo cénico e o
corpo social que
estejam à altura de
um projecto que
não pode deixar de
se transformar em
acto teatral [...]‖
Nº 92 (Jul. Clara O Armistício Poesia  Religiosidade Leitura
1986) Rocha/ ―O volume é, religiosa: ―Os
Natália portanto, de certa deuses ou são
p. 90-91 Correia. O maneira, uma todos ou são
Armistício exaltação duma nenhum (p. 9)‖
religiosidade total como exaltação
capaz de nos de religiosidade
restituir, ao mesmo total e ideia de
tempo, a lucidez e a politeísmo;
alegria‖ poemas que
 Linguagem/Esti tematicamente
lo falam do
―O modelo presentemas
camoniano, por remetem ao
exemplo, é evidente passado pelo
no poema, estilo
camoniano

62
«Invocação», que
segue o método
decassílabo, o
esquema estrófico e
mesmo certos
enunciados da
invocação n‘Os
Lusíadas [...]‖.
Nº 104/ 105 José Onde está o Contos,  Religiosidade Questionamento
(Jul. 1988) Augusto menino Jesus? Teatro, ―Tenho afirmado sobre crenças
Mourão/ A A Pécora Romance e várias vezes que religiosas.
p. 164-165 sedução do A Madona Poesia. Natália Correia é,
múltiplo. O Armistício entre nós, o escritor
Natália que mais
Correia: provocantemente
Literatura e questiona a
paganismo quietude de morna
das expressões da
nossa crença. [...] A
literatura de NC é
uma tentativa feliz,
entre nós, para
ultrapassar a
alternativa do
ateísmo e do
monoteísmo.‖
Nº 104/105 José Onde Está o Contos  Religiosidade Religiosidade
(Jul. 1988) Augusto Menino Jesus? ―O seu recente abordada, tema
Mourão/ Onde Está o da
p. 164-165 Natália Menino Jesus? descrucificação
Correia. Supera, em muito, o – Jesus como
Onde está o programa ainda eterna criança
menino demasiado nesse projeto de
Jesus brincalhão (de dessacralização.
Caeiro) ou
demasiado
metafísico (de
Pascoaes) sobre a
desmistificação da
Trindade e, de
modo especial, a
figura do Menino
Jesus‖.
Nº 157/158 Clara Poesia Completa Poesia  Linguagem/Estil
(Jul. 2000) Rocha/ o
Natália ―[...] inquieta
p. 387-388 Correia. movência das formas
Poesia de expressão poética
Completa que se sucedem e
interpenetram, na
assimilação com
matrizes estético-
literárias tão
díspares como o
Barroco, o

63
Romantismo, o
Surrealismo3 [...]‖.

Apesar de a Estética da Recepção não se aprofundar no campo das motivações


que levam a esse ou aquele tipo de leitura, o frequente enquadramento da escritora na
estética surrealista, como mostrado no quadro acima, pode ser explicado por suas
próprias teorizações acerca da corrente em voga desde suas primeiras publicações (anos
de 1940), teorizações que aparecem na própria revista Colóquio Letras, como é o caso
do inquérito intitulado Que pensa das relações entre os conceitos de ―Vanguarda
ideológica‖ e ―Vanguarda literária‖ à luz da experiência atual, de 1975, contando com
a colaboração de nomes como Jorge de Sena, Helder Macedo, Eduardo Lourenço e
Natália Correia, dentre outros. Tal inquérito, porém, não foi enquadrado na tabela e
gráfico por se tratar de um texto assinado pela própria autora.
Por se tratar de uma escritora que ainda apresenta uma fortuna crítica incipiente
no mundo das letras, a revitalização de suas obras por outras perspectivas apresenta-se
em fase embrionária, como bem pode ser percebido, não havendo alteração no horizonte
de expectativa da crítica, o que apresenta, de certa forma, uma espécie de ―fatalismo‖
sobre as leituras feitas sobre essa escritora, salvo pelo avançar na categorização das
leituras apresentadas no quadro com a inserção do viés religioso em algumas análises.
Percebe-se o apagamento de questões que podem ser norteadoras e fundamentais
para a leitura de grandes obras de Natália Correia – como A Madona (1968), em que a
personagem protagonista é uma mulher, e mesmo a obra Anoiteceu no Bairro (1946),
em que a grande maioria das personagens são mulheres.
Através da observação de algumas das personagens femininas que povoam o
romance aqui proposto, é possível elucidar alguns pontos sobre os quais Natália se
debruça no que diz respeito às representações femininas, levando em consideração seu
próprio posicionamento com relação a essa questão, uma vez que ―não há grande artista
em cuja representação da realidade não se exprimam, ao mesmo tempo, também as suas
opiniões, desejos, aspirações apaixonadas e nostálgicas‖ (LUKÁCS, 2010, p. 30).
A partir disso, sustenta-se a importância dessa breve análise que busca resgatar a
obra de Natália Correia sob uma visão específica, em determinado momento, uma vez
que o recorte temporal acima sobre algumas análises de suas obras trata de um período
(1940-2000) que é suficiente para deixar clara a necessidade dessas obras serem
retomadas, reanalisadas, reafirmadas ou mesmo refutadas, acarretando nas distintas
possibilidades de interpretação entre uma recepção estabelecida no passado e sugerindo,
para trabalhos futuros, sua atualização, numa espécie de fusão de horizontes, propondo
novas respostas para novas perguntas e endossando a relevância de uma obra.
Para esse trabalho, a recuperação de sua obra Anoiteceu no Bairro se dará a
partir da perspectiva das situações das mulheres na sociedade portuguesa, tema
constantemente abordado por ela (A Madona (1968) ou Breve História da Mulher e
outros escritos (1947/2003)).

3
Grifos meus.

64
Alguns norteamentos sobre o ―ser‖ mulher em Anoiteceu no Bairro
Em Anoiteceu no Bairro, o leitor depara-se com um variado público feminino
que apresenta desde a mulher que mais se aproxima de um modelo de mulher
independente, Luíza, até as submetidas a um regime de submissão e conformidade,
como é o caso da primeira personagem a ser aqui abordada, Joana.
Joana, casada com o metódico e quotidiano Sr. Álvaro Graça, quem tinha
sempre ―uma frase de propósito de tudo e muitas vezes de nada‖ (CORREIA, p. 55) e
que a fazia-a sentir-se ―a mulher mais estúpida do mundo, indigna de sentar-se à mesa,
lado a lado do homem brilhante que fazia discursos incompreensíveis‖ (Ibidem, p. 54),
é uma personagem retratada como alguém a viver de aparências. Por ter um marido com
um bom emprego e com uma notável vida pública, ela sentia-se no dever de se mostrar
à altura, frequentando lugares caros, andando de táxi, mesmo preferindo apenas o
conforto de sua casa. Suas ideias divergiam muitas vezes das ideias do marido, como
por exemplo, seus pontos de vista com relação a Luíza. Enquanto Joana tinha vontade
de consolá-la por conta da prisão de seu marido e trazer-lhe alguma palavra de apoio,
Álvaro via a situação com desdém e intolerância:

Mas no fundo, ela julgava-se capaz de roubar para matar a fome. [...] Roubar ou não
comer? Comer.... naturalmente... [...] Eram estas as conclusões que Joana ocultava do
marido por inconsciência e timidez. A sua razão ditava-as, mas quem lhe diria que ela
não seria o produto de uma psicologia deformada? [...] (CORREIA, 2004, p. 57).

Joana deixava de se impor e de expor seu ponto de vista por já apresentar um


condicionamento do que é ser mulher naquela sociedade, podemos dizer inclusive,
condicionamento este pautado nos próprios ideais da MPF, acabando por torná-la uma
personagem representativa no que diz respeito ao afastamento da liberdade de expressão
e quanto à submissão feminina em seu mais forte paradigma. A convivência com seu
marido e o contexto social da época que ditava à mulher seu papel, fizeram com que ela
acreditasse que seu dever era o de apenas aceitar o ponto de vista de alguém que é
julgado por ela e pela sociedade como ser superior, com quem as conversas muitas
vezes eram risíveis, por exemplo, quando conversavam sobre a promoção conseguida
por Álvaro em seu emprego, onde um bate-papo casual entre marido e mulher torna-se
apenas mais um pretexto para Sr. Álvaro Graça se sobrepor.

– E quando tem lugar a posse?...


– Minha querida Joana, não é a primeira vez nem será a última, pelo que vejo, que te
faço esse reparo... [...] Ter lugar é um galicismo, um estrangeirismo imperdoável. A
vernaculidade é mais sobre manifestação de patriotismo. É a língua que nacionaliza o
homem. [...] Não precisa ir beber a fontes estranhas expressões por vezes bem frouxas
da ideia.
Joana desculpou-se com um sorriso meigo. Era muito estúpida... [...] (Ibidem, p. 60).

Os papéis desempenhados por Álvaro Graça e Joana, podem elucidar o que


Simone de Beauvoir citará em sua obra O Segundo Sexo como sendo o que, a partir da
premissa da neutralidade do binômio masculino/feminino, causará a afirmação de um
polo dominante, culturalmente e historicamente definido, um polo que domina e ―outro‖
que obedece, um personificando a norma e o outro personificando a divergência a partir
da instauração de uma hierarquia que coloca a mulher como ―o outro‖, o desvio à norma

65
dentro de um modelo de aparente homogeneidade dentro do binômio elaborado pelos e
para os homens, corroborando com a ideia culturalmente aceita de que:

O homem suserano protegerá materialmente a mulher vassala e se encarregará de lhe


justificar a existência: com o risco econômico, ela esquiva o risco metafísico de uma
liberdade que deve inventar seus fins sem auxílios. (BEAUVOIR, p. 17, 2016)

Ainda nessa vertente, em Anoiteceu no Bairro, apresenta-se uma personagem


duplamente marginalizada, uma vez por ser mulher e outra vez por ser prostituta, uma
vez que nela ―[...] se resumem, ao mesmo tempo, todas as figuras de escravidão
feminina‖ (BEAUVOIR, p. 364, 2016), que é a personagem Cacilda, uma adolescente
que via no contexto da prostituição sua única forma de sustento, assim como o de seu
irmão, o pequeno Jeremias e, consequentemente, o sustento do alcoolismo do pai,
representando neste ponto, além da condição feminina, a quebra dos laços familiares
tradicionais, esse tradicionalismo era também objeto de imposição pelo Estado Novo,
além da manifestação da dispensabilidade da participação do homem como um suposto
progenitor da família, papel este que acaba sendo desempenhado por Cacilda, como se
percebe na próxima citação:

Dantas achava divertido e natural que Cacilda passasse as noites fora, na paródia.
Chegava mesmo a invejá-la. E quando o pai, nas poucas horas em que o vinho não lhe
entorpecia a língua, resmungava por entre os dentes: ―cabra‖, ―galdéria‖ e outros nomes
piores, concluía que ele era um sujeito mau, injusto e ingrato para a filha que o
sustentava, afinal de contas [...] (CORREIA, 2004, p. 61).

Ao completar onze anos, Cacilda consegue um emprego ao irmão, uma forma


deste conseguir continuar com sua vida para que ela pudesse dar um desenlace
surpreendente à sua própria: suicidar-se. Esse suicídio de Cacilda é emblemático no que
diz respeito à estagnação social feminina em um contexto em que a prostituição era um
mecanismo totalmente comum ao homem, sendo nesse caso, permitida a busca por
satisfação sexual, corroborando já na ideia da objetificação feminina. Para Simone de
Beauvoir:

Não é a situação moral e psicológica que torna penosa a existência das prostitutas. Sua
condição material é que é, na maioria dos casos, deplorável. [...] Ao fim de cinco anos
de profissão, cerca de 75% estão com sífilis [...] As menores inexperientes são
contaminadas com uma assustadora facilidade [...] Uma, em vinte, tem tuberculose,
60% tornam-se alcoólatras ou toxicômanas, 40 % morrem antes dos quarenta anos [...].
(BEAUVOIR, p. 375, 2016)

A presença de Cacilda marca a questão da prostituição como sendo uma


instituição social que materializa a apropriação do homem com relação à mulher,
apropriação historicamente constituída tantos são os motivos: prostituição por meninas
abandonadas pelos pais,falta de oportunidade de trabalho, de capacitação, escravidão
sexual, medo etc, como causas relacionadas por Simone de Beauvoir (2016, p. 279-
380). Tal instituição tende a ser naturalizada enquanto vista como uma escolha de
profissão, obscurecendo o olhar incoerente lançado sobre as prostitutas enquanto
pessoas desligadas de qualquer perspectiva psicológica ou incapazes de orientar seus
corpos, mentes e emoções.
Diz-nos o narrador:

66
Na cama estreita o corpo imóvel ampliava-se enchendo o aposento. E aquela coisa
extensa, interminável, era a irmã. A irmã morta. Matara-se. Enforcara-se na braçadeira
da cortina.[...] Nunca mais ouviria a voz da irmã? Ela não mais lhe afagaria os cabelos,
chamando-o ―seu querido pequeno?‖ [...] (CORREIA, 2004, p. 191).

Dentre os elementos femininos presentes na obra tem-se Luíza que, após a prisão
de seu marido, ocupa na narrativa o papel de mulher que mais se aproxima da liberdade
feminina, que consegue impor-se em situações indesejáveis como, por exemplo, no
momento em que o suposto Zé das Fitas, companheiro de assaltos de seu marido,
aparece em sua casa e a assedia, oferecendo-lhe dinheiro. Para Zé das Fitas, Luíza era
―daquele tipo de mulheres frágeis e delgadas, que parecem tombar com um simples
piparote‖ (CORREIA, 2002, p. 79), no entanto, a seguinte citação mostra ao leitor a
forma com que Luíza supera a situação:

Os olhos ardentes do homem cravaram-se nos da rapariga como dois punhais. Avançou
e agarrou-a pelos pulsos. Ela sacudiu-o e voltou-lhe as costas. Ele aguentou-a pelas
espáduas e puxou-a para si. [...] Não foges... estás bem segura... És minha... Ninguém
brinca comigo... Num supremo esforço ela retesou todos os músculos do corpo e
desprendeu-se. Agarrou numa tesoura que de relance viu em cima do toucador e
escudou-se com ela. [...] Luísa fitou-o bem nos olhos, como um domesticador a dominar
a fera [...] (Ibidem, p. 99).

Interessa-nos refletir sobre como a inversão dos valores da hierarquia masculina


acontece em cima dessa personagem, desde logo apresentando uma visão diferente da
exposta pela própria MPF.
Luísa, após a prisão de seu marido, e de toda a negação por que passou perante a
sociedade por ser companheira de um ladrão, decide deixar seu passado e seguir de
forma independente sua vida. A personagem consegue um emprego em uma casa como
governanta. Esta é a única personagem feminina que apresenta um final que permite ao
leitor ter a expectativa em atribuir-lhe um futuro que ainda não foi desenhado, enquanto
símbolo da emancipação feminina, levando-se em consideração que a projeção para o
futuro das outras personagens aqui aparece, ora estagnada como a de Joana, a quem a
inércia tomou conta, ora interrompida como o de Cacilda, a quem a vida não mais
pertence, resta atribuir a interpretação de mulher independente e que age como um ser
transformador da realidade a sua volta à Luísa, quem mostra que:

[...] recuar, nunca... Esse passado de infâmia, ainda tão próximo no tempo, parecia-lhe
um sonho horrível, o pesadelo de uma noite de insônia que se tinha escoado nos alvores
da manhã. Sim! Iria para a frente. Fosse qual fosse a caminhada [...] (Ibidem p. 129).

Conclusão
Tem-se no desenhar dessas personagens, a apresentação de diferentes hipóteses
do ser ―mulher‖ naquela sociedade, sempre pautadas no contexto de subalternidade.
Desprovida de qualquer tipo de idealização, a obra expõe os tópicos da realidade
Portuguesa, como a submissão, a hierarquização referente ao patriarcado, sendo Luíza, a
personagem emblemática que apresenta um desenlace que coloca em perspectiva uma
forma de pensamento e ação que introduz o elemento de consciência pessoal, que acaba
tornando-se também um elemento político, no sentido que visa vencer barreiras de

67
desigualdades já consolidadas e diferentemente valoradas, a partir de um modelo
existencial feminino específico, a mulher emancipada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2016.
CORREIA, Natália. Anoiteceu no bairro. 2ª ed. Lisboa: Editorial Notícias, 2004.
______. Entrevistas a Natália Correia. Edição de Zetho Cunha Gonçalves. Lisboa: A.
M. Pereira Livraria Editora. 2004b.
JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à Teoria Literária.
Trad: Sergio Tellarolli. São Paulo: Editora Ática S.A. 1994.
LUKÁCS. Georg. Introdução a uma estética Marxista. Tradução por Carlos Nelson
Coutinho e Leandro Konder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
PIMENTEL, Irene Flunser.―A Mocidade Portuguesa Feminina nos dez primeiros anos
de vida‖. In: Penélope. Instituto de História Contemporânea, Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas/ Universidade Nova de Lisboa. Lisboa. 1998. p. 166.
REIS, Carlos. História Crítica da Literatura Portuguesa. Do Neo-Realismo ao Post-
Modernismo. v. IX. Lisboa: Verbo, 2005.
VALENTIM, Jorge Vicente. ―Do ensaio como defesa do pensamento matrista: breves
considerações em torno de Natália Correia‖. In: Revista Mulheres e literatura.
Volume14, 2015. Disponível em: http://litcult.net/do-ensaio-como-defesa-do-
pensamento-matrista-breves-consideracoes-em-torno-de-natalia-correia-2/.

68
Masculinização, silenciamento e objetificação das
mulheres na Segunda Guerra Mundial
(Masculinization, silencing and objection of women in Second World War)

Fernando Ribas Camargo1, Jacob Dos Santos Biziak2


1-2
Instituto Federal do Paraná (IFPR)

fer-camargo2011@hotmail.com; jacob.biziak@ifpr.edu.br

Abstract: This Study refers to an attempt to address the participation of Russian and German
women in World War II from the perspective on gender, language and discourse studies, with
the theoretical base mainly focused on Judith Butler, Lúcia Zolin and Michel Foucault. It was
developed based on the books "A guerra não tem rosto de mulher" (2009), by Svetlana
Aleksievitch, and "Anônima: uma mulher em Berlin" (2008), undisclosed authorship. These
books have something in common: they were censored, considering that they denounce male
hegemony during the WW2. This way, it was also necessary to resort to Eni Orlandi (2007) in
order to understand how and why this silencing occurred.
Keywords: censorship; women; Second World War.

Resumo: Esta pesquisa se refere a uma tentativa de abordar a participação das mulheres
russas e alemãs na Segunda Guerra Mundial sob a perspectiva dos estudos de gênero,
linguagem e discurso, com a base teórica focalizada, principalmente, em Judith Butler, Lúcia
Zolin e Michel Foucault. Ela foi desenvolvida a partir da leitura dos livros ―A guerra não tem
rosto de mulher‖, de Svetlana Aleksiévitch (2009), e ―Anônima: uma mulher em Berlin‖
(2008), de autoria não divulgada. Esses livros possuem algo em comum: foram censurados,
pois denunciam a hegemonia masculina em meio à SGM. Por esse motivo, também foi preciso
recorrer a Eni Orlandi (2007), a fim de entender como e por que esse silenciamento (censura)
aconteceu.
Keywords: censura; mulheres; Segunda Guerra Mundial.

Introdução
Ao falar sobre as mulheres em ―A guerra não tem rosto de mulher‖ e ―Uma
mulher em Berlim‖,1 textos que se referem ao front russo na Segunda Guerra Mundial
(SGM), entendemo-las como uma diversidade de vozes sociais, que combateram
intensamente – não apenas com armas, como no primeiro livro, mas sobretudo com a
palavra – para terem seu espaço de significação frente ao exército (russo)
predominantemente masculino.
Por vozes sociais (nesse caso, vozes femininas e masculinas), consideramos que
se tratam de maneiras de se identificar como sujeito, construindo e reproduzindo,
através da linguagem, certos efeitos de realidade – ideológicos – dentro da ordem social,
isto é, no convívio com outros sujeitos, que, por sua vez, se identificam de outras
maneiras. Esse convívio, nada harmonioso, acontece graças à linguagem. É nela que
ocorre a possibilidade de se aproximar, mas também de se distanciar das identificações
preestabelecidas. Nessa relação de distanciamento, há o que se pode entender como

1
ALEKSIÉVITCH, 2016 e ANÔNIMA, 2008.

69
disputa entre vozes sociais – que é o objeto de estudo das teorias marxistas, como a do
círculo de Bakhtin.2
Em ambas as obras, essas vozes femininas às quais cada obra remete
permaneceram por muito tempo apagadas da História, ainda que por motivos distintos,
haja vista que se tratam de ações de violência unicamente contra o universo feminino,3
instâncias da subjetividade bastante reprimidas ao longo do tempo.

A guerra não tem rosto de mulher


O problema trazido logo no título do livro de Aleksiévitch é que, graças às
imposições das culturas daquela época, não se conseguia fazer uma leitura das mulheres
que combateram na linha de frente do Exército Vermelho enquanto corpos femininos,
ou seja, o modelo de sujeito que o exército construía e fazia prevalecer se distanciava
dos modelos que esses corpos costumavam adotar antes da Guerra, que eram entendidos
como modelos femininos de sujeito: inseridos na ordem patriarcalista, eram
identificações ideologicamente forçadas, de modo a serem convencidos de que seus
papéis na sociedade se resumiam ao lar, cuidando dos filhos e dos afazeres domésticos,
distantes do que idealizavam sobre outros corpos – ditos masculinos –, que deveriam
resolver as questões e conflitos diplomáticos (soldados, políticos, oficiais, generais,
etc.). O que não significa que a ordem patriarcalista não imperasse também durante o
conflito, mas, até então, nas guerras anteriores, as mulheres sempre foram deixadas, no
máximo, como―segundo front – lavadeiras, cozinheiras, mecânicas e carteiras‖.4 Devido
ao que convencionalmente se esperava que um soldadofosse,5 os sujeitos até então de
gênero feminino, ao aderirem à identidade de soldado como fonte de suas
identificações, isto é, ainda que submissos a algum sujeito superior, mas mais afastados
das visões antigas, eram sempreidentificações rejeitadas. Sempre se recorria a outras
formas de identidade, era esperado que cumprissem outros papéis sociais. A título de
exemplo, temos a seguinte passagem de um dos elementos do livro que foram
censurados nos anos de sua escritura (por volta de 1985):

Eu estava no turno da noite... Entrei na enfermaria de feridos em estado grave. Um


capitão estava deitado... Os médicos tinham me avisado antes do turno que ele morreria
à noite. Não chegaria até amanhã... Perguntei para ele: ‗E então? Em que posso
ajudar?‘. Nunca vou esquecer... Ele de repente sorriu, um sorriso tão luminoso em um
rosto esgotado: ‗Abra o seu avental... Me mostre seu seio... Há muito tempo não vejo
minha mulher...‘. Fiquei desnorteada, eu nunca tinha nem dado um beijo. Respondi algo
para ele. Saí correndo e voltei uma hora depois.
Ele estava morto. E ainda tinha aquele sorriso no rosto... (ALEKSIÉVITCH, ibidem, p.
30)

2
Bakhtin, 1981.
3
Segundo Beauvoir (1980, p. 09), ―um homem não teria a ideia de escrever um livro sobre a situação
singular que ocupam os machos na humanidade‖, pois a subjetividade só é perceptível em momentos de
crise, e, historicamente, são raros os casos em que os homens foram oprimidos por exercerem uma
performance de gênero masculina.
4
ALEKSIÉVITCH, ibidem, p. 210.
5
―Soldado‖ no masculino, pois a gramática reflete a própria cultura, e as mulheres ainda encontram
dificuldades em serem aceitas no exército. Por isso, ainda não se usa com frequência, na língua
portuguesa, o termo ―soldada‖.

70
Podemos ver que, aqui, o lugar ao qual esse sujeito é inserido é, ainda, o mesmo
em que o capitão insere sua esposa, isto é, na condição de objeto sexual.
Os dispositivos de repressão do feminino enquanto soldado, usando os termos de
Foucault,6 também agiam por meio do controle das roupas que elas vestiam. Ao longo
dos relatos descritos por Aleksiévitch, por exemplo, houve muitas reclamações em
relação às gimnastiorkas, peças pesadas do uniforme, que as mulheres também tiveram
de usar, e que eram, na maioria dos casos, vários números acima do ideal.
Além disso, a diferença entre feminino e masculino, nesses relatos, é, em alguns
casos, relacionada, também, auma diferença biológica dos corpos. A título de exemplo,
temos o seguinte trecho:

E como ser homem? É impossível ser homem. Nossos pensamentos são uma coisa, mas
nossa natureza é outra. Nossa biologia…
Estávamos andando… Umas duzentas meninas, e atrás de nós uns duzentos homens.
Fazia muito calor. Marcha em acelerado: trintaquilômetros. Trinta! Estávamos andando
e, atrás de nós, começaram a aparecer manchas vermelhas na areia… Um rastro
vermelho… Bem, era a… Nossa… Como você vai esconder isso? Os soldados
vinhamatrás e fingiam que não estavam notando nada… Não olhavam para os pés… As
calças secavam no corpo e ficavam feito vidro. Cortavam. Fazia feridas, o tempo todo
se sentia cheiro de sangue. Não nos davam nada… Ficávamos de guarda para ver
quando os soldados penduravam as camisas nos arbustos. Surrupiávamos umas duas.
Depois eles adivinhavam, riam: ‗Subtenente, dê-nos outra camisa de baixo. As meninas
pegaram as nossas‘. Não havia algodão e araduras suficientes para os feridos… Para
outros usos, então… Roupa de baixo feminina só apareceu uns dois anos depois, talvez.
Usávamos cuecas e camisetas masculinas (ibidem, p. 252).

Esse exercício decontrole dos corpos também era nítido quando se tratava dos
cortes de cabelo:

Minha especialidade... Minha especialidade eram cortes masculinos...


Chegou uma garota... Eu não sabia como cortar o cabelo dela. Tinha uns cabelos
exuberantes, ondulados. O comandante passou no abrigo:
‗Faça um corte de homem.‘
‗Mas ela é uma mulher.‘
‗Não, ela é um soldado. Vai voltar a ser mulher depois da guerra.‘ (ALEKSIÉVITCH,
ibidem, p. 215)

Tudo isso pode ser entendido como uma tentativa de impor aos soldados uma
marca de gênero inteligível. De acordo com Butler:

Gêneros ―inteligíveis‖ são aqueles que, em certo sentido, instituem e mantêm relações
de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo. Em outras
palavras, os espectros de descontinuidade e incoerência, eles próprios só concebíveis
em relação a normas existentes de continuidade e coerência, são constantemente
proibidos e produzidos pelas próprias leis que buscam estabelecer linhas causais ou
expressivas de ligação entre o sexo biológico, o gênero culturalmente constituído e a

6
FOUCAULT, 1988. Também é possível pensar no termo poder disciplinar, que Hall (2005, p. 42)
resgatou dos textos do filósofo e historiador francês.

71
―expressão‖ ou ―efeito‖ de ambos na manifestação do desejo sexual por meio da prática
sexual.

A noção de que pode haver uma ―verdade‖ do sexo, como Foucault a denomina
ironicamente, é produzida precisamente pelas práticas reguladoras que geram
identidades coerentes por via de uma matriz de normas de gênero coerentes (BUTLER,
2003, p. 38; itálico nosso).

Quanto mais essa marca se aproximasse da ideia de masculino construída pelo


exército russo da época – e se distanciasse do que o exército entendia por feminino –
mais adequada seria ao modelo padrão do exército, nessa linha de raciocínio
machista.Ainda em Butler,7a autoracomenta que ―o enunciado ‗sinto-me uma mulher‘,
proferido por uma mulher, ou ‗sinto-me um homem‘, dito por um homem, supõe que
em nenhum dos casos essa afirmação é absurdamente redundante‖. No contexto da
SGM, o poder disciplinar tratava de garantir que essa ordem fosseinvertida, ou seja, que
uma mulher tivessede ―se sentir um homem‖, caso quisesse lutar no front. ―Quisesse‖
era uma forma, também de exercer o poder sobre as mulheres, pois, como nos aponta
Foucault, o exercício de poder é um exercício sempre pautado sobre uma certa ilusão de
liberdade. O termo querer sugere que elas poderiam não querer, evidentemente. No
entanto, sabemos que, no caos em que os países se encontravam, as propagandas
nacionalistas tratavam de construir, no imaginário popular, a ideia de que não havia
tempo para as pessoas ficarem ―de braços cruzados‖, enquanto o país era destruído pelas
forças inimigas. Portanto, o querer, era um exercício ideológico, uma empreitada
política na qual todo mundo deveria seguir.
Essa inversão (―sentir-se um homem‖, dito por vozes até então consideradas
femininas) é possível porque ―não há identidade de gênero por trás das expressões do
gênero; essa identidade é performativamente constituída, pelas próprias ‗expressões‘
tidas como seus resultados‖.8 Assim, se as expressões do gênero masculino forem
repetidas com determinada frequência nos corpos dessas mulheres, pode-se dizer que se
tratará, tão logo, de sujeitos do gênero masculino. Inclusive, essa insistência na
expressão do comportamento masculino fez com que o ciclo menstrual de muitas delas
se desconfigurasse, como consta no texto da contracapa do livro: ―passei três anos na
guerra... E, nesses três anos, não me senti mulher. Meu organismo perdeu vida. Eu não
menstruava, não tinha quase nenhum desejo feminino.‖

7
Ibidem, p. 44.
8
Ibidem, p. 48.

72
Silenciamento e autocensura
Antes de falar sobre a outra obra, para a análise que se pretende, é importante
falar um pouco sobre a questão da censura. Portanto, passemos a uma breve análise das
capas de ambos os livros.

Figura 1: Livro 1

Figura 2: Livro 2

Ambas as capas carregam a cor vermelha, uma cor forte e intensa, que remete a
uma ideia de sangue. Sangue daquelas e daqueles que sofreram na guerra. A diferença
mais notória entre essas duas textualidades pode ser expressa na maneira como os
corpos aparecem em cada capa:
Em uma – a capa do livro 1 –, percebe-se o rosto, marcado pelo olhar forte,
como alguém que deseja ser vista.

73
Na outra – livro 2 –, temos um corpo com traços que remetem ao feminino
(convencionalmente falando) aparentemente encostado ao canto de uma parede. Alguém
que parece se esconder. A mão direita sobre a garganta denuncia uma preocupação ou
angústia com o próprio corpo, com a intimidade.9 Alguém, portanto, que não quer ser
vista.
Na primeira, há traços de vermelho no sentido horizontal, ―borrões‖ que
sugerem um deslocamento ou distorção da imagem. Uma tentativa de apagar ou
encobrir alguma coisa – nesse caso, a face feminina (entendendo-a, também, da forma
como sugere uma visão mais tradicional sobre o que é um rosto feminino). Ao reunir os
relatos das sobreviventes da SGM, antes de publicá-los, Svetlana foi submetida à
censura da época.
Eni Orlandi (2007) diz que falar de alguém implica em construir uma identidade
desse sujeito. E é nesse momento que o poder disciplinar, analisado por Foucault, entra
em jogo, pois, quando essa identidade não está de acordo com o que se pretende, os
dispositivos de repressão são acionados para censurar, para silenciar. E foi isso que
aconteceu durante a escritura desse livro. Eis um trecho de sua conversa com o censor:

Depois de livros como esse, quem vai lutar na guerra? Você está humilhando a mulher
com seu naturalismo primitivo. A mulher heroína. Destronando-a. Está transformando-a
em uma mulher comum. Uma fêmea. E elas são nossas santas. [...] A mulher soviética
não é um animal (ALEKSIÉVITCH, ibidem, p. 31-32).

Evidencia-se, aqui, a tentativa do censor de desfazer a imagem das mulheres


construída ao longo da narrativa em favor de uma identidade heroica ―da mulher
soviética‖. Ou seja, a mulher heroína seria aquela que não sofreu tudo o que sofreu por
ser mulher e teve de se adaptar, calada, ao universo masculino. Mostrar esses
mecanismos de coerção e o sofrimento seria, então, tirá-la (destroná-la) desse lugar
ideal.
Entretanto, apesar de terem sido retiradas algumas partes, ao passar pela censura,
esse movimento não excluiu toda a obra. Isso deixaria muito claro que houve o
exercício de repressão. Em uma sociedade que mandou mulheres à guerra, não ter nada
que fale sobre essa participação é um sintoma de autoritarismo que os censores não
deixariam acontecer em hipótese alguma. Ainda em Orlandi,

O silêncio não é ausência de palavras. Impor o silêncio não é calar o interlocutor mas
impedi-lo de sustentar outro discurso. Em condições dadas, fala-se para não dizer (ou
não permitir que se digam) coisas que podem causar rupturas significativas na relação
de sentidos. As palavras vêm carregadas de silêncio(s) (ibidem, p. 102).

Nesse caso, por ser um livro povoado por diversas vozes, algumas em
contradição sobre o que era ser mulher, o censor permitiu, na época, que apenas
algumas delas falassem.
Já no diário da autora anônima, a capa apresenta um título com o fundo também
vermelho, uma faixa que sugere a ideia de uma tarja cobrindo o olho da mulher.
Portanto, alguém que não quer ser vista, mas, também, que não querem que seja vista.
A versão do diário Uma mulher em Berlim sofreu duras repressões na Alemanha. Após
a primeira publicação (1954), as críticas foram tantas, que a autora pediu que apenas

9
Devido aos estupros, Anônima chegou a sentir nojo da própria pele (p. 88).

74
publicassem seu livro quando ela morresse e que ele não carregasse seu nome na
autoria. Por essa razão, pode-se falar de um exercício de censura de duplo movimento: a
censura, como já dito, e a autocensura, que se refere à ação do próprio sujeito de se
calar. Esta última, no entanto, também possui dois lados, pois, além de parecer um ato
individual, quem se silencia só o faz porque está inserido em uma sociedade, em um
sistema ideológico que, por diversos motivos, o conduz a essa condição de repressão da
própria identidade – ou performance de ser. Se estivesse em outra sociedade, ou sujeito
a outra ideologia de cotidiano, possivelmente não precisaria se calar. Para Orlandi,10
inclusive, a autocensura é uma ilusão.

Uma mulher em Berlim


Entendamos, agora, por que tal censura ocorreu, a nosso ver. Em comparação
com a outra obra, aqui, temos uma guerra que chega no próprio país, na própria casa.
Metáfora para a condição das mulheres alemãs, que tiveram o próprio corpo invadido
durante as ondas de estupro, como veremos logo em seguida.
A ―corrida até Berlim‖, como ficou conhecida, mostra que essa cidade foi
disputada tanto pelos americanos quanto pelos russos. Os americanos jogavam muitas
bombas na região, e os russos eram ―potenciais estupradores‖, como a propaganda
alemã anunciava. Antes de eles chegarem, portanto, não se tinha medo do estupro em si,
mas do que falavam sobre ele, da visão social construída sobre o estupro, que facilitava
ações de defesa da cidade: amedrontadas, muitas berlinenses saíam dos esconderijos e
entravam para a Volkssturm, o ―exército do povo‖, construído às pressas, na falta de
outro exército mais preparado, a fim de enfrentar as ameaças cada vez maiores. No
entanto, por eles não terem chegado ainda, para algumas mulheres, esse medo
continuava sendo menor do que o medo de morrer pelas bombas do exército americano,
que, com suas bombas, se faziam tão presentes. Sob essas circunstâncias, temos o
seguinte trecho:

A comunidade do porão já estava completamente reunida. Poucas bombas hoje e,


embora o tempo esteja propício, nenhum ataque aéreo até agora. Irrompe uma
jovialidade nervosa. Circula todo tipo de histórias. A senhora W. grita:
— Antes um russo sobre a barriga que um americano sobre a cabeça.
Um chiste que combina mal com seu crepe de luto (ANÔNIMA, ibidem, p. 29, itálico
nosso).

Evidentemente, esse enunciado (em itálico) vem de algum lugar muito além
desse contexto. Ele surge de condições anteriores de produção: poderíamos pensar, por
exemplo, que uma das mulheres que foram estupradas diversas vezes em um mesmo dia
– por um batalhão inteiro, como é relatado no livro – jamais produziria o mesmo
enunciado. Mas a esperança de continuar vivendo e, quem sabe, um dia esquecer o que
acontecera despertou em Anônima a possibilidade de contornar esse destino, que,
certamente, lhe estava, também, reservado.
As críticas que a autora desse diário sofreu se devem justamente por razão de
seus feitos para fugir da onda de estupros que cobriu a capital alemã logo após a invasão
russa. A autora construiu sua obra a partir de relatos e experiências vividas por outras

10
Ibidem, p. 104.

75
mulheres, na presença dos soldados russos, e por ela mesma, que falava russo e vivia
entre tais estrangeiros, interpretando suas vontades, bem como ajudando as outras
berlinenses a escaparem dos estupros. Eis uma das muitas histórias:

Na busca por aguardente, os russos acabaram encontrando a Elvira e o chefe atrás de


um tabique de madeira, além de uma segunda mulher, uma empregada da firma, que
também havia procurado abrigo por lá. E o homem dá de ombros, não quer continuar a
falar, sai da cozinha.
— Eles fizeram fila — nos esclarece em voz baixa a licorista, enquanto a ruiva continua
em silêncio. Um esperou atrás do outro. Ela diz que eram pelo menos vinte, mas não
sabe com certeza. Ela suportou quase tudo sozinha. A outra mulher não estava bem.
Olho para a Elvira. De seu rosto pálido, a boca inchada pende qual uma ameixa azul.
— Mostre a ela — diz a dona da casa.
Muda, a ruiva abre sua blusa, nos mostra os seios mordidos, descorados. Mal consigo
escrever isso; vomito outra vez (ibidem, p. 151-152).

Apesar das ordens de Stalin de não abusar fisicamente das berlinenses, os


estupros aconteceram em massa, e, no livro de Svetlana, ele também é mencionado:

É... Claro, acontecia... Em nossa terra se escreve pouco sobre isso, mas é a lei da guerra.
Os homens ficavam tantos anos sem mulheres e, claro, havia o ódio. Entrávamos em
uma cidadezinha ou vila: os primeiros três dias eram saque e... Em segredo, óbvio...
Você entende. Mas passados os três dias já era possível ir até para o tribunal. Num
acesso de raiva. Mas por três dias bebiam e... (ALEKSIÉVITCH, ibidem, p. 364).

No entanto, de acordo com Anônima, os atos não aconteciam ―em segredo‖. O


único ponto de fuga que ela encontrou, diante dessas ameaças sobre o corpo, foi buscar
um ―lobo que mantivesse os outros lobos à distância‖, como ela mesma escreve, na
página 76. A partir de então, ela passa a convivere a fazer sexo com oficiais e, em
seguida, com um major, que lhe dá proteção e comida.
É devido a isso que Anônima sofreu tanta crítica quando publicou seu livro pela
primeira vez. Suas escritas tiveram a capacidade de criar uma identidade das mulheres
alemãs, bem como apresentá-la ao público alemão anos mais tarde. E grande parcela
desse público não aceitou. Ainda consternados (e esperançosos) pelos ideais
nacionalistas, não queriam, em hipótese alguma, ver a imagem da mulher alemã, 11 como
costumavam pensar, ser desconfigurada em lugar de uma mulher prostituta. Foi então
que os dispositivos de silenciamento (a censura) foram ativados, em uma onda de
desaprovações, e ela acabou desistindo de publicar o livro enquanto estivesse viva.
Nas duas obras, são nítidas as relações mulher-sujeito e mulher-objeto. Essas
relações, segundo Lúcia Osana Zolin (2009; p. 219), são:

Categorias utilizadas para caracterizar as tintas do comportamento feminino em face


dos parâmetros estabelecidos pela sociedade patriarcal: a mulher-sujeito é marcada pela
insubordinação aos referidos paradigmas, por seu poder de decisão, dominação e
imposição; enquanto a mulher-objeto define-se pela submissão, pela resignação e pela
falta de voz. As oposições binárias subversão/aceitação, inconformismo/resignação,

11
No singular, devido ao costume de estereotipar as diversas subjetividades das mulheres, inserindo-as –
enclausurando-as – em uma única identidade.

76
atividade/passividade, transcendência/imanência, entre outras, referem-se,
respectivamente, a essas designações e as complementam.

Se as duas obras fossem analisadas por esse viés, poder-se-ia dizer que a
primeira trata da luta das mulheres russas pela assunção de uma performance feminina
como sujeito; enquanto a segunda mostra a luta por subverter a ordem estabelecida após
a invasão russa que colocava as mulheres na mera condição de objeto sexual.12Sobre
esta última, tem-se o seguinte trecho, em que ela comenta como aconteceu uma suposta
conversa com um soldado que era professor:

Essa conversa [...] me fez muito bem – simplesmente porque um deles me tratou como
uma interlocutora de mesmo nível, não me tocou enquanto isso, nem sequer com os
olhos, não viu em mim a mulher como até agora todos os outros. [...] Enquanto ele está
presente, nos sentimos seguras (ANÔNIMA, ibidem, p. 87).

Conclusão
Com essa última passagem, pretendemos terminar, por ora, essa análise,
afirmando que, conscientemente, não buscamos, em hipótese alguma, concluir que
todos os russos agiam de acordo com os dispositivos de repressão da performance de
gênero feminino enquanto sujeito, apesar de estarem submetidos a essa ideologia, assim
como nós, infelizmente, ainda estamos, embora em um grau aparentemente um pouco
menor – ou, talvez, não tão submetidos à repressão física, mas pela palavra, o que é
mais difícil de combater. Nossa ênfase é que não se pode apagar a maior onda de
estupros da História, tampouco justificá-la como ―troféu de guerra‖ ou vingança. Assim
como não se pode apagar tantas vozes em detrimento de uma – idealizada –, ao se
contar a história de um ou mais povos. É na linguagem que acontece tal investida, e é
nela que devemos aplicar a justiça, esse modo de estar na História que leva em conta as
outras histórias. E, como diz Zolin (2009, p. 335):

Resta ao pesquisador e ao professor de literatura fazer com que essas vozes ―outras‖
sejam ouvidas não apenas entre eles próprios, nos limites das reuniões acadêmicas, dos
grupos de trabalho e dos seminários que se debruçam sobre a temática ―Mulher e
Literatura‖, mas também nas salas de aula, numa atitude de renovação e não de
perpetuação de ideologias hegemônicas, como a patriarcal.

Por fim, este é um trabalho que estará sempre em construção, já que ―tudo que
dizemos tem um ―antes‖ e um ―depois‖ – uma ―margem‖ na qual outras pessoas podem
escrever‖ (HALL, ibidem, p. 41).

12
O que, de certa forma, também aparece no primeiro livro, porém, não com a mesma intensidade que no
segundo.

77
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALEKSIÉVITCH, Svetlana. A guerra não tem rosto de mulher. Tradução de Cecília
Rosas. 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
ANÔNIMA. Uma mulher em Berlim. Tradução de Renato Zwick. Rio de Janeiro:
Record, 2008.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1981.
BEAUVOIR, Simone. O Segundo sexo: fatos e mitos; tradução de Sérgio Milliet. 4 ed.
São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1980.
BUTLER, Judith. Sujeitos do sexo/gênero/desejo. In: ______. Problemas de gênero:
feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro:
Editora Civilização Brasileira, 2003.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de
Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1988.
HALL, Stuart. A identidade cultural da pós-modernidade.10 ed. Rio de Janeiro: DP &
A. 2005.
ORLANDI, Eni. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 6ª ed. – Campinas,
SP: Editora da Unicamp, 2007.
ZOLIN, Lúcia. Crítica Feminista/Literatura de Autoria Feminina. In: BONNICI, T.
ZOLIN, Lúcia. (Orgs.). Teoria Literária: abordagens históricas e tendências
contemporâneas. 3º ed. Maringá: Eduem, 2009.

78
O fazer lygiano em a Disciplina do amor: leituras
possíveis e/ou interditadas
(El hacer lygiano en ―A Disciplina do amor‖: lecturas posibles y / o
prohibidas)

Fabrícia Rodrigues Carrijo1


1
Universidade Federal de Goiás (UFG)

fr.carrijo@bol.com.br

Resumen: Se pretende con este proyecto estudiar a partir de la labranza artística de Lygia
Fagundes Telles, especialmente el libro A disciplina do amor (1998) la relevancia de puntuar
un "álbum de lectura", especialmente, bajo el foco de sus narradoras-personajes y, De
posesión de estas narrativas, observar si habría o no una práctica de lectura y / o incluso una
escritura más comprometida con la cuestión de Género. Numerosas son las definiciones para
el término género. En este sentido, se pretende abordarlo como: acción, acción que se traduce
tanto en identidades transitorias, como en matrices discursivas y representaciones elaboradas
durante el propio acto de diferenciación de la sexualidad (BUTLER, Judith: Gender Trouble:
feminism and the subversion of identity) Vide: (BESSA, Karla Adriana Martins. ―Gender
Trouble‖: outra perspectiva de compreensão do gênero. Cadernos Pagu (4) 1995, p. 261-267).
Palabras clave: Género; Álbum de lectura; Lygia Fagundes Telles.

Resumo: Pretende-se com este projeto estudar a partir da lavra artística de Lygia Fagundes
Telles, notadamente o livro A disciplina do amor (1998) a relevância de se pontuar um ―álbum
de leitura‖, especialmente, sob o foco de suas narradoras-personagens e de posse destas
narrativas, observar se haveria ou não uma prática de leitura e/ou até mesmo uma escritura
mais comprometida com a questão de Gênero. Inúmeras são as definições para o termo
gênero. Aqui, pretende-se abordá-lo como: ação, ação que se traduz tanto em identidades
transitórias, quanto em matrizes discursivas e representações elaboradas durante o próprio ato
de diferenciação da sexualidade. (BUTLER, Judith: Gender Trouble: feminism and the
subversion of identity) Vide: (BESSA, Karla Adriana Martins. ―Gender Trouble‖: outra
perspectiva de compreensão do gênero. Cadernos Pagu (4) 1995, p. 261-267).
Palavras- chave: Gênero; álbum de Leitura; Lygia Fagundes Telles.

Emocionada com o rei que antes do grito,


―Mas ele está nu!‖, espontaneamente se
reconhece em sua nudez, exposto por inteiro,
face e coração: Aqui estou.
(TELLES, 1998, p. 19).

Ao observar, detidamente, a materialidade constituinte das narrativas de Lygia


Fagundes Telles, nota-se quase sempre referências, alusões, à palavra escrita, à leitura, à
memória – leituras possíveis e ou interditadas paras as mulheres, personagens de sua
ficção. A partir destas leituras e/ou das leituras realizadas pelas personagens lygianas, se
entrevê que elas são (des)veladoras de séculos e séculos de preconceito contra as
mulheres, quando não destinadas ao anonimato, cerceadas sobre o quê, quando, onde e
com que finalidade poderiam ler. Enveredar pelo bosque ficcional de Lygia Fagundes
Telles (para recorremos aqui a uma acepção tomada como empréstimo de Umberto Eco)
é trilhar por entre caminhos obscuros, não raras vezes, interditos até para as próprias

79
personagens e/ou narradoras; quase sempre fadadas ao anonimato, a serem um ―Ser do
Outro‖ primeiro do pai, depois do marido e/ou na falta deste, a figura viril mais
próxima, um irmão, um cunhado, nunca como um ‗Ser em Si Mesmo‘ como assim já o
dissera Simone de Beauvoir (1980). Ou ainda, em alguns casos, o desejo da escrita fica
circunscrito ao silêncio, aliás, ali se resguarda; a palavra ‗não-dita‘, mas sentenciada no
gran finale, na hora da partida. Assim o é no fragmento ―Roxo é a cor da paixão‖, da
coletânea A disciplina do amor:

―FILOMENA ESCONDIA O LEITE1, queria guardá-lo inteiro para o bezerrinho. Uma


antiga tia escondia sua poesia, guardou-a para a morte. Dessa remota tiazinha ficou
apenas um desbotado retrato no álbum [...] Escrevia os poemas escondida, fechada no
quarto, a letra tremida, a tinta roxa. Meu bisavô ficou meio desconfiado e fez o seu
discurso: ―Umas desfrutáveis, mana, umas pobres desfrutáveis essas moças que
começam com caraminholas, metidas a literatas!‖ Ela entendeu e fechou a sete chaves a
obra proibida‖ (TELLES, 1998, p. 85).

Não raras vezes quando convidadas a falar de si, sobre suas práticas de leitura e
até mesmo escritura, as narradoras falam de outrem, às vezes do filho, do marido, da
mãe, e, por fim, inspiram, timidamente, falar de si. E o que haveria neste falar de si,
começando ainda que pelo falar do ‗outro‘? Será a partir desta materialidade, esboçada
pelas narrativas lygianas, notadamente a partir da obra: A disciplina do amor:
fragmentos (1998), que se intenta contemplar, aqui, quais seriam, fundamentalmente, as
leituras das narradoras/personagens mais recorrentes.
Em um fragmento de A disciplina do amor (1998) intitulado ―No princípio era o
caderno‖ a narradora relata este hábito remoto das mulheres – quando então recorriam à
pena para exporem suas experiências, suas primeiras experiências em um ofício
tipicamente considerado masculino – escrever:

QUANDO MOCINHAS, ELAS PODIAM escrever seus pensamentos e estados d‘alma


(em prosa e verso) nos diários de capa acetinada com vagas pinturas representando
flores ou pombinhos brancos... Depois de casadas, não tinha mais sentido pensar sequer
em guardar segredos, que segredo de mulher casada só podia ser bandalheira. Restava o
recurso do cadernão do dia-a-dia, onde, de mistura com os gastos da casa
cuidadosamente anotados e somados no fim do mês, elas ousavam escrever alguma
lembrança, uma confissão que se juntava na linha adiante com o preço do pó de café e
da cebola...Vejo nas tímidas inspirações desse cadernão (que se perdeu num incêndio)
um marco das primeiras arremetidas da mulher brasileira na chamada carreira de letras-
um ofício de homem (TELLES,1998, p. 14-15).

Por ora importa pontuar, ainda que de maneira incipiente, que as narrativas de
Lygia Fagundes Telles sugerem um apelo irresistível à relação indissociável entre
invenção e memória – pares não díspares em sua ficção.
Assim, analisando a memória, enquanto procedimento de análise, seja a
memória histórica (o interdiscurso, aquilo que se repente ao longo dos textos), seja
ainda a memória enquanto apagamento e/ou resquícios do ―eu-que-escreve‖, pretende-

1
Nesta coletânea todos os fragmentos são iniciados com caixa alta. Cumpre-se, aqui, para efeitos de
citação bibliográfica, todas as particularidades desta obra.

80
se, ao longo deste artigo, contemplar a materialidade discursiva da ficção de Telles
infundidas/insinuadas pelas práticas de leitura de suas personagens e/ou narradoras.
Ainda na coletânea A disciplina do amor, no fragmento homônimo:
―Fragmentos‖:

―E ELES TÊM ALGUMA LIGAÇÃO entre si?‖ – perguntou-me um leitor. Respondi-


lhe que são fragmentos do real e do imaginário aparentemente independentes mas sei
que há um sentimento comum costurando uns aos outros no tecido das raízes. Eu sou
essa linha. (TELLES, 1998, p. 115).

Para além dos refúgios do ―eu-que-escreve‖ ou ainda para a então intitulada


morte do autor, na acepção referendada por Foucault (1992) há ―uma linha‖, há marcas
linguísticas indeléveis e/ou perseverantes no tecido textual, materializados no e pelo
discurso e será por meio destas marcas recorrentes – ainda que para muitos aparentem
apenas alinhavos – que este artigo também se ocupará.
É pensando nesta trilha recorrente, neste dizer sempre e, ainda assim, irrepetível
que se pretende pontuar as marcas perseverantes na ficção de Lygia Fagundes Telles.
Por outras palavras, segundo ainda o que assevera Foucault (1992, p. 36-41): ―[...] a
marca do escritor não é mais do que a singularidade da sua ausência; é-lhe necessário
representar o papel do morto no jogo da escrita.‖ Ele ainda acrescenta que não basta
afirmar a morte do autor, é preciso localizar, pontuar esta morte, esta ausência, este
espaço deixado pela figura do autor: ―Trata-se, sim, de localizar o espaço deixado vazio
pelo desaparecimento do autor, seguir de perto a repartição das lacunas e das fissuras e
perscrutar os espaços, as funções livres que esse desaparecimento deixa a descoberto‖
(FOUCAULT, 1992, p. 36-41).
O presente artigo surgiu a partir de algumas notações referendadas a partir da
leitura da obra de Lygia Fagundes Telles e, ainda, através de conversas com colegas de
ofício: educadoras e pesquisadoras, quando então falávamos sobre leituras, enfim, sobre
os hábitos, as preferências por esta ou aquela leitura, o primeiro contato com a leitura, o
que líamos quando criança e o que lemos agora que já somos profissionais da Educação.
De maneira geral, foram observadas na lavra artística de Lygia, algumas curiosidades. É
a partir destas particularidades que se objetiva desenvolver o referido artigo e futura
dissertação de mestrado, sobretudo porque algumas destas peculiaridades nos chamaram
a atenção, a saber: 1) É recorrente na obra de Lygia Fagundes Telles a referência à
narradoras/ou personagens que quando crianças liam e/ou escreviam às escondidas; 2)
Algumas personagens lygianas realizam junto aos apontamentos diários do preço do
café e da cebola, suas tímidas inspirações poéticas em diários e/ou cadernos de
anotações; quase sempre fadadas ao silêncio, pois a pena que escreve não raras vezes
também é aquela que conjura; o medo de serem pegas em flagrante delito.
A expressão ‗mulheres goiabada‘ tem sua origem na imagem da mãe de Lygia
Fagundes Telles mexendo aquele doce e ao lado dos cadernos de receita e anotações do
dia a dia há o registro das primeiras e tímidas inspirações poéticas. Talvez tenha aí,
segundo Lygia, os primeiros registros/as anotações femininas, pois que muito cerceadas
em outros e diversos espaços possíveis.
Antes mesmo de escolhermos a graduação em Letras fomos tomadas pelos
textos de Lygia Fagundes Telles, sabiamente (des)veladores de estilo singular; Uma
escrita reentrante, nunca acabada e sempre incompleta, por isso, o labor da autora ao
retornar aos textos e tentar modificá-los neste ou naquele aspecto. Esta ou aquela
expressão. O termo incompleto não se refere ao sentido de faltar acabamento, mas na

81
acepção de estar sempre por reescrever sua produção com o legítimo desejo de
aprimorar este ou aquele termo, este ou aquele texto em um processo inconcluso com a
escritura.
Em Invenção e Memória (2000), outra obra da lavra artística de Telles nota-se
esta temática homônima não só a partir do título como em toda obra. O trecho que
entreabre a presente coletânea (de contos): ―Invento, mas invento com a secreta
esperança de estar inventando certo.‖, de Paulo Emílio Salles Gomes, seu companheiro
de jornada e afeto, anuncia o trabalho intenso desta autora com as palavras;
Inventar/confabular/criar e ainda assim registrar traços permanentes da memória é este
ou parece ser este o ofício, veementemente, anunciado pela autora sobre a sua criação.
Assim, recorre-se, aqui, às narrativas de Telles e ambiciona-se elencar, como o
próprio título deixa entrever, que tipos de leituras, com que finalidade, com que
frequência as aludidas narradoras/personagens revelam/(des)velam suas práticas de
leitura e, a partir desta materialidade textual, aliás, de suas fissuras, será/é possível
observar uma leitura comprometida com a acepção de gênero?
A despeito de todas estas preocupações com as notações temáticas, não se pode
negar que as mulheres têm, sabidamente, ocupado um lugar que tempos atrás,
fatalmente, lhe seria negado: o espaço público – quase sempre obrigadas a ficar sob as
paredes limítrofes do reduto privado: quarto e cozinha. Não se pode negar que, anos a
fio, estudiosas que pesquisaram sobre a temática gênero, gênero e práticas educativas,
gênero e práticas de leitura, enfim sobre a produção literária feminina, tiveram sempre
que responder a perguntas recorrentes: Existe uma escrita, existe um discurso, um
hábito de leitura, pretensamente feminino?
Pensando nesta escolha significativa por determinados tipos de personagens,
com timbres comprometidos com uma ‗natureza feminina‘(?), assim como a temática e
problemática recorrente, vivenciada pelas narradoras-personagens em seu dia a dia,
optou-se, aqui, por tentar observar esta característica marcante em suas narrativas a
ponto de se aventar a possibilidade de executar um artigo, cujo fio condutor se
constituísse a partir da questão da investidura de gênero correlacionada a uma
materialidade discursiva e, em um dos escopos de análise, estaria ainda a memória e/ou
os seus vestígios/apagamentos que impulsionariam ou não uma abalizada prática de
leitura.
Sabe-se das dificuldades ao se pontuar uma análise temática a partir da discussão
referendada pela noção de gênero – ponto este ainda bastante polêmico e, por esta
mesma razão, extremamente convidativo, emblemático, fascinante – mas, a despeito
destas dificuldades, ainda assim, assumi-se aqui, o risco.
Ao realizar um lampejo na literatura a respeito de práticas de leituras realizadas
por mulheres observa-se que a ordem do dia era a desconfiança, proibição e controles
que, fartamente, inibiram a popularização de práticas de leitura, sobretudo até o século
XIX.
A crítica feminista inglesa, essencialmente marxista, salienta a opressão; a
francesa, essencialmente psicanalítica, salienta a repressão; a americana, essencialmente
textual, salienta a expressão. Para além destas discussões, o que se observa são as
seguintes indagações: A diferença na escritura feminina seria uma questão de estilo? De
gênero? De experiência? Ou é produzida pelo processo da leitura como alguns críticos
textuais manteriam?
Segundo assevera Hollanda (1994, p. 31), as teorias da escrita das mulheres atualmente
fazem uso de quatro modelos de diferença, a saber: biológico, linguístico, psicanalítico

82
e cultural. Cada um é um esforço para definir e diferenciar as qualidades da mulher
escritora e do texto da mulher; cada modelo representa também uma escola de crítica
feminista ginocêntrica, com seus textos, estilos, e métodos preferidos.
Quando inquirida sobre a possibilidade de haver uma literatura feminista assim
pontua Lygia:

A ficção feita por mulheres tem suas características próprias, é mais intimista, mais
confessional: a mulher está podendo se revelar, se buscar e se definir, o que a faz
escolher um estilo de mergulhos em si mesma, aparentemente narcisista porque precisa
falar de si própria, deslumbrada às vezes com as suas descobertas, como se acabasse de
nascer. [Uma personagem minha uma vez disse]: ―Antes eram os homens que diziam
como nós éramos. Agora somos nós‖2.

Muitas de nossas escritoras recusam de modo geral o rótulo de feminista por


uma série de razões, entre as quais está o receio de serem rejeitadas por uma
comunidade ou rede de relações ainda estruturadas sobre uma base patriarcal. Por outro
lado, a crítica literária de cunho feminista no Brasil, ainda em seus primórdios, tem se
utilizado notadamente de enfoques teóricos tomados emprestados da crítica
internacional, principalmente da teoria e filosofia francesas de Foucault, Kristeva,
Lacan, entre outros. Como exemplo desta rejeição está o comentário de Lygia Fagundes
Telles:

Quanto a uma propalada divisão de águas no sentido de separar a literatura feminina da


masculina, penso que esta divisão não existe... A única divisão que faço é no tocante à
qualidade. O sexo é como o sexo dos anjos não interessa. Puro preconceito. Ah! Os
preconceitos... no começo da minha profissão eu sentia bastante agudo esse preconceito,
como um espinho. Tanta desconfiança, tanta ironia... Curioso é que as mulheres,
principalmente as mulheres, me agrediram com seu descrédito...Com sua pouca fé.
Compreensível, afinal elas não ousavam ainda, encasuladas, tementes. Quando viam
uma companheira de sexo romper a tradição... se irritavam com o desafio: o preso que
vê o outro fugir enquanto ele continua engaiolado precisa de muita generosidade para
desejar as melhores coisas ao fugitivo. (TELLES, 1997)3.

Se, historicamente, fora proibida às mulheres a possibilidade de ser um Ser em


‗Si-Mesmo‘, sendo apenas um ser, primeiro do pai, depois do marido, o grande e maior
problema talvez tenha sido este silêncio, este negar ao ‗Outro‘ o direito de expressar-se.
Então, reafirmando o que disse Lygia: que mundo há de querer mostrar estas mulheres
senão o seu, tantas vezes, interditado, outras tantas, silenciado.

[...] Escrevia os poemas escondida, fechada no quarto, a letra tremida, a tinta roxa. Meu
bisavô ficou meio desconfiado e fez o seu discurso. ―Umas desfrutáveis, mana, umas
pobres desfrutáveis essa moças que começam com caraminholas, metidas a literatas!‖
Ela entendeu e fechou a sete chaves a obra proibida (TELLES, 1998, p. 85).

2
Este trecho é uma forma de colagem que reúne citações da lavra artística de Lygia Fagundes Telles
(tanto obras ficcionais quanto entrevistas/depoimentos).
3
Depoimentos de Lygia F. Telles reunidos em uma espécie de colagem – se encontram facilmente
identificáveis no trabalho de SHARPE Peggy. (org.). ―A mulher escritora e o feminismo no Brasil‖ IN:
Entre Resistir e Identificar-se: para uma teoria da prática narrativa brasileira de autoria feminina. As
referências completas acham-se registradas ao final deste trabalho,

83
Na fala do bisavô anuncia-se como seria a recepção de um discurso autônomo
(por parte das mulheres) em um meio social que lhe é hostil, o que acabaria por confiná-
las à interdição, ao anonimato. Nesse sentido, as aberturas no discurso, os espaços
vazios, as lacunas e os silêncios não são apenas espaços onde a consciência feminina se
revelaria, mas, sobretudo, o espaço privilegiado onde se entremostram as brechas de um
discurso autoritário e os véus /as cortinas de um cárcere imposto às mulheres, durante
séculos de anonimato e preconceito: ou eram tidas como bruxas ou como seres
angelicais, inatingíveis, intocáveis, nunca eram vistas como um ‗Ser em Si-Mesmo‘.
Em consonância com o que já foi dito até o momento, espera-se, aqui, ao
analisar as entrelinhas do discurso das narradoras/personagens, pontuar, em última
instância, as práticas de leitura de Lygia Fagundes Telles e, ainda, aventar a
possibilidade de confrontá-las ou não com uma possível acepção de gênero. Não se
pretende realizar apenas um inventário das leituras realizadas pelas personagens e
narradoras do universo ficcional de Lygia Fagundes Telles, o que já seria um projeto
audacioso, pretende-se – a despeito de realizar esta tarefa com vistas a
conseguir/alcançar outro intento – identificar, entrever e quem sabe, ainda que
timidamente, elencar os vestígios da memória enquanto prática de leitura possível,
entrevista na e por meio da materialidade narrativa e ficcional de Lygia.
A leitora Lygia Fagundes Telles é um manancial para onde confluem as
correntes subterrâneas que alimentam a complexidade de suas personagens constituintes
de uma obra vasta em contos, romances e fragmentos. Lygia se denomina em muitos
depoimentos, amplamente, registrados e referendados pelas mais diversas mídias: como
uma leitora dos românticos, especialmente, dos ultrarromânticos em alusão à influência
de seu pai que era leitor e apreciador desta literatura. A autora também apresenta, deixa
evidente em muitos destes testemunhos o gosto pelo estilo machadiano:

Mas é justo falar em imprecisão de uma linguagem assim tão precisa? Clara e precisa na
apresentação das personagens e das coisas, nenhum esfumaçamento nos diálogos que
deixam o leitor assim bem à vontade enquanto avança na leitura descuidada. O texto
(conto ou romance) vai fluindo sem mistério, com a naturalidade de um rio. No entanto,
na aparente clareza deste rio começam a aparecer, aos poucos, certos coágulos de
sombra, um aqui, outro lá adiante... Mas de onde vieram? Esses coágulos (TELLES,
2002, p. 68).

Quais as leituras mais frequentes no universo ficcional de Lygia e com que


finalidade as suas personagens se entregam à leitura? Será que estas circulam na
contramão das leituras autorizadas, aquém do olhar vigilante dos educadores e além do
projeto escolar oficial, instituído? Ao realizar este tipo de trabalho pretende-se rever
algumas notações pertinentes ao feminismo como crítica da cultura, como possibilidade
de verificar nos possíveis vestígios de seus fios discursivos uma prática de leitura
comprometida com a questão do gênero.
Deve-se insistir que não se intenta, com o artigo ora anunciado, utilizá-lo como
verdadeiro ‗Leito de Procusto‘ – moldando posturas, concepções, (pré) conceitos em
regras fixas, em tendências pré-estabelecidas, ora esticando, ora mutilando acepções ao
tamanho da mitológica cama de ferro. Tais moldes, rótulos, tipologias, definições, tanto
incomodam a presente autora no tocante a sua produção, sendo esta literária ou não.
Espera-se, apenas, ao utilizar a acepção de gênero, melhor argumentar o ponto de vista
aqui em defesa: é possível dimensionar, a partir de alguns aspectos fundados na
materialidade discursiva uma prática de leitura nas narrativas lygianas dentro do que a

84
crítica feminista, a ginocrítica, ou a teoria da investidura de gênero, tentam definir como
uma leitura e por que não uma escritura, pretensamente, feminina?
Por ora, insiste-se, aqui, ao retomar a seção dos objetivos, que se espera que os
objetivos a serem alcançados ao término deste trabalho – realização de um artigo – e
que foram diluídos ao longo deste artigo intitulado: ―O fazer lygiano em a Disciplina do
amor: leituras possíveis e/ou interditadas‖ possam se pautar pela clareza, pela
transparência e probidade das argumentações.
Pretende-se recorrer ao escopo dos estudos sobre o gênero, tomada de
empréstimo dos estudos de Judith Butler (1995), Guacira Louro (2001) e Fulvia
Rosemberg (2001). E a exemplo de Lygia F. Telles – renomada contista brasileira –
poderemos, conscientemente, proferir: ―Sempre fomos o que os homens disseram que
nós éramos. Agora somos nós que vamos dizer o que somos‖ (TELLES, 1998, p. 139),
pois, a despeito das leituras cerceadas, proibidas, da voz, insistentemente, definindo,
ditando o que seria ou não uma boa leitura, alçaremos voos mais altos, perspectivas
amplas, a fim de aleitar por terra séculos e séculos de silêncio, de interdição, de
encarceramento do que deveriam/poderiam/podem ou não ler.
Nesse sentido, estas mulheres/narradoras/personagens, optariam, ainda que,
timidamente, falar de si como condição sine qua non para a efetiva
participação/desempenho de suas profissões? Esta é a questão que se apresenta e que,
após a realização das leituras, dos aparatos teóricos, espera-se, pontuar.
Em suma, há na obra de Telles uma preocupação significativa com o mundo
interior das personagens. A autora desce aos recônditos mais profundos das suas
personagens, procurando, na delicadeza da película, na transparência da membrana,
no espaço vazio da forma oca e na efemeridade da duração levar suas personagens a
procurar na imobilidade e no momento lacunar qualquer sinal de equilíbrio e de
parcerias afetivas. No conto ―O x do problema‖, Cesár, o protagonista, usa
delicadamente as pontas dos dedos, ―com gestos suaves de arrombar cofres‖
(TELLES, 1984, p. 114) para ajeitar a antena e tentar melhorar a imagem da televisão.
De maneira semelhante, Telles igualmente busca, com primor e perícia de arrombador
de cofre, patentear os insondáveis enigmas das percepções humanas, descendo aos
labirintos polissêmicos da linguagem e do mundo sensorial e sensual das suas
personagens.
Na obra A disciplina do amor e em tantas outras percebemos nas pequeninas
frestas do espaço afetivo que as personagens anseiam esquecer os desencontros que o
desamor, as perdas, a exclusão social e a sofreguidão emocional provocam. Suas
personagens penetram nos labirintos das suas emoções e vivências, na esperança (nem
sempre alcançada) de encontrar, nos diminutos espaços neutros, o ritual de
comemoração do amor e de outras formas redentoras de ser e estar no mundo.
Em 1958, a Editora José Olympio publicou novo volume de contos da
escritora, Histórias dos desencontros, premiado pelo Instituto Nacional do Livro. O
tema dos desencontros nos contos e romances de Telles abrange áreas fundamentais da
experiência humana. Dever e prazer, sonho e realidade, possível e impossível se
sucedem em desencontros, apontam para a desrazão e o absurdo do mundo.
Segundo José Paulo Paes, em artigo escrito para um dos Cadernos de Literatura
Brasileira:

O título de um dos livros de Lygia Fagundes Telles, Histórias do desencontro, bem


poderia servir de lema para sua obra de ficção. Seja nos contos, seja nos romances, o
desencontro é um tema de ocorrência frequente que a inventividade e a competência da

85
sua arte de ficcionista não deixa nunca tornar-se repetitivo. Ao contrário, cada
ocorrência serve para pôr- lhe de manifesto este ou aquele aspecto diverso, com o que o
desencontro acaba por patentear-se menos um tema do que uma das matrizes da
experiência humana (PAES, 2002, p. 70).

Para finalizar convém mencionarmos a respeito da obra publicada pela primeira


vez em 1980, intitulada de A disciplina do amor: reunião de textos que a própria Lygia
classifica como ―fragmentos‖. A obra pode ser confundida com um diário, mas,
segundo a autora, é tudo invenção. O título traz uma intenção irônica, em que no caos
há ordem e numa aparente indisciplina a ordem é verdadeira.

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86
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87
A autoridade materna na escrita negra feminina
(The maternal authority in black feminine writing)

Consoelo Costa Soares Carvalho1


1
Universidade Federal do Estado de Mato Grosso (UFMT)

consoelosoares@gmail.com

Abstract: The theme of maternity in the literary context is marked by representations linked
to patriarchal epistemologies in which the condition of being a mother is naturally imposed on
the woman and must be accepted without hesitation. Referring specifically to the
representation of the black woman's motherhood, the issue takes on even more complex
contours. The image of these women-mothers is linked to the slave-like historical context of
body-procreation, body-object of pleasure and mother of milk of the children of their masters.
Based on these premises, the objective of this article is to demonstrate, through the analysis of
the tales "How many children Natalina had?" And "Isaltina Campo Belo", by the black writer
Conceição Evaristo, how protagonist characters deal with the issue of motherhood by
subverting notions that permeate the act of being a mother in our society. For that, we take as
the motto of the discussion a fundamental question: the writing of female black authorship as a
place of enunciation and self-representation.
Keywords: maternity, black-woman, literature.

Resumo: O tema maternidade no contexto literário é marcado por representações vinculadas a


epistemologias patriarcais em que a condição de ser mãe é naturalmente imposta à mulher,
devendo ser aceita sem hesitação. Referindo-se, especificamente, à representação da
maternidade da mulher negra, a questão adquire contornos ainda mais complexos. A imagem
dessas mulheres-mães são vinculadas ao contexto histórico escravocrata, de corpo-procriação,
corpo-objeto de prazer e de mãe de leite dos filhos dos seus senhores. Partindo dessas
premissas, o objetivo desse artigo é demonstrar, a partir da análise dos contos ―Quantos filhos
Natalina Teve?‖ e ―Isaltina Campo Belo‖, da escritora negra Conceição Evaristo, como as
personagens-protagonistas lidam com a questão da maternidade subvertendo noções
hegemônicas que permeiam o ato de ser mãe na nossa sociedade. Para tanto, tomamos como
mote da discussão uma questão fundamental: a escrita de autoria negra feminina enquanto
lugar de enunciação e auto-representatividade.
Palavras-chave: maternidade, mulher-negra, literatura.

Literatura, maternidade e autoria


O tema maternidade, aliado ao contexto literário, adquire certo grau de
complexidade, principalmente se considerarmos questões relacionadas à
representatividade e à autoria. Embora a literatura nos permita conhecer múltiplos
contextos, sujeitos, lugares, culturas etc., o campo literário ainda é muito limitado
quando falamos de representatividade, ou seja, diversos grupos sociais não ocupam os
espaços literários nem como personagens e muitos deles, menos ainda na condição de
autor ou autora. A esses grupos marginalizados – mulheres, negros, homossexuais,
índios, deficientes físicos, pobres etc. – restam a condição de objeto de fala de outrem,
recebendo quase sempre valoração negativa, que é fixada não apenas nas muitas páginas
da nossa literatura, mas também no imaginário social.

88
Em rápida rememoração dessas representações relacionadas à mulher negra,
objeto desta discussão, encontramos na literatura nacional, para citar as mais
conhecidas, personagens como Bertoleza, destinada ao trabalho excessivo como um
animal de carga, e Rita Baiana, exibida como detentora de uma sexualidade que macula
a família portuguesa, na obra O Cortiço (1890) de Aloísio de Azevedo, ou ainda
Gabriela, em Gabriela, cravo e canela, (1958) de Jorge Amado, Vidinha em Memórias
de um sargento de milícias (1854) de Manoel Antônio de Almeida, ambas expostas
como objeto de consumo erótico.
Essas construções deturpadas da mulher negra alicerçadas em uma ideologia
patriarcal excluem outras possibilidades de existência dessa mulher, portanto, temas
como a maternidade nem são cogitados. Segundo Eduardo de Assis Duarte (2009),
nossa literatura canônica marca a mulher negra com a esterilidade, isso porque ela
aparece na cena literária, além de objeto de desejo, apenas como corpo-procriação ou
mãe de leite dos filhos dos seus senhores, não como mães dos seus próprios filhos.
Subvertendo esses lugares já cristalizados tanto pela história quanto pela
literatura, encontramos na literatura afro-brasileira mães que revelam os diversos
sentidos da maternidade. Temos, assim, a fusão de três elementos dispendiosos ao
campo dos estudos literários cuja gênese funda-se em preceitos patriarcais, a saber:
gênero, raça1 e autoria. A escrita de mulheres negras ainda provoca questionamentos
que envolvem a legitimidade dessa produção enquanto obra de arte literária, a temática
recorrente sobre o negro e principalmente sobre a voz autoral. Que voz é essa? Seriam
essas mulheres dignas de pertencer a uma categoria tão elitizada como é a de escritores?
Poderíamos ousar dizer que Carolina Maria de Jesus produz literatura?
Contrariando os discursos eurocêntricos, afirmamos que sim. Carolina Maria de
Jesus e outras escritoras negras brasileiras não apenas fazem literatura, mas são elas que
descortinam os diversos conflitos do que é ser mulher negra nesse país. As vozes que
ecoam nas milhares de páginas da literatura afro-brasileira são vozes autorais. É o afro-
brasileiro e a afro-brasileira falando de si e por si sem intervenções de um eu que se diz
superior. Isso faz com que suas narrativas, através de uma semântica, ponto de vista e
linguagem específicas, extirpem toda a carga de negatividade atribuída ao negro pela
literatura dita canônica.
Diante dessas conjunturas, o entrelaçamento entre autoria e representatividade
assume ampla relevância. A esse respeito, Regina Dalcastagnè (2005), ao falar da
necessidade da diversidade de vozes na literatura contemporânea brasileira afirma que:

Mesmo que outros possam ser sensíveis a seus problemas e solidários, nunca viverão as
mesmas experiências de vida e, portanto, verão o mundo social a partir de uma
perspectiva diferente. Por mais solidário que seja às mulheres, um homem não vai
vivenciar o temor permanente da agressão sexual, assim como um branco não tem
acesso à experiência da discriminação racial ou apenas um cadeirante sente
cotidianamente as barreiras físicas que dificultam ou impedem seu trânsito pelas
cidades (DALCASTAGNÈ, 2005, p. 19).

Em outras palavras, o enlace entre autoria e representatividade pode garantir não


apenas que os grupos marginalizados adquiram o direito de fala, mas também que façam

1
Utilizamos o termo raça não no sentido biológico, mas sim ideológico a partir do qual os afro-brasileiros
ainda sofrem preconceitos e discriminações.

89
uso desse direito para além do estereótipo, do preconceito e da discriminação que tanto
os afligem. Segundo Luiza Lobo (2000, p. 02), ―a prática e o estudo da literatura sempre
foram feitos por homens que estabeleceram os conceitos teóricos a respeito da posição
da mulher na sociedade‖. Entretanto, com o advento e os ganhos dos estudos feministas,
as mulheres ocupam cada vez mais esses espaços antes exclusivos ao masculino. Assim,
conscientes do seu papel social, as escritoras afro-brasileiras, por exemplo, inserem no
contexto literário nacional a alteridade de vozes não contempladas na literatura
canônica.
Tomar para si o lugar de autora negra é mais do que simplesmente evidenciar
nessas narrativas o universo negro, é tomar consciência do seu papel social enquanto
Outro, diferente e de que essa diferença importa, por isso, ainda de acordo com Lobo
(2000):

Na literatura de autoria feminina, como na literatura de autoria negra ou africana,


percebe-se a existência de um discurso de alteridade político, na medida em que seus
representantes se assumam e se declarem como tal, isto é, como negros, negras,
africanos, africanas, ou seja, como parte de uma etnia não prestigiada ou como mulheres
(LOBO, 2000, p. 02).

Esse discurso de alteridade político de que fala Lobo (2000), e aqui falamos
mais especificamente do dizer das mulheres negras, ainda enfrenta diversos obstáculos,
como a falta de espaço para publicação, divulgação e até mesmo resistência em certos
contextos institucionais nos quais os estudos de literatura nacional ainda são pautados
na perspectiva da literatura canônica ou da ―alta‖ literatura, para a qual os pressupostos
avaliativos e interpretativos primam sempre por uma hegemonia de saberes. Entretanto,
mesmo com todas essas adversidades, as mulheres negras brasileiras continuam
produzindo, seja em coletivos ou individualmente, arcando com as despesas necessárias,
para se fazer ouvir por Outros marginalizados e não marginalizados, a fim de se
construir um discurso positivado para o sujeito negro que ecoe cada vez mais longe.

A maternidade no contexto social

Em estudo realizado sobre as mulheres no Brasil colonial, Mary Del Priori


(1990) salienta que:

[...] o estereótipo da santa-mãezinha provedora, piedosa, dedicada e assexuada


construiu-se no imaginário brasileiro no Período Colonial e não mais o abandonou.
Quatrocentos anos depois do início do projeto de normatização, as santas-mãezinhas são
personagens de novelas de televisão, são invocadas em para-choques de caminhão
(―Mãe só tem uma‖, ―Mãe é mãe‖), fecundam o adagiário e as expressões cotidianas
(―Nossa Mãe‖, ―Mãe do céu‖); [...] A maternidade extrapola, portanto, dados
simplesmente biológicos; ela possui um intenso conteúdo sociológico, antropológico e
uma visível presença na mentalidade histórica (DEL PRIORE, 1990, p. 18).

Essa presença do conceito de maternidade como dádiva divina no imaginário


social não apenas exclui qualquer possibilidade de recusa, mas também cria-se em torno
desse imaginário padrões que delimitam os critérios do que é ser mãe. Assim, à
maternidade associa-se a ideia da mãe no espaço doméstico como a responsável pelos
cuidados com os filhos. Embora, na contemporaneidade, as mulheres sejam
90
protagonistas também nos espaços públicos, como nos diversos meios do mercado de
trabalho, esse imaginário da mulher como a maior e talvez a única responsável pela
criação dos filhos ainda paira em muitas mentes na nossa sociedade.
As mulheres que rompem esses padrões e decidem, por exemplo, não ter filhos,
ou ter apenas um, e até mesmo aquelas que desejam ter muitos filhos, todas elas
enfrentam as consequências dessas atitudes. Isso tudo porque a mulher ainda enfrenta
obstáculos para fazer suas próprias escolhas. Com relação à maternidade, essa
possibilidade de escolha adquire contornos ainda mais complexos quando nos referimos
às mulheres negras do período colonial.
Se para a mulher branca a maternidade foi uma imposição social, a partir da qual
essa mulher recebe o status de mãe e toda a responsabilidade pela organização e
manutenção do espaço privado, sendo confinada a esse espaço, à mulher negra essa
mesma imposição, além de suprimir o seu direito de escolha, negou-lhe o direito de
exercer a maternidade. Tratada como objeto sexual, nesse período, seu corpo também
serviu aos interesses econômicos, como afirma Gilberto Freyre (2006, p. 399), ―o que se
queria era que os ventres das mulheres gerassem. Que as negras produzissem
moleques‖. Desse modo, o mais próximo que muitas mulheres negras chegaram de
exercer a maternidade foi na condição de ama de leite dos filhos dos seus senhores.
Na contemporaneidade, essas mulheres ainda sentem os efeitos do Brasil
colônia. As autoras Laura Davis Mattar e Carmem S. G. Diniz (2012, p. 114), explicam
sobre as ―hierarquias reprodutivas‖; trata-se de ―um modelo ideal de exercício da
maternidade e/ou da reprodução e cuidado com os filhos. Ele é pautado por um
imaginário social sexista, generificado, classista e homofóbico [...]‖. O topo da pirâmide
hierárquica reprodutiva, segundo as autoras, traduz-se em um ―contexto no qual há uma
relação estável, entre um casal heterossexual monogâmico branco, adulto, casado e
saudável, que conta com recursos financeiros e culturais suficientes para criar ―bem‖ os
filhos (MATTAR, DINIZ, 2012, p. 114).
Nesse sentido, considerando o Dossiê mulheres negras: retrato das condições de
vida das mulheres negras no Brasil (2013), é possível observar que essas mulheres
ainda são o grupo social que sofre todo tipo de violação dos seus direitos, seja os
relacionados à saúde, educação, moradia, trabalho, assistência social, etc.. Elas
compõem a base da pirâmide hierárquica de reprodução. Ainda de acordo com as
autoras:

Os fatores principais, que perpassam transversalmente a pirâmide, são: raça, classe,


geração/idade e parceria sexual. Assim, de um modo geral, pode-se dizer que a mulher
que é não branca, que pertence a uma classe econômica baixa, é jovem ou bem
mais velha e homossexual ou solteira, vive a maternidade com menos aceitação
social e em piores condições – especialmente se comparadas às brancas, de classe
média e alta, com idade entre vinte e 35 anos, e heterossexuais, de preferência com
parceiros (MATTAR; DINIZ, 2012, p. 115, grifos nossos).

Diante dessas questões, fica evidente os motivos pelos quais o tema autoridade
materna na escrita negra feminina adquire relevância tridimensional. Falamos de
mulheres negras que assumem-se escritoras e tomam para si o direito de preencher as
lacunas deixadas por nossa literatura, que contribuiu para essa negação da maternidade
à mulher negra. Como afirma Conceição Evaristo (2005, p. 53), ―mata-se no discurso
literário a prole da mulher negra‖. A autora ainda questiona:

91
[...] qual seria o significado da não representação materna para a mulher negra na
literatura brasileira? Estaria o discurso literário, como o histórico, procurando apagar os
sentidos de uma matriz africana na sociedade brasileira? Teria a literatura a tendência
em ignorar o papel da mulher negra na formação da cultura nacional?

Para a autora, essa não representatividade da negra como mãe possui sentidos
muito mais profundos do que o próprio silenciamento dessa condição. Está relacionado,
dentre outras coisas, ao lugar que a negra ocupa na nossa sociedade, ainda somos uma
maioria enxergada como minoria e, portanto, para aqueles que se julgam superiores,
ocupando seus lugares de privilégios, nossos discursos não têm valor, não fazem
sentido. Os discursos daqueles são legitimados sócio-historicamente por ideologias
dominantes e tudo que não se enquadra nesse padrão ideológico não é reconhecido. A
esse respeito, Dalcastagnè (2005), afirma que:

O problema da representatividade, portanto, não se resume à honestidade na busca pelo


olhar do outro ou ao respeito por suas peculiaridades. Está em questão a diversidade de
percepções do mundo, que depende do acesso à voz e não é suprida pela boa vontade
daqueles que monopolizam os lugares de fala (DALCASTAGNÈ, 2005, p. 16, grifo
nosso).

Por isso, enfatizamos a importância da autoria negra e da mulher negra mais


ainda, porque se considerarmos a escala de hierarquias, esta é a que ocupa a mais severa
posição, além de ser subjugada pelo gênero é também pela raça. O acesso à voz de que
fala Dalcastagnè (2005) é o que permitirá a transformação desses valores, tornando
positivo o que ainda é considerado negativo. Desse modo, temas como a autoridade
materna da mulher negra importam, têm valor e são apresentados na literatura afro-
brasileira.

Os sentidos da maternidade na escrita de Conceição Evaristo


Como vimos, na escala de hierarquias reprodutivas explicitadas pelas autoras
MATTAR e DINIZ (2012), a mulher negra ocupa a base dessa pirâmide hierárquica,
sofrendo, com isso, múltiplas violações dos seus direitos humanos, inclusive o direito à
maternidade. Conceição Evaristo, negra, brasileira, mãe e autora de diversas obras que
versam sobre o universo do sujeito negro, traz nas obras Olhos d‘água (2015) e
Insubmissas lágrimas de mulheres (2016), ambas coletâneas de contos, narrativas que
abordam a maternidade a partir do ponto de vista da mulher negra. Elegemos uma
narrativa de cada coletânea, sendo ―Quantos filhos Natalina teve?‖ da obra Olhos
D‘água e ―Isaltina Campo Belo‖ do livro Insubmissas lágrimas de mulheres, a fim de
mostrar como as personagens-protagonistas lidam com a questão da maternidade,
subvertendo noções hegemônicas que permeiam o ato de ser mãe na nossa sociedade.
Em ―Quantos filhos Natalina teve?‖, Evaristo conta-nos a história de uma
mulher que está na quarta gravidez, mas este é o seu primeiro filho. Natalina, a
protagonista da narrativa vivencia muitos dilemas sobre a maternidade. O primeiro filho
que ela teve foi fruto de um namoro entre adolescentes: aos catorze anos ―brincava
gostoso quase todas as noites com o seu namoradinho e quando deu fé, o jogo prazeroso

92
brincou de pique-esconde lá dentro de sua barriga‖ (EVARISTO, 2015, p. 44) 2. Sem
saber o que fazer, Natalina buscou solução nos chás que vira a mãe fazer e que muitas
vezes resolvia o problema. Mas, dessa vez, não resolveu, e a mãe de Natalina se viu
obrigada a intervir na situação, pois como criar mais um filho em uma casa ocupada por
tanta gente, ―ela, o marido e sete crianças. E agora teria o filho da filha?‖ (p. 44).
Sá Praxedes, a velha parteira a que todas as crianças temiam por sua fama de
comer crianças, seria a solução. ―A mãe devia estar mesmo com muita mágoa dela.
Estava querendo levá-la a Sá Praxedes. A velha ia comer aquilo que estava na barriga
dela. Ia conseguir fazer o que os chás não tinham conseguido‖ (p. 45). Apesar das suas
condições (uma jovem inexperiente), Natalina não quis que a criança fosse comida por
Sá Praxedes e, em um descuido da mãe, fugiu para lugar algum, longe da velha
comedora de crianças. Fez novas amizades, uma menina-mulher que também esperava
um filho, e depois do parto a menina saiu leve e vazia do hospital: ―Não queria o
menino, mas também, não queria que ele fosse comido pela velha. Uma enfermeira quis
o menino. [...] Era como se ela tivesse ganho uma boneca que não desejasse e cedesse o
brinquedo para alguém que quisesse‖ (p. 45-46).
Temos nessa primeira gravidez de Natalina a representatividade de uma situação
vivenciada por muitas meninas-mães na nossa sociedade. São inúmeras as jovens que se
veem grávidas e desamparadas, tendo que escolher entre o aborto inseguro e a
maternidade forçada. Natalina transgride essa imposição colocada pelo estado que
proíbe a legalização do aborto e ao mesmo tempo recusa-se a exercer uma maternidade
forçada. Ela busca suas próprias estratégias para se desvencilhar dessas imposições
sociais.
A segunda gravidez de Natalina, ou melhor sua decisão quanto ao seu direito de
exercer ou não a maternidade abala ainda mais os construtos sociais. Natalina, já mais
experiente, ―brincava gostoso com os homens, mas não descuidava. Quando cismava
com qualquer coisa, tomava seus chazinhos, às vezes, o mês inteiro. As regras desciam
então copiosas como rios de sangue. Mesmo assim, um dia uma semente teimosa
vingou‖ (p. 46). Ela vivia um relacionamento saudável e feliz com Tonho, mas a ideia
de ser mãe não a agradava, além disso, sentia-se envergonhada por não ter conseguido
evitar, decidiu não lhe contar, entretanto, não conseguiu esconder por muito tempo:

[...] o rapaz perguntou docemente sobre aquela barriguinha que estava crescendo. Ela,
envergonhada, contou-lhe que estava esperando um filho. Que ele a perdoasse. Que ela
havia tomado uns chás. Que ela conhecia uma tal de Sá Praxedes.... Quando acabou a
falação e olhou para Tonho, o moço chorava e ria. Abraçou Natalina e repetia feliz que
ia ter um filho. Que formariam uma família. Natalina ganhou preocupação nova. Ela
não queria ficar com ninguém. Não queria família alguma. Não queria filho. Quando
Toinzinho nasceu, ela e Tonho já haviam acertado tudo. Ela gostava dele, mas não
queria ficar morando com ele. Tonho chorou muito e voltou para a terra dele, sem
nunca entender a recusa de Natalina diante do que ele julgava ser o modo de uma
mulher ser feliz. Uma casa, um homem, um filho... Voltou levando consigo o filho que
Natalina não quis (p. 46).

Aos olhos de Tonho e da sociedade, a atitude de Natalina torna-se sem sentido.


Como uma mulher pode não desejar construir uma família? E mais, como uma mulher

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A partir daqui as citações desta obra serão apresentadas apenas com o número de página.

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pode recusar a maternidade, tida por todos como uma dádiva divina? Natalina recusa,
não apenas o casamento, mas também o filho. Não era esse o destino que ela queria para
si, não estava preparada para tal e, contrariando todas preleções, exerceu o seu direito de
escolha. Sem ressentimentos ou peso na consciência optou pelo que ela considerou ser
melhor para si.
―A terceira gravidez, ela também não queria. Quem quis foi o casal para quem
Natalina trabalhava‖ (p. 46). Ela gostava de trabalhar naquela casa, afinal devido às
muitas viagens do casal, Natalina ficava quase sempre sozinha e fazia todo o serviço só
para ela, lavava, passava, cozinhava. As vezes tinha a sensação de que tudo aquilo era
só dela.

Um dia, enquanto divagava em seus sonhos de pretensa dona, o telefone tocou. Era a
patroa que ligava do estrangeiro, em prantos, lhe pedia ajuda. Ela queria e precisava ter
um filho. Só Natalina poderia ajudá-la. Ela não entendeu o telefone nem as palavras da
patroa. Ficou aguardando o regresso dos dois. Daí uns dias a patroa voltou. Natalina
ouviu e entendeu tudo. A mulher queria um filho e não conseguia. Estava desesperada e
envergonhada por isso. Ela e marido já haviam conversado. Era só a empregada fazer
um filho para o patrão. Elas se pareciam um pouco. Natalina só tinha um tom de pele
mais negro. Um filho do marido com Natalina poderia passar como sendo seu (p. 47).

Esse acontecimento na vida de Natalina revela-nos a profundidade das


atrocidades que as ideologias patriarcais fazem com as mulheres. De um lado, temos
uma mulher branca, de classe econômica estável, casada, ou seja, com todos os pré-
requisitos para ocupar o topo da pirâmide das hierarquias sociais, exceto o fato de que
não consegue engravidar. Não conseguir gerar uma criança é para essa mulher motivo
de vergonha, impotência e inconformidade. Do outro lado, na base da pirâmide
hierárquica social, temos Natalina, mulher negra, pobre, mas que possui suas próprias
convicções sobre a necessidade de ter um filho ou não para sentir-se mulher e feliz.
Diante da proposta da patroa, uma mistura de sentimentos invade o coração de
Natalina. Ao mesmo tempo em que ela sente nojo, vergonha e se vê desrespeitada pela
patroa, sendo tratada apenas como objeto manipulável, ela também sente pena dessa
mulher. E essa situação a faz refletir:

Natalina lembrou-se de Sá Praxedes comendo crianças. Vai ver que a velha, um dia,
comeu o filho dessa mulher e ela nem sabia. Lembrou da primeira criança que tivera e
que nem tinha visto direito, pois fora direto para as mãos-coração da enfermeira que
seria a mãe. Lembrou da segunda que ela deixara com Tonho, pai feliz. Não entendeu
porque aquela mulher se desesperava e se envergonhava tanto por não ter um
filho. Tudo certo. Deitaria com o patrão, sem paga alguma, tantas vezes fosse preciso.
Deitaria com ele até a outra se engravidar, até a outra encontrar no fundo de um
útero, que não o seu, algum bebê perdido no limiar de um tempo que só a velha
Praxedes conhecia (p. 47, grifo nosso).

Diante da situação, a patroa chorava, mas ao mesmo tempo se conformava, teria


o filho que a faria feliz. Foram longos e dolorosos meses que Natalina enfrentou, enjoou
a gravidez toda, aliás mesmo antes da presença da criança em seu ventre, aquela
situação lhe causava isso.

Tinha vergonha de si mesma e deles. [...] Um dia a criança nasceu fraca e bela.
Sobreviveu. Os pais choravam aflitos. Natalina quase morreu. Tinha os seios vazios,

94
nenhum vestígio de leite para amentar o filho da outra. Para seu próprio alívio foi
esquecida pelos dois (p. 48).

Mesmo diante de uma certa coerção promovida pela relação entre patroa e
empregada, Natalina ainda assim, faz sua escolha, como ela mesma diz, se condoeu ―de
uma mulher que almejava sentir o útero se abrir em movimento de flor-criança. Doou
sua fertilidade para que a outra pudesse inventar uma criação, e se tornou depositária de
um filho alheio‖ (p. 48-47). Existem muitas Natalinas na nossa sociedade e que por
fazerem essa escolha são execradas, quantas mães doam seus ventres para as filhas que
não podem gerar? Quantas amigas se compadecem dos desejos dos amigos
homossexuais em exercer a paternidade e emprestam a morada temporária para a
criança dentro de si? Quantas mulheres vendem essas crianças que ainda estão no
conforto do útero para sustentar os demais que sofrem fora dele todas as mazelas
sociais? Enfim, essa parte da vida de Natalina revela um drama vivido por muitas
mulheres vítimas dessas ideologias patriarcais que as impedem de decidir o que querem
fazer com seu próprio corpo.
Com a quarta gravidez, Natalina estava feliz, era o filho que ela queria, os outros
não, como podemos observar no trecho a seguir:

Não, dessa vez ela não devia nada a ninguém. Se aquela barriga tinha um preço, ela
também tinha tido o seu, e tudo tinha sido feito com uma moeda bem valiosa. Agora
teria um filho que seria só seu, sem ameaça de pai, de mãe, de Sá Praxedes, de
companheiro algum ou de patrões. E haveria de ensinar para ele que a vida é viver e é
morrer. É gerar e é matar (p. 49).

Essa felicidade da protagonista com essa gravidez também abala as convenções


sociais quando conhecemos o modo pelo qual essa criança passou a existir no ventre de
Natalina. Vítima de violência sexual, Natalina guardou para si tudo sobre o ocorrido:

A quem dizer? O que fazer? Só que guardou mais do que o ódio, a vergonha, o pavor, a
dor de ter sido violentada. Guardou mais do que a coragem da vingança e da defesa.
Guardou mais do que a satisfação de ter conseguido retomar a própria vida. Guardou a
semente invasora daquele homem. Poucos meses depois, Natalina se descobria grávida
(p. 50).

Natalina consegue se livrar do seu opressor, matando-o, talvez por isso, ela
considera que essa criança é só dela. Ela decide levar a gravidez adiante e retomar a sua
vida. Natalina mostra-nos outra vertente dessa terrível história a partir da qual muitas
mulheres reais são vitimadas. Ela poderia ter recorrido a Sá Praxedes sujeitando-se a um
aborto clandestino, podendo se tornar mais um número estatístico que mostra a
quantidade de mulheres que perdem suas vidas por lhes ser negado o direito de escolha
sobre algo que está intimamente ligado ao seu corpo. Ou poderia mais uma vez doar
essa criança, fruto de tamanha desgraça ou ainda exercer uma maternidade forçada, sem
amor e sem afeto maternal. Mas, ela decide salvar a si mesma. A decisão de exercer a
maternidade, mesmo advinda de uma situação violenta mostra mais uma vez como
Natalina subverte os padrões sociais e principalmente desestabiliza a imagem
tradicional da mãe nata, sendo mãe quando ela quis ser.
No conto ―Isaltina Campo Belo‖, Conceição Evaristo nos revela um universo
sobre a maternidade ainda muito execrado pelos padrões sociais. Campo Belo, como
gostava de ser chamada, desde de muito jovem se viu inconformada com o corpo que

95
ocupava. Era uma menina, mas que se sentia em seu íntimo muito mais parecida com
seu irmão do que com sua irmã mais velha. Como podemos perceber nas palavras da
personagem: ―Tive uma infância feliz, só uma dúvida me perseguia. Eu me sentia
menino e me angustiava com o fato de ninguém perceber. Tinham me dado um nome
errado, me vestiam de maneira errada... Estavam todos enganados (EVARISTO, 2016,
p. 57).3
Com o tempo, essa dúvida de Campo Belo foi ganhando ainda mais
complexidade porque vez outra ela se pegava gostando do seu corpo de menina:

Eu via o meu corpo de menina e, muitas vezes, gostava de me contemplar. O que me


confundia era o caminho diferente que os meus desejos de beijos e afagos tendiam. E,
por isso, acabei de crescer, contida. Amarrava os meus desejos por outras meninas e
fugia dos meninos. Em toda a minha adolescência vivi um processo de fuga (p. 62).

Motivada por esse desejo de fuga, Campo Belo decidiu sair de casa e buscar
novos ares, já que ali, com a família, ninguém a entendia, só queriam saber os motivos
pelos quais uma moça tão linda, tão inteligente, ainda estava solteira. Com o diploma na
mão, mudou-se de cidade, arrumou emprego em um hospital como enfermeira e ali
conheceu o homem que mudaria completamente a sua vida e o modo de entender as
coisas do mundo.
Esse homem, que aos poucos foi ganhando a confiança de Campo Belo,
mostrou-se muito interessado em ter algo a mais para além de amizade. Ela, que já
confiava nele o suficiente, não viu grande problema em contar-lhe o segredo sobre o
menino que existia dentro dela.
Para surpresa de Campo Belo, a reação dele foi a seguinte:

Ele, sorrindo, dizia não acreditar e apostava que a razão de tudo deveria ser algum medo
que eu trazia escondido no inconsciente. Afirmava que eu deveria gostar muito e muito
de homem, apenas não sabia. Se eu ficasse com ele, qualquer dúvida que eu pudesse ter
sobre o sexo entre um homem e uma mulher acabaria. Ele iria me ensinar, me despertar,
me fazer mulher. E afirmava, com veemência, que tinha certeza de meu fogo, pois
afinal, eu era uma mulher negra, uma mulher negra... Eu não sabia o que responder para
ele. Em mim, achava a resposta, mas só para mim. Eu sabia, desde a infância, do
menino que existia em mim. E esse menino crescera comigo, assim como cresceram os
meus seios... (p. 64).

Depois de muitas doces tentativas de possuir Campo Belo sem êxito, esse
pretenso namorado a convida para uma festa na qual estariam presentes outras colegas
de trabalho, o resultado vemos a seguir:

Fui. Nunca poderia imaginar o que me esperava. Ele e mais cinco homens, todos
desconhecidos. Não bebo. Um guaraná me foi oferecido. Aceitei. Bastou. Cinco homens
deflorando a inexperiência e a solidão de meu corpo. Diziam, entre eles, que estavam
me ensinando a ser mulher (p. 64).

É dessa violenta brutalidade que o tema maternidade aparece na vida de Campo


Belo, como ela diz:

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A partir daqui as citações desta obra serão apresentadas apenas com o número de página.

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Depois, apareceu a gravidez, uma possibilidade, na qual eu nunca pensara, nem como
desejo e jamais como risco. Tal era o estado de alheamento em que eu me encontrava,
que só fui me perceber grávida sete meses depois, quase com a criança nascendo. Nem
a falta do sangramento mensal, nem a modificação do meu corpo e muito menos a
movimentação do bebê... Walquíria se fez sozinha em mim. Pai sempre foi um nome
impronunciável para ela. Dentre cinco homens, de quem seria a paternidade construída
sob o signo da violência? Não sei, não sei... (p. 65).

Campo Belo nem teve tempo de pensar em um possível aborto, assim como
Natalina, e quando se viu diante da criança optou por criá-la. Foi a partir do exercício da
maternidade que ela começou a esclarecer as dúvidas que tinha desde a infância sobre o
menino que havia dentro dela. Quando na primeira reunião do jardim de infância em
que matriculou sua filha Walquíria, notou o olhar insistente da professora em sua
direção, isso trouxe-lhe muitas lembranças que a fizeram concluir:

Não havia um menino em mim, não havia nenhum homem dentro de mim. Eu, até
então, encarava o estupro como um castigo merecido, por não me sentir seduzida por
homens. Naquele momento, sob o olhar daquela moça, me dei permissão pela primeira
vez. Sim eu podia me encantar por alguém e esse alguém podia ser uma mulher. Eu
podia desejar a minha semelhante, tanto quanto outras semelhantes minhas desejam o
homem. E foi então que eu me entendi mulher, igual a todas e diferente de todas que ali
estavam. Busquei novamente o olhar daquela que seria a primeira professora de minha
filha e com quem eu aprenderia também a me conhecer, a me aceitar feliz e em paz
comigo mesma (p. 67).

Evaristo, ao nos contar a história de Campo Belo, nos permite conhecer não
apenas os conflitos vividos por pessoas que não se enquadram nos modelos sociais da
heteronormatividade, mas também revela-nos o quanto as mulheres negras ainda são o
contingente social mais estigmatizado, execrado e humilhado por essa sociedade
patriarcal. Mostra-nos também que, apesar de tudo isso, essas mulheres resistiram e
seguem resistindo, inquietando os das casas grandes com seus discursos. Como a
própria Conceição Evaristo (2007, p. 21) afirma: ―A nossa escrevivência não pode ser
lida como histórias para ‗ninar os da casa grande‘ e sim para incomodá-los em seus
sonos injustos‖.

Considerações finais
As histórias das personagens Natalina e Isaltina Campo Belo ilustram diferentes
formas de opressão sofrida pelas mulheres, em especial, as mulheres negras. Entretanto,
também são narrativas que trazem à tona outras perspectivas sobre a maternidade.
Longe dos estereótipos de mãe de leite dos filhos de senhores ou corpo-procriação, a
construção narrativa de Evaristo evidencia nas personagens uma postura transformadora
ao assumirem a maternidade.
Logo no início do conto ―Quantos filhos Natalina teve?‖, a narradora nos alerta
que Natalina está em sua quarta gravidez, mas este é o seu primeiro filho. Isso por si só
já denuncia que algo está fora do lugar, fora do padrão, que algo deu errado. Quando
conhecemos a história de cada gestação da personagem e o modo como ela lidou com
cada uma delas, a conclusão a que chegamos é que realmente algo deu errado. Errado
para os moldes sociais que tomam a maternidade como algo sagrado e como uma
experiência que parece justificar a existência de toda mulher.
97
A personagem Natalina, ao recusar três filhos, três oportunidades de ser mãe,
desestabiliza a imagem tradicional da mãe nata, nos fazendo refletir sobre o que é ser
mãe e qual o significado da maternidade na vida de uma mulher. Cristina Stevens
(2007), ao falar de maternidade e feminismo, lembra uma vertente dos estudos
feministas que considerava a maternidade como uma das formas de subordinação e
opressão da mulher, tendo em vista que o maternal, muitas vezes, apenas reforçava o
espaço doméstico como único lugar de atuação da mulher. Contudo, de acordo com a
autora:

Podemos dizer que a revisão do conceito de maternidade tem sido uma preocupação
relativamente recente por parte dos estudos feministas. Articulando formas alternativas
de construir uma nova ideologia da maternidade nos espaços vazios dos discursos
hegemônicos, teóricas feministas e várias escritoras vêm produzindo discursos
diferentes daqueles produzidos pela sociedade patriarcal; buscam entender o sentido da
maternidade, da gravidez, do parto, dos cuidados com a criança, a partir da
perspectiva/testemunho da mãe. Começamos a observar, então, uma modificação nos
conceitos sobre maternidade e sobre a família, uma das instituições mais diretamente
ligadas ao papel da mulher/mãe (STEVENS, 2007, p. 41).

Nesse sentido, a maternidade pode ser vista não apenas como uma instituição
patriarcal profundamente opressora para a mulher, mas sim como o locus de poder.
Principalmente para a mulher negra que sente a necessidade de estimular nos filhos o
sentimento de empoderamento para enfrentar o mundo racista no qual vivem. Esse
objetivo fica muito evidente quando Natalina decide exercer a maternidade com o
quarto filho, e revela-nos o modo como o criará: ―Agora teria um filho que seria só seu,
sem ameaça de pai, de mãe, de Sá Praxedes, de companheiro algum ou de patrões. E
haveria de ensinar para ele que a vida é viver e é morrer. É gerar e é matar‖ (p. 49,
grifo nosso).
Isaltina Campo Belo, também reformula os pré-conceitos sobre o que é ser mãe.
Não cumpre os rituais de cuidados durante a gestação, porque como afirma: ―Walquíria
se fez sozinha em mim‖ (p. 65). Além disso, ser mãe para Campo Belo nunca foi um
desejo, contrariando, portanto, o vínculo naturalmente estabelecido entre mulher e
maternidade. Aliás, a personagem também subverte a noção de heteronormatividade,
noção esta que talvez tenha sido o principal motivo das suas angústias e incompreensões
sobre si mesma. Campo Belo carregou consigo desde a infância o sentimento de não
pertencimento a lugar nenhum, pois percebia-se menino em um corpo de menina, mas
ao mesmo tempo percebia-se admirando e gostando desse corpo, ou seja, até ela
compreender, somente na idade adulta, que poderia transgredir os padrões sociais e ser
uma mulher independentemente da sua orientação sexual, Campo Belo viveu momentos
perturbadores provocados por essas formulações patriarcais que ditam o que é ser
homem, mulher, criança, negro, etc.
Entretanto, tais formulações tornaram-se insignificantes a partir do momento em
que a personagem decide transgredi-las e ser feliz ao invés de ser perfeita. Desse modo,
dentre as conclusões que podemos chegar com a leitura dessas narrativas é que, se nas
produções consideradas pertencentes ao cânone nacional, a maternidade é negada às
mulheres negras, na produção de Evaristo temos uma dupla forma de resistência a esses
discursos composta pela demarcação de um sujeito autoral e, por conseguinte, pela
ressignificação do maternal. As palavras de Evaristo fundamentam essa afirmação:

98
Assenhoreando-se ―da pena‖, objeto representativo do poder falo-cêntrico branco, as
escritoras negras buscam inscrever no corpus literário brasileiro imagens de uma auto-
representação. Surge a fala de um corpo que não é apenas descrito, mas antes de tudo
vivido. A escre(vivência) das mulheres negras explicita as aventuras e as desventuras de
quem conhece uma dupla condição, que a sociedade teima em querer inferiorizada,
mulher e negra (EVARISTO, 2005, p. 06, grifo do original).

Nesses termos, reiteramos a importância de considerarmos a alteridade de


discursos como forma de expressão do lugar do Outro. Todo dizer torna-se relevante, na
medida em que não nos pautemos em ideologias etnocêntricas. Isso nos permite não
apenas conhecer o Outro, como também entender que muitos discursos que outrora nos
foram apresentados como retrato da subjetividade negra, por exemplo, na realidade
foram construídos historicamente pautados em relações de poder. Assim, saber que, se
para as mulheres brancas, a imagem de mulher-mãe construída socialmente pode
representar submissão e opressão, para as mulheres negras, a maternidade pode ser
entendida como locus de poder, porque esse papel de mulher-mãe nem sempre lhes foi
atribuído, nem pela história e nem pela literatura. Narrativas como a de Evaristo nos
proporcionam esses saberes, pois as personagens Natalina e Isaltina Campo Belo
ilustram bem essas complexidades enfrentadas por sujeitos marcados pela condição de
ser mulher-mãe-negra.

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http://nossaescrevivencia.blogspot.com.br/2012/08/genero-e-etnia-uma-escrevivencia-
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99
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In: STEVENS, Cristina. (org.). Maternidade e feminismo: diálogos interdisciplinares.
Florianópolis: Ed: Mulheres, Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2007.

100
Discutindo o conceito de Mammy estadunidense com
personagens negras em A resposta (2015) de Kathryn
Stockett
(Discussing America‘s Mammy concept with black characters on Kathryn
Stockett‘s The Help (2010))

Luiz Henrique dos Santos Cordeiro1


1
Universidade Estadual de Maringá (UEM)

lzhsantos@yahoo.com.br

Abstract: According to the obsession that American white citizens have with Mammy‘s
figure, it is observed that her caricature is present in that society yet, in a way which the
relation with white and black people turns problematic. The Mammy continues to be treated in
movies and in literary books as an object that people could use, mainly in a pejorative form.
Kathryn Stockett in The help (2010) puts in evidence the voice of feminine black characters,
as well as reproduce figures like Mammies within that society. We will study the
representation that this figure gives to us in the novel, as well as talk, using the history and
literacy, how this image turns into a reference, discussed between the black women in United
States. We intend to conclude that the figure continues to be repeated and it affects the
construction of feminine identity in USA.
Keywords: Mammy; The Help; Third World; Kathryn Stockett.

Resumo: Levando em conta a obsessão que os cidadãos brancos dos Estados Unidos tem com
a Mammy, é perceptível que sua caricatura está ainda presente naquela sociedade de forma que
a relação entre pessoas brancas e negras se torna problemática. A Mammy continua sendo
abordada em obras fílmicas e obras literárias como um objeto a ser utilizado, na maioria das
vezes de modo pejorativo. Kathryn Stockett em A resposta (2015) coloca em evidencia a voz
de personagens femininas negras, assim como reproduzir figuras como Mammys dentro
daquela sociedade. Estudar-se-á a representação que esta figura traz no romance em questão,
além de comentar, histórica e literariamente, como tal imagem se tornou uma referência
discutida entre as mulheres negras dos Estados Unidos. Pretende-se concluir que a figura
continua a ser repetida e afeta a construção da identidade feminina nos Estados Unidos.
Palavras-chave: Mammy; A Resposta; Terceiro Mundo; Kathryn Stockett.

Sobre o conceito: Sua relação com a escravidão aos dias atuais


Karnal (2010) nos apresenta como ocorreu a colonização dos Estados Unidos,
observando que, segundo o autor, a colonização perpassa por ideologias de índole dos
colonos que ali chegaram em 1590 e posteriormente em 1607. Invadidas pela Inglaterra,
as terras Norte Americanas passaram por dois momentos diferentes quanto a sua
colonização, primeiro em 1590, com a chegada dos primeiros colonos, embora tenham
desaparecido, e em 1607, com a chegada da Companhia de Londres, que logo ocupou o
território da Virgínia e, consequentemente, causou uma dizimação com os nativos
americanos, expulsando-os cada vez mais para o Oeste.
Tal maneira de conquista das terras fez com que fosse mais utilizada a mão de
obra barata, para não dizer gratuita. Dessa maneira, a colonização de assentamento, na
qual os colonos e exploradores buscavam abertamente a riqueza e os bens que mais

101
agradavam ao centro imperial, foi utilizada por muitos anos. Através dela, países como
a Inglaterra ou Portugal, enriqueceram cada vez mais e deixavam as colônias em nível
inferior.
Para dar jus a esse sistema, segundo Karnal (2010, p. 26) os colonizadores
utilizavam-se de escravos para o trabalho manual, e pessoas de confiança como feitores
e caçadores para a captura e execução dos fugitivos. Além disso, os escravos serviam
para a extração e envio de recursos naturais para o país dominante. Essa forma de
colonização foi muito utilizada nas Américas Centrais e do Sul, onde reside até hoje
uma cultura derivada desses atos.
Entretanto, com o processo de conquista norte-americano, houve a necessidade
de aumento do trabalho, uma vez que os impostos para a coroa eram muitos, o que criou
um primeiro sistema escravista. Porém, com os anos, esse sistema apresentou certas
falhas, pois houve demasiado aumento de terras e poucos trabalhadores para o cultivo.
Nas plantations, nome do sistema escravo que se seguiu no sul dos Estados Unidos,
houve acúmulo de negros que eram raptados e escravizados, e, por causa de sua cultura
distinta daquela do homem branco, era-lhes negado o reconhecimento enquanto seres
humanos.
Nos estados do sul, com o clima bem mais quente, o plantio era mais fácil e os
lucros dirigiam-se para a capital europeia. As plantations, enormes lotes de terra,
produziam tabaco, linho e algodão, principalmente derivados do trabalho escravo.
Nesse ambiente os trabalhos não eram divididos entre os gêneros sexuais. Tanto
homens quanto mulheres negras poderiam e deviam trabalhar nas lavouras, a fim de que
no final do dia rendessem ao patrão um lucro estimado. Porém, também era necessário o
cuidado e a limpeza da casa grande, já que todo e qualquer trabalho era relegado aos
sujeitos negros. Desta forma, as escravas mais velhas eram submetidas ao trabalho de
cuidado com a casa e as crianças dos senhores enquanto as mais novas trabalhavam nas
lavouras.
Karnal (2010) nos diz o que era reconhecido como um escravo naquele contexto.
O autor afirma que:

Leis votadas na Virgínia, em 1662, determinavam que a condição de escravo fosse dada
pela mãe. Dessa forma, o filho de pai inglês e mãe africana seria escravo. […] [Assim]
os escravos batizados permanecem escravos. O interessante é colocar a hipótese de
amos piedosos batizarem seus escravos. A conversão dos escravos não era, então,
obrigatória como nas áreas ibéricas. Integrar ou não o escravo negro ao universo cristão,
impor-lhe ou não o batismo era um ato de piedade que dependia do proprietário
(KARNAL, 2010, p. 64).

Um nascido americano, dessa maneira, se tornaria um escravo não por sua cor de
pele, mas por sua progenitora, ou seja, pela relação racial que ele teria com sua mãe. Ao
estabelecer que a mãe negra era a portadora do status de escravo, o poder sobre as
pessoas negras, e principalmente às mulheres negras ficava instituído, pois os negros
eram vinculados à condição de objeto de uso, e não reconhecidos como sujeitos.
Utilizando essa mesma prerrogativa de linhagem escrava, entendia-se que os
nascidos escravos não eram como os nascidos brancos. E, identificando a necessidade
de criação e perpetuação das ideologias racistas naquela sociedade, fica visível a ‗falsa‘
crença de que as escravas domésticas amavam os filhos dos senhores.
Literariamente, é visto que o termo Mammy surge em 1853 com a obra de
Harriet B. Stowe A cabana do pai Tomás. Nela há uma personagem denominada apenas

102
como Mammy que serve ao senhor St. Clare. Tal personagem é submetida e restrita
apenas à cozinha, e nutre um amor maternal com a filha de seu patrão. Quando Skeeter
faz a referência à Margaret Mitchell, ela se refere à sua obra E o vento levou de 1936, na
qual a autora, também sulista, descreve um romance entre uma moça branca e um
soldado. Entretanto há a figura de uma empregada doméstica negra que ―cuida‖ de
Scarlett, personagem principal, cujo nome também é Mammy. A personagem da
empregada é totalmente dedicada a sua patroa e abdica de sua vida individual para que
Scarlett seja mimada. Mesmo não sendo a primeira figura negra a ter esse nome na
literatura estadunidense, a personagem de Mitchell é o símbolo da ideologia que a
Mammy clássica representa para os sulistas brancos.
Thompson (2014) utiliza-se disso para explorar ainda mais o conceito de
Mammy na obra. Segundo a autora, o símbolo da Mammy representa a mais poderosa
figura na cultura americana e é vinculado também à figura da Aunt. Tal estereótipo
frequentemente simboliza uma ideia exagerada da mulher negra que se dedica
totalmente à família branca em que está inserida, de modo que se esquece de sua vida e
de sua própria família. Esta figura ambígua, Mammy ou Aunt, surge nos estados sulistas
e passa a ser reconhecida por todo o território nacional a partir do período anterior à
guerra civil, o que acarreta em figurações dos brancos sobre os sujeitos negros, tanto na
literatura quanto na sociedade. Ainda, para a autora:

No folclore, a Mammy é celebrada por sua integridade religiosa, seu sorriso largo, seu
coração sorridente, e seu serviço leal. Por quase dois séculos ela continua a amar a
família branca mais do que sua própria família (THOMPSON, 2014, p. 59).

Levado pela cultura e pela historicidade norte-americana, o conceito construído


da Mammy é problematizado em obras e filmes constantemente, visto que sua origem
remonta ao período colonial dos Estados Unidos. Frequentemente utilizadas como
damas de companhia, amas de leite, cuidadoras, lavadeiras, enfermeiras, cozinheiras e
empregadas domésticas, as mulheres negras sofreram perante o poderio colonial branco
no sul dos Estados Unidos, já que, desprovidas de voz e constantemente maltratadas,
elas ficavam ao jugo dos senhores e das senhoras brancas. A partir disso, esse conceito
fica problemático, já que denota não uma vontade inata de servir, mas uma condição
estabelecida de não ter opção.

Estereótipos da mulher negra estadunidense


A partir da narrativa de A resposta (2015), é perceptível que algumas
protagonistas carregam uma tendência materna aparente, o que, para alguns autores,
demonstra sua ligação a estereótipos pertinentes à raça negra. Schiffer (2014), por
exemplo, nos conduz a essas classificações, que apresentam estereótipos tanto para as
mulheres indígenas estadunidenses quanto para as mulheres adultas negras. A autora
leva em conta a situação do racismo gerado dentro de panoramas envolvendo os estudos
de gênero e de raça ao longo de décadas de escravidão, segregação e preconceito racial.
O primeiro desses estereótipos que classifica as mulheres negras é o estereótipo
da Jezebel, que justificaria as agressões e o estupro sofrido pelas mulheres negras, já
que, ao se considerar as mulheres enquanto seres animalescos e hipersexualizados, elas
não teriam direitos à proteção contra tais abusos. Schiffer nos diz que:

103
―A Jezebel é animalesca e sexual, livre das restrições que se aplicam à mulher branca,
mas é isolada ao homem negro. Através das lentes da figura Jezebel, as mulheres negras
são vistas como intimamente lascivas e predadoras sexuais‖ (SCHIFFER, 2014, p.
1215-1216).

Como exemplo em A resposta (2015), traremos rapidamente a personagem


Cocoa. Ela não possui grande participação na narrativa, pois havia sido amante do
marido de Aibileen, Clyde. Cocoa é vista pelas demais personagens como alguém
inconsequente e preocupada com a satisfação sexual do amante ou daquele que a
protege, como quando Aibileen descobre que, ―Uma semana depois do Clyde deixar
você, ouvi falar que Cocoa acordou e viu que a xoxota dela tava que nem uma ostra
estragada[…]‖ (STOCKETT, 2015, p. 36). Entretanto, essa personagem não se
classifica enquanto uma Mammy, pois é desligada do lar e da família.
O segundo estereótipo abordado é o das mulheres furiosas ou teimosas. Este,
explicado por Schiffer (2014), é o estereótipo mais aplicado para as jovens adultas e
moradoras dos guetos, já que esse perfil indica aquelas mulheres que não permanecem
caladas e não se submetem aos esposos e/ou padrões, como o exemplo de Minny e sua
filha, Kindra. Para a pesquisadora, ―muitos teóricos acreditam que este esterótipo é
cíclico, na qual a raiva presente nas mulheres negras é gerada por implacáveis histórias
de opressão dentro de sua comunidade‖ (SCHIFFER, 2014, p. 1216).
Já o terceiro estereótipo trabalhado demarca a imagem criada da Mammy, que
diverge quase que totalmente dos anteriores. Atualmente, as mulheres encontram-se
vinculadas, principalmente, aos dois primeiros estereótipos, enquanto que fogem deste.
Porém na obra ele é fortemente abrangido, de maneira que Aibileen, Constantine e
Minny são estereotipadas assim. A característica principal das Mammies é de serem
―[…] maternais, profundamente religiosas e assexuadas. Elas se sacrificam, são
carinhosas, e geralmente estão acima do peso e já na meia-idade ou são velhas‖
(SCHIFFER, 2014, p. 1216).
Tais estereótipos seriam uma recusa ao libido dos homens e dedicariam toda a
sua existência ao amor e ao cuidado dos filhos e filhas de suas patroas brancas. Além
disso, esse estereótipo também causa um comportamento de dependência das
empregadas pelos patrões e patroas, já que as negras ―amam‖ o seu trabalho, segundo o
pensamento branco. Nesse sentido, as empregadas negras sabem qual é o seu lugar na
casa dos patrões e, consequentemente, na sociedade branca. As mulheres, segundo o
estereótipo da Mammy, criado pelas pessoas brancas, podem ser consideradas as negras
mais próximas do que se esperava como ―ideal branco‖, o que frustra as próprias
mulheres negras em seus trabalhos. Nesse contexto, Aibileen se vê enquanto empregada
e reflete sobre a situação de distanciamento entre a patroa, Elizabeth, e Mae Mobley:

Mas nunca tinha visto um bebê gritar como Mae Mobley Leefolt. No primeiro dia,
passo pela porta, e lá está ela, vermelha como uma pimenta e gemendo de cólica,
brigando com a mamadeira como se fosse um nabo podre. Dona Leefolt, [está] olhando
apavorada pra filha. "O que eu estou fazendo de errado? Por que não consigo fazer isso
parar?"
Isso? Essa foi a minha primeira dica: tem alguma coisa errada aqui (STOCKETT, 2015,
p. 7).

104
Em um primeiro momento, o contato com Aibileen acontece quando ela faz o
seu trabalho. Ao educar e ensinar Mae Mobley, ela corresponde aos ideais pretendidos
por sua patroa, ou seja, conforme discutido por Schiffer (2014), ela atende aos padrões
pedidos de uma Mammy já que ―ama‖ a criança e a família branca como se fossem suas.
Entretanto devemos considerar que existe um pensamento corrente nessa sociedade,
derivado dos racialistas darwinistas, segundo o qual, as raças diferentes podem causar
danos à sociedade considerada padrão (ASHCROFT, 2007), pois ela pode ser vista
como uma espécie de ―mãe substituta‖, mas nunca será realmente uma ―mãe‖ para Mae
Mobley, o que leva, ao final, à quebra de Aibileen com o estereótipo estabelecido.
Assim como Schiffer (2014), Kalová (2013) também aborda, em suas pesquisas,
a caracterização do estereótipo Mammy. Segundo Kalová (2013), a justificativa para o
uso da mulher negra como cuidadora das crianças brancas era de que, como uma pessoa
inferior, a Mammy encontraria a necessidade de existência ao adorar as crianças brancas
de que cuidava. Tal fator, decorrente dos pensamentos escravistas, é abrangente na obra,
de modo que as mães brancas esperam esse cuidado e esse ―tipo de amor‖ para os seus
filhos, como acontece com a personagem Constantine.
Thompson (2014, p. 69) coloca que a relação de Skeeter e Constantine torna-se
quase que uma relação escrava, uma vez que é posicionada por meio da ideologia que
coloca a mulher negra enquanto Mammy, ou seja, aquela que é a doadora, amável,
assexuada e constantemente humilhada. Apesar disso o vínculo afetivo que ocorre entre
as duas propõe a Skeeter um caráter de subordinação em relação a Constantine, na qual
a personagem branca precisa da personagem negra para se sentir aceita em algum
círculo social e familiar.
Podemos relacionar essa subalternidade com Spivak (1988, p. 282) que nos diz
que a educação dos sujeitos coloniais complementa a produção criada pela lei do
colonizador para o colonizado. Ao estarem os sujeitos colonizados inseridos num
contexto de dominação, seu pensamento será de que eles somente devem servir a uma
pessoa branca e não são capazes de escapar dessa realidade. Num momento posterior, os
oprimidos entenderão que existe a chance de que eles possam falar e saber seus lugares,
desde que haja alianças políticas estabelecidas e que as ―barreiras‖ impostas pelos
dominadores não sejam ultrapassadas.
Barreiras como a visibilidade social, a renúncia ao poder colonial, ou a obtenção
e acesso à cultura são pertinentes à classificação de estereótipos negros como a figura da
Mammy, pois, segundo o que se espera da caricatura, ela será feliz e cumprirá seu papel
social ao cuidar e criar os filhos de sua patroa branca, sem pretender estudar ou falar por
si só. Nesse sentido, a configuração da personagem Constantine, enquanto o esterótipo
da Mammy, se constrói pelo constante trabalho que a família de Skeeter exige dela.
Assim, a figura da Mammy, associada aos trabalhos domésticos e à criação das crianças,
estabelece a superioridade branca com a personagem negra. Constantine é o símbolo
perfeito da Mammy clássica pois ela traduz o conceito de servidão e abandono da
família.

— Lembra que eu falei que Constantine tinha uma filha? Bem, Lulabelle era o nome
dela. Senhor, ela nasceu branca que nem a neve. Seu cabelo era da cor de palha. Nem
ondulado que nem o seu. Era completamente liso. […]

— Quando Lulabelle tinha quatro anos de idade, Constantine… — Aibileen se remexe


na cadeira. — Ela levou a menina pra um… orfanato. Lá em Chicago.

105
— Um orfanato? Você quer dizer… ela deu a filha? — Por mais que Constantine me
amasse, não posso deixar de imaginar que ela deve ter amado muito a própria filha.
Aibileen me olha bem nos olhos. Vejo algo que muito raramente se vê nela —
decepção, antipatia.
— Muitas mulheres de cor precisam dar os filhos, dona Skeeter. Mandar os filhos
embora, porque precisam cuidar de uma família branca (STOCKETT, 2015, p. 461).

Ao estabelecer a configuração de Constantine enquanto uma pessoa que


abandona a família em prol de outra, retoma-se o conceito folclórico da Mammy, que,
além de ser uma mulher em idade avançada, também renega ao sexo e aos cuidados com
si mesma. Constantine, para continuar com a família e com o trabalho, teve que
renunciar à filha por vários anos, de forma que satisfizesse o desejo de sua patroa, além
de evitar conflitos em relação à cor de sua filha não ser totalmente negra.
Ao retomarmos o estereótipo de Mammy, trabalhado por Schiffer (2014),
percebe-se que a mulher negra possuiria melhor desenvoltura para a criação de crianças
e teria uma melhor forma de educá-las, de acordo com a visão da sociedade branca. Em
contraponto, a mulher branca não consegue ter essa ligação com as crianças, já que
relaciona a maternidade a um trabalho secundário. Ao ser identificada enquanto o
Outro, estabelecido por Said (1990) como aquele diferente e que fator construtor da
subjetividade do sujeito, Aibileen está a um passo à frente de sua patroa, já que possui o
conhecimento para a criação e a educação de crianças.
Categorizada enquanto Mammy, Aibileen passa a ser vista por Mae Mobley
como um sujeito. Para Aibileen, é evidenciado que a presença de Mae Mobley traz a ela
uma espécie de tranquilidade, pois a criança é a primeira com quem a empregada
trabalha depois da morte de seu filho, o que cria entre as duas uma relação de
cumplicidade e ―quase‖ substituição familiar.
Thompson (2014) aborda a questão de o estadunidense ser obsessivo com a
imagem estereotipada da Mammy, pois, segundo a autora, no período conhecido como
pós-guerra, os sujeitos brancos precisavam de uma imagem de controle sobre as pessoas
negras de forma que estabelecessem o lugar a que cada raça pertenceria, além de definir
os negros enquanto sujeitos explorados pelos brancos. Essa figura é reproduzida na
sociedade estadunidense por meio das figuras da Mammy, do Uncle e da Aunt, do
Trickster e outros estereótipos. Thompson retoma, de Patricia Hill Collins (2000), esse
conceito de ―imagens controladoras‖ pois:

A primeira ―imagem controladora‖ - que está na mulher negra como ―fiel, servente
doméstico obediente‖ ou simplesmente ―Mammy‖ - tem sido um aspecto da cultura
americana por quase dois séculos, cujo principal distribuidor foi a mídia de massa
(THOMPSON, 2014, p. 58).

Ao assumir os aspectos que caracterizam a sociedade enquanto controladora de


Outros, num sentido spivakiano, ou seja, decorrente de subordinações, a autora nos
coloca frente a uma questão cultural que influencia a imagem que temos dos sujeitos
femininos negros, assim como a autoimagem que os próprios sujeitos fazem de si. Por
meio da mídia, é pertinente que o modo de ser retratada, no caso das mulheres negras,
conduz a um ciclo de representações em que elas estarão relegadas somente ao trabalho
doméstico, não obtendo visibilidade fora desse meio.
A autora afirma que ―O romance […] representa uma longa história de
identificar que mulheres negras são naturalmente capazes de cuidar de famílias brancas

106
[…]‖ (THOMPSON, 2014, p. 58), o que pode reforçar a concepção da fraqueza das
mulheres negras perante a sociedade e intensificar o poderio colonial das personagens
brancas na sociedade em que a narrativa acontece. Visivelmente, Aibileen corresponde
às pretensões ditas por Thompson (2014), pois ela reitera a necessidade da família
branca de controlar a pessoa negra. Na narrativa, fica demarcada essa visão de controle
sobre Aibileen que é posta como um objeto a serviço de sua patroa, quando ela passa a
ajudar Skeeter, mas depende de uma autorização para isso.
Nesse sentido, a obra nos remete ao fato de que a constituição do negro sulista é
vinculada ao desejo de liberdade, imposta sobre a sociedade negra na forma de leis, no
caso as Leis Jim Crow, e reiterada pela ideologia cultural. Tais leis, segundo Woodward
(2002, p. 94), surgiram em 1898 e foram um compilado de deveres que os sujeitos
negros deviam seguir, além de indicar os locais que eles eram aceitos. Criticada e
resistida ao longo dos anos, foi combatida nos anos 1965 por influentes na sociedade
sulista, até que foi deixada de lado, embora seus resquícios existam até hoje.
Aibileen, assim como muitas mulheres negras da época de 1960, é trocada por
outra mulher, Cocoa, que, mais nova, foge com seu marido. A amante do marido de
Aibileen representa outro aspecto caricato da sociedade negra estadunidense, a Jezebel.
Como já dito anteriormente, Schiffer (2014) apresenta a ideologia da Jezebel como a
mulher sensual, lasciva e indomável, que consegue o que precisa para viver por meio do
corpo e do sexo. Stockett (2015) utiliza-se desses estereótipos, já que define a
personalidade de Aibileen e Cocoa diferentemente. Aibileen é representada como a
Mammy, e Cocoa passa a ser Jezebel, ou seja, personalidades opostas.
Ao realizar esse paralelo entre as duas personalidades distintas, é percebido que
as duas mulheres, além de representar a visão branca da sociedade negra, também
identificam o grau de importância na narrativa, já que Aibileen está vinculada à família,
ao passado e com isso se estabelece na lembrança cultural como boa, leal e ligada à
Igreja. Já Cocoa é o inverso, pois é considerada uma personagem sem importância,
trazendo, consigo, a lascívia, referente ao ato sexual e não ao amor familiar, à
modernidade, pois escolhe fugir e ser amante e não uma esposa e empregada doméstica.
Aibileen, mesmo sendo uma mulher com hábitos familiares, ela amou um
homem que não lhe fez bem, e ao considerarmos o estereótipo da Mammy que a
configura enquanto uma mulher devotada à família branca e à Igreja, vemos que ela se
relaciona com um homem que não assume o papel de marido, abandonando-a. É notado
que o conceito sobre a mulher negra passa a se alterar no decorrer da história. Strother-
Adams (2014, p. 178) coloca que o arquétipo da Jezebel foi também construído durante
o período da escravidão, em que as mulheres jovens eram vitimizadas e assediadas por
seus mestres brancos. Porém, no pensamento colonial, proveniente das esposas brancas,
as negras de alguma maneira enganavam os brancos, realizando atos sexuais com eles, o
que permitiria aos mesmos um comportamento selvagem e criminoso, de forma que
essa concepção é posta até hoje por algumas pessoas.
Strother-Adams (2014), retomando Hooks (1992), nos diz que, para as pessoas
brancas, é mais fácil entender a culpabilidade do outro, no caso as pessoas negras, e
assumir um papel de inocência, quando em face de uma cultura ou raça diversa. No
decurso da história, percebemos que, ao se colocar a culpa de que as mulheres negras
escravas queriam ser abusadas, inventa-se a desculpa da religião para se converter e
justificar a necessidade de ―corrigir o erro‖, ou seja, violar a mulher para que ela aceite
o poder branco. Ao se manter relações sexuais com as mulheres negras, durante o

107
período da escravidão e posteriormente, entende-se que não há nenhum sentimento para
com elas, relegando-as ao papel de prostitutas que ―necessitam‖ da presença masculina.
Tal fato nos demarca a ideia de que, por Aibileen estar em contato constante
com a Igreja e por ser a Mammy que se espera, ela é recompensada por sua bondade e
fé, ao contrário de Cocoa, que é castigada por uma doença sexual. Nesse momento fica
claro como é perpetuada a imaginação da sociedade em que ambas vivem. Da mesma
maneira que em um sistema colonial, se a pessoa é boa, ela é recompensada, se é
preguiçosa, sofre punição.
Ao retornarmos à Minny, identificamos que a doméstica atua como um centro
identificatório para a personagem Celia e assume o papel de Mammy para a dona de
casa. Além de caricaturar uma ideologia de mulher raivosa, Minny também assume a
estereótipo da tia (Aunt) ou da auxiliadora, que criará um ambiente de pertencimento
para sua patroa e consequentemente para sua família. Assim, em face de sua percepção
de realidade que passa a ser alterada, ela também decide romper com Leroy, seu esposo
abusivo, e leva seus filhos para um local seguro.
Minny é caracterizada como uma personagem resistente, audaz e corajosa, que,
mesmo em face de uma vivência triste e problemática, assume seu papel de mãe e
demonstra a visão estereotipada da Mammy estadunidense como uma figura
rearticulada para a sociedade da época de 1960.

Conclusões
Stockett, em sua obra, pretendeu estabelecer uma ―relação de espelhos‖ entre o
livro e a história oficial, visto que relatos sobre a condição das empregadas negras nos
Estado Unidos continua difícil. As personagens criadas, tanto na obra quanto nas
discussões acadêmicas acerca do assunto foi considerável para que a discussão sobre
gêneros, raça e classe fosse colocada em foco nas últimas décadas.
Ela conseguiu abordar de maneira bastante sentimental seu próprio
questionamento: ―como deve se sentir uma empregada negra da década de 1960 que
deixa os filhos em casa e cuida da família de um branco‖, que deu origem ao conto
sobre os banheiros e se transformou no livro A resposta. Tal questionamento não possui
resposta direta, porém, com a leitura e a análise da obra, é possível compreender como
Aibileen, Minny e Constantine se sentem enquanto empregadas de brancas, lidando com
duas sociedades e longe de seus filhos.
Desta maneira, a autora conseguiu reproduzir para o leitor real como era
aproximadamente a voz das mulheres reais que trabalhavam no serviço doméstico. Ela
também mostra como a classe naquela sociedade era constituinte da identidade dos
sujeitos, sejam eles brancos ou negros, ricos ou pobres.
Atualmente, é visto que a situação no contexto da narrativa não teve muita
alteração, com mulheres pertencentes às sociedades étnicas no trabalho de doméstica,
enquanto que as mulheres brancas assumem trabalhos fora do ambiente familiar. A
resposta (2015) abrange uma variedade de temas e assuntos que podem ser
considerados pertinentes ao nosso contexto geográfico. Sabemos que no Brasil a prática
de babás e domésticas ocorre desde muito tempo, porém leis para assegurar o trabalho
destas profissionais são dificilmente aceitos pelo governo e pela sociedade. Em 2015,
houve o sancionamento de uma lei específica para as empregadas domésticas, segundo a
qual, a estabilidade financeira passava a ser obrigatória. Entretanto ainda existem
empregadores que burlam a lei e não obedecem a todos os critérios que ela assegura.

108
Outro fator referente é a exposição realizada pela mídia com relação às empregadas
domésticas. Em telenovelas, por exemplo, a figura da doméstica é fortemente vinculada
a uma mulher negra, que utiliza uniforme adequado e aparece em cena apenas para
servir, principalmente em novelas de época, que retratam a escravidão. Tal fator denota
o registro histórico brasileiro, vinculado ao período de escravidão, no qual as aias eram
exatamente dessa maneira. Além de manter viva a imagem da mulher escrava, essa
constante rememoração contribui para o aumento e a perpetuação do racismo, assim
como do posicionamento da mulher na sociedade.

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110
Prisão e empoderamento: o erotismo na paródia bíblica
de Saramago
(Prison and empowerment: eroticism in the biblical parody of Saramago)

Bruno Vinicius Kutelak Dias1


1
Universidade Federal do Paraná

brunokutelak@gmail.com

Abstract: The present work presents a study about eroticism, focusing on the female
characters, from the works The Gospel according to Jesus Christ (2010) and Cain (2011), by
José Saramago. In these narratives, the parody appears as an element of (re) construction of
the characters in the new versions of the biblical stories and one of the elements that receives
more attention is the relation of the characters with the eroticism. Based on the theories of
Bakhtin (1996), Bataille (1987) and Whitmont (1991), we will develop the analysis of how
eroticism is linked to the text in order to emphasize the feminine, functioning both as a source
of empowerment and as the submission of characters Analyzed. Focusing on Mary and Mary
of Magdala, present in the new Gospel, Eve and Lilith in the re-creation of Genesis, we will
explore how each relates to the societies in which they are inserted, where the male God and
the patriarchal culture are dominant. Considering the representation of each one, we can see an
evolution in the way they are found in the universe recreated by the Portuguese author, from
the most submissive and stuck to the patriarchal dogmas, Mary and Eve, although the last one
begins its process of manumission, to those already Are liberated and empowered before a
God who regulates not only the spiritual life, but also the body of their creations.
Keywords: Saramago; eroticism; female.

Resumo: O presente trabalho apresenta um estudo a respeito do erotismo, com foco nas
personagens femininas, das obras O Evangelho Segundo Jesus Cristo (2010) e Caim (2011),
de José Saramago. Nessas narrativas, a paródia aparece como elemento de (re)construção das
personagens nas novas versões das histórias bíblicas e um dos elementos que mais recebe
destaque é a relação das personagens com o erotismo. Embasados nas teorias de Bakhtin
(1996), Bataille (1987) e Whitmont (1991), desenvolveremos a análise a respeito do modo
como erotismo é vinculado ao texto no sentido de ressaltar o feminino, funcionando tanto
como fonte de empoderamento quanto de submissão das personagens analisadas. Com o foco
em Maria e Maria de Magdala, presentes no novo Evangelho, Eva e Lilith na recriação do
Gênesis, exploraremos como cada uma delas se relaciona com as sociedades nas quais estão
inseridas, onde o Deus macho e a cultura patriarcal são dominantes. Considerando a
representação de cada uma, podemos observar uma evolução no modo como elas se
encontram no universo recriado pelo autor português, desde as mais submissas e presas aos
dogmas patriarcais, Maria e Eva, embora a última comece seu processo de alforria, àquelas
que já se encontram libertas e empoderadas frente a um Deus que regula não apenas a vida
espiritual, mas também o corpo de suas criações.
Palavras-chave: Saramago; erotismo; feminino.

A paródia carnavalesca
Quando refletimos acerca da construção do personagem feminino considerando
sua (re)valorização, cabe mencionar a importância dos recursos utilizados por Saramago
para a construção de suas narrativas. Para isso, dentre as diversas teorias a respeito da
paródia, decidimos discutir sobre essas personagens com base nos conceitos de Mikhail

111
Bakhtin (1996) sobre o carnaval na Idade Média e na obra de François Rabelais. Ao
considerarmos o carnaval, Bakhtin afirma que tais manifestações se opunham ―à cultura
oficial, ao tom sério, religioso e feudal da época‖ (BALHTIN, 1996, p. 3), bem como a
condição do povo controlado pelos poderes superiores, tanto políticos quanto religiosos,
e pelas regras de conduta impostas a ele. Assim, se tinha no carnaval a oportunidade de
se desvencilhar dessas ―amarras‖.
Se o mundo oficial não permitia, ou tentava não permitir, essa segunda vida, era
nas festas que ela tinha a liberdade para emergir na sociedade. O que podemos observar
é a necessidade desse surgimento de um ―segundo mundo‖ onde o homem e suas
relações com os outros não dependa dos poderes maiores reguladores do cotidiano.

[...] era o triunfo de uma espécie de libertação temporária da verdade dominante e do


regime vigente, de abolição provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios,
regras e tabus. Era a autêntica festa do tempo, a do futuro, das alternâncias e
renovações. Opunha-se à toda perpetuação, a todo aperfeiçoamento e regulamentação,
apontava para um futuro ainda incompleto. (BAKHTIN, 1996, p. 8-9)

Característica marcante do sistema de imagens dessa cultura cômica popular,


sistema denominado realismo grotesco (BAKHTIN, 1996, p. 17) por Bakhtin, ―é o
rebaixamento, isto é, a transferência ao plano material e corporal, o da terra e do corpo
na sua indissolúvel unidade, de tudo que é elevado, espiritual, ideal e abstrato‖. Se há o
rebaixamento do que é considerado superior e elevado, não se estranha que com isso
também haja o destaque de suas características mais mundanas, como os prazeres da
carne citados no trecho acima. Ressaltar tais aspectos vai de encontro com os ideais de
pureza e perfeição do sagrado, particularmente quando temos o cristianismo como plano
de fundo.
Embora a teoria de Bakhtin seja específica de um período histórico, Linda
Hutcheon também retoma o tema quando trata da paródia, colocando a teoria
bakhtiniana como ainda própria para a nossa época:

[...] apesar das limitações da opinião de Bakhtin sobre a paródia moderna, muitas das
suas observações teóricas sobre o carnaval primitivo são surpreendentemente adequadas
e esclarecedoras em relação à situação estética e social contemporânea. Existem, talvez,
razões históricas para esta rápida adaptabilidade. A metaficção contemporânea, como
vimos, existe - tal como o carnaval - nessa fronteira entre a literatura e a vida, negando
enquadramentos e ribaltas. Como tal, partilha do «novo sistema de performance» do
pós-modernismo (Benamou, 1977, 6). Tanto a sua forma como o seu conteúdo podem
operar subvertendo as estruturas autoritárias lógicas, formalistas. A abertura
ambivalente da ficção contemporânea talvez sugira também que os mundos medieval e
moderno podem não ser tão fundamentalmente diferentes como gostaríamos de pensar.
As inversões carnavalescas de normas podiam muito bem ter uma fonte em comum com
os desafios metaficcionais subversivos a convenções novelísticas: sentimentos de
insegurança face quer à natureza, quer à ordem social. O medo é a emoção que mais
contribui para o poder e a seriedade da cultura oficial, segundo Bakhtin. Vivemos hoje
no medo das consequências do que os nossos antepassados designavam, sem ironia, por
«progresso»: urbanização, tecnologia, etc. Também nós desenvolvemos formas
«festivas-populares» como resposta a isto [...]
Bakhtin descreve o carnaval subversivo como sendo realmente «consagrado pela
tradição», quer social, quer eclesiástica (1968, 5). Portanto, embora este festival popular
e as suas formas manifestas existam fora de «formas cerimoniais e de culto oficiais,
eclesiásticas, feudais e políticas sérias» (5), ao serem assim, postulam de facto essas

112
mesmas normas. O reconhecimento do mundo invertido exige ainda um conhecimento
da ordem do mundo que inverte e, em certo sentido, incorpora. A motivação e a forma
do carnavalesco derivam ambas da autoridade: a segunda vida do carnaval só tem
sentido em relação com a primeira vida oficial. Bakhtin escreve: «Enquanto dura o
carnaval, não existe qualquer outra vida fora dele». (HUTCHEON, 1985, p. 90-95)

Embora Bakhtin discorra sobre o carnaval medieval, o teórico não aborda


diretamente a literatura, para isso encontramos a teoria de Hutcheon que mostra o
quanto os princípios do carnaval medieval procedem para pensarmos o contexto
artístico contemporâneo no que se refere à paródia. A paródia moderna, segundo a
autora, também nega a clausura de sistemas que impõem de forma autoritária suas
estruturas e formas. Podemos nos questionar, portanto, se há diferença entre as paródias
moderna e carnavalesca. Mesmo que Hutcheon distancie ambas, classificando a
primeira como possuidora de um tom mais sério em comparação com a comicidade do
carnaval descrito por Bakhtin, essencialmente as duas correspondem à renovação do
objeto parodiado e também negam sistemas autoritários.
Um dos aspectos fortemente explorados no carnaval e com grande destaque na
obra de Saramago, o erotismo está presente na construção de todas as personagens
analisadas, em maior ou menor grau, sempre conectado com a relação dessas mulheres
com a ideia de libertação e poder. Tendo o carnaval como uma festa na qual o povo se
desprendia das amarras sociais e espirituais, o sexo estava presente como uma das
formas de catarse. A orgia nessas festas, segundo Bataille, adquiria papel essencial na
negação dos limites sexuais:

O movimento da festa adquire na orgia essa força transbordante que exige geralmente a
negação de todo limite. A festa é por si mesma negação dos limites da vida que o
trabalho ordena, mas a orgia é o signo de uma subversão perfeita. Não foi o acaso que
quis que nas Saturnais a ordem social fosse invertida: o senhor servia de escravo, o
escravo deitava no leito do senhor. (BATAILLE, 1987, p. 74)

Condenada pela Igreja como não pertencente aos seres divinos e sendo ligada ao
demoníaco, também vista como característica intrínseca do feminino, a sexualidade
encontra liberação para ser praticada, além dos fins reprodutivos, no momento em que
há a busca do povo pela sua alforria frente a repressão dos dominantes, aqui,
considerando o contexto religioso e histórico, esse domínio se exercia, principalmente,
pelo patriarcado e pelo Deus macho.

O feminino
Segundo Whitmont, o patriarcalismo segue os três elementos básicos da
desvalorização e rejeição ―(a) da divindade feminina (consequentemente, dos valores
femininos); (b) dos impulsos naturais; (c) das emoções e desejos espontâneos‖ (1993, p.
88). Tal rejeição era pregada, pelo menos, no nível social, e caso houvesse vestígios
desses impulsos condenados, permaneciam às escondidas. Se ao homem é associado o
autocontrole, à mulher restam as emoções e os instintos. Essa ideia é um dos princípios
utilizados para o rebaixamento feminino, principalmente se considerarmos a visão sobre
a mulher exposta em um dos livros que mais influenciaram a história religiosa, o
Malleus Maleficarum, utilizado durante a Inquisição como manual de caça às bruxas.

113
Segundo o Malleus, as mulheres são basicamente movidas pela intensidade do afeto e
da emoção. Seus extremos de amor ou ódio são gerados pelo ―clamor da carne‖, pela
possessividade e pelo ciúme. ―Mais carnais do que o homem‖, elas são, na verdade,
sexualmente insaciáveis, vãs, mentirosas e sedutoras; só buscam o prazer [...]
(WHITMONT, 1993, p. 143)

Se a mulher não era digna da salvação, tudo o que era associado a ela acaba por
ser, também, condenado: ―A espontaneidade natural, a sexualidade, os desejos da carne
a mulher e o Feminino, a dança e o jogo, tudo isso passa a ser poderes do adversário,
Dionísio transformado em Diabo‖ (WHITMONT, 1993, p. 103). Na obra de Saramago,
no entanto, encontramos o feminino dialogando fortemente com tais conceitos, tanto da
paródia como o da sexualidade e do erotismo que envolvem sua imagem. Considerando
as duas obras selecionadas para a nossa análise, O Evangelho segundo Jesus Cristo e
Caim, podemos encontrar as personagens femininas: Maria e Madalena no Evangelho,
Eva e Lilith, em Caim, representadas com novas posições no mundo bíblico
saramaguiano, posições essas que se relacionam diretamente com sua liberdade sexual.
Divididas em 2 grupos, as mães e as amantes, podemos observar um grau de libertação
e empoderamento do feminino como que num crescente, daquela ainda escravizada por
uma cultura misógina às soberanas de seus próprios mundos.

As personagens de Saramago

Maria e Eva, as mães


Começando por Maria e Eva, ambas consideradas mães da humanidade, se
diferenciam pela tradição cristã por seus papéis, uma de salvadora e outra de
condenadora. Das quatro personagens, Maria é aquela que se encontra atada às leis de
uma sociedade regida pelo patriarcalismo e por um Deus homem que condena a
sexualidade como uma das fontes da perdição humana.

Maria, deitada de costas, estava acordada e atenta, olhava fixamente um ponto em


frente, e parecia esperar. Sem pronunciar palavra, José aproximou-se e afastou devagar
o lençol que a cobria. Ela desviou os olhos, soergue um pouco a parte inferior da túnica,
mas só acabou de puxá-la para cima, à altura do ventre, quando ele já se vinha
debruçando e procedia do mesmo modo com a sua própria túnica, e Maria, entretanto,
abrira as pernas, ou as tinha aberto durante o sonho e desta maneira as deixara ficar,
fosse por inusitada indolência matinal ou pressentimento de mulher casada que conhece
os seus deveres. [...]
Descalça vai Maria à fonte, descalça vai ao campo, com os seus vestidos pobres que no
trabalho mais se sujam e gastam, e que é preciso estar sempre a lavar e remendar, para o
marido vão os panos novos e os cuidados maiores, mulheres destas com qualquer coisa
se contentam. Maria vai à sinagoga, entra pela porta lateral, que a lei impõe às
mulheres, e se, é um supor, lá se encontram ela e trinta companheiras, ou mesmo todas
as fêmeas de Nazaré, ou toda a população feminina de Galileia, ainda assim terão de
esperar que cheguem ao menos dez homens para que o serviço do culto, em que só
como passivas assistentes participarão, possa ser celebrado. Ao contrário de José, seu
marido, Maria não é piedosa nem justa, porém não é sua a culpa dessas mazelas morais,
a culpa é da língua que fala, senão dos homens que a inventaram, pois nela as palavras
justo e piedoso, simplesmente, não têm feminino. (SARAMAGO, 2010, p. 19-22)

114
Em uma cultura na qual a posição da mulher na sociedade é subalterna e
inferiorizada, não se estranha que Maria também receba esse tipo de tratamento. O autor
nos mostra uma mulher que não se distingue de suas semelhantes, mesmo que venha a
gerar o ―salvador‖ da humanidade. Colocando-a no mesmo nível de igualdade das
demais, Saramago a retira de seu pedestal instituído pelo Cristianismo que a adotou
como mãe e a rebaixa em um mundo onde outras, como veremos adiante, podem ser
superiores à ―escolhida‖ por Deus. Seu marido, nitidamente abençoado por ser homem,
recebe aquilo que é seu por direito, como os privilégios em casa e o reconhecimento em
uma religião na qual a mulher não passa de uma assistente passiva. Maria não tem e não
pode ter qualquer glória nesse universo onde vive.
Embora seja a que menos recebe citações com relação ao sexo, sua posição
submissa e passiva durante o ato sexual reflete sua posição na sociedade. Ela não apenas
está presa a esse padrão como, aparentemente, não se liberta dele durante sua trajetória
na narrativa, vindo apenas a ser excluída da vida do filho e afastada da imagem santa
que possui na tradição católica. Maria deve servir aos homens da casa, manter-se calada,
viajar junto às mulheres sempre atrás dos homens, e não lhe resta esperança de qualquer
modificação pois, como boa mulher devota do deus macho, sabe seu lugar e não
questiona a sabedoria masculina. Além disso, o rebaixamento de Maria se completa com
sua ligação ao erotismo, já não é mais a virgem santa. Mesmo que a paródia
carnavalesca possa ter a função de renovação positiva, não podemos negar que, para
Maria, pelo menos a sexualidade não funciona como forma de libertação, mas sim como
sentença de sua submissão tanto ao marido quanto ao Deus que venerava, ao contrário
de Eva, Madalena e Lilith.
A outra mãe da humanidade, Eva, também se encontra em posição menos
privilegiada com relação ao marido, condenada à obediência a ele e ao senhor por sua
indolência em comer o fruto proibido. No entanto, diferentemente de Maria, Eva e mais
livre sexualmente, da maneira possível, do que a mãe de Jesus. Desde a sua criação Eva
se aproveita da inocência do senhor para se aproveitar da nudez junto ao marido.

Nuzinhos em pelota estreme, já eles andavam quando iam para a cama, e se o senhor
nunca havia reparado em tão evidente falta de pudor, a culpa era da sua cegueira de
progenitor, a tal, pelos vistos incurável, que nos impede de ver que os nossos filhos, no
fim de contas, são tão bons ou tão maus como os demais. (SARAMAGO, 2011, p. 13)

Eva também começa a se libertar, pelo menos internamente, quando entende


que, concordando, ou fingindo, com Adão, pode ter a liberdade de manipular a situação
em seu favor, como quando decide, contra a vontade do marido, ir até os portões do
Éden pedir ajuda ao querubim que fazia guarda com uma espada de fogo, após serem
expulsos do Paraíso.

Estava surpreendida consigo mesma, com a liberdade com que tinha respondido ao
marido, sem temor, sem ter de escolher as palavras, dizendo simplesmente o que, na sua
opinião, o caso justificava. Era como se dentro de si habitasse uma outra mulher, com
nula dependência do senhor ou de um esposo por ele designado, uma fêmea que
decidira, finalmente, fazer uso total da língua e da linguagem que o dito senhor, por
assim dizer, lhe havia metido pela boca abaixo [...]
Eva retirou a pele de cima dos ombros e disse, Usa isto para trazeres a fruta. Estava nua
da cintura para cima. A espada silvou com mais força como se tivesse recebido um
súbito afluxo de energia, a mesma energia que levou o querubim a dar um passo em

115
frente, a mesma que o fez erguer a mãe esquerda e tocar no seio da mulher.
(SARAMAGO, 2011, p. 24-25)

Os seios que, aparentemente, não serviam para outra coisa a não ser amamentar,
causaram um furor no anjo, fazendo sua espada de fogo silvar com mais força que o
normal com o súbito afluxo de energia. Embora não possamos observar Eva utilizando
seu corpo de forma deliberadamente sexual para causar tal reação em Azael, podemos
notar que a imagem da espada de fogo pode ser associada ao órgão sexual masculino em
uma ereção ao ser estimulado.
Azael podia ser um ser superior, escolhido para guardar os portões do Éden, mas
também é ignorante nos assuntos terrenos, como o seu desconhecimento do que seriam
diarreias e os processos excretórios do corpo humano (SARAMAGO, 2011, p. 24-25).
Ela o expõe ao desejo proibido pelo corpo humano, comportamento já pecaminoso entre
os homens e abominável entre os seres sagrados. Desde sua criação no Éden, Eva já
conhecia o sexo, se aproveitando da ingenuidade de Deus para que ela e o companheiro
ficassem nus e praticassem tal ato pecaminoso. No entanto, é apenas quando ela é
expulsa de sua vida paradisíaca que dentro de si começa a surgir uma nova mulher, uma
nova visão de mundo a respeito do que deve ou não seguir das ordens divinas, da
submissão ao marido e do controle de seu próprio corpo como ferramenta de
empoderamento sobre os demais, como no caso do anjo, ser divino que foi retirado da
esfera do sagrado e colocado no mesmo nível que a humana por meio do desejo sexual.
Diferentemente de Maria, por exemplo, que ainda está presa ao que prega a cultura
patriarcal na qual está inserida. Eva inicia seu processo de alforria, de Deus e do marido
por meio da sexualidade e do domínio de seu corpo e de seu pensamento, se rebelando
contra os dois.

Madalena e Lilith, as amantes


Já as outras duas personagens nos apresentam as versões das mulheres
empoderadas, Madalena e Lilith.
Companheira de Jesus Cristo, a prostituta Madalena talvez seja a inversão
marcante da paródia bíblica de Saramago. Deixando sua posição subalterna e condenada
para se tornar a escolhida pelo filho de deus para ser sua amante. Maria de Magdala
encanta Jesus com sua beleza, sempre associada a descrições sinestésicas que evocam
os perfumes, o toque e a visão, levando o filho de deus a ter contato com seus instintos
mais primitivos, ou seja, em contato direto com o reino do feminino que foi abolido pela
sociedade patriarcal.
Jesus encontra Madalena ao peregrinar de volta à sua cidade natal. Ferido e
cansado, decide pedir ajuda em uma residência que parecia afastada das demais da
cidade de Magdala. Jesus ―olhou em redor o pátio, surpreendido porque em sua vida
nunca vira nada tão limpo e arrumado‖ (SARAMAGO, 2010, p. 231). Considerando o
espaço como parte importante para a narrativa, já que recebe grande foco por parte do
narrador, não podemos ignorar a relevância desse aspecto ao tratarmos de Madalena.
Para Chevalier:

La casa significa el ser interior, según Bachelard; sus plantas, su sótano y su granero
simbolizan diversos estados del alma [...]

116
La casa es también um símbolo femenino, com el sentido de refugio, madre, protección
o seno materno1. (CHEVALIER, 1986, p. 259)

Se a casa é um símbolo ou um reflexo, do ser, não podemos ignorar tal


passagem da narrativa. Jesus encontra o lugar mais limpo e arrumado que já havia visto
em sua vida. Mesmo que seja prostituta, a personagem é representada, como analisamos
previamente, de forma superior aos demais, pelo menos em tratando de sua inteligência
capaz de aconselhar e repreender o filho de Deus. Sua morada representa seu interior,
uma pureza que vai de encontro com a imagem esperada de alguém em sua situação, de
acordo com o pensamento preconceituoso da sociedade.
No entanto, considerando que a imagem impura e pecaminosa da prostituta foi
forjada pelas religiões patriarcais, servindo de condenação por parte da Igreja, não se
pode esperar outra coisa além da integridade de Madalena: a personagem não apenas se
afasta da sociedade que a condena, mas também rejeita a figura de Deus, descrito por
ela como medonho e que a levou a escolher a vida de prostituta, sendo assim excluída
de seu domínio sagrado.

Vou-te contar um sonho que tive, uma noite apareceu-me em sonho um menino, de
repente apareceu vindo de parte nenhuma, apareceu e disse Deus é medonho, disse-o e
desapareceu, não sei quem fosse aquela criança, donde veio e a quem pertencia, Sonhos,
Ninguém menos do que tu pode dizer a palavra nesse tom, E depois, que aconteceu,
Depois comecei a ser prostituta. (SARAMAGO, 2010, p. 257-258)

Madalena decide por si mesma que a forma para se libertar das amarras de Deus
e da sociedade onde se encontrava era por meio do erotismo, tornando-se prostituta. Se
na sociedade essas mulheres são excluídas e colocadas à margem como rebaixadas,
Madalena se usa desse artifício para se empoderar, criando um mundo próprio e livre
das leis que regiam o mundo criado pelo Deus macho. Liberta de deus e da sociedade
regida por ele, Madalena é capaz de se se empoderar frente a todos, inclusive frente ao
seu companheiro, criando seu próprio universo:

Com certeza, não saberiam como responder-nos se agora lhes perguntássemos de que
modo se comportariam se não se achassem protegidos e à solta nestas quatro paredes,
entre as quais puderam, por uns poucos dias, talhar um mundo à simples imagem e
semelhança de homem e mulher, bem mais dela do que dele, diga-se de passagem [...]
(SARAMAGO, 2010, p. 241)

Por fim, Lilith, a amante de Caim, é o ápice quando tratamos do empoderamento


e sua relação com o erotismo. Rainha, ou dona, da cidade de Nod, Lilith passa por cima
de todos, inclusive do marido, para sua satisfação pessoal, criando um mundo sob suas
regras, no qual o erotismo reina junto com ela, como vemos na citação a seguir:

Vê-se que não conhece as mulheres, são capazes de tudo, do melhor e do pior se lhes dá
para isso, são muito senhoras de desprezar uma coroa em troca de irem lavar ao rio a

1
A casa significa o ser interior, de acordo com Bachelard; suas plantas, seu porão e seu celeiro
simbolizam diferentes estados da alma [...]
A casa é também um símbolo feminino, o sentido com abrigo, mãe, proteção ou seio materno. (Tradução
nossa).

117
túnica do amante ou atropelarem tudo e todos para chegar a sentar-se num trono.
(SARAMAGO, 2011, p. 51)

Lilith, para manter sua posição de rainha, ou dona da cidade, é capaz não apenas
de manter um casamento de fachada com o rei Noah, mas o mantém em posição
subalterna, escolhendo homens de acordo com suas vontades para satisfazer seus
desejos. Caim é escolhido para se juntar à rainha. Ao entrar no palácio, fica sob os
cuidados de duas escravas que o preparariam para Lilith.

Conduzido por elas a um quarto separado, caim foi despido e logo lavado dos pés à
cabeça com água tépida. O contacto insistente e minucioso das mãos das mulheres
provocou-lhe uma erecção que não pôde reprimir, supondo que tal proeza seria possível.
Elas riram e, em resposta, redobraram de atenções para o órgão erecto, a que, entre
novas risadas, chamavam flauta muda, o qual de repente havia saltado nas suas mãos
com a elasticidade de uma cobra. O resultado, vistas as circunstâncias, era mais do que
previsível, o homem ejaculou de repente, em jorros sucessivos que, ajoelhadas como
estavam, as escravas receberam na cara e na boca [...] As escravas pareciam não ter
pressa, concentradas agora em extrair as últimas gotas do pénis de caim que levavam à
boca na ponda de um dedo, uma após a outra, com delícia. (SARAMAGO, 2011, p. 54-
55)

O contato das escravas faz Caim ter uma ereção, que mesmo sendo seu desejo, o
que aparentemente era, dada a descrição da cena, não pôde reprimir. Voltamos, aqui, à
relação do homem com os desejos e instintos do corpo. Como vimos anteriormente, o
sexo masculino é associado às partes superiores do corpo, como a cabeça, tendo o lado
racional virtuoso em detrimento do emocional, relacionado ao feminino. A reação de
Caim ao toque das mulheres o traz ao nível delas, inferior se tomarmos como ponto de
vista a tradição religiosa, no entanto, ao considerarmos a narrativa, podemos observar
que o controle da situação está nas mãos femininas que, mesmo sendo escravas, são
superiores na temporária dominação sobre Caim.

Caim dá voltas à vida na sua cabeça e não lhe encontra explicação, veja-se estar mulher
que, não obstante estar enferma de desejo, como é fácil perceber, se compraz em ir
adiando o momento da entrega, palavra por outro lado altamente inadequada, porque
Lilith, quando finalmente abrir as penas para se deixar penetrar, não estará a entregar-
se, mas sim a tratar de devorar o homem a quem disse, Entra. (SARAMAGO, 2011, p.
59)

Primeiramente, o que fica claro, tanto no excerto citado acima, é o controle


exercido por Lilith. Mesmo que esteja perceptivelmente enferma de desejo, é,
justamente o fato de não ceder ao sentimento responsável por Caim entrar cada vez mais
na ―armadilha‖, já que seus pensamentos estão focados na soberana e não encontram
explicação para o fato. Lilith também não assume o papel submisso por se entregar ao
parceiro, mas, pelo contrário, é ela quem detém o comando da situação. É Lilith quem
escolhe seus parceiros, também é ela quem decide quando deve finalmente agraciá-los
com o sexo. Além disso, assim como as escravas, é Lilith quem devora seu parceiro a
quem disse ―Entra‖. Com essa expressão, ainda podemos observar o duplo sentido no
termo utilizado pelo autor: Lilith ordena a entrada em seus aposentos ou em seu corpo,
em ambos os casos, é somente sob as suas ordens que se consumam os fatos.

118
Caim já entrou, já dormiu na cama de lilith, e, por mais incrível que nos pareça, foi a
sua própria falta de experiência de sexo que o impediu de se afogar no vórtice de
luxúria que num só instante arrebatou a mulher e a fez voar e gritar como possessa.
Tangia os dentes, mordia a almofada, logo o ombro do homem, cujo sangue sorveu.
(SARAMAGO, 2011, p. 60)

O inexperiente Caim finalmente cai nas garras de Lilith e foi sua falta de
conhecimento que o manteve, pelo menos até o momento, longe de se afogar por
completo na luxúria da mulher que o arrebatou. Mesmo que Saramago utilize tal cena
como o ápice do erotismo como forma de prazer em sua narrativa, não podemos
desassociar a imagem quase demoníaca encontrada na descrição do ato citado a seguir:
―é tomada pela luxúria que a faz voar e gritar como possessa‖ (SARAMAGO, 2011, p.
61). Lilith se entrega ao que por tempos foi condenado pela Igreja, e talvez ainda o seja,
o prazer, principalmente o sexual que é mais diretamente associado ao proibido e ao
diabo.
Podemos observar as questões 3 e 7 do Malleus Maleficarum: a primeira cita as
partes íntimas como fontes do poder do Diabo, a segunda associa a bruxaria à luxúria
carnal, que é, de acordo com o livro, insaciável nas mulheres, levando-as até a se
relacionarem com demônios para que esse desejo seja satisfeito ou se transformando
neles para tentarem outros, especialmente religiosos. O sexo não é apenas um pecado
que, idealmente, deveria ser banido da sociedade, mas é por meio dele que o Demônio,
segundo esse manual de caça às bruxas, consegue exercer seu poder sobre a
humanidade. A Lilith de Saramago pode não ser o demônio da noite descrito no mito
judaico-cristão2, mas cumpre a função de um, conforme a tradição, ao exercer seu poder
sobre os outros principalmente por meio do sexo. Esse poder, mesmo que relacionado a
uma imagem menos elevada, não pode, no entanto, ser visto como ruim. Pelo contrário,
todo o sexo criava para as personagens seu próprio paraíso, assim como o universo
criado entre Jesus e Madalena visto quando a analisamos.
Ao final da história, Caim deixa a soberana, levado magicamente pelo tempo, e,
mesmo que nele ela tenha encontrado o amor, a satisfação da rainha ainda vem em
primeiro lugar.

2
A lenda de Lilith atravessa o tempo e, na tradição judaica, acaba se tornando a primeira mulher a ser
criada, antes de Eva, junto de Adão. ―O mito de Lilith pertence à grande tradição dos testemunhos orais
que estão reunidos nos textos da sabedoria rabínica definida na versão jeovística‖ (SICUTERI, 1998, p.
23). Sua aparição nessa versão da criação humana tem como base o versículo ambíguo do Gênesis, ―E
criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou‖ (Gênesis 1:27,
grifo nosso). Lilith teria sido condenada, em uma das versões da história, por não se submeter a Adão,
principalmente com relação ao sexo: ―No momento crucial no qual Adão lhe negou o desejo, ela fugiu em
direção ao Mar Vermelho, agora odiosa a seu esposo. Jeová Deus proferiu sua ordem: "O desejo da
mulher é para o marido. Volta para ele". Lilith não responde com a obediência mas com a recusa: "Eu não
quero mais ter nada a ver com meu marido". Jeová Deus insiste: "Volta ao desejo, volta a desejar teu
marido". Mas a natureza de Lilith mudou no momento em que blasfemou contra Deus, e não existe mais
obediência.
Então Jeová Deus manda em direção ao Mar Vermelho uma formação de Anjos. Eles alcançam Lilith:
acham-na nas charnecas desertas do Mar Arábico, onde a tradição popular hebraica diz que as águas
chamam, atraindo como imã, todos os demónios e espíritos malvados. Lilith se transforma: não é mais a
companheira de Adão. É o demoníaco manifesto, está rodeada por todas as criaturas perversas saídas das
trevas‖. (SICUTERI, 1998, p. 39)

119
Em dez anos não conheci outra mulher, disse caim enquanto se deitava, Nem eu outro
homem, disse lilith, sorrindo com malícia, É verdade o que dizes, Não, estiveram nesta
cama alguns, não muitos porque não os podia suportar, a minha vontade era cortar-lhes
o pescoço quando descarregavam, Agradeço-te a franqueza, A ti nunca te mentiria,
disse lilith, e abraçou-se a ele. (SARAMAGO, 2011, p. 127)

Lilith não pode ser satisfeita, diferentemente de Madalena que abandona sua
relação com o erotismo por profissão ao encontrar o amor de Jesus. Mesmo que Caim
tenha se mantido fiel à rainha, Lilith coloca seu desejo à frente do que possa ter sentido
com relação ao fratricida. Mesmo amando Caim, Lilith é liberta de qualquer padrão
social, como o casamento ou fidelidade sexual exclusiva a um único homem.

Considerações finais
Vemos nas duas obras selecionadas, uma escala no comportamento envolvendo
o feminino e sua relação com o erotismo, desde as mais submissas aos homens e a
Deus, até aquelas totalmente libertas não só da sociedade, mas também do Deus criador.
José Saramago parodia o texto bíblico e recria quatro das personagens mais
icônicas da tradição judaico-cristã, dando destaque a elas em meio aos enredos e
personagens principais de histórias canônicas originalmente com foco em Jesus e Caim.
As mulheres não são apenas alteradas para as novas versões dos Evangelhos e do
princípio do mundo, mas são renovadas e ressurgem sob os modelos das paródias
moderna e medieval. Essa renovação se dá muito com relação ao erotismo explorado
pelo autor, que atribuiu a cada uma características que as colocam em posições distintas
dentro das obras nas quais figuram. Considerando a sociedade atual, na qual as
discussões a respeito tanto da sexualidade quanto do empoderamento feminino são
presentes e, em diversos casos são tratadas como tabu, a paródia reconstrutora de
Saramago apresenta, talvez, não apenas um padrão idealizado pelo autor, mas uma
imagem de igualdade e empoderamento desejável no mundo contemporâneo. Em O
Evangelho segundo Jesus Cristo e Caim, tanto a paródia quanto o erotismo funcionam
não apenas como forma de questionamento aos padrões tradicionais encontrados nas
sociedades patriarcais, especialmente tratando daquelas com influência do cristianismo,
religião fortemente criticada pelo autor, mas, principalmente, como forma de libertação
e empoderamento do feminino e das personagens que fazem parte desse novo universo
livre das amarras impostas pelo mundo sagrado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto
de François Rabelais. 3ª ed. São Paulo: HUCITEC, Brasília: Editora da Universidade
de Brasília, 1996.
BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: LP&M, 1987.
CHEVALIER, Jean. Diccionário de los símbolos. Barcelona: Editoral Herder, 1986.
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia. Rio de Janeiro: Edições 70 Ltda. 1985

120
KRAMER. Heinrich & SPRENGER, James. Malleus Maleficarum. Disponível em:
http://www.malleusmaleficarum.org/downloads/MalleusAcrobat.pdf. Acesso em: 10 de
março de 2017.
SARAMAGO, José. Caim. 7 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
______. O Evangelho segundo Jesus Cristo. 12 ed. São Paulo: Companhia das Letras,
2010.
SICUTERI, Roberto. Lilith, a lua negra. Trad. Norma Telles e Adolpho S. Gordo. 5 ed.
São Paulo: Paz e Terra, 1990.
WHITMONT, Edward C. Retorno da Deusa. 2 ed. São Paulo: Summus, 1991.

121
Violência contra a mulher negra escravizada: um
estudo de Um defeito de cor
(Violence against enslaved black women: a study of Um defeito de cor)

Laís Maíra Ferreira1


1
Universidade Federal do Estado de Mato Grosso (UFMT)

laismaira@yahoo.com.br

Abstract: This work is about violence against enslaved black women. Therefore, some scenes
of the novel Um defeito de cor (2006), authored by Ana Maria Gonçalves, will be analyzed. In
this novel, the Gonçalves gives voice to an African woman enslaved in Brazil, Kehinde.
Through the voice of the protagonist, countless events are brought to the fore, and among
them, events of aggressions committed against black women. Acts of violence are committed
by white men who believed that these women were forced to accept passively their orders and,
consequently, to fulfill their carnal desires. Acts are also practiced by angry and jealous white
women. Thus, to compose this study, we get postcolonial and decolonial studies, with
emphasis on the concepts of coloniality of power by Quijano (2005) and heterarchies by
Grosfoguel (2008).
Keywords: genre identities; racial identities; subalternization.

Resumo: Este trabalho tem como objetivo tratar da violência contra a mulher negra
escravizada. Para tanto, analisaremos algumas cenas do romance Um defeito de cor (2006).
Nesse romance, a escritora mineira Ana Maria Gonçalves dá voz à africana feita escrava no
Brasil, Kehinde. Pela voz da protagonista inúmeros acontecimentos são trazidos à tona e entre
eles estão as agressões cometidas contra as mulheres negras. Os atos de violência são
cometidos por homens brancos que acreditavam que essas mulheres eram obrigadas a aceitar
passivamente as suas ordens e, consequentemente, a concretizar os seus desejos carnais. Os
atos também são praticados por mulheres brancas furiosas e enciumadas. Destarte, para
fazermos o trabalho contaremos com estudos pós-coloniais e decoloniais, com ênfase nos
conceitos de colonialidade do poder de Quijano (2005) e heterarquias de Grosfoguel (2008).
Palavras-chave: identidades de gênero; identidades de raça; subalternização.

Introdução
A mineira Ana Maria Gonçalves atuou como publicitária e tempos depois
resolveu abandonar a profissão, dedicando-se à escrita. Em 2002, publicou Ao lado e à
margem do que sentes por mim e, em 2006, Um defeito de cor.
Para escrever essa segunda publicação, a escritora, em entrevista à Editora
Record, conta que se debruçou sobre inúmeros livros acadêmicos, de ficção, de história,
biografias, teses, etc. Além dessas obras, ela também se apoiou em documentos de
arquivo do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, do Arquivo Público do Estado da
Bahia, do Arquivo Histórico do Município de Salvador, em jornais, sites, entrevistas,
conversas, entre muitas outras fontes.
Toda essa pesquisa durou dois anos. Após o longo percurso de estudo,
Gonçalves dedicou-se ao texto. Foram nove meses de escrita e mais um ano de reescrita
e revisão,

122
onde cortei mais de quinhentas páginas de um livro que ainda ficou 952 páginas. Eu me
dediquei a apenas escrever, e durante todo o tempo me sustentei com a indispensável
ajuda dos meus pais e a venda de um carro e de um apartamento, frutos de anos
trabalhando em São Paulo, como publicitária. Vendi tudo e me mudei para a Bahia, para
pesquisar e escrever, e morei em Itaparica e em Salvador. Não acredito muito na
literatura como hobby, como algo que se faça nas horas vagas. Acredito que um bom
livro e a manutenção de um certo padrão de qualidade, com raríssimas exceções, é
conseguido com dedicação total. Não necessariamente apenas à escrita, mas existem
outras atividades que também podem enriquecer a bagagem de um escritor, como as
traduções, as palestras, os ensaios e artigos, os concursos literários, as aulas. Mas
sempre ligado à literatura. Eu nunca vi, por exemplo, um bom médico tendo como
trabalho principal uma outra função qualquer e exercendo a medicina apenas nas horas
vagas, ou à noite e nos finais de semana, ou nas férias. Com o escritor deveria acontecer
o mesmo, e talvez até exista quem consegue ter outra atividade paralela, necessária às
circunstâncias, mas acho que eu não conseguiria. Gostaria muito de poder viver de
literatura para me dedicar apenas a ela e sei da quase impossibilidade de isso acontecer.
Mas também conheço algumas pessoas que vivem, e se deu certo para elas eu gostaria
de pelo menos tentar (GONÇALVES. Entrevista à Editora Record).

Tanta dedicação resultou-lhe o prêmio Casa de las Américas na categoria


literatura brasileira.
A premiação é decorrente de uma obra baseada na história de vida de Luiza
Mahin, ―uma mulher que é lenda na Bahia, mas de quem não se consegue confirmar a
existência e sobre quem não se sabe muito‖ (GONÇALVES. Entrevista à Editora
Record). De acordo com a escritora, há boatos que ela tenha sido inventada por Luiz
Gama – ex-escravizado, poeta, funcionário público, integrante do movimento
republicano paulista, editor de jornais e também um grande advogado, que ―[a]dotou ‗a
causa dos desgraçados‘, sem pretender lucros, sem temer ameaças. Virou legenda‖
(AZEVEDO, 1999, p. 16). É para esse homem, seu suposto filho, que Luiza Mahin
direciona cartas que compõem a narrativa.
Assim, com base em manuscritos supostamente deixados por Luísa Mahin,
Gonçalves produz o romance histórico Um defeito de cor (2006), no qual a protagonista
Kehinde, chamada também pelo nome cristão de Luíza, narra sua história e, entre os
inúmeros fatos narrados, estão as agressões sexuais.
Kehinde, a exemplo das mulheres negras escravizadas, sofre com os assaltos sexuais
cometidos pelo ―sinhô‖ José Carlos.
A atitude de José Carlos é própria daqueles homens que acreditavam que as
mulheres negras escravizadas serviam apenas para efetuar trabalhos no campo,
trabalhos domésticos e para a realização dos desejos carnais.
Esses mesmos homens acreditavam que a exploração sexual era ―um direito e
um privilégio dos que estavam no poder‖ (HOOKS, 1981, p. 21). Por assim
acreditarem, ―cenas como o estupro de uma garota de treze anos por seu dono, ou a cena
da escrava que teve seus olhos arrancados por sua senhora e colocados em um pote de
conservas [...], não eram tidas como atos criminosos‖ (ROSSINI, 2014, p. 27).
Além disso, como veremos ao longo deste trabalho, esses homens procuravam
proferir discursos de ―caráter discriminatório e de estereotipia, carregados de ideologias
e de modelos simbólicos naturalizados‖ (ROSSINI, 2014, p. 26). As alocuções os
inocentavam e, consequentemente, transferiam a culpa para as mulheres negras.
Consideradas culpadas, as escravizadas sofriam com a fúria e com o ciúme das donas
brancas.

123
Logo, ao narrar esses fatos, Kehinde, concomitantemente, fará ecoar a voz
daquelas que mais sofreram durante o processo de colonização e escravização, ou seja,
as mulheres negras escravizadas.
Desse modo, o nosso trabalho tem como objetivo tratar da violência contra a
mulher negra escravizada. Para tanto, analisaremos algumas cenas do romance Um
defeito de cor (2006). Ao analisarmos essas cenas, procuraremos fazer o apontamento
de algumas questões, como por exemplo: Quando as mulheres negras começaram a ser
tratadas como seres inferiores? Quem foi o responsável por tal classificação? Qual foi o
critério utilizado para classificá-las como seres inferiores? Quais foram os discursos
proferidos para justificar as agressões contra as mulheres negras? Os discursos
proferidos tiveram interferência sobre as identidades dessas mulheres? Para responder a
todos esses questionamentos, debruçaremo-nos sobre os estudos pós-coloniais e
decoloniais, com ênfase nos conceitos de colonialidade do poder de Quijano (2005) e
heterarquias de Grosfoguel (2008).

Estrutura de poder e a consequente inferiorização da mulher negra


Contrariamente a homens e mulheres brancas, e até mesmo a homens negros, as
mulheres negras foram e ainda são tidas como seres inferiores. O arraigamento dessa
convicção foi expressa no período de colonização das Américas.
Durante esse período, o ―homem
heterossexual/branco/patriarcal/cristão/militar/capitalista/europeu‖ (GROSFOGUEL,
2008, p. 122) trouxe para as Américas uma enredada estrutura de poder. Dentro dessa
estrutura, também chamada de heterarquia, está ―uma hierarquia global que privilegia os
homens relativamente às mulheres e o patriarcado europeu relativamente a outros tipos
de relação entre os sexos‖ (GROSFOGUEL, 2008, p. 122). Além dessa, também estão
situadas hierarquias espirituais, epistêmicas, econômicas, políticas, linguísticas e étnico-
raciais.
Todas essas hierarquias foram organizadas com base na ideia de raça. De acordo
com Quijano (2005), a ideia de raça ―[t]alvez se tenha originado como referência às
diferenças fenotípicas entre conquistadores e conquistados, mas o que importa é que
desde muito cedo foi construída como referência a supostas estruturas biológicas
diferenciais entre esses grupos‖ (QUIJANO, 2005, p. 107). Ainda de acordo com
Quijano (2005), essa ideia serviu para legitimar ideias e práticas de relações de
superioridade e inferioridade entre os dominantes e os dominados.
Por conseguinte, a formação de relações, fundadas na ideia de raça, produziu na
América identidades historicamente novas. Povos como ―astecas, maias, incas,
chibchas, etc. [...] reduziam-se a uma única identidade: índios‖. Já povos como
―achantes, iorubas, zulus, congos, bacongos, etc. [...] não eram outra coisa além de
negros‖ (QUIJANO, 2005, p. 116). A mistura desses povos com os colonizadores,
considerados brancos, deu origem a outra identidade: mestiços.
Todos esses povos, segundo Quijano (2005), foram associados à natureza dos
papéis e lugares na nova estrutura global de controle do trabalho. Assim, os índios
foram confinados na estrutura de servidão e reciprocidade1, os negros foram reduzidos à
escravidão, os brancos podiam receber salários, ser comerciantes independentes,

1
Relação de troca.

124
artesãos independentes ou agricultores independentes, e ―muito dos mestiços de
espanhóis ou mulheres índias, já um estrato social extenso e importante na sociedade
colonial, começaram a ocupar os mesmos ofícios e atividades que exerciam os ibéricos
que não eram nobres‖ (QUIJANO, 2005, p. 108). Em suma, os trabalhos não
assalariados foram destinados às raças consideradas inferiores e os trabalhos
remunerados foram destinados às raças consideradas superiores.
Todas essas formas de trabalhos, ou seja, a escravidão, a servidão, a produção
mercantil, a reciprocidade e o salário foram deliberadamente estabelecidas e
organizadas para produzir mercadorias para o mercado mundial: ―[i]sso significa que
todas essas formas de trabalho e de controle do trabalho na América não só atuavam
simultaneamente, mas foram articuladas em torno do eixo do capital e do mercado
mundial [...]. Juntas configuraram um novo sistema: o capitalismo‖ (QUIJANO, 2005,
p. 115).
Destarte, a articulação das formas de controle de trabalho, de seus recursos e de
seus produtos, bem como a codificação de distintas estruturas biológicas entre
conquistados e conquistadores foram eixos fundamentais da colonialidade do poder.

Um dos eixos fundamentais desse padrão de poder é a classificação social da população


mundial de acordo com a idéia de raça, uma construção mental que expressa a
experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia as dimensões mais
importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo.
Esse eixo tem, portanto, origem e caráter colonial, mas provou ser mais duradouro e
estável que o colonialismo em cuja matriz foi estabelecido. Implica, conseqüentemente,
num elemento de colonialidade no padrão de poder hoje hegemônico [...] (QUIJANO,
2005, p. 107).

Na definição de Grosfoguel (2008), a colonialidade do poder é:

a continuidade das formas coloniais de dominação após o fim das administrações


coloniais, produzidas pelas culturas coloniais e pelas estruturas do sistema-mundo
capitalista moderno/colonial. A expressão ―colonialidade do poder‖ designa um
processo fundamental de estruturação do sistema-mundo moderno/colonial, que articula
os lugares periféricos da divisão internacional do trabalho com a hierarquia étnico-racial
global e com a inscrição de migrantes do Terceiro Mundo na hierarquia étnico-racial
das cidades metropolitanas globais. Os Estados-nação periféricos e os povos não-
europeus vivem hoje sob o regime da ―colonialidade global‖ imposto pelos Estados
Unidos, através do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Mundial (BM), do
Pentágono e da OTAN. As zonas periféricas mantêm-se numa situação colonial, ainda
que já não estejam sujeitas a uma administração colonial (GROSFOGUEL, 2008, p.
126).

Na concepção do autor, as múltiplas e heterogêneas estruturas globais implantadas no


período colonial não se evaporaram, pelo contrário, continuam arreigadas.

[...] O que a perspectiva da ―colonialidade do poder‖ tem de novo é o modo como a


ideia de raça e racismo se torna o princípio organizador que estrutura todas as múltiplas
hierarquias do sistema-mundo (Quijano, 1993). Por exemplo, as diferentes formas de
trabalho que se encontram articuladas com a acumulação de capital no âmbito mundial
são distribuídas de acordo com esta hierarquia racial; o trabalho coercivo (ou barato) é
feito por pessoas não-europeias situadas na periferia, e o ―trabalho assalariado livre‖
situa-se no centro. A hierarquia global das relações entre os sexos também é afectada

125
pela raça: ao contrário dos patriarcados pré-europeus em que todas as mulheres eram
inferiores aos homens, na nova matriz de poder colonial algumas mulheres (de origem
europeia) possuem um estatuto mais elevado e um maior acesso aos recursos do que
alguns homens (de origem não-europeia). A ideia de raça organiza a população mundial
segundo uma ordem hierárquica de povos superiores e inferiores. Ao esconder o lugar
do sujeito da enunciação, a dominação e a expansão coloniais europeias/euro-
americanas conseguiram construir por todo o globo uma hierarquia de conhecimento
superior e inferior e, consequentemente, de povos superiores e inferiores [...]
(GROSFOGUEL, 2008, p. 123-124).

Em suma, na nova matriz de poder a ideia de raça continua a organizar as


hierarquias, entre elas, está aquela que situa algumas mulheres brancas em um nível
mais elevado do que homens negros e mulheres negras.
Importante pontuar que essa nova matriz teve origem na América e depois se
espalhou para o restante do globo. Assim, ―depois da América e da Europa, foram
estabelecidas África, Ásia e eventualmente Oceania‖ (QUIJANO, 2005, p. 110). Essa
nova matriz de poder foi implantada por homens brancos e heterossexuais imbuídos de
ideologias e discursos preconceituosos. Como veremos na seção a seguir, a
protagonista-narradora da obra Um defeito de cor (2006) e outras mulheres negras
escravizadas sofreram as consequências desse preconceito. Tais mulheres, por serem
consideradas inferiores, foram agredidas fisicamente e sexualmente pelos seus senhores
e senhoras.

Agressão contra a mulher negra


Durante o período colonial, as mulheres negras escravizadas foram
constantemente violentadas pelos seus senhores/homens brancos e também pelas
mulheres brancas.
As agressões que essas mulheres sofreram são relatadas minuciosamente por Kehinde,
protagonista-narradora do romance Um defeito de cor (2006). Por meio de cartas,
direcionadas ao filho desaparecido, a protagonista faz os relatos e um dos primeiros é o
estupro e assassinato cometidos por guerreiros de um grupo africano contra a sua mãe,
quando ela ainda morava na África.

O guerreiro que segurava a minha mãe, o que aos meus olhos era só membro duro e
grande, jogou-a no chão e se enfiou dentro da racha dela. Ela chorava e eu olhava
assustada, imaginando que devia estar doendo, imaginando que a minha avó, por ser
grande, também já tinha feito aquilo e sabia que não era bom, pois ela chorava e pedia
que parassem, perguntando se já não estavam satisfeitos com o que tinham feito ao
2
Kokumo . Eles continuaram fingindo que ela não existia. Na estrada que passava ao
lado de nossa casa, algumas pessoas pararam para olhar, mas ninguém se aproximou.
Dois dos guerreiros reparavam em mim e na Taiwo3. O primeiro pegou uma das mãos
dela e apertou em volta do membro dele, e logo foi copiado pelo amigo, que usou a
minha mão [...] O guerreiro forçava a minha mão contra o membro, que de início,
estava mole, e mexia o corpo para frente e para trás, fazendo com que ficasse duro e

2
Morto ao tentar defender a mãe dos guerreiros.
3
Irmã gêmea.

126
quente. A minha avó chorava encobrindo o rosto, não sei se para esconder as lágrimas
ou se para se esconder do que via (GONÇALVES, 2006, p. 23).

Posteriormente, Kehinde relata sobre a violência que sofreu quando já estava


escravizada no Brasil, mais precisamente na ilha de Itaparica. Contudo, antes de fazer o
relato, ela discorre sobre a perseguição do ―sinhô‖ José Carlos: ―Quando o sinhô José
Carlos estava em casa, eu evitava sair da cozinha [...], desde o dia em que ele [...] pediu
para ver os meus peitos. Eu não sabia o que fazer e fiquei quieta [...]. Ele então repetiu,
mandando que eu levantasse a bata [...] e como eu não me mexi, ele mesmo ergueu‖
(GONÇALVES, 2006, p. 152).
Feito esse e outros relatos sobre as perseguições do ―sinhô‖, Kehinde tece sobre
a violência sexual que sofreu. O ato de violência acontece na presença do escravizado e
namorado Lourenço.

[...] o sinhô José Carlos me debruçou na esteira, com um tapa no rosto, e depois pulou
em cima de mim com o membro duro e escapando pela abertura da calça, que ele nem
se deu ao trabalho de tirar. Eu encarava os olhos mortos de Lourenço enquanto o
―sinhô‖ levantava a minha saia e me abria as pernas com todo o peso do seu corpo, para
depois se enfiar dentro da minha racha como se estivesse sangrando carneiro. Não me
lembro se doeu, pois eu estava mais preocupada com o riozinho de sangue que escorria
do corte da minha boca, provocado pelo tapa, e me lembrava da minha mãe debaixo do
guerreiro, em Savalu, desejando que ela, o Kokumo e seus amigos aparecessem naquele
momento e nos levassem, a mim e ao Lourenço, para brincar com eles, mesmo sem
sermos abikus4. (GONÇALVES, 2006, p. 171)

Por conseguinte, analisando todos esses relatos, podemos postular que a mãe da
personagem e a própria personagem são obrigadas a atender em silêncio os desejos
carnais dos homens.
Esses homens, sobretudo brancos, acreditavam que a exploração sexual de
mulheres escravizadas era ―um direito e um privilégio dos que estavam no poder‖
(HOOKS, 1981, p. 21). Por assim considerarem, as mulheres negras eram obrigadas a
conviver em silêncio com o medo e o sofrimento.
No entanto, como forma de amenizar esses sentimentos, algumas escravizadas
recorriam à ajuda das mulheres brancas, mas algumas delas só faziam aumentar o
sofrimento. Essas mulheres, ―ensinadas pelos ensinamentos religiosos que as mulheres
eram inerentemente tentações sexuais, [...] frequentemente acreditavam que as mulheres
negras escravizadas eram as culpadas e os seus maridos as vítimas inocentes‖ (HOOKS,
1981, p. 28).
Dado o ensinamento que inocentava os homens, as mulheres brancas projetavam
a sua fúria nas escravizadas que se deitavam com os seus maridos.
De acordo com Hooks (1981), as mulheres brancas valiam-se de espancamentos
severos para castigar essas escravizadas: ―a dona podia usar a desfiguração para punir a
mulher negra escrava por entregar-se à luxúria sexual. A dona podia tirar-lhe as suas
mamas, cegar um olho, ou cortar outra parte do corpo‖ (HOOKS, 1981, p. 111).
Em Um defeito de cor (2006), por exemplo, a escrava Verenciana teve os olhos
arrancados pela esposa do ―sinhô‖ José Carlos, depois que ele a engravidou.

4
Criança nascida para morrer (GONÇALVES, 2006, p. 19).

127
Ninguém tinha coragem de se aproximar, pois, sem tirar os olhos da Verenciana, a sinhá
apontava a faca para qualquer um que se mexesse, dizendo que o assunto era entre as
duas, que não era para intrometermos, pois ali quem mandava era ela. Começou a
passar a faca na barriga de Verenciana, dizendo que era muito triste para uma mulher
não ver o filho entre os braços, e que a Verenciana ia sentir isso na pele. Quando
percebeu que o filho estava ameaçado, a Verenciana se transformou e, apavorada,
começou a pedir clemência, pedir que a sinhá não matasse o filho ainda dentro da
barriga dela, que o inocente não tinha culpa, que, se a sinhá deixasse, ela sumiria dali
naquele instante mesmo e nunca mais voltaria para perturbar a vida de ninguém, e
muito menos para se deitar com o sinhô José Carlos. A sinhá disse que sabia que a
criança não tinha culpa e que apenas comentara que a mãe nunca veria o filho, e era isso
que ia acontecer. Mandou que os homens segurassem a Verenciana com toda a força,
arrancou o lenço da cabeça dela, agarrou firme nos cabelos e enfiou a faca perto de um
dos olhos. Enquanto o sangue espirrava longe, a sinhá dizia que os olhos daquela cor,
esverdeados, não combinavam com preto, e fazia a faca rasgar a carne até contornar por
completo o olho, quando então enfiou os dedos por dentro do corte, agarrou a bola que
formava o olho e puxou, deixando um buraco no lugar.
[...] Examinou o olho arrancado, limpou o sangue no vestido e disse que era bonito, mas
que só funcionava se tivesse um par. Fez a mesma coisa com o outro olho, guardando os
dois no bolso, quando então disse aos homens que podiam levá-la e que não a deixasse
morrer de jeito nenhum, porque ela tinha que saber o que significava sentir um filho
crescendo dentro da barriga e depois não poder vê-lo, e também porque queria saber se
o marido ainda ia querer se deitar com uma preta sem os olhos. Terminou ordenando
que nenhuma palavra fosse dita ao sinhô José Carlos sobre aquilo, que ela mesma se
encarregaria de contar. Então, como se nada tivesse acontecido, como se tivesse
acabado de dar a mais simples das ordens, entrou em casa e se trancou no quarto
(GONÇALVES, 2006, p. 106-107).

Posteriormente, a esposa, Ana Felipa, coloca os olhos de Verenciana em pote de


geleia, que é servido ao ―sinhô‖ José Carlos durante o café da manhã: ―[...] ela
perguntou se o marido queria geléia do reino para acompanhar os pães. Quando ele
respondeu que sim, ela entregou o pote ainda fechado, que ele abriu, remexeu com a
colher e tirou de lá, junto com a geléia vermelha, um dos olhos da Verenciana‖
(GONÇALVES, 2006, p. 110). Ao encontrar um dos olhos no pote ―o sinhô deu um
grito e um salto da cadeira, a sinhá, como se nada de mais estivesse acontecendo, disse
que se ele não gostava daquele sabor podia mandar trocar, mas que era para olhar bem,
pois aquela geléia era especial, das preferidas dele‖ (GONÇALVES, 2006, p. 110).
A atitude adotada pela ―sinhá‖ Ana Felipa e por tantas outras mulheres brancas é
decorrente de discursos proferidos pela igreja e pelos homens brancos imbuídos de
discursos racistas e sexistas. Não obstante, importante salientar, que ―o sexismo
assomava-se maior que o racismo como uma força opressiva nas vidas das mulheres
negras. O sexismo institucionalizado – ou seja, o patriarcado – formou a base da
estrutura social americana bem como o imperialismo racial‖ (HOOKS, 1981, p. 14).
Dadas essa e as demais considerações, podemos dizer que foi no período escravocrata
que estereótipos foram engendrados sobre as mulheres negras. Desde esse período, os
homens, apoderando-se de discursos sobretudo sexistas, diziam que essas mulheres
eram tentações sexuais, imorais, perdidas, fogosas, entre muitos outros atributos
degradantes. Todos esses atributos eram usados para justificar a exploração sexual.
Exploração essa que é denunciada no romance de Gonçalves, Um defeito de cor
(2006). Ao rasgar a mordaça do silêncio, a protagonista-narradora do citado livro será
porta-voz das mulheres negras escravizadas que sentiram as dores da violência física,
128
psicológica e sexual. Essas mulheres, como Rossini (2014) advoga, tiveram os corpos
violentados e também degradados ―pela escravidão, pelo patriarcalismo, pela violência,
pelo preconceito, pelo subjugo, pela miséria, pela cor da pele‖ (ROSSINI, 2014, p. 54)
e, obviamente, pelo fato de ser mulher.
Destarte, podemos concluir que a estratégia da escritora Gonçalves em dar voz a
Kehinde ―possibilita o acesso a diferentes perspectivas sociais [...]‖ (ROSSINI, 2014, p.
23). A mesma estratégia contribui ainda ―para o entendimento do que é ser negro e ser
mulher, em um contexto social escravista e patriarcal impregnado por
discursos hegemônicos acerca da diversidade racial e de gênero, como é o do Brasil‖
(ROSSINI, 2014, p. 23).
É nesse contexto que surge uma lei, entre as muitas leis segregacionistas, que
impedia negros e mulatos de ocuparem cargos civis, militares e eclesiásticos destinados
particularmente aos brancos: ―Quando o talento, a competência ou a vontade eram
muito grandes, o negro ou mulato podia pedir a ‗dispensa do defeito de cor‘ que foi
concedida, por exemplo, ao padre mulato José Maurício, um dos mais importantes
musicistas e compositores coloniais [...]‖ (GONÇALVES. Entrevista à Editora Record).
O padre somente pode tornar-se Mestre da Capela Real e responsável pela música sacra
depois de dispensado do ―defeito‖ de que padecia.
Essa mesma lei deu nome à segunda publicação de Gonçalves.

Considerações finais
Grosfoguel (2008) advoga que a expansão e a dominação colonial foram
conduzidas por homens europeus heterossexuais que, ―[a]onde quer que chegassem,
traziam consigo os seus preconceitos culturais e formavam estruturas heterárquicas [...]‖
(GROSFOGUEL, 2008, p. 134).
Tais estruturas foram sustentadas, sobretudo, pela ideia de raça, isto é, uma
construção mental que, como vimos ao longo deste trabalho, serviu para legitimar ideias
e práticas de relações de superioridade e inferioridade entre os dominantes e os
dominados.
Entre os povos dominados, estavam as mulheres negras, que por sua vez,
tiveram as identidades moldadas durante o período de expansão e dominação colonial.
Por falarmos em identidades é importante pontuar que elas, segundo Woodward
(2000), são marcadas pela diferença. Essa marcação da diferença é tanto simbólica
quanto social: ―[a] marcação simbólica é o meio pelo qual damos sentidos a práticas e
as relações sociais, definindo, por exemplo, quem é excluído e quem é incluído. É por
meio da diferenciação social que essas classificações são ‗vividas‘ nas relações sociais‖
(WOODWARD, 2000, p. 14).
Partindo desse pressuposto, Woodward (2000) nos faz pensar que as identidades
dependem das diferenças. Ainda segundo a autora, essas podem ser construídas
negativamente, por meio da exclusão e da marginalização daqueles que são
considerados como outros ou forasteiros.
Tratando ainda sobre identidades, é pertinente frisar que elas surgem não apenas
da ―plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta
de inteireza que é ‗preenchida‘ a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais
nós imaginamos ser vistos por outros‖ (HALL, 2006, p. 39). Ou seja, as identidades são
construções sociais e discursivas.

129
Isso posto, podemos afirmar que por meio de construções discursivas, os homens
brancos procuravam denegrir a imagem das mulheres e assim justificar as violências.
As agressões são narradas pela protagonista-narradora do romance Um defeito
de cor (2006). A personagem Kehinde narra sobre as violências que sofreu e sobre as
agressões que outras escravizadas sofriam. A escrava Verenciana, por exemplo, teve os
olhos arrancados pela esposa do ―sinhô‖ José Carlos, depois que ele a engravidou.
Analisando esses relatos tecidos por Kehinde, podemos afirmar que as mulheres negras
escravizadas eram consideradas um objeto pronto a atender os desejos carnais dos
senhores brancos.
Além disso, eram consideradas pelas mulheres brancas como tentações sexuais,
sendo, portanto, responsáveis por levar maridos alheios para a cama. Por assim
considerarem, as donas brancas valiam-se de espancamentos para castigar as mulheres
negras que se deitavam com os seus homens.
As agressões cometidas tanto por homens quanto por mulheres brancas eram
silenciadas, uma vez que as mulheres negras escravizadas não tinham voz na sociedade
colonial/patriarcalista. Desse modo, elas eram obrigadas a conviver com o medo e com
o sofrimento.
No entanto, Kehinde rasga a mordaça do silêncio e denuncia todos esses atos de
violência que vitimaram centenas e centenas de mulheres. As agressões são denunciadas
ao longo das 952 páginas do romance escrito por Gonçalves, Um defeito de cor (2006).
Os atos denunciados tiveram início no período de colonização do Novo Mundo, quando
as mulheres foram colocadas no último grau da hierarquia social. Esses mesmos atos,
como é de conhecimento geral, continuam presentes na vida das mulheres negras, ou
seja, as práticas coloniais continuam arraigadas em uma sociedade
patriarcalista/racista/sexista. Diante dessa conclusão, fica o questionamento: Até quando
essas práticas continuarão assombrando o cotidiano dessas mulheres?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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de São Paulo. Campinas, SP: Editora da Unicamp/Centro de Pesquisa em História
Social da Cultura, 1999. 280p.
GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. 1ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2006.
_______, Ana Maria. Entrevista concedida à Editora Record. Disponível em:
http://www.record.com.br/autor_entrevista.asp?id_autor=12&id_entrevista=28. Acesso
em: 22 de abr. de 2017.
GROSFOGUEL, Ramon. Para descolonizar os estudos de economia política e os
estudos pós-coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade
global. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 80, p. 115-147, mar. 2008.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva;
Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: Dp&A, 2006.
HOOKS, Bell. Não sou eu uma mulher: mulheres negras e feminismo. Tradução livre.
Plataforma Gueto. 1ª ed. 1981.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In:
LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais –

130
perspectivas latino-americanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de
Buenos Aires, Argentina, setembro 2005, p. 107-130.
ROSSINI, Tayza Cristina Nogueira. A representação caleidoscópica da corporalidade
da mulher negra em Um defeito de cor. 2014. 90f. Dissertação (Mestrado em Letras) –
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Maringá, 2014.
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In: SILVA, Tomaz T. (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos
Culturais. 4ª ed. Petrópolis: Vozes, 2000.

131
A homossexualidade no conto O Segredo de Brokeback
Mountain
(La homosexualidad en el cuento El Secreto de Brokeback Mountain)

Antony Eduardo Galvão1, Marly Catarina Soares2


1-2
Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG)

antonyeduardo2807@gmail.com; marlycs@yahoo.com.br

Resumen: en este trabajo se pretende analizar la homosexualidad masculina en la literatura,


en especial, en el cuento El Secreto de Brokeback Mountain, de Annie Proulx. Su primera
publicación fue en una revista norteamericana titulada The New Yorker, en el año 1997 y, en
1999, recibió una versión más larga para un libro de cuentos de Annie Proulx. En Brasil, la
versión fue publicada en 2006 y, a continuación, dio origen a la película El Secreto de
Brokeback Mountain, de Ang Lee. El objetivo de esta investigación es problematizar los
discursos estandarizantes acerca de la sexualidad y de género. La metodología a ser utilizada
en esta investigación es el levantamiento bibliográfico y análisis de textos literarios, dando
énfasis en la producción de la escritora Annie Proulx, que aborda sobre la homosexualidad en
la literatura, junto con estudios referentes a la construcción de género, como, por ejemplo,
Judith Butler, Guacira Louro, así como otros autores que tratan sobre la literatura queer. Se
espera entender como los personajes homosexuales tienen su representatividad en la literatura.

Palabras-clave: Literatura y género; Annie Proulx; homoafectividad em la literatura.

Resumo: neste trabalho pretende-se analisar a homossexualidade masculina na literatura, em


especial, no conto O Segredo de Brokeback Mountain, de Annie Proulx. A sua primeira
publicação foi numa revista norte-americana intitulada The New Yorker, no ano de 1997 e, em
1999, recebeu uma versão mais longa para um livro de contos de Annie Proulx. No Brasil, a
versão foi publicada em 2006 e, em seguida, deu origem ao filme O Segredo de Brokeback
Mountain, de Ang Lee. O objetivo desta pesquisa é problematizar os discursos padronizantes
acerca da sexualidade e de gênero. A metodologia a ser utilizada nesta pesquisa é o
levantamento bibliográfico e análises de textos literários, dando ênfase na produção da
escritora Annie Proulx, que aborda sobre a homossexualidade na literatura, juntamente com
estudos referentes à construção de gênero, como, por exemplo, Judith Butler, Guacira Louro,
bem como outros autores que tratam sobre a literatura queer. Espera-se entender como os
personagens homossexuais têm a sua representatividade na literatura.
Palavras-chave: Literatura e gênero; Annie Proulx; homoafetividade na literatura.

Introdução
Em períodos de identidades virtuais e realidades variadas, a cinematografia
retrata vivências que ainda acabam com o fôlego de muitas pessoas. A temática
homossexualidade e/ou homoerotismo, longe das campanhas de propagandas de
langerie, por exemplo, ainda é abordada, muitas vezes, à margem do publicamente
visível. A obra O Segredo de Brokeback, de Annie Proulx (2005), e direção de Ang Lee,
que venceu o Oscar no ano de 2006 como melhor filme, traz o tema da
homossexualidade e do homoerotismo entre dois homens. O conto, no que diz respeito à
sua extensão, se caracteriza como um texto curto e objetivo, envolvendo poucos
personagens.

132
O Segredo de Brokeback apresenta uma realidade próxima dos nossos dias,
mesmo que a história se passe por volta dos anos de 1960. O conto relata a história de
dois rapazes que se relacionam de forma homoerótica. É uma obra inovadora no sentido
de abordar a homossexualidade de maneira acessível e aberta a todos, colocando em
evidência o amor e o desejo, independentemente dos gêneros, portanto, é se fazer notar
a homossexualidade sem ter a necessidade de pedir desculpas.
Entretanto, na década de 1960, seria um tanto difícil imaginar outro final para
história a não ser a separação de Ennis Del Mar e Jack Twist. Não trata apenas de um
aspecto estético, mas sim, do amor entre duas pessoas do mesmo sexo, da ética que é
atribuída a esse amor que faz com que a visão seja reconduzida acerca do humano e do
sentimento.
Brokeback Mountain retrata, no século XXI, a homossexualidade de 1950 e
1960, carregado de possibilidades para refletir sobre o tema. Falar sobre esse assunto
nos dias atuais é empenhar-se de maneira inovadora sobre uma temática tão falada,
porém mal compreendida.

O espaço no enredo
No conto, com base no título, pode-se perceber que o espaço dará vida a um
caso amoroso entre Ennis e Jack: a montanha Brockeback.
No enredo de Annie Proulx, o narrador apresenta vários locais do oeste dos
Estados Unidos, como a nacionalidade dos cowboys e por onde passam, mas sempre
seguindo uma ordem cronológica.
No ano de 1963, os cowboys se conhecem, pois ambos precisam tomar conta de
um rebanho de ovelhas, localizado na montanha Brokeback. Cada um dos protagonistas
realizava funções diferentes no pasto, pois um cuida das ovelhas, e o outro serve comida
em um acampamento.
Em uma determinada noite, um tanto embriagados, solitários e condicionados a
uma grande atração, até então, desconhecida pelos cowboys, acabam dormindo juntos e
se relacionando sexualmente. A primeira relação de muitas que ainda estavam por vir
naquele verão isolado na montanha. Entretanto, nenhum dos protagonistas abordava o
assunto, apenas deixavam acontecer. No início, o contato sexual ocorria somente à
noite, na barraca, e com o passar do tempo, as relações sexuais começaram durante o dia
com o sol quente e à noite à luz do fogo.

[...] só havia os dois na montanha pairando no ar eufórico e amargo, olhando de cima o


dorso da águia e os faróis rastejantes dos veículos na planície, suspensos acima dos
assuntos corriqueiros e longe dos mansos cachorros de fazenda que latiam quando
escurecia. Eles se achavam invisíveis [...] (PROULX, 2006, p. 20)

Quando Ennis e Jack deixam a montanha e, consequentemente, se separam, se


reencontram após cinco anos, mas para tentar se manter unidos, mantêm relações
sexuais, mesmo sendo com menor frequência, e em locais isolados, por conta dos
aspectos socioculturais, os quais faziam parte e os impossibilitavam de ter uma relação
completa. O aspecto desse espaço indica o que no título já é apresentado: um segredo.
Embora a montanha seja um espaço aberto, os protagonistas encontram, ali, um
espaço para viver o desejo homoerótico, e a montanha passa a ser a representação do
amor, a origem de tudo e, além disso, é o pedido de Jack que, ao morrer, pede para que
suas cinzas sejam espalhadas pela montanha.
133
Identidade: aspectos que (des)constroem os indivíduos
Para falar de identidade, ou ainda, construção de identidade, é importante
lembrar dos estudos de Stuart Hall. Em seu texto ―A identidade cultural na pós-
modernidade‖, o autor afirma que as identidades são criadas socialmente e não dadas
naturalmente. Sendo assim, identidades de sexualidade e de gênero são suscetíveis a
mudanças a partir das representações culturais.
Louro (2004), também afirma que, com o passar dos anos, os sujeitos vêm
trazendo indícios, classificações, ordens, hierarquias e definições por conta da sua
aparência física.
Para Butler (2003), algumas formas de identidade de gênero seriam
improbabilidades lógicas, de modo que não se enquadrariam na inteligência cultural. A
autora menciona que a identidade antecede a nossa identidade de gênero, sendo assim,
deve-se pensar que o gênero é que torna a possibilidade de ser pessoa, de ter uma
identidade.
Atualmente fundamentada nos mais variados pontos de vista, a sexualidade vem
sendo explicada, entendida, educada e normatizada.
Segundo Bauman (2005), a identidade é formada por meio de “comunidades”,
ou seja, pela sociedade em geral na qual o sujeito se insere. Os costumes, as culturas e
os comportamentos perante o outro, de acordo com o autor, não caracterizam a
identidade como algo sólido, mas líquido.
Conforme Bauman (2005), ninguém nasce com a identidade criada, pois ela se
forma a partir de conflitos sociais e a influência do outro e, com o tempo, o sujeito já se
encontra introduzido na “nova identidade”.
Com base isso, o autor menciona que ―as identidades flutuam no ar, algumas de
nossa própria escolha, mas outras infladas e lançadas pelas pessoas à nossa volta, e é
preciso estar em alerta constante para defender as primeiras em relação às últimas‖
(BAUMAN, 2005, p. 19), isto é, os indivíduos estão expostos e formam várias
identidades para si, pois em algum momento, por exemplo, são amigos, são colegas de
trabalho e essas várias ―pessoas‖ existentes dentro de cada indivíduo são tratadas das
mais variadas formas.
Entretanto, possuindo diversas identidades é necessário se conter diante da
sociedade, de modo que a identidade classifica os indivíduos. Dessa forma, Swain
(2001) menciona:

A sociedade que cria os sentidos circulantes enquanto verdades, normas, valores, regras
de comportamento, que instaura paradigmas e modelos que decide o que é a realidade,
que define a ordem e a desordem, o natural e a aberração, o normal e o patológico, a
significação e o nonsense. (SWAIN, 2001, p. 88, grifo da autora)

Dessa forma, o indivíduo queer, hoje em dia, não é avistado com bons olhos, de
modo que ainda no século XXI combate pela igualdade de direitos, logo, esse indivíduo
está inserido na sociedade ―[...] para exprimir os diferentes aspectos de uma pessoa, um
espaço também, para a criação e a manutenção de uma polimorfia de um discurso que
desafia e interroga a heterossexualidade‖ (SWAIN, 2001, p. 95), ou seja, para expor a
sua diferença, a sua forma de pensar, bem como de se expressar.

134
Aspectos sobre a narrativa homoerótica em O segredo de brokeback
mountain

O trecho a seguir diz respeito à primeira relação sexual dos cowboys:

Jesus Cristo, pare de teimosia e venha até aqui. O saco de dormir é bem grande, disse
Jack numa voz irritante e sonolenta. Era bem grande, bem quente, e em pouco tempo
eles aprofundaram a intimidade consideravelmente. Ennis já percorrera todas as
estradas consertando cercas ou gastando dinheiro, e não queria mais nada quando Jack
pegou sua mão esquerda e levou-a até seu pênis ereto. Ennis puxou a mão como se
tivesse tocado em fogo, ajoelhou-se, abriu o cinto, abaixou as calças, deixou Jack de
quatro e, com a ajuda de um pouco de cuspe, penetrou-o, nada que ele já tinha feito,
mas que não precisava de nenhum manual de instruções. Eles continuaram em silêncio
exceto por algumas inspirações profundas e pelo engasgo de Jack ‗falta pouco!‘,
acabaram e dormiram (PROULX, 2006, p. 8).

Nessa citação pode-se notar certos termos utilizados pelo narrador, causando um
impacto na leitura, ou seja, a narração do relacionamento dos protagonistas é bastante
detalhada. A linguagem detalhada sobre homoerotização pode ser notada, também, no
seguinte trecho:

O quarto fedia a sêmen e fumaça e suor e uísque, a carpete antigo, e feno velho, couro
de sela, merda e sabão barato. Ennis jazia com as pernas afastadas, cansado e molhado,
respirando fundo, o pênis ainda um pouco inchado [...] e Jack disse: Cristo, deve ser
todo o tempo em que você fica montado em cavalos que faz isso ser tão bom
(PROULX, 2006, p. 13)

O intuito desse tema é justamente causar impacto no leitor, por meio de cenas
mais detalhadas, como já mencionado anteriormente, visto que parte da ideia de que a
exposição dos acontecimentos é realizada de maneira a mascarar, permitindo diversas
interpretações.
Outra característica relevante a ser discutida se refere ao desejo sexual, bem
como o medo.

Duvido que tenha alguma coisa pra gente fazer agora, disse Ennis. Estou falando, Jack,
construí uma vida nesses anos. Adoro minhas filhas. Alma? Não é culpa dela. Você tem
seu filho e sua mulher, sua casa no Texas. Você e eu não podemos ficar juntos se aquilo
que aconteceu lá, tomar conta da gente assim. Se fizermos no lugar errado, estamos
mortos. Não dá pra controlar. Isso me assusta pra caralho (PROULX, 2006, p. 14)

É possível observar uma certa preocupação de Ennis em querer manter o seu


relacionamento com Jack em segredo, por causa do preconceito, das críticas sociais e,
também, porque ambos tinham suas respectivas esposas e filhos.

Tenho que dizer, cara, talvez alguém nos viu naquele verão [...] e Joe Aguirre estava no
escritório e disse pra mim, ‗vocês dois acharam um jeito de fazer o tempo passar lá em
cima, não é?‘ eu disfarcei mas quando saí vi que ele tinha um par de binóculos enormes
pendurados na parede (PROULX, 2006, p. 14)

135
Dessa maneira, Ennis e Jack já estavam passando por uma situação um tanto
embaraçosa, nesse momento, começam a pensar uma forma de se encontrar sem serem
vistos.

Os indivíduos que habitam a montanha


A montanha para Ennis e Jack era uma espécie de exílio e um ponto de fuga,
pois poderiam viver os seus desejos livremente. Entretanto, justamente por conta desse
Exílio, a esposa de Ennis, Alma, se questiona o porquê de o cowboy ir durante 20
longos anos à montanha com Jack (amante de Ennis) e nunca trazer nem um peixe ao
menos. Nesse momento, Alma começa a desconfiar de um possível relacionamento
entre os rapazes e considera como uma ameaça à humanidade, de modo que pessoas do
mesmo sexo não reproduzem.
Esse ponto de vista de Alma se enquadra na teoria de Branco (2015), em que a
autora menciona que a relação sexual entre pessoas do mesmo sexo não se enquadra no
aspecto matriarcal da heterossexualidade e, sendo assim, com base nisso, o sexo serve
apenas para reproduzir e não para prazer.
Em outro momento do enredo em que ocorre discursos como esse, é no instante
em que Alma resolve deixar de tomar contraceptivos e menciona a Ennis que o tipo de
sexo que o marido gostava não haveria risco de gravidez. Dessa forma, subentende-se
que o cowboy tinha mais vontade de praticar sexo anal, além de ser uma prática que
foge dos conceitos da igreja.
Após isso, com base nesses conceitos impostos pela igreja, Jack planeja morar
junto com Ennis, e o mesmo tem uma reação apreensiva “Calma, calma, calma. Não vai
ser assim. A gente não pode. Estou atolado com o que tenho preso no meu próprio laço.
Não dá para sair. Jack, não quero ser como esses caras que às vezes a gente vê por aí. E
não quero morrer.‖ (PROUXL, 2006, p. 49).
Pode-se perceber o quanto Ennis se prende aos discursos sociais, além de seu
futuro ser planejado com marcas bem delineadas como casar e ter filhos. Dessa forma,
Ennis acredita que está indo contra a uma lei da natureza, e essa desobediência faz com
que acredite que não está sendo humano o suficiente.A fala de Ennis também evidencia
o quanto os discursos são formados através do olhar do outro (igreja, família e Estado).

A montanha Brokeback e os segredos dos personagens: fatores identitários e


sociais
De acordo com Freud (1969), o ser humano gira ao redor dos outros, de suas
necessidades, de modo que necessita do olhar do outro, entretanto, a sexualidade não se
limita a isso, pois perpassa por sentimentos, paixões, sensações, medo e,
consequentemente, culpa.
Freud (1969) menciona que seja qual for a orientação sexual do ser humano, o
amor chega, por vezes, repentinamente e une os indivíduos, seja pelo desejo, pela
sexualidade, enfim, por algum meio.
O Segredo de Brokeback Mountain retrata a vida de Jack Twist e Ennis Del Mar,
dois cowboys, e tambémos conflitos ocasionados após manter relações homossexuais na
montanha.

136
Eles nunca falavam sobre o sexo, deixavam acontecer, a princípio só na barraca à noite,
depois em plena luz do dia com o sol quente batendo, e à noite no clarão do fogo,
rápido, rude, risadas e roncos, barulho não faltava, mas sem dizer uma palavra, a não ser
uma vez que Ennis disse: ―Não sou bicha‖, e Jack interveio com ―nem eu‖. Primeira e
última vez. Não é da conta de ninguém a não ser da gente (PROULX, 2006, p. 20).

Posterior à relação sexual é possível observar na fala de Ennis, que assegura não
ser ―bicha‖ e, em seguida, a interferência de Jack mencionando que também não é
―bicha‖, visto que ambos não dariam importância para as consequências de ser ou não
ser ―bicha‖. Nesse momento, verifica-se uma crise identitária, pois antes do contato
sexual, ambos se consideravam homens heterossexuais.
Quanto a isso, Bauman afirma que ―[...] os atuais problemas de identidade se
originam do abandono daquele princípio ou do pouco empenho na sua aplicação e da
ineficácia de seu fomento onde isso é tentado‖ (BAUMAN, 2005, p. 30, grifo do autor),
ou seja, o indivíduo se sente descentrado e, dessa maneira, precisa de ajuda para se
sentir integranteda ―nova comunidade‖.
A atitude de Ennis e Jack em negar a homossexualidade se dá por conta da
imposição social, isto é, a heterossexualidade. Por exemplo, no momento em Jack
discorre sobre o acontecido, mencionando que somente interessava a cada um deles,
evidencia o medo de que se torne algo público. Por isso, a liberdade desejada pelos
personagens foi considerada repulsiva perante o olhar social e, dessa forma, dificultando
assumir essa identidade.
Em relação à crise identitária, Hall (2006) assegura ―dentro de nós há
identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas
identificações estão sendo continuamente deslocadas‖ (HALL, 2006, p. 13), ou seja, não
é possível ser a mesma pessoa o tempo todo. Na situação em que Ennis se insere, não
consegue notar a mudança de identidade, pois em determinados momentos é pastor de
ovelhas e, em outras vezes, companheiro de Jack, mas também futuro esposo de Alma.
Após algum tempo, Ennis e Jack se separam por um período de cinco anos,
ambos os cowboys formam famílias. Jack tem um filho e Ennis duas filhas. Com isso,
também, se desfaz o mito de Ennis de se desprender do contato sexual feminino,
portanto, nesse sentido, Packard (2005) menciona que se caracteriza como um suicídio
para a identidade de Ennis ser pai de meninas, isto é, ser pai do sexo para procriação.
Com o passar dos anos, Jack escreve uma carta a Ennis para saber como estão as
coisas e também se poderiam se encontrar, então, o reencontro aconteceria. No
momento em que Jack chega até a casa de Ennis, eles se cumprimentam com abraços e
beijos, entretanto, Alma, esposa de Ennis, observa pela janela, após isso, Jack
cumprimenta Alma como se nada daquilo tivesse ocorrido lá fora, e os cowboys se
dirigem a um motel.

– Sabe, eu estava aqui sentado o tempo todo tentando esconder se eu era [...] sei que não
sou. Quero dizer, nós dois aqui temos mulher e filhos, certo? Eu gosto de transar com
mulher, sim, mas caramba, não tem nada igual a isso. Nunca pensei em transar com
outro cara [...]. Você transa com outros caras, Jack?
– Não, porra – disse Jack [...]. – Você sabe disso. A velha Brokeback nos pegou
direitinho e com certeza isso não acabou. Temos que ver o que vamos fazer agora.
(PROULX, 2006, p. 33-34).

Após terem tido relações sexuais, Ennis passa a compreender o que significa
“queer”, percebe que sua nova identidade está se formando. Nesse mesmo diálogo,
137
observa-se que Jack deseja ter uma vida normal ao lado de Ennis, porém Ennis
argumenta que não há possibilidade, portanto, o cowboy oculta a sua identidade
homossexual e continua mostrando apenas a heterossexual. Com base nisso, Foster
(2003) menciona que a homofobia condena o homem que não segue as normas do
patriarcado e, consequentemente, é punido ou excluído da sociedade de forma agressiva.
Foster (2003) desenvolve uma teoria estratégica para legitimar os direitos do
homoerotismo, envolvendo a felicidade. Nesse procedimento, de acordo com o autor, é
relevante denunciar a negação e a imposição de regras referentes a relações sexuais
entre os sexos. Segundo Foster (2003), a homofobia também é vista como “veneno das
águas” da sociedade, abafando toda legitimidade de pessoas homossexuais.
Adiante, Ennis toma conhecimento da morte de Jack e visita os pais do
companheiro. A mãe de Jack pede para que Ennis se dirija até o quarto do mesmo.

No armário, havia duas calças jeans vinculadas a ferro penduradas com cuidado em
cabides de arame, no chão, um par de botas de caubói surradas de que ele julgava se
lembrar. No lado norte do armário, um discreto desvio na parede criava um pequeno
esconderijo, e ali, [durante muito] tempo pendurada num prego, estava uma camisa. [...]
A camisa parecia pesada até ele ver que havia outra dentro dela, as mangas
cuidadosamente vestidas nas mangas das de Jack. Era a sua camisa xadrez, perdida,
achava ele, muito tempo atrás em alguma lavanderia, o bolso rasgado, faltando botões,
roubada por Jack e escondida ali dentro da camisa dele, o par igual a duas peles, uma
dentro da outra, duas em uma. Ele colou o rosto no tecido e inspirou devagar pela boca
e pelo nariz, esperando sentir algum leve vestígio do cheiro de Jack, ranço salgado e
doce de cigarro e sálvia da montanha, mas não havia propriamente cheiro, só a
lembrança de um, a força imaginada da montanha Brokeback da qual nada restava
senão o que ele tinha nas mãos (PROULX, 2006, p. 63-64, grifo da autora).

Esse trecho pode ser relacionado com a imagem do armário, pois é onde se
localiza a verdadeira identidade de Ennis nunca exposta. Além disso, para Freud (1969),
quando existe atração não precisa necessariamente ser um indivíduo, mas sim, um
objeto, nesse caso, a camisa de Jack.
Em relação ao armário, Sedgwick (2007) afirma que a reflexão que se pode tirar
disso é a justificativa para a existência da atitude do indivíduo homossexual não querer
assumir sua identidade diante da sociedade. Sendo assim, é notável que os cowboys não
assumam sua homossexualidade e acabem frustrados por tal atitude.
Freud (1969) salienta que o desejo por uma pessoa do mesmo sexo se mantém
vivo nos sintomas e nos sonhos, mesmo que também haja desejo pelo sexo oposto. Em
resumo, o que Freud quer expor é que, em relação aos desejos, um e outro fazem parte
do desejo de todos.
Tanto Ennis quanto Jack foram vítimas do temor, especialmente, Ennis, pois
continuou a viver como um homem heterossexual. Segundo Sedgwick (2007), a
orientação sexual codifica um sistema doloroso, pois oprime as identidades e as atitudes
homossexuais. Ennis, por exemplo, optou por ficar trancado no armário e omitir a sua
identidade, por conta do medo e da violência social da época lhe instituía.
―Numa escala muito mais ampla e com uma inflexão menos honorífica, a
epistemologia do armário também tem sido produtora incansável da cultura e história do
ocidente como um todo‖ (SEDGWICK, 2007, p. 23), fato esse que não ocorreu somente
com Ennis, mas, também, com Jack. A diferença entre cada um dos personagens é que
Ennis era mais introvertido na sua maneira de tratar a identidade queer, já Jack era mais
extrovertido.
138
Quando Ennis decide omitir a sua identidade, se enquadra perfeitamente no que
a autora Sedgwick (2007) afirma com relação à teoria do armário, pois o personagem se
privou da felicidade, porém ao mesmo tempo permaneceu vivo, teve sua real identidade
dentro do armário.
Em relação à maneira como as camisas encontravam-se guardadas no armário,
apresenta o amor dos cowboys. Nesse sentido, Packard (2005) retrata o sentimento de
lealdade e afeição pelo companheiro, nesse caso, as camisas dentro uma da outra, e
Ennis, sentindo o cheiro e pensando em Jack.

Resultados e Discussão
Atualmente, os homens falam sobre os estereótipos, bem como as expectativas
de gênero que geram as decepções ao logo da vida. Entre os seres humanos há muita
influência cultural, e também os comportamentos sexuais que fazem parte do conjunto
da cultura de gênero, mesmo que, por várias vezes, esse(s) comportamento(s) seja(m)
visto(s) como algo “natural”.
Hoje em dia, os próprios homens se questionam o que é realmente “ser homem”,
ser “masculino”. É de nosso conhecimento que as pesquisas realizadas sobre as relações
de gênero são um desafio.
Foi possível notar o quanto a sociedade dos anos 60 e 70 encaravam a
homossexualidade como algo anormal, inferior e também desviante dos padrões
tradicionais. A homossexualidade era caracterizada como um desvio de regra.
É perceptível que ainda haja inviabilidade do amor entre homossexuais, nesse
caso, o amor entre Ennis Del Mar e Jack Twist, protagonistas do conto, o segredo da
homossexualidade ainda é mantido por várias pessoas.
No conto O Segredo de Brokeback Mountain, a autora faz referência sobre as
atitudes de negação e também resistência ao relacionamento entre os dois homens,
justamente por causa dos valores morais, e pela impossibilidade de diálogos que fez os
vaqueiros perceberem que estavam apaixonados e/ou assumirem a sua orientação
sexual, mas sem tocarem no assunto e, dessa forma, a montanha se torna um lugar de
permissividade à parte, onde as limitações da sociedade não são colocadas.
O drama no conto compreende a dualidade de conflitos sociais existentes,
principalmente, nas relações homoafetivas e na luta contra si mesmo em sempre
esconder os sentimentos que eram condenados naquela época. Pode-se perceber que, na
obra, o romance entre os vaqueiros é de relutância.
No decorrer do enredo, Proulx (2006) relata as relações homoafetivas entre os
personagens Ennis e Jack, eles não tinham nenhum impedimento para saciar seus
desejos e se desligavam da relação imposta pela sociedade de macho-fêmea, além de
não precisar de uma identidade para fazer fluir tal relacionamento.
Sabe-se que a homossexualidade exposta nas obras ou nas mídias, ainda é
precária no Brasil, por conta do conservadorismo. Segundo Monteiro (2011)

Entendo que a importância conferida à trama liga-se ao fato de que ela é aquilo que, em
seu dinamismo, representa a ‗condição humana‘. A sua comunicação, o seu ‗tomar
vida‘, requer, forçosamente, a projeção dessa trama num dado espaço- tempo, um
‗palco‘ – praticável, concreto – em que qualquer trama ‗humana‘ está envolta nas
malhas de diferentes espaços relacionais: social, político, econômico, cultural enfim.
Para melhor estabelecer os termos da relação Geografia-Literatura, partindo desse
valioso subsídio, acho que toda a urdidura complexa da ação romanesca – a ‗trama‘ –

139
proposta pelo escritor, malgrado este dinamismo, pode vir a ser projetada nas malhasde
uma estrutura espacial, figurativamente estática – o ‗mapa‘ – percebida pelo geógrafo
(MONTEIRO, 2011, p. 24-25).

Dessa maneira, pode-se dizer que o enredo de Proulx só é possível porque há a


existência de um palco, de um lugar, ou seja, só é possível o romance entre Ennis e Jack
acontecer porque existe um espaço respeitado, no caso, a montanha Brokeback. Logo,
uma produção que envolve o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo tem a
necessidade de dialogar com o enunciado “pode existir desde que eu não veja”, assim, é
a montanha, um lugar criado afastado do discurso.
Percebe-se que, mesmo assim, o amor entre pessoas do mesmo sexo pode abrir
caminhos emocionais, entretanto, vai além de uma característica estética quando aborda
o amor entre dois cowboys, pois vai destruindo o preconceito, de modo que, no conto,
nota-se a ignorância e hipocrisia perante os homossexuais, porém as teorias
desenvolvidas têm inquietado as crenças antigas tradicionais.

Conclusões
A abordagem do conto se norteia pelo escárnio. Alguns críticos chegam a
considerar a obra como uma alegoria amorosa, porém a homossexualidade não pode ser
exposta. Na obra os silêncios também indicam uma redescoberta do passado dos
personagens. As relações entre Ennis e Jack têm o paraíso perdido, ou seja, a montanha,
a idade do ouro, além das distâncias físicas e sociais. Pode-se concluir, que a obra é uma
metáfora sobre as escolhas humanas.
Os espaços escolhidos permitem compreender que a relação homoerótica entre
os cowboys ocorre de maneira escondida, pois são nesses espaços que a identidade
homossexual dos protagonistas pode se manifestar sem a repressão social.
É relevante retomar os traços culturais e políticos dos investimentos vindos de
discursos sociais, no que diz respeito à definição do que são os “diferentes”. O estudo
cultural da vida sexual tem se tornado uma época de modificação global muito intensa,
e cada dia mais ligada à investigação política e econômica. A história da sexualidade
deve ser entendida como uma formação cultural e social.
O estudo referente a Ennis e Jack, cuidadores de ovelhas, os compara com
ovelhas, isto é, Jack pensa em ser a ovelha que se separa do rebanho, quer ser livre, mas,
no final, é “devorado pelo lobo”, ao contrário de Ennis, que passa a ser a ovelha que
permanece presa no rebanho, continuou solitário, rompeu seu casamento e continuou
sonhando com a montanha, além de jurar lealdade a Jack.
Outro tópico pertinente é sobre a crise de identidade pela qual os protagonistas
perpassam, de acordo com os conceitos teóricos abordados. Os cowboys assumiram
distintas identidades, pois às vezes eram amigos, às vezes amantes, ao passo que eram
pais de família.
Mesmo que atualmente ainda exista muita coisa a ser feita para se entender mais
sobre a variedade e diversidade da vida sexual humana, esses progressos possibilitam
esperanças de que ainda é possível expandir pesquisas mais relevantes e aplicáveis aos
problemas que os indivíduos da análise vivem na vida real.

140
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141
George Sand e as Transformações da Nova Mulher do
Século XVIII
(George Sand And The Transformations Of The New Woman Of The Century
XVIII)

Dolores Aparecida Garcia1, Simone Sanches Vicente Morais2,


Henrique de Oliveira Lee3, Lucy Ferreira Azevedo4
1-2-3
Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT)
4
Universidade de Cuiabá (UNIC)

doloresgarcia.1411@gmail.com; sanches.simone@gmail.com; holiveiralee@gmail.com;


lucyfazevedo@gmail.com

Abstract: Opportune coincidence involves the century XVIII: the world convulsed by social
and political movements that, in a consequent way, it also transforms the man, his/her modus
vivendi and an entire hermenêutica about culture, education and diversity.The effervescence
is, therefore, supporting of an interior awakening of the woman that, with a lot of suffering,
he/she passes wrapping up in a new profile for the survival of the offspring and of herself, as
to be independent that he/she desires for doing choices.. We had as objective observes in
George Sand narratives, as the author it built the feminine illustration in his/her writing,
Identity profile. To develop the research we made the bibliographical rising of some authors
that researched gender such an as: Geertz (2008), Scott (1995), Butler (2003), Foucault
(1997), Connell (1995) and reading of general studies George Sand (1945), André Maurois
(1956).
Keywords: Narrative; gender; feminism.

Resumo: Coincidência oportuna envolve o século XVIII: o mundo convulsionado por


movimentos sociais e políticos que, de forma consequente, também transforma o homem, seu
modus vivendi e toda uma hermenêutica sobre cultura, educação e diversidade. A
efervescência é, pois, coadjuvante de um despertar interior da mulher que, com muito
sofrimento, passa a se envolver em um novo perfil pela sobrevivência da prole e de si mesma,
como ser independente que anseia por fazer escolhas. Tivemos como objetivo observar nas
narrativas de George Sand, como a autora construiu a figura feminina em sua escrita, qual
perfil identitário. Para desenvolver a pesquisa, fizemos o levantamento bibliográfico de alguns
autores que pesquisaram gênero, tais como: Geertz (2008), Scott (1995), Butler (2003),
Foucault (1997), Connell (1995) e leitura de estudos gerais George Sand (1945), André
Maurois (1956).
Palavras-chave: Narrativa; gênero; feminismo.

Introdução
Amandine Aurore Lucile Dupin nasceu em 1804 na França e faleceu em 1876.
Fruto de uma família aristocrática recebeu da avó paterna, Mme. Dupin Francueil, a
educação e o estímulo pela música, escrita, desenho e literatura. Em 1822, casou-se com
Jean-François Dudevant. Sua vida literária é iniciada oficialmente em 1831 e ficou
posteriormente conhecida como George Sand. Adotou pseudônimo masculino para ser
aceita no meio literário. Teve uma vasta produção literária e seu primeiro romance
intitulado Indiana foi publicado em 1832. A publicação desse romance foi recebida com
entusiasmo pelos leitores e críticos da época.

142
No contexto do Romantismo francês, a obra de George Sand evidencia uma
nova tendência em relação aos direitos da mulher, e principalmente, à igualdade de
direitos em relação aos homens. A opinião comum dos Homens da época não só não
admitia nas mulheres o saber e a prudência, como supunha que elas possuíam juízo
limitado e extraordinária vaidade. Prudência no sentido de calma, ponderação, sensatez,
paciência ao tratar de assunto delicado ou difícil, principalmente para evitar conflitos,
ou seja, confronto com o homem.
Entre os muitos livros publicados e traduzidos para o Brasil, podemos citar: O
pirata (1841), Narciso (1942), Jeanne (1943), Mauprat (1945), O último amor (1952),
O charco do diabo (1952), O pântano do diabo (1963), Os gêmeos (1953), A pequena
Fadette (1957), Almas inquietas (1959), Ela e ele (1963) e História da minha vida,
publicados na forma de cinco volumes, referindo-se aos períodos de 1854 e 1855.
Dentre as escritoras francesas que praticam escritas autobiográficas, uma das mais
evidenciadas é Georges Sand, por isso a elegemos como objeto de estudo.
Diante de nosso objetivo, focamos especificamente as narrativas de George
Sand, sua construção da figura feminina. Assim, fizemos o levantamento bibliográfico
de alguns autores que pesquisaram gênero, tais como: Geertz (2008), Scott (1995)
Butler (2003), Foucault (1997), Connell e leitura de estudos gerais de George Sand
(1945), André Maurois (1956), Perelmann e Tytecha. (maiúsculas?)
Temos, na investigação dos autores, o diferencial de estudar o ethos de George
Sand, não apenas a explicação de uma personagem, como verificado em outros
trabalhos já publicados, mas uma constituição de um caráter. As bases teóricas e a
metodologia - levantamentos/criação de dados para o perfil que seria delineado -
auxiliaram na identificação da mulher do século XVIII, por meio da seguinte estrutura
de trabalho: O gênero e ethos/George Sand.
Admitindo que as palavras tenham histórias, ou melhor, que elas fazem história,
o conceito de gênero que falaremos está ligado diretamente à história do movimento
feminista - um movimento social organizado, acontecido na Europa, mais
especificamente na França.

Gênero e ethos
O gênero tem na pesquisa um cunho mais abrangente, porque referir-se-á ao
movimento social francês. O feminismo que eclodiu com a revolução francesa no século
XVIII (SCOTT, 1995). Afinal, as mulheres não ficaram passivas ante a miséria e
injustiças sociais sofridas por toda a população.
Nesse contexto da revolução francesa, o movimento feminista surge com
mudanças sociais, políticas e culturais, expressando-se não apenas por meio de grupos
de conscientização, marchas e protestos públicos, mas também por livros, jornais e
revistas (SCOTT, 1995).
Nesse momento histórico em que outros movimentos de libertação denunciavam
a existência de formas de opressão que não se limitavam ao econômico, movimentos
negros, de minorias étnicas, ecologistas, homossexuais, mulheres saíram de seu
isolamento, romperam seu silêncio e organizaram-se em torno de sua especificidade e se
completaram na busca da superação das desigualdades sociais.
O conceito gênero passa a ser usado, então, como um forte apelo relacional, já
que é no âmbito das relações sociais que se constrói. Deste modo, ainda que os estudos
continuem priorizando as análises sobre as mulheres, eles estarão agora, de forma muito

143
mais explícita, referindo-se também aos homens. O conceito passa a exigir que
pensemos de modo plural, acentuando que os projetos e as representações sobre
mulheres e homens são diversos, pois as concepções sobre o termo diferem não apenas
entre as sociedades ou ao momentos históricos, mas no interior de uma dada sociedade,
nos diversos grupos.
Nessa época, foram desencadeadas várias ações, isoladas ou coletivas, dirigidas
contra opressão das mulheres. Com elas, o amadurecimento do movimento feminista.
George Sand aproveita-se da situação de confronto entre a mulher determinada pelo
destino a ser sempre a filha, a esposa e a mãe, para poder escrever sobre essa nova fase
da mulher que surgia. Tornar visível, sujeitos de suas próprias vidas é, então, o grande
objetivo das estudiosas feministas desses primeiros tempos. Uma grande luta contra a
segregação social e política a que as mulheres foram historicamente conduzidas.
É preciso notar que essa invisibilidade, produzida a partir de múltiplos discursos
que caracterizavam a esfera do privado, o mundo doméstico, como o verdadeiro
universo da mulher, já vinha sendo gradativamente rompida por algumas mulheres. Sem
dúvida desde há muito tempo, as mulheres das classes trabalhadoras e camponesas
exerciam atividades fora do lar. Conforme Foucault:

[...] o casal não tinha a libertação da sexualidade era legítimo procriador era a promessa
da felicidade para todos. O modelo de sociedade na França viabilizava e atestava o
primado masculino na sociedade (FOUCAULT, 1999, p. 9).

Para a sociedade da época, o sexo era para procriação, não para ser modelo de
felicidade. Para a população que começava a ver a importância de ler e escrever, foi um
crescimento, porque começou a ter atitudes para encorajar grupos a escreverem livros,
jornais e revistas (SCOTT, 1995).
O feminismo não é apenas o movimento organizado, publicamente visível.
Revelou-se também na esfera doméstica, no trabalho, em todas as esferas em que
mulheres buscavam recriar as relações interpessoais sob um prisma onde o feminismo
não fosse o menos, o desvalorizado.
O feminismo buscou repensar e recriar a identidade de sexo sob uma ótica em
que o indivíduo, seja ele homem ou mulher, não tivesse que se adaptar a modelos
hierarquizados, e onde as qualidades ―feministas‖ ou ―masculinas‖ fossem atributos do
ser humano em sua globalidade. Que a afetividade, a emoção, a ternura pudessem
aflorar sem constrangimentos nos homens e serem vivenciadas, nas mulheres, como
atributos não desvalorizados.
Que as diferenças entre os sexos não se traduzissem em relações de poder que
permeassem a vida de homens e mulheres em todas as suas dimensões: no trabalho, na
participação política, na esfera familiar, etc.
Aproveitando-se da tendência da busca de instrução, George Sand, apoiada pela
mídia do tempo, escreveu também em folhetim, o que facilitava a aquisição de sua obra
pela população mais pobre e provocava efervescentes diálogos na fábrica, em casa, na
rua, em todos os lugares do cotidiano francês. Assim, ampliaram-se os horizontes
sociais sobre o coletivo. Nascia, publicamente, a partir dali, uma sociedade plural, na
qual participavam homens e mulheres. Para Foucault:

No século XVIII, foi o surgimento da "população", como problema econômico e


político: população-riqueza, população mão-de-obra ou capacidade de trabalho,
população em equilíbrio entre seu crescimento próprio e as fontes de que dispõe. Os

144
governos percebem que não têm que lidar simplesmente com sujeitos, nem mesmo com
um "povo", porém com uma "população", com seus fenômenos específicos e suas
variáveis próprias: natalidade, morbidade, esperança de vida, fecundidade, estado de
saúde, incidência das doenças, forma de alimentação e habitat (FOUCAULT, 1999, p.
28)

O que ocorreu foi uma importante transformação nos estudos feministas,


transformação essa que não se fez sem intensas discussões e polêmicas. A partir de uma
linguagem feminista, as mulheres, então, começaram a ampliar seu mundo doméstico
para externar seus pensamentos e atitudes (CONNELL, 1995). O mesmo autor, na
página 189, registra:

o gênero é muito mais que interações face a face entre homens e mulheres. Significa
enfatizar que o gênero é uma estrutura ampla, englobando a economia e o estado, assim
como a família e a sexualidade (p. 189).

O conceito a que Connell se refere é que gênero é muito mais que feminino e
masculino, é uma compreensão que não é completa sem economia, estado, enfim,
estruturas muito além da sexualidade. A palavra gênero deve ser construída no espaço
social, gênero como constituinte da identidade dos sujeitos.
Muitos acrescentaram que as Mulheres não tinham mais ciência que se adornar,
nem mais discurso do que inventar modas com as quais faziam uma néscia ostentação.
E que era delas a entrega ao ócio por não encontrar em que se empregar, nem a que
atender.
A mulher, segundo Zolin (2009, p. 226), era a ―representação da mulher como
incapaz e impotente subjaz uma conotação positiva; a independência feminina
vislumbrada na megera e na adúltera remete à rejeição e à antipatia‖. Principalmente
porque as mulheres feministas das classes trabalhadoras exerciam atividades fora do lar,
nas fábricas, nas oficinas de costuras e lavouras.
Gradativamente, as mulheres passaram a ocupar também escritórios, lojas, etc.
Embora suas atividades fossem direcionadas na maioria das vezes por homens
(MICHELLI, 1991). Na visão dos governantes, entretanto, abre-se a porta para uma
sexualidade devassa, pervertida, incontrolável que gerava efeitos desastrosos no plano
da população.
Assim, pela proliferação discursiva sobre o sexo, com uma dispersão das
sexualidades, buscava-se assegurar institucionalmente o povoamento e uma sexualidade
economicamente útil e politicamente conservadora. Ironizando-se, a mulher interessava
pela mão-de-obra útil, mas deveria ainda aceitar o determinismo: filha, esposa e mãe,
representações sociais que correspondiam à aceitação, docilidade, fragilidade e
limitação intelectual. Ao contrário, os homens eram inteligentes, bravos, características
que os homens trazem – parece - até hoje no século XXI, identificadas por sua
sexualidade e corpo masculino (HUNT, 1991).
Com a sensação de pertença de si mesma, a mulher percebeu que a sexualidade
diz respeito aos prazeres e às fantasias ocultos, aos excessos perigosos para o corpo,
conforme o discurso oficial, no entanto, passou a ser considerada como a essência do ser
humano individual e núcleo da identidade pessoal, agora subvertido pelo entendimento
de que ela vai se tornar um dispositivo dentro dessa sociedade da norma, pois diz
respeito tanto ao individual, mas, sobretudo, devido aos seus efeitos procriadores que

145
deságuam na unidade múltipla, na população (FOUCAULT, 1999), não mais aceitou o
determinismo da Biologia.
Porém, muitos não se satisfizeram com esse ganho, ou seja, elas adquiram com
seu trabalho o pouco que este produz. A sociedade preconceituosa, sempre as pensou na
ordem do necessário e agora elas também querem o supérfluo. Neste passo, essa mesma
sociedade costuma acusá-las de adulterar muitos leitos matrimoniais.
Assim, como postula Butler (2003, p. 25-26):

a formulação de que a biologia é o destino, a distinção entre sexo e gênero atende a tese
de que, por mais que o sexo pareça intratável em termos biológicos, o gênero é
culturalmente construído: consequentemente, não é nem o resultado causal do sexo nem
tampouco tão aparentemente fixo quanto o sexo

O gênero, portanto, cria o sexo e não a evidência de seu contrário. Essa


perspectiva, portanto, permite a desconstrução da ilusória evidência do sexo biológico
como demarcador dos limites identitários. Então, as feministas americanas passaram a
usar a palavra gênero como distinção de sexo. Rejeitam o conceito biológico, implícito
no uso dos termos como sexo, ou diferença sexual (SCOTT, 1995). Conforme Geertz
(1978, p. 47):

a imagem de uma natureza humana, constante, independente de tempo, lugar e


circunstância, de estudos e profissões, modas passageiras e opiniões temporárias, pode
ser uma ilusão, que o que o homem é pode estar tão envolvido com onde ele está, quem
ele é e no que acredita, que é inseparável deles. É precisamente o levar em conta tal
possibilidade que deu margem ao surgimento do conceito de cultura e ao declínio da
perspectiva uniforme do homem.

Assim, a diversidade sociocultural dos povos coloniais permitiu o


aprofundamento das críticas ao evolucionismo, denunciou seu etnocentrismo,
principalmente o europeu.
O feminismo se constrói, portanto, a partir das resistências, derrotas e conquistas
que compõem a História da Mulher e se coloca como um movimento vivo, cujas lutas e
estratégias estão em permanente processo de recriação. Na busca da superação das
relações hierárquicas entre homens e mulheres, alinha-se a todos os movimentos que
lutam contra a discriminação em suas diferentes formas.
A forma de olhar a realidade, a mulher emergiu com força. E, com ela, surgiu
uma concepção de cultura que iria reconhecer que cada cultura tem uma história própria
e singular e um modo de permitir caminhos diversos para a humanidade, plural e
diferente.
Nesta perspectiva, a biologia e as ciências naturais deixaram de ser o alicerce
das reflexões sobre as diferenças para colocar tal encargo como de responsabilidade da
cultura, entendendo-a como na Antropologia: criação/ aprendizagem/ criação.Também
como o ser humano faz escolhas.
Assim, George Sand apresenta-se com um caráter (ethos) que foi um verdadeiro
espelho que projetou, nas outras mulheres, a força de sobreviver e não apenas existir.
Que mulher era essa?
Aqui, a compreensão de ethos é de Maingueneau (2008), termo recuperado e
ampliado pela Análise do Discurso a partir de suas discussões. Segundo ele, o ethos
apresenta situações discursivas diversas que se estendem aos enunciados orais, escritos,
na modalidade verbal, visual, ou verbo-visual, representando um discurso individual ou
146
coletivou. Este estandarte, individual ou coletivo, estava sobre os ombros de George
Sand.
O conceito aristotélico de ethos de que deveria haver uma coesão entre ethos,
logos e pathos está ajustado na nossa autora. Ela deixava claro nas palavras, no caráter
que expunha no discurso e nas paixões que provocava uma mulher determinada,
transgressora e, dito pelo sociedade de seu tempo, imoral.
As discussões apoquentadas principalmente com os homens artistas que se
sentiam agredidos pela mulher que se vestia de homem, fumava charuto e, como uma
afronta, ainda era escritora, fazia-a responder à altura as agressões, reforçando seu
caráter forte, o que confirma a afirmação de que ethos é construído no momento do
discurso. (MAINGUENEAU, 2005).
Embora toda a sociedade da época tivesse construído um estereótipo da autora,
uma imagem pronta e acabada, ela sempre surpreendia porque não construía uma norma
para a sua relação com a sociedade/realidade. Sempre surpreendia a memória coletiva.
Agora, podemos responder à pergunta ―Que mulher era essa‖ ?
Era a mulher livre, solidária, autêntica, criativa, sem medo ou falsos pudores,
que alinhava perfeitamente seus diferentes textos às paixões que provocava. Tão
adiantada a seu tempo que representa, ainda hoje, um marco onde muitas mulheres de
todo o mundo querem chegar.

O contexto político-social da mulher do século XVIII


Estudos demográficos revelam que havia na Idade Média uma disparidade na
distribuição da população por sexo, com predominância do contingente feminino adulto.
De fato, envolvidos em constantes guerras e longas viagens, ou recolhidos à vida
monástica, era frequente o afastamento dos homens.
E na sua ausência, as mulheres assumiam os negócios da família, sendo-lhes,
portanto, necessário entender de contabilidade e legislação para efetuar com eficiência
as transações comerciais e defender-se em juízo. Historicamente, a maior participação
da mulher na esfera extra doméstica esteve sempre ligada ao afastamento do homem por
motivo de guerras. Tal fato se repetiu inclusive nas duas grandes guerras mundiais deste
século, quando a mulher participou expressivamente na força de trabalho.
Julgam alguns Homens que, por serem as Mulheres imperfeitas, devem ser
proibidas por lei de ocupar cargos e empregos públicos. Mas se refletissem sobre o
motivo dessa proibição, veriam o erro de que padecem nesse tema, pois não é outro o
fim dos Legisladores senão olhar pela honestidade daquele sexo, e por ser condizente ao
perfeito zelo à vida humana.
As obras no século XIX, em grande parte, apresentavam a mulher plural:
sedutora, imoral, a megera, a indefesa e incapaz; anjo e outras diversas definições.
Todas elas representadas nas mais de 100 obras escritas por George Sand, desde
mulheres submissas, camponesas e feministas, até uma militante feminista que marcou
o movimento do século XVIII e XIX.
George Sand foi uma das principais representantes da literatura francesa do
século XIX. Romancista, crítica e ensaísta, cumpriu um significante papel na vida
política de sua época, sobretudo pela representatividade dos ideais feministas em seus
romances. A autora é considerada uma das precursoras do movimento pela igualdade de
gênero e emancipação feminina no meio artístico (REID E TILLIER 1999).

147
Foi a primeira mulher a usar roupas masculinas, cachimbos e charutos
(MAUROIS, 1956).
Encarnou o ideário feminista, porque não tinha limites, trazia seus casos de amor
a público, enquanto algumas mulheres francesas ainda ficavam presas ao casamento,
assumindo o papel de reprodutora. Era uma mulher liberal, sem pudores. Casou-se em
1822 com um homem muito mais velho, Casimir Dudevant, mas, em 1831, deixou o
marido e levou os dois filhos de volta para a província e foi para Paris, onde ela
compartilhou com o jovem Jules Sandeau, seu primeiro amante, um apartamento em um
sótão.
Pode-se considerar o romance ―Histoire de ma vie‖ como a marca da sujeição e
submissão da mulher. A autora trata do drama da mulher cuja sociedade em que se
encontrava produzia sobre ela significações que se supunham coerentes com o seu
gênero.
No meio de todos esses fatos que a população viveu, George Sand ressaltou as
mensagens feministas e educacionais para os leitores do século XIX.
Bem à vontade, a autora escreveu sobre temas relacionados às mulheres, mas
isto foi devido à sua própria experiência pessoal e também como testemunho e
solidariedade com as dificuldades das mulheres daquele tempo, especialmente mulheres
artistas.
George Sand recebeu uma educação clássica, resultou de um amálgama de uma
educação formal em um convento com educação formal. Munida das experiências tão
ricas da vida real de Amandine Aurore, escreveu livros como respostas para muitas
mudanças causadas por revoluções importantes para a mulher à frente de seu tempo.
Assim, denunciou o sofrimento das mulheres pela opressão; o submetimento das
mulheres aos homens; o embutimento de sua sexualidade, de sua alma, enfim.
A ampliação da acessibilidade à educação favoreceu o ingresso das mulheres de
elite no âmbito da cultura, desenvolvendo seus interesses por artes, idiomas e criação
literária. Elas romperam com os esquemas tradicionais, participaram de saraus, tertúlias
e salões literários, criaram uma escritura (poesia, prosa e dramaturgia) com estilo
próprio, falando de sentimentos e, em alguns casos, adotando atitudes reivindicativas.
Entretanto, se uma parte das mulheres teve acesso à educação e a um protagonismo
histórico diferenciado de suas antecessoras, cabe destacar que as mudanças se
mantiveram restritas e não alcançaram a grande maioria.

Considerações finais
A leitura sobre George Sand nos permitiu delinear um panorama da perspectiva
das mulheres entre os séculos XVIII e XIX, já acreditando na educação e entendimento
da cultura como da comunhão com a identidade.
Foi constatada uma gama de complexidade das protagonistas femininas que se
destacaram no campo literário e que desafiaram a ordem geral da sociedade francesa,
não só na ficção de George Sand, mas entre outros artistas, como Louise Michelle,
figura lendária do movimento operário, carro-chefe do anarquismo e a líder comunista e
professora polonesa Rosa Luxemburg (1871-1919)1, assassinada e encontrada morta

1
Disponível em: http://archives-2001-2012.cmaq.net/fr/node/16854.html. Acesso em: 22 de abril de
2017.

148
dentro de um canal, entre outras que narraram, de modo igualmente fantástico, a mesma
luta feminista contra a opressão. As lutas dessas personalidades revolucionárias,
geralmente ocultadas nos livros de história, foram, pois, a base da expressão literária do
autor.
Demonstrar as figuras revolucionárias, como George Sand com sua força e
energia (um ethos) que representou e fez interlocuções discursivas com as mulheres no
interior das classes sociais nas distintas lutas foram algumas das batalhas deste tempo,
assim como arquiteta perfis de mulheres conscientes e combativas, diferenciando-as
daquelas retratadas anteriormente.
As posturas delineadas representando a história da mulher silenciada e oprimida
no meio patriarcal, com o corpo determinado pelas estruturas sociais fazem um
movimento de descolonização, libertando seu próprio corpo e suas subjetividades.
Portanto, com o feminismo surge uma nova maneira de pensar a cultura, sobre a escrita
feminina, a arte a linguagem e sobre o próprio conhecimento.

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149
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150
A representação do universo feminino na distopia Feios
(2016), de Scott Westerfeld
(The representation of the female universe in the dystopia Feios (2016), by
Scott Westerfeld)

Luciana Ferreira Leal1


1
Faculdades FACCAT (FACCAT)

luciana_lea@hotmail.com

Abstract: The present work seeks, under the focus on gender issues, to examine how the
representation of female characters in Scott Westerfeld's dystopia Feios (2016) occurs. The
book tells the story of a totally sustainable and futuristic world in which cars fly, a pill brushes
teeth and being ugly is just something fleeting. The aim is to think about the issue of sexuality
and the social role of women in this dystopian literary work, to think about the difference
between the sexes and how the female condition in dystopia echoes in today's society. We can
verify in the narrative in analysis that the attributions of different "types" of woman are
predefined by a society that dictates the feminine behaviors. As a theoretical contribution, we
will seek in Bordieu (2009) to understand how the logic of male domination is installed and
reproduced through men and institutions, legitimizing androcentric vision.
Keywords: Female characters; the social role of women; dystopia; Feios.

Resumo: O presente trabalho busca, sob o enfoque nas questões de gênero, examinar como se
dá a representação das personagens femininas na distopia Feios (2016), de Scott Westerfeld. O
livro conta a história de um mundo totalmente sustentável e futurista, em que os carros voam,
uma pílula escova os dentes e ser feio é apenas algo passageiro. O objetivo é pensar a questão
da sexualidade e o papel social da mulher nesta obra literária distópica, pensar a diferença
entre os sexos e como a condição feminina na distopia ecoa na sociedade atual. Podemos
verificar na narrativa em análise que as atribuições de diferentes ―tipos‖ de mulher são pré-
definidas por uma sociedade que dita os comportamentos femininos. Como aporte teórico,
buscaremos em Bordieu (2009) compreender como a lógica de dominação masculina se
instala e se reproduz por meio dos homens e das instituições, legitimando a visão
androcêntrica.
Palavras-chave: personagens femininas; papel social da mulher; distopia; Feios.

Introdução
O trabalho analisará a representação das personagens femininas na distopia
Feios (2016), de Scott Westerfeld. O livro conta a história de um mundo totalmente
sustentável e futurista, em que os carros voam, uma pílula escova os dentes e ser feio é
apenas algo passageiro. Na adolescência, aos 11 anos, os jovens são levados à Vila Feia,
onde permanecem até os 16, quando recebem uma cirurgia plástica completa, para
deixar de ser feio e passar a ser perfeito, passando a morar na Nova Perfeição, um lugar
onde a festa dura 24h e todos são felizes e perfeitos.
A distopia da narrativa de Feios, de Scott Westerfeld (2016), começa pela
situação insólita, lembrando um romance de ficção científica. Tally desvendará
mistérios ocultos pela sociedade futurista em que vive. O cenário da trama é estruturado
de forma totalmente nova e o desfecho da narrativa realmente provoca surpresa no

151
leitor. As distopias presentes nesta narrativa nos revelam que nós somos os únicos
causadores de nossa própria miséria.
Em função disso, a distopia na obra analisada permite pensar a questão da
sexualidade e o papel social da mulher, pensar a diferença entre os sexos e como a
condição feminina ecoa na sociedade atual. Podemos verificar que as atribuições de
diferentes ―tipos‖ de mulher são pré-definidas por uma sociedade que dita os
comportamentos femininos.

O autor e suas obras


Nascido no Texas, no dia 5 de maio de 1963, Scott Westerfeld é autor de
romances para adultos e jovens, entre eles Feios (2005), Tão Ontem (2007), Os
Primeiros Dias (2008), e das séries Leviatã (2012), best-sellers do New York Times.
Scott Westerfeld lançou nos Estados Unidos uma saga que mescla elementos do
gênero fantástico, ingredientes distópicos e o universo da ficção científica.
Primeiramente, concebeu a trilogia composta pelos livros Feios, de 2005; Perfeitos,
também de 2005; e Especiais, de 2006. Todavia, ampliou a série publicando um quarto
volume, Extras, de 2007. Graças à série distópica ―Feios‖, Scott Westerfeld tornou-se
um dos autores americanos de ficção científica mais conhecidos do mundo.
Quando criança, Scott Westerfeld mudou-se para Califórnia e Connecticut.
Formou-se em 1985 na Vassar College e foi compositor no início de sua carreira. Nos
anos 80, mudou-se para Nova Iorque, onde inspirou seu livro Polymorph e em 2001
casou-se com Justine Larbalestier, que também é escritora de literatura. Além da série
Feios, Scott é responsável por uma série em Mangá, mostrando o lado de Shay na
história, chamado Shay‘shistory (2012), e em 2014 lançou o livroAfterworlds(2014).
Nos últimos anos, dedica-se à escrita da Série ―Zeroes‖ (Zeroes, 2015, e Swarm, 2016)
e ―Horizon‖ (Horizon, 2016), ainda não lançados no Brasil.
Scott Westerfeld recebeu importantes prêmios, como Aurealis Award for best
young-adult novel e Good reads Choice Awards Best Science Fiction.

O enredo de Feios
A trama envolve a garota, Tally Youngblood, que está prestes a completar 16
anos, e essa data traduz um marco definitivo para as adolescentes de Vila Feia. Tally
Youngblood, assim como os outrosjovens desta comunidade, vive reclusa em um abrigo
até o momento em que atingir a idade especial, em que conquistará intervenção
cirúrgica radical como jamais se presenciou entre os humanos. Patrocinada pelas
autoridades governamentais, este procedimento plástico envolve retificação de todas as
imperfeições da fisionomia dessas pessoas. Ela se tornará perfeita.
Nesta civilização futurística, todos são submetidos à substituição da pele por
outra totalmente imaculada; a estrutura óssea é trocada por uma liga postiça, mais ágil e
sólida; os olhos são ampliados e os lábios se tornam mais fartos e vultosos. Enfim, a
perfeição em um universo de extremo desenvolvimento tecnológico. Depois, é só mudar
para Nova Perfeição e mergulhar no mundo da ilusão: uma vida de glamour, festas e
diversão, onde seu único trabalho é aproveitar muito – beber, pular de paraquedas, voar
a bordo de pranchas magnéticas.
Uma noite, ela conhece Shay, uma feia queprefere se arriscar fora dos limites da
cidade, e não se submeterá à cirurgia. Shayjuntar-se-á à Fumaça, um grupo fora da lei
152
que sobrevive retirando o sustento da natureza. Quando ela foge, Tally aprende sobre
um lado totalmente novo do mundo dos perfeitos. As autoridades oferecem a Tally sua
pior escolha: encontrar sua amiga e a entregar, ou nunca se transformar em uma pessoa
bonita. A escolha de Tally faz sua vida mudar pra sempre, além de o mundo ao seu
redor.
Depois de aventuras, medos e muitos desafios, Tally chega à Fumaça. De posse
de um pingente que emitiria sinal à Dra. Cable, autoridade máxima das Circunstâncias
Especiais, Nova Perfeição, Tally tem a função de denunciar o local a fim de ser
destruído, afinal, na civilização futurísticanão tem lugar para os transgressores dos
ideais impostos pelas autoridades. Mas, conhecendo pessoas tão especiais como Croy,
Ryde, Astrix eprincipalmente David, por quem se apaixona, e, depois de descobrir que a
operação além de física era também mental, provocando lesões que impediam a
criticidade, a autonomia e o juízo de valor, Tally desiste de sua missão e decide viver
para sempre em Fumaça, ao lado de pessoas autênticas, em contato com a natureza,
respeitando-a e dela tirando o próprio sustento.
Tally Youngblood lança o pingente em uma fogueira e no outro dia Fumaça é
invadida pelas Circunstâncias Especiais. O que a garota nem o leitor sabiam é que,
mesmodanificado, o pingente enviaria um sinal, automaticamente. Apenas David e
Tally conseguem fugir. Os demais são capturados ou mortos. Tally sente-se culpada por
tudo, mas se embrenha cada vez mais em mentiras, pois não é capaz de assumir para o
David que chegou lá como espiã, mas se rendeu à vida e à autenticidade da Fumaça.
A sua forma de redenção é ajudar David a resgatar seus pais e os amigos. De
volta à vila Feia, e de posse de jaquetas bunglejump, eles invadem as Circunstâncias
Especiais, resgatam Maddy, a mãe de David, Shay (já transformada) e outros amigos. O
pai de David está morto. Maddy consegue acessar os dados de trabalho da Dra. Cable e
com isso consegue trabalhar na elaboração de pílulas que podem trazer a cura das lesões
cerebrais. Precisa de uma pessoa para o teste, Shay se recusa, Tally se habilita e depois
conta a David de que era a responsável por tudo. O livro finda com Tally se
apresentando às Circunstâncias Especiais para a realização da cirurgia.

Elementos da narrativa
Tally é uma heroína distópica. Como protagonista, toda a trama é centralizada
nela e em seus problemas. Ainda como personagens importantes, destacamos Shay e
David. David tinha um belo sorriso e seu rosto demonstrava um tipo de confiança que
Tally nunca tinha visto.
Shay tinha cabelo preto, comprido e preso em duas tranças. Os olhos eram
separados demais, ―apesar dos lábios razoavelmente grossos, ela era mais magra do
que uma nova perfeita‖ (WESTERFELD, 2016, p. 30-31). Shay representa o contraste
da visão que Tally expressa. Enquanto a segunda vê a perfeição como algo necessário
para ser feliz, a primeira tem isso desconstruído, não se deixando alienar de nenhuma
forma, pois sabe que o que a espera após a cirurgia será uma vida perfeita e entediante.

Você não acredita nessa besteira de verdade, acredita? Que só há uma aparência certa, e
que todo mundo é programado para concordar com ela. (WESTERFELD, 2016, p. 83).

– Não somos esquisitas, Tally. Somos normais. Talvez não sejamos maravilhosas, mas
pelo menos também não somos umas bonecas Barbie (WESTERFELD, 2016, p. 84).

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Shay não desejava ser perfeita, passando o dia inteiro festejando ou norteando-se
sempre por regras e limites repressores. Questiona o universo existencial e não tem
medo de parecer quem é. Shay faz a sua escolha: ―_ não temos de nos parecer com todo
mundo [...]. Podemos envelhecer do jeito que quisermos.‖ (WESTERFELD, 2016, p.
91).
Em muitos momentos o leitor se depara com questionamentos que envolvem a
distinção entre essência e aparência, tão significativa para o público adolescente. Da
importância de se tornar o que se deseja e não o que a sociedade espera, no caso, do
livro, no que um comitê cirúrgico pensa o que se deve ser.
Em se tratando das personagens secundárias, detacamos, Dra. Cable, os pais de
Tally e os pais de David. Dra. Cable era uma perfeita assustadora: ―tinha um nariz
adunco, dentes afiados e olhos de um cinza nada reluzente [...].Havia uma aspereza
escondida naquela voz, como um objeto de metal riscando lentamente um pedaço de
vidro.‖ (WESTERFELD, 2016, p. 106). Os pais de Tally, Ellie e Sol, só são
referenciados a partir da página 100. Com pouquíssima representatividade, Sol, o pai,
transmitia-lhe segurança: ―Ele tinha mãos quentes e fortes, quase tão enrugadas quanto
às de um idoso, devido ao trabalho na carpintaria‖. No entanto, pai e mãe, perfeitos,
não se sensibilizam com a promessa que a filha faz a Shay e a incentiva a colaborar com
as Circunstâncias Especiais, revelando, assim, o paradeiro da amiga. Para Ellie, a filha
não tem escolha. Já os pais de David são pessoas bem interessantes. Maddy e Az eram
médicos, que decidiram abandonar as Circunstâncias Especiais e fundar a Fumaça,
quando descobriram que a cirurgia para transformar rostos perfeitos, provocava lesões
no cérebro, responsáveis por descaracterizar a individualidade, tornado as pessoas
submissas e passivas. Eles próprios reverteram a cirurgia e tiveram David fora da
Cidade e das suas convenções.
Outras personagens que compõem o universo narrativo: Peris é o amigo de Tally
que completa 16 anos antes dela e é submetido à cirurgia primeiro, e se torna tão
perfeito com olhos e lábios grandes, com a pele limpa e bonita.Croy, Astrix e Ride,
amigos de Shay, são jovens que escolheram Fumaça para viver. Fugiram da Vila Feia e,
portanto, da cirurgia que os transformariam em perfeitos. Croy, desde o princípio,
desconfiou que Tallyera uma espiã. Dex, An e Sussy eram Feios que tinham ouvido
falar na Fumaça e que desejavam ir para lá. São eles corajosos e audaciosos, os
responsáveis por ajudar Tally e David no resgate, despistando a atenção dos membros
das Circunstâncias Especiais. No final da obra, são eles que se aproximavam dos Feios
da cidade para espalhar boatos e divulgar que a perda da personalidade, além da perda
da identidade, é a mais terrível consequência da operação para se tornar perfeito.
Temos uma composição simples de personagens. Nenhuma, nem mesmo a
protagonista, é trabalhada de forma ampla, o que não significa que eles não pareçam
real, ao contrário, torna a trama ainda mais intrigante. A partir das personagens
elencadas, podemos dizer que a protagonista de maior destaque é do gênero feminino,
mesmo David tendo muita importância no enredo.
Sabemos que o bom livro literário juvenil é indicado para qualquer idade, porém
aidade dos protagonistas é determinante para que a obra seja classificada como juvernil.
Na obra analisada, Tally tem 16 anos e David tem alguns anos a mais que ela, o que
define o público ao qual a obra se destina, especificamente. Além da idade, os
comportamentos das personagens contribuem para essa classificação: a busca pela
perfeição do aspecto físico, o conflito entre exterior e interior, a descoberta do amor, as
inquietações da protagonista, o desenho psicológico e físico dos protagonistas.

154
É importante ressaltar que em Feioso estrato social das personagens não é
diferente da maioria das obras destinadas a esse público. As personagens pertencem à
classe média, não trabalham, podem estudar, pois os pais podem sustentá-las com certa
mordomia. Tally vivia dentro dos padrões estabelecidos para sua idade, no
acampamento dos Feios, planejando fazer parte da Nova Perfeição, sem passar ou
vislumbrar nenhuma necessidade, que o dinheiro pudesse suprir.
É importante ressaltar que Tally pode ser caracterizada como personagem
redonda, visto que vive em constante tensão com o meio e consigo própria. De alma
sonhadora, deparamo-nos com uma adolescente insegura e introspectiva. No final da
narrativa, Tallyque desejava tanto a cirurgia para ser aceita na Nova Perfeição, rende-se
ao universo da essência. Sabe que um rosto perfeito e igual ao padrão de beleza buscado
por todos descaracteriza a individualidade.
Tally vive problemas característicos da idade, como o complexo e a insatisfação
com a aparência física, a mentira, a descoberta e aceitação do amor, todavia, no decorrer
da narrativa, há amadurecimento da protagonista. Scott Westerfeldconseguiu transpor o
grande conflito do estado psíquico da personagem em arte com certa qualidade estética
e ―consegue ir além do mero clichê do adolescente rebelde ou do arquétipo do jovem
que passa por processo de maturação‖ (CECCANTINI, 2000, p. 354). Em Feios, não
se pode falar em antagonista no sentido, apenas, de outra personagem. O seu opositor é
ela própria: suas mentiras, medos, anseios, conflitos. Em se tratando de outra
personagem, Drª Cable poder ser considerada a antagonista.
A narrativa é predominantemente espacial. Os espaços da Vila Feia, da
NovaPerfeição, da Fumaça e das ruínas de Ferrugemsão demasiadamente focados na
obra em questão. O espaço macro pode aqui ser entendido como as quatro vilas: Feia,
Perfeição, Fumaça e os Enrerrujados, que sediam o desenvolvimento e a conclusão do
enredo.
As primeiras linhas do livro remetem à descrição da natureza em Vila Feia: ―O
céu de início de verão tinha cor de vômito de gato. Obviamente, Tally pensava, quando
a dieta do seu gato se resume por um bom tempo a ração sabor salmão. Movendo-se
rapidamente, as nuvens até lembravam peixes, desfeitas em escamas pelos ventos das
altitudes elevadas.‖ (WESTERFELD, 2016, p. 07).
É também na primeira página que o espaço da Nova Perfeição é descrito: ―Os
prédios onde as festas aconteciam já estavam todos iluminados. Linhas sinuosas
destacadas por tochas indicavam os caminhos por entre os jardins. Balões de ar quente
puxavam suas cestas em direção ao céu rosado [...]‖ (WESTERFELD, 2016, p. 7).
A descrição do espaço em Feios particulariza a ambientação e nos mostra
detalhes, sob o aspecto do ponto de vista físico. A descrição da floresta é um exemplo:
seiva de plantas, flores selvagens e o aroma elétrico da água agitada. ―Era a natureza
selvagem de verdade, onde poderia haver qualquer coisa escondida.‖ (WESTERFELD,
2016, p. 61).
O espaço obedece à movimentação das personagens. As descrições do espaço
entremeiam as ações do enredo, ampliando-as, como, por exemplo, na descrição das
ruínas de Ferrugem:

Algumas janelas vazias observavam as duas, em silêncio, das paredes dos prédios
gigantes. Os vidros estavam estilhaçados há muito tempo; a madeira, podre. Não havia
nada além de armações metálicas, argamassa e cimento que se despedaçava sob a força
da vegetação que tomava contra o local. Olhando para a escuridão das entradas sem

155
portas, Tally sentia arrepios ao pensar em descer e dar uma espiada. (WESTERFELD,
2016, p. 64).

As duas amigas deslizaram por entre os prédios em ruínas, mantendo a altura e


osilêncio, para não perturbar os fantasmas da cidade morta.
A descrição se estende e possibilita a identificação do leitor com o ambiente
representado ou permite que a imaginação do leitor conheça um ambiente diferente do
seu. O espaço aberto, essencialmente, a natureza, está muito presente nas descrições de
Scott Westerfeld, neste livro. Para chegar à Fumaça:

Por todos os lados, o mato cerrado e as árvores de troncos grossos se uniam em


barreiras intransponíveis. Mesmo na trilha estreita, a toda hora ela esbarrava em galhos
e ramos ou tropeçava em raízes e pedras. Nunca tinha visto um mato tão selvagem nem
pouco acolhedor. Trepadeiras cheias de espinhos se prolongavam na semiescuridão
como uma proteção de arame farpado. (2016, p. 188).

Mas à medida que eles subiam a montanha, ―o riacho foi se alargando, abrindo
caminho floresta adentro. As árvores baixas e retorcidas deram lugar a pinheiros altos,
e a vegetação rasteira tornou-se mais densa. Em certos trechos, a corrente era mais
forte‖ (2016, p. 189-190). De cima, viam o pequeno vale sem vegetação, era Fumaça,
realmente enfumaçada: fogueiras, grupos de pessoas, cheiro de madeira queimada.Na
Fumaça não há separação de pessoas, feios e perfeitos, jovens adultos e velhos. Não é
uma cidade, e não há ninguém no comando e ninguém é perfeito.
Na descrição do dormitório da Vila Feiacomo apertado e claustrofóbico,
―exageradamente infantil com cores vivas e escadas protegidas. Entediante durante o dia
e fácil de fugir à noite‖ (WESTERFELD, 2016, p. 78), e na descrição do Hospital das
Circunstâncias Especiais,―o andar era iluminado por uma faixa fluorescente que
passava pelo meio do corredor.‖ (WESTERFELD, 2016, p. 369), espaços por assim
dizer, considerados micros, podemos considerar quehá predomínio do espaço aberto
sobre o fechado. As transformações da protagonista ocorrem essencialmente nos
espaços abertos. É na Fumaça que eladescobre a importância das peculiaridades
emocionais e físicas que nos definem, que ela encontra o amor. E é na ferrugem, espaço
também aberto, que ela, para se redimir de todas as suas mentiras, decide-se pela
cirurgia. O espaço pode, dessa forma, influenciar as atitudes das personagens ou ser
transformado por elas.
Na obra, percebe-se o deslocamento espacial contínuo: Vila Feia, Nova
Perfeição, Ferrugem, Floresta, Circunstâncias Especiais, Fumaça, porque a descrição
também tem um importante papel de situar a ação.
O espaço escolar, como na maioria das obras juvenis, possui um grau secundário
de representação. No caso da obra em questão, é apenas referenciado. Dentre outras
referências, a de que Tally não aprendeu a escrever a mão, porque não é mais
obrigatório, mas Shay sabia, pois fez aulas na época em que estava tentando ir para
Fumaça. (WESTERFELD, 2016, p. 78).
No que se refere ao tempo histórico, em Feios de Scott Westerfeld, a
humanidade já não existe como a conhecemos hoje. Depois de alguma catástrofe
desconhecida, nossa civilização quase desapareceu. Restaram apenas alguns grupos
isolados de pessoas, vivendo em espaços futurísticos, rodeadas por florestas selvagens e
ruínas antigas. Em um mundo totalmente sustentável e futurista – em que os carros e as
pranchas voam e as personagens comem uma pílula para escovar os dentes – ser feio é

156
apenas algo passageiro. Como forma de gerar estabilidade, equilíbrio e justiça entre a
população, é costume que, aos dezesseis anos, cada cidadão dessas comunidades passe
por sua primeira cirurgia plástica, que o transformará de seu estado natural considerado
feio à categoria de perfeito.Não conseguimos reconhecer na obra a tentativa de
caracterização minuciosa da época, por esse motivo acreditamos que se trata de um
tempo e de uma época futura.
Na sequência temporal na qual ocorrem os fatos deste texto narrativo, o narrador
procura situar os acontecimentos em um determinado tempo (o futurístico) no qual se
passa a história. O tempo, cronológico, transcorre na ordem natural dos fatos, do
começo para o final, todavia, algumas vezes entrecortado por flash-backs e digressões
das personagens, que voltam no tempo, quando lembram a outras personagens (e
também ao leitor) fatos relevantes que ocorreram em um tempo anterior à narrativa.
Pode-se pensar que a não caracterização precisa do tempo histórico se deve à
atualização que ocorre na literatura desde o modernismo, e se intensifica nas narrativas
distópicas, pela preferência pela sugestão e o gosto pelo vago, fragmentário e
descontínuo. A não caracterização também pode estar relacionada ao público ao qual a
obra se destina. Um tempo não definido pode garantir um terreno neutro e diferenciar a
literatura juvenil da literatura canônica. (CECCANTINI, 2000, p. 335-336).
É necessário, pois, considerar que a duração da ação é a de, no máximo, um
semestre. A partir da análise da narrativa, percebemos que, no início da narrativa faltam
três meses e três dias para Tally completar 16 anos. Após o seu aniversário, ela demora
uma semana para chegar à Fumaça. Por lá vive cerca de um pouco mais de um mês.
Duas semanas é o tempoque Tally e David demoram para o resgate dos seus das
Circunstâncias Espaciais. E mais um mês, talvez um pouco mais, eles vivem na
Ferrugem, buscando a solução para as lesões no cérebro, causadas pela cirurgia da
Perfeição. Nesse sentido, ressaltamos que a duração da ação está em harmonia com a
unidade de tempo.
No que concerne à temática, podemos inferir que em Feios,o maior destaque se
dá à busca de identidade da protagonista, assim como o seu processo de crescimento
emocional. Tallyé flagrada em sua fase de amadurecimento, de questionamentos, tendo,
como pano de fundo, as suas primeiras experiências e vivências no que diz respeito à
amizade e ao amor. Podemos dizer que se trata de umromance de formação. Posto que a
leitura ésempre produção de significados, consideramos ainda como temática a amizade,
o primeiro amor, o sofrimento que demanda da escolha e das atitudes a se tomar, os
segredos íntimos, as diferenças individuais, os conflitos emocionais, a indústria cultural
e a civilização do descartável, o destino imprevisível, a crítica indireta às autoridades
por condicionarem as pessoas a pensarem e agirem iguais e a discussão de que até que
ponto a alienação pode chegar.
A linguagem é bem elaborada, dialoga com a produção literária adulta
contemporânea. Em nenhum momento se vislumbra a pobreza semântica que muitas
vezes é atribuída à literatura juvenil. Há em Feios (2016) um bom nível de trabalho com
a linguagem, há também diálogos espontâneos e fluentes. Scott Westerfeld atinge
resultado consistente no tratamento dado à questão da linguagem, como mostra o
fragmento citado:

Tally levantou a cabeça e tentou enxergarpor entre os rios de lágrimas que agora
corriam pelo seu rosto. Queria encontrar a verdadeatrás da máscara cruel da dra. Cable.
Em seus olhos metálicos, sombrios, havia uma segurança insensível e terrível, diferente

157
de qualquer coisa que um perfeito normal pudesse transmitir. (WESTERFELD, 2016, p.
135)

Assim sendo, salientamos que há, na narrativa analisada, um bom nível de


trabalho com a linguagem. Scott Westerfeld procura se aproximar do modo de
expressão de uma jovem de 16 anos, mas sem abrir mão de um uso dominante da norma
padrão, atinge resultado considerável no que se refere ao tratamento dado àlinguagem.
Podemos compreender, com base em Feios (2016), que a representação da
família na obra assume uma linha bastante crítica, segundo a classificação de Zilberman
(1997). O pequeno núcleo familiar de Tallyé motivo de desconforto emocional e
psicológico para a protagonista.Ellie e Sol não se sensibilizam coma promessa que a
filha faz à amiga, não a apoiam moral e emocionalmente. Para eles, não há outra escolha
a não ser a cirurgia que vai fazer a filha perfeita, afinal foram os dois submetidos à
mesma cirurgia em época oportuna. Na relação dos pais com a filha, acentuam-se ainda
mais os traços negativos da representação familiar. Elas são superficiais e egoístas.
Já o núcleo familiar de David é apresentado bem positivamente. Maddy e Az
não aceitam convenções nem são submissos ou passivos. A relação com o filho é a de
encorajamento e a responsabilidade por formar um caráter crítico, liberto das
convenções sociais e morais.
Dessas acepções, podemos ressaltar que, de acordo com Ceccantini(2000, p.
365), a família, como núcleo temático particular é o termômetro do grau de liberdade ou
de atrelamento à Pedagogia. Nesse sentido, a família na obra tem ampla representação, e
quando ele é criticado revela a sua fragilidade constitutiva.
Já a escola, tem referência muito superficial e eventual na narrativa. Nos poucos
momentos em que o narrador faz referência à escola é para dizer que o que se ensinava
lá era alienando e retrógrado: ―Talvez a maioria das pessoas não quisesse saber que
Tally havia aprendido tudo sobre os Enferrujados e a história antiga da cidade. Na
escola, nunca se falava de pessoas que viviam fora da cidade, no presente.‖
(WESTERFELD, 2016, p. 118). As ruínas de Ferrugem eram visitadas nas excursões
escolares de forma superficial: ―os professores sempre retratavam os Enferrujados
como estúpidos. Era quase impossível acreditar que as pessoas vivessem daquele jeito,
queimando árvores paradesocupar a terra[...]‖ (WESTERFELD, 2016, p. 65).
Assim, entendemos que a escola desempenha papel secundário na narrativa,
como na maioria das narrativas juvenis. A caracterização é indireta e generalizante, mas
o que predomina é o aspecto negativo, uma vez que, sendo a escola um importante
espaço de socialização, até os onze anos Tally não fizera nenhum amigo.
Vale ressaltar que a narrativa estudada divide-se em três partes, numeradas e
tituladas: Parte I – Tornando-se perfeita; Parte II – A Fumaça; Parte III – No fogo. É
uma narrativa que não rompe com a linearidade e não apresenta vigorosa causalidade
psicológica. Os capítulos apresentam em ordem cronológica e em sequência lógico
casual os principais fatos vividos por Tally, Shay e David.
O final de Feios (2016) pode ser considerado um final aberto, porque provoca o
leitor e também porque a narrativa se irrompe no momento preciso em que a
protagonista se apresenta para a realização da cirurgia que a deixará perfeita.Cabe ao
leitor especular sobre o destino das personagens, visto que é deixado um significativo
grau de indefinição quanto aos rumos que serão tomados a partir da realização da
cirurgia. É sem dúvida alguma um final elaborado, inteligente que convida o leitor à
ressignificação. Embora não deixe de constituir uma espécie de happy end, consegue se

158
configurar como uma boa solução narrativa ao concentrar-se prioritariamente no destino
de Tally, Shay e David e principalmente nos rumos que tomariam a sociedade depois de
testado e comprovado o antídoto, criado por Maddy, contra a cirurgia. O final da
narrativa abre caminhos alternativos para os protagonistas.
Em se tratando do narrador, podemos considerar que é do tipo onisciente,
situado fora da história, com irrestrito acesso tanto aos aspectos exteriores da vida das
personagens, quanto à sua interioridade, revelando mesmo domínio sobre seu passado.
A voz narradora cede espaço aos diálogos entre as personagens, possibilitando o
discurso direto. Trata-se de um narrador que se empenha em narrar os fatos com certa
objetividade e distanciamento, com especial gosto para a descrição dos muitos cenários
em que ocorre a ação. Trata-se, todavia, de um narrador intruso que, por vezes, emite
opiniões, realiza julgamentos e, em alguns momentos, se torna cúmplice da
protagonista. Essa aproximação, esporádica, é tão intensa que se pode observar
fragmentos de discurso indireto livre. Ou seja, a voz narradora se deixa envolver à voz
de algumas personagens, mas essa presença é muito tímida. O que não é tímida é a
presença dos diálogos que são muito fortes na narrativa.
A circunstância de ter sido escrito em terceira pessoa acrescentou muito ao livro,
pois trouxe dinamismo, aliado à excelente construção de fatos e desenvolvimento das
ideias propostas pelo autor. A narrativa se configura de maneira despretensiosa,
detalhada e dinâmica. O leitor conhece um mundo diferente e de extrema perfeição,
onde ser normal é feio e o mais terrível e assustador é que esse mundo, aparentemente
improvável, muito se parecesse com o nosso.
A focalização ou ponto de vista que o narrador de Feios de Scott Westerfeld
(2016) assume é o da protagonista da narrativa, o que permite aproximar o leitor com a
obra e com a protagonista, mesmo sendo narrada em terceira pessoa.
Por fim, é preciso dizer que em nenhum nível analisado prevaleceu a orientação
pedagogizante, contrariamente a essa proposição, em Feios de Scott Westerfeld (2016),
o contato com a língua foi provocador, crítico, original e prazeroso. Segundo Proust
(2001), em Sobre a leitura, os livros oferecem a experiência do humano e a literatura
existe ―não para trazer respostas, e sim para deixar perguntas‖. É exatamente isso o que
ocorre no livro analisado.

O universo feminino em Feios


É importante ressaltar quemuito se tem debatido sobre o queé ser mulher e o seu
papel na sociedade. Com base nisso, muitos são os discursos arraigados em normativas
pela nossa sociedade ao longo de nossa história e que são reproduzidos ainda hoje ou
numa sociedade futurista retratada por Feios, cooperando para a conservação de
verdades consideradas absolutas e acabadas. Vale ressaltar que a literatura também é
difusora de alguns discursos que reforçamcertos clichês e preconceitos de gênero. A
Literatura expressa os dilemas, sentimentos e muitas vezes a realidade do homem, de
maneira a explorar o raciocínio e o imaginário do leitor, transportando-o para o lugar
dooutro. Por isso, reconhecemos a forte ligação entre literatura e sociedade.
Na narrativa Feios, observamos que as diferentes configurações de mulher são
pré-definidas por uma sociedade futurista, que, semelhante a passada e a presente, dita
os comportamentos femininos por meio de repressões, códigos e tabus. Ao mesmo
tempo, na narrativa, há mulheres que assumem suas próprias vontades. Tally, heroína

159
distópica, busca independência nas suas decisões, rompendo com as normas sociais
vigentese é considerada transgressora.
De modo geral, mesmo com os avanços, o papel das mulheres ainda hoje é
limitado. As grandes instituições que movem o mundo como a religião, apolítica, e o
Estado não permitem a ruptura no padrão social existente, predominantementepautado
sobre a ordem patriarcal. Por se tratar de um romance distópico e, portanto, futurista,
Feios, mostra um universo em que homem e mulher quase ocupam a mesma posição.
Sem dúvida alguma, ainda se deslumbra, mesmo que mais sutil, do que no passado e na
modernidade, uma sociedade androcêntrica.
Em Feios, personagens femininas delineiam os estereótipos da mulher da
sociedade futurista. Shay desconstrói o conceito de perfeição física como ideário de
felicidade, rompendo, assim, com os valores vigentes. Shay é forte, não se deixa alienar.
No entanto, a reprodução do papel de subserviência da mulher é, na obra, atribuída à
família. A mãe de Tally, Ellie não se sensibiliza com a promessa que a filha faz a Shay e
a incentiva a colaborar com as Circunstâncias Especiais.
Se na narrativatemospersonagens femininas que colaboram com a manutenção
do status quo, Ellie, por exemplo, temos também as mulheres consideradas
transgressoras, representadas pelas personagens Tally, Shay e Maddy, mãe de David.
Na narrativa analisada, é dada às personagens femininas maior destaque.
Tantoprotagonista quanto antagonista, Drª Cable, são mulheres.
Podemos compreender, com base em Arán (2003), que se no passado, com
menos intensidade a partir da segunda metade do século XX, a ênfase era dada ao papel
reprodutivo das mulheres, fundamentando a sua permanência no ambiente privado,
assim como a concepção naturalizada da inferioridade feminina, na narrativa futurista
Feios, há um deslocamento do feminino, malogrando o projeto de universalizar o
modelo de dominação masculina.
O deslocamento feminino iniciado no século passado e intensificado no século
XXI toma contornos mais definidos na distopia Feios. Muitos agentes concorreram e
outros concorrerão. Desde a crise da família burguesa ao acesso da mulher tanto ao
mercado de trabalho quanto à sexualidade com fins não necessariamente reprodutivos.
Nesse sentido, na narrativa futurista, constatamos quea distribuição organizada dos
poderes entre os sexos foi possível.
No entanto, a sociedade futurista descrita não existe na realidade, nem na
verossimilhança, apesar de, no futuro, poder existir. Na realidade, o que existe, segundo
Bordieu (2009), apesar das grandes conquistas, é uma sociedade marcada fortemente
pelo preconceito e determinada pelo poder masculino. Bordieu (2009) considera que,
apesar do acesso à educação, as mulheres ainda são minoria nos cargos de autoridade,
nas área exatas e destinadas à ciência, assim como recebem menores salários nos cargos
que ocupam.

Considerações finais
Scott Westerfeldem Feios (2016) desenvolve uma narrativa rápida, mas nem por
isso empolgante. Fechei várias vezes o livro e me empolguei depois de ler quase 200
páginas. Ao mesmo tempo em que tudo acontecia, nada acontecia. Considero a ideia de
Scott inovadora, às vezes a narrativa era monótona, arrastada, mas quando era para ser
eletrizante, era eletrizante e muito. A leitura é muito fluida, tem seus momentos de pico,
onde não conseguimos parar, e seus momentos de lentidão, quando as coisas demoram a

160
passar ou acontecer. Pouco a pouco, a leitura vai se tornado fluida e instigante,
principalmente pelo caráter crítico, chegando, inclusive, à apelação a questões
ambientais e aos recursos naturais.
Assim, entendemos que o deslocamento do lugar ocupado pelo sexo feminino se
dá na realidade e, por sua representação artística, na literatura. Desde as características
físicas femininas observadas na literatura informativa; a ênfase à beleza e endeusamento
nos períodos que se seguem; a hostilidade e sátira à mulher nos poemas satíricos de
Gregório de Matos;a racionalidade e endeusamento feminino do arcadismo; a leitora de
folhetins que participada vida social, frequenta os salões, bailes e teatros do
Romantismo; as que buscam melhores condições de vida no Realismo, cometendo
deslize e não demostrando fragilidade; culminando com a participação ativa, no
Modernismo, de movimentos que protagonizam a liberdade.
Desde o Naturalismo, surgem questionamentos sobre o prazer da mulher, sua
evolução e mudanças no modo de agir e vestir. No entanto, na maioria das obras, as
mulheres não assumem papel deprotagonistas. No Modernismo, as mulheres
lutamdestemidamente, desprovidas de pudor e de censura. Buscam liberdadeintelectual,
física e moral.
Se o Romantismo apresenta-se para a mulher, como início do processo de efetiva
emancipação, é somente no Modernismo que as personagens femininas aparecem mais
próximas da condição real da mulher, de suahumanidade.
Mas é somente na narrativa distópicaque a literatura mostra uma superação
dadependência da mulher em relação à família, ao trabalho e às relações interpessoais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Feministas, Florianópolis, 11(2): 360, jul-dez/2003. p. 399-422.
BORDIEU, Pierre. A dominação masculina. 6 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.
CECCANTINI, João Luís Cardoso Tápias. Uma estética da Formação: vinte anos de
Literatura juvenil brasileira premiada (1978-1997). 2000. Tese (Doutorado em Letras).
Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista. Assis.
______. Uma estética da Formação: vinte anos de Literatura juvenil brasileira premiada
(1978-1997). 2000. Tese (Doutorado em Letras). Faculdade de Ciências e Letras de
Assis – Universidade Estadual Paulista. Anexos. Assis, 2000.
FROMM, Erich. Posfácio (1961). In: 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
JACOBY, Russell. Imagem imperfeita: pensamento utópico para uma época
antiutópica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
SILVA, Franklin Leopoldo. Utopia e distopia. Disponível em:
http://casadosaber.com.br/tpix/casadosaber/media/mediauploader//u/t/utopia%20e%20d
istopia.pdf. Acesso em: 10 out. 2016.
WESTERFELD, Scott. Feios. Trad. Rodrigo Chia. 8 ed. Rio de Janeiro: Galera Record,
2016.

161
Anaïs Nin e o despertar erótico de suas personagens
transgressoras
(Anaïs Nin and the erotic discovery of her transgressive characters)

Renata da Silva Leite1, Eliana Alda De Freitas Calado2


1-2
Universidade de Pernambuco, Campus Mata Norte (UPE)

renataleitte6@gmail.com; elianacaladoupe@gmail.com

Abstract: The eroticism, inherent at human condition, arose side by side with the society and
began to delineate it. Takes place here not only these obvious categories of Eros' study, but
concentrating in the temporal cut of the 20th century, we intend to explore eroticism in female
imagination at this time and its symbols. We will take as study‘s object the work released in
1969, Delta of Venus, by Anaïs Nin, that has as setting a decayed Europe in the 1940‘s end.
From philosophical concepts by Bataille and Lúcia Castelo Branco we will trace a parallel
between the construction and evolution of eroticism at this work, analyzing yet the erotic
writing by Anaïs Nin and its characteristics, besides of the profile and presence of
transgressors female personages at context and temporal cut determined.
Keywords: Anais Nïn, Delta of Venus, Literature, Erotism, Transgression.

Resumo: O erotismo, inerente a condição humana, surgiu em conjunto com a sociedade e


passou a delineá-la. Será considerado aqui não apenas as categorias óbvias de estudo do Eros
mas, limitando-nos ao recorte temporal do século XX, a proposta é explorar o Erotismo
presente no imaginário feminino do período. Tomaremos como objeto de estudo a obra
publicada em 1969, Delta de Vênus, da autora Anaïs Nin, a qual tem como cenário uma
decadente Europa no final da década de 1940. A partir dos conceitos filosóficos de Bataille e
Lúcia Castelo Branco será traçado um paralelo entre a construção e evolução do erotismo na
referida obra e será analisada, ainda, a escrita erótica da autora Anaïs Nin e suas
características, além do perfil e a presença de suas personagens femininas e transgressoras no
contexto e recorte temporal determinados.
Palavras-chave: Anaïs Nin; Delta de Venus; Literatura; Erotismo; Transgressão.

Introdução
Ao trabalharmos com a análise e sugestão da existência de uma escrita feminina,
imediatamente se faz notar uma dualidade de gênero no campo da escrita literária, e é
exatamente isso que a Anaïs Nin vem nos mostrar: além de conquistar um espaço
reservado aos homens, a autora elenca características que eram tidas, por ela mesma,
como puramente femininas dentro da literatura erótica feita por escritoras mulheres do
século XX.
Anaïs Nin foi pioneira no campo da literatura erótica dos anos 1900 e, por
conseguinte, um ser transgressor. Vivenciou o despertar erótico, trabalhado por Bataille
e Lucia Castelo Branco e explicitou o erotismo em suas obras. Percebemos que a arte
era usada por essa autora como instrumento de expressão de um discurso transgressor e
subversivo, no século XX, pois havia uma hegemonia de homens no campo da literatura
erótica e esse ramo literário ainda era inexplorado pelas mulheres do século XX.
Dessa forma, investigar o perfil transgressor das personagens criadas por Anaïs
Nin em um período no qual o tema ainda era pouco explorado e cercado de pudores é de

162
fundamental importância para analisar o espaço de voz conquistado pelas mulheres.
Além disso, através dessa investigação, podemos compreender o processo de escrita,
das mulheres sobre elas mesmas, ou seja, nos possibilita analisar a quebra na tradição de
escrita masculina para abordar não apenas sexualidade e erotismo, mas também para
construir personagens femininas, generalizadas e silenciadas, não apenas na literatura,
mas em suas realidades.
Este trabalho toma como objetivo contribuir para as discussões acerca dos
espaços ocupados e conquistados pela figura feminina, se restringindo ao campo da
literatura erótica e à temática da sexualidade, temas pouco explorado pelas mulheres.
Busca chamar atenção, ainda, para o caráter transgressor que a literatura pode assumir
enquanto arte, por meio das diferentes possibilidades de discursos construídos.

Anais Nin e seu tempo

Figura 1. Anaïs Nin

Angela Anaïs Juana Antolina Rosa Edelmira Nin Y Culmell nasceu em 21 de


fevereiro de 1903 em Neuilly, na França, filha de Joaquim Nin e Rosa Culmell, pai
cubano e mãe francesa. A filiação e o contexto familiar, em geral, contribuíram
fortemente na produção literária da autora, que ficou famosa através da produção e,
posteriormente, publicação de seus diários pessoais. O primeiro diário começou a ser
escrito por volta dos onze anos de idade e a ideia inicial era que fosse uma extensa carta
dedicada a seu pai, Joaquin, relatando a viagem à América, como deixa explicado em
entrevista concedida ao Le Sel de La Semaine1.
A redação de seus diários durou até sua vida adulta, contendo relatos de sua vida
pessoal, de casada, sexual e ainda sendo capaz de compor um retrato generalizado do
perfil da mulher ocidental, assim como ficaram conhecidos. Suas obras deram origem a
uma série de volumes, tornando-se importantes documentos que atenderam a literatura,
a psicanálise e a antropologia.
Anaïs Nin deixou sua marca na escrita feminina, abordando e relacionando de
maneira bastante peculiar e irreverente temas como amor, desejo, sexo e erotismo. Sua
linguagem simples e seus personagens capazes de cativar o leitor, suas histórias
inventadas misturadas a sua própria vida e suas polêmicas. Precursora de ideais
libertários a respeito da mulher em relação ao sexo, e referência de feminino, Anaïs Nin
passou o final de sua vida nos Estados Unidos, atuou em palestras e deixou além de seus

1
Sal da Semana, programa de entrevisas transmitido pela Rádio-Canadá, entre 1965 e 1970, e que possuía
como facilitador Fernand Seguin.

163
diários uma série de obras literárias. A autora lutou contra um câncer e morreu em 14 de
Janeiro de 1977, em Los Angeles, EUA.

Delta de Vênus – histórias etóticas – L&PM Pocket

Figura 2. Obra trabalhada Delta de Vênus

Com o objetivo de analisar a escrita erótica proposta por Anaïs Nin tomaremos
por base sua obra publicada em 1969, Delta de Vênus, a qual hoje faz parte dos
clássicos da literatura erótica. Composta por quinze contos eróticos, Delta de Vênus
toma como cenário uma decadente Europa aristocrática por volta do final da década de
1940. No prefácio de sua obra, composta com auxilio de seus diários, Anaïs Nin explica
que o livro surgiu incentivado por um Colecionador de livros que pagava um dólar por
páginas escritas de contos eróticos. Tal processo de escrita remunerada teve início com
Henry Miller, também autor de contos eróticos com uma marcante característica
pornografica, amigo e amante da autora. Com fins meramente lucrativos, Anaïs Nin
passou a escrever também, como relata no terceiro volume de seu diário, o que depois
se tornou um desafio a fim de lançar uma linha de literatura erótica de qualidade, ao seu
modo.
Seus contos iniciais eram uma mistura de histórias que ouvia e outras que
inventava, por fim davam origem a uma espécie de diário feminino. As queixas do
colecionador eram a respeito da poesia e qualquer outra coisa que não fosse o sexo, puro
e explícito, empregados na narrativa. Dessa maneira, a autora conta, ainda, que vários
autores de seu tempo embarcaram na produção de diários eróticos como forma de se
manter financeiramente. Nesse mesmo período, juntamente com Harvey Breit, Robert
Duncan, George Barker e Caresse Crosby empenharam-se em abastecer o Colecionador
da melhor escrita erótica que poderiam oferecer. Anais Nin brinca: ―Eu era como a
cafetina de uma presunçosa casa de prostituição literária, de onde a vulgaridade estava
excluída‖. (NIN, 2016).
Anos mais tarde, a autora revela em um de seus escritos seu receio em ter
perdido ou comprometido de alguma forma seu "eu feminino" já que durante muito
tempo teve como apoio a erótica literária masculina e também a pressão de
seu anônimo cliente masculino, o Colecionador, o qual ditava as regras para a sua
escrita. Porém, finaliza o pós-escrito de Delta de Vênus afirmando que sua voz não foi

164
totalmente suprimida: "em inúmeras passagens usei intuitivamente uma linguagem de
mulher, vendo a experiência sexual do ponto de vista da mulher". (NIN, 1976).
Anais Nin acreditava e defendia a existência de um tipo de escrita
espicíficamente feminino. Esse perfil de escrita seria caracterizado pela capacidade, que
apenas a mulher possuía, em unir o sexo a sentimentos mais profundo e especícos,
dando um tom poético e puramente feminino à escrita. A autora afirmava que as
mulheres possuíam como característica de uma escrita feminina a sensibilidade em não
separar o ―sexo do sentimento, do amor pelo homem por inteiro‖ (NIN 1979), sendo
essa justamente a diferença marcante quando comparamos com a escrita erótica
masculina do mesmo recorte temporal, caracterizada por uma produção erótica massiva
e remunerada, porém recheada de um conteúdo pornográfico de linguagem mais simples
e direcionado ao público masculino.
Os escritos ambíguos de Anaïs Nin e a sua tendência a fundir sexo, emoção e
amor não apenas caracterizavam essa escrita feminina, mas revelavam ainda os esforços
de uma mulher em adentrar um espaço, tido antes, como puramente masculino.

Análise literária – erotismo e conceitos


Ao pé da letra, podemos encontrar diferentes significados relacionados ao termo
erotismo nos dicionários contemporâneos, porém facilmente relacionados ao desejo e ao
amor sensual. Etimologicamente, o termo faz aluzão a Eros, o deus do amor de acordo
com a mitologia grega e uma espécie de Cupido para os romanos. Ora relacionado ao
amor e a paixão, ora ligado a simples união da espécie, acreditava-se que o deus Eros é
responsável pela manutenção da ordem cósmica por meio do ―impulso erótico‖2, o que
nos remete a uma relação mais carnal podendo envolver o desejo e o sexo.
De tal maneira, podemos tomar o erotismo como inerente a condição humana.
Surguiu juntamente com o homem e se consolidou a partir da organização desse mesmo
em sociedades, passando a delineá-las, tomando por base a linguagem do Eros. Ora o
deus do amor, ora o próprio desejo, o erotismo é passível das mais diversas
significações as quais podem variar de acordo com a evolução do termo ao longo da
história e o contexto inserido. Aqui iremos nos ater ao Eros voltado à manifestação do
desejo sexual e amoroso, para assim entendermos e analisarmos não apenas a literatura
mas também as personagens da autora Anaïs Nin, em Delta de Vênus.
A partir dos conceitos filosóficos de Bataille (1987) e Lúcia Castelo Branco
(2004) será traçado um paralelo entre a construção e evolução do erotismo na referida
obra e em sua adaptação cinematográfica, que tem por títiulo original Delta of Venus
(1995), dirigida pelo diretor americano Zalman King, a qual será analisada em conjunto
a obra literária destacando possíveis relações, semelhanças e comparações, como
veremos adiante. Será analisada ainda a escrita erótica feminina da autora Anaïs Nin e
suas características, além do perfil e a presença de suas personagens femininas no
contexto e recorte temporal determinados.
Nesse contexto, Lúcia Castelo Branco (2004) nos apresenta a ―flexibilidade do
Eros‖, ligada a sua imprecisão de significados, ao seu papel de Deus onipresente e de
sua influência incalculável diante dos seus mais variados disfarces os quais pode
assumir nos campos sociais. Ou seja, as performaces do Eros, diretamente ligadas a sua

2
―Força visceral de perpetuação do mundo.‖ (ZUCCHI, 2014).

165
influência e alcance. Dentre as atividades humanas que essa autora caracteriza como
circunscritas aos domínios do Eros, estão o misticismo e a arte, sendo esta última uma
poderosa arma de expressão da "nostalgia de completude"3, assim chamada por Bataille,
e uma forte ameaça à ordem social pré-estabelecida. ―A expressão artística se realiza em
função de um mesmo impulso para a totalidade do ser, para sua permanência além de
um instante fugaz e para sua união com o universo‖. (CASTELO BRANCO, 2004).
Dessa maneira, iremos entender como erótica a relação estabelecida entre a obra
e o espectador – aqui, Anaïs Nin e seus leitores – de acordo com Lúcia Castelo Branco,
o primeiro contato é sempre sensual. Mas é de fundamental importância entendermos
ainda a relação entre Arte e Eros de maneira mais abrangente. Há muito, temos a arte
com um poderoso instrumento de subversão, que ao se propor retratar o Eros logo
sustentou ―a realização do prazer pelo prazer, do gozo estético, ou do gozo erótico,
como fins em si‖ distanciando-se das manifestações eróticas que tinham como objetivo
final a reprodução, sendo a partir desse momento considerada, pela ordem estabelecida,
uma perversão.
Ainda segundo Castelo Branco, atrelado à arte subversiva ―outro elemento que
parece circunscrever os domínios do Eros e ameaçar veladamente a ordem social‖ é o
feminino. A autora nos leva até O Banquete, de Platão, onde, para Aristófanes, a mulher
é a que mais se aproxima, depois dos Andróginos, ao ideal de completude, que melhor
trabalharemos adiante. ―A mulher carrega, portanto, a capacidade natural de
experienciar a totalidade e a fusão com o universo e de viver temporariamente os
desígnios de Eros‖. Não por acaso, desde o estabelecimento das primeiras sociedades
tidas como patriarcais, surgiram inúmeras regras a fim de controlar as figuras femininas
―que, silenciosas e passivas, ameaçam a ordenação e a assepsia da humanidade,
sobretudo durante a menstruação e a gravidez, estados considerados impuros e
impróprios, que as remetem naturalmente à conexão erótica‖. (CASTELO BRANCO,
2004).
Nesse contexto de subversão da ordem pré-estabelecida, Anaïs Nin aparece não
apenas relacionada à arte mas principalmente como Mulher - sua principal arma – a
autora se encaixa no quadro dos autores eróticos contemporâneos, conhecidos entre
outros escritores da mesma época como os depravados do entre guerras. Contudo, Nin
vai além, se destacando por sua audácia e ousadia não apenas em adentrar o mundo da
literatura erótica, até então restrito aos homens, com sua escrita única e marcadamente
feminina, mas também por seu histórico de vida e sua intensidade, talvez o que a
tornava tão autêntica. Entregue aos assuntos que uniam o amor, o desejo e a
sexualidade, sua personalidade se perdia até mesmo nos desígnios da psicanalise, com a
qual manteve uma relação estreita, chegando a se relacionar amorosamente com seus
psicanalistas e também se interessar pelos estudos de Freud.
Ao traçarmos um paralelo entre a personalidade da autora – a qual se deixou
revelar por meio de seus diários – e a personalidade que a mesma construía e atribuía à
suas personagens femininas em Delta de Vênus é possível notar traços semelhantes.
Sempre a figura da mulher independente, ousada e corajosa assim como Anaïs Nin. É
bastante evidente, ainda, a ânsia pela liberdade ou um maior conhecimento sexual de si
mesma, umas em maior outras em menor intensidade, buscando através desse auto
conhecimento romper limites e encontrar o que a autora chamava "delta de vênus",

3
Ou ―nostalgia da continuidade‖, termo usado por Bataille (1987) para problematizar a necessidade do
ser em completa-se em outro.

166
expressão que intitula a obra e que se refere ao lugar secreto que existe dentro de cada
mulher e de onde nasceriam as fantasias, o que fica bastante evidente na obra
cinematográfica dirigida por Zalman King.
Muitas vezes, junto ao desejo de autoconhecimento está o desejo de completar-
se. Nesse ponto, a ideia de união, ou melhor, completude está presente ou ligada de
alguma maneira às tentativas de definir o Eros. Segundo Castelo Branco, desde o mito
grego de Eros, o mesmo reapareceu entre poetas, escritores, místicos e também
sexólogos. ―A ideia de união não se restringe aqui apenas à noção corriqueira de união
sexual ou amorosa, que se efetua entre dois seres, mas se estende à ideia de conexão,
implícita na palavra religare e que atinge outras esferas: a conexão com a origem da
vida, a conexão com o cosmo, que produziriam sensações fugazes, mas intensa, de
completude e de totalidade‖ (CASTELO BRANCO, 2004). No caso da proposta
literária de Anaïs Nin, o erotismo aparecia sempre diretamente ligado a busca dessa
continuidade e iria culminar em algum momento no ato sexual. De acordo com Bataille,
o ato sexual não necessariamente seria erótico, pois o erotismo era próprio do ser
humano, o sexo não.
Nessa busca pela continuidade, as personagens de Delta de Vênus se lançam no
campo erótico através do viés sexual e até mesmo explícito. Analisaremos aqui a figura
de Elena, individualmente, a personagem principal do conto intitulado por seu próprio
nome e também personagem de grande destaque na obra cinematográfica. Elena foge ao
padrão sociocultural da feminilidade, assim como as demais mulheres do livro,
mediante suas peculiaridades que escapavam da submissão dos mecanismos de poder
que sustentavam a ordem dominante. Essas figuras femininas não ficam atrás de
nenhum homem, seja no âmbito social, profissional e principalmente, sexual. Porém, se
perdem em seus desejos quando encontram, geralmente, uma figura masculina, ou a
simples oportunidade de romper seus limites. Esse rompimento, poderia estar
facilmente ligado a ânsia por se desvencilhar das amarras sociais.
Ao traçarmos um minucioso perfil da personagem, podemos perceber sua
intensidade e romantismo sempre em busca do homem perfeito. Porém, nota-se também
que Elena possuía uma espécie de trava que a impedia de experimentar novas sensações,
em especial as sexuais, ainda não conhecendo suas capacidades. Ao conhecer Pierre,
Elena se entrega às emoções de maneira intensa, e a partir de então tem início o
despertar erótico da personagem – em geral o despertar erótico das personagens de
Anaïs Nin ocorrem em função de uma figura masculina. Enquanto mulher, Elena
acreditava que poderia viver apenas para o homem que amava, característica comum a
outras personagens da mesma obra, porém o que não imaginava é que ao se lançar à
novas possibilidades sexuais com Pierre, ficaria vulnerável a outros momentos de
intensa paixão - desejo por Leila e Biju, por exemplo – quanto mais ela o desejava,
também desejava outros amores.
Ao final da trama, podemos notar que Elena possui um comportamento
diferenciado, ciente de sua independência sexual e erótica partia agora para momentos
intensos com Jean e por último com Miguel – seu primeiro amor – que agora se
entendia como homossexual. A autora destaca esse desejo por seduzir um homossexual
como um "ponto de honra feminino", o desejo de testar seu poder contra fortes
adversidades. Independente e cheia de desejos, os quais não lutava mais para suprimi-
los nem questiona-los, se encontrava totalmente entregue aos tremores sexuais. "A
fêmea nela ficava fascinada. Por um segundo ela se sentia como uma puta que esperava
uma facada pelas costas por alguma infidelidade" (NIN, 2016), mas Anaïs Nin finaliza

167
lembrando-nos da liberdade da personagem, de sua própria liberdade e da liberdade de
qualquer mulher, sendo esse o ápice de seu despertar erótico.
Nesse ponto, nos cabe ainda uma analise da obra cinematográfica e da
adaptação, não apenas da obra literária, mas principalmente da personagem Elena e seu
despertar erótico.

Delta de Vênus e o cinema

Figura 3. Filme Delta de Vênus versão dublada

O Filme dirigido pelo diretor Zalman King4, tem por base o romance erótico
Delta de Vênus da autora Anaïs Nin. O filme toma como cenário uma Europa fervorosa
às vésperas da Segunda Guerra Mundial, onde em meio à conflitos políticos Elena,
jovem escritora americana e personagem principal do filme, se envolve com Lawrence,
famoso romancista francês, o qual seu papel se assemelha bastante ao de Pierre, do
livro. Paralelo ao relacionamento dos dois se desenrola também o despertar sexual de
Elena fortemente atrelado ao seu trabalho de escritora e a sua forma de buscar
inspiração para escrever. Ao explorar seus limites enfrentando novas experiências
sexuais, sensuais e eróticas Elena busca descobrir o seu ―delta de vênus‖ – o lugar
secreto que existe dentro de cada mulher de onde nasceriam as fantasias.
Ao retratar o erotismo de Anaïs Nin, Zalman foi bastante autêntico e ao mesmo
tempo fiel a autora. Apesar das poucas cenas de sexo, o diretor se empenha em detalhar
o corpo erótico, as características, o toque, o olhar, cada movimento, situação e contexto
o que nos remete muito bem a proposta erótica e marcadamente feminina da autora, a
qual fazia questão de colocar amor e romantismo com sutileza em suas descrições

4
Zalman Lefkovitz nasceu no dia 23 de maio de 1942 em Trento, Nova Jersey. Iniciou sua
carreira artística como ator, na década de 1960, tendo feito participações especiais em algumas
séries de TV. Desenvolveu projetos como ator, diretor, produtor e roteirista.
168
detalhadas. Ao diretor não escapam, ainda, o contexto político e social do período além
das peculiaridade de Elena.
Um aspecto bastante interessante é a forma que Zalman encontrou para
relacionar entre si os contos de Delta de Vênus e ainda a vida da escritora. Em seu
enredo, a personagem Elena se assemelha a Anaïs Nin, a mesma se encontra fazendo
contos eróticos para um cliente anônimo sob encomenda. Se relaciona amorosamente
com um escritor famoso, Lawrence, e a partir de então se desenvolve o seu despertar
erótico, diretamente ligado a situações sexuais, característica da autora. Nesse contexto,
no filme, Elena ao se descobrir, se auto conhecer, ao mesmo tempo que toma ciência de
sua capacidade sexual se torna personagem principal dos demais contos, pois em seu
papel de escritora, a mesma relata todos eles. E dessa maneira as histórias se
entrelaçam.

Figura 4. Cena do Filme Delta de Vênus

É válido ainda analisarmos a representação dos corpos eróticos femininos e


masculinos na adaptação da obra para o cinema. As mulheres facilmente aparecem em
nu frontal, porém de maneira sutil e romantizada. Os homens sempre despidos de costas
nas cenas de sexo, porém, ainda como característica da autora, a obtenção do prazer
como objeto do ato sexual atendia a ambos os envolvidos, quebrando aquela ideia
facilmente veiculada pela grande mídia do prazer sexual restrito ou voltado apenas a
figura masculina.

CONCLUSÕES
De acordo com a análise proposta por Bataille, uma fórmula simplista para
entendermos o Erotismo seria a aceitação ou o entendimento da vida até mesmo na
morte. E de maneira mais direta, o autor faz uma análise, ainda, da atividade sexual com
a finalidade da reprodução, a qual seria livre para todos os animais mas apenas o
homem poderia fazer desse momento um ato erótico. Esse autor nos leva a refletir,
também, a respeito da descontinuidade dos seres humanos e fundamenta o Erotismo
como uma intensa busca pela continuidade do ser, a qual se daria por meio de uma
destruição pessoal e íntima onde, por exemplo, ao final da fórmula, a parceira seria a
vítima e o parceiro o sacrificador. Dessa maneira, segundo esse autor o erotismo,
independente do tipo, teria por finalidade atingir o Ser íntimo do outro.

169
Essa busca pela continuidade é mais complexa do que pode parecer. Ainda
segundo o Bataille, ao longo dessa busca vivenciaríamos as ―condições da experiência
interior impessoal‖ onde teríamos contato com o jogo de relações entre os interditos e a
transgressão. Os interditos – resposta irracional que partiria da neurose – seriam uma
espécie de medo, ora consciente, ora inibidor da nossa consciência. O mesmo também
seria o responsável por repelir do mundo objetivo os nossos movimentos – de violência
– que responderiam aos impulsos sexuais. ―Sem o interdito, sem o primado do interdito,
o homem não teria chegado à cosnciência clara e distinta sobre a qual a ciência é
fundada‖ (BATAILLE, 1987). Esse movimento é responsável por manter a ordem
conflituosa gerada pelos movimentos de violência da consciência humana.
Nesse mesmo plano, surge a transgressão. ―A essência do erotismo é, assim, ser
a transgressão por excelência, dado que ele é resultado da atividade sexual humana
enquanto prazer e, ao mesmo tempo, consciência do interdito.‖. De tal forma, o interdito
seria basicamente a existência imaginada do proíbido, e a transgressão, o desejo de
atingi-lo, porém Bataille aponta, ainda, uma relação estreita desse jogo com a religião, a
qual trata de estabelecer um forte elo entre desejo – medo – prazer – angustia, assim
sendo, ―se observarmos o interdito, se a ele nos submetemos, não temos mais
consciência dele. Mas sentimos no momento da transgressão a angústia sem a qual o
interdito não existiria: é a experiência do pecado. A experiência leva à transgressão
realizada, à transgressão bem sucedida que, sustentando o interdito, sustenta-o para dele
tirar prazer.‖ (BATAILLE, 1987)
Ao voltarmos para o contexto de desconstrução do Ser isolado, passando pela
relação interdito/transgreção e traçarmos um paralelo com a literatura erótica de Anïs
Nin nos propomos a analisar e entender o despertar erótico de suas personagens, já
citado inicialmente, e que entenderemos aqui como esse processo de desconstrução do
ser pessoal e descontinuo, em busca de completude em outrem. As personagens criadas
por Anaïs Nin, em sua totalidade femininas, ao desbravarem os caminhos do erotismo
por meio do conhecimento de seus desejos e prazeres propõem uma quebra de padrões e
a possibilidade da criação de novos discursos acerca da erotização da figura feminina,
não apenas como passiva, mas agora como sujeito atuante, dona do seu corpo e suas
vontades.
Temos, então, uma série de figuras transgressoras criadas pela autora, que apesar
de passarem pelos conflitos íntimos dos interditos – limitar ou não o desejo, eis a
questão? – se apresentam mais propenças à liberdade e aos conhecimeto de seus desejos
e cada vez mais distantes da preocupação com o pecado, por exemplo, fazendo alusão a
relação estabelecida por Bataille entre a transgressão e o aspecto religioso. Não
podemos esquecer que essas personagens se aproximam bastante da personalidade da
própria autora, temos Anaïs Nin como pioneira não apenas na literatura erótica feminina
do século XIX, mas também na sua escolha de vivenciar o erotismo e essas
transgressões, não apenas em seus escritos, mas principalmente em suavida, em sua arte
erótica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
TEXTOS BASE
BATAILLE, G. O erotismo. Tradução de Antonio Carlos Viana. Porto Alegre: L&PM,
1987.

170
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REFERÊNCIAS AUDIOVISUAIS
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2016. Disponibilizado pelo L&PM Editores.
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http://www.lpm.com.br/site/default.asp?TroncoID=805134&SecaoID=948848&Subsec
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Imagem 2. Disponível em: L&PM.
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http://manugitados.blogspot.com.br/2014/10/delta-de-venus-sexo-e-poesia.html. Acesso
em: 13 de outubro de 2016.

171
A representação do gênero feminino no romance O
casamento da minha mãe (2005), de Alice Vieira
(The representation of female gender in romance The wedding of my mother
(2005), by Alice Vieira)

Jucimar Lopes1
1
Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS)

jucimarlopes@hotmail.com

Abstract: The purpose of this article is to propose a reflection on the construction of feminine
identity in Alice 's marriage of my mother (2005). The discussion and debate about gender
issues have been constant in the contemporary reality, where some social movements that
question the stereotype of women, according to the patriarchal precepts, have gained visibility.
Likewise, in the children's and youth literature the transition from social values to the female
gender can be observed in some works, which, although recent, have become classic. From
these assumptions, an analysis of the narrative configuration of the novel in question will be
elaborated to verify how the female characters are characterized and the role played in the plot
in order to represent feminine models for the young readers.
Keywords: Female gender; Children's literature; Alice Vieira.

Resumo: O objetivo deste artigo é propor uma reflexão da construção da identidade feminina
em O casamento de minha mãe (2005), de Alice Vieira. A discussão e o debate acerca de
temas relacionados ao gênero têm sido constantes na realidade contemporânea, em que alguns
movimentos sociais que questionam o estereótipo de mulher, segundo os preceitos patriarcais,
têm conseguido visibilidade. Do mesmo modo, na literatura infanto-juvenil pode ser
observada a transição de valores sociais em relação ao gênero feminino em algumas obras, que
embora recentes, tornaram-se clássicas. A partir desses pressupostos, será elaborada uma
análise da configuração narrativa do romance em questão para verificar como as personagens
mulheres são caracterizadas e o papel desempenhado no enredo a fim de representarem
modelos femininos para os jovens leitores.
Palavras-chave: Gênero feminino; Literatura infanto-juvenil; Alice Vieira.

Bildungsroman: breve retomada histórica


Nas últimas décadas, em termos gerais, o conceito teórico de bildungsroman tem
disso usado nos romances para representar o aperfeiçoamento individual, a construção
da identidade ou a formação humana no universo literário. Nessa perspectiva, uma
personagem desajustada é apresentada ao leitor no início da narrativa, passa por um
processo de amadurecimento pessoal e no desfecho, atinge o grau de aperfeiçoamento
que lhe faltava.
No entanto, o conceito de bildungsroman foi utilizado pela primeira vez num
cenário específico e com fins igualmente singulares. Segundo Maas (2000), a origem
desse gênero romanesco está vinculada ao

[...] esforço pela atribuição de um caráter nacional à literatura de expressão alemã.


Trata-se de uma forma literária de cunho eminentemente realista, com raízes fortemente
vincadas nas circunstancias históricas, culturais e ideológicas dos últimos trinta anos do
século XVIII europeu (p. 13).

172
O conceito de bildungsroman tem sua origem no cenário alemão dos últimos
anos do século XVIII. Trata-se de um gênero romanesco imbricado das questões
ideológicas presentes nesse contexto específico e, desse modo, representa no plano
literário a insatisfação presente naquela realidade.
Ressalta-se o fato de que o romance enquanto arte literária também germina
nesse momento, ―A formação do jovem de família burguesa, seu desejo de
aperfeiçoamento como indivíduo, mas também como classe, coincidem historicamente
com a cidadania do gênero romance‖ (MAAS, 2000, p. 13).
À parte o devido aprofundamento das circunstâncias políticas e ideológicas que
marcaram o Romantismo enquanto expressão literária e as características da obra
romântica, o bildungsroman é contemporâneo ao fortalecimento do romance burguês.
No plano literário, ambos representavam os valores e os ideais da classe burguesa.
Segundo Maas (2000), o termo bildungsroman foi mencionado pela primeira vez
pelo professor de Filologia Clássica Karl Morgenstern, em 1810, e atingiu um público
restrito. Apenas na segunda metade do século XIX 1 o termo é retomado pelo filósofo
Wilhelm Dilthey em suas obras Das LebenScbleiermachers [A vida de Schleiermacher]
que o impulsiona a uma circulação maior no âmbito acadêmico. Nessa obra, Dilthey
articula o conceito de bildungsroman ao romance Os anos de aprendizado de Wilhelm
Meister(1795-1796), de Goethe.

Dilthey relaciona ainda o romance de Goethe ao ideal de aperfeiçoamento humano. Tal


articulação, construída sobre as bases idealistas do espírito de época e do
entrelaçamento entre vida e obra, tornou-se peça chave para a tradição crítica do
Bildungsroman, influenciando as abordagens e definições que se seguiram. (MAAS,
2000, p. 14)

Conforme foi mencionado, esse gênero de romance torna-se a representação, no


plano literário, da busca pelo aperfeiçoamento atrelado a educação e formação das
classes sociais em conflito da Alemanha no final do século XVIII.
A configuração da sociedade alemã nesse momento histórico obedecia a uma
estruturada rigidamente definida. Desse modo, a burguesia e a aristocracia alemãs eram
duas classes sociais com direitos desiguais, embora partilhassem o mesmo espaço.
Devido a essa organização social, os indivíduos burgueses só poderiam
desenvolver um rol de ações em detrimento de outras, que eram específicas da
aristocracia. No entanto, o fortalecimento da burguesia, no âmbito econômico,
contribuiu para dar início a uma insatisfação, caracterizada pela aspiração a mais
direitos.
Em termos gerais, o romance Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister(1795-
1796), de Goethe, abordou essa tensa questão que marcou o final do século XVIII na
Alemanha. Nessa perspectiva,

Renato Janine Ribeiro (1994) considerou Os anos de aprendizado de Wilhelm


Meister(1795-1796) em si mesmo uma obra constitutiva do mundo burguês.
Certamente, encontram-se no romance de Goethe motivos temáticos e estruturais
peculiares a uma trajetória de desenvolvimento da personalidade, em sintonia com uma
época em que a transformação do homem pela cultura passou a ser tônica dominante. A
educação e a formação do jovem burguês passaram a ser, nos inícios da época moderna,

1
Especificamente em 1870.

173
a ferramenta para a transição de uma cultura do mérito herdado para a cultura do mérito
pessoal adquirido (MAAS, 2000, p. 14-15).

O romance goethiano que deu origem aos princípios do bildungsroman abordou


as problemáticas sociais por que passava a sociedade alemã da época, retratando os
anseios da sociedade burguesa. Uma classesocial emergente, que aspirava um lugar na
estrutura hegemônica aristocrata.

O romance de Goethe sustenta-se por sobre um programa narrativo que, grosso modo,
pode ser apresentado como a trajetória de um jovem filho de família burguesa em busca
dos próprios ideais, em busca do livre desenvolvimento de suas aptidões e daquilo que
considera suas tendências, ou sua vocação (p. 34).

O protagonista de Goethe, Wilhelm Meister, é caracterizado como um jovem


burguês que se vale de vários estratagemas para superar as expectativas esperadas para
indivíduos que pertencem a sua classe social. Essa superação vai além do que pode ser
conquistado em termos materiais, ou seja, diz respeito ao desenvolvimento pessoal.
Desse modo, a busca do protagonista está relacionada a um aperfeiçoamento ligado a
subjetividade humana.
A origem do termo bildungsroman está associado a essa concepção, pois

A definição inaugural do Bildungsroman por Morgenstern entende sob o termo aquela


forma de romance que "representa a formação do protagonista em seu início e trajetória
até alcançar um determinado grau de perfectibilidade". Uma tal representação deverá
promover também "a formação do leitor, de uma maneira mais ampla do que qualquer
outro tipo de romance" (MAAS, 2000, p. 19)

Conforme citado, o bildungsroman surgiu como representação, no plano


literário, de toda a ânsia de uma classe social, que iniciava o questionamento do status
quo. Para tanto, o protagonista vivencia no universo literário um aperfeiçoamento
pessoal ao longo da narrativa. O leitor, por sua vez, passa por um processo semelhante
no ato da leitura, conforme discutido no primeiro capítulo deste trabalho.

Atualizações do bildungsroman
Afora as condições específicas que desencadearam o surgimento do conceito de
bildungsroman e suas respectivas características romanescas, posteriormente, em outros
cenários, houve o alargamento de suas fronteiras semânticas, distanciando-se cada vez
mais dos valores que circundavam o termo original.

A grande circulação do termo Bildungsroman pelas literaturas nacionais europeias, e,


mais recentemente, também pelas americanas, levou a uma superexposição do conceito.
O recurso ao Bildungsroman passou a ser uma estratégia teórica e interpretativa capaz
de abarcar toda produção romanesca na qual se representasse uma história de
desenvolvimento pessoal (MAAS, 2000, p. 24)

O termo bildungsroman passou por um processo de transformação conceitual, a


ponto de ser entendido como quaisquer romances em que o protagonista passa por um
desenvolvimento pessoal no desenrolar da narrativa, sem qualquer relação com os
valores ideológicos que permearam sua origem.

174
Segundo Maas (2000), o cenário do início do século XX, marcado,
principalmente, pelo impacto das grandes guerras, contribuiu para a negação do modelo
tradicional do bildungsroman, visto que a realidade mudou sobremaneira.

No século XX, o conceito teleológico do desenvolvimento individual sofre uma ruptura.


No século da psicanálise e das duas guerras mundiais, a representação do indivíduo
como um todo harmônico, desenvolvido segundo suas tendências naturais, não
corresponde nem ao cidadão nem ao indivíduo. As condições históricas que
sustentavam o grande projeto burguês esfacelam-se, ao mesmo tempo que a
personalidade individual se descobre fragmentária (p. 209).

Para discutir essa questão, Maas (2000) cita Lukács, que considerou o
bildungsroman uma representação do que seria uma ―conciliação entre indivíduo e
sociedade‖ (p. 213). Segundo ele, a fragmentação do indivíduo tem se acentuado,
impossibilitando a harmonia e o equilíbrio almejados no bildungsroman. Desse modo,

[...] esse momento ideal da história do romance moderno seria historicamente datado;
Lukácsconsidera Os anos de aprendizado de Wilhelm Meistercomo o ápice de uma
forma destinada ao desaparecimento, uma vez que se alteraram os pressupostos
históricos que lhe deram origem (MAAS, 2000, p. 212).

Lukács tem uma posição rígida em relação ao bildungsroman, situando-o num


tempo e espaço específicos, conforme já foi mencionado. Considera que na ausência
daquelas circunstâncias, estaria fadado ao desaparecimento.
Em contrapartida, Walter Benjamin analisa em 1936 o recém-publicado romance
de Alfred Döblin Berlin Alexanderplatz, numa clara demonstração de que esse gênero
sobreviveria em um contexto diferente daquele que o originou. Além disso, a estrutura
do romance analisado remetia ao romance de formação.
Desse modo, ―É, portanto, Walter Benjamin, e não Lukács, que indica as
possibilidades de continuidade do romance burguês e do modelo identificado no
Bildungsroman, na realidade histórica e social do século XX‖ (MAAS, 2000, p. 215).

Uma leitura contemporânea do bildungsroman: o protagonismo feminino


No cenário contemporâneo, Pinto (1990) elabora uma reflexão acerca das
características relacionadas ao bildungsroman feminino a partir da leitura do papel
desempenhado pelas protagonistas femininas na literatura em quatro obras brasileiras,
quais sejam, Amanhecer, de Lúcia Miguel Pereira, As três Marias, de Raquel de
Queiroz, Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector e Ciranda de Pedra, de
Lygia Fagundes Telles.
Pinto (1990) inicia sua obra pontuando as transformações conceituais que o
bildungsroman sofreu ao longo de seu processo de adaptação a novos contextos. Em
suas considerações, os elementos típicos desse tipo de romance estão vinculados às

[...] consequências de eventos externos sobre o herói, registrando as transformações


emocionais, psicológicas e de caráter que ele sofre. Há uma ênfase, portanto, no
desenvolvimento interior do protagonista como resultado de sua interação com o mundo
exterior (PINTO, 1990, p. 10).

175
A ênfase dada no conceito de bildungsroman está relacionada ao
amadurecimento da personagem ao longo do romance, conforme lide com situações que
atinjam diretamente seu estado emocional, interferindo na subjetividade do indivíduo de
modo que provoque alterações no eu.
Uma questão mencionada por Pinto (1990) relacionada a esse gênero romanesco
é a ausência da figura feminina como personagem que amadureça intelectualmente ao
longo da narrativa. Segundo ela, nos romances que o feminino tinha espaço, a

[...] aprendizagem se restringia à preparação da personagem para o casamento e a


maternidade. [...] Antes do aparecimento do romance ―neofeminista‖, segundo Morgan,
os poucos exemplos de ―Bildungsroman‖ femininos que focalizavam o
desenvolvimento pessoal – ou seja, psicológico, emocional e intelectual – da
protagonista terminavam constantemente em fracasso (PINTO, 1990, p. 13)

O papel desempenhado pela figura feminina no bildungsroman seguia os valores


patriarcais, ou seja, era restrito ao ambiente doméstico. O aprendizado feminino estava
limitado ao casamento e a maternidade e os romances que traziam protagonistas que
tentavam romper com esse padrão estavam fadadas a terem suas expectativas
fracassadas no desfecho da narrativa.
Esse tipo de romance reflete a organização social da sociedade patriarcal, em
que o homem e a mulher têm seus papéis sociais pré-definidos. Segundo Pinto (1990), a
partir dos anos 80, houve uma breve redefinição do gênero bildungsroman, cujas
narrativas apresentariam

[...] infância da personagem, conflito de gerações, provincianismo ou limitação do meio


de origem, o mundo exterior, autoeducação, alienação, problemas amorosos, busca de
uma vocação e uma filosofia de trabalho que podem levar a personagem a abandonar
seu ambiente de origem e tentar uma vida independente (PINTO, 1990, p. 14)

No entanto, tais inovações temáticas não implicaram diretamente no que


concerne ao protagonismo feminino nesse tipo de romance. Mesmo que haja uma
tentativa de resistência a esses princípios e a mulher consiga transgredir as imposições
sociais ao longo da narrativa, no desfecho a harmonia é apenas sugerida, sem realização
plena.

Enquanto em ―Bildungsromane‖ masculinos – mesmo em exemplos modernos – o


protagonista alcança integração social e um certo nível de coerência, o final da narrativa
feminina resulta sempre ou no fracasso ou, quando muito, em um sentido de coerência
pessoal que se torna possível somente com a não integração da personagem no seu
grupo social (PINTO, 1990, p. 27).

O tradicionalismo patriarcal interfere diretamente no desfecho das narrativas em


que o protagonismo feminino aparece, tanto nos romances escritos por homens quanto
por mulheres. O bildungsroman que apresenta o amadurecimento feminino oferece a sua
protagonista um destino fadado a desintegração social. Tal desfecho é o reflexo do que
se esperaria nas relações sociais de uma sociedade patriarcal, aproximando o universo
literário da realidade.
No que tange às questões sociais referentes ao gênero feminino, determinado por
princípios patriarcais, percebe-se a formação de inúmeros valores que norteiam o padrão
estético e formas de propagação de modelos comportamentais que são cobrados da

176
mulher e podem ser vislumbrados em obras literárias. Nos contos de fadas, por
exemplo, a função educativa leva os leitores a perceberem um modelo ideal feminino
dentro dos valores e padrões estabelecidos pela sociedade religioso-patriarcal.
A sociedade contemporânea é marcada pela discussão e o debate acerca de temas
relacionados ao gênero, tema que tem adquirido força, particularmente, a partir dos anos
50. Diversos movimentos sociais abordam essa temática sob vários ângulos analíticos,
principalmente, no que concerne as relações de poder estabelecidas entre os sujeitos
envolvidos nessa situação de conflito.
Nesse contexto, alguns movimentos sociais que questionam o estereótipo de
mulher, segundo os preceitos patriarcais, têm conseguido espaço e visibilidade na
sociedade. Paralelamente, tal situação pode ser percebida na configuração narrativa de
alguns livros literários contemporâneos, visto a literatura caracterizar-se como uma
manifestação artística de determinado momento histórico.
Na literatura infanto-juvenil pode ser observada a transição de valores sociais em
relação ao gênero feminino em algumas obras, que embora recentes, tornaram-se
clássicas. Na configuração dessas narrativas, a mulher exerce papel de uma personagem
que deixa a posição frágil e passiva e assume um posicionamento ativo no universo
literário, adquirindo independência e autonomia.
Santos (2009) desenvolveu um estudo acerca do livro Bisa Bia Bisa Bel (1981),
de Ana Maria Machado, focando a representação do feminino na caracterização das
personagens Bisa Bia e Bisa Bel. Segundo ela, Isabel, personagem protagonista, é uma
adolescente que constrói sua identidade conforme se depara com dois universos
femininos diferentes: o primeiro, de sua bisavó, típica mulher do século XIX; e o
segundo, de sua bisneta, uma mulher moderna do século XXI.
Nessa perspectiva, a configuração narrativa de O casamento de minha mãe
(2005), de Alice Vieira, permitiria uma reflexão acerca da construção de identidade de
Vera, protagonista do romance, a partir da análise do lugar social feminino ocupado
pelas personagens dona Elisa, Niki Athouguia, dona Eglantina e dona Henriqueta.
Candido (2014) realiza uma discussão teórica acerca da diferença crucial
existente entre a natureza humana e a ficcional, considerando que no romance ―[...] as
personagens obedecem a uma lei própria. São mais nítidas, mais conscientes, têm
contorno definido, - ao contrário do caos da vida – pois há nelas uma lógica
preestabelecida pelo autor, que as torna paradigmas e eficazes (CANDIDO, 2014, p.
67).
Nessa perspectiva, embora a configuração narrativa de um texto literário
represente determinada realidade, possui uma especificidade pautada na organização
textual.

A arte, e, portanto a literatura, é uma transposição do real para o ilusório por meio de
uma estilização formal [...] Nela se combinam um elemento de vinculação a realidade
natural ou social, e um elemento de manipulação técnica, indispensável a sua
configuração, e implicando uma atitude de gratuidade (CANDIDO, 2000, p. 47).

Os aspectos internos, ou intrínsecos, de uma obra é que conferem a


especificidade literária. Nesse sentido, a configuração das personagens de um romance
permite vislumbrar as pessoas reais as quais fazem referência, salvo diferenças
significativas entre a realidade a ficção literária.
Em O casamento da minha mãe, as caracterizações das personagens dona Elisa,
Niki Athouguia, dona Eglantina são construídas de maneira a contemplar tanto os

177
princípios patriarcais quanto feministas, refletindo o papel a ser ocupado pela mulher na
sociedade. Ao se relacionar com essas mulheres, Vera vai construindo sua identidade no
decorrer do romance.
Dona Elisa faz parte da geração mais velha das três personagens femininas e
poderia representar uma mulher que possui um comportamento típico dos princípios
patriarcais. Na juventude, nutria o sonho de entrar para um convento, mas as
circunstâncias acabam a levando ao casamento com seu Fernandes.
A caracterização de dona Elisa é embutida dos preceitos patriarcais,
representando a mulher casta, que deseja se manter pura com o ingresso na vida
religiosa. A bondade inata que a leva pelo caminho da religião é a mesma que a leva a
contrair matrimônio, ―[...] ela de enxoval pronto para entrar no convento, e o Sr.
Fernandes a atravessar-lhe o caminho e a convencê-la a trocar a austeridade de uma cela
por um casarão no meio de um pátio, a precisar urgentemente de quem tratasse dele‖
(VIEIRA, 2005, p. 24). Não foi o amor que a fez desistir de tornar-se freira, mas a
necessidade que o noivo tinha de alguém que o auxiliasse. Além disso, ao lado de seu
Fernandes, é a responsável pela educação de Vera.
Paradoxalmente, as mesmas atitudes e ações que a caracterizam como uma
pessoa boa, revelam uma imagem negativa, pois seu Fernandes e Vera são
constantemente culpabilizados por dona Elisa. O primeiro, por tê-la tirando dos
caminhos da consagração; e a segunda, por ser uma fonte de martírios que deve ser
suportada para que a senhora possa ser merecedora do reino dos céus.A frequência2 com
que as acusações aparecem na narrativa é numerosa, provocando ligeira desarmonia
com o aspecto bondoso dessa personagem.
Segundo Vera, a concepção de amor para dona Elisa era de um sentimento inútil,
o que justificava a ausência de afeto entre ambas.

Para Dona Elisa, as pessoas existiam não para se amarem de longe mas para se fazerem
muitos sacrifícios por elas. Só assim se ganhava o céu.
E sacrifício não tinha nada a ver com gostar ou deixar de gostar. Ninguém ia para o céu
por gostar das pessoas. Por isso, para quê perder tempo e energias com sentimentos
inúteis (VIEIRA, 2005, p. 17).

Num paralelo, dona Elisa apresenta um comportamento parecido com o de dona


Inácia, personagem de ―Negrinha‖, de Monteiro Lobato. Ambas as senhoras são
convictas religiosas, mas suas ações destoam da bondade recomendada nos preceitos
cristãos.
Por outro lado, a personagem Niki Athouguia, mãe biológica de Vera, em
relação a dona Elisa, representa um avanço nas conquistas femininas. O fato de ser mãe
solteira, a inserção no mercado de trabalho, ter vários namorados até contrair
matrimônio com Ricardo, remetem a uma mulher que foge aos padrões patriarcais, que
tem por princípio a virgindade feminina até o casamento e suas funções ficarem restritas
ao ambiente doméstico.
A decisão de deixar Vera aos cuidados do casal de idosos, que eram parentes
distantes, distorcem o instinto maternal atribuído às mulheres na sociedade patriarcal.
Por mais que tenha sido deixada num momento de dificuldades financeiras,

2
Segundo Genette (s.d, p. 33), a frequência está relacionada a quantidade de repetição da história e as da
narrativa.

178
posteriormente, quando consegue uma vida estabilizada devido seu trabalho de modelo
internacional, não busca Vera para viverem juntas.
Outra questão característica de Niki Athouguia ligada ao contexto de luta das
mulheres são os vários namorados que passam por sua vida. A liberação sexual foi tema
muito discutido na década de 50 e a configuração do livro permite uma leitura da mãe
de Vera segundo esses novos princípios e valores ideológicos. A inserção no mercado
de trabalho foi essencial para que as mulheres e, no universo ficcional, NickiAthouguia,
pudessem assumir tais comportamentos.
Desse modo, por mais que essa personagem não seja a protagonista da história,
parece ter importância singular na discussão sobre o lugar social contemporâneo do
gênero feminino no livro. Niki Athouguia representa uma mulher que sai do ambiente
doméstico para o mercado de trabalho e possui controle sobre sua sexualidade.
No entanto, a inserção no mercado de trabalho dessa personagem ocorre no
mundo da moda que, tradicionalmente, privilegia uma estética padrão e acaba por
excluí-la. Niki tem consciência de que sua área de atuação apresenta algumas restrições
―- Já não tenho vinte anos e essa vida não dura para sempre‖ (VIEIRA, 2005, p. 8).
Mais que o sonho do casamento, o peso da idade é fundamental no destino dessa
personagem, o qual configura o grande motivo que a levou a abandonar a carreira de
modelo interacional e se casar.
Em relação a Vera, é caracterizada como uma criança abandonada pela mãe aos
cuidados de um casal de idosos que são parentes distantes. A ausência da mãe, estar fora
dos padrões de beleza exigidos pela sociedade e a falta de carinho dos pais adotivos
marcam a infância dessa personagem de traumas. Na tentativa de suportar a dor de se
sentir rejeitada, cria um mundo de fantasias para viver grandes aventuras e, assim, lidar
com a realidade.
A sensação de abandono, por mais que a mãe faça visitas esporádicas quando
traz o montante cobrado por Dona Elisa para cuidar de Vera, aflige a menina ao longo
de sua primeira infância e pré-adolescência. Esse fato, somado a autoimagem da
protagonista ao declarar ―Eu sei que sou gorda, e que como chocolates de mais, e que
não consigo muito boas notas na escola, e que tenho os pulmões atrofiados, e que,
segundo diz a Dona Elisa, não sou bem, bem normal‖ (VIEIRA, 2005, p. 84).,
distanciam-na do padrão estético ideal construído no imaginário social e contribui para
romper com os valores ideológicos propagados nos contos de fadas tradicionais.
O príncipe encantado, representado por figuras masculinas que Vera se depara
ao longo da vida, seja na escola ou nos relacionamentos amorosos da mãe, participam
apenas dos sonhos e fantasias da personagem protagonista. Nesse contexto, a
adolescente opta por não separar o universo da fantasia e sua realidade imediata,
experienciando aventuras nos pontos de intersecção desses dois universos.
No entanto, o dia em que ocorreu ―aquela vergonha no Conselho Directivo da
escola‖ (VIEIRA, 2005, p. 23), representa o momento em que Vera é forçada a
reconhecer, de uma vez por todas, que suas aventuras fazem parte de um universo
imaginário e aceitar a realidade. Sendo assim, a fogueira com pertences da pré-
adolescente, a qual dona Elisa preparou no pátio da casa onde moravam, representa o
rito de passagem da menina. Nesse sentido, aos poucos Vera vai amadurecendo, pois, a
maturidade lhe é conferida à medida que supera o mundo da fantasia e aceita a
realidade.
O dia do casamento de Niki Athouguia retrata o acontecimento que marcará a
transição entre dois estágios da vida de Vera: o primeiro marcado pela ausência da mãe,

179
portanto, traumático e; o segundo, pela presença materna, com perspectivas de
superação. Nesse dia, a narradora protagonista lança um olhar para o passado na
tentativa de superá-lo. Conforme Sales (2007), Vera, por meio de um olhar crítico em
relação a seu passado, busca compreender os sujeitos que o compunha.
Resumidamente, as três gerações de mulheres apresentadas na configuração
narrativa permitem uma reflexão acerca dos padrões tradicionais e modernos em relação
ao gênero feminino. Dona Elisa, uma senhora que ainda está restrita ao ambiente
familiar; Niki, uma mulher que rompe os limites do âmbito doméstico e perfaz a figura
de uma profissional de sucesso; e Vera, a mais jovem, que a partir dos modelos
femininos anteriores, vai formando sua personalidade através de um autoconhecimento
advindo da reflexão crítica acerca de seu passado.
Nessa perspectiva, a concepção da narradora protagonista acerca do perfil da
mulher pode ser observada pela caracterização que a própria Vera atribui a dona
Eglantina. O retrato que Vera optou por representar sua avó tinha a imagem de uma
mulher

De pé, muito direita, enfiada num longo vestido preto de gola branca, segurando as
rédeas de uma carrocinha castanha, diante de um campo de trigo, com ar de quem tinha
mesmo acabado de dizer para o meu avô: «São horas da ceifa, Januário» (VIEIRA,
2005, p. 60).

A configuração da fotografia em que Vera havia idealizado sua avó representa


uma mulher que lidera os negócios da família. A posição estratégica de dona Eglantina
à frente da carroça, diante do campo de trigo e chamando o marido para o trabalho
remete ao comando feminino. Além disso, a protagonista declara que

Fique muito tempo a olhar para ela, tentando entender por que razão o meu avô não
estava a seu lado. Pelos vistos era tradição da família: mulheres para um lado e homens
para o outro. O meu pai andava sabia-se lá por onde, e o Sr. Fernandes raramente estava
ao lado de Dona Elisa. Homem é assim mesmo. Tem de pensar na vida. As mulheres,
como trabalham muito, nunca têm tempo para pensar nessas coisas (VIEIRA, 2005, p.
60).

A protagonista não prefigura um casal, mas apenas a mulher, para representar


seus avós fictícios. No entanto, Vera está consciente desse processo e reflete sobre a
ausência da figura masculina em todas as esferas de sua vida, seja no universo fantástico
ou real; ao lado de dona Eglantina ou dona Elisa e sua mãe.
Para Vera, a hipótese para esse fato vem da generalização de que homem gosta
de pensar na vida, atitude compreendida pela adolescente como sinônimo da
passividade. Nessa perspectiva, a atitude masculina é contraposta a da feminina, uma
vez que a mulher não possui tempo para ―pensar na vida‖, tal qual o homem, pois
trabalha muito.
Dona Eglantina representa um ideal feminino para Vera, pois é nela que a
narradora protagonista escolhe e concentra as características dos estereótipos de
mulheres que conheceu ao longo de sua vida. A emancipação da mãe, somada aos
princípios tradicionais de dona Elisa, caracterizam essa avó fictícia e permite vislumbrar
como a protagonista constrói a imagem de uma mulher.
Quando dona Henriqueta entra na vida da protagonista, uma vez que será sogra
de Niki Athouguia, e dividirá a futura casa com os recém-casados e Vera, o ideal de

180
mulher construído pela protagonista no universo ficcional é concebido na realidade da
narrativa.
Dona Henriqueta é caracterizada como uma senhora moderna, usa maquiagem,
saltos altíssimos, écharpe cor-de-rosa. Em termos de valores ―Tenho meu tempo muito
preenchido, por isso ele que não conte comigo para ser fada do lar que ele às vezes
pensa que eu sou. E que eu, felizmente, nunca fui‖ (VIEIRA, 2005, p. 138). Essa
senhora possui os valores que a protagonista assimilou como ideais do espaço social
feminino ocupado na sociedade a partir de sua experiência com dona Elisa e Niki
Athouguia.

Conclusão
O processo de formação da identidade de Vera vai se consolidando conforme a
personagem reage aos paradigmas femininos com que se depara ao longo de sua vida.
As relações que Vera estabeleceu com os diferentes paradigmas femininos ao
longo do romance, impactaram no processo de construção de sua formação ideológica,
repercutindo, dentre as duas possibilidades, num padrão que foge ao tradicionalismo
patriarcal.
Por esse motivo, Vera, por sua própria iniciativa, transfere a figura da avó
fictícia para dona Henriqueta, uma vez que o ideal feminino da protagonista pode ser
resumido em sua nova amiga, que se torna sua referência feminina.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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2002.
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MAAS, Wilma Patrícia Marzari Dinardo. O cânone mínimo: o bildungsroman na
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VIEIRA, Alice. O casamento da minha mãe. Lisboa: Caminho, 2005.

181
A Bolsa Amarela, de Lygia Bojunga Nunes: a
representação da infância e a questão identitária
(A Bolsa Amarela, by Lygia Bojunga Nunes: the childhood´s representation
and the identity issue)

Thais Oliveira Kalil Modesto1, Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira2


1-2
Universidade Estadual Paulista (UNESP)

oliveira.thaais@gmail.com; elianegalvao13@gmail.com

Abstract: This text has the objective, from the theoretical assumptions of Reception
Aesthetics (JAUSS, 1994; ISER, 1999 and 1996), presents an analysis of the book A Bolsa
Amarela by Lygia Bojunga Nunes (Pelotas, RS, 1932), which can be considered a
representation of the childhood and the identity issue. The story presents imaginative facts
with fantasy and reality to the readers, and it can contribute to his own formation as a critical
person, because by reading he reflects about the human relations in a society and within the
family. Then, is justified that its production is considered as an object of study. The book A
Bolsa Amarela has many aesthetic facts, and the book builds the hypothesis of having
potentialities that can contribute with the formation of the young reader.
Keywords: Reading and formation of the reader; Reception aesthetics; Childhood´s
representation and identity issue.

Resumo: Este texto objetiva, a partir dos pressupostos teóricos da Estética da Recepção
(JAUSS, 1994; ISER, 1999 e 1996), apresentar uma análise da obra A Bolsa Amarela, de
Lygia Bojunga Nunes (Pelotas, RS, 1932), por meio da qual se considera a representação da
infância e a questão identitária. A história apresenta ao leitor, fatos imaginativos intercalados
de fantasia e realidade, o que pode contribuir com sua própria formação como sujeito crítico,
pois requer, na leitura, sua reflexão acerca das relações humanas em sociedade e em âmbito
familiar. Justifica-se, então, que sua produção seja considerada como objeto de estudo. Como
a obra A Bolsa Amarela destaca-se por ser dotada de esteticidade, constrói-se a hipótese de
que possui potencialidades que podem contribuir para a formação do gosto literário do jovem
leitor.
Palavras-chave: Leitura e formação do leitor; Estética da Recepção; Representação da
Infância e questão identitária.

Introdução
Este texto objetiva, a partir dos pressupostos teóricos da Estética da Recepção
(JAUSS, 1994; ISER, 1999 e 1996), apresentar uma análise da obra A Bolsa Amarela,
de Lygia Bojunga Nunes (Pelotas, RS, 1932), por meio da qual se considera a
representação da infância e a questão identitária. A história apresenta ao leitor fatos
imaginativos intercalados de fantasia e realidade, o que pode contribuir com sua própria
formação como sujeito crítico, pois requer, na leitura, sua reflexão acerca das relações
humanas em sociedade e em âmbito familiar. Como a obra A Bolsa Amarela destaca-se
por ser dotada de esteticidade, constrói-se a hipótese de que possui potencialidades que
podem contribuir para a formação do gosto literário do jovem leitor.
A obra (1989) retrata a história de Raquel, personagem protagonista que passará
por distintas vontades em sua infância, entre elas a vontade de crescer, ser menino e ser

182
escritora. Essa personagem apresenta ao leitor um enredo, cuja temática amplia seu
imaginário, pela exploração de elementos do fantástico. Um exemplo dessa exploração
pode ser visto na cena em queuma das personagens das histórias que inventava, surge
dentro de sua bolsa amarela:

Acordei de repende com um barulho esquisito. Olhei para a janela e vi o dia nascendo.
Outra vez o barulho. Quase morro de susto: era um canto de galo; e ali bem perto de
mim.
Olhei minhas irmãs. Elas estavam dormindo igualzinho, nem tinham ouvido canto
nenhum. Espiei debaixo da cama, atrás da cadeira, dentro do armário – nada. Mas aí o
galo cantou muito aflito: um canto assim de gente que tá presa e quer sair. ―Tá dentro da
bolsa amarela‖ Abri a bolsa correndo. O galo saiu lá de dentro. (NUNES, 1989, p. 33)

Concebe-se neste texto, em consonância com Held (1980, p. 23), fantástico


como aquele que se opõe ao real, ―[...] criado pelo espírito, pela fantasia‖, resultando em
obras em que, embora sejam introduzidos seres irreais e cenários surpreendentes,
dispostos em um mundo autônomo, este um dia foi imaginado por um autor que se
utilizou da palavra para expressar ao máximo a potência imaginativa.
Em uma possível recepção com a obra A Bolsa Amarela (1989) pode haver
durante a leitura comunicabilidade com os alunos-leitores, pois sua história permite-lhes
rever seus conceitos prévios e, assim, ampliar seus horizontes de expectativa (Iser, 1999
e 1996; Jauss, 1994) sobre as relações humanas em sociedade, sobretudo as associadas à
questão de gênero. A protagonista, ao longo da narrativa, percebe a necessidade de
firmar-se enquanto menina mesmo diante de relações assimétricas de poder:

Naquela noite fiquei pensando na Casa dos Consertos e não larguei a mínima de perder
o sono. Para ser franca, até curti. E, por falar em curtição, puxa vida, como a mãe da
Lorelai curtia ser mulher; e como Lorelai curtia ser menina. Ela achava que ser menina
era tão legal quanto ser garoto. Quem sabe era mesmo? Quem sabe eu podia ser que
nem a Lorelai? (NUNES, 1989, p. 103)

Como se pode notar, Bojunga (1989) traz para o centro de sua obra o
questionamento das relações sociais na família e na sociedade patriarcal vivida pela
personagem principal, Raquel. Seus temas da individuação e constituição da
subjetividade presentes na narrativa permitem identificações com o leitor, justamente
pela atualidade.
Lygia Bojunga Nunes, em todas suas publicações, recebeu selo de Ouro da
Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil – FNLIJ, como O Melhor para a Criança
e o Jovem. Obteve reconhecimento internacional com o Prêmio Hans Christian
Andersen, considerado o Nobel da Literatura Infantil e Juvenil, além do prêmio ALMA
(Astrid Lindgren Memorial Award), a maior premiação mundial instruída em prol da
literatura para crianças e jovens (CASA LYGIA BOJUNGA, 2016).
A escritora nasceu em Pelotas, no Rio Grande do Sul, em 1932. Mudou-se para o
Rio de Janeiro aos seus oitos anos de idade, onde começou seus primeiros trabalhos
voltados ao teatro. Na fase adulta, foi escolhida para estrelar a peça inicial do Teatro
Duse, criado por Paschoal Carlos Magno (o fundador do Teatro do Estudante no Brasil).
Lygia foi contratada pela companhia profissional Os Artistas Unidos, na qual encenou
ao lado de Fernanda Montenegro, Henriette Morineau e Laura Suarez. Aos 27 anos,
criou sua primeira moradia, chamada Boa Liga, no bairro de Santa Teresa, onde hoje é
sua casa editorial. Seu envolvimento com a ficção tornou-se tão importante, que optou

183
em deixar o teatro e dedicar-se somente à carreira literária (CASA LYGIA BOJUNGA,
2016).
Desde que fundou, em junho de 2006,sua casa editorial, intitulada Fundação
Cultural Casa Lygia Bojunga, procurou deixar todos os seus livros com o mesmo
padrão. Esse projeto mantém seu desenvolvimento graças aos fins lucrativos do prêmio
ALMA, que conferiu valor às obras da autora(CASA LYGIA BOJUNGA, 2016).A casa
possui aquilo que sempre idealizou em seus sonhos desde os seus 19 anos: autonomia
para edição e publicação de suas obras. Todos os seus livros foram premiados
nacionalmente e internacionalmente, além de serem traduzidos em vinte idiomas
diferentes.Entre suas obras publicadas estão: Os colegas (1972), Angélica (1975), A
bolsa amarela (1976), A casa da madrinha (1978), Corda bamba (1979), O sofá
estampado (1980), Tchau (1984), O meu amigo pintor (1987), Nós três (1987), Livro,
um encontro (1988), Fazendo Ana Paz (1991), Paisagem (1992), 6 vezes Lucas (1995),
O abraço (1995), Feito à mão (1996), A cama (1999), O Rio e eu (1999), Retratos de
Carolina (2002), Aula de inglês (2006), Sapato de salto (2006), Dos vinte 1 (2007),
Querida (2009) e Intramuros (2016). As publicações ganharam reconhecimento em
âmbito nacional e internacional.
Durante sua carreira literária, Bojunga foi vinte vezes premiada pela Fundação
do Livro Infantil e Juvenil – FNLIJ, recebeu vários prêmios jabutis e o prêmio
considerado mais tradicional da área de literatura infantojuvenil, o Hans Christian
Andersen. Também, recebeu o prêmio Faz Diferença das organizações Globo e o
prêmio ALMA (Astrid Lindgren Memorial Award), a maior premiação mundial
instruída em prol da literatura para crianças e jovens, criado no governo da Suécia.
Esses são os prêmios de maior destaque na carreira da autora, mas há muitos outros que
a brevidade deste artigo nos impede de relatar.

Processo de formação literária e crítica


O livro A Bolsa Amarela, publicado pela primeira vez em 1976, é apresentado
como a primeira obra da autora escrita em primeira pessoa. A narrativa está
inteiramente ligada àantítese: liberdade imaginativa x limitação do real. Ela avulta
através do olhar psicológico apresentado pela personagem principal, Raquel. O
resultado é uma narrativa original, que além de romper com a linearidade, parece ter a
intenção de colar-se ao modo infantil de perceber e dar significado ao mundo
(LAJOLO, ZILBERMAN, 1988).
Raquel passa por frustações em sua infância, passando por questionamentos
pessoais, sendo impedida de se estabelecer identitariamente. Oprimida pela visão
patriarcal que impera em sua família, a personagem sofre restrições de direitos, como
sua liberdade de expressão, no que resulta em três vontades:

Nem sei qual das três me enrola mais. Às vezes acho que é a vontade de crescer de uma
vez e deixar de ser criança. Outra hora acho que é a vontade de ter nascido garoto em
vez de menina. Mas hoje tô achando que é a vontade de escrever (NUNES, 1989, p. 11).

A linguagem empregada na obra é original, intercalada de coloquialismo e


figuras de linguagem:

Ninguém me deu bola. Fiquei pensando no tio Júlio. Meu pai diz que ele dá um duro
danado para ganhar o dinheirão que ele ganha. Se eu fosse ele, eu ficava pra morrer de

184
ver a tia Brunilda gastar o dinheiro numas coisas que ela enjoa logo. (NUNES, 1989, p.
26).

Essa linguagem em desvio faz com que o leitor se aproxime e sinta prazer pela
leitura. Além disso, a função da linguagem é de orientação, a fim de compreensão do
mundo cotidiano.
Negando os padrões linguísticos, a narrativa dá abertura para o fantástico, além
de enfatizar a possibilidade criadora da personagem. Tudo isso resulta no relato íntimo e
individual da personagem Raquel para com a proximidade provável com o leitor. Como
lembrado por Wayne Booth, em A retórica da ficção:

Talvez a distinção mais ignorada seja a de pessoa. Dizer que uma história é contada em
primeira ou na terceira pessoa nada nos diz de importante, a menos que sejamos mais
precisos e descrevamos o mundo como qualidades particulares de cada narrador se
relacionam com efeitos específicos (BOOTH, 1980, p. 166)

As personagens da história – Galo, Guarda-chuva, André – representam as


inúmeras fases de Raquel. Assim, o Galo Afonso representa a fasedecisiva de Raquel
em ir em busca de seus horizontes:

– Raquel, imagina que nenhum desses peixes tem nome. Eles chamam os amigos de Ei!
Psiu! Cara!
De repente, pela primeira vez na minha vida, chei Raquel um nome legal; achei que não
precisava de outro nome nenhum. Abri a bolsa, tirei tudo quanto é nome que eu
guardava no bolso sanfona e dei pro Afonso. (NUNES, 1989, p. 112)

Já a personagem Guarda-chuva, é a representação do incentivo e de todas as


ideias que Raquel tinha vontade de realizar:

– Tá vendo Raquel? Não é atoa que eu gosto da Guarda-chuva ela tem ideias. Sabe o
que é que ela me disse? Que eu não preciso mais ter medo de voar alto. Ela vai junto
comigo, e se eu caio, ela dá uma de para-quedas, e se eu caio de novo, ela dá outra e
assim a toda vida. (NUNES, 1989, p. 110)

Todos, embora se situem em sua imaginação, permitem à heroína elaborar o real


e, pelo imaginário, encontrar soluções para a realidade em que vive. Essas personagens
inventadas por Raquel contribuem para seu pensamento crítico e sua formação. Pela
leitura, o jovem identifica-se com a protagonista e, ao projetar-se nesta, também aguça
seu pensamento crítico e, por meio dele, pode emancipar-se.
A vontade de Raquel em ser escritora era muito forte, justifica-se então que crie
outras personagens com as quais dialoga e chegam a compor a narrativa. A primeira
personagem que Raquel trouxe para a história foi André. Essa personagem buscava
representar o diálogo que Raquel tanto sentia falta dentro de sua casa, pois pelo fato de
ser criança sua família não lhe dava o direito à voz. A ―comunicação‖ de Raquel com
André efetiva-se por cartas:

Prezado André
Ando querendo bater papo, más ninguém está a fim. Eles dizem que não têm tempo.
Mas ficam vendo televisão. Queria contar minha vida. Dá pé? Um abraço da Raquel
(NUNES, 1989, p. 12).

185
Como se pode notar, prevalece na obra de Bojunga o hibridismo de gênero
textual – romance e carta –, com a finalidade de assegurar a verossimilhança e
enriquecer o imaginário do jovem leitor.
Outra personagem criada pela protagonista Raquel é o galo Rei, Afonso, que
inspirou um dos romances que esta heroína escrevera. Essa personagem será a mais
marcante na narrativa, pois representa a luta de luta de Raquel pelos seus próprios
sonhos, pela busca do pensamento libertário e pelo rompimento do sistema patriarcal.
Com a inclusão de animais na história, a obra de Bojunga dialoga com as
fábulas. Para Nelly Novaes Coelho (1987), as fábulas resistiram ao tempo e
permanecem até os nossos dias com suas características essenciais de apresentar uma
história simbólica de animais que personificam os homens, e de divertir o leitor e ter
uma moralidade. Pela leitura, o jovem pode perceber a simbologia na narrativa, além de
divertir-se e refletir sobre a questão da construção identitária.
A questão de gênero, de identidade feminina ganha relevo na personagem
Guarda-chuva que opta em ser mulher. Essa personagem é de grande importância na
narrativa, pois contribui com o pensamento de escolha pessoais do indivíduo e de sua
formação:

Na hora do guarda-chuva nascer, quer dizer, na hora que ele foi feito, o homem lá da
fábrica – que era um cara muito legal e que gostava de ver as coisas gostando do que
elas tinham nascido – perguntou:
–Você quer ser guarda-chuva homem ou mulher?
E ele respondeu: Mulher (NUNES, 1989, p. 48).

Nesse momento fica evidente que a obra requer reflexão metalinguística do


jovem leitor, revelando-lhe que a questão de gênero desvincula-se de quaisquer regras,
trata-se de uma opção, a qual pode subverter inclusive as de uso da língua portuguesa.
Justifica-se, então, que a personagem seja chamada de ―a Guarda-chuva‖, pois assim ela
se vê e elege ser vista, em síntese, constitui-se em sua subjetividade e identidade.
Raquel, em sua jornada identitária, durante o transcorrer de suas peripécias, identifica-se
com essa personagem: ―Fui andando e pensando que eu também queria ter nascido
mulher: a vontade de ser garoto sumia e a bolsa amarela ficava muito mais leve de
carregar‖ (NUNES, 1989, p. 49).
Umas das simbologias mais marcantes na obra é o mar, e é também uma das
que mais chama atenção do leitor, poisé representada pelas personagens: Afonso e a
Guarda-chuva. O mar para ele é como se fosse a representação de sua liberdade, de seu
destino a ser alcançado por mérito e a busca do seu sonho em romper com o pensamento
alienado das pessoas:

– Agora sim posso sair pelo mundo, voando bem alto sem perigo de me esborrachar.
Agora sim posso lutar pela minha ideia. Agora sim vai ser legal. E de cambalhota em
cambalhota chegou perto do mar. Veio uma onda e puf! Pegou o Afonso. (NUNES,
1989, p112)

Nesse trecho é possível, através da personagem o Galo Afonso, quem sempre


incentivava Raquel em suas decisões.
Para Chevalier e Gheerbrant, o mar é

Símbolo da Dinâmica da vida. Tudo sai do mar e tudo retorna a ele, lugar dos
nascimentos, das transformações e dos renascimentos. Águas em movimento, o mar

186
simboliza um estado transitório entre as possibilidades ainda informes e as realidades
configuradas, uma situação de ambivalência que é a de incerteza, de dúvida, de
indecisão, e que pode se concluir bem ou mal. Vem ai o que o mar é, ao mesmo tempo,
a imagem da vida e a imagem da morte (1989, p. 592).

Como se pode notar, o mar na obra representa a própria dinâmica de vida da


personagem Raquel que, enquanto constitui suas personagens, descobre e forma sua
própria identidade.
No decorrer da narrativa, bem como suas performances, são representadas em
sua maioria pela metáfora:

Puxa vida, como eu curti soltar aquela pipa! Já tinha cansado de ver garoto empinando
pipa; sabia tudo quanto era macete, sabia ver de onde vinha o vento, só não sabia que
era tão bom sentir a puxada da linha na mão.
A toda hora o Afonso gritava
– A minha pipa tá mais alta! – E toca a dar linha.
Eu dava mais linha também:
– Que nada, é minha! Olha só.
O tempo piorou; o céu foi ficando cheio de nuvem escura. Toca a linha, toca a linha,
minhas vontades já estavam tão longe! A gente ficou olhando pra elas. Nem viu a linha
chegar no fim e ir embora também. (NUNES, 1989, p. 114)

Mas há uma personagem, Alfinete de fraldas, que se configura pelametonímia:

Um dia eu ia passando e vi o Alfinete caído na rua. Peguei, limpei, desenferrujei,


experimentei a pontinha dele no meu dedo, vi que ela era afiada toda a vida:
- Puxa!
E ela começou a riscar na minha mão tudo que o Alfinete queria dizer. (NUNES, 1989,
p. 43)

Essa personagem só conseguirá se expressar de forma escrita, característica


muito próxima de Raquel que expunha seus pensamentos através da palavra disposta no
texto verbal, até mesmo porque a palavra expressa oralmente lhe era interdita.
Alfinete será a única personagem que continuará com Raquel até o findar da
história, pois é a representatividade da personagem como escritora. Além disso, terá
grande importância em ajudar a protagonista na busca da realização de suas três
vontades.
Os objetos que compõem a história possuem características humanas, como:
falar, agir e interagir. A bolsa amarela é o objeto que mais significativo da narrativa,
pois é o responsável em fazer a fronteira entre o real e o fantástico, elemento
fundamental para a estruturação desse texto. Nessa bolsa, Raquel guarda todos seus
desejos oprimidos: ―Minhas vontades tavam presas na bolsa amarela, ninguém mais ia
ver a cara delas‖ (NUNES, 1989, p. 30).
De acordo com Chevalier e Gheerbrant (1989), o amarelo é a cor que representa
algo intenso, que sempre extravasa os limites artísticos. Sendo assim, podemos dizer
que a bolsa é um elemento de positividade e intensificação do ludismo que a obra
pretende transmitir.
Pela análise das personagens e de suas relações com a história de individuação
de Raquel, nota-se que a narrativa possui função social, pois há a denúncia de formas
diversas de opressão ao sujeito, mesmo no seio familiar. Para Jauss, a função social da

187
leitura ―[...] somente se manifesta na plenitude de suas possibilidades quando a
experiência literária do leitor adentra o horizonte de expectativa de sua vida prática, pré-
formando seu entendimento do mundo e, assim, retroagindo sobre seu comportamento
social‖ (1994, p. 50). Nessa perspectiva, o trabalho pedagógico com essa obra, permite a
ampliaçãodo conhecimento do aluno sobre o texto e sua produção literária.
Pela análise dessa obra é possível de estabelecer um diálogo entre textos
diversos de um mesmo autor ou de diferentes autores, permitindo que haja um trabalho
bastante significativo para a formação do leitor.
A transitividade da narrativa é fundamental para a estruturação da obra e para a
temática passada, pois está inteiramente ligada com a construção crítica e formadora da
personagem principal, Raquel.
Em um primeiro momento, Raquel passará por conflitos opressivos em sua
própria casa e no apartamento da tia Brunilda, pois nunca davam a liberdade de fala, e
quando davam, zombavam dela:

O pessoal desatou a rir. Principalmente a tia Brunilda. Ria de chorar. Parei de contra,
me levantei, e botei a bolsa atrás de mim. Aí o Alberto começou a me fazer cócega para
ver se eu saia da frente da bolsa. Pra quê! Fiquei na maior chateação. (NUNES, 1989, p.
67)

Mas aconteceu uma coisa esquisita eu não podia para de falar. E quanto mais cócega o
Alberto me fazia, mais alto eu ia falando. Minha irmã me torceu um beliscão tão grande
que eu gritei. O Alberto deu um bote. (NUNES, 1989, p. 68)

O convívio se faz ainda mais enfatizado logo nas primeiras páginas da obra,
quando Raquel, mostra seu sofrimento dentro do ambiente familiar:

Agora tá tudo diferente: eles vivem de cara fechada, brigam à toa, discutem por
qualquer coisa. E, depois toca todo mundo a ficar emburrado. Outro dia eu perguntei: o
que é que tá acontecendo que toda hora tem briga? Sabe o que é que eles falaram? Que
não era assunto de criança. E pior que esse de emburramento me dá aflição danada. Eu
queria tato achar um jeito de não dar mais bola pra briga e pra cara amarrada. (NUNES,
1989, p. 18)

Esse ambiente retrata a incompreensão por parte da família de Raquel de suas


escolhas e desejos, o que acarreta em solidão. Dessa forma, ela busca esconder suas
angústias, a fim de evitar ser criticada por suas escolhas.
O mar representa, enquanto espaço, o local em que a heroína busca por
mudanças. Por fim, A Casa dos Consertos, como seu próprio nome anuncia, configura-
se como ambiente que favorece a quebra de conceitos da protagonista e a sua
identificação com a personagem Lorelai. Essa personagem é a verdadeira idealização de
como Raquel gostaria de ser, pois a mesma tem liberdade de escolha e não está presa ao
sistema patriarcal imposto.
Na Casa dos Consertos, Raquel conhece um sistema familiar democrático em
que as relações pautam-se principalmente pela amizade e cumplicidade entre todos. Há
trabalho partilhado, organização,respeito e inclusão. Além disso, todos alternam suas
funções:

A Casa dos consertos se dividia em quatro partes. Na primeira tinha uma menina assim
da minha idade; na outra tinha um homem; na outra, uma mulher e na outra um velho.

188
A menina estava estudando, a mulher cozinhando, o homem consertando um relógio, o
velho consertando uma panela (NUNES, 1989, p. 96)

O homem tinha parado junto do fogão, o velho junto do mapa, a menina junto da
Guarda-Chuva, e a mulher perto da panela e da solda. Nem olharam outra vez: o
homem foi logo cozinhando, o avô abriu um dos livros e começou a estudar a mulher
desatou a soldar a panela, e a menina examinou a Guarda-Chuva com jeito de quem
entende [...] (NUNES, 1989, p. 98).

É importante dizer que se trata de uma obra escrita na década de 1970, período
em que predominava relações de gênero assimétricas, mesmo nas famílias. Além de
relações de poder desiguais e opressoras, com a ditadura militar. Embora tenhamos um
sistema democrático no governo, ainda hoje há famílias que mantém relações
assimétricas, e especial, ao papel desempenhado pelas crianças e pelas mulheres.
Com as performances e os questionamentos da personagem Raquel, a obra
explora esse tema, evidenciando que, quando a realidade é opressora, a maior revolução
é interna, justifica-se então que Raquel tenha como objetivo maior tornar-se escritora.
A obra finaliza de maneira emancipatória, pois Raquel consegue superar
questões que a afligiam: ―A Bolsa Amarela tava vazia à beca. Tão leve. E eu também,
gozado eu estava me sentindo um bocado leve‖ (NUNES, 1989, p. 115).
A leveza conota o sentimento de realização advindo da liberdade adquirida pelo
autoconhecimento e pela superação de angústias existenciais.

Considerações Finais
Pela análise da obra A Bolsa Amarela, de Lygia Bojunga Nunes (1989),
pudemos detectar que é possível desenvolver um trabalho com a leitura, a fim de
ampliar os horizontes de expectativa do jovem leitor sobre as questões identitárias e as
relações que se estabelecem entre os sujeitos em sociedade.
Com a leitura da obra de Bojunga pode-se, por meio do ludismo,romper com
oreceiodo leitor em formação de não compreender uma obra narrativa. Esse leitor, pela
mediação, ao atentar para os diálogos da narrativa com as fábulas, os contos de fadas e
outras obras da escritora, pode formar-se esteticamente. Além disso, pela análise dos
recursos estilísticos desautomatizar sua visão sobre os usos da língua.
Seu enredo, por sua vez, pelo teor crítico, pode facultar-lhe reflexões sobre a
contemporaneidade e a alienação da sociedade. A obra amplia a discussão sobre a
realização pessoal e o atendimento das expectativas da família quanto ao futuro dos
indivíduos,além de ampliar os horizontes de expectativa do jovem leitor acerca de sua
própria existência.

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Histórias. 4. ed. São Paulo: Ática, 1988.

190
Inversão de arquétipos em Jogos vorazes: a posição de
herói assumida pela personagem feminina Katniss
Everdeen
(Archetypes inversion in The Hunger Games: the position of hero assumed by
the female character Katniss Everdeen)

Guilherme Augusto Louzada Ferreira de Morais1


1
Universidade Estadual Paulista (UNESP)
1
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)

gui_amorais@hotmail.com

Abstract: In this work, we aim to discuss the theme of the male and female archetypes,
namely, the Hero and the Maiden, based on the novel The Hunger Games, by Suzanne Collins,
basing ourselves mainly on Randazzo (1996) and Meletínski (1998). We will show that in the
novel there is a inversion of archetypes, that is, the hero archetype, which for so long has been
linked to the masculine element, is represented by a female character, Katniss Everdeen, and
consequently the feminine archetype of Maiden is represented by a male character, Peeta
Mellark.
Keywords: The Hunger Games, Katniss Everdeen, Archetypes, Heroine, Feminism.

Resumo: Neste trabalho, objetivamos, a partir do romance Jogos vorazes, de autoria da norte-
americana Suzanne Collins, abordar o tema dos arquétipos masculinos e femininos, a saber, o
Herói e a Donzela, baseando-nos principalmente em Randazzo (1996) e Meletínski (1998).
Demonstraremos que no romance há uma inversão de arquétipos, isto é, o arquétipo do Herói,
que, por tanto tempo, esteve ligado ao elemento masculino, é representado por uma
personagem feminina, Katniss Everdeen, e, por consequência, o arquétipo feminino da
Donzela é representado por uma personagem masculina, Peeta Mellark.
Keywords: Jogos Vorazes, Katniss Everdeen, Arquétipos, Heroína, Feminismo.

Considerações iniciais
A autora Suzanne Collins, nascida em 1962, iniciou uma série intitulada Jogos
vorazes, para jovens e adultos. Jogos vorazes – a série e o primeiro livro possuem o
mesmo título –, conjuga a história de Katniss Everdeen, uma garota que vive em um
país antiutópico chamado Panem. O país é dominado pela Capital, que realiza
anualmente os Jogos para manter lembrada aos doze distritos uma revolta que aconteceu
vários anos atrás. Então, um garoto e uma garota de cada um dos doze distritos do país
são selecionados por meio da ―Colheita‖, para que participem, obrigatoriamente, de uma
batalha em uma arena, na qual devem lutar até a morte, sendo o campeão, portanto,
quem sobreviver.
Quando Primrose é sorteada, Katniss, desesperada, voluntaria-se para tomar seu
lugar, assumindo, com esse ato, a posição de heroína de sua irmã. No decorrer do
romance, Katniss reafirma essa posição, agora, não só de sua irmã, não só de Peeta, mas
igualmente de si mesma. Consequentemente, resta a Peeta o papel de Donzela, e devido
a isso ocorre uma inversão de arquétipos, pois sabemos que o modelo heroico é
protagonizado, desde os tempos antigos, por personagens masculinas.

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Baseando-nos em Randazzo (1996) e Meletínski (1998), no que concerne aos
arquétipos de herói e donzela, demonstraremos que, em Jogos vorazes (2010), esse
paradigma é quebrado, uma vez que, ao salvar sua irmã e ao proteger Peeta, Katniss se
configura como heroína e o rapaz, ao ser sempre salvo por ela, configura-se como
donzela. Essa inversão ocorre, a nosso ver, como espelhamento e consequência da
visibilidade cada vez mais acentuada da mulher na sociedade, e também devido aos
movimentos feministas (BONNICI, 2007). Por isso, não é de se estranhar a
configuração dos personagens da série Jogos vorazes, isto é, o fato dos arquétipos de
herói e donzela serem invertidos.
Pelo evidente fato de Katniss, ao longo dos três romances analisados, assumir a
posição de Herói, temos a consequência de restar a Peeta o arquétipo feminino da
Donzela. Por essa razão, é-nos importante compreender a composição dos arquétipos
aqui estudados, uma vez que, a nosso ver, há uma inversão dessas imagens arquetípicas
no corpus estudado, a saber, Herói versus Donzela.

Os arquétipos literários
Carl G. Jung foi certamente um dos pioneiros que dissertaram a respeito dos
arquétipos. Com base em muitas consultas feitas com seus pacientes e consequentes
pesquisas e estudos sobre a mente humana, percebeu a existência de imagens, situações,
sonhos e medos que se repetiam e que eram, portanto, semelhantes em todos os seus
pacientes. Com isso, elaborou o conceito de arquétipos ou, para usarmos o correlato do
pesquisador, o conceito de inconsciente coletivo. A tese de Jung (2002, p. 54), portanto,
resume-se da seguinte forma:

[...] à diferença da natureza pessoal da psique consciente, existe um segundo sistema


psíquico, de caráter coletivo, não-pessoal, ao lado do nosso consciente, que por sua vez
é de natureza inteiramente pessoal e que – mesmo quando lhe acrescentamos como
apêndice inconsciente pessoal – consideramos a única psique passível de experiência. O
inconsciente coletivo não se desenvolve individualmente, mas é herdado. Ele consiste
de formas preexistentes, arquétipos, que só secundariamente podem tornar-se
conscientes, conferindo uma forma definida aos conteúdos da consciência.

Afinal, o que é um arquétipo literário? Para o que nos interessa, analisar os


arquétipos literários do Herói e da Donzela, ―[...] os arquétipos junguianos, em primeiro
lugar, são antes imagens, personagens, papéis a serem desempenhados e, apenas em
medida muito menor, temas [...]‖ (MELETÍNSKI, 1998, p. 22, grifo nosso). Randazzo
(1996, p. 14, grifo nosso) concorda com Meletínski (1998) ao afirmar que o ―[...] que
podemos perceber são expressões do arquétipo na forma de imagens e símbolos
arquetípicos. Em outras palavras, todo arquétipo pode se manifestar em número infinito
de formas [...]‖. Arquétipos, são, para Jung, estruturas representadas por formas
imagéticas (personagens que desempenham alguma função, por exemplo), que, apesar
de variar, são essencialmente iguais e repousam no inconsciente coletivo da raça
humana desde o nascer dos tempos.
Antes de adentrarmos mais especificamente nos arquétipos do Herói e da
Donzela, é preciso que explicitemos o fato de que há arquétipos gerais que foram, por
muito tempo, ligados a certos gêneros, como o masculino e o feminino, sendo eles os
arquétipos do Grande-Pai e da Grande-Mãe. Esse preâmbulo se faz necessário porque,

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de acordo com a fundamentação teórica utilizada por nós, os arquétipos do Herói e da
Donzela derivam desses arquétipos globais.
O arquétipo primordial do Grande-Pai

[...] traz as ideias de ordem, dever, responsabilidade, comando, sabedoria, tendo que
proteger a família, dar-lhe segurança e alimento. É o sancionador das atitudes dos
filhos. Tem sua expressão máxima na figura de Deus e pode sofrer desdobramentos,
assumindo a imagem do Guerreiro, valente, independente, corajoso, defensor.
Manifesta-se protetor ou agressor, bom ou mau, herói ou vilão, pouco importando a
natureza ética ou moral de seus atos (MAZUCCHI-SAES, 2005, p. 20, grifo nosso).

O arquétipo do Grande-Pai, portanto, esteve principalmente ligado à figura


masculina e, ao se desmembrar na imagem do Guerreiro, como vimos em Mazucchi-
Saes (2005), pode também derivar um arquétipo mais específico: o do Herói. Portanto,
temos a seguinte cadeia: Grande-Pai  Guerreiro  Herói. O arquétipo do Herói, com
isso, pode carregar em seu interior características de cada um dos arquétipos que o
precede, isto é, o Herói será igualmente ―[...] o protetor, o generoso defensor de tudo o
que é bom [...]‖ (RANDAZZO, 1996, p. 161). Se atentarmo-nos ao fato de que ―a
palavra herói vem do grego, de uma raiz que significa ‗proteger e servir‘ [...]‖
(VOGLER, 2006, p. 52), veremos que o Herói realmente herda traços dos arquétipos do
Grande-Pai e do Guerreiro, seus antecessores.
Em resumo, o Herói será, geralmente, um homem destemido, que coloca a vida
dos outros acima de sua própria vida. Com sua coragem, ele enfrenta inúmeros perigos
e, como consequência, a própria morte. Ele luta por ideais patrióticos porque ama seu
povo e, caso sua nação esteja sob o jugo de um opressor, fará de tudo para derrotá-lo.
Ele é o líder, a voz dos oprimidos e o libertador, o salvador, dos mais fracos. Em sua
jornada, ele busca a justiça, a correção de um erro, a honestidade. Observemos, a seguir,
um diagrama que concatena e sintetiza dez das principais características do arquétipo do
Herói:
Vejamos, agora, a contraparte do arquétipo do Grande-Pai, isto é, a Grande-Mãe.
De acordo com Mazucchi-Saes (2005, p. 16), essa imagem arquetípica geral e
fundadora pode ser caracterizada sob os signos da ―[...] casa, abrigo, caverna, bem como
sob maneiras mais sutis, pelas ideias de aconchego, proteção e nutrição [...]‖. Ela é a
provedora do amor, do conforto, do alimento, do carinho, elementos contrários aos do
Grande-Pai, que comanda, ordena, caça e guerreia. Conforme evidencia Randazzo
(1996, p. 103), o arquétipo da Grande-Mãe ―[...] é uma imagem universal que mostra a
mulher como eterno ventre e eterna provedora. É uma imagem que existe desde o
começo dos tempos e em todas as culturas [...]‖.
Este arquétipo feminino pode ser desmembrado, assim como o Grande-Pai, em
subcategorias arquetípicas, que

[...] confluem as ideias da donzela, por um lado; e sedutora, por outro, assumindo
valores positivos e negativos. A donzela [...], muito explorado na publicidade, é a
mulher frágil, que precisa ser conquistada e protegida [...]. A sedutora [...] reflete o lado
misterioso e mágico da Grande-Mãe. É a mulher fatal, capaz de arruinar a vida de um
homem, a vilã [...] (MAZUCCHI-SAES, 2005, p. 19, grifo nosso).

Portanto, temos aqui a seguinte cadeia (do lado positivo, que é o que mais nos
interessa): Grande-Mãe  Donzela. Diferentemente do arquétipo do Herói, que deriva
do Guerreiro (que por sua vez é um desmembramento do Grande-Pai, como já vimos, e
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assim possui atributos dos dois arquétipos), a Donzela deriva diretamente da Grande-
Mãe e, por essa razão, possui no seu âmago muitas das características predominantes do
arquétipo universal feminino.
Randazzo (1996) afirma que a Donzela é uma das imagens arquetípicas
femininas que mais influencia o mundo ocidental, na publicidade, que é o escopo dele,
mas igualmente na literatura e cinema. Inferimos que isso se deve ao fato de que, por
muito tempo, o mundo ocidental esteve preso à uma tradição patriarcal, que
considerava a mulher como indefesa, dependente e bela. Em adição, dentro desse tipo
de sociedade, cujas características da força e coragem são geralmente atribuídas ao
homem, ―[...] o arquétipo da Donzela era um retrato fiel daquela mulher elegante
erecatada [...]‖ (PETRY e SILVA, 2004, p. 8, grifo nosso).
Em suma, como já demonstramos, todo e qualquer arquétipo ―[...] tem um
conjunto de conceitos em torno de si que constroem a sua imagem arquetípica [...]‖
(PETRY, SILVA, 2004, p. 12). Assim, constatamos que as características do Herói, e
também do Guerreiro, – força, independência, inteligência, poder, etc. – ―[...] estão
associadas com a masculinidade e, portanto, os homens são empurrados para o
arquétipo do Guerreiro [e do Herói] desde a mais tenra idade. Garotos ainda pequenos
são encorajados a serem fortes e independentes [...]‖ (RANDAZZO, 1996, p. 123). Já as
mulheres ―[...] são empurradas para o papel de mártir que cuida de tudo. As menininhas
são encorajadas a serem educadas, sensíveis, gentis e carinhosas [...]‖, símbolos do
arquétipo da Donzela. Ao se casar, a mulher ―[...] adota o arquétipo da Mãe, que mais
uma vez exige educação e carinho [...]‖ (Ibidem, p. 123). Os tradicionais filmes e HQs
de Super-Heróis e de Guerra comprovam este fato, e uma longa lista de exemplos
poderia ser feita, justamente porque neles podemos observar o padrão Homem-Herói,
Mulher-Donzela sendo repetido.

Inversão de arquétipos
Na série Jogos vorazes, de fato, percebemos que há a ―[...] repetência de
esquemas narrativos, há uma reiteração das imagens [...]‖ (MAZUCCHI-SAES, 2005,
p. 21) arquetípicas do Herói e da Donzela, com a nítida e principal diferença de que essa
repetição é invertida, justamente porque a autora norte-americana não fixa o gênero
masculino ao Herói e o gênero feminino à Donzela, ao contrário, Suzanne Collins
concebe o heroísmo e todas as suas características à sua personagem feminina Katniss
Everdeen, o que consequentemente coloca Peeta Mellark na posição de Donzela.
Há na série, nos termos de Mazucchi-Saes (2005, p. 34), ―combinações e
transmutações de arquétipos‖, ou seja, símbolos, que outrora eram estanques e ligados a
elementos masculinos e femininos, foram recombinados, transmutados, transformados e
reconectados a outros gêneros. Ainda nas palavras de Mazucchi-Saes (2005, p. 19, grifo
nosso), os elementos do Herói, do Grande-Pai, da Donzela, da Grande-Mãe, ―[...] podem
ser associados a qualquer entidade que reflita tais ideias e sensações [...]‖. Assim, há a
inversão de arquétipos, porque Katniss reflete os conceitos do Herói (e também os
conceitos do arquétipo da deusa Ártemis, como verificaremos), e Peeta os da Donzela.
Vejamos, a seguir, um exemplo da inversão no corpusdo artigo, o romanceJogos
vorazes.
No primeiro romance da série, podemos destacar a grande sequência em que
Katniss, quando as regras dos Jogos mudam e concedem a oportunidade de dois tributos
de um mesmo distrito vencerem, sai à procura de Peeta e o encontra demasiadamente

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ferido. O objetivo primeiro de Katniss é continuar usando do artifício de ―amantes
desafortunados‖ que a Capital construiu ao redor dela e de Peeta para, então, angariar
mais dádivas dos Patrocinadores, que facilitarão a ela e, por consequência, ao garoto, a
vitória da 74ª edição dos Jogos Vorazes.
Katniss repassa em sua mente os acontecimentos da última vez em que vira
Peeta e retorna ao local das teleguiadas. Utilizando sua inteligência, a heroína determina
que o garoto não podia ficar todo esse tempo sem água, então, começa a procurá-lo
perto do riacho e encontra um rastro de sangue. Arriscando-se, grita pelo nome de Peeta
até que escuta sua voz. O garoto, que fugira de Cato por ter auxiliado Katniss,
camuflou-se com plantas e lama do riacho: ―Seu rosto e braços estão tão
magnificamente disfarçados que até parecem invisíveis‖ (COLLINS, 2010, p. 271).
Katniss, por sua vez, evidencia seu altruísmo, compaixão e força – elementos da
imagem arquetípica do herói – quando tira Peeta da lama, leva-o para mais perto da
água, a fim de limpá-lo, e começa a tratar de todos os seus ferimentos, deixando o corte
que Cato fizera em sua coxa esquerda por último.
Quando finalmente se dispõe a cuidar do corte, um ―[...] talho profundo e
inflamado que exsuda sangue e pus‖, cheirando a ―carne supurada‖ (Ibidem, p. 274),
Katniss sente o ímpeto de sair correndo e fugir, porém, consegue ―reproduzir a postura
de calma que minha mãe assume quando tem de lidar com casos particularmente
difíceis‖ (Ibidem, p. 274). Dessa forma, percebemos que a garota se configura
exatamente como um herói, porque, segundo as postulações de Vogler (2006), esse tipo
personagem possui tanto elementos nobres quanto contraditórios, concedendo a ele um
caráter humano.
Katniss precisa demonstrar que é capaz de vencer suas próprias limitações, seu
medo de cuidar dos ferimentos de uma pessoa. Ser como Hércules, que libertara
Prometeu de seu suplício eterno, e libertar Peeta de toda a dor que sentia. E a heroína
consegue, pois deixa todo o medo e asco de lado e limpa o ferimento, pressionando
folhas mastigadas no local (as mesmas folhas que Rue aplicara nas ferroadas das
vespas). Por fim, retira as folhas, coloca o unguento das queimaduras no corte e faz um
curativo de algodão. Como se houvesse sido treinada por Quíron, o célebre centauro
hábil nas artes da medicina, Katniss deu assistência e ofereceu os primeiros socorros a
Peeta, agora seu aliado.
Katniss, mais uma vez utilizando-se de sua força, ampara Peeta, e ambos andam
até uma espécie de caverna, em busca de proteção. Ali, ela medica o garoto e teme por
sua vida, pois a febre continua alta. A possibilidade de Peeta perder a vida abala
Katniss, de forma que, para reforçar a relação amorosa que há entre ambos, ela o beija.
Por consequência, Katniss é mais uma vez ajudada pelos Patrocinadores, pois, ao sair da
caverna, um paraquedas aterrissa com um pote de caldo quente. Mas a garota sabe que
isso não será o suficiente para agradar a audiência e os Patrocinadores, e que precisará
aumentar sua relação com Peeta a fim de que ele sobreviva, uma vez que situação dele
se degrada cada vez mais.
Os Idealizadores dos Jogos que, como sabemos, manipulam cada regra da
competição, anunciam, por meio da voz incorpórea de Claudius Templesmith, um
ágape, a ser realizado próximo da Cornucópia, no qual os tributos encontrarão algo de
que muito necessitam:

– Cada um de vocês encontrará essa alguma coisa na Cornucópia, ao amanhecer, dentro


de uma mochila marcada com o número de seu distrito. Pensem bem antes de se

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recusarem a comparecer. Para alguns de vocês, essa será a última chance – conclui
Claudius (COLLINS, 2010, p. 293).

De fato, Katniss necessita de algum medicamento que possa curar Peeta. O


garoto reconhece nessa manipulação um perigo iminente e tenta persuadir Katniss a não
ir ao ágape. Com o objetivo de tranquilizar Peeta, Katniss mente, assegurando ao rapaz
que não participará do evento, contudo, ele não acredita.
– Você mente tão mal, Katniss [...].
Uma sensação enrubesce o rosto.
– Tudo bem, eu vou, e você não vai me impedir.
[...]
– O que devo fazer então? Ficar aqui sentada assistindo à sua morte? – Ele deve saber
que essa não é uma opção. Que o público me odiaria por isso. E, francamente, eu
mesma me odiaria também se nem ao menos tentasse (COLLINS, 2010, p. 294, grifo
nosso).

A garota precisa, então, de um auxílio para que seu plano de ir ao ágape se


efetive, sem que Peeta, uma vez debilitado, a persiga. Mais uma vez a ajuda divina dos
Patrocinadores vem a favor de Katniss, que enviam a ela um pequeno frasco de xarope
do sono, capaz de ―tirar Peeta do ar por um dia inteiro, mas para que isso serviria? Estou
com tanta raiva de que estou a ponto de jogar a última dádiva de Haymitch no riacho
quando uma ideia me ocorre. Um dia inteiro? Isso é mais do que preciso‖ (Ibidem, p.
296, grifo nosso). Sagazmente, Katniss mistura o xarope a amoras silvestres, a fim de se
disfarçar o sabor do xarope, e medica o garoto, que adormece instantaneamente.
Ao amanhecer, Katniss já se encontra na arena, onde uma ―mesa redonda
revestida com um tecido branco como a neve surge [...]. Sobre a mesa encontram-se
quatro mochilas‖ (COLLINS, 2010, p. 303) para cada um dos distritos restantes em
jogo. A garota, reunindo toda a sua coragem, corre em direção a mesa para pegar a
mochila do Distrito 12, mas Clove, tributo feminina do Distrito 2, intercepta-a.

[...] Por sorte, a primeira faca passa zunindo à minha direita, de modo que posso ouvi-la
e consigo desviá-la com o arco. Viro-me, repuxando a corda e dou uma flechada
certeira no coração de Clove. Ela se vira no momento exato para evitar um ferimento
fatal, mas a ponta perfura seu braço esquerdo. Infelizmente, é destra, mas o golpe foi
suficiente para que ela perca um pouco de tempo, sendo obrigada a tirar a flecha do
braço e avaliar a gravidade da lesão. Continuo em movimento, posicionando
automaticamente a próxima flecha, como somente uma pessoa que caça há anos
consegue fazer.
Estou na mesa agora, meus dedos agarrando a diminuta mochila laranja. [...] e estou
sendo atacada novamente quando uma segunda faca me acerta a testa. Ela rasga minha
carne acima da sobrancelha, abrindo um talho que faz o sangue jorrar e escorrer por
meu rosto, impedindo-me de enxergar, enchendo minha boca com o gosto forte e
metálico de meu próprio sangue. Cambaleio de volta, mas ainda consigo mandar uma
flecha na direção geral de minha agressora. No instante em que a flecha parte, sei que
não acertará o alvo. E então Clove me dá um soco, me jogando de costas no chão,
prendendo meus ombros com os joelhos (COLLINS, 2010, p. 304).

Possivelmente esse seria o fim de Katniss se Clove não tivesse mencionado o


assassinato de Rue. Então Tresh, tributo masculino do mesmo distrito da pequena
garota, ao ouvir o relato da morte de sua companheira, gira ―o corpo de Clove e a
arremessa em direção ao chão‖ (Ibidem, p. 307), para longe de Katniss:

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– O que você fez com aquela garotinha? Você a matou?
Clove está recuando, de quatro, como um inseto em frenesi, chocada demais até para
chamar por Cato.
– Não! Não! Não fui eu!
– Você falou o nome dela. Eu ouvi. Você a matou? – Um outro pensamento produz uma
nova onda de fúria em suas feições. – Você a cortou como ia cortar essa outra garota
aqui?
– Não! Não! Eu... – Clove vê a pedra na sua mão, mais ou menos do tamanho de um
pão de forma, e perde o controle. – Cato! – berra ela. – Cato!
– Clove! – Ouço a resposta de Cato, mas ele está longe demais, presumo, para lhe dar
algum auxílio. O que ele estava fazendo? Tentando pegar Cara de Raposa ou Peeta? Ou
será que ele estava esperando por Tresh e simplesmente errou sua localização?
Thresh bate a pedra com força na têmpora de Clove. Não está sangrando, mas vejo a
reentrância na cabeça e sei que ela já era. Mas ainda há algum sinal de vida nela, dá
para ver pelo movimento do peito, pelo gemido baixo que lhe escapa dos lábios.
Quando Tresh gira o corpo em minha direção, a pedra erguida, sei que não é uma boa
ideia correr. E meu arco está vazio, já que a última flecha pronta eu havia utilizado em
Clove. Estou encurralada no brilho de seus estranhos olhos cor de âmbar.
– O que ela estava querendo dizer quando disse que Rue era sua aliada?
– Eu... eu... Nós fizemos uma parceria. Explodimos os suprimentos. Tentei salvá-la,
juro que tentei. Mas ele chegou antes de mim. Distrito 1 – respondo. Talvez se ele
souber que eu ajudei Rue, não escolherá alguma maneira lenta e sádica de acabar
comigo.
[...]
– Vou deixar você escapar, mas só dessa vez. Pela garotinha. Agora eu e você estamos
quites. Não te devo mais nada. Tá me entendendo? (Ibidem, p. 307-309).

Podemos dizer que, sem o auxílio de Tresh, Katniss teria falhado em sua missão
de pegar a mochila que continha o remédio para salvar Peeta. Como já expomos
anteriormente, o auxílio, um elemento da esfera do heroísmo clássico, pode surgir ao
herói de formas variadas, como, por exemplo, sob forma de um deus que pelo herói
possui afeição, sob forma de um conselho, solução de um enigma, proteção provinda do
pai ou da mãe, um feitiço, o auxiliar pode ser chantageado ou comprado, etc. Nesse
caso, o auxílio proveio em forma de justiça, pois Katniss havia ajudado Rue e, além
disso, matado seu agressor. Tresh em retribuição à garota, mata Clove e ainda poupa a
vida da heroína. Apesar de Trash não ser amigo de Katniss, agiu em benefício dela em
relação a outro amigo, no caso, Rue. Somente com sua ajuda, a garota pôde pegar a
mochila e levar o medicamento a Peeta, que obteve grande melhora no ferimento da
perna.
Katniss, então, desde o momento em que decidira procurar Peeta, após o anúncio
da regra que permite dois vencedores de um mesmo distrito, até o seu retorno do ágape
e a cura do garoto, demonstrou inúmeros elementos do arquétipo do Herói, como a
sagacidade e a inteligência, em seguir as regras do jogos (afinal, ao se juntar a Peeta, ela
aumentou as chances de vencer os jogos, para além do fato de receber dádivas ao beijar
o rapaz); a proatividade em buscar o rapaz, pois sabia que Peeta, em sua condição
ferida, não conseguiria procurar por ela; o altruísmo, por cuidar de todos os ferimentos
de Peeta, apesar de todo o medo e asco que sentira; a proteção, ao procurar Peeta e
protegê-lo em uma caverna; a liderança, ao impor sua voz acima da de Peeta e afirmar
que iria ao ágape; por fim, a coragem e valentia, por ir sozinha ao agápe para enfrentar
os tributos vivos a fim de angariar o medicamento para curar os ferimentos do garoto.

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Peeta, por sua vez, demonstrou vários elementos característicos do arquétipo da
Donzela, como a fragilidade, porque, antes de Katniss o encontrar, estava totalmente
sozinho e ferido; a dependência, pois somente com a ajuda de Katniss ele pôde se ver
bem novamente; a passividade e a inatividade (elementos contrários a proatividade),
uma vez ferido, não poderia ir ao ágape, o que restou a Katniss todo o enfrentamento
para obter o medicamento; o carinho, ao demonstrar seu amor pela garota na caverna.
Apesar de Peeta demonstrar, ainda que muito raramente, elementos do Herói, como a
proteção (relembremos que ele pediu a Katniss que não fosse ao ágape, pois sabia que
seria perigoso – ou talvez seria esse o elemento da pacificidade? Ou mesmo a
covardia?), todo esse conjunto de características evidencia que o garoto se posiciona
essencialmente como Donzela e Katniss, por consequência, como Herói.

Considerações finais
Podemos dizer, então, que as representações arquetípicas não podem mais ser
rigorosamente distinguidas em relação ao gênero da personagem. Um personagem
masculino pode desempenhar características da Grande-Mãe, de mesma forma, uma
personagem feminina pode ilustrar o Grande-Pai. O que certamente percebemos, com a
análise de um segmento narrativodo romance Jogos vorazes, é que a inversão dos
arquétipos, estruturas que antes eram rigidamente fixados a certos gêneros, representa
uma necessidade de mostrar que a mulher também pode ser heroína.
Apropriando-nos do discurso de Mazucchi-Saes (2005, p. 40), podemos dizer
que a inversão de arquétipos, como vimos ocorrer com exemplodo romance Jogos
vorazes, ―[...] supre necessidades da sociedade, heterogênea em termos de moral,
conduta e valores [...]‖. Ora, se os papéis da mulher e do homem estão mudando na
sociedade, a inversão ocorre na série como reflexo dessas necessidades, que se mostram
cada vez mais múltiplas e plurais. Conforme aponta Randazzo (1996, p. 135),

[...] as mulheres [...] estão literalmente redefinindo a imagem da mulher e o seu lugar na
sociedade. Uma coisa não deixa dúvidas: as velhas mitologias femininas são restritivas
demais. As mulheres estão à cata de novas mitologias capazes de refletir os novos
anseios papéis da sociedade contemporânea.

Essa redefinição dos arquétipos literários é consequência de lutas sociais, como


as do movimento feminista, que recusam os tradicionais papéis e imagens tradicionais
da mulher, como os da Donzela, que representa passividade, obediência, beleza, etc., e
abrem novas possibilidades, trazendo à luz mulheres guerreiras e heroínas. Constatamos
que a autora estadunidense, por meio da inversão de arquétipos, evidencia o quanto
Katniss representa vários aspectos do movimento feminista.
O feminismo, como sabemos, demonstrou a resistência das mulheres em
continuar sendo excluídas, oprimidas, dominadas, marginalizadas. Segundo Chatagnier
(2014, p. 64), foi ―por meio das lutas feministas que muitos direitos foram adquiridos. O
feminismo alcançou um lugar de destaque na cultura pós-moderna, pois a voz da mulher
tem sido uma marca insistente em busca de reconhecimento [...]‖. Graças ao feminismo,
com o decorrer das décadas, a mulher passou a ter uma posição mais ativa na sociedade
e se libertou dos papéis sociais que a tradição masculina lhe impingiu por tanto tempo.
Ela obteve, por meio de todas as lutas, o poder ao voto, pôde trabalhar fora do âmbito
domiciliar, ser mãe solteira, estar casada, não querer filhos, etc. Isso é, de certa forma,
refletido no romance analisado.
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A obra de Collins recebe, portanto, uma grande atualização, justamente porque o
herói não é representado por um homem, mas sim, por uma mulher. Conforme vemos
em Campbell (1997, p. 242), as mudanças ou atualizações na aventura do herói
descartam ou reduzem características arcaicas – como o fato de, geralmente, o herói ser
um homem. Assim, ―[...] os elementos importados são revisados para se adequarem à
paisagem, aos costumes ou às crenças locais [...]‖ e isso quer dizer que o mito, sendo o
elemento importado, é adequado a uma sociedade, não mais a clássica, e ao mesmo
tempo é revisado/adequado, de forma que se torne possível termos, nos dias de hoje,
uma mulher representando o Herói Clássico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista,
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RANDAZZO, S. A criação de mitos na publicidade: como os publicitários usam o
poder do mito e do simbolismo para criar marcas de sucesso. Trad. de Mário Fondelli.
Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
VOGLER, C. A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores. Trad. de Ana
Maria Machado. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

199
O eu femino na obra Debaixo da minha pele de Doris
Lessing
(The feminine self in Under My Skin by Doris Lessing)

Simone Sanches Vicente Morais1, Dolores Aparecida Garcia2, Henrique


de Oliveira Lee3
1
Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso (SEDUC)
2
Centro Universitário de Várzea Grande (UNIVAG)
3
Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT)

sanches.simone@gmail.com; doloresgarcia.1411@gmail.com; holiveiralee@gmail.com

Abstract: The work presented here is part of a doctoral research in the area of Language
Studies initiated in 2017 at the Universidade Federal de Mato Grosso, which intend to present
and discuss the main themes within the autobiography of the English author Doris Lessing.
Nonetheless, this summary is intended to reflect one of these subjects, the feminine self,
within the book Under My Skin (1994). We will support our discussions in Butler (2003),
Haraway (2004), Citeli (2001), Lejeune (2014) and others. Doris Lessing looks at the
differences that fall on the female self. It is observed in this book that even with the repressive
education that she received from her mother, the author managed to transgress the boundaries
of the impossible, once the context in which she was inserted was still governed in the
patriarchal molds.
Key-words: Feminine self; repressive-education; autonomy.

Resumo: O trabalho aqui apresentado está inserido dentro de uma pesquisa de doutoramento
na área de Estudos de Linguagem iniciado no ano de 2017, na Universidade Federal de Mato
Grosso, em que pretende apresentar e discutir as principais temáticas, dentro da autobiografia
da autora inglesa Doris Lessing. Mas, para este resumo, pretende-se refletir uma dessas
temáticas, o eu feminino, dentro da obra Debaixo de minha pele (1994). Apoiaremos nossas
discussões em Butler (2003), Haraway (2004), Citeli (2001), Lejeune (2014) e outros. Doris
Lessing debruça o seu olhar para as diferenças que recaem sobre o eu feminino. Observa-se,
nesta obra, que mesmo com a educação repressora recebida pela mãe, a autora conseguiu
transgridir as fronteiras do impossível, uma vez que o contexto no qual estava inserida ainda
era regido sob os moldes patriarcais.
Palavras-chave: Eu feminino; educação-repressora; autonomia.

Conhecendo Doris Lessing


A proposta deste trabalho consiste em analisar a autobiografia de Doris Lessing,
pontuando como ela lidou com assuntos que hoje são considerados polêmicos vistos
ainda como tabus, frente ao contexto social em que vivia, na obra Debaixo de minha
pele escrita no ano de 1994, uma vez que naquela época, não era interessante que
houvesse mulheres que pensassem de forma diferente da norma masculina hegemônica,
e cabiam a elas, o dever de cumprir o papel que a sociedade lhes atribuía.
Pretendemos apresentar como a inglesa Doris Lessingmobiliza a questão de
gênero e poder, como observa e lida com as relações no seu entorno, quer com parentes
ou com as pessoas com que conviveu no período correspondente a 1919 a 1949. Este
será sustentado e subsidiado teoricamente pelas discussões feitas por autores como

200
Judith Butler (2014), Maria Teresa Citeli (2001), e Joan Scott (1995), Michel Foucault
(1997) e Piscitelli (2009).
Antes de apresentarmos a teoria de gênero que acreditamos perpassar pela vida
de Doris Lessing, veremos um pouco sobre a vida desta autora, a fim de que possamos
compreender quem é Doris Lessing, em qual contexto está inserida, as ideias que
defende e as que se defende.
Doris Lessing nasceu Doris May Tayler na Pérsia onde hoje está localizado o Irã
em 22 de outubro de 1919, e segundo os relatos encontrados logo nas primeiras páginas
de sua autobiografia Debaixo da minha pele (1994). Ela não teve uma infância muito
feliz e comum como a da a maioria das meninas de sua época, a autora atribui a isso o
fato dos pais, cada um a sua maneira, ter participado da Primeira Guerra Mundial, o pai
como combatente e a mãe como enfermeira. A mãe cuidou do futuro marido que havia
perdido parte da perna direita.
Na tentativa de melhorar a vida da familia em 1925,Doris, seu irmão Harry e
seus pais, embarcaram em uma viagem longa da Inglaterrra até a África via Rússia,
especificadamente para uma colônia britânica na Rodésia do Sul, hoje é o Zimbábue,
que estava em total ascenção, e abria o cenáriocom a promessa de uma vida melhor.
A escritora afirma que sua infância foi dividida entre o prazer e ador, sempre em
companhia do irmão.A vida na Rodésia deixou a mãe de Doris obsecada pela
necessidade de educar a filha seguindo um sistema rígido de regras comuns à sociedade
britância e esse fato na verdade colocou Doris desde muito menina sob a condição de
submissão, obediência e total colonização identitária.
Doris é enviada à um convento e lá é exposta mais uma vez a regras que deviam
ser seguidas e jamais contrariadas, pois se assim o fossem, conforme a fala das freiras
do convento a punição seria o inferno.Doris não aguenta essa opressão e aos treze anos
abandona o convento e a educação formal e passa então a estudar sozinha em casa e a
gerir seu próprio gosto pela literatura, deparando-se com os clássicos e descobrindo no
universo oferecido pela literatura uma forma de fugir das amargas lembranças de guerra
que constumavam atormentá-la.
Aos quinze anos, Doris decide sair de casa por não aguentar mais as imposições
de sua mãe e vai trabalhar como babá em uma casa de família, período em que entra em
contato com obras de sociologia e de política e que viriam, a influenciar a vida da
escritora mais tarde, pois a mesma toma como mote em grande parte de suas obras as
questões voltadas para as preocupações sociais, para as desigualdades raciais, para a luta
estabelecida entre o indíduo e o coletivo no qual esse indivíduo se encontra inserido e
que, muitas vezes, é excluído, como vem a ser o questionamento feito por Doris sobre a
desapropriação dos negros em terras africanas, desencadeado pelo homem branco.
Aos dezenove anos, Doris se casa com Frank Wisdom com quem tem dois filhos
– Jhon e Jean. Separa-se e os filhos ficam com o pai. Em 1943, casa-se com Gottfried,
somente porque segundo a autora não seria possível ter um caso, e muito menos viver
juntoe passa a militar pelas causas comunistas junto com seu segundo marido. Com este
comungavam da ideia revolucionaria de mudar o mundo, ambos eram comunistas, eles
têm um filho: Peter, mas também separa-se.
A partir de 1949, depois de deixar pra trás dois casamentos e dois filhos, foi
viver em Londres levando o filho que teve com o alemão Gottfried Lessing.
Após esta segunda separação, Doris procura fazer da literatura uma forma de
ganhar a vida, e torna-se escritora, iniciando a sua produção com pequenos contos até a

201
publicação de seus livros. Dedica-se veementemente à literatura e às mulheres. Debruça
o seu olhar para as diferenças que recaem sobre o eu feminino.
Nesta primeira autobiografia, identifica situações e atitudes que vão da infancia
até a vida adulta e percebe que as mulheres foram educadas para gestar e para educar
seus filhos. As mulheres aprenderam que o papel da mulher era esse, entretanto não lhe
ensinaram a desempenhá-lo sem ter que abdicar da identidade anterior, a do eu feminino
muito anterior à do eu materno. Dessa forma, Doris realiza sua autobiografia narrando
as histórias das pessoas com as quais conviveu, os relacionamento entre homens e
mulheres que são marcados pela posse do masculino sobre o feminino, enfatizando cada
vez mais o sistema patriarcal no qual as mulheres estão submersas e quiça por que não
dizer afogadas.

A autobiografia e Doris...
A autobiografia enquanto eixo condutor deste estudo se apoia nas teorias
formuladas por Phellipe Lejeune (2014). Um dos maiores especialistas na área de
estudos sobre autobiografia e outras formas da escrita íntima.
Seu primeiro livro dedicado ao tema foi publicado em 1971 com o título de
L‘autobiographie en France. A obra constitui uma tentativa de compreender o seu
funcionamento e a legitimação do gênero. Fundou, em 1992, a APA (Association pour
l‘autobiographie et pour le patrimoine autobiographique). Seus estudos se voltam
também a outras formas de autorrepresentação como o cinema, as artes plásticas, a
correspondência, o diário e suas particularidades.
Posteriormente publicou Le pacte autobiographique, obra mais conhecida no
Brasil. A obra O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet (2014) foi publicada pela
Editora da UFMG, traduzido por Maria Inês Coimbra Guedes e Jovita Maria Gerheim
Noronha, organizado por esta autora. A organizadora sistematiza o livro em quatro
partes, O pacto autobiográfico, Autobiografia e Sociedade, Outras formas de
autorrepressentação e Diários e Blogs.
Em O pacto autobiográfico (2014), Lejeune apresenta a definição do gênero
como ―[...] narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria
existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua
personalidade‖. (LEJEUNE, 2014, p. 16). E acrescenta, ―[...] mas também uma
realização particular desse discurso, na qual a resposta à pergunta ―quem sou eu?‖
consiste em uma narrativa que diz como me tornei assim (LEJEUNE, 2014, p. 63-64).
Calligaris (1998) em uma Conferência denominada Verdades de Autobiografia e
diários íntimos, afirma que o sujeito estaria convencido a ser autor de seu próprio
discurso e não um mero espectador com capacidade de conduzir seu próprio destino, e
essa consciência faz com que se transforme em um texto autobiográfico.
Callagaris (1998, p. 46) vale-se ainda da concepção de ―ato autobiográfico‖ de
Georges Gusdorf, conceituado como algo historicamente datado, porque a autobiografia
se mostraria ao mesmo tempo como a saída de uma sociedade tradicional e ―[...]
(portanto) o sentimento de história como uma aventura autônoma, individual‖.
O indivíduo, independente de sua relevância social, deve conceber a sua vida ou
o seu destino além da comunidade a que ele pertence, na qual conceba sua vida não
como uma confirmação das regras e das heranças tradicionais, mas sim como uma
aventura a ser inventada. Tenta-se viver a ideia da aventura pessoal e não a da história
geral.

202
Lejeune define autobiografia em distintas categorias, na forma de linguagem
podendo ser narrativa ou prosa; o assunto a ser tratado: vida individual, história de uma
personalidade; a situação do autor: identidade do autor (cujo nome remete a uma pessoa
real) e do narrador e a posição do narrador: Identidade do narrador e do personagem
principal; Perspectiva retrospectiva da narrativa.
Ao ler Doris Lessing, podemos afirmar que a obra Debaixo da minha pele,
publicado em 1994, apresenta forte dimensão autobiográfica e reveladora da sua alma
inquietada com as violências produzidas pela guerra.
Isso pode ser verificado quando Lessing (2007, p. 17) escreve assim:

E ali eu nasci no dia 22 de outubro de 1919. Minha mãe teve um parto difícil. Eu fui
tirada a fórceps. Meu rosto ficou com marcas roxas durante dias e dias. Se eu acredito
que esse nascimento difícil me deixou marcas – vale dizer, em minha natureza? Quem é
que sabe? O que sei é ter nascido no ano de 1919, quando metade da Europa era um
cemitério e as pessoas morriam aos milhões, pelo mundo todo – isso foi muito
importante.

O termo ali, utilizado por Lessing refere-se ao casarão de pedra o qual seus pais
chegaram, ambos doente emocionalmente. Atualmente a cidade de Kermanshah –
danificada pelo bombardeio entre Irã e Iraque, na década de 1980.
Observamos que Debaixo de minha pele satisfaz todas as condições da definição
apresentada por Lejeune, uma vez que a pessoa é real, a personagem chamada Doris que
narra a sua história, desde o seu nascimento até a juventude.
Quando começou escrever essa obra, aos 71 anos de idade, em 1990, Doris
Lessing afirma que a importância da guerra em sua vida não diminuiu para ela nesses
anos. Declara que quando estava escrevendo esse livro, viajou pelas aldeias francesas,
escocesas e inglesas, e mesmo já tendo se passado tanto tempo, estes lugares eram
capazes de fazê-la reviver as emoções turbulentas da infância e as dores de seus pais,
afinal ambos foram afetados diretamente pela guerra, sua mãe enfermeira antes de
conhecer seu pai, perdera o noivo, e o pai perdeu parte de uma perna. Ambos se
consolaram diante da tragédia que os abateu.
E faz uma reflexão, que o pior legado deixado da 1ª Guerra mundial, a
incapacidade da raça humana de aprender com as atrocidades que a guerra causa nas
pessoas. ―Fomos, todos nós, feitos pela guerra, pervertidos e mutilados pela guerra, mas
parece que nos esquecemos disto‖ (2007, p. 18)
Doris quando relata sobre o pai, sempre que o via caminhando ou quando
encostava seu corpo na perna dele, ou no que sobrara dela, lembrava o que a guerra fora
capaz de fazer ao seu pai. Tanto fisicamente quando emocionalmente, vez que também
dizia sobre o quanto essa violência destruíra a capacidade de ser feliz.
Já a mãe era percebida por Doris como uma mulher fria, e obcecada para que
seus filhos tivessem educação inglesa e fizessem um bom casamento a fim de tirá-la
daquela condição infeliz, já que o marido não conseguira.
Quanto à abordagem sobre a escrita autobiográfica, Lejeune afirma que existem
duas características importantes para que haja pertença ao gênero: entre a identidade o
autor e o narrador e a identidade entre o narrador e o personagem principal.
Trata-se de uma condição que Lejeune resume com esta máxima: ―[...] para que
haja autobiografia (e, numa perspectiva mais geral, literatura íntima), é preciso que haja
relação de identidade entre o autor, o narrador e o personagem‖ (LEJEUNE, 2014, p.
18).

203
Ainda segundo o autor, a identidade se define a partir de três termos: autor,
narrador e personagem. Sendo o narrador e personagem são os elementos que remetem,
no texto, ao sujeito da enunciação e o sujeito do enunciado, respectivamente. O autor,
representado por seu nome, é então o referente ao qual remete, por força do pacto
autobiográfico, o sujeito da enunciação. Dessa forma, concluindo suas análises
anteriores sobre a questão da identidade. Lejeune trata da relação contratual assentada
no pacto referencial e no pacto da leitura.
O autor afirma ainda que, em oposição a todas as formas de ficção, a
autobiografia como a biografia, são textos referenciais tal qual o discurso científico ou
histórico, isto porque ―[...] eles de propõem a fornecer informações a respeito de
―realidade‖ externa ao texto e a se submeter, portanto a uma prova de verificação
(LEJEUNE, 2014, p. 43)‖. Pois, o objetivo não é o verdadeiro, o real, mas sim a
semelhança e a imagem do real.
O pacto referencial inscreve o texto no campo da expressão da verdade, ―[...] é
em geral coextensivo ao pacto autobiográfico, sendo difícil dissociá-los, exatamente
como ocorre com o sujeito da enunciação e o do enunciado na primeira pessoa‖
(LEJEUNE, 2014, p. 43).
Afinal, na autobiografia, é necessário que o pacto referencial seja firmado e
cumprido, entretanto é desnecessário que o resultado seja ―[...] da ordem da estrita
semelhança‖ (LEJEUNE, 2014, p. 44). E cabe ao leitor com o texto autobiográfico
empreender uma leitura admitindo o próprio fundamento de sua relação com a
autenticidade que se queira dar tal qual etapa de sua vida.
Para lermos Doris Lessing, recorremos a Judith Butler em seu livro Relatar a si
mesmo (2015), quando esta autora diferencia e nos faz compreender que contar uma
história de si não é o mesmo que relatar a si mesmo. Isso porque, nesta forma de escrita
há uma tentativa de persuasão. ―A narrativa, portanto, deve estabelecer se o si-mesmo
foi ou não foi a causa do sofrimento, e assim proporcionar um meio persuasivo em
virtude do qual é possível entender a ação causal do si-mesmo.‖ (BUTLER, 2015, p. 23-
24). Nesse sentido, a capacidade narrativa é a precondição para se fazer um relato de si,
e assumir a responsabilidade das ações por desse meio.
Calligaris (1998, p. 44) colabora com o pensamento de Butler ao afirmar que
vivemos em uma cultura em que a marca da subjetividade de quem fala ou escreve
constituiu um argumento e uma autoridade tão fortes quanto ―o apelo à tradição, ou a
prova dos fatos‖.
E segue afirmando, que para o sujeito moderno falar de si responde à
necessidade cultural de reconstruir ao mundo e a si mesmo no silêncio deixado pela
sociedade tradicional. Afinal, os atos autobiográficos devem informar ao seu leitor,
sobre os caminhos pelos quais o autor se constituiu, e quem sabe nos informar sobre seu
futuro.

O Gênero e Doris...
Podemos observar autores que mobilizam conceitos e reflexões sobre gênero,
sexualidade e masculinidade, que buscavam não apenas elucidar, mas também
esclarecer posturas e atitudes repetidas por nós, mulheres, em repetirmos justificativas
usadas por nossos pais, avós, bisavós, à respeito de genero e de sexualidade, reforçando
mais uma vez o discurso da fragilidade e submissão feminina.

204
O conceito de gênero foi elaborado e reformulado ao longo da história e em
momentos que os conceitos vividos não eram mais satisfatórios. Para Adriane Piscitelli
em seu artigo Gênero: a história de um conceito (2009) a história das teorias sociais
sobre a diferença sexual foi inovadora em diversos sentidos. E essa inovação marcou a
história e por esse fato acreditamos ser pertinente apresentarmos alguns pontos
concernentes a discussão dos mesmos.
Donna Haraway em seu artigo ―Gênero‖ para um dicionário marxista: política
sexual de uma palavra (2004) cita o autor Robert Stoller, psiquiatra que formulou o
conceito de identidade de gênero, para estabelecer a distinção entre biologia e cultura. O
sexo estava vinculado à biologia, isto é, aos hormônios, genes, sistema nervoso,
morfologia, enquanto que o gênero à cultura como a psicologia e a sociologia. Assim, o
produto do trabalho da cultura sobre a biologia era o centro, a pessoa produzida pelo
gênero, isto é, um homem ou uma mulher.
Joan Scott em seu artigo Gênero: uma categoria útil de análise histórica (1995)
elucida que os historiadores ao tentar teorizar o gênero o fizeram dentro das ciências
sociais, propondo explicações causais para formulações antigas.Esse fato limita a
compreensão porque as generalizações são redutoras e simplistas. Entretanto, não basta
apenas descrever, é preciso analisar. Há que se perguntar mais frequentemente por qual
motivo as coisas acontecem e buscar uma explicação significativa. E para buscar essa
resposta, precisamos compreender que ―gênero‖ não se restringe apenas ao sexo ou à
mulher de forma isolada, mas sim encontra-se relacionado à família, à mulher, à
religião, à sociedade, pois as esferas sociais não são isoladas e nem mesmo a mulher.
Scott cita ainda outros estudos que contribuíram para essa desconstrução da
ideia de que sexo se referia à anatomia e à fisiologia dos corpos. Essa concepção
permite a interpretação de que as diferenças entre mulheres e homens no domínio
cognitivo e comportamental, bem como as desigualdades sociais, poderiam decorrer de
diferenças sexuais localizadas no cérebro, nos genes ou provocadas por hormônios e
outros. Assim, com o objetivo de problematizar essa situação, os estudos feministas
sinalizaram que as afirmações das ciências biológicas sobre os corpos femininos e
masculinos (tanto no passado quanto no presente) não podem ser verificadas como
espelho da natureza, isso porque as ciências, como qualquer outro empreendimento
humano estão impregnadas pelos valores de seu tempo.
Scott apresenta sua definição de gênero sinalizando com a seguinte definição: ―o
gênero é um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças
percebidas entre os sexos, e o gênero é um primeiro modo de dar significado às relações
de poder‖ (SCOTT, p. 14).
Maria Teresa Citeli (2001) em seu artigo Fazendo diferenças: teorias sobre
gênero, corpo e comportamento, comunga das ideias apresentadas anteriormente, por
Stollere Scott, e afirma que desde 1970 muitos estudos lidaram com o binômio
sexo/gênero, entendendo que sexo representaria a anatomia e a fisiologia (natureza),
enquanto gênero representaria as forças sociais, políticas e institucionais moldantes dos
comportamentos simbólicos sobre o feminino e o masculino.
Antes de prosseguirmos com a discussão teórica da construção do gênero,
apresentaremos alguns relatos do livro em análise que é a base de nossa pesquisa de
doutoramento Debaixo de minha pele, que ilustram a situação de como deveria ser o
comportamento das mulheres.
No primeiro caso, Doris Lessing relata como era a educação destinada às
mulheres, afinal cabia a elas cuidarem artezeanalmente das peças referentes ao enxoval.

205
E, relacionar-se sexualmente com o marido era condição primeira do casamento. Já no
segundo, Doris descreve a diferença dos tipos de mulheres, as donas de casa e as
messalinas, e afirma que estas mulheres, independente já utilizavam o sexo como troca.
Lessing esclarece ao leitor que como as fazendas eram longe uma das outras,
algo entorno de 6 a 10 quilômetros, era costume que os adolescente passassem uma
semana na casa dos vizinhos, e isso também aconteceu com ela, por isso a observação
dos conflitos conjugais vivenciados.
Nos anos 30, Doris permaneceu dois meses com sua avó Fisher. A autora
autobiográfica relata que havia uma moça de nome Lesley, que passava o dia fazendo
seu enxoval, calcinhas, anáguas, combinações de cetim, e tinha um pretendente, mas
não gostava de se relacionar sexualmente com o noivo. Mesmo ele dirigindo 30
kilometros todos os dias, para vir vè-la e dormir com ela na mesma cama. O rapaz tinha
verdadeira adoração pela moça, mas esta o repelia em qualquer atitude de aproximação.
Mas, isso não queria dizer que ela não gostava dele, ela apenas não gostava de sexo.
Ainda nesse período, Doris, analisando as mulheres do Distrito, observou
quando o assunto era mulher, havia duas classificações, as donas de casa, dedicadas e
trabalhadeiras, as extraordinárias mulheres dos fazendeiros, e as de outro tipo, as
messalinas consideradas como ―namoradeiras, biscates, sereias‖. Esse último tipo de
mulher, tinha um ponto em comum, mantinham a mesma ―hostilidade entre a secreta e
espalhafatosa em relação aos homens que as escravizava‖ (LESSING, p. 183) não é que
adorassem seus homens, ou mesmo sexo.Mas mantinha seus homens―... na trela, como
cachorro novo, correndo atras dela.‖
Tomando por referência o texto de Foucault, a história da sexualidade, houve
um período que o sexo não era considerado como ilícito. Mas a partir do momento em
que o sexo vem para dentro da casa, e é atribuído a ele a função de reprodução, o casal
se torna ―legítimo e procriador‖ (FOUCAULT, 1997, p.09), inicia-se então a repressão.
E o denominado sexo selvagem terá lugar para acontecer, deslocando-se do lar para as
casas de prostituição, lugar onde o sexo acontecerá a um alto preço. Mas fora desse
ambiente, reinará o puritanismo, por isso a classificação atribuída às mulheres. As
santas e as putas.
Em uma outra situação, narrada por Doris diz a respeito da história de Cyril
Later e sua esposa Alice. O marido era extremamente cruel com os empregados negros,
estes eram remunerados, mas também surrados, e aquela crueldade era considerada
normal e dentro dos padrões da época. Já a esposa, Alice era a bondade em pessoa, não
era instruída e sentia tristeza por não saber ler, mas sabia fazer vestidos, e acabava
cosendo roupas para Doris. Sentia-se solitária, pois segundo a autora, a jovem esposa
era, ―uma alma delicada casada com um bruto‖ (2006, p. 150).
O outro conflito conjugal, observado por Doris, é o da jovem Joan casada com
Bob. O rapaz tratava a jovem de forma grosseira, e não estava nem um pouco atento às
queixas que a mulher realizava. Quando fazia as refeições, o silêncio reinava por parte
do marido, ele apenas comia o que a esposa lhe servia no prato, e sem nenhuma palavra,
devorava tudo. Indiferente às queixas e às reclamações da esposa. Esta relatava a Doris
como o marido a tratava mal, a mulher chorava todos os dias reclamando das grosserias
do marido, mas não podiam se separar pois seria motivo de vergonha e de escândalo.
Quando Doris retornou para casa e contou aos pais a forma como Joan era tratada ouviu
o seguinte comentário: ―- Que eles tinham ido bem como marido e mulher até então e
que provavelmente era o jeito deles.‖ (2006, p. 161)

206
Os pais da autora parecem ter naturalizado esse tipo de relacionamento, em que
a mulher precisa ficar sobre a proteção do marido. Afinal, existiam as regras sociais
e,estas precisavam ser obedecidas.
Ao ler o relato de Cyril Later e sua esposa Alice, e de Joan e Bob, retomamos o
texto de Piscitelli (2009) para compreender por que ocorria nas décadas de 20 a 30, a
denominada ―primeira onda‖ do feminismo.
Esse movimento, considerado como uma importante mobilização feminina,
ocorreuem alguns países, elutavam para que as mulheres conseguissem romper com
algumas desigualdades ―legais‖, bem como para que tivessem seus direitos respeitados.
Conseguiram isso porque foram impulsionadas pelos ideais de ―Direitos iguais e
cidadania‖. Isso porque, anterior a esta data, as meninas não podiam ter o mesmo tempo
de escolaridade que os meninos, não podiam votar, não podiam ter posses ou bens, e
havia essa ideia de desigualdade entre os sexos, ainda era uma visão binária masculino
X feminino.
Entretanto, essas mulheres descritas por Doris não parecem ter sido atingidas
por esse primeiro movimento, uma vez que eram subordinadas aos seus maridos. O
casamento tinha apenas a função, procriação, e cabia à mulher fazer os serviços de casa,
sem jamais questionar a postura grosseira do marido.
Nas décadas de 1950 a 1960, Piscitelli (2009) cita como responsável pela
―Segunda onda‖ feminista, Simone de Beauvouir, período que se lutava ainda pelos
direitos das mulheres. O livro publicado é O segundo sexo, que afirmava que a mulher
só sairia desse condição de dominada, de ser inferior se fosse autonoma, pois não
bastavam as leis. Afirmava ainda que a mulher precisava se libertar da educação que
preparava as meninas para casar e para ser mãe; do caráter opressivo do casamento uma
vez que não se casavam por amor e sim para ter proteçao e um lugar na sociedade; o
fato da maternidade não ser livre, uma vez que não havia controle de fertilidade e às
mulheres não cabiam decidir se queriam filhos ou não; da vigência de de maior
liberdade sexual aos homens do que às mulheres e por fim, a falta de trabalho e de
profissoes dignas e bem remuneradas.
Observando ainda as histórias relatadas anteriormente, as teorias do
patriarcadose fazem presente e concentraram sua atenção na subordinação das mulheres
e encontraram a explicação na ―necessidade‖ do macho dominar as mulheres.
(BUTLER, 2016; PISCITELLI, 2009 e SCOTT, 1995)
O relato a seguir também ilustra esse regime patriarcal, em que a mulher casava-
se para ter um nome, mas precisa ter um relacionamento sexual. E quando não realiza a
―função‖ precisa ser levada ao psicólogo, pois o julgamento que se fazia dela é que
deveria estar ―doente‖.
Reginald era trabalhador de uma fazenda e já tinha muitos celeiros, estava muito
cansado e resolveu que precisava de umas férias, foi até a Cidade do Cabo, onde acabou
voltando casado, com uma moça de nome Vera. Mas, ela não gostava de fazer sexo.
Então, após algum tempo, o rapaz levou a moça para a Inglaterra para consultar-se com
um psicólogo. E uma das falas: ―_ Ora vamos, sra.B. Não está sendo justa com o seu
marido. _Por que não..Ponho uma boa comida na mesa. A casa está limpa. Eu não
desperdiço dinheiro. ―_Mas sra. B, o casamento inclui sexo.‖(2006, p. 185)
Nesse momento, retomamos Foucault (1995) sobre a hipótese repressiva, a
hipótese de Foucault é que há, a partir do séc. XVIII, uma proliferação de discursos
sobre sexo, não que ele não tenha sido reprimido. O autor diz que foi o próprio poder
que incitou essa proliferação de discursos, seja através da igreja, da escola, da família,

207
do consultório médico. Mas essas instituições não visavam proibir ou reduzir a prática
sexual; tinham por objetivo o controle do indivíduo e da população.
E o fato de Reginald, levar a problemática conjugal para dentro de um
consultório médico reforça o comportamento mencionado por Foucault.Ou seja, era
uma forma de controle. Este fato revela ainda os valores da época, uma educação
calcada nos modelo patriarcal. Em que no casamento, a função da esposa era servir a
cama e a mesa.

Considerações
Após os relatos apresentados bem como algumas teorias, podemos inferir que a
autora Doris Lessing transgride a fronteira do impossível ao se inserirem nesse contexto
ainda regido sob os moldes patriarcais ao tratarem de temas que vão muito além dos
horizontes masculinos e que, na verdade conferem autonomia e autoafirmação às
mulheres que ainda no cotidiano se encontram presas muitas vezes por estigmas que
foram instaurados ainda no século passado, mas que ainda encontram suas raízes presas
e ramificadas nos dias de hoje.
Mesmo no século XXI, há quem julgue de forma negativa as ações de Doris
Lessing. Mas, os rótulos conferidos a Doris nunca a preocupou, se era chamada de
ativista ou de libertina, ela foi livre o suficiente para escrever ao mundo sobre as
verdades que encenaram em sua vida e que muitas mulheres, quiçá a maioria jamais
ousaria nem mesmo desejar, o que dizer ter a ousadia de viver e depois de relatar. A
ousadia conferiu o reconhecimento acadêmico assim como o respeito pelo público
feminino.
A importância de se debruçar sobre a obra Debaixo da minha pele, tal qual
tencionamos fazer agora, é para dar voz a estas mulheres sufocadas pelo universo
masculino em que se encontram inseridas, e que talvez nem percebam que estejam
apenas reproduzindo um comportamento masculino.
E em tempos atuais não podemos ficar apenas nas distinções de homem e
mulher para definir o que seja gênero, mas sim pensar que os sujeitos vão se
construindo e se reconstruindo ao longo de suas vidas, e que as relações de gênero e de
poder, precisam ser articuladas às outras raças, às classes sociais, às nacionalidades,
enfim a tudo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
(Cap. 1, p. 17-60).
______. Um relato de si. In:______Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2015
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209
O papel e a escrita: um leitura de ―O Papel de Parede
Amarelo‖, de Charlotte Perkins Gilman
(The paper and the writing: an analysis of Charlotte Perkins Gilman‘s ―The
Yellow Wallpaper‖)

Lucianne Christina Fasolo Normândia Moreira1


1
Universidade Federal do Paraná (UFPR)

lucianne.christina@gmail.com

Abstract: This paper intends to present an analysis of Charlotte Perkins Gilman‘s short story
―The Yellow Wallpaper‖. Originally published in 1892 in the United States, this piece is
structured as a series of first person diary entries; the unnamed narrator describes her
medically prescribed confinement in a house after being diagnosed as a hysteric and exposes
her growing obsession with her room‘s yellow wallpaper, in which she recognizes the figure
of a trapped woman as her mental state becomes further destabilized due to her ―medical
treatment‖. This paper brings an analysis of Gilman‘s short story considering its historic
context as well as the narrative strategies that have been used to tackle the theme of women‘s
madness.
Keywords: The Yellow Wallpaper; women‘s madness; feminism.

Resumo: O presente trabalho possui como objetivo apresentar uma leitura possível do conto
―O Papel de Parede Amarelo‖, de Charlotte Perkins Gilman. Esta obra, publicada
originalmente em 1892 nos Estados Unidos, apresenta-se como uma série de entradas de
diário escritas em primeira pessoa; a narradora não nomeada relata seu confinamento
medicamente prescrito após o diagnóstico de histérica e deixa evidente sua crescente obsessão
pelo papel de parede amarelo do quarto, no qual reconhece a figura de uma mulher
aprisionada à medida que seu estado mental se torna mais e mais instável devido ao
―tratamento médico‖. Neste trabalho, será feita uma análise do conto de Gilman levando-se
em conta o contexto histórico no qual se insere bem como as estratégias narrativas utilizadas
para abordar o tema da loucura da mulher.
Palavras-chave: O Papel de Parede Amarelo; loucura da mulher; feminismo.

Introdução: ou sobre a literatura (de mulheres)


Em seu belo mas pouco conhecido livro de ensaios publicado originalmente em
1949, a poeta americana Muriel Rukeyser discorre sobre o papel da poesia e da arte em
geral na sociedade. Para a poeta, a arte possui um papel de comunicação entre artista e
público, na qual ambos participam e oferecem o que ela chama de resposta imaginativa
total – um envolvimento marcado por um processo de profundo autoconhecimento da
parte do artista e por um momento de reconhecimento da parte do público. Ainda, ela
ressalta a importância da arte como propulsora de reflexões, embora não realmente de
ações concretas: a arte ―imagina e constrói, e lhe oferece o imaginado‖; é ativa e
intelectual, mas não causa ação ou pensamento, uma vez que apenas ―nos prepara ao
pensamento‖ e não constitui um mundo, e sim ―um conhecimento do mundo‖ que
impele o público a conhecer melhor sua realidade e a si próprio (RUKEYSER, 1996, p.
25-26, tradução livre).

210
Esta questão sobre a natureza da arte não é algo novo. No caso específico da
literatura, diversos escritores e pesquisadores têm discorrido sobre o status da literatura
na sociedade. As afirmações de Rukeyser, embora não sejam discutidas frequentemente,
encontram ecos – mesmo que inadvertidos – em outros ensaios de outros escritores
através dos tempos. Por exemplo, em A Arte do Romance, um livro publicado pela
primeira vez em 1986, Milan Kundera (2009) faz reflexões que podem ser aplicadas à
ficção de uma forma geral. O escritor afirma que ―todos os romances se voltam para o
enigma do eu‖: ao criar seres imaginários e personagens, surge a questão do que vem a
ser o eu e como pode ser apreendido, e que ―é uma dessas questões fundamentais sobre
as quais o romance como tal se baseia‖ (p. 29). Em outro momento, Kundera também
afirma que ―[o] romance que não descobre algo até então desconhecido da existência é
imoral‖, e que ‖o conhecimento é a única moral do romance‖ (p. 13).
No âmbito dos estudos literários, vários pesquisadores trabalharam também com
este tópico e elaboraram análises da natureza e funcionamento da ficção. Nas palavras
de Rosenfeld (2011), ―[a] ficção é lugar ontológico privilegiado: lugar em que o homem
pode viver e contemplar, através de personagens variadas, a plenitude da sua condição,
e em que se torna transparente a si mesmo‖ (p. 48). Além disso, o pesquisador ressalta
que a arte oferece simultaneamente um distanciamento e uma aproximação da realidade.
Eco (1994) também mantém um posicionamento semelhante, e afirma que ―[a ficção]
nos proporciona a oportunidade de utilizar infinitamente nossas faculdades para
compreender o mundo e reconstituir o passado‖ e que ela ―tem a mesma função dos
jogos‖ (p. 137). Assim, como em uma brincadeira, os leitores lidam com simulações de
situações possíveis, o que pode lhes permitir melhor compreender suas próprias
experiências de vida. Seguindo uma linha de raciocínio parecida, Iser (1996) questiona a
noção prestabelecida (que denomina ―saber tácito‖) da contraposição entre realidade e
ficção; ele também compara a leitura de ficção a um jogo similar à vida, no qual o leitor
é levado a se perceber ―ao mesmo tempo preso a um papel e fora dele‖, estado este
caracterizado por uma ―ativação de faculdades‖ (p. 332-333).
Pode-se, então, considerar a ficção como uma espécie de simulação que, ao
mesmo tempo se aproximando e se afastando da realidade, leva o seu leitor a algum tipo
de reflexão significativa através do jogo do texto no qual se encontra envolvido. Mas o
que dizer da literatura de autoria de mulheres? Seria esta de alguma forma diferente?
Muito já foi escrito acerca da sua suposta especificidade quando comparada à dita
literatura ―universal‖ que aborda os grandes temas da humanidade. No entanto, desde a
década de 1970 já há uma discussão feminista acerca da parcialidade de tais noções.
Russ (2005), por exemplo, rejeita a instituição de um critério único para julgamento de
valor literário e argumenta que, ao deparar-se com afirmações acerca do valor intrínseco
de certas obras, é preciso que leitores e pesquisadores se perguntem para que fim e para
quem tais obras são consideradas boas (p. 118-120). Da mesma maneira, Felski (2003)
ressalta que valores são construídos e não estáticos (p. 242). Até mesmo Eagleton
(2008), que não se afilia a essa linha crítica, reconhece que não são neutros nem eternos
os critérios de avaliação tanto do que consiste uma obra literária quanto da escolha de
quais delas são consagradas (p. 10).
Russ (2005) também comenta que a seleção de obras com ―valor literário‖, feita
por e para um grupo determinado de pessoas, implica a exclusão de outras, que são
vistas como inferiores ou impossíveis de serem compreendidas ou aceitas; mas que, ao
invés do que poderia ser pensado, muitas das obras excluídas não são marcadas por um
conjunto de escolhas ficcionais e estéticas inexplicáveis ou estranhas. Pelo contrário,

211
elas são frequentemente compreensíveis, mas levantam questões com as quais um
determinado grupo social não deseja lidar (p. 118-119). Por exemplo, Felski (2003)
comenta que Virginia Woolf, hoje em dia consagrada como uma grande escritora, foi
por muito tempo descartada como uma modernista menor; a temática da análise da
experiência da mulher em seus romances e ensaios, aliás, foi taxada de exagerada e/ou
pouco importante. Em um segundo momento, após resgatada do esquecimento por
feministas na década de 1970, a escritora passou a ser mencionada por pesquisadores
renomados – que no entanto se recusavam veemente a perceber uma ligação entre os
elementos estéticos em sua obra e as temáticas de cunho feminista exploradas nela, e
tentavam extirpar Woolf como romancista do seu lado feminista visto por eles como
inconveniente.
Assim, é possível dizer que a literatura de autoria de mulheres, ao se ancorar na
experiência feminina na esfera privada – ainda hoje desvalorizada socialmente, embora
esta situação tenha sido um pouco atenuada – através de um jogo do texto construído
por diversas estratégias ficcionais, abre espaço para reflexões relevantes acerca da
posição da mulher em sociedade. Levando isso em consideração, o presente trabalho
possui como objetivo analisar o conto ―O Papel de Parede Amarelo‖, de Charlotte
Perkins Gilman. Inspirado em um tratamento médico imposto a Gilman e publicado
originalmente em 1892, este conto apresenta a narradora, uma mulher levada por seu
marido médico a se submeter a um confinamento forçado e angustiante sem qualquer
estímulo mental, e que escreve um diário às escondidas e se torna cada vez mais
fascinada pelo papel de parede de seu quarto, no qual percebe padrões e gradualmente
se identifica com eles.
O conto não foi bem compreendido na época; entre críticas e elogios, a leitura
padrão da obra reduzia a simbologia e as estratégias ficcionais nela presentes a um
relato literal de um caso clínico. Porém, a análise dos elementos ficcionais do conto
aponta interpretações bem diferentes e mais complexas. Esquecido por muitas décadas,
foi apenas durante a segunda onda do feminismo que ele voltou a ser editado e começou
a ser realmente analisado. De fato, há mais de uma maneira de interpretá-lo, como
ocorre com obras literárias. Assim, este trabalho pretende oferecer uma possibilidade de
leitura para o conto que leve em conta todos os aspectos da narrativa e a reflexão que
pode ser suscitada.

Sobre Charlotte Perkins Gilman e sua época


Charlotte Perkins Gilman nasceu em 1860, em Hartford, Connecticut, nos
Estados Unidos. Embora fosse membro de uma família afluente do lado paterno, sua
infância foi marcada por uma posição econômica precária após o abandono de seu pai, o
que a forçou a ter uma educação formal de apenas quatro anos. Enquanto jovem, ela
trabalhou como professora de arte e educadora em casas de família. Com vinte e um
anos, ela conheceu o artista Charles Walter Stetson e se casou com ele dois anos depois
após muita relutância. O nascimento de sua filha pouco tempo depois do casamento
veio seguido de uma depressão profunda que durou anos. Isso a levou a ser internada
em um sanatório e a procurar tratamento com Silas Weir Mitchel, um especialista em
distúrbios mentais muito renomado na época. Este tratamento, a ―cura pelo descanso‖,
que previa passividade, limitava estímulos ao máximo e proibia toda e qualquer
atividade intelectual, foi um completo fracasso: segundo a própria escritora, em poucos
meses ela se encontrou à beira de um colapso mental completo (GILMAN, SHULMAN,

212
1995, p. 331). Gilman decidiu abandonar o tratamento por conta própria e retornar a
uma vida normal, deixando o marido e sua filha e se mudando para a Califórnia. Sua
escolha representava algo tanto fora do comum quanto motivo para escândalo na época,
e ela sofreu duras críticas por ter abandonado a família e ter agido como uma ―mulher
desnaturada‖.
Em 1890, Gilman começou a dar palestras sobre a condição social da mulher,
defendendo a mudança de sua posição através da profissionalização e redistribuição de
tarefas domésticas. Foi também nesse período que começou a escrever e, em 1892, foi
publicado o seu conto ―The Yellow Wallpaper‖, no qual suas experiências com a cura
pelo descanso são exploradas através da lente da literatura. Gilman só conseguiu
publicá-lo dois anos após ter sido escrito. O conto teve uma recepção mista por parte da
crítica e do público, o que não a impediu de continuar escrevendo mas a levou a ser
mais conhecida por sua posição de ativista e palestrante. Em 1898, seu livro publicado
Women and Economics lhe deu fama internacional. Em 1900 a escritora se casou
novamente, dessa vez com o advogado Houghton Gilman, que também era seu primo de
segundo grau. De 1900 a 1915, Gilman foi muito procurada para dar palestras para
grupos de mulheres e homens. E, no período de 1909 a 1916, ela foi editora da revista
Forerunner, na qual publicou contos seus a cada edição, além dos capítulos de três de
seus romances. Em 1935, três anos após ter descoberto sofrer de um câncer agressivo e
inoperável, Gilman optou por cometer suicídio com clorofórmio e evitar uma morte
longa e dolorosa.
Além de ter escrito milhares de textos de não-ficção e cunho sociológico,
Charlotte Perkins Gilman escreveu cinco romances, cinco peças, cento e oitenta e cinco
contos e quase quinhentos poemas. No entanto, o conjunto de sua obra literária ficou
esquecido por várias décadas após sua morte, e a escritora – quando lembrada – era
mencionada a partir de sua figura pública de ativista. Foi apenas durante a segunda onda
feminista na década de 1970 que o interesse por sua produção voltou a crescer,
primariamente através da nova edição de seu conto ―O Papel de Parede Amarelo‖. Mal
compreendido quando publicado pela primeira vez, o conto agora encontrava um
público que, como se exemplificando as afirmações de Rukeyser (1996), se mostrava
mais disposto a interagir com a obra e ser levado a refletir pela sua leitura. Atualmente,
―O Papel de Parede Amarelo‖ é razoavelmente bem conhecido, tendo sido incluído em
algumas antologias e analisado por diversos pesquisadores. Mas, conforme observado
por Russ (2005), é comum que escitoras sejam incluídas no cânone (quando sequer
mencionadas) a partir de apenas uma obra, como se esta fosse sua única produção
relevante. A grande parte da produção literária de Gilman, embora certamente
merecedora de interesse tanto quanto o conto mais famoso, permanece ainda muito
pouco explorada e imersa em silêncio.

A mulher por trás do papel: sobre ―O Papel de Parede Amarelo‖


Pertencente ao gênero epistolar, o conto ―O Papel de Parede Amarelo‖ é
estruturado em forma de doze entradas de diário separadas graficamente por espaços
mas não datadas. Através destas, a narradora em primeira pessoa, cujo nome não é
revelado, expõe suas experiências ao ser diagnosticada por seu marido e médico com
uma ―ligeira tendência histérica‖ (GILMAN, 2006, p. 21) e levada por ele a uma casa
isolada da cidade para ―descansar‖ por três meses. Nas primeiras entradas, esta mulher
anônima descreve a casa na qual está instalada: ―um casarão antigo‖ que ela

213
romanticamente espera poder ser mal assombrado, mas com mais seriedade deixa claro:
―posso afirmar solenemente que tem algo estranho com a casa‖ (ibid, p. 21). A casa não
parece ter nada mais estranho do que o fato de ter ficado fechada por anos, talvez por
alguma disputa entre herdeiros; mas o quarto que a narradora e seu marido ocupam (por
escolha dele), descrito como já ter sido um berçário e uma sala de jogos, apesar de
arejado e ensolarado apresenta aspectos destoantes como grades nas janelas, uma cama
grande presa ao chão e com marcas de dentes e um papel de parede amarelo
desconcertante cujo padrão não é regular.
Proibida de desempenhar atividades domésticas (uma outra mulher cuida de seu
bebê e sua cunhada Jennie gerencia a casa) mas principalmente de se ocupar com
qualquer tarefa intelectual, a narradora se vê confinada neste quarto onde não se sente
confortàvel. Ela tenta escrever às escondidas – o marido odeia vê-la escrevendo ―uma
palavra que seja‖ (GILMAN, 2006, p. 24) – e esse é o único meio que possui para
expressar como se sente em relação ao tratamento imposto por John, seu marido, mas
que ela admite cansá-la muito devido ao fato de precisar fingir e ficar alerta para não ser
pega e enfrentar oposição cerrada e reprovação. Através de uma escrita ao início incerta
e permeada pelo discurso de seu marido, que ela procura aceitar, a narradora rompe o
silêncio e admite ao ―papel morto e um grande alívio para minha cabeça‖ (ibid, p. 21) o
que reconhece no íntimo mas não pode contar a ninguém: que a cura pelo descanso não
é um bom tratamento para ela; que ela deseja estímulo intelectual e mais apoio; e que
seu confinamento a faz se sentir não apenas mais fraca mas também culpada por sua
fraqueza.
À medida que seu tratamento continua, a narradora relata sentir-se cada vez mais
emocionalmente instável e débil, embora seu marido lhe garanta que ela está
melhorando. Ela desabafa: ―Sinto que não vale a pena mexer minha mão para nada‖
(GILMAN, 2006, p. 29); também revela que chora frequentemente e sem motivo –
embora tente esconder isso do marido. Conversar seriamente com John acerca de suas
preocupações é inútil: uma vez que está certo de que sua esposa não está realmente
doente e que não há motivo para que se sinta mal, ele faz pouco caso e ri
―amorosamente‖ das suas queixas, tratando-a como uma criança e até lendo para ela
para que durma. Mas quando, após mais de dois meses de tratamento, a narradora tenta
(ainda que timidamente) argumentar que não está melhorando, ele expressa uma
reprovação tão grande que ela se cala e desiste de falar sobre este assunto novamente. A
única coisa que ela pode fazer é colocar suas ideias no papel do diário, o que faz de
forma intermitente, e observar o papel de parede de seu quarto, sua distração no
confinamento.

―Não estou pesando nada mais do que antes, nem o mesmo‖, falei; ―e meu apetite pode
ser melhor à noite, quando você está aqui, mas é pior de manhã, quando você está fora.‖
―Deus abencoe este coraçãozinho!‖ ele disse, com um grande abraço, ―pode ficar doente
o quanto quiser! Mas agora vamos melhorar as horas de sono indo dormir, e
conversamos sobre isso amanhã de manhã. […] São só três semanas mais e então
faremos uma viagem agradável por alguns dias, enquanto Jennie apronta a casa.
Querida, você está realmente melhor!‖
―Melhor no corpo, talvez –― comecei e parei imediatamente, porque ele se sentou bem
reto e me fitou com um olhar tão duro e reprovador que não pude dizer mais nem uma
palavra.
―Minha querida‖, disse ele, ―suplico a você pelo meu bem e pelo bem de nosso bebê,
assim como por seu próprio bem, nunca deixe aquela ideia entrar na sua cabeça nem por

214
um instante! Não existe nada tão perigoso, tão fascinante, para um temperamento como
o seu. É uma ideia boba e falsa. Você não confia em mim como médico quando lhe
afirmo isto?‖
Então, por esta razão, é claro que não falei mais nada, e daí a pouco dormimos. Ele
pensou que eu tinha dormido primeiro, mas não dormi, fiquei lá deitada durante horas,
tentando decidir se aquele desenho da frente e o desenho de trás realmente se moviam
juntos ou separadamente. (GILMAN, 2006, p. 33)

Enquanto impossibilitada de fazer mais do que se alimentar, dormir e caminhar


um pouco pelo jardim da casa, além de escrever a narradora decide estudar o papel de
parede de seu quarto, que considerou desconfortável e incompreensível desde a primeira
vez que o viu. Ela passa a enxergar figuras e mudanças no papel à medida que seu
interesse por desvendá-lo cresce gradualmente. ―Há coisas nesse papel de parede que
ninguém conhece ou conhecerá, exceto eu‖, escreve ela (GILMAN, 2006, p. 31). De
fato, decifrá-lo se torna uma obsessão sua, e ela tanto revela que ―não quero partir antes
que o descubra‖ (p. 36) quanto declara que será ela a única a fazê-lo. Analisando o
papel, ela percebe dois desenhos, um mais externo e um mais interno, que se modificam
constantemente.
É interessante observar como esta mudança é apresentada pela narradora. O
desenho da frente, descrito como ―um arabesco florido que lembra um fungo‖ no qual
novas ramificações continuam a aparecer, transforma-se à noite em um padrão de barras
que percorrem o desenho (p. 34). Esse padrão de barras no papel poderia facilmente ter
sido formado a partir da sombra das barras de metal na janela; mas a narradora nem
cogita tal explicação. Quanto ao desenho de trás, a narradora do conto percebe-o
primeiramente como uma figura disforme, amedrontada e fugidia que gradualmente se
revela como sendo uma mulher que se arrasta em silêncio durante o dia – tanto pelo
papel de parede quanto ocasionalmente no jardim – mas que à noite sacode o papel
desesperada e violentamente, tentando sair. Seria coincidência que a mulher no papel se
debatesse mais intensamente à noite, quando John normalmente estaria em casa?
Ao final do conto, marcado também pela referência temporal do fim próximo da
estada do casal na casa, a narradora tanto se identifica com a mulher no papel de parede
quanto não consegue mais diferenciá-la de si mesma. Ela rasga e arranca o papel tanto
quanto consegue (ele se encontra firmemente colado à parede) com o intuito de libertar
a mulher do desenho interno; mas, gradualmente, a narradora fica certa de ter libertado a
si própria e de que era ela que sacudia o deseho externo do papel em busca de liberdade.
Na última entrada de diário da narrativa, esta mulher relata que se tranca no quarto para
rasgar o papel e tirar dele a mulher do desenho interno, tendo consigo uma corda para
amarrá-la e evitar que fuja; de forma interessante, em um momento posterior ela afirma
estar firmemente amarrada com sua corda, e que agora pode se arrastar livremente pelo
quarto, o que começa a fazer. Quando, após ter conseguido abrir a porta, John a
encontra assim, ele desmaia – decerto por pensar que sua esposa havia enlouquecido
completamente.

Não gosto nem de olhar para fora das janelas – tem tantas daquelas mulheres
rastejando, e elas rastejam tão rápido.
Será que todas saíram desse papel como eu?
Mas agora estou bem amarrada pela corda que escondi tão bem – você não vai
conseguir me colocar naquela estrada lá fora!
Suponho que vou ter que voltar para dentro do padrão do desenho quando chegar a
noite, e isso é difícil!

215
É tão agradável ficar solta nesse quarto enorme e rastejar em volta do quarto do jeito
que eu quiser!
Não quero sair daqui. Não vou, nem que Jennie me peça.
Porque lá fora você tem que rastejar no chão, e é tudo verde em vez de amarelo.
[…]
Ih, John está na porta!
[…]
―Que aconteceu?‖, gritou. ―Pelo amor de Deus, o que está fazendo?‖
Continuei rastejando do mesmo jeito, mas olhei para ele por cima do ombro.
―Consegui sair, até que enfim‖, eu disse, ―apesar de você e de Jane. E arranquei quase
todo o papel, assim não podem me prender de novo!‖
Ora, por que será que o homem desmaiou? Mas caiu desmaiado, sim, e atravessado
justamente no meu caminho perto da parede, de forma que tive de rastejar por cima dele
a cada volta! (GILMAN, 2006, p. 41-43, grifos no original)

John não compreende as afirmações de sua esposa, e as vê a partir da


perspectiva em vigência na época e pertencente à sua profissão. A sua reação no quarto
evidencia o seu horror ao presenciar o que para ele é algo inexplicável e assustador: sua
esposa havia perdido a sanidade mental. Esta parece ter sido a linha de interpretação
padrão do conto quando publicado originalmente. Porém, em vista de diversos
elementos aqui mencionados, é possível afirmar que perceber esta obra como apenas um
relato clínico da progressão de uma patologia equivale a fazer uma leitura tanto limitada
e simplista quanto inadequada. O que dizer, por exemplo, da análise crítica, um pouco
hesitante mas completamente racional, que a narradora expressa sobre o tratamento que
lhe é imposto? E seria apropriado analisar a percepção por parte da narradora da mulher
no papel de parede – e sua identificação com ela – simplesmente como uma
manifestação de ―loucura‖?
De fato, ler o conto como muitos o fizeram na época de sua primeira publicação
desconsidera as diversas estratégias narrativas presentes na obra, que podem levar a
uma interpretação bem diferente. De qualquer maneira, para uma leitura mais completa
é interessante ao leitor dos dias de hoje conhecer um pouco do contexto social ao qual o
conto faz referência – não porque não conhecê-lo tornaria a obra completamente
incompreensível, o que certamente não seria verdade, mas sim porque ao compreendê-
lo minimamente é possível perceber as escolhas narrativas sob uma outra luz; fazendo
uso desse conhecimento, pode-se então observar que a narrativa é muito mais complexa
que um mero relato que se pretende ―realista‖1, e é composta de vários elementos e
símbolos que a enriquecem.

―Só essa fraqueza nervosa‖2: a loucura da mulher no século XIX


Mesmo que a própria Gilman tenha afirmado ter feito uso de diversos elementos
narrativos e ficcionais para transfigurar uma experiência de vida em uma obra literária
(GILMAN, 1995, p. 331-332), permanece o fato de que o conto faz referência a uma
situação real que qualquer leitor da época teria identificado – embora provavelmente

1
Aqui, a própria definição de ficção ―realista‖ poderia ser contestada; afinal, vários pesquisadores já
escreveram sobre o risco de analisar a literatura como se fosse um reflexo automático da realidade. Mas,
de qualquer forma, persiste o fato de que o conto de Gilman não se alia a essa corrente literária.
2
Esta expressão foi retirada do conto aqui analisado (cf. GILMAN, 2006, p. 31).

216
não tenha compreendido o significado de sua abordagem, como mencionado
anteriormente. Aliás, o conto menciona o nome de um médico famoso no século XIX,
dr. Silas Weir Mitchell, especialista em histeria e não por coincidência o mesmo médico
responsável pelo tratamento de Gilman. Devido ao distanciamento temporal que separa
o seu contexto histórico de sua leitura nos dias de hoje, é interessante fazer uma breve
análise retrospectiva acerca de como a questão da histeria era abordada no século XIX;
isto auxilia na compreensão de alguns aspectos do conto uma vez que tal conhecimento
é previsto na enciclopédia exigida do leitor para leitura da obra, usando aqui um
conceito de Eco (1994).
As teorias de Freud acerca dos distúrbios mentais foram escritas no século XIX,
mas só começaram a realmente ganhar popularidade nos Estados Unidos a partir da
primeira década do século XX. Antes disso já havia uma concepção deles proveniente
da medicina. A enfermidade da histeria – que incluía no seu escopo de sintomas uma
variada gama de manifestações como depressão, dores de cabeça, afonia, paraplegia e
até mesmo crises similares à epilepsia (―ataques histéricos‖) – era vista como algo
misterioso e inespecífico, bem como um mal inerente à mulher embora também tenha
sido ocasionalmente observado em homens. Como documentado por Smith-Rosenberg
(1985), a noção de que a fisiologia feminina por si só causava uma predisposição à
histeria era amplamente aceita (p. 206). Mas essa explicação essencialista da histeria de
fato obscurecia a compreensão da enfermidade e sua relação com um fenômeno social
da época.
Desde a Revolução Industrial, a estrutura da sociedade na Europa e mais
marcadamente nos Estados Unidos sofria alterações relevantes. Estava em ascensão
uma nova aristocracia social, a classe burguesa – formada por trabalhadores de origem
mais ―humilde‖ que haviam enriquecido rapidamente. Esse crescimento chegava a um
pico no século XIX. O trabalho e a busca por dinheiro e poder eram altamente
valorizados, bem como qualidades como o controle de si mesmo e do ambiente e a força
de vontade. No entanto, essa mobilidade social não se estendia às mulheres: delas era
esperado que não trabalhassem e permanecessem em casa, mantendo-se o mais
―femininas‖ possível: dóceis, delicadas, ―puras‖ e inocentes. Exaltadas como ―anjos do
lar‖ e seres moralmente superiores aos homens mas ao mesmo tempo desprovidas de
agência e qualquer status de cidadãs, as mulheres se encontravam em uma situação
paradoxal, ou como colocado por French (1986), ―esquizofrenogênica‖ (p. 204-206).
Faz sentido concluir que tal situação geraria desconforto. Conforme relata
Smith-Rosenberg (1985), havia um papel duplo que se esperava que toda mulher
desempenhasse (quanto mais elevada fosse sua classe social, maior a expectativa3): que
encarnasse a ―Mulher Verdadeira‖ – emotiva, dependente e gentil – e que se mostrasse a
―Mãe Ideal‖ – forte, confiante, protetora e eficiente no cuidado dos filhos e no manejo
das atividades da casa; na última metade do século XIX, tornou-se comum observar que
as jovens, em especial as de classe média, não estavam preparadas para cumprir este
papel, e médicos documentavam a alta incidência de histeria entre mulheres casadas e

3
Smith-Rosenberg (1985) ressalta que, embora fosse observada com mais frequência em mulheres de
classe média ou alta, a histeria não era exclusiva desta porção da sociedade. Enquanto mulheres de classe
mais elevada deveriam adotar a passividade e a domesticidade, as de classe operária ou baixa
frequentemente precisavam trabalhar e assumir uma posição mais ativa para sustentar suas famílias; mas,
como a pesquisadora observa, o ideal feminino não era algo ao qual estavam imunes, e há documentações
por médicos de casos de histeria entre imigrantes ou mulheres que viviam em condições precárias.

217
sobrecarregadas por seus deveres domésticos (p. 198-199). Considerando seu contexto,
seria plausível compreender a histeria como uma manifestação do mal estar vivenciado
por mulheres ao tentar cumprir um papel de gênero no mínimo contraditório. Porém,
esta não era a visão sustentada pelos médicos na época.
No ramo da medicina, a multiplicidade de sintomas e a falta de especificidade
associados à histeria levavam a um posicionamento no mínimo ambivalente sobre esta
enfermidade. Alguns médicos demonstravam simpatia e procuravam aliviar o
sofrimento da mulher histérica, enquanto muitos outros expressavam hostilidade. Mas
de uma forma geral, conforme comenta Smith-Rosenberg (1985), a histeria era
largamente associada à falta de auto-controle, e relacionada à indolência e tédio – no
caso das mulheres de classe média – e à ignorância e sensualidade excessiva – no caso
das mulheres de classe mais baixa. Assim, mulheres histéricas eram vistas como
crianças despóticas, que sugavam as energias de todos à sua volta e exigiam atenção
contínua. De fato, a histeria permitia às mulheres fugir temporariamente ao seu pesado
papel social de mães e esposas, o que explica a hostilidade com que eram vistas
socialmente. No entanto, o custo desta fuga era alto.
Mulheres diagnosticadas como histéricas paravam de desempenhar suas funções
domésticas; porém, esse ―privilégio‖ vinha atrelado ao desempenho do papel de
doentes, que intensificava sua posição de passividade e fragilidade. Cabia a um médico
avaliar se suas queixas eram aceitáveis e ―autorizá-las‖ a se eximirem de suas
responsabilidades por um período determinado. Como consequência dessa autoridade, a
afirmação da importância de literalmente controlar as mulheres histéricas – e puni-las se
necessário – estava presente no discurso médico. Tratamentos comuns na época
incluíam o uso da violência física e sufocamento para parar ―ataques histéricos‖,
humilhação pública e ameaças de punição.
Até mesmo S. Weir Mitchell, que se mostrava um pouco mais benevolente,
afirmava que a histérica deveria ser perdoada por suas fraquezas mas controlada
firmemente. Interessantemente, o médico afirmava que profissionais da medicina, que
compreendiam e sabiam ―governar‖ mulheres histéricas, se mostravam os melhores
maridos (SMITH-ROSENBERG, 1985, p. 211-212). O tratamento instituído por ele,
denonimado cura pelo descanso, embora menos drástico que outros era marcado pelo
controle das mulheres histéricas e pela imposição de uma completa passividade, uma
vez que toda e qualquer atividade doméstica, intelectual ou estimulante era limitada ao
máximo, quando não proibida. Assim, aquelas tratadas por este ilustre médico deveriam
obedientemente se submeter a uma intensificação do estado debilitante que as havia
levado ao consultório.

A escrita no papel, o papel transcrito: uma leitura possível do conto


―O Papel de Parede Amarelo‖, como mencionado anteriormente, foi mal
interpretado quando publicado pela primeira vez. Em relação à crítica da época, esta
tanto o percebia como uma descrição brilhante e precisa da progressão de um distúrbio
mental quanto como algo ―terrível demais, chocante demais, capaz até de levar alguém
à loucura‖ (COSER, 2006, p. 125). Mas, criticada ou elogiada, a obra parece ter sido
lida de forma exclusivamente literal, como se fosse um relato verídico. Segundo
Kolodny (1980), o conto encontrava-se à frente de sua época, uma vez que exigia de
quem o quisesse ler que lidasse com um tema próximo de uma situação social
reconhecível mas abordada de maneira não usual (p. 456-457). A histeria feminina era

218
um assunto em voga, mas era discutida exclusivamente em termos médicos e
essencialistas. Assim, leitores do gênero masculino teriam se mostrado pouco dispostos
a associar a progressão da insanidade da narradora ao ―tratamento‖ médico e ao seu
papel de gênero, e tampouco teriam compreendido a importância da rica simbologia das
manifestações observadas pela narradora no papel de parede. Já as leitoras poderiam ter
se encontrado despreparadas para as reflexões sobre suas próprias experiências que o
conto poderia suscitar.
Em um pequeno texto intitulado ―Why I wrote 'The Yellow Wallpaper'?‖ (―Por
que eu escrevi 'O Papel de Parede Amarelo'?‖, sem tradução para o português), Gilman
explica suas motivações para ter escrito o conto e rejeita as interpretações reducionistas
da época; ela menciona cartas escritas por leitores, elogiando seu conto por ser uma
descrição precisa e verossímil da degeneração da sanidade mental de uma mulher, ou
criticando-o por ser algo tão terrível e assustador que poderia afetar a sanidade de
qualquer leitor. Segundo ela, o conto não foi escrito para provocar terror ou relatar uma
situação verídica. Pelo contrário, sua intenção, a escritora revela, era aludir à
inadequação de um tratamento médico para a histeria muito comum na época e, não por
coincidência, o mesmo ao qual foi submetida e quase a levou à ruína mental. Através de
estratégias narrativas e acréscimos (ela ressalta que nunca se incomodou com o papel de
parede em sua casa nem observou figuras fantásticas nele, por exemplo), Gilman de fato
transfigura uma experiência social em uma obra literária complexa bem como
socialmente relevante, embora não bem compreendida em sua época, e que certamente
possui mais de uma leitura possível. Aqui será apresentada uma das possibilidades de
análise do conto.
É interessante analisar a função e relevância da escrita no conto. A narradora,
como mencionado anteriormente, é proibida de escrever – ou sequer ler. Seu marido lê
para ela e lhe diz o que fazer ou pensar a cada momento do dia, e ela procura obedecê-lo
como uma ―boa esposa‖. No entanto, a narradora decide escrever às escondidas,
desconsiderando as recomendações médicas que recebeu. Embora não seja um ato de
oposição aberta (pois ela teme a reprovação de John), a narradora está, sim, resistindo
ao que percebe ser uma regra estabelecida que a impede de se expressar da única forma
que pode, pois conversar sobre o que sente com seu marido é inútil e ela reconhece isso.
De fato, John ―amorosamente‖ a proibe de refletir sobre suas experiências, e lhe nega o
direito de expressão. ―Você não confia em mim como médico quando lhe afirmo isso?‖,
ele exige, usando tanto sua autoridade como marido quanto como profissional
(GILMAN, 2006, p. 33). Segundo Kolodny (1980), o marido procura ao máximo
impedir que a narradora se posicione como ―leitora‖ e intérprete de sua própria vida (p.
457).
Isso levanta a importante questão do fingimento ao qual a narradora é forçada.
Como ―doente de nervos‖, ela desempenha um papel perante seu marido e procura
esconder dele tudo o que destoa do esperado: suas opiniões, seu desejo de expressão,
seu crescente descontentamento. Assim, como escreve Coser (2006), ―ela é levada a
fingir e criar um outro papel, personagem que representa para ele, em uma simulação
que a deixa esgotada‖ (p. 124). Vale lembrar que, como mencionado anteriormente,
mulheres histéricas temporariamente paravam de cumprir suas funções e deveres na
família, mas isso ocorria apenas se adotassem o papel de doentes debilitadas e frágeis –
e, claro, completamente passivas e obedientes. Esse é o comportamento esperado por
John de sua esposa, a quem ele trata com atenção e tolerância bem humorada, como se

219
ela fosse uma criança, até o momento que ela tenta expressar suas opiniões, ainda que
timidamente.
Igualmente relevante é a escolha do gênero narrativo para a construção do conto.
Coser (2006) ressalta que a narrativa epistolar deriva de uma tradição antiga e
marcadamente ―feminina‖, uma vez que era vista como apropriada à mulher quando
empregada para expressar sentimentos como solidão e sofrimento amoroso de forma
intimista. Entretanto, apesar da sua aparente ―naturalidade‖ e ausência de artifícios, a
pesquisadora ressalta que ―a ficção epistolar, incluindo-se aqui o conto de Gilman, é
uma escrita planejada, cheia de efeitos e de imagens. Em seu caráter auto-reflexivo e
metalínguístico, debruça-se continuamente sobre o próprio ato de escrever‖ (p. 131). O
fato da utilização do papel do diário pela narradora para expressar o que não pode
contar a ninguém pode ser visto como uma estratégia narrativa para envolver o leitor,
que então compartilha a angústia da personagem mais intimamente e também se torna
presa do fáscinio que ela sente pelo papel de parede. E, certamente, a busca da narradora
pela decodificação do mistério do papel se manifesta tanto como uma reflexão sobre a
escrita quanto um ato de tradução de uma mensagem ou linguagem a princípio
incompreensível mas que gradualmente se revela em toda a sua complexidade.
Pouco a pouco, a narradora percebe manifestações no papel de parede que a
impressionam muito e suscitam emoções contraditórias como aversão e profunda
simpatia. Interpretar como sintoma de loucura o que ela vê no papel – ou, ainda, o fato
de sequer enxergar algo não usual nele – não basta como análise. Obviamente, um relato
sobre visões feito em um consultório médico poderia ser visto de forma suspeita; mas
vale lembrar que ―O Papel de Parede Amarelo‖ é uma obra de ficção, na qual a
linguagem é utilizada para efeito de sentido e de leitura, bem como para levar à
reflexão. O que a narradora enxerga no papel de parede deve ser compreendido em um
nível mais profundo. Por exemplo, o padrão de barras que ela enxerga no papel à noite,
muito além da criação fantasiosa de uma mente impressionável a partir de um mero jogo
de luz e sombra, pode muito bem ser visto como a representação de seu confinamento.
E a figura da mulher presa no padrão interno, com a qual a narradora acaba por se
identificar completamente ao ponto de (con)fundir-se com ela, pode ser compreendida
como a leitura que a narradora constrói de si própria gradualmente.
Segundo Kolodny (1980), a decisão da narradora de explorar o papel de parede e
decifrá-lo significa que ela primariamente deixa de documentar suas experiências
através da escrita (o que a cansa muito por precisar fazê-lo às escondidas) para lê-las
mais diretamente (p. 458). A figura da mulher no papel pode ser vista como uma
espécie de reflexo da narradora: ―arrastando-se‖ em silêncio durante o dia, debatendo-se
desesperadamente durante a noite – justamente o período do dia em que seu marido
normalmente está em casa, o que implica uma maior pressão sobre ela para
rigorosamente interpretar seu papel de gênero perante ele. Assim, ela lê suas próprias
experiências como texto e se depara com a simbolização de uma realidade assustadora e
inaceitável.
A fim de alterar esta realidade, a narradora tenta arrancar e rasgar o papel que a
encerra. Mas, como comenta Kolodny (1980), textos não são facilmente destrutíveis
desta maneira (p. 458). Papéis de gênero são estabelecidos socialmente, e atos
iconoclastas individuais e isolados não os modificam em sua essência. A narradora não
conseguiria mudar sua realidade dura sozinha; sem apoio, ela seria simplesmente
obrigada por seu marido e médico, uma dupla autoridade sobre ela, a se submeter a um
tratamento médico mais rigoroso. Sua única libertação é através da loucura. E seu

220
marido, que não consegue nem está disposto a ler as experiências de sua esposa,
certamente usa de seus conhecimentos médicos e visões patriarcais e, ao vê-la se
arrastando pelo quarto, aparentemente sem motivo racional algum, se convence
horrorizado de que ela está louca. Dessa maneira, o conto parece lidar com a
possibilidade de um outro lado das relações de gênero da época, oculto pelo discurso
dominante: o sofrimento silencioso mas plenamente justificável da mulher, presa a um
papel do qual procura fugir desesperadamente.

Conclusão
Embora mal compreendido por muito tempo, ―O Papel de Parede Amarelo‖, de
Charlotte Perkins Gilman, é uma obra complexa e digna de análise, como comprovam
os diversos trabalhos já escritos sobre ela. Foi objetivo deste trabalho demonstrar alguns
de seus aspectos mais relevantes e oferecer uma análise possível da obra. Como visto, o
conto é construído como uma narrativa epistolar em primeira pessoa; devido a essa
escolha, que não é simples ou ―natural‖, o envolvimento do leitor se torna mais intenso.
É possível observar no conto a progressão da angústia da narradora, confinada por seu
marido médico em uma casa alugada e proibida de desempenhar qualquer atividade
estimulante, intelectual ou criativa. Forçada a não fazer coisa alguma além de caminhar
um pouco, alimentar-se e dormir, a narradora mantém um diário escondido, no qual
expressa tudo que não poderia contar a John sem que ele a censurasse duramente, e
também observa o papel de parede do quarto. O que ela percebe no papel é, antes de
tudo, uma representação simbólica de como interpreta o confinamento em sua própria
vida; e ela tenta, ainda que em vão, destruir o papel e mudar sua realidade opressiva.
Redescoberto durante a segunda onda do feminismo na década de 1970, o conto
de Gilman alude de uma forma estilizada a um aspecto da experiência das mulheres do
século XIX então silenciado. Uma vez que o descontentamento feminino era visto social
e medicamente como sintoma de histeria, um mal tanto inerente à fisiologia da mulher
quanto relacionado à falta de auto-controle, os motivos reais para tal desconforto e
angústia eram descartados. Se é verdade, como escrito por Russ (2005), que obras
escritas por mulheres levam a reflexões acerca de experiências silenciadas ou
desvalorizadas socialmente, ―O Papel de Parede Amarelo‖ exemplifica isso de forma
clara. Como analisado neste trabalho, o conto emprega diversas estratégias ficionais,
conduzindo leitores em uma narrativa tensa que gira em torno da interpretação pela
narradora do seu próprio confinamento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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COSER, S. (org.). O papel de parede amarelo e outros contos de Charlotte Perkins
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Minnesota Press, 2008.
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FRENCH, M. Beyond Power: On women, men and morals. Londres: Abacus, 1986.

221
GILMAN, C. P. ―O Papel de Parede Amarelo‖. Trad. Stelamaris Coser. In: COSER, S.
(org.). O papel de parede amarelo e outros contos de Charlotte Perkins Gilman:
tradução e crítica. Vitória: EDUFES, 2006, p. 21-43.
GILMAN, C. P.; SHULMAN, R. (ed.). The Yellow Wall-Paper and other stories.
Oxford: Oxford University Press, 1995.
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Companhia das Letras, 1994.
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Paulo: Companhia das Letras, 2009.
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Texts‖. New Literary History, 11 (3), Charlottesville, p. 451-467, 1980.
ROSENFELD, A. ―Literatura e Personagem‖. In: CÂNDIDO, Antonio et al. A
Personagem de Ficção. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 9-50.
RUSS, J. How to Suppress Women's Writing. Austin: University of Texas Press, 2005.
RUKEYSER, M. The Life of Poetry. Ashfield: Paris Press, 1996.
SMITH-ROSENBERG, C. Disorderly Conduct: Visions of Gender in Victorian
America. Nova Iorque: Alfred A. Knopf, 1985.

222
A condição feminina do Oitocentos, nas páginas do
semanário ―O sexo feminino‖
(The feminine condition of the Eightfold, on page of the weekly "O sexo
feminino")

Aparecida Maria Nunes1


1
Universidade Federal de Alfenas (Unifal-MG)
1
Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de Minas Gerais (Fapemig)

cydamaria@gmail.com

Abstract: To look at nineteenth-century journalism, with profound and fierce transformations


in Brazil still imperial, is often to find the voice that still echoes in the struggle for equal rights
between men and women. In this scenario, the weekly O Sexo Feminino, edited and written by
a teacher of the Normal course, from the city of Campanha da Princesa, south of Minas
Gerais, in 1873, gained prominence and function. Adopting the editorial line in favor of the
emancipation of women, Francisca Senhorinha da Motta Diniz, of recognized culture and
daring, urged her reader not to abdicate the right to intellectual education. The weekly,
curiously, received a welcome record of the national and international press and the
Campanian society welcomed the publication of Francisca, being responsible for its diffusion.
The publisher even confessed that, contrary to what it had foreseen, it had ideas accepted by
good thinkers and friends of progress. Surprisingly the initial print run was 800 copies, all sold
by subscription. And that's how Francisca managed to publish the 45 issues of O Sexo
Femino, in a year of existence in Minas Gerais.
Keywords: Francisca Senhorinha da Motta Diniz; O sexo feminino; Journalism in the 19th
century

Resumo: Debruçar-se sobre o periodismo do século XIX, de profundas e acirradas


transformações no Brasil ainda imperial, é encontrar muitas vezes a voz que ainda ecoa na luta
por direitos iguais entre homens e mulheres. Nesse cenário, o semanário O Sexo Feminino,
editado e redigido por uma professora do curso Normal, da cidade de Campanha da Princesa,
sul de Minas Gerais, em 1873, ganhou destaque e função. Adotando a linha editorial a favor
da emancipação da mulher, Francisca Senhorinha da Motta Diniz, de reconhecida cultura e
ousadia, conclamou sua leitora a não abdicar do direito à educação intelectual. O semanário,
curiosamente, mereceu registro de boas-vindas da imprensa nacional e internacional e a
sociedade campanhense acolheu a publicação de Francisca, responsabilizando-se pela sua
difusão. A própria editora chegou a confessar que, ao contrário do que previa, teve as ideias
aceitas por bons pensadores e amigos do progresso. Surpreendentemente a tiragem inicial foi
de 800 exemplares, todos vendidos por assinatura. E foi assim que Francisca conseguiu
publicar os 45 números de O Sexo Feminino, em um ano de existência em Minas Gerais.
Palavras-chave: Francisca Senhorinha da Motta Diniz; O sexo feminino; Jornalismo no
Século XIX

As imagens da mulher no Brasil imperial


Durante a primeira metade do século XIX, surgiram no Brasil alguns jornais
dedicados às mulheres. A imprensa, timidamente, começava a se segmentar. Até então
muitos periódicos – apesar de trazerem no título o público-alvo ao qual se destinavam
(Jornal das famílias), de adotarem pautas ao gosto dos interesses das mulheres letradas
do Império (A estação) e de contemplarem um adorno feminino (O espelho diamantino)
223
ou referirem-se ao universo da mulher (Correio das modas) – eram fundados e dirigidos
por homens. E não raro as matérias também eram escritas por redatores que adotavam
pseudônimos femininos para conferir autenticidade às publicações. É o caso do escritor
Cláudio de Souza, que assinava os editoriais da Revista feminina, publicada em São
Paulo e distribuída em todo o Brasil, de 1914 a 1936, sob o pseudônimo de Ana Rita
Malheiros.
Aliás, a questão dos pseudônimos constitui capítulo à parte quando se fala da
imprensa do século XIX. Nas primeiras décadas do Oitocentos, os artigos de opinião
escondiam os nomes dos verdadeiros autores. Sabe-se que até o imperador Dom Pedro I
se valia desse estratagema para provocar seus adversários políticos por meio dos jornais,
com os pseudônimos de Duende ou Inimigo dos Marotos. Machado de Assis é outro
escritor que lançou mão de vasto número de pseudônimos ao publicar seus contos na
imprensa carioca. Camilo da Anunciação, Eleazar, Job, Lélio, Manassés, Boas Noites
são alguns nomes adotados por Machado, além, é claro, das iniciais J. B., J. J., M. A..
Nas crônicas que escrevia para o Jornal das famílias, Machado curiosamente se
apresenta como Lara.
Contudo, em meados do século XIX, algumas mulheres determinadas
começaram a publicar textos opinativos, poesias e folhetins na imprensa. Como a
produção literária feminina era vista com desdém pela sociedade, muitas adotavam
identidade masculina. Os exemplos mais famosos são os dos europeus George Eliot,
que na verdade se chamava Mary Ann Evans, e George Sand, que era o pseudônimo da
francesa Amandine Dupin.
No Brasil, longe ainda da mercantilização da imprensa, sem a venda avulsa de
exemplares, os periódicos eram produzidos por uma elite cultural e dirigidos, da mesma
forma, para uma elite cultural que integrava a lista de assinantes. A crítica política
animava os temas debatidos, principalmente nas questões delicadas entre o público e o
privado, que acabavam delineando a hipocrisia da sociedade dominante e a arrogância
dos poderosos. A luta pelo direito à educação das moças e ao voto da mulher pontuou o
surgimento, mesmo com duração efêmera, de periódicos de expressão feminista no
período entresséculos da segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do
século XX. Por essa ocasião, a imprensa de Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e
Pernambuco já era combativa e atuante. Minas, porém, se mantinha conservadora, não
sendo tão agressiva ao participar das lutas políticas e registrar denúncias. Com a
decadência da mineração do ouro, a Zona da Mata e o sul das Gerais ganham
importância no cenário político-econômico, principalmente depois de 1830, com a
interiorização da imprensa na província.1 Esse fato comprova que o surgimento de
órgãos de imprensa mineiros mapeia de certa maneira a marcha dos grandes centros de
economia na província.
Os registros da presença feminina em quaisquer setores da vida social e política
no Brasil ainda são escassos, inclusive os de jornais feministas brasileiros do século
XIX.

1
A imprensa brasileira destaca a presença de renomadas figuras mineiras, embora o jornalismo em Minas
Gerais tenha surgido de maneira tímida e demorada. Frei Veloso, fundador e diretor da Oficina do Arco
do Cego, em Lisboa, e o padre Viegas, que realizou impressão calcográfica, por volta de 1807, são alguns
exemplos.

224
Apoiando-se em relatos de viajantes estrangeiros, June E. Hahner, por exemplo,
traça um perfil da brasileira do século XIX2. O marido detinha o poder. Rodeado de
escravas concubinas, o chefe de família exercia seu mando sobre filhos e esposa. Ela,
restrita ao lar, procriava incessantemente. Passiva, foi se tornando indolente, gorda e
mal-humorada.
Essa imagem – da mulher obesa e de humor instável – molda praticamente a
mulher da Corte, no Rio de Janeiro. Nas classes menos abastadas, entretanto, o trabalho
feminino era necessário e sua liberdade fugia ao controle opressor. Observações como a
do reverendo Robert Walsh3, quando de sua viagem por Minas Gerais, no fim da década
de 1820, podem atestar tal diferença. Walsh deparou-se com mulheres viúvas, esposas
de fazendeiros, que, por questões de sobrevivência, dirigiam as fazendas e os escravos,
incorporando fielmente o papel e os encargos do marido. As exceções, a exemplo desse
caso, podem ser verificadas nas mais diversas classes sociais. Contudo, apesar dos
esforços motivados pela necessidade material ou pela sede de liberdade, o Direito Civil
brasileiro estabelecia que as mulheres fossem menores perpétuos e, assim sendo, mesmo
as mais vanguardistas não escapariam aos impositivos da lei. Continuariam a serem
subalternas, ingênuas e inconsequentes.
Procurando superar a condição imposta pela sociedade patriarcal, a de
reprodutora e organizadora do lar, algumas mulheres destacam-se no cenário do Brasil
da primeira metade do século dezenove. Nísia Floresta Brasileira Augusta, nascida no
Rio Grande do Norte, em 1809, com justiça, é uma das primeiras feministas do país.
Atuou no magistério e chegou a fundar uma escola no Rio de Janeiro, que funcionou
por 17 anos. Nísia era a favor da liberdade de religião e da abolição da escravatura.
Defendia o direito da mulher à educação. Dinâmica, publicou, em 1832, Uma
reivindicação pelos direitos da mulher, tradução da obra da feminista inglesa Mary
Wollstonecraft. E também um livro de preceitos e conselhos morais para moças, em
1842: Opúsculo humanitário.
Com a vinda da família real portuguesa para o Brasil, em 1808, a urbanização se
intensifica. A exportação de tecnologia propicia a construção de ferrovias. A navegação
a vapor ganha impulso e o advento do telégrafo acena novos rumos. A imprensa acelera
o processo de transmissão de conhecimento e a vida nas metrópoles conhece outras
necessidades. Diversos centros são incentivados pelo espírito de progresso, delineando
nitidamente características entre a sociedade urbana e rural. Em virtude de novos
padrões, seguidos pelas classes mais privilegiadas, a educação é permeada às mulheres.
Mas ainda com restrições. Exemplo disso é a primeira legislação referente à educação
feminina, no Brasil de 1827. A princípio, parecia ser um ganho: a lei mandava criar
escolas de primeiras letras em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos do
Império. No entanto, as meninas seriam admitidas à instrução apenas em escolas
elementares e as mestras deveriam ter ―reconhecida honestidade‖. As disparidades,
todavia, não se extinguem. Em 1872, somente 1/5 da população livre no Brasil sabia ler.

2
June E. Hahner. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850-1937, pp 28-29. A
pesquisadora afirma que ―a história das mulheres desilude-nos da noção de que a história da mulher seja a
mesma que a história dos homens, e de que os pontos de mudança significativos na história exercem o
mesmo impacto num sexo como no outro‖.
3
Cf. Miriam Moreira Leite. A mulher no Rio de Janeiro no século XIX. Um índice de referência em livros
de viajantes estrangeiros. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1982. Notices of Brazil in 1828 and 1829.
Londres, Frederick Westley and A. H. Davis 1830. 2v. II:28. Apud June E. Hahner, op. cit., p. 28.

225
Hahner fornece números esclarecedores, embasada no livro de Rui Barbosa, Reforma do
ensino primário e várias instituições complementares da instrução pública, editado em
1947. No ano de 1873, havia 5.077 escolas primárias, entre públicas e particulares. Dos
alunos matriculados, 114.014 eram meninos e apenas 46.246, meninas, para uma
população brasileira que excedia a 10 milhões de pessoas. Há que considerar que, nas
famílias abastadas, a instrução se fazia em casa, muitas vezes com tutores particulares.
Ou, então, as meninas eram internadas em escolas de freiras, sobretudo as das Irmãs de
Caridade de São Vicente de Paula, que tinham chegado ao Brasil em meados do século
XIX. Mas a maioria dos brasileiros continuava sem instrução e às meninas era oferecido
um ensino, conforme determinação da lei e vontade dos pais, com ênfase nas prendas
domésticas, pois a sociedade imperial valorizava a mulher destinada a ser esposa e mãe,
prestimosa no bordado e no piano. Os registros de Luccock4 corroboram tal mentalidade
quando esclarecem que as leituras das mulheres não deveriam ultrapassar a fronteira dos
livros de orações e que não deveriam escrever, ―a fim de que não fizessem um mau uso
da arte‖. Contudo, junto ao aprendizado de prendas domésticas – para o aprimoramento
de dotes no preparo de quitutes e no manuseio da agulha, algumas famílias mais
abastadas permitiam que as meninas estudassem o francês e o piano –, para o deleite da
vida social.
Mas é preciso pontuar que, mesmo diante de um quadro incipiente de
alfabetizados no Oitocentos, o Brasil ampliava o seu número de leitores. Era prática
comum a leitura em voz alta de romances e jornais, sobretudo no serão doméstico, para
aqueles que não sabiam ler. E, dessa forma, a informação e o debate de ideias poderiam
ganhar novos adeptos e formar a opinião pública. Por isso, muitos periódicos se
propunham também a educar homens e mulheres.

A imprensa em Campanha
Campanha, em 1872, conforme recenseamento da época, o único realizado
durante o período imperial em todo o território brasileiro, possuía pouco mais de 20 mil
habitantes, sendo que apenas 1.458 mulheres sabiam ler e escrever, cerca de 7% da
população total.
A cidade é a mais antiga do sul de Minas, cuja povoação foi iniciada no ciclo do
ouro, quando conheceu a opulência e a riqueza. Segundo Marcos Ferreira de Andrade, 5a
região onde hoje é a cidade Campanha permaneceu clandestina até 1737, embora tivesse
sido descoberta por paulistas, que exploravam as minas de ouro da localidade. Quando
Cipriano José da Rocha, ouvidor da vila de São João del-Rei, tomou posse da região,
funda novo arraial que recebe o nome de São Cipriano. Mais tarde, sob a jurisdição da
Comarca do Rio das Mortes, a região passa a se chamar Arraial da Campanha do Rio
Verde de Santo Antônio do Vale da Piedade. No final do século XVIII, nova
denominação: Vila da Campanha da Princesa. Até que é elevada à condição de cidade
em 9 de março de 1840.
Considerada ―o berço da cultura sul mineira‖ ou ―a cidade mãe do sul de
Minas‖, Campanha foi importante polo abastecedor de gêneros alimentícios para a

4
Da obra Notes on Rio de Janeiro, de John Luccock, p. 111. Apud June E. Hahner, op. cit., p. 32.
5
ANDRADE, Marcus Ferreira de Andrade. Família, fortuna e poder no império do Brasil – Minas Gerais
– Campanha da Princesa (1799-1850). Niterói, 2005. Cf.: ANDRADE, Marcos Ferreira. Elites regionais e
a formação do Estado Imperial Brasileiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008, p. 19.

226
Corte e de expressiva mão de obra escrava nas fazendas da região. Afinal, em 1873,
Campanha possuía 6.750 escravos, que representavam 24% de sua população total.
Foi ainda uma das primeiras localidades brasileiras a possuir imprensa, sendo
que muitos de seus periódicos adquiriram projeção nacional, durante o século XIX.
Desde 1831, Campanha já contava com imprensa própria, o que favoreceu a edição de
mais de uma dezena de jornais de grande circulação no Oitocentos.
No sul de Minas, a cidade de Campanha refletia as transformações políticas,
sociais e culturais que ocorriam no Rio de Janeiro, aderindo aos projetos que
repercutiam na Corte, principalmente a aspiração de uma sociedade letrada. O século
XIX, considerado o século da imprensa artesanal, das folhas que dificilmente
ultrapassavam as quatro páginas, conforme nos conta Buitoni (1981, p. 27), foi ainda o
responsável pela pequena imprensa combativa, alimentada mais por ideias do que por
informações. Absorvendo as tendências que vinham dos grandes centros, a criação de
periódicos encontrou na cidade de Campanha a motivação suficiente para mobilizar a
sociedade para o debate por meio das páginas dos jornais, como tribuna para a troca de
opiniões. Desde o surgimento de O opinião campanhense, em 1832, até o advento de
Colombo (1873-1875), periódico representativo do Partido Republicano do sul das
Minas, pode-se ler as inquietações que motivaram a passagem da escravatura à abolição,
do Império à República, e a luta pela igualdade de direitos para o sexo feminino.
Colombo, por exemplo, imbuído na luta republicana, não aceitava acordo com os
liberais. Abolicionista convicto e fiel aos seus preceitos ideológicos, o jornal sequer
acolhia a publicação de anúncios sobre escravos. E tinha nos artigos do poeta e
jornalista Lúcio Menezes Furtado de Mendonça, profissional dos mais respeitados na
Corte e um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, a sua veia mais
combativa. Mendonça, que era fluminense, mas residia em Campanha, não poupava a
monarquia em seus textos nem as questões sociais nos poemas que publicava, como o
intitulado ―Para as vítimas da seca do Nordeste‖.
Durante o Oitocentos, a cidade de Campanha também se tornou o centro
propagador das ideias separatistas. Personalidades eminentes, políticos e escritores
uniram-se através de projetos parlamentares e da imprensa para insuflar a proposta de
desmembramento do território sul mineiro, a fim de criar nova unidade administrativa
na região. Para tanto, O monitor sul mineiro, monarquista e conservador, semanário
dirigido por Bernardo Saturnino da Veiga e seus irmãos, no período de 1872 a 1896,
teria, entre outras propostas de sua linha editorial, o objetivo de propagar o movimento
separatista no sul de Minas.
Nesse cenário de lutas políticas e atento ao projeto civilizatório, amplamente
adotado na Europa, de veicular na imprensa valores e ideias capazes de sensibilizar o
público leitor, é que surge o semanário O sexo feminino, igualmente combativo e de
proposta bem definida: a emancipação da mulher pela educação intelectual.

Francisca e a imprensa no Oitocentos


De reconhecida cultura e ousadia, a professora primária Francisca Senhorinha da
Motta Diniz lança, edita e redige com regularidade seu semanário, ―dedicado aos
interesses da mulher‖, com tiragem inicial de 800 exemplares, todos vendidos por
assinatura, naquele 1873, na cidade de Campanha.
Tiragem essa que sobe para quatro mil por ocasião da reimpressão, ainda em
1873, dos dez primeiros números, segundo o próprio semanário, por três motivos:

227
satisfazer às reclamações dos assinantes que solicitam os jornais anteriormente
publicados, formar séries de cúpulas que seriam postas à venda na Corte e disponibilizar
exemplares para coleção do periódico no final do ano.
Apesar de ser referência na imprensa feminina, citada inclusive por Gondin da
Fonseca como uma das primeiras feministas brasileiras, pouco se sabe sobre Francisca
Senhorinha. As escassas informações biográficas mencionam apenas que a professora é
natural de São Josédel-Rei (hoje a cidade de Tiradentes) e filha de Eduardo Gonçalves
da Motta Ramos e de Gertrudes Alves de Mello Ramos. Por comentário registrado pela
própria Francisca em seu semanário, sabemos que foi casada com o advogado José
Joaquim da Silva Diniz e que teve três filhas: Amélia Augusta Diniz, Albertina Augusta
Diniz e Elisa Diniz Machado Coelho.6 Francisca Senhorinha fazia parte do corpo
docente da Escola Normal de Campanha, juntamente com o marido, no ano de
lançamento de O sexo feminino. A filha Amélia era uma das dezesseis normalistas
oficialmente matriculadas. E Albertina estava entre as doze meninas da categoria de
―ouvintes por falta de idade para a matrícula‖.
Mesmo longe da efervescência cultural e política da Corte no Rio de Janeiro,
Francisca Senhorinha não se intimida em lançar seu jornal de combate no interior
mineiro. E diante de uma ―feliz coincidência‖, como ela mesma expressa em texto de
apresentação do primeiro número, quando então se comemoravam 51 anos de liberdade
do jugo colonial, a data – 7 de setembro – também serviria para marcar uma época não
menos memorável, conforme frisa a jornalista: a independência do sexo feminino.
Empreendedora, Francisca Senhorinha não só idealiza seu semanário, definindo
a linha editorial, como se arrisca a divulgar suas ideias na imprensa, mediante um jornal
que já levava no nome – O sexo feminino – a sua proposta ideológica. Francisca,
portanto, não se limita aos papéis de esposa e professora. Acredita que através da mídia
daquele tempo poderia mobilizar mais simpatizantes para a divisa de emancipação da
mulher.
No Oitocentos, era prática corriqueira se valer de periódicos para a troca de
ideias e informações. Principalmente para levantar alguma bandeira e conseguir
correligionários para a proposta lançada. É momento do surgimento de um sem-número
de folhas, que muitas vezes desaparecem após o segundo número. O que não foi o caso
de O sexo feminino. Pelo contrário. Em Campanha, Francisca encontra as facilidades
materiais para imprimir sua folha de quatro páginas (a tipografia do marido José
Joaquim, também proprietário do jornal O monarchista), um tipógrafo dedicado (que
manteve a periodicidade do semanário) e um público leitor atento que soube
compreender sua iniciativa. Campanha possuía intelectuais e políticos influentes, foi a
cidade que abrigou a segunda Escola Normal de Minas Gerais e fez prosperar vários
periódicos.7

6
Amélia foi discípula do concertista chileno D. Thomaz Rodenas e professora de piano e música.
Albertina atuou na imprensa e no magistério, além de ser poetisa e folhetinista. Elisa trabalhou como
professora em escolas primárias. Todas, contudo, foram colaboradoras do semanário O sexo feminino e
professoras nas escolas fundadas por Francisca Senhorinha no Rio de Janeiro. Há ainda que registrar uma
outra filha, mencionada por Francisca nas páginas de seu periódico: Eulália Diniz.
7
Campanha, na ocasião, possuía três tipografias: as dos jornais O monitor sul mineiro, Colombo e O
monarchista.

228
A proposta de Francisca Senhorinha não era nova. Seguia, de certa forma, a
linha de outros periódicos antecessores seus, como O jornal das senhoras e o Bello
sexo, ambos editados no Rio de Janeiro.
O jornal das senhoras é considerado o pioneiro na imprensa feminista brasileira
a ser dirigido por uma mulher.8 Fundado em 1º de janeiro de 1852 pela argentina Joana
Paula Manso de Noronha9, que se exilou no Brasil, com a família, fugindo da ditadura
de Rosas, o periódico feminista, ao apostar no progresso e no combate à ignorância,
publicava não somente receitas de cozinha e modas, mas também o debate de ideias.
Afinal, sua proposta era a de propagar a ilustração e cooperar com todas as forças para o
melhoramento social e para a emancipação moral da mulher. O jornal das senhoras
sabia que causaria polêmica naquele Brasil imperial um periódico ser editado e redigido
por uma mulher. Em outros países, como França, Inglaterra, Espanha, Estados Unidos e
até Portugal, era corriqueira a difusão do trabalho intelectual da mulher à frente da
imprensa. Por isso, o primeiro editorial, dirigido às assinantes, já problematiza a
hegemonia do sexo masculino na mídia da época: ―Ora pois, uma Senhora a testa da
redação de um jornal! Que bicho de sete cabeças será?‖, provoca a editorialista.
Auxiliada pelos conceitos de progresso e de aperfeiçoamento moral, sem pudor algum,
Joanna Manso assegurava o lugar e a função de ser uma redatora que, ―se não possui
talentos, pelo menos tem a vontade e o desejo de propagar a ilustração, e cooperar com
todas as suas forças para o melhoramento social e para a emancipação moral da
mulher‖.
Bello sexo, lançado numa quinta-feira, 21 de agosto de 1862, ―periódico
religioso, de instrução e recreio, noticioso e crítico moderado‖, como se autodenomina
no subtítulo, tem em Julia de Albuquerque Sandy Aguiar sua redatora-chefe. O discurso
de apresentação do periódico é menos incisivo em relação ao de O jornal das senhoras.
Curiosamente, Julia Aguiar, talvez como tentativa de defesa contra críticas severas, logo
no primeiro parágrafo, confessa ter acatado os conselhos do marido, também escritor.
Admite a ousadia de editar uma folha como a Bello sexo, que considera ―imperfeita‖,
por reconhecer o acanhamento de sua inteligência e instrução. Mas ao mesmo tempo em
que solicita a outros redatores que não sejam austeros para com o jornal que acaba de
vir a público, conclama suas leitoras ao trabalho e incentiva as possíveis colaboradoras a
assinarem suas produções, ―porque nós temos a ambição da glória, e a maior glória, que
podemos alcançar na terra, entre os homens, é tentarmos a competência com os
trabalhos inteligentes de suas penas‖.
É importante advertir que, na primeira metade do século XIX, já havia, mesmo
que timidamente, uma imprensa direcionada à mulher no Brasil. É o caso dos periódicos
O espelho diamantino, no Rio de Janeiro, e O espelho das brasileiras, em Recife. Mas
todos eles fundados e dirigidos por homens.
E é assim, decorridos vinte e um anos do lançamento de O jornal das senhoras,
que o espírito de iniciativa de Francisca Senhorinha da Motta Diniz se destaca,
ganhando, ao contrário de outros veículos feministas, credibilidade inclusive de
periódicos influentes, dirigidos por homens, que se congratularam com a proposta
editorial de O sexo feminino e reconheceram em Francisca uma competente jornalista. A
República, O Itajubá, Diário de Minas, Echo de Minas, Mosquito são alguns dos que

8
No ano de 1850, surgem no Recife dois jornais dirigidos por mulheres: A esmeralda e O jasmim.
9
Posteriormente, o jornal foi dirigido por Violante Atabalipa Ximenes de Bivar e Velasco. E, em 1853,
por Gervásia Numésia Pires dos Santos.

229
souberam corresponder à iniciativa da professora da Escola Normal. A imprensa
campanhense, nas páginas de O monitor sul mineiro, O monarchista e Colombo,
também saudou o periódico, animou sua editora no trabalho e desejou bom agouro. O
discurso audacioso e combativo, em tom de advertência, do primeiro editorial do
semanário, comunicando estar preparado para possíveis retaliações, não reflete, desse
modo, a repercussão do lançamento do periódico. Mas, em contrapartida, revela a força
expressiva do texto da educadora e sua determinação na causa que abraçou ao longo da
vida. Dimensionando sua força de combate, sob o título ―A educação da mulher‖, a
jornalista adverte estar preparada para reações irônicas e perseguições infundadas. Ela
escreve:

Zombem muito embora os pessimistas do aparecimento de um novo órgão de imprensa


– O sexo feminino; tapem os olhos os indiferentes para não verem a luz do progresso,
que, qual pedra desprendida do rochedo alcantilado, rola violentamente sem poder ser
impedida em seu curso; riam os curiosos seu riso sardônico de reprovação à ideia que
ora surge brilhante no horizonte da cidade de Campanha; agourem bem ou mal o
nascimento, vida e morte do Sexo feminino; persigam os retrógrados com seus ditérios
de chufa e mofa nossas conterrâneas, chamando-as de utopistas: O sexo feminino
aparece. Há de lutar e lutar até morrer; morrerá talvez, mas sua morte será gloriosa e a
posteridade julgará o perseguidor e o perseguido.10

Sem as retaliações previstas, portanto, O sexo feminino mereceu registro de


boas-vindas da imprensa nacional e internacional. A sociedade campanhense acolheu o
semanário e foi a responsável pela sua difusão. Em Campanha, a editora viu seu jornal
estreitar laços com outras publicações do gênero e ampliar os horizontes. O balanço foi
extremamente positivo, conforme considerações da própria Francisca no editorial do nº
1 do segundo ano de O sexo feminino, agora editado na Corte. Francisca confessa que
não sofreu, nesse período, nenhuma contrariedade. Ao contrário, frisa, ―tivemos a
satisfação de ver que nossas ideias foram aceitas e louvadas pelos bons pensadores e
amigos do progresso‖.11
A trajetória do semanário passou por três fases, sem que a linha ideológica fosse
alterada.
A primeira, de 7 de setembro de 1873 a 7 de setembro de 1874, em Campanha
da Princesa, Minas Gerais, com assinantes em diferentes cidades, totalizando 45
edições. Foi o período mais regular, em termos de periodicidade. Certamente, pelo fato
de a impressão ser realizada na tipografia do marido, minimizando custos. Contou com
leitores desde o Amazonas até o Rio Grande do Sul, além de Europa e Estados Unidos.
A segunda fase, de 22 de julho de 1875 a 2 de abril de 1876, na cidade do Rio de
Janeiro, para onde Francisca Senhorinha se transfere com a família e onde também, é
importante rever, foram impressos mais quatro mil exemplares dos primeiros dez
números para atender os novos assinantes cariocas. Francisca tinha esperança de
ampliar sua luta mediante maior auxílio financeiro à publicação do periódico feminista.
Porém, não logrou o mesmo êxito que lhe foi conferido na cidade de Campanha.
Nessa temporada, o jornal passa inicialmente a ser impresso na Tipografia e
Livraria de Lombaerts e filhos, localizada na Rua dos Ourives nº 7. Os Lombaerts

10
A ortografia das citações referentes a O sexo feminino foi atualizada.
11
Edição de 22 de julho de 1875.

230
editavam o periódico La saison,12 que tinha a proposta inovadora de apresentar às
leitoras brasileiras pinturas, gravuras e grande número de moldes para moda. Francisca
e os Lombaerts tinham uma parceria: quem assinasse conjuntamente O sexo feminino e
La saison, que vinha com uma versão em língua portuguesa, explicando o texto francês,
ganhava redução no preço. Apesar de prosseguir com a promoção na aquisição das duas
assinaturas, a partir da edição de nº 12, em 17 de outubro de 1875, Francisca Senhorinha
passa a imprimir sua folha na Tipografia Americana, na Rua dos Ourives nº 9. O
segundo ano do periódico completa, assim, 22 edições, quando Francisca anuncia aos
seus assinantes que o jornal terá sua periodicidade modificada para mensal e que se
ausentará da Corte temporariamente, pelo fato de ter sido acometida pela febre amarela,
juntamente com a família.13
É importante ressaltar que Francisca Senhorinha sempre conciliou as atividades
jornalísticas com as do magistério. Em Campanha, lecionou na Escola Normal. No Rio
de Janeiro, fundou e dirigiu, com o auxílio das filhas, nesta segunda fase de O sexo
feminino, o Colégio Maternal de N. S. da Penha, destinado a meninas pensionistas,
meio-pensionistas e externas e meninos meio-pensionistas e externos, menores de 10
anos, para prepará-los nas matérias do Colégio Pedro II. Depois, quando retornou à
Corte, inaugurou novo colégio, o Santa Isabel, de ensino primário e secundário, na Rua
do Lavradio. Também fundou a Escola Doméstica, anexa ao Colégio Santa Isabel,
destinada a meninas pobres e desamparadas. Mas a iniciativa não obtém o êxito
previsto, mesmo estando colocada sob a égide protetora de Dona Marianna Cecília
Mirelles da Fonseca, esposa do Marechal Deodoro da Fonseca, por carência de recursos
financeiros.
Na terceira fase do jornal, de 2 de junho de 1889 a 30 de setembro de 189014,
totalizando 21 números, Francisca já se encontra na Rua do Lavradio nº 101. E o jornal
passa a ser impresso na Tipografia de Machado & C., da rua Gonçalves Dias nº 28. É
período de turbulências na vida da editora e no cenário político-econômico do país.
Depois disso, a redatora se entusiasma com a Proclamação da República e altera
o nome do periódico para O quinze de novembro do sexo feminino, com periodicidade
quinzenal, a partir de 15 de dezembro de 1889, em sua edição de nº 12, com sede na
capital federal, na Rua do Lavradio novamente, mas no nº 24, transferindo-se tempos

12
O livreiro Jean Baptiste Lombaerts, juntamente com seu filho, Henri Gustave – ao contrário dos irmãos
Laemmert, Eduardo e Henrique, que editavam O correio das modas, além de dominarem o mercado de
livros –, optaram por trabalhar com jornais e revistas importadas. A Livraria e Tipografia Lombaerts era a
responsável pela importação e revenda no Brasil do periódico francês La saison, impresso por Gustave
Lyon Societé Anonyme em Paris. Segundo Marlyse Meyer, La saison circulou no Brasil entre 1872 e
1878. Periódico de prestígio que publicava a moda de Paris, La saison, no Brasil, vinha acompanhado de
um suplemento em português, produzido por Lombaerts. Mas foi somente em 15 de janeiro de 1879 que o
livreiro passou a editar uma versão brasileira, chamada A estação: jornal ilustrado para a família,
lançada no Rio de Janeiro. A estação dividia-se em duas partes: o ―Jornal de modas‖ e a ―Parte literária‖.
A primeira era importada, traduzida da revista alemã Die Modenwelt, publicada pela editora Lipperheide
de Berlim. A parte literária, por exemplo, contou com a publicação em forma de folhetim do romance
Quincas Borba, de Machado de Assis.
13
A febre amarela foi uma das epidemias que assolaram o país no século XIX, sobretudo na cidade do
Rio de Janeiro. Na Corte, os diversos e sucessivos surtos de febre amarela mataram, até 1889, segundo os
relatórios oficiais do Ministério do Império, cerca de 28 mil pessoas, sendo que, entre 1880 e 1889, foram
registrados quase dez mil casos de pessoas infectadas. Aqueles que podiam procuravam sair da capital e
residir em outros locais.
14
Existe a informação de que o jornal foi editado até 1896, porém não consegui localizar tais números.

231
depois a redação para a Rua do Senador Euzebio nº 78, quando, então, passa a defender
com maior empenho o direito das mulheres ao estudo secundário e ao trabalho. É por
essa ocasião, pois, que a jornalista passa a denunciar a educação mesquinha oferecida às
meninas. Nessa fase do jornal, a última edição resgatada data de 30 de setembro de
1890. E, nesse período, o jornal é impresso na Tipografia Montenegro, da rua Nova do
Ouvidor nº 16, primeiramente, e, depois, na Mont‘Alverne a Vapor, na Uruguaiana nº
43.

Francisca e sua pena inabalável


A luta de Francisca Senhorinha estava ancorada na busca de um veículo capaz
de propagar a necessidade de educação da mulher, que não podia ficar restrita ao mero
papel decorativo do lar, como ―boneca de luxo‖. A fim de explicitar seu raciocínio,
Francisca Senhorinha, ainda no primeiro editorial de 1873 de O sexo feminino, frisa:

O século XIX, século das luzes, não se findará sem que os homens se convençam de
que mais da metade dos males que os oprimem é devida ao descuido que eles têm tido
da educação das mulheres, e ao falso suposto de pensarem que a mulher não passa de
um traste em casa.

É importante observar que O sexo feminino mantém discurso coerente com a


proposta apresentada no título do semanário, definindo ainda seu público-alvo – a
mulher. Atendendo a uma característica própria da estética da imprensa feminina de
combate, já deixa evidente o conceito de imprensa sexuada, ao conclamar a
interlocutora para as lutas pelos direitos e pelas responsabilidades das mulheres, como o
direito à alfabetização, à escola secundária e aos estudos superiores, direito às carreiras
proibidas e ao trabalho remunerado.
Francisca incita, então, sua leitora a olhar para si mesma e a definir o papel que a
mulher representa na sociedade. Diz ser a mulher dotada das mesmas faculdades do
homem e que, para ser também boa mãe de família, deve instruir-se. Por isso conclama
sua interlocutora (ou seu interlocutor) a vir para a imprensa, para reagir contra o
despotismo masculino. Admite que é somente pela discussão, notadamente a veiculada
pela imprensa, que serão capazes de persuadir a opinião pública até a conquista do ideal
de emancipação da mulher.
Francisca, em alguns momentos, chega a publicar o texto original de outros
jornais sobre a importância de sua iniciativa em defender a educação da mulher. É o
caso da adesão manifestada pelo jornal República (edição nº 744), que enaltece os
serviços prestados pelo semanário não somente ao sexo feminino, mas também ao país,
preconizando até, caso se prestasse o apoio necessário a Francisca, estar Campanha na
vanguarda do progresso mineiro. A matéria fala do entusiasmo com que a editora se
lança na arena da imprensa e da firmeza com que discute a causa da mulher, na luta para
adquirir instrução e para se libertar do ambiente opressor em que vive, cercada de
preconceitos, de falta de recursos e inclusive de ―mortífero sarcasmo‖. O parágrafo
inicial do texto, contudo, merece ainda atenção pelo perfil que delineia da editora de O
sexo feminino. Acompanhemos, pois:

Com prazer registramos hoje em nossas colunas um fato que vem confirmar essas
verdades: apenas a Escola do Povo ergue a voz em favor dos direitos da mulher, a
cidade de Campanha, em Minas Gerais, vê surgir na imprensa um órgão intituladoO

232
sexo feminino, para sustentar aquelas ideias: e, o que mais é, esse periódico é redigido
por uma senhora, uma distinta professora, auxiliada em seu empenho por muitas outras
senhoras distintas daquele torrão tão feliz que já tinha filhas capazes de sentir e de
sustentar os seus direitos.

É importante ressaltar que a repercussão favorável à criação de O sexo feminino


pelos periódicos representativos da imprensa Oitocentista tinha homens por redatores e
profissionais da expressão de um Quintino Bocaiúva, Aristides Lobo e Manuel Vieira
Ferreira. Além do mais, Francisca Senhorinha revela ser detentora de uma rede de
relacionamentos privilegiada, que corrobora seu trabalho e seu prestígio. Francisca tinha
contatos com pessoas influentes da Corte e, por meio da troca de periódicos, mantinha
aproximações com vários intelectuais, a exemplo de José Carlos Rodrigues, editor do
jornal O novo mundo, publicado nos Estados Unidos.
O semanário também designava espaço a produções literárias, muitas vezes
traduzidas do francês pelas filhas de Francisca: Albertina e Amélia. Outras mulheres
colaboravam igualmente com artigos ou poemas, que sempre obedeciam à linha
editorial do semanário, ancorada em temas referentes à religião, educação e
emancipação da mulher. Mas, a poetisa Narcisa Amália de Campos, abolicionista
simpatizante de Nísia Floresta, é colaboradora constante e das mais importantes na luta
pelos direitos da mulher e dos oprimidos em geral. A poetisa de Nebulosas, considerada
ainda a primeira mulher a se profissionalizar como jornalista no Brasil, foi uma das
personalidades que receberam a admiração expressa de Francisca, na edição de 11 de
outubro de 1873 de O sexo feminino.
No ano em que o semanário foi impresso em Campanha, Francisca optou por
uma editoria que contemplava a opinião do periódico, em favor da educação da mulher
principalmente, uma seção aberta a colaboradores com temas vinculados à causa
feminista, artigos traduzidos do francês pelas filhas Amélia e Albertina, noticiário geral
e sobre a Escola Normal de Campanha, variedade e avisos, além de poemas. Não houve,
contudo, espaço para a publicação dos folhetins tão em moda, o que vai acontecer
somente quando a redação de O sexo feminino é transferida para o Rio de Janeiro. Lá,
sim, alguns folhetins ganham as páginas do semanário e se denota a habilidade
intelectual das filhas da editora. Elisa Diniz, por exemplo, escreve o romance ―A diva
Isabella‖.
Algumas seções de O sexo feminino são significativas para compreender como
certas informações circulavam no Oitocentos e a reação da imprensa no sul de Minas a
esse noticiário. Francisca tinha o cuidado de ler jornais nacionais e internacionais,
selecionando informações e textos para compartilhar com seus leitores. Dessa forma,
sabe-se das primeiras mulheres aceitas na escola de medicina, como na Suíça que,
naquela ocasião, havia formado 250 moças, sendo que algumas delas já exerciam a
profissão, inclusive nos hospitais de Londres. Em outra edição, a de 28 de janeiro de
1874, o semanário discute uma matéria publicada no Morning Post, sobre o ensino
superior das mulheres na Inglaterra que, segundo o jornal, estava em condições de
competir com o dos Estados Unidos. Não bastasse informar, a redação de O sexo
feminino inferiu, provocando explicitamente nossos governantes:

O nosso império do Brasil que faz timbre em ser submisso imitador da Europa e dos
Estados Unidos em todos os progressos, porque não legisla a fim de que as mulheres em
nossa terra possam ser graduadas nas ciências mais indispensáveis aos usos da vida?

233
No campo das Letras, Francisca publica também alguns excertos de George
Sand, pseudônimo de Amandine Aurore Lucile Dupin, e comenta vez e outra o fato de
aromancista francesa ganhar dinheiro e sobreviver unicamente de seus escritos. A
princípio, retransmite uma notícia que leu na edição nº 40 de O novo mundo. Para
exemplificar e justificar as ideias em favor do trabalho intelectual da mulher, George
Sand, na ocasião com 74 anos, é apresentada como a mais insigne mulher do século
XIX e a mais distinta literata que apareceu depois de Madame de Staël. A nota explica
que, mediante apenas o trabalho intelectual, a escritora francesa conseguiu ganhar ―a
fabulosa quantia de 400 contos de reis‖. Para dimensionar o valor desse trabalho
intelectual da romancista, o semanário complementa a informação, argumentando que
―com a educação doméstica, que até agora se há dado a uma menina que em breve se
torna moça, esposa e mãe, ainda que vivesse duas vidas de cem anos, jamais chegaria a
ganhar com o trabalho físico igual quantia‖.
Na Corte, Francisca Senhorinha tinha esperanças de receber apoio expressivo
das senhoras locais, quer na redação de artigos, quer em contribuição financeira, apesar
de ainda contar como assinantes o imperador Dom Pedro II e a Princesa Isabel e de
receber poemas de Narcisa Amália para a devida publicação. Frustrada, escreve na
edição de 21 de novembro de 1875, um texto longo, intitulado ―A imprensa jornalística
no Brasil‖, apontando os reveses pelos quais estava passando e se sentindo malograda
pela transferência da redação do periódico para o Rio de Janeiro, sobretudo pelo fato de
algumas ―mulheres que se dizem literatas‖ olharem com indiferença para a causa que
lhes diz respeito. Salienta que as próprias mulheres, salvo exceções, ainda não
compreenderam que a instrução para a mulher é tão necessária como a luz que nos
ilumina nas trevas. Mostrando-se abatida, Francisca confessa que não chegará ao
extremo de privar sua família de pão, para sustentar uma ideia na qual não está
encontrando guarida. E desabafa: ―A redação contava que n‘esta corte, onde existe o
centro de luz, encontraria maior número de assinantes; porém até o presente tem ficado
desiludida‖. Mas, faz novo apelo e promete publicar o nome de todas as assinantes, as
quais serão consideradas como ―cooperadoras da ideia da propaganda da instrução do
seu sexo‖.
Mas outros desapontamentos acometem Francisca. Atingida pela epidemia da
febre amarela que assolou a Corte no final do século XIX, a editora e sua família se
retiram temporariamente do Rio de Janeiro. Por esse motivo, o jornal terá a
periodicidade alterada para mensal até o retorno. Nesse ínterim, Francisca retorna a
Minas Gerais e ministra aulas em Barbacena. Quando regressa ao Rio, publica, em
1880, dois outros jornais, de vida efêmera. Primavera, com pauta mais amena e tom
moderado sobre reivindicações femininas, pretendia ser uma leitura de entretenimento,
mas não passou do oitavo número; e A voz da verdade, de cunho abolicionista. Sem
êxito em tais empreendimentos, decide continuar a publicar O sexo feminino em 02 de
junho de 1889, ressaltando no editorial que ―a sociedade moderna não educa a mulher
exclusivamente para glória e ornamento dos salões, educa-a para ser útil a si e à
humanidade‖. Nesse terceiro ano, o periódico se entusiasma com a causa republicana,
da igualdade e fraternidade, e altera-se o nome do jornal, no número 12, em 15 de
dezembro de 1889, para O quinze de novembro do sexo feminino, porque a editora
considera que, finalmente, ―a democracia está estabelecida no território brasileiro,
desaparecendo em um momento os preconceitos de nobreza de nascimento‖. Mas não
demorará muito para Francisca Senhorinha mais uma vez se sentir lograda em seus
propósitos. A República, revela, havia mostrado a sua verdadeira face, qual seja, a da

234
manutenção dos preconceitos e das práticas discriminatórias contra a mulher, motivando
um retrocesso.

Conclusão
O surgimento do periódico O sexo feminino não foi por acaso e, de certa
maneira, refletiu o processo de interiorização da imprensa em Minas Gerais, com o
declínio da extração de ouro nas cidades que se desenvolveram em função desse tipo de
economia.
A localização privilegiada da cidade de Campanha, região de confluência de
cariocas, paulistas e mineiros; a vinda de intelectuais e políticos da Corte para o sul de
Minas; a dinâmica da luta pelo poder; o desenvolvimento da técnica nos setores da
comunicação e do transporte; a necessidade de se reposicionar a economia de mercado e
da mão de obra feminina; e a adesão às ideias iluministas de melhor instrução para o
cidadão foram alguns dos fatores que permitiram o trabalho de Dona Francisca
Senhorinha da Motta Diniz no jornal O sexo feminino.
O discurso inflamado da jornalista Oitocentista expressa nitidamente sua
ideologia. A materialidade linguística da produção desse ―semanário dedicado aos
interesses da mulher‖, como é orgulhosamente expresso no cabeçalho da publicação,
abaixo da denominação do periódico, indica não somente a postura política de sua
idealizadora e de seus colaboradores, tendo em vista que alguns homens eram
simpatizantes da bandeira defendida por Francisca, mas também a visão de mundo de
certo grupo social em determinado espaço/tempo.
Foucault nos ensina que os diferentes modos de se produzir um discurso levam
em conta os espaços sociais, históricos e ideológicos nos quais se insere o sujeito
enunciador. Ora, mediante o recorte dos discursos publicados no semanário de Dona
Francisca Senhorinha, é possível delinear sentidos para as mulheres do período,
sobretudo para as que estavam imersas nos anseios daquilo que caracterizaria o novo
século. Principalmente a quebra de silêncios e de submissão a que estava condenada a
mulher.
As páginas de O sexo feminino reproduziram o que já ecoava no espírito de seus
interlocutores: a necessidade de rescindir o ideal normativo do discurso masculino. A
sociedade com seus avanços não mais podia sustentar a imagem da mulher meramente
reprodutora e adorno de salão. A mãe de família, tão bem enaltecida por Rousseau, para
cumprir seu destino, deveria agora se instruir e adotar a educação como meio de
conscientização de seus direitos e deveres.
E é para essas mulheres, além de outras nas cidades de Lorena, Rio Preto, São
Paulo, Bagagem, Três Pontas, e aos que recebiam as permutas do periódico em demais
localidades de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Santa Catarina, Rio Grande do Norte,
Madri e Nova Iorque, incluindo o imperador Dom Pedro II e a princesa Isabel, como
assinantes especiais, que Dona Francisca Senhorinha apresentou suas ideias, que se
somariam às dos abolicionistas e republicanos.
Tais interlocutores, na verdade, creditaram a Francisca o papel de porta-voz de
outras mulheres, corroborando a função assumida, de antemão, pela própria editora do
semanário campanhense. Mais ainda: como o jornal não somente denunciava a condição
subalterna da mulher na sociedade patriarcal, mas também nitidamente apregoava o
direito feminino à educação e à posição de co-protagonista da sociedade familiar e
gestora do patrimônio amealhado, esses aspectos todos, aliados ao desejo de ter voz e de

235
ser cidadã, luta que já estava eclodindo a favor do sufrágio feminino, garantiram a longa
vida de O sexo feminino, que conseguiu sobreviver por duas décadas, acompanhando
episódios significativos da história brasileira: o governo de D. Pedro II, o advento da
República e a abolição da escravatura.
Contemporâneos a todos esses clamores da sociedade, o jornal, Dona Francisca,
suas colaboradoras e seus leitores, ao lutarem pela emancipação feminina, estavam, de
fato, todos imersos numa zona de conflito: a fronteira entre o espaço privado e o espaço
público, cujos protagonistas eram, respectivamente, a mulher e o homem.
Assim, materializando a voz feminina através da imprensa, em espaço que até
então era negado à mulher, o jornal de Dona Francisca cumpre o papel que a sociedade
lhe conferiu.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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de Janeiro: Imprensa Nacional, 1895.
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236
VEIGA, José Pedro Xavier da. A imprensa de Minas Gerais (1807-1897). Revista do
Arquivo Público Mineiro. p. 169-249, ano III, 1898.

237
Literatura e jornalismo no Oitocentos: o discurso da
poetisa Narcisa Amália em favor da instrução
intelectual da mulher, no semanário O sexo feminino
(Literature and jornalism in the 1800s: the speech of the poetess Narcisa
Amália in favor of the intellectual instruction of women, in the weekly The
female sex)

Nataly Rafaele Ternero1, Aparecida Maria Nunes2


1-2
Universidade Federal de Alfenas (Unifal-MG)
1-2
Pibic/CNPq

natalyrafaelle23@gmail.com; cydamaria@gmail.com

Abstract: This article aims to contextualize the Brazilian political and cultural scene in the
1800s, analyzing the contribution of intellectual women of that time to literature, especially to
the press. Thus, the utilized source is the poetess Narcisa Amália de Campos' production in the
feminine newspaper The female sex, commanded by professor and journalist Francisca
Senhorinha da Motta Diniz.
Keywords: Women‘s press; XIX century; Narcisa Amália.

Resumo: O presente artigo se propõe a contextualizar o cenário político-cultural brasileiro nos


anos de 1800, analisando a contribuição das mulheres intelectuais da época para a literatura e,
em especial, para a imprensa. Para isso, usaremos como fonte a produção da poetisa Narcisa
Amália de Campos nafolha feminina O sexo feminino, comandada pela professora e jornalista
Francisca Senhorinha da Motta Diniz.
Palavras-chave: imprensa feminina; Oitocentos; Narcisa Amália.

Introdução:
Com o avanço das pesquisas tanto na área literária, quanto na História, percebe-
se a necessidade de recontar a memória e as contribuições das mulheres nos mais
diversos âmbitos. Muitas de suas histórias permanecem soterradas e inexploradas em
um passado dominado por homens.
Pensar e pesquisar as mulheres do passado, que em muitos casos não obtiveram
reconhecimento por seus feitos e obrasem vida, nos ajuda a compreender diversos
fatores e dinâmicas da sociedade da época, refletindo, também, sobre a nossa atual.
As mulheres contribuíram grandemente com seus escritos, tanto na literatura
como na imprensa, às vezes expondo seus próprios nomese dando a cara à tapa, outras
sob pseudônimos, mas não menos pioneiras. É interessante e necessário refletir sobre as
condições materiais e simbólicas nas quais essas mulheres se encontravam: materiais
porque eram sempre financeiramente dependentes de algum homem, seja pai, marido ou
irmão; simbólicas porque não se entendiam enquanto indivíduos que poderiam arriscar-
se e ocupar posições de destaque.
Durante muito tempo, pintou-se a imagem das mulheres do passado como
senhoras complacentes, recatadas e tímidasmas, a cada revisão histórica que fazemos,
indo a fundo aos antigos arquivos e livros, nos damos conta que muitos atos de

238
subversão que, muitas vezes, passaram despercebidos, foram ignorados por grande parte
da população.
A colonização do Brasil foi fruto de violência masculina. Aprisionamento,
escravidão e estupro foram as armas do homem branco português. Como Norma Telles
relembra em seu texto ―Rebeldes, escritoras, abolicionistas‖, os homens procuravam
com frequência as mulheres índias e negras, violando-as, e isso era parte dos costumes
da época, importante para manter intacta a esposa branca, que era ―fiel, tarefeira,
assexuada, ignorante e trancada em casa‖ (TELLES, 2016, p. 2).
Além disso, as mulheres eram impedidas e desencorajadas a pensar plena e
independentemente, não recebendo o devido acesso à educação e estímulo de suas
inteligências. Ser uma escritora, nesse contexto, exigia rebeldia e desobediência.
Dentre a pouca literatura abolicionista que o país possui, há alguns escritos
femininos que raramente são mencionados nas antologias que tratam sobre essa
temática. Norma Telles afirma que muito ganharia a cultura literária brasileira se essas
mulheres escritoras fossem lembradas e divulgadas. Pode-se citar o exemplo de Maria
Firmina dos Reis, professora e autora do livro ―Úrsula‖, de 1859, considerado o
primeiro romance brasileiro escrito por uma mulher, e do conto ―A escrava‖, de 1887.
Em suas obras, defendia o direito dos escravos, usava um vocabulário ―digno e distinto‖
para descrever suas personagens e narrava as injustiças da época. Recebeu pouco ou
nenhum reconhecimento por estes pioneiros escritos. Entretanto, dez anos depois da
publicação de ―Úrsula‖, Joaquim Manuel de Macedo ficou muito conhecido por seu
―Vítimas e Algozes‖, com temática parecida, colocando, porém, os escravos em posição
de ―cobras‖ e os senhores brancos como indefesos e bons. Esse fato nos revela o quanto
a literatura feminina é escondida e desconsiderada, mesmo que seja pioneira e
inovadora.
O direito à educação, sempre negado às mulheres, aparece como uma pauta a ser
reivindicada abertamente em suas páginas de jornal, em tom combativo e encorajador.
Querendo mais do que um ensino que as preparasse para os serviços do lar, essas
mulheres pesquisavam, traduziam e produziam artigos que eram publicados nestas
páginas femininas e, pode-se dizer, feministas.
Essas jornalistas e escritoras empenhavam-se muito em manter-se atualizadas
sobre a situação dos direitos civis das mulheres ao redor do mundo. Assim, era comum
que lessem muito material estrangeiro, traduzindo-os e, às vezes, readaptando-os para a
realidade brasileira, como cita Eliane Vasconcellos em seu artigo ―A imprensa
feminina‖: ―Na deglutinação geral das ideias estrangeiras, era praxe promover-se uma
acomodação de tais ideias ao cenário nacional.‖ (VASCONCELLOS, 2006, p. 2). Para
ilustrar esse movimento de leituras e pesquisas feitas pelas jornalistas, a autora
supracitada destaca a seguinte fala de Nísia Floresta Brasileira Augusta (1810-1885),
um dos principais nomes da imprensa feminina do Oitocentos:

Povos do Brasil, que vos dizeis civilizados! Governo, que vos dizeis liberal! Onde está a
doação mais importante dessa civilização, desse liberalismo? Em todos os tempos, e em
todas as nações do mundo, a educação da mulher foi sempre a das mais salientes
características da civilização dos povos. (AUGUSTA apud VASCONCELLOS, 2006,
p. 90).

Alguns fatores se mostram empecilhos para a livre distribuição de exemplares


das páginas femininas. A sociedade oitocentista era composta majoritariamente por
analfabetos, o que restringia grandemente o número de leitores dessas publicações. O

239
ensino para as mulheres era voltado aos afazeres do lar e a manutenção do casamento e
da família, o que dificultava a aprendizagem de como escrever diferentes gêneros e do
funcionamento de um jornal.
Era, também, difícil para as mulheres terem seu próprio dinheiro, sem depender
de nenhum homem, seja pai, marido ou irmão, e isso restringia as possibilidades de ação
de uma senhora na sociedade, como a de ter seu próprio negócio. É importante lembrar
que a esfera pública era exclusiva dos homens, e as mulheres que nela adentravam eram
mal vistas pela sociedade, o que dificultava a criação e divulgação de seus trabalhos.
Haviam algumas folhas dedicadas à mulher e à família, mas até então todas eram
escritas e dirigidas por homens, que às vezes assumiam pseudônimos femininos, para
conferir maior verossimilhança a seus escritos, que consistiam em dicas para o lar,
receitas culinárias e artigos de moda. Segundo Gerlice Rosa no artigo ―A mulher
projetada no discurso: a construção ethótica de Senhorinha Diniz em O sexo feminino‖:

As mulheres foram, então, conquistando espaço também como produtoras no mundo


das letras, inicialmente como colaboradoras dos jornais escritos pelos homens e, a partir
de 1823, assinando elas mesmas as produções no lançamento de jornais femininos,
escritos e direcionados para mulheres. (ROSA, 2011, p. 133).

O Rio de Janeiro, por ser a capital do país na época, era o lugar onde os
trabalhadores da imprensa tinham um pouco mais de facilidade em se consolidar e
divulgar seus produtos. ―O primeiro periódico escrito por e para as mulheres no Brasil
foi o Jornal das Senhoras, fundado em 1852 por Joana Paulo Manso de Noronha.‖
(NETO, 2015).
O direito à educação e ao voto constituíam as grandes pautas dos periódicos
feministas entre o século XIX e XX. A imprensa em Minas Gerais era mais
conservadora, não sendo tão politicamente ativa.
Neste contexto, algumas mulheres se destacaram por usarem-se da imprensa
como arma contra as opressões diárias que viviam. É o caso da poetisa Narcisa Amália
de Campos no jornal O sexo feminino, organizado e publicado pela jornalista e
professora Francisca Senhorinha da Motta Diniz.

O sexo feminino, construção de Francisca Senhorinha e suas colaboradoras


No começo dos anos de 1800, o estado de Minas Gerais começou a receber seus
primeiros jornais, ainda que nem todos tenham vida longa. Mais adiante, Campanha, no
sul do estado, se tornou importante polo redatorial, contando com jornais como
Colombo e Oopinião campanhense, além de O Monarchista, este editado por José
Joaquim da Silva Diniz, esposo de Dona Francisca Senhorinha da Motta Diniz, a
primeira mulher da cidade a comandar um jornal.
Nascida em São Josédel-Rei (atual Tiradentes), Minas Gerais, foi filha de
Eduardo Gonçalves da Motta Ramos e Gertrudes Alves de Mello Ramos. Casou-se com
o advogado, professor e editor José Joaquim da Silva Diniz, com quem teve três filhas:
Amélia Augusta Diniz, Albertina Augusta Diniz e Elisa Diniz Machado Coelho. Foi,
além de jornalista, professora primária e grande defensora do direito das mulheres à
educação.
Com o apoio de seu marido, dono da tipografia, publicou, em sete de setembro
de 1873, o primeiro número de seu jornal feminino e feminista O sexo feminino, com o
objetivo de instruir suas leitoras quanto a seus direitos e conquistar simpatizantes para a
240
causa da luta das mulheres. Movida, assim como Nísia Floresta, pela percepção de que
grande parte dos males da sociedade da época vinha do fato de negarem educação de
qualidade às mulheres, prendendo-as em casa, Francisca Senhorinha fez combativas
críticas aos governantes, denunciando a falta de oportunidades oferecidas ao sexo
feminino e assumindo, assim, a vanguarda deste movimento no sul de Minas Gerais.
A jornalista e professora imaginou que sua iniciativa seria retaliada e zombada
pelos homens da sociedade, mas, na verdade, recebeu grande apoio e incentivos para
que continuasseem sua empreitada. Foi bem recebida por jornalistas e escritores, além
de um fiel público que fez com que o número de cópias impressas fosse cada vez maior.
Francisca Senhorinha contou com D. Pedro II como leitor, além de ter sua folha
exportada para leitores da Europa e América.
Usando o semanário como ferramenta, Francisca convidou as mulheres a se
utilizarem da pena e escreverem, incentivando-as a divulgarem suas produções. Assim,
em suas páginas, algumas colaboradoras tiveram grande destaque publicando poemas,
artigos e traduções. Suas filhas Albertina e Amélia traduziram, algumas vezes, obras
literárias francesas para serem publicadas na folha.
Com a leitura das páginas d‘O sexo feminino, percebe-se que a maior
contribuinte, que enviava constantes artigos e poemas para o jornal de Francisca
Senhorinha,era a poetisa Narcisa Amália de Campos, republicana, grande ativista pelos
direitos da mulher e pela abolição da escravatura.

Narcisa Amália: a pena ágil


Conhecida por sua ―pena ágil‖, Narcisa Amália nasce em São João da Barra, Rio
de Janeiro, no dia 3 de abril de 1852. Além de poetisa, foi jornalista e professora, e
privilegiava muito a função social de sua poesia. Escreveu durante o período de crise da
monarquia no Brasil e usava temas recorrentes entre os intelectuais da época, como a
abolição da escravatura e a proclamação da república, além de falar sobre a participação
que o povo deveria ter no progresso.
Seu pai, o professor Jácome de Campos, era grande intelectual local e também
poeta, e foi ―um dos fundadores e principais redatores do primeiro jornal editado em
São João da Barra: O Parahybano‖ (OSCAR, 1994, p. 19), o que ajuda a entender a
precoce relação de Narcisa Amália com as letras em geral. Sua mãe, a portuguesa
Narcisa Ignácia Pereira de Mendonça, também era professora, atuando na rede pública
primária.
Em 14 de julho de 1863, sua família se mudou de São João da Barra rumo ao
clima serrano de Resende, no sul do Rio de Janeiro, devido a problemas respiratórios do
patriarca. É lá que Narcisa Amália iria se firmar enquanto jornalista e escritora, além de
ativista abolicionista e defensora dos direitos das mulheres.
Aos quatorze anos, foi obrigada a casar-se com João Batista da Silveira, que
contava pouco mais de dezoito anos, por ter a ele se entregado às escondidas, o que
constituiu grande choque para sua família que, naquele contexto, não teve outra saída a
não ser apressar o casamento. Pouco mais de quatro anos depois, entretanto, o
casamento acabou, e foi desses imensos sentimentos de tristeza e decepção que a poetisa
retirou sua inspiração para a composição de poemas. A poesia, desde o começo,
apareceu para Narcisa como escape dos infelizes momentos que estava vivendo, sendo
uma fuga da realidade. Como Antônio Simões dos Reis afirma, logo nas primeiras
páginas de sua ―Bibliografia Brasileira: Narcisa Amália‖:

241
E no seu sonho para o mundo não se reviu o seu sonho para si. Nas letras foi verdadeira
deusa, em prosa e verso cantada, com exaltação, por tudo quanto houve de mais
representativo na época. No amor, desses amores incompreensíveis, amargou os
estilhaços de uma aventura não atingida. A artista aureolada não conseguira ser deusa
no próprio lar.1 (REIS, 1949, p. 15).

Narcisa Amália começou a ganhar espaço na imprensa traduzindo contos e


ensaios do francês para o português e passando, em seguida, a publicar os próprios
poemas em jornais como o Astro Resendense, Monitor Campista e Correio Fluminense,
entre outros. Em 1872, seu livro de poemas intitulado ―Nebulosas‖ foi publicado,
causando impacto na cena literária da época. É considerada por João Oscar, outro autor
que se propôs a organizar a biografia da poetisa, ―a primeira mulher-escritora brasileira
a conquistar espaço no fechadíssimo cenário literário do País.‖ (OSCAR, 1994, p. 32).
Em seus poemas, a jovem escritora denunciava e indignava-se com as injustiças
sociais, principalmente as cometidas contra os escravos. Crescida em lar abolicionista,
desde pequena possuía consciência do quão desumanaera a situação dos negros no
Brasil, fato esse que constatava nas fazendas da redondeza. Tudo isso se refletiu em
seus escritos, cheios de paixão e vontade de mudança.Chega a ser apontada por João
Oscar como a ―primeira poetisa social do Brasil‖ (OSCAR, 1994, p. 59).Por conta
dessas provocações, aliadas ao fato de Narcisa ser mulher em campo totalmente
masculino, algumas personalidades da época debocharam de sua capacidade,
considerando seus versos ―choramingos‖ e afirmando que uma moça como ela não
deveria se aventurar por esses assuntos. Mas, em número superior a estes, havia
escritores e intelectuais que aprovaram seu trabalho, fazendo com que as ―Nebulosas‖
obtivessem ótimas críticas e divulgação, servindo de exemplo e inspiração para a luta
abolicionista, republicana e, claro, da emancipação das mulheres.
Como jornalista, Narcisa Amália também ocupou papel de vanguarda. João
Oscar, em ―Narcisa Amália – vida e poesia‖, afirma categoricamente que:

Ainda que Violante Atabaliba Ximenes de Bivar, com o Jornal das Senhoras, de
Salvador, seja ‗tida como a primeira brasileira a fazer e ter jornal‘ [...], cabe a Narcisa
Amália, de acordo com grande parte dos que se detiveram a pesquisar as origens da
imprensa nacional, a primazia de ter sido a primeira mulher a figurar como jornalista
profissional e a ganhar projeção em todo o Brasil. Seus trabalhos na imprensa,
amplamente conhecidos e diversificados nas páginas dos mais importantes jornais do
País, assim o atestam. (OSCAR, 1994, p. 54).

O jornal, para Narcisa, era espaço de militância, um megafone onde as injustiças


daquela sociedade poderiam ser gritadas nas faces de quem as cometia. Ela vian‘O sexo
feminino de Francisca Senhorinha importante ferramenta de divulgação das pautas que
defendia, como se percebe no excerto a seguir, retirado na publicação de 11 de outubro
de 1873 da folha, já adiantando nosso olhar para o principal objetivo desta pesquisa:

A educação moral e a instrução intelectual da mulher, que em todos os tempos e em


todos os países têm sido encaradas com o mais solene desprezo, vão surgir entre nós
animadas pelo Sexo Feminino, que, na atualidade, parece ser o único meio que
possuímos de desperta-las, levando-nos à suprema perfectibilidade de que somos

1
Ortografia atualizada.

242
susceptíveis – meta inatingível talvez; - polo único e sempre atraente de todas as
grandes aspirações da humanidade.2(CAMPOS, 1873, p. 2).

A influência e fama de Narcisa foram tão grandes no meio em que estava


inserida, que chegou a ser visitada duas vezes pelo próprio D. Pedro II – a primeira em
1874, a segunda em 1886 – impelido pelo desejo de conhecer a tão aclamada autora das
―Nebulosas‖. Ela seguiu, persistentemente, publicando novos poemas e alguns trabalhos
em prosa em diversos jornais de circulação nas Capitais e interiores.
Em 1880, devido a dificuldades financeiras pelas quais sua família estava
passando decorrentes da morte do patriarca Jácome de Campos, Narcisa Amália
realizou seu segundo matrimônio, desta vez com o padeiro português Francisco Cleto da
Rocha, popularmente conhecido como ―Rocha Padeiro‖. O que poderia ser promessa de
estabilidade e paz sentimental para o sofrido coração da poetisa, passados dois anosnova
decepção amorosa se apresentou na vida dela. Narcisa, solicitamente, passou a ajudá-lo
na padaria, deixando um pouco sua produção literária de lado. Querida e popular,
continuou recebendo muitas visitas de poetas e amigos em pequenos saraus, como
Raimundo Correia e Luís Murat, despertando, lentamente, os ciúmes e impaciências do
esposo, que não acompanhava ou interessava-se por esses tipos de conversas literárias, e
a via sempre tão intelectualmente disputada, inclusive por D. Pedro II.
Assim, devido à intolerância do marido, separaram-se em 1887, depois de muito
sofrimento e tentativas de reconciliação por parte da poetisa, que se rebela após ser
proibida por ele de receber suas visitas. Não aceitando essa situação e a humilhação de
perder a esposa, Francisco da Rocha começou a difamá-la nos meios em que viviam,
chegando a dizer que ela não era a legítima autora de seus versos e, sim, que os copiava
de outros poetas (com os quais ela teria relações amorosas, segundo ele), clamando-os
como seus. Os contemporâneos de Francisco da Rocha, no entanto, não acreditaram na
história, claramente inventada por um marido despeitado. Narcisa, então,
profundamente abalada e magoada com tamanhos boatos, mudou-se de Resende para o
Rio de Janeiro, e nunca mais retornaria à cidade que tão bem a recebeu, mas que
tamanha decepção acabou lhe proporcionando. Na Corte, estabeleceu-se enquanto
professora e recebeu grandes elogios por seu desempenho no campo da educação.
Lentamente, dessa maneira, Narcisa foi-se separando dos movimentos literários e
focando-se apenas no ensino que, afinal, sempre foi uma de suas maiores pautas.

Jornalismo enquanto resistência


A participação de Narcisa Amália em O sexo feminino não se limitou a poemas
publicados na folha, mas também contou com interessantes artigos sobre a instrução
feminina. Segundo a pesquisadora Aparecida Maria Nunes em seu artigo ―O olhar
feminino sobre o Oitocentos na imprensa de Dona Francisca Senhorinha‖: ―[...] Narcisa
se une a Francisca na luta que vê na imprensa feminina uma sociedade melhor.‖
(NUNES, 2014, p. 103). Narcisa apoiou O sexo feminino até seu final, enviando com
frequência seus poemas para publicação, mesmo que esses falassem de temas menos
polêmicos para a época, como o amor.

2
Todos os trechos retirados do jornal O sexo feminino tiveram sua ortografia atualizada para melhor
compreensão do texto.

243
Foi com grande entusiasmo que Francisca Senhorinha recebeu a aclamada
poetisa à sua folha, como se nota no seguinte trecho publicado na edição de 11 de
outubro de 1873:

AOS NOSSOS ASSINANTES, UMA GRATA NOTICIA – Este periódico tem o


indizível prazer de cientificar aos seus leitores que vai enumerar como colaboradora
uma das penas mais hábeis que tem aparecido na imprensa diária da corte. A Ex.ª Sr.ª
D. Narcisa Amália, poetisa distinta, literata não vulgar, talento transcendental, está
acima de qualquer elogio que a pena mais bem aparada possa tecer. Sua áurea
inteligência se desenha no artigo com que mimoseou O Sexo Feminino, e que vai
publicado no lugar competente.
Chamamos para ele a atenção não somente do nosso sexo, mais ainda do orgulhoso
sexo contrário, e muito principalmente dos retrógrados e pessimistas que não creem que
as mulheres possam ser escritoras. (DINIZ, 1873, p. 4).

Francisca, portanto, prestou a Narcisa públicos e intensos agradecimentos por


apostar na iniciativa dela e colaborar para a evolução intelectual das mulheres
brasileiras, como se vê no artigo publicado em1º de novembro de 1873, com o título de
―Narcisa Amália‖:

À brilhante e distinta escritora e poetisa; à romeira na espinhosa peregrinação do


jornalismo; à nossa amiga finalmente, vimos nós hoje colaboradoras do Sexo Feminino,
em fraternal abraço, pagar o tributo de admiração que lhe rendemos: é a expansão de
um afeto d‘alma.
Quem depois de compulsar as ricas produção da pena de Narcisa Amália; quem depois
de ler as sublimes – Nebulosas – não pronunciará com entusiasmo e admiração o seu
nome?!
Entusiasmo sim, esse fogo que segundo a frase de um escritor contemporâneo, se ateia
em chamas dentro dos corações; e admiração mais que tudo, à heroína brasileira, que
desprendendo-se do comum do nosso sexo, qual águia altiva, abre o voo à imaginação e
pairando em regiões ignotas onde a leva sua varonil inteligência, vai semeando torrentes
de flores que o mundo colhe e admira! (DINIZ, O sexo feminino, 1873, p. 3).

Nota-se, no excerto acima, como Francisca Senhorinha, atrelada à visão vigente


de sua época, disse que Narcisa Amália desprende-se do que é comum às mulheres e
alça novos voos; utilizou, para qualificá-la, o adjetivo ―varonil‖, associando a
inteligência ao sexo masculino.

Que o coração brasileiro há por aí tão gélido ou estoico, que não se sinta
orgulhosamente inflamado ao pronunciar o nome de Narcisa Amália?! [...] Surgem as
Narcisas Amálias; surgem as mulheres, esquecidas, desprezadas e aviltadas até aqui,
cujas produções vão amontoando material para a edificação de monumentos, não de
pedra ou bronze, mas de papel, de livros, de doutrinas morais que os séculos presentes e
futuros glorificarão com entusiasmo e admiração. (DINIZ, O sexo feminino, 1873, p. 3).

Francisca Senhorinha entendia que por meio dos papeis, dos livros e da
intelectualidade, as mulheres conseguiriam abrir seu espaço e contribuir para o avanço
da nação.

Narcisa Amália! Fomos há pouco mimoseadas com um primoroso artigo, fruto de vossa
ilustração e com que foram honradas as colunas do Sexo Feminino; agradecendo-vos,

244
pedimos a continuação de vosso valioso contingente para que desempenhemos
cabalmente a tarefas que nos impusemos.
Em nossa peregrinação, arrancando cotidianamente os espinhos que nos dilaceram as
carnes, caminharemos tanto quanto as nossas débeis forças o permitam. Noveis nas
lides da imprensa, se nos faltam as armas da inteligência, sobra-nos o patriotismo, a
decidida vontade e propósito de arrancar o nosso sexo das garras do tirano que tenta tê-
lo perpetuamente sob sua feudal dominação.
Sim, Narcisa Amália! trabalhemos todas, cada mulher seja um obreiro, com a palavra,
com a pena, e com todos os dados que se nos oferecer conquistemos nossos direitos
postergados, porque a vitória será nossa. (DINIZ, O sexo feminino, 1873, p. 3).

Importantes opiniões acerca da educação das mulheres e do papel que deveria


ocupar na sociedade foram escritas por Narcisa Amália no artigo intitulado ―A nossa
instrução‖, em 25 de setembro de 1873 e publicado no número de 11 de outubro de
1873, reproduzido integralmente abaixo e repartido para melhor análise. É um dos mais
contundentes escritos de Narcisa Amália em favor da instrução intelectual das mulheres,
um verdadeiro manifesto no qual discorreu sobre a situação em que se encontrava o
sexo feminino, ao mesmo que intimou as e os campanhenses e demais cidadãos para
juntarem-se à causa:

A educação moral e a instrução intelectual da mulher, que em todos os tempos e em


todos os países tem sido encaradas com o mais solene desprezo, vão surgir entre nós
animadas pelo Sexo Feminino, que, na atualidade, parece ser o único meio que
possuímos de desperta-las, levando-nos à suprema perfectibilidade de que somos
susceptíveis – meta inatingível talvez; - polo único e sempre atraente de todas as
grandes aspirações da humanidade.
Homens inteligentes, grandes notabilidades mesmo, cerrando os olhos ao magestoso
espetáculo que ao mundo oferece a América do Norte, o primeiro país que ousou
dignificar e elevar a conveniente altura a mais nobre e abatida metade do gênero
humano, insistem em que a razão não pode imperar no sexo feminil, por que o
predomínio absoluto do sentimento nulifica-o para tudo.
Que a mulher recebeu da natureza o mimo da sensibilidade, é uma verdade indiscutível;
porém essa verdade clama bem alto a favor de suas aptidões intelectuais.
Assim como o sol reanima e desenvolve certos organismos débeis, comunicando-lhes
um pouco de calor às fibras enervadas; assim também o sentimento desperta o amor do
belo e a sede de luz nos seres habituados às trevas e ao erro, pois existe uma
electricidade moral que nele tem o mais favorável dos condutores. Essa faculdade, fraca
e transitória no homem, adquire na mulher poderosa estabilidade; ela é, por assim dizer,
o óleo que alimenta no santuário recondito da alma a chama sagrada do entusiasmo, e
sem o entusiasmo as mais sublimes dedicações se resfriariam. (CAMPOS, O sexo
feminino, 1873, p. 2).

Mantendo-se, em alguns pontos, fiel ao pensamento da época, Narcisa tratou


sobre a sensibilidade feminina, mas imediatamente distoou ao dizer que essa qualidade
deveria ser usada juntamente à intelectualidade, o que faria as mulheres se destacarem
nos trabalhos que se dispusessem a fazer.

Educada como está, a mulher não passa de uma linda orquídea que busca um apoio, e
elada a ele vegeta sem consciência da própria existência.
Sempre encastelada n‘um idealismo crônico, ela contempla de longe a sociedade pelo
falso prisma que a sua imaginação romanesca lhe apresenta; mas quando as
necessidades afugentam o ideal, e, gasta a alfombra de gozos, ela imprime a planta

245
delicada nas escabrosidades da vida real, como a sensitiva a estranho contato, cai
fulminada, pois em vez de faculdades desenvolvidas e aproveitáveis só deram-lhe
nervos que se irritam à mais ligeira contrariedade.
Assim vive, e assim morre, sempre ignorando que é no seu cérebro ocioso, que é no seu
espírito caprichoso e frívolo que repousam os gérmens desse bem estar social que o
povo em vão implora às leis e aos governos que nos regem.Eduque a sociedade
convenientemente essa criaturinha sensível e meiga;individualize-a, dando-lhe a
responsabilidade moral de seus atos, e a sua propaganda redentora será eficaz.
(CAMPOS, O sexo feminino, 1873, p. 2-3).

No trecho acima, Narcisa comparou o destino das mulheres da época, entendidas


como parasitas à sombra dos maridos, com o futuro das mulheres instruídas, conscientes
de quem são e preocupadas com o progresso de sua nação. Evidencia-se uma ideia
recorrente: só pela liberdade da mulher é que a justiça e avanço do país serão
alcançados. Assim, a educação e empoderamento feminino não interessam somente às
mulheres, mas sim a todos que se preocupam com o futuro da nação.

Influa o seu espirito sequioso com os princípios fecundantes da ciência, e de cada lábio
voará um poema de verdades. Torne-a uma mãe que possa ensinar filosoficamente o
bem a seus filhos, e será resolvido o problema da libertação dos povos, libertação
baseada na instrução, na moralidade e no trabalho. (CAMPOS, O sexo feminino, 1873,
p. 3).

A educação ajudaria, ainda, essas mulheres a serem melhores mães e donas de


casa, conscientes das dinâmicas que as envolvem e capazes de educar ―filosoficamente‖
seus filhos. No trecho a seguir, a poetisa saudou as campanhenses, na figura
predominante de Francisca Senhorinha, por ousarem construir o jornal e colocarem-se
contra o pensamento predominante da sociedade da época, chamando a todos para
aliarem-se à causa das mulheres:

Honra e respeito nacional a vós, distintas campanhenses, que não hesitastes em dar o
primeiro passo para a redemção do nosso deprimido sexo.
Do seio dessa terra de Minas, tão rica de seiva e de juventude; do seio dessa terra
generosa que recebeu e fecundou as primeiras idéas da nossa emancipação politica, é
que devia tambem partir o primeiro brado pela emancipação da mulher.
Berço diamantino das glórias nacionais; Salve! (CAMPOS,O sexo feminino, 1873, p.
3).

Nesse sentido, é interessante, também, notar a carta aberta dividida em duas


partes que a poetisa publicou ao advogado Miguel Vieira Ferreira, ativista abolicionista
e simpatizante das causas feministas, publicada nos volumes de 29 de novembro e seis
de dezembro de 1873.

Presentemente, que individualidade representamos nós ? Ou antes: - que tipo social


encarna com perfeição a mulher brasileira?...
Como filha, - possue ela essa candura imaculada que faz da virgem um anjo da terra,
unida ao conhecimento exato da sociedade em que vive, conhecimento que a sua
segurança pessoal exige?...
- Não; porque o contato da escravidão basta para ensombrar desde cedo a brancura ideal
de suas asas, e a educação que recebem ensina-a a encarar a sociedade sob um aspecto
muito diverso do que nela descobre o olhar profundo e reflexivo do pensador.

246
Como esposa, - tem por seu esposo a dedicação sem limites que exige o enlace cristão ?
Dedica-lhe essa estima pura e respeitosa que deve ligar intimamente dois indivíduos que
empreendem juntos uma viagem através do deserto e que tem de descansar no fim do
dia à sombra piedosa da mesma palmeira?...(CAMPOS, O sexo feminino, 1873, p. 3).

No seguinte trecho, a escritora fez dura crítica à instituição do casamento, que


escraviza a mulher, tornando-a raivosa:

- Não; porque desconhecendo inteiramente o caráter do indivíduo a quem se alia, vai,


muitas vezes, encontrar a desgraça nessa união santificada que devera assegurar-lhe a
felicidade na vida; porque o marido, não a considerando como a colaboradora afetuosa
de sua existência, trata-a como uma escrava, curva e resignada à sua caprichosa
prepotência, e a escrava, de dia para dia, sente tornar-se mais odiosa essa tirania
autorizada pelos costumes. (CAMPOS, O sexo feminino, 1873, p. 3).

No trecho abaixo, afirmou que somente pela instrução intelectual das mulheres
poderia haver justiça e progresso no país para todos; disse, também, que a mulher
precisaria entender-se enquanto capaz e igual para, com confiança, lutar por seus
direitos e conduzir o país ao progresso.

Quando a sua individualidade for reconstituída perante os homens, e, especialmente,


perante a sua própria consciência; quando se lhe outorgar o direito de ilustrar-se e de
viver racionalmente, esta mulher brasileira tão ignorante e tão opulenta de inteligência;
tão supersticiosa e tão amante da caridade; tão vilipendiada e tão cheia de dignidade e
abnegação, saberá cumprir gloriosamente a augusta missão de que está encarregada: - a
de conduzir este escravizado país às raias de perfeição suprema. (CAMPOS, O sexo
feminino, 1873, p. 2).

Considerações finais
A história de nosso país está permeada de momentos de rebeldia e subversão,
mas nem todos são contados, expostos e estudados pelo cânone literário. Grande parte
desses momentos soterrados foi protagonizada por mulheres que não se sujeitaram
apenas aos papeis que lhes cabiam na época em que viveram. Essas mulheres ousaram
escrever, reivindicar e refletir sobre as injustiças sociais que permeavam as relações ao
seu entorno. Narcisa Amália de Campos e Francisca Senhorinha da Motta Diniz foram
exemplos dessa coragem e desobediência aos costumes vigentes. Impuseram-se
enquanto mulheres que exigiam serem tratadas como iguais, que queriam a
possibilidade de trabalhar, escrever, ler e exercerem suas cidadanias, pagando, algumas
vezes, o preço por esses desejos, como Narcisa Amália, que foi caluniada pelo
enciumado esposo.
É preciso trazer à tona as reflexões dessas mulheres, que nos mostram uma visão
crítica da sociedade do Oitocentos que não está no cânone. É por meio da literatura e do
jornalismo que encontramos retratos da real sociedade que não estão nos livros de
História, que não são contados na escola. Nos livros e nos jornais estão as
representações dos costumes da época, bem como da resistência contra eles.
Infelizmente, muitos desses dados permanecem escondidos em arquivos empoeirados e
acabam não sendo lidos por ninguém. Este artigo se propôs a resgatar os discursos
visionários da jornalista e educadora Francisca Senhorinha e da também jornalista,

247
educadora e poetisa Narcisa Amália, ícones do jornalismo e do feminismo brasileiro em
suas origens.
Essas mulheres abriram o caminho para toda uma próxima geração de
jornalistas, escritoras e professoras que viam na palavra escrita um modo de subverter as
normas e reivindicar seus direitos. A poesia de Narcisa Amália, além de bela, é social e
engajada, trazendo suas visões de sociedades e as mudanças que dela se esperavam. Sua
contribuição para a imprensa mostra a coragem de expor seu nome e suas ousadas
opiniões, que viam na educação feminina a saída para o atraso que o Brasil enfrentava.
Educando a todos seus cidadãos, sem exceção, a pátria avançaria sem deixar ninguém
para trás.
Narcisa Amália é, ainda hoje, grandemente estimada pelo povo de São João da
Barra, sendo homenageada dando nome a uma sala da câmara municipal da cidade e
com o lançamento financiado pela prefeitura do livro ―Narcisa Amália, vida e poesia‖,
escrito e organizado por João Oscar e publicado em 1994. Mesmo que a poetisa tenha
deixado a cidade com apenas onze anos, São João da Barra causou-lhe grande
impressão e inspiração, que lhe acompanhariam por toda a sua vida e carreira, fazendo-
se presente em diversas passagens de poemas e escritos em geral.
Os escritos de Narcisa Amália, portanto, deixados nas páginas do Sexo Feminino
são importantes documentos históricos que ajudam a montar o complexo quebra-cabeça
das relações de poder que permeavam a sociedade do Oitocentos. Assim, o movimento
de pesquisar o passado para se compreender melhor o presente mostra-se sempre válido,
pois ainda há muitas pautas não abordadas pela academia hoje.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Simpósio Nacional de História, p. 1-7, 2003.
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brasileira: as jornalistas do século XIX. Disponível em:
https://rainhastragicas.com/2015/11/21/as-jornalistas-do-seculo-xix/. Acesso em: 11
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NUNES, A. M. O olhar feminino sobre o Oitocentos na imprensa de Dona Francisca
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248
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Disponível em: http://www.normatelles.com.br/Rebeldes-Escritoras-
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VASCONCELLOS, E., SAVELLI, I. M. A imprensa feminina. Verbo de Minas: letras,
Juíz de Fora, p. 89-102, 2006.

249
A escrita de Natália Correia: rasura e subversão em D.
João e Julieta
(Natália Correia‘s writing: erasure and subversion in D. João e Julieta)

Andrezza Jaquier P. Oliveira1


1
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
1
Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (FAPESP)

andrezza.jaquier@gmail.com

Abstract: The Portuguese dramaturgical space has been presented throughout history with
clearly masculinist and patriarchal outlines, in that sense, the present article seeks to
contemplate Natália Correia‘s dramaturgical work and as this, her action by demanding
through her writing a space in the Portuguese theater, as well as, she proposed pieces that
approach the idea of a ―dramaturgy in the feminine‖. As an example, we analyzed the piece D.
João e Julieta, in order to contemplate the innovative look that NatáliaCorreiauses to
deconstruct two characters from the dramatic canon. Allowing observing the subversive action
through the writing that presents another vision about the tradition within the Portuguese
theatrical space, where the presence of women writers is still very little studied.
Keywords: Natália Correia; portuguese theater; women‘swriting.

Resumo: O espaço dramatúrgico português apresentou-se ao longo da história com contornos


nitidamente masculinistas e patriarcais, nesse sentido, o presente artigo visa refletir sobre a
obra dramatúrgica de Natália Correia e o seu ato de reivindicaratravés da escrita seu espaço no
teatro português, assim como, propôs peças que se aproximam da ideia de uma ―dramaturgia
no feminino‖. A exemplo disso nos debruçamos sobre a peça D. João e Julieta, a fim de
refletir sobre o olhar inovador por elatecido para desconstruir duas personagens do cânone
dramático. Permitindo observar oato subversivo através da escrita que apresenta outra visão da
tradição dentro do espaço teatralportuguês, onde a presença de mulheres escritoras ainda é
pouquíssimo estudado.
Palavras-chaves: Natália Correia; escrita de autoria feminina; teatro português.

Introdução
A arte dramática como um gênero formalmente constituído parece ter, desde a
Grécia antiga, despertado, na humanidade, um interesse ímpar. Como afirma J.
Guinsburg ―perguntar pela origem do teatro é o mesmo que perguntar pela origem do
pensamento, da linguagem e da cultura na criatura e na sociedade humanas‖
(GUINSBURG, 2015, p. 08). A universalidade do teatro, o seu caractér contestador,
assim como o seu forte poder de permanecer na memória cultural sempre foram
aspectos conhecidos, não será à toa, que ao longo da história, o teatro tenha sido, tantas
vezes, silenciado, e de fato, como nota Anne Ubersfeld: ―os censores não estão errados:
o teatro é realmente perigoso‖ (UBERSFELD, 2005, p. 61).
Essa delicada arte, que pode ser usada tanto para marcar e difundir um discurso
ideológico dominante, a exemplo dos teatros nacionais criados durante regimes

250
fascistas1, também pode vir a denunciar esses discursos, evidenciando as prisões que a
humanidade está submetida, nesse sentido, é que acreditamos que a dramaturgia de
Natália Correia se impõe. A sua persistência em um cenário pouco acolhedor,
sobretudo, para uma escritora mulher, advém de denunciar a asfixia criativa que muitos
foram submetidos durante o Estado Novo, e até mesmo ao longo de toda a história
portuguesa, assim como, de saber que o tempo no teatro é o da memória ativa, podendo
ser este o caminho para transformar a sociedade e o próprio ser.
A fim de demonstrar alguns desses aspectos que moveram a escrita de Natália
Correia para o teatro é pertinente no presente artigo observar, mesmo que brevemente,
algumas questõessobre a obra D. João e Julieta (1999), em qual há uma nítida vontade
de transformação e, é evidente a função do teatro enquanto memória ativa, uma vez, a
escritora revisita enredos conhecidos da história do teatro Ocidental – o mito de Don
Juan e a shakespeariana Julieta –, estes que guardamos na memória, e que a escritora
não se inibe de rasura-los e subverte-los, visando, talvez, evidenciar aquilo que até então
permaneceu silenciado no teatro: o protagonismo da mulher.
Ao debruçar sobre a vida e o fazer literário de Natália Correia, compreende-se que
reivindicar o espaço dramatúrgico é uma tarefa árdua e completamente necessária.
Primeiro, há de observar que a escritora nascida em Fajã de Baixo, nos Açores, em
1923, e falecida em Lisboa, em 1993, foi uma personalidade que se encontrava além do
seu tempo. Apesar do seu grande amor pela Ilha açoriana, mudou-se muito nova para
Lisboa onde iniciou sua trajetória como escritora. Ainda que sua obra não tenha
repercussão do lado de cá do Atlântico, em Portugal, ao contrário, talvez tenha sido uma
das escritoras mais reconhecidas do século XX.
Como poderia se esperar, irreverente e erudita, Natália foi uma das intelectuais
que fez resistência à ditadura salazarista e por meios artísticos, políticos e culturais
expôs a urgência de não ceder à censura. Sua obra é múltipla e extensa, tendo se
dedicado a diversos gêneros, tais como poesia, romance, dramaturgia, antologias e
ensaios. Nesta gama multifacetada de gêneros, não será difícil observar que alguns de
seus textos acabaram obscurecidos pela ditadura salazarista, principalmente o seu teatro,
tendo em vista o delicado momento político português que não fornecia terreno para
publicação e encenação. Para além desse contundente cenário político nota-se que o
teatro português têm sido, sobretudo, um espaço masculinista conforme afirma a crítica
Eugênia Vasques sobre este, que: ―tem sido historicamente entendido como um assunto
de homens [...] [e] são quase sempre de autoria masculina os textos representados e
sempre de autoria masculina as raras histórias publicadas‖ (VASQUES, 2001, p. 17-18).

O teatro português e a dramaturgia de Natália Correia


Observar a arte teatral sob a perspectiva aqui adotada implica notar duas
problemáticas. A primeirarefere-se à subalternização da mulher tanto no plano da
autoria quanto no de cargos importantes, como direção, produção, etc. Não será à toa

1
Em Portugal, por exemplo, o governo salazarista criou o Teatro do Povo — um ―teatro ambulante‖ que,
inserido na ―Política do Espírito‖ do SPN—salvo excepções, caracterizou se ―pelo moralismo primário e
por um folclorismo medíocre, quando não por um didactismo de baixo nível‖ (Santos, 2004, p. 172-173).

251
que, por exemplo, a Escola de Mulheres: Oficina de Teatro2tenha incluído em seu
programa-manifesto os seguintes questionamentos:

Quantas mulheres dirigem Companhias regularmente subsidiadas? Quantas mulheres


encenam regularmente com condições de produção mínimas? Quantas mulheres são
autoras de textos representados em Portugal? Quantas mulheres têm voz audível no
Teatro Português? Quantas podem escolher em vez de ser escolhidas? De que forma os
repertórios reflectem o mundo em que vivemos? (LAPA apud VASQUES, 2001, p. 15)

Já constava neste manifesto que o teatro, longe de ser um anjo assexuado, era
uma figura masculina, segundo a criadora da escola Fernanda Lapa: ―[o teatro é] uma
espécie de pater-família, liberal é certo, mas absolutamente nada democrático visto
ignorar, ou mesmo impedir, a expressão regular da identidade feminina nos palcos
portugueses‖ (LAPA, 1997).Ora, tal manifesto que veio à luz em 1995-96, reflete
pontualmente o limitado lugar do protagonismo feminino. Os estudos que se debruçam
sobre uma História do Teatro em Portugal também demonstram o pouco privilégio das
mulheres escritoras ao constatarem que poucas mulheres portuguesas escreveram nesse
cenário, como observao historiador do teatro português Luiz Francisco Rebello:
―Registe-se, enfim, que a representação do sexo feminino não atinge [neste inventário]
os dez por cento dos nomes arrolados [exatamente 744], embora essa representação seja
substancialmente significativa‖ (1984, p. 9).
Embora aponte algumas escritoras como Angelina Vidal, Agustina Bessa Luís,
Fiama Pais Brandão e Natália Correia, notando a vertente feminista e militante de
algumas – e tal indicação do crítico não deixe de ser significativa e importante –, há de
se destacar que a exclusão das mulheres da história do teatro português advêm menos do
fato de elas não escreverem ou não dramas, do que a não inclusão desses escritos na
historiografia literária, como observou Eugênia Vasques em um recente estudo, no qual
computou mais de três centenas de mulheres que, ao longo do século XX, escreveram
pelo menos um texto para o teatro, opondo-se à coleta de Rebello, exemplo utilizado
pela própria crítica. Estes dados, portanto, apresentam constatações que bem
exemplificam o status da mulher no espaço dramatúrgico, enquanto escritoras, e que,
relaciona-se com o papel da mulher na sociedade – este que reflete uma realidade de
submissões3 –, e ao serem excluídas daquele cenário que remontam os livros sobre uma
história do teatro português, apenas confirma-se a essência patriarcal presente no âmbito
dramatúrgico, de modo que, os critérios de seleções se tornam incompreensíveis.
Segundo Vasques:

[...] excluir esta escrita – e as suas autoras – de instrumentos de informação e análise,


como os inventários ou outros, que constituem a base de uma História do Teatro,
reflecte um ponto de vista cuja selectividade não é só sociologicamente inaceitável,
como, até, artística e esteticamente, incompreensível. (VASQUES, 2001, p. 24)

2
A Companhia foi criada em 1995-96, por Fernanda Lapa (1943) e um conjunto de mulheres que tinham
―o sentimento comum do papel de subalternidade a que a mulher tem sido reduzida no Teatro português‖
uma vez que o teatro vem ―vinculando quase sempre pontos de vista masculinos sobre as mulheres e
reproduzindo universos tipicamente masculinos‖ conforme nos informa o site de apresentação da
Companhia. Disponível em: http://www.escolademulheres.com/
3
―Realidade que durante séculos construíram o destino das mulheres. Um destino humilhante, que as
tornava pessoas medíocres e infelizes, menores e menorizadas‖ (HORTA, 2003, p. 15)

252
Se em tempos democráticos ainda se coloca necessário reivindicar o espaço
dramatúrgico, através de estudos e do próprio fazer prático, durante o Estado Novo não
foi diferente, sendo que com a atuação da censura e de um regime que pretendeu limitar
a mulher, vide o próprio lema da ditadura (―Deus, Pátria e Família‖), foi ainda mais
sufocante reivindicar um espaço que na concepção destes não era da ―natureza‖ 4 da
mulher, e Natália Correia foi uma das escritoras que, com coragem e ousadia, marcou
essa urgência através do seu fazer literário – tanto aquela de reivindicar a liberdade da
mulher na sociedade quanto a de ingressar no espaço teatral masculinista.
Enquanto dramaturga, a açoriana escreveu, sobretudo, durante o período
ditatorial, sendo que após o 25 de Abril de 1974, data simbólica da queda do regime,
escreveu somente Erros meus, má fortuna e amor ardente, peça sobre Luís de Camões,
encomendada à autora pelo Teatro Nacional D. Maria II para celebrar o quarto
centenário da morte do poeta português, em 1980.Entretanto, a apresentação do drama
não se realizou devido a um boicote econômico5. O texto foi publicado em 1981, sob a
chancela da editora Afrodite, em uma edição notável, a qual Maria João Brilhante
sugere que ―o cuidado posto na edição da Afrodite tenta, de certo modo, compensar o
percalço da não representação do texto em data oportuna‖ (BRILHANTE, 1983, p. 82).
Ao contrário desta obra, as outras peças que viriam a ser publicadas pós-1974
foram escritas durante o período salazarista, como é o caso d‘A Pécora, escrita em 1967
e publicada somente em 1983, em qual a autora toca a temática religiosa, buscando
desmitificar o poderio instituído pelo comércio religioso, através da história da
personagem Melânia, santa e prostituta.Apesar da temática, considerada polêmica e
agressiva por alguns críticos, a sua apresentação cênica em 20 de outubro de 1989 foi
―um dos grandes êxitos doteatro português pós-25 de Abril‖ (DACOSTA, 2001 p. 130).
Além de que A Pécora foi a única peça da autora a ser representada fora de Portugal6.
Outro é o caso da peça que constitui o objeto do presente artigo, D. João e
Julieta escrita em 1957-58, foi somente publicada após a morte da escritora, em 1999.
No drama, como o próprio título enseja, há o encontro entre o insaciável sedutor D.
Juan e a apaixonada Julieta, duas personagens consagradas do teatro Ocidental. No
entanto, como pode-se esperar de uma escritora como Natália Correia, o ato de revisitar
a tradição ocorre sob um olhar subversivo, e, sobretudo crítico.Assim, apresenta-nos a
desconstrução dos ―mitos viris‖ na figura de D. João, a denúncia de um sistema
patriarcal na sociedade efabulada no drama e, através de Julieta, reafirma a importância
da libertação feminina, evidenciando o protagonismo do feminino.
A rasura e o olhar ácido da autora, portanto, não ficaram de fora de sua produção
durante o período salazarista, pelo contrário, Natália Correia sempre se opôs ao regime
e esteve à frente de muitas ações que feriram a ordem do Estado Novo, como por

4
A constituição de 1933, que seguiu vigente até 1974, ao enunciar a igualdade dos cidadãos perante a lei
aponta ao referir-se a mulher sobre ―as diferenças resultantes da sua natureza‖ (art. 5°), desse modo, ―em
nome da natureza ‗feminina‘, as mulheres viram, desta forma, negada pelo Salazarismo a completa
igualdade com os homens‖ (COVA; PINTO, 1997, p. 72). Por isso, o regime perpetuava o ideal feminino
que atendesse a essa ―natureza‖, acrescentando que a mulher deve ser uma ―mãe devota à pátria‖ e deve
ocupar-se do ―governo doméstico‖.
5
Segundo Armando Nascimento Rosa (2007), após o boicote econômico, a peça seria encenada por
Carlos Avilez somente em 1988, em Lisboa, ―graças a vontade de Madalena Perdigão, que tornou
possível uma superprodução teatral‖ (NASCIMENTO ROSA, 2007, p. 118).
6
A encenação de João Mota, para a Comuna-Teatro de Pesquisa,integrou a programação do―I Festival de
Teatro da Convenção Teatral Europeia‖, passando por palcos da França e Irlanda.

253
exemplo, ao publicar, em 1965, a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica,
que por esta foi condenada (com três anos de pena suspensa). Ademais de suas próprias
publicações, Natália incentivou e assumiu a responsabilidade de publicar, sob a
chancela dos Estúdios Cor, onde era diretora literária, em 1972, o livro Novas Cartas
Portuguesas, de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa.
Obra considerada, por muitos críticos, como um marco na literatura portuguesa, por ter
introduzido o pensamento feminista em Portugal (MAGALHÃES, 1995;
PINTASSILGO, 1980; RAMALHO, 2001; RECTOR, 1999; TAVARES, 2011).
No campo da dramaturgia, a escritora também publicou obras que logo foram
apreendidas pela censura. O estilo por vezes considerado violento e satírico não agradou
a política salazarista, a exemplo da peça O Homúnculo(1965), tragédia jocosa onde
consolida uma sátira mordaz do ditador Salazar, a qual beira o absurdo e invoca o tema
da liberdade, criando na dramaturgia um espaço possível para a crítica social. Ou ainda,
a publicação d‘O Encoberto (1969), peça na qual a reconstrução mítica do
sebastianismo também perturbou deveras o Estado Novo, contudo o silenciamento
aplicado à peça não impediu que fosse aclamada pela crítica pelo tratamento inovador
que deu ao mito de D. Sebastião, como bem aponta João Gaspar Simões: ―deste ponto
de vista, ainda não fora encarado o mito do Encoberto na nossa literatura, e, muito
particularmente na nossa literatura dramática‖ (SIMÕES, 1985, p. 318). A obra,
também vítima da ditatura salazarista, só viria a ser representada em 1977.
A presença de Natália Correia no teatro português foi extremamente significante
durante os anos obscurecidos pelo Estado Novo e, também, para a história dramática
portuguesa em geral, uma vez que, como elucida Jorge de Sena, o teatro português
sempre foi alvo de estratégias sufocantes e silenciadoras, impedindo de certo modo a
sua concretização e desenvolvimento, sobretudo, nos palcos:

[...] não temos, ao longo da nossa literatura, uma literatura dramática que, mesmo com
altos e baixos, possa competir com as tradições de literatura dramática – e representação
dela – da Inglaterra, da França [...], ou da nossa vizinha Espanha [...] pois que o teatro
português, como forma de expressão, sofreu sempre aquilo que o negócio teatral sente
hoje tão duramente: a falta de liberdade, que o impediu de ensaiar a sua forma em
contacto com as tábuas do palco, e o afastou de criar para si próprio um público (SENA,
1988, p. 296).

O percurso do teatro português em menor ou maior grau sempre se viu cerceado,


e no período em questão não poderia ser de outro modo, pois, no auge da ditadura
salazarista, ―o Estado considera, muito justamente, o Teatro como a atividade suspeita
que ele sempre foi e será‖ (SENA, 1988, p. 300). Ora, esta visão de Jorge de Sena,
acerca do teatro nacional, não deixa de indicar um desencanto, que também advém da
dificuldade de se colocar nos palcos os textos que para ele foram produzidos, sem que
estes fossem modificados ou censurados, bem como a falta de investimento nas
estruturas para que as produções teatrais fossem uma prática constante no cenário
cultural português.A escassez de recursos financeiros, e a ―fraca influência normativa de
um teatro efetivamente nacional‖, somada ―a desmotivação cultural do público
contribuiu para fazer do teatro, em Portugal, quase uma atividade resistente ou mesmo
marginal‖ (REIS, 2005, p. 192).
A persistência de Natália Correia no teatro, por fim, não deixa de ser notável,
sobretudo, no período ditatorial. Além de escrever obras dramáticas, algumas aqui já
citadas, a autora também se preocupava em repercuti-las, de modo que, por vezes, no

254
ambiente de sua própria casa realizou tertúlias entre artistas e amigos, criando um
ambiente cultural e político. Em uma dessas ocasiões empenhou-se em traduzir a peça
Huis-Clos, de Jean-Paul Sartre, autor cujas obras eram proibidas pela censura salazarista
e, realizou a representação dessa peça no espaço de sua casa. Também, outro ambiente
cunhado por Natália foi O Botequim, um pequeno bar quemarcou o século XX
português, onde reuniu artistas, políticos, científicos, etc.
Após 1974, contudo, Natália Correia em conversa com Luiz Francisco Rebello,
conforme nos conta Fernando Dacosta em seu livro sobre o pequeno bar português e sua
criadora, dividem ―sua paixão pela dramaturgia portuguesa‖ e ―conversam deplorando a
crónica indiferença dos poderes políticos, económicos, intelectuais, informativos, etc.,
para com o teatro. A democracia não mostrara, afinal, maior entusiasmo do que a
ditadura por ele‖ (DACOSTA, 2013, p. 163). As duas personalidades que se tornaram
referência do teatro nacional com o advir da Revolução ainda viam o apagamento dos
textos nos palcos portugueses, convergindo desse modo com a visão dos críticos Jorge
de Sena e Carlos Reis. A sempre frágil situação política de Portugal circunscreveu o
teatro à um espaço marginal, sendo que, com a democracia ―o teatro mais subsidiado
passou, consequentemente, para o dos comícios partidários e o das campanhas
eleitorais‖ (DACOSTA, 2013, p. 163-4), fragilizando, novamente, a conquista da
liberdade no espaço dramatúrgico. Contudo, para a autora o motivo do teatro não
prosperar se devia menos a uma falta de interesse do público: ―[...] os Portugueses
gostam até muito de teatro, o que se passa é que querem estar todos no palco, não nas
plateias, por isso elas estão vazias‖ (CORREIA apud DACOSTA, 2013, p. 164).
O ácido comentário sobre a sociedade portuguesa converge com aquilo que
proferiu sobre o teatro atual quando observou que o teatro ocorre em uma ―sociedade do
espectáculo‖ onde o ser é o menos importante, isto é, interessa à essa sociedade
portuguesa mostrar a posse, ter ao invés de ser, de visar a essência – substância. E não
será o ―ser‖ a verdadeira matéria do teatro? Natália Correia responde-nos positivamente
ao deixar a seguinte pergunta ―uma sociedade que não segrega substância para o seu
teatro se não está morta, está moribunda? ‖ (CORREIA, 1990, p. 112). Ora o
desencanto com o teatro em Portugal, data de longe, em uma explicação bem mais
nacionalista, Almeida Garret já havia observado o terreno infrutífero que era o país para
a arte dramática:

O teatro é um grande meio de civilização, mas não prospera onde a não há. [...] Depois
de criado o gosto público, o gosto público sustenta o teatro: é o que sucedeu em França
e em Espanha; é o que teria sucedido em Portugal, se o misticismo belicoso de el-rei D.
Sebastião, que não tratava senão de brigar e rezar,  e logo a dominação estrangeira
que nos absorveu, não tivessem cortado à nascença a planta que ainda precisava muito
abrigo e muito amparo. (GARRET, s/d, p. 157)

Entretanto, a perseverança de Natália Correia é visível, que apesar de demonstrar


ao longo da conferência sua preocupação com um teatro que sobrevive na ―sociedade do
ter‖, uma sociedade do espetáculo, vendo-o ―dessubstancializado pela apatia reinante
que não lhe fornece alter(c)acção ou uma pitada de angústia existencial e metafísica‖
(CORREIA, 1990, p. 111), acaba por conceder à sua análise um final otimista:

O teatro só morrerá quando morrer a poesia que é a sua matéria prima mesmo quando
não transpareça. E chega o momento de a poesia ser chamada a desempenhar no teatro o
papel de reveladora que lhe é inato. Revelação do caminho para um verdadeiro real

255
humano que a venda da ilusão que nos é imposta como realidade não deixa ver.
(CORREIA, 1999, p. 112)

Nesse contexto, de desencantos e algumas esperanças, Natália Correia realizou o


que acreditava, não se furtando do compromisso que ela mesma estabeleceu com a
dramaturgia, apresentou propostas que se preocupavam com a alteridade, como observa-
se na escolha temática de seus dramas e no próprio interesse de reler mitos e
personagens históricas sob perspectivas não oficiais. O estilo satírico e irônico da
escritora, também evidenciam a vontade de transformação, através de uma crítica
consciente de sua contemporaneidade. Ademais, Natália Correia não se furta de confluir
de várias estéticas em seus dramas, na aproximação de poesia e magia, identifica-se
com o surrealismo, porém não se pode esquecer que, para a autora, este é percebido
como uma constante na literatura, conforme defende em seu ensaio O Surrealismo na
poesia portuguesa (1973), onde se dedica a encontrar manifestações surrealistas em
diferentes épocas e contextos artísticos e culturais. Sobre a adoção desta estética, Duarte
Ivo Cruz assinala que Natália Correia nunca se afastara desta ―que tão bem se modela à
pujança e força verbal da sua restante criação literária e da sua extraordinária oralidade‖
(CRUZ, 2001, p. 298). A estética e a linguagem utilizadas pela autora em suas peças,
talvez, se aproximem mais de uma filiação barroca do que surrealista, evidenciando não
somente o refinado tratamento linguístico própria dos dramas onde se nota a
―pomposidade barroca‖ (SIMÕES, 1985, p. 322), mas também a aproximação da
escritora com a cultura ibérica, não escondendo sua apreciação para com o teatro
espanhol:

A minha atracção pela estética barroca, que tem raizes peninsulares, portanto
portuguesas, é que me aproxima do teatro ibérico de expressão espanhola, onde eu
encontro libertas e estuantes linhas de força que, na dramaturgia portuguesa, por um
preconceito anti-castelhano, estão abafadas. [...]. Os [autores] que eu encontro mais
próximos do meu teatro são Calderón, Lope de Vega, Tirso de Molina. Valle Inclan
ainda continua essa tradição (CORREIA apud NASCIMENTO ROSA, 2007, p. 111).

Neste sentido, a dramaturgia nataliana apresenta-se, portanto, como um terreno


fértil de confluências estéticas e culturais, desconstruindo mitos e personagens
históricas, utilizando-se de processos satíricos e irónicos e tecendo críticas ácidas a
respeito de uma sociedade esvaziada, silenciadora e patriarcal. Insere, assim, suas
personagens no tempo da memória ativa, que, no teatro, libertam-se de seu espaço
circunscrito para alcançar-nos no presente. A luta a favor da liberdade não ficou
submetida, somente, na sua vida política e civil, mas também, e sobretudo, na sua
criação literária, e em especial, o teatro, pois estes refletem a mesma luta e sede por um
mundo que pudesse ser subvertido, em favor da liberdade plena de expressão.
A sua postura incisiva e iconoclasta foi alvo de muitos comentários e ataques
durante o Estado Novo, no entanto, isto não impediu o fazer literário da autora que
sempre teceu críticas ao governo e à sociedade patriarcal em geral, assim como, não fez
que sua obra fosse obscurecida nesse cenário. Pelo contrário, críticos importantes do
teatro português sempre apresentaram, mesmo que em poucas linhas, o trabalho de
Natália. É interessante observar como um dos aspectos mais ressaltados, para além das
confluências estéticas próprias da escrita tal qual a linguagem barroca ou para-barroca,
seja a ―violência‖ de peças como O Homúnculo ou A Pécora, peça que para Duarte Ivo
Cruz ―atinge limites de exasperação agressiva‖ (CRUZ, 2001, p. 298).

256
Na esteira desse pensamento, ademais de uma violência que choca determinados
setores, suas obras dramatúrgicas significaram para o contexto em pauta um importante
marco na escrita de autoria feminina para o teatro. Segundo Eugênia Vasques a obra de
Natália Correia está inserida no período que se caracterizou pelo surgimento de uma
nova geração literária, marcada não só pela quantidade de textos produzidos, ―mas pelo
carisma e coragem das suas autoras ou pela singularidade da escrita‖ (VASQUES, 2001,
p. 30). Segundo a crítica dramatúrgica, trata-se do segundo grande ciclo de escrita
teatral realizada por mulheres, e assinala que Natália Correia e FiamaHasse Pais
Brandão7, outra autora importantíssima, ―prefiguram e tornam emblemático, neste
período, através da margem de risco que assumem nas suas poéticas diferenciadas – que
são reflexo claro de atitude de rebeldia política –, é, aliás, sinal de maturidade da escrita
feminina, no teatro e também fora dele‖, sendo este um momento em que ―se afirma o
lugar da dramaturgia portuguesa no feminino‖ (VASQUES, 2001, p 31).
Contudo, a partir da obra de Natália Correia, nos perguntamos: o que é uma
dramaturgia portuguesa no feminino? Essa pergunta, portanto, move a nossa segunda
problemática no presente artigo. Isto é, no âmbito da crítica da escrita de autoria
feminina, observa-se que uma literatura feita por mulheres é aquela que se centra na
própria mulher, uma vez que, compartilhando de um modo de estar no mundo que se
relaciona duplamente com a estrutura dominante e com a própria cultura de ser mulher,
ao expressarem literariamente essa perspectiva feminina, podem ingressar no ―espaço
feminino‖ ou como define Elaine Showalter naquela ―zona selvagem‖8. Segundo a
autora, esse espaço deve ser ―o lugar de uma crítica, uma teoria e uma arte
genuinamente centradas na mulher‖ e ao escreverem deste modo, o que se verifica é o
projeto de ―trazer o peso simbólico da consciência feminina para o ser, tornar visível o
invisível, fazer o silêncio falar‖ (SHOWALTER, 1994, p. 49). Desse modo, a questão
apresentada se completa ao depararmo-nos com a crítica literária que se debruça sobre
esses aspectos, fazendo da nossa segunda problemática ser justamente a da
representação da mulher na dramaturgia.

D. João e Julieta: uma dramaturgia no feminino?


A exclusão da mulher do espaço dramatúrgico é um fato discutido na crítica e
visível, também, ao observamos o cânone teatral. A representação da mulher na
dramaturgia é uma questão pertinente nos estudos literários, onde muitas vezes as
personagens femininas são inscritas em função da figura masculina ou romantizadas
excessivamente, de modo que, ao longo da tradição literária nota-se que ―por razões
bem conhecidas, as mulheres surgem prioritariamente, não como poetas, mas como

7
Autora muito emblemática do período para Eugénia Vasques pois, ―seria a promotora desde a sua
estreia, em 1957 [...] de uma escrita poética, contaminada pelos modelos do absurdo e da tragédia coral, e
mais do que as outras, mesmo que Natália Correia, arredada do cânone aristotélico e portadora, desde
logo, de conhecimentos práticos das linguagens teatrais da sua actualidade‖ (VASQUES, 2001, p. 31)
8
Showalter explica que a ―zona selvagem‖ é um espaço que, se pensado metafisicamente, não há
correspondência no masculino, uma vez que: ―tudo na consciência masculina está dentro do círculo da
estrutura dominante e, desta forma, acessível à linguagem ou estruturada por ela. Neste sentido, o
‗selvagem‘ é sempre imaginário; do ponto de vista masculino, ele pode ser simplesmente a projeção do
inconsciente‖ (SHOWALTER, 1994, p. 48) Portanto, o homem sendo por excelência a referência da
cultura dominante desconhece o que há de ‖selvagem‖, exclusivo à cultura da mulher que encontra meios
de se expressar para além da cultura imposta.

257
musas, mudas e de preferência mortas‖ (RAMALHO, 2001, p. 549). Na dramaturgia,
também, a representação da mulher têm sido alvo de estudos que visam expor a
subalternização da mulher e como que o teatro e a arte, em geral, têm reafirmado isso ao
longo da história: ―A ‗realidade‘ que o teatro reproduz tem sido a realidade dessa
cultura falogocêntrica, tendo a mulher como vítima silenciada e objeto. ‖ (CARLSON,
1997, p. 511). Nesse sentido, não será escusado o modelo notado por Anne Ubersfeld:
―Se Romeu começou a amar Julieta, Julieta se pôs a amar Romeu‖ (UBERSFELD,
2005, p. 50), expondo a situação de objeto das personagens femininas – que raramente
estão em posição de sujeito. Contudo, esse modelo é decorrente da própria posição que
a mulher ocupou ao longo da história, pois ela enquanto segundo sexo, sofreu uma
realidade de submissões (―Se o Poder Supremo e Absoluto é concebido como
masculino, o feminino não pode senão ser concebido como obediência, submissão,
negação, silêncio‖; RAMALHO, 2001, p. 559), como também observa Anne Ubersfeld
somente ―a coerção social, o código, limitam as possibilidades do actante feminino ser
constituído como sujeito‖ (UBERSFELD, 2005, p. 50).
Em vistas desses aspectos apresentados, observar o drama D. João e Julieta é
pertinente, uma vez que, Natália Correia refuta em sua dramaturgia os modelos
concebidos pela tradição. A sua escolha de revisitar as personagens consagrados no
teatro, tal qual a shakespeariana Julieta e o sedutor Don Juan, e (re)construí-las sob uma
perspectiva outra que evidencia o protagonismo feminino fez-nos perguntar: esta obra
poderia ser uma daquelas que refletem a ―dramaturgia no feminino‖ apontada por
Vasques?
Antes de adentrarmos no drama, apresentando brevemente alguns aspectos, para
responder à questão acima, é relevante observar a ação de Natália Correia de revisitar o
cânone dramatúrgico. Se atentarmo-nos ao cânone ―não será escusado afirmar que [o
cânone] é branco, burguês e heterossexista-patriarcal‖ (VALENTIM, 2014, p. 61) e, por
conseguinte, que sua escolha na obra D. João e Julieta, tal qual a de revisitar a tradição
e rasurá-la, é significativo em um campo artístico que, em geral, sempre foi ocupado por
homens. Ao observar as escolhas e as entidades que definem o cânone percebe-se que
estas implicam relações não somente estéticas, mas também sociais, políticas e
culturais, como bem nos lembra Maria Irene Ramalho:

Quando se fala de cânone, o que está em causa é a identidade cultural de países, nações,
povos; ou simples comunidades ou organizações diversamente definidas e com
diferentes interesses e repercussões de impacto variável (academias, universidades,
departamentos). (RAMALHO, 1994, p. 17)

Desse modo, o cânone tem o importante papel de preservar a memória cultural,


daí que, em nossa perspectiva, a prática de Natália Correia, aplicada à peça D. João e
Julieta, demonstra uma preocupação em relação à tradição, no entanto, esta não é
resumida na imitação ou glorificação dos ícones tradicionais, antes observa-se sua
subversão ao invocar duas personagens que têm seus espaços consagrados, pela
dramaturgia e pelo cânone literário, e desconstrói determinados lugares estabelecidos. O
primeiro eixo que a escritora revisita e subverte é o shakespeariano, considerado o
centro do cânone por muitos críticos e, que ocupa para Harold Bloom (1994) a
centralidade juntamente com outros gêneros literários. Também Leyla Perrone-Moisés
(1998) nota a presença do autor inglês em todas as listagens dos escritores-críticos-

258
modernos9, e ele, de fato, possui centralidade no cânone inglês (SERÔDIO, 1996),
afinal ―discutir Shakespeare é discutir o próprio estudo da literatura inglesa‖
(KAVANAGH apud SERÔDIO, 1996, p. 95). Além de que, em especifico, a peça
Romeu e Julieta compreende determinado espaço no cânone shakespeariano, tendo em
vista que Barbara Heliodora (2013) sublinha que esta é sua única tragédia lírica e uma
de suas mais populares obras-primas (HELIODORA, 2013, p. 187). O outro
personagem elencado é o a conhecida figura do sedutor D. Juan, relido em nosso objeto
como D. João. Além de personagem da dramaturgia mundial, esse também é
considerado um mito moderno na feliz definição de Ian Watt (―uma história tradicional
largamente conhecida no âmbito da cultura, que é creditada como uma crença histórica
ou quase histórica, e que encarna ou simboliza alguns dos valores básicos de uma
sociedade‖; WATT, 1997, p. 16) que se fixou em nossa cultura como uma imagem da
sedução, sendo a representação da instabilidade amorosa na figura masculina.
O mito que adquiriu um simbólico status de universalidade intriga muitos
críticos que se debruçam sobre o mito sob várias perspectivas 10, pois, segundo Ian Watt,
a sua disseminação deve-se ao poder de permanecer na nossa memória, com fortes
relações com o seu ímpeto individualista, em que ―nenhum deles [Fausto, Don Juan,
Dom Quixote e Robinson Crusoe] está particularmente interessado em outra pessoa;
estão, isto sim, voltados exclusivamente para os seus empreendimentos pessoais‖
(WATT, 1997, p. 233). E também, por não se constituir exatamente num vencedor, mas
num fracasso emblemático: ―[...] os quatro heróis em questão alimentam ideais
indefinidos, e não são capazes de torna-los realidade [...] eles não são vencedores, são
fracassos emblemáticos‖ (Ibdem, p. 233).
Ora, deste modo é interessante perceber que as personagens elegidas por Natália
Correia são entendidos como centros da tradição europeia. A figura da donzela
apaixonada e do insaciável sedutor parecem constituir no drama um casal pouco
sintomático, no entanto, na concepção da escritora D. João, aristocrata decadente, não se
encontra no auge da juventude. Corroído pelo tédio e pelo tempo (―A idade é um ponto
de interrogação à volta dos quarenta. No entanto é natural que tenha mais‖; CORREIA,
1999, p. 48), este não se deleita nos prazeres amorosos, antes os julga, afinal, só
conheceu a efemeridade das relações. Em virtude disto, na verdade, entendemos D. João
como um ser completamente frustrado na sua busca amorosa, como bem pode ser
observado em sua fala à personagem Maria Luísa: ―Acaso alguma de vocês me soube
reter ou mostrar-me o verdadeiro rosto do amor?‖ (CORREIA, 1999, p. 56). Apesar de
frustrado e insatisfeito, D. João ainda se vê como um homem superior em relação à
sociedade e, até mesmo, como alguém que se encontra para além da vulgaridade do
humano: ―Tudo aquilo que sou hoje representa a vitória dos meus demónios sobre os
meus deuses. Sou um ser nítido, perfeito, acabado‖ (Ibdem, p. 55). Além de que Natália

9
Leyla Perrone-Moisés em seu estudo Altas Literaturas: escolha e valor na obra crítica de escritores
modernos (1998) reflete sobre os valores dos ―escritores-críticos modernos‖, e como estes concebem uma
tradição através do exercício critico, discutindo conceitos como o do próprio cânone e a noção de valor,
uma vez, esse novo exercício crítico que parte de escritores com Ezra Pound, Haroldo de Campos, Otávio
Paz, entre outros, rearticula as relações da tradição, instaurando uma relação menos institucional com
esta.
10
De acordo com Ester Abreu Vieira de Oliveira: ―A maneira de amar de Don Juan, esboçada por Tirso,
vem, no decorrer dos séculos, despertando o interesse da moral, da psicopatologia, da filosofia e de outras
ciências sociais, que a consideram uma atitude egoísta, como um proceder patológico ao ignorar a reação
de sua parceira‖ (1996, p. 45).

259
Correia explora uma versão bissexual do mito, que transita entre amores heteros e
homoeróticos, como é colocado pelas outras personagens ao rememorarem o passado
amoroso de D. João. Vale lembrar, aqui, que o seu protagonista é marcado, também, por
características andróginas, como indica a didascália: ―Apresenta uma beleza sombria,
simbiose de varonilidade agressiva e delicada feminilidade‖ (CORREIA, 1999, p. 48).
A personagem shakespeariana, por outro lado, ao mesmo tempo que é
apresentada como a apaixonada e romântica, é transferida a um espaço ex-cêntrico, uma
vez que,ao final da trama é nos revelado que esta é uma jovem fugida de um
manicômio, marca que desestabiliza o enredo, dando um contorno tragicômico ao
drama. No entanto, no presente artigo, não caberá observar todos os aspectos que
confluem no drama, tais quais a sociedade efabulada e as confluências estéticas, antes,
trata-se aqui de observar a construção dos protagonistas tendo em vista a concepção de
uma ―dramaturgia no feminino‖.
O contexto da obra é o do retorno de D. João à sua mansão, depois de anos de
ausência, onde é o anfitrião de um baile de máscaras, e seus convidados, uma sociedade
burguesa e tão decadente quanto o aristocrata, compõem o cenário social, sendo que,
somente Julieta, personagem ausente das relações sociais burguesas e aristocráticas, se
diferenciará daqueles outros e terá o poder de desmitificar tais relações. Na esteira desse
pensamento, note-se que ademais de refutar os códigos canônicos na (re)construção de
suas personagens, Natália Correia, tambémnega os moldes que colocam a figura
feminina em situação de objeto, isto é, na obra D. João e Julieta, a personagem Julieta
que aparece ao fim do segundo ato, não estando no panorama social pré-estabelecido,
está em completo estado de liberdade – ausente da dinâmica social e do próprio espaço
manicomial. Desse modo, a personagem exerce o que nenhuma outra poderia:
conquistar o afeto do então apático D. João e dar-lhe a alma amorosa e monogâmica de
Romeu. O encontro entre as personagens é realizado sob uma forte tensão onírica,
aproximando-se do domínio da surrealidade, onde ―o amor assume um caractér de
gnose‖ (CORREIA, 1973, p. 62), e Julieta guia o protagonista ao sentido revelador do
amor único. Entretanto, amor e morte – assim como nos dramas das personagens
revisitadas – singram juntos, e por fim, a presença e o discurso de Julieta levará a
personagem donjuanesca ao suicídio, sem que, soubesse que a belíssima e misteriosa
mascarada, penetra de seu baile, ao contrário do que propõe não é a amada que transpôs
a morte em sua busca (―A morte, ciumenta do amor que a ultrapassa, roubou-me a
carícia da tua pálida nudez de todos os dias... Mas nós regressaremos‖; CORREIA,
1999, p. 83), mas uma jovem fugida do manicômio: ―[...] uma pobre criatura‖ que tem
―uma mania romântica e inofensiva. Está convencida que é a Julieta.‖ (Ibidem, p. 108).
No drama em três atos, portanto, Natália Correia parece apostar, conferindo um
discurso alternativo em relação ao da tradição, em uma personagem que está longe de
ser colocada como objeto passivo das relações, desse modo observa-se que a escritora
faz de Julieta um sujeito que deseja (CASE apud CARLSON, 1997, p. 513). Movida
por seu desejo alucinatório, de encontrar Romeu, Julieta apropria-se da lógica
donjuanesca não somente na estratégia discursiva confrontando-o com uma lógica
impecável (―Repara que pela primeira vez tu recorres à inverossimilhança da tua lógica
para explicar um fato que te transcende‖; CORREIA, 1999, p. 82), mas, também, ao
tomar a iniciativa amorosa, ao seduzir D. João, gesto emblemático da personagem
feminina, de modo que, propõe colocar a mulher no papel central da ação – gesto que, a
nosso ver, evidencia a modernidade da peça em relação ao feminino.

260
Neste sentido, a escritora revisita as personagens, colocando-os como um par
amoroso que, à primeira vista, parece bem pouco sintomático: uma relação entre o
incansável sedutor e a apaixonada e fiel Julieta, entretanto, com um olhar que tudo
subverte11. A escritora portuguesa converte o mito paradigmático em um cansado
sedutor, corrosivo e insatisfeito, e a donzela shakespeariana em uma insana romântica,
condoreira – e por isso o drama ganha um tom cômico –, que leva D. João ao suicídio
com a promessa da tranquilidade da alma que poderá saciar a sua sede do absoluto. É
significativa a alteração no arquétipo do mito, no qual o sedutor é seduzido, e não há a
menor possibilidade da materialização de uma justiça divina, isto é, a condenação do
dissoluto personagem. Reparado por Julieta, este vê nela a face de todas as mulheres
seduzidas e da Morte, face que em D. João e Julieta é a que corresponde com a sua
busca, como bem acentua Maria do Carmo Cardoso Mendes: ―A busca romântica do
Amor Absoluto mantém-se, mas o Absoluto é agora a morte‖ (2014, p. 309). Mas,
sobretudo, D. João corresponde a um donjuanismo não triunfante12, visto que Julieta,
conquistando-o, rasura e transfigura o signo donjuanesco, que, agora marcado pela
monogamia, abandona não só a busca carnal, mas também a insatisfação, a crueldade e
a condição de ser agressor e vítima13 ao mesmo tempo. Confirma-se, assim, a primazia
feminina, encarnada na Julieta de Natália Correia, que têm o amor como ação
subversiva.
A obra D. João e Julieta, portanto, ao evidenciar o protagonismo do feminino e,
sobretudo, ao descentralizar o protagonismo do sujeito convencional que é o masculino,
representado na figura do mito donjuanesco, observa-se que há uma proposta de realizar
uma dramaturgia no feminino. A autora, utilizando-se da própria tradição, esboça e
propõe uma outra perspectiva, não com marcas masculinistas, mas com a atuação
primordial da personagem feminina, afinal, são as mulheres que exercem a vontade de
seus desejos. Esta peça ao reverberar a ―revolucionária concepção do amor‖ de Natália
Correia, ―enraizada nadescoberta do espírito feminino‖ (CORREIA, 1978) coloca-se à
frente de seu tempo, uma vez que, essa descentralização do sujeito masculino, e o
consequente ato de evidenciar o sujeito feminino é um projeto que surge, sobretudo, nas
ideias pós-modernistas, tratando-se de um projeto importante para o próprio feminismo
―já que o sujeito é convencionalmente o ‗eu‘ masculino, com o qual a mulher está
relacionada com o ‗Outro‘, o objeto do desejo masculino‖ (CARLSON, 1997, p. 513).
Nesse sentido, surgem algumas propostas como a estratégia representacional alternativa
de ―desintegração desse aparato heterossexual de orientação masculina‖ (CARLSON,
1997, p. 513) e de representação da mulher enquanto sujeito que deseja.
Ora não estaria Natália Correia apostando nessa estratégia ao ademais de propor
a centralidade na figura feminina, também, ao retratar o protagonista donjuanesco com
um personagem que transita entre amores heteros e homoeróticos?

11
―Natália leu tudo de tudo, tudo subvertendo, tudo reinventando‖ (DACOSTA, 2014, p. 156).
12
No estudo de Maria do Carmo Cardoso Mendes (2014), a crítica observa que ―As figuras donjuanescas
da dramaturgia portuguesa do século XX configuram um donjuanismo não triunfante, desde logo porque
a sua natureza contraditória e mutável, e as suas ambíguas relações emocionais, acentuam uma quase total
incapacidade para a fixação amorosa‖ (MENDES, 2014, p. 309).
13
―Don Juan manifesta em sua sexualidade uma forma de desejo mimético ligado à violência (revela uma
competição com o desejo dos demais, uma rivalidade agressiva: daí que não se seduza pelo mero prazer
sexual e encontre satisfação na burla e na fama) [...] Don Juan é, pois, de uma só vez, agressor e vítima‖
(ARELLANOapud NASCIMENTO ROSA, 1999, p. 14).

261
Considerações finais
A obra de Natália Correia, a partir dos elementos aqui discutidos, afirma-se, a
nossa ver, como uma dramaturgia no feminino, que visa expor as relações da nossa
sociedade patriarcal, assim como, desconstruí-las. Fazer desse terreno masculinista, que
tanto subalternizou a mulher, movediço para que seja fértil a ascensão do feminino é
uma das estratégias utilizada pela escritora. E, também, através dessa peça, Natália
Correia parece deixar-nos com aquilo que sempre acreditou: que a modificação do
mundo se daria quando a mulher não quisesse imitar ―os valores patristas‖, pois ―a
mulher deve seguir as suas próprias tendências culturais, que estão intimamente ligadas
ao paradigma da Grande Mãe‖ (CORREIA, 2004, p. 65). Deste modo, note-se que a
rasura e a subversão são estratégias centrais da escrita de Natália Correia. Não seguir
imitando a sociedade patriarcal é uma das reflexões que a escritora nos legou em tempos
que discutir a posição da mulher na sociedade e nas artes ainda é matéria urgente.

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264
Corpos violados, corpos libertos: uma leitura de A
cabeza de Medusa, de Marilar Aleixandre
(Violated bodies, released bodies: a reading of A cabeza de Medusa, of
Marilar Aleixandre)

Karina de Oliveira1
1
Centro Universitário de Votuporanga (UNIFEV)
1
Universidade de Santiago de Compostela (USC)

karina.ruiz1984@gmail.com

Resumen: Temáticas tabúes, como la violencia sexual, las guerras, la muerte, tardaron a
aparecer en el escenario de la literatura juvenil gallega. Es de finales del siglo XX y principios
del siglo XXI, período de innovaciones en las producciones literarias juveniles, que se pudo
observar cierta recurrencia en cuanto al empleo de estos temas. En este sentido, esta
comunicación pretende presentar un recorte de nuestra tesis doctoral, a través de un análisis de
A cabeza de Medusa (2008), de Marilar Aleixandre. Se lleva a cabo la lectura de la narrativa a
partir de adaptaciones del cuadro de análisis desarrollado por João Luís Ceccantini (2000) y la
fundamentación teórica se basa en estudios de Pierre Bourdieu (2005), Alice Áurea Penteado
Martha (2010), Carmen Ferreira Boo (2013), Blanca-Ana Roig Rechou (2015), entre otros.
Finalmente, se observó y comentó sobre los diversos tratamientos ofrecidos a las jóvenes
protagonistas, mostrando que la narración rompe los paradigmas preestablecidos sobre la
violencia contra las mujeres.
Palabras clave: literatura juvenil gallega; narrativa juvenil contemporánea; tema tabú;
violencia sexual y simbólica.

Resumo: Temáticas tabus, como a violência sexual, as guerras, a morte, tardaram a ocupar o
cenário da literatura juvenil galega. Foi a partir do final do século XX e início do século XXI,
período de inovações nas produções literárias juvenis, que se pôde observar certa recorrência
quanto ao emprego desses temas. Nesse sentido, esta comunicação tem o intuito de apresentar
um recorte de nossa tese de Doutorado, por meio de uma análise de A cabeza de Medusa
(2008), de Marilar Aleixandre. A leitura da narrativa é realizada a partir de adaptações da
grade de análise elaborada por João Luís Ceccantini (2000) e a fundamentação teórica está
embasada em estudos de Pierre Bourdieu (2005), Alice Áurea Penteado Martha (2010),
Carmen Ferreira Boo (2013), Blanca-Ana Roig Rechou (2015), entre outros. Finalmente,
foram observados e comentados os diferentes tratamentos oferecidos às jovens protagonistas,
constatando que a narrativa quebra paradigmas preestabelecidos sobre a violência contra a
mulher.
Palavras-chave: literatura juvenil galega; narrativa juvenil contemporânea; temática tabu;
violência sexual e simbólica.

Palavras iniciais: contextualização e recorte da pesquisa


Antes de comentar acerca da formação da literatura juvenil galega, importa
mencionar uma questão linguística presente na Espanha. Nesse país, ademais do
castelhano, outros três idiomas são oficiais, sendo eles: o catalão, o galego e o basco (ou
euskera) e, no entanto, durante um longo período, apenas a primeira língua ocupou um
lugar de prestígio social. Por esse e outros motivos – que ultrapassam os propósitos
deste texto –, houve uma demora no processo de construção e de consolidação da

265
cultura e da literatura na Galícia, sendo necessário um longo período, dos séculos XV ao
XIX, de lutas e manifestações em defesa da liberdade da língua galega.
A partir dessa contextualização, observa-se que as investigações de Blanca-Ana
Roig Rechou (2015) apontam três importantes momentos na formação do subsistema
literário juvenil galego. O marco inicial dessa literatura ocorreu entre as décadas de 60 e
70, com a publicação da obra Memorias dun neno labrego (1961), de Xosé Neira Vilas
– seguida mais adiante por dois outros títulos: Cartas a Lelo (1971) e Aqueles anos de
Moncho (1977) –, autor que mesmo exilado em Buenos Aires, trabalhou
constantemente, por meio de suas produções literárias, para uma Galícia livre.
Em seguida, nos anos 80 e 90 surgiram duas gerações de escritores, a Xeración
do 68 e a Xeración dos 90, valendo-se de temas bem próximos da realidade dos jovens,
com o fim de atender o público em questão. Por último, da metade da década de 90 até a
atualidade, nota-se grande inovação na produção literária juvenil, tanto no que diz
respeito ao quesito editorial quanto no gráfico.
É válido destacar que o subsistema juvenil galego conta com uma Historia da
Literatura Infantil e Xuvenil Galega (2015), uma sistematização da literatura para a
criança e para o jovem, sendo um dos trabalhos mais importantes do grupo de pesquisa
de Blanca-Ana Roig Rechou. Nessa obra, ademais de Roig Rechou, trabalharam
algumas estudiosas que integram as Investigacións literarias, artísticas, interculturais e
educativas. Lecturas textuais e visuais (LITER21), uma referência ao tratar sobre o
assunto em questão1.
Diante disso, este artigo tem o propósito de apresentar uma obra que bem
representa a fase contemporânea das produções juvenis, a saber, A cabeza de Medusa
(2008), de Marilar Aleixandre. Parte-se de um recorte da tese de Doutorado intitulada
Produções literárias contemporâneas para jovens leitores e as suas temáticas: as
realidades brasileira e galega, cujo título de Aleixandre integra a seleção do corpus
dessa investigação: foram selecionadas doze obras brasileiras e doze galegas, de seis
escritores de cada âmbito, muito consideradas quanto ao gênero narrativo juvenil do
século XXI, e todos os autores ou aclamados pela crítica, premiados com galardões, tais
como Prêmio Barco a Vapor da SM Brasil e Premio Fundación Caixa Galicia de
Literatura Xuvenil, ou inovadores quanto às temáticas tratadas. Além disso, todos os
escritores selecionados são reconhecidos pelo público jovem e mesmo pelo adulto, pois
quase todas elas, especialmente as galegas, são também consideradas obras de fronteira.
Nesse cenário, uma particularidade que vem sendo observada nessas produções
narrativas juvenis da atualidade é a presença de temáticas difíceis ou tabus (ROIG
RECHOU; OITTINEN, 2016, p. 07). Dentre esses temas, os rastreados e agrupados em
um recente estudo pelos investigadores da Asociación Nacional de Investigación en
Literatura Infantil y Juvenil (ANILIJ) foram: a morte, o naufrágio, as guerras e os
desastres.
Além dessas temáticas, a narrativa de Marilar Aleixandre, elencada neste estudo,
trata de um tema delicado e com pouca visibilidade nas produções para o público em
questão: a agressão sexual e simbólica contra a mulher.
Assim, acredita-se que a viabilidade para que esse e outros assuntos começassem
a ser introduzidos em títulos para jovens possa ter nascido a partir de diversas ideias,

1
As investigadoras que participaram da elaboração dessa obra foram: Agrelo Costas, Bendoiro Mariño,
Fernández Vázquez, Ferreira Boo, Mociño González, Neira Rodríguez e Soto López.

266
tais como a de multiculturalismo, dos ideais de uma sociedade mais igualitária e mais
inclusiva em meio à diversidade de pessoas que compõe cada nação.
Na sequência, o artigo enfatiza a jornada literária da autora, o título A cabeza de
Medusa e a repercussão dessa obra no cenário galego.

A escritora, a obra e seus leitores


María Pilar Jiménez Aleixandre (Madri, 1947), conhecida como Marilar
Aleixandre, é escritora de literatura infantil e juvenil, tradutora e catedrática de
Didática, na área das Ciências e de Educação Ambiental, da Universidade de Santiago
de Compostela.
Aleixandre construiu uma trajetória no universo ficcional e ―[...] fruto do seu
valor literário e estético, alcançou tanto o reconhecimento da crítica como dos leitores
com a obtenção de diferentes premiações literárias‖ (FERREIRA BOO, 2013, p. 126,
tradução nossa)2, dentre as quais são destacadas apenas algumas: a) Premio Merlín de
Literatura Infantil com a obra A expedición do Pacífico (1994), oferecido pela Editora
Xerais, desde o ano de 1986, mas algumas nomenclaturas foram alteradas. A partir de
2006, a premiação dedicada à literatura infantil ficou conhecida como Premio Merlín de
Literatura Infantil, enquanto a premiação para a produção juvenil foi intitulada de
Premio Fundación Caixa Galicia de Literatura Xuvenil. Em 2014, outra reformulação
alterou o nome desse galardão, cuja denominação atual é Jules Verne de Literatura
Xuvenil; b) Premio Rañolas com o livro O trasno de Alqueidón (1996), premiação
existente desde 1994 com o intuito de valorizar as melhores obras em língua galega; c)
Premio Lazarillo com o título A banda sen futuro (1999), um galardão de prestígio,
concedido pela Organización Española para el libro infantil y juvenil (OEPLI) desde
1986; d) Premio Fundación Caixa Galicia de Literatura Xuvenil, em 2008, com o livro
A cabeza de Medusa (2008), premiação de grande relevância na Galícia; e) com essa
última obra recebeu também o Premio Frei Martín Sarmiento, em 2010, na categoria 3°
ESO - Bachillerato3, que se trata de uma atividade de leitura em língua galega, em que
os estudantes são incentivados a ler e a emitir seus juízos de valor sobre obras de
diferentes categorias; e por último, f) esse mesmo título foi incluído no catálogo The
White Ravens, em 2009.
No que diz respeito à escrita de Aleixandre, Ferreira Boo (2013, p. 126, tradução
nossa) revela que a obra dessa escritora apresenta características ―comuns definidoras
de sua poética, como são a preferência pelo protagonismo feminino adolescente, o
emprego do diálogo intertextual, o tratamento do processo de amadurecimento [...] e de
temas da atualidade‖ 4.
Sobre o Premio Fundación Caixa Galicia de Literatura Xuvenil, vale ressaltar o
modo pelo qual A cabeza de Medusa foi selecionada, tendo em vista que os jurados
consideraram, sobretudo, a temática inovadora que a artista ousou desnudar:

2
―[…] fruto de súa valía literaria y estética, ha alcanzado reconocimiento tanto de la crítica como de los
lectores con la obtención de diferentes premios literarios‖ (FERREIRA BOO, 2013, p. 126).
3
De um modo geral, Bachillerato pode ser visto como uma correspondência à última etapa da educação
básica brasileira, o Ensino Médio, ainda que haja diferenças entre elas.
4
―comunes definitorias de su poética, como son la preferencia por el protagonismo feminino adolescente,
el empleo del diálogo intertextual, el tratamiento del proceso de madurez [...] y de temas de actualidad‖
(FERREIRA BOO, 2013, p. 126).

267
[...] obteve por unanimidade o III prêmio Fundación Caixa Galicia de Literatura
Xuvenil, graças a um jurado composto por especialistas de Literatura Infantil e Juvenil,
escritores e estudantes do Ensino Médio, dando voz a una temática até o momento
silenciada e muito pouco tratada pela Literatura Infantil e Juvenil galega: o tema da
violação social da sexualidade feminina na cultura ocidental e as diferentes reações
familiares diante deste acontecimento violento e tão traumático (FERREIRA BOO,
2013, p. 133, tradução nossa)5.

Para a elaboração das análises das narrativas juvenis que compuseram o corpus
da tese de Doutorado, partiu-se da grade elaborada por Ceccantini (2000, p. 78) em
busca não apenas de um rigor metodológico para a pesquisa, mas também da
flexibilidade de adaptações que a grade possibilita. Esse quadro analítico já foi utilizado
em diversas investigações brasileiras e de outros países e a constituição dessa
ferramenta foi resultado do trabalho de muitos anos da carreira acadêmica de
Ceccantini. Contudo, este artigo não empregará todos os elementos que compõem a
grade analítica citada, mas alguns que sejam essenciais para demonstrar como a
violência sexual e simbólica feminina é tratada no título selecionado.
A cabeza de Medusa conta a história de Sofía e Lupe, duas amigas muito
distintas, que são violentadas por dois estudantes universitários quando saíam de uma
festa à fantasia. Já era madrugada e por não conseguirem um táxi, as garotas aceitaram a
carona de dois desconhecidos. Dessa forma, quando as garotas já estavam no carro, os
rapazes modificam o caminho e dirigem até um lugar afastado da cidade. O jovem que
dirigia estaciona o carro e em seguida a agressão sexual é consumada: ― – Não queria
sujeitá-la...não me deixa outro remédio...‖ (ALEIXANDRE, 2008, p. 51, tradução
nossa)6.
Na sequência, os garotos desaparecem, deixando as vítimas no mesmo lugar.
Elas conseguiram avistar uma placa, indicando que estavam em San Paio, e então, ligam
para a mãe de Sofía, que logo chega no local.
Em seguida, os pais de Sofía vão à casa de Lupe e afirmam que irão denunciar a
violência. Posteriormente, as garotas passam pelos procedimentos necessários para a
realização da denúncia, sendo submetidas aos exames para a coleta de provas, são
medicadas, dentre outras etapas que integram a investigação do caso.
Antes mesmo da retomada de suas vidas, as garotas sentem-se envergonhadas e
culpadas pela situação pela qual passaram, especialmente pelas diversas opiniões que
surgem sobre o caso na escola, entre os amigos e familiares das vítimas.
Quanto ao desfecho, notam-se dois encaminhamentos relevantes: no primeiro,
tanto Sofía quanto Lupe mantêm a denúncia da agressão sexual, tendo em vista que a
segunda havia retirado a queixa da delegacia. E no segundo, mesmo as garotas tendo
passado por esse processo traumático, decidem não renunciar ao amor. Então, dois
novos casais são formados, Sofía e Rubens, Lupe e Vicenzo e cada um desses garotos
apoiava as jovens em suas decisões.

5
―obtuvo por unanimidade el III premio Fundación Caixa Galicia de Literatura Xuvenil, gracias a un
jurado compuesto por especialistas de Literatura Infantil y Juvenil, escritores y estudiantes de
Bachillerato, dando voz a una temática hasta entonces silenciada y muy poco tratada por la Literatura
Infantil y Juvenil galega: el tema de la violación social de la sexualidade feminina en la cultura occidental
y las diferentes reacciones familiares ante este suceso violento tan traumático‖ (FERREIRA BOO, 2013,
p. 133).
6
―– Non quería suxeitarte...non me deixas outro remedio...‖ (ALEIXANDRE, 2008, p. 51).

268
No que se refere à estrutura da obra, somam-se dezesseis capítulos, muito bem
divididos em três partes maiores, que recebem títulos referentes ao mito de Medusa,
narrado na obra Metamorfoses (8 d. C.), do poeta latino Ovídio (43 a. C.-17/18 d. C.).
São os elencados a seguir: I) ―A Cabeça de Medusa‖; II) ―Olhos que não se podem olhar
‖ e III) ―Aguardando por Perseu‖7.
No que se refere à organização interna dessa obra, observa-se que há uma
ordenação cronológica dos fatos, ainda que no primeiro capítulo, o narrador adiante ao
leitor, por meio da prolepse, que ocorrerá uma violência sexual na trama: ―A sexta-feira
em que ia ser violentada amanheceu abafada [...]‖ (ALEIXANDRE, 2008, p. 13,
tradução nossa)8, assim, ao iniciar a leitura da obra, o receptor já tem conhecimento
acerca do universo o qual adentrará.
A partir desses elementos, constata-se que tanto as partes quanto os capítulos da
obra foram bem elaborados e estruturados, em especial, pela abordagem de um tema
necessário e pouco tratado em obras juvenis e por tecer diálogos com o mito de Medusa,
que também representa metaforicamente a temática central dessa produção galega.
Portanto, verifica-se que a escritora trabalha com a verossimilhança, pois as
problemáticas reais que envolvem os casos de violência sexual, muitas vezes,
culpabilizam as vítimas e não seus agressores.
Por fim, quanto ao final da narrativa, que reafirma a denúncia e os
relacionamentos amorosos que surgem, ainda que romantizados, sugerem a capacidade
de as vítimas reconstruírem suas vidas após um período doloroso vivenciado por elas na
adolescência.
A seguir, observa-se como são construídas as formas de violência sofridas pelas
protagonistas da narrativa em foco.

A cabeza de Medusa: entre a violência física e a simbólica


A trama conta com uma narração em terceira pessoa, além de apresenta os
discursos das próprias personagens. Esse elemento, muito comum no âmbito ficcional,
dá voz às vítimas de violência sexual e permite ao leitor conhecer o universo íntimo das
protagonistas, como ilustra o excerto, representado por Lupe: ―– Não me sinto com
ânimo para chegar até o julgamento, as declarações... quero apagar isto da minha vida...
[...]‖ (ALEIXANDRE, 2008, p. 174, tradução nossa)9.
Dentre essas vozes, vale destacar também o discurso dos agressores, tidos como
―rapazes normais e de boa conduta‖, quando seus atos vêm à tona: ―– Não me arranhe!
Você pensa que pode provocar os homens com essas pernas de fora e deixá-los
enlouquecidos?‖ (ALEIXANDRE, 2008, p. 51, tradução nossa)10. A fala de
Constantino, o universitário que agrediu Sofía, exemplifica uma construção social que
inverte papéis: culpa a vítima, no caso, a mulher, por ter ―provocado‖ a agressão, seja
por meio das roupas que estava usando, seja por estar sozinha em um horário noturno,

7
Títulos no idioma original: I) ―A Cabeza de Medusa‖; II) ―Ollos que non se poden mirar‖ e III)
―Agardando por Perseu‖.
8
―O venres en que ía ser violada amenceu bochornoso [...]‖ (ALEIXANDRE, 2008, p. 13).
9
―– Non me sinto con azos para chegar até o xuízo, as declaracións... quero borrar isto da miña vida...
[...]‖ (ALEIXANDRE, 2008, p. 174).
10
―– ¡Non me rabuñes! ¿Ti pensas que se pode ir quentando aos homes con esas coxas ao aire e deixalos
pampos?‖ (ALEIXANDRE, 2008, p. 51)

269
dentre outras justificativas que eximem o agressor, pelo menos em primeira instância,
de seus atos.
Para Ferreira Boo (2012, p. 102), essa multiplicidade de visões que a obra
oferece tem o intuito de que o leitor conheça distintos ângulos da história e possa
construir a sua própria reflexão acerca dos fatos narrados. Ademais, é necessário
comentar que a perspectiva central da obra é mostrada a partir das vítimas de violência
sexual e essa estratégia é significativa, sobretudo, porque, em geral, após tais atos, o que
predomina é o silêncio das mulheres. Sendo assim, além de Aleixandre tratar de um
tema complexo, as jovens protagonistas têm voz nessa obra e expressam suas angústias
e conflitos tanto no âmbito escolar quanto no familiar.
Como a narrativa é rica em intertextualidades e em paratextos,
consequentemente há diferentes formas de representação da língua galega. De modo
geral, a linguagem coloquial predomina, tendo em vista o protagonismo juvenil.
Além dela, constata-se uma linguagem mais técnica, que dialoga com todo o
tecido textual, utilizada nos primeiros exames que as protagonistas realizam no hospital
ou durante o interrogatório com a polícia: ―– Podem tomar algo, se quiserem, mas não
podem se lavar. Para as provas de DNA, com os restos de sêmen... [...]‖
(ALEIXANDRE, 2008, p. 58, tradução nossa)11, ou ainda em um relatório escolar, para
explicar as sanções que um estudante recebeu ao ser acusado de ofender Sofía e Lupe,
por meio da grafia de impropérios na escola: ―Dada a convergência de indícios [...] que
apontam Mauricio Rodríguez como o autor dos insultos [...], assim como a sua presença
no banheiro feminino [...] parece deduzir-se que ele é o autor da pichação‖
(ALEIXANDRE, 2008, p. 145, tradução nossa)12.
Há também muitos trechos de textos literários, dentre eles, das Metamorfoses, de
Ovídio, ademais de atividades de outras matérias, como Língua Inglesa e Latim e
também a linguagem objetiva do jornal, já que a narrativa mostra também o andamento
das investigações do caso de Sofía e Lupe: ―As moças, G. L. e S. T., ambas de dezoito
anos, estudantes do Ensino Médio, denunciaram que na madrugada da sexta para o
sábado foram violentadas por dois homens [...]‖ (ALEIXANDRE, 2008, p. 77, tradução
nossa)13.
Dessa forma, observa-se que a diversidade de usos da língua ocorre em razão da
variedade de gêneros textuais que constroem a obra, auxiliando o leitor na análise e na
avaliação dos diferentes discursos acerca do tema discutido.
Como já foi dito, a temática central da narrativa é a violência física e simbólica
contra a mulher e suas consequências. Nota-se que ele está inserido no início de todos
os capítulos, por meio de citações diversas, e no decorrer dos capítulos, com seus
intertextos e paratextos.
Ainda que a obra tenha um narrador em terceira pessoa, é necessário mencionar
o detalhamento da visão das vítimas sobre a agressão e sobre o processo em que estão
imersas:

11
―– Poden tomar algo, se queren, pero non lavarse. Para as probas de ADN, cos restos de seme... [...]‖
(ALEIXANDRE, 2008, p. 58).
12
―Dada a converxencia de indicios [...] que apuntan a Mauricio Rodríguez como autor de insultos [...],
así como a súa presenza no baño de mulleres [...] parece deducirse que é o autor da pintada‖
(ALEIXANDRE, 2008, p. 145).
13
―As mozas, G. L. e mais S. T., ambas de dezaoito anos, estudantes de bacharelato, denunciaron que na
madrugada do venres ao sábado foron violadas por dous homes [...]‖ (ALEIXANDRE, 2008, p. 77) 13.

270
[...] o seu ofuscamento nos primeiros momentos em que são conscientes do que lhes
aconteceu, a múltipla vitimização que causa ao contar de novo o acontecido às famílias,
à polícia e aos advogados, o medo e o estigma social ao qual se veem submetidas por
alguns colegas que, como viveu Medusa, não se atreviam olhá-las (FERREIRA, 2012,
p. 101-2, tradução nossa)14.

Entretanto, as vítimas apresentam perspectivas distintas sobre o momento que


estão vivendo: por um lado, Sofía tem o apoio da família, é valente e decidida quanto à
denúncia; por outro lado, Lupe não suporta as pressões familiares e sociais, retira a
denúncia, ainda que no desfecho ela retome sua posição inicial. Desta forma, as
personagens de obras juvenis contemporâneas são portadoras de identidade própria e
completa e, como explica Martha (2009, p. 20), ―[...] se envolvem em situações que as
obrigam a refletir e a reformular conceitos que possuem a respeito de si mesmas e do
mundo‖, tal e qual se verifica com as protagonistas da obra galega.
Tratando de forma mais específica sobre o contexto em que as violências contra
a mulher acontecem, recorre-se aos apontamentos de Bourdieu (2005, p. 18-9),
revelando que a dominação masculina – uma construção social e uma forma particular
de violência simbólica – que reveste a sociedade patriarcal, ocorre em razão de um
conjunto de simbologias arraigadas no imaginário social; em um modo de pensar
pautado por dicotomias e oposições, como demonstra o trecho a seguir:

A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a
dominação masculina sobre a qual se alicerça: é a divisão social do trabalho,
distribuição bastante estrita das atividades atribuídas a cada um dos dois sexos, de seu
local, seu momento, seus instrumentos; é a estrutura do espaço, opondo o lugar de
assembleia ou de mercado, reservados aos homens, e a casa, reservada às mulheres; ou,
no interior desta, entre a parte masculina, com o salão, e a parte feminina com o
estábulo, a água e os vegetais; é a estrutura do tempo, a jornada, o ano agrário, ou o
ciclo da vida, com momentos de ruptura, masculinos, e longos períodos de gestação. O
mundo constrói o corpo como realidade sexuada e como depositário de princípios de
visão e de divisão sexualizante. Esse programa social de percepção incorporada aplica-
se a todas as coisas do mundo e, antes de tudo, ao próprio corpo, em sua realidade
biológica; é ele que constrói a diferença entre os sexos biológicos, conformando-a aos
princípios de uma visão mítica do mundo, enraizada na relação arbitrária de dominação
dos homens sobre as mulheres, ela mesma inscrita, com a divisão do trabalho, na
realidade da ordem social (BOURDIEU, 2005, p. 18-9).

Ainda que Bourdieu (2005) não trabalhe com o conceito de gênero na obra A
dominação masculina (2005), o estudioso acredita que o biológico e os corpos são
espaços em que as desigualdades seriam ―naturalizadas‖. A partir disso, o próprio o
assédio sexual ―nem sempre tem por fim exclusivamente a posse sexual que ele parece
perseguir: o que acontece é que ele visa, com a posse, a nada mais que a simples
afirmação da dominação em estado puro‖ (BOURDIEU, 2005, p. 30-1).

14
―[...] o seu ofuscamento nos primeiros intres nos que son conscientes do que lles aconteceu, a múltiple
vitimización que supón contarlles de novo o acontecido ás familias, á policía e aos avogados, o medo e o
estigma social á que se ven sometidas por parte dalguns compañeiros que, como no que viviu Medusa,
non se atreven a miralas‖ (FERREIRA, 2012, p. 101-2).

271
A ficção de Aleixandre ilustra de forma objetiva essa construção social, reflexo
da realidade de muitos países, em que, além de a mulher sentir-se vulnerável e
suscetível à violência física, após um acontecimento, como o ocorrido com Lupe e
Sofía, outras formas de violência continuam acontecendo e reforçam a estrutura da
dominação masculina ou da sociedade patriarcal. Dessa forma, concordamos com o
teórico já citado quando afirma que:

A dominação masculina, que constitui as mulheres como objetos simbólicos, cujo ser
(esse) é um ser-percebido (percipi), tem por feito colocá-las em permanente estado de
insegurança corporal, ou melhor, de dependência simbólica: elas existem primeiro pelo,
e para, o olhar dos outros, ou seja, enquanto objetos receptivos, atraentes, disponíveis
(BOURDIEU, 2005, p. 83).

Outra estratégia empregada pela autora na narrativa para ampliar e reforçar a


violência contra a mulher é a presença de histórias de outras mulheres próximas a Sofía
que sofreram algum tipo de agressão, confirmando a vulnerabilidade das mulheres,
especialmente em seus próprios lares, assim como a personagem Jéssica revelou ter sido
abusada sexualmente por seu pai adotivo e ao saber que sua tia era agredida pelo
próprio ex-marido. Além disso, o sentimento de esperança para recomeçar a vida após
aquele acontecimento também está presente na obra: ―– Disse-me Jéssica que acabou
esquecendo. Que voltaremos a desfrutar da vida‖ (ALEIXANDRE, 2008, p. 113,
tradução nossa)15.
Considerando os espaços representados na narrativa em foco, verifica-se que a
casa e o instituto são os lugares que mais aparecem nas narrativas juvenis, tal como
ocorre em A cabeza de Medusa e são esses alguns dos espaços que reproduzem as
construções de uma sociedade patriarcal.
No que confere a casa, percebe-se que esse local funciona como um refúgio para
as garotas. Contudo, em seus lares, elas não estão livres da violência simbólica e
cultural, arraigada nos discursos de alguns de seus membros familiares, tais como a avó
de Sofía, Pepa, ao dizer que as garotas devem usar saias mais cumpridas. Ou ainda, os
pais de Lupe, que não a apoiam na denúncia contra a violência.
Quanto ao instituto, notam-se aulas de diferentes matérias, dentre as quais estão
―as de Literatura (com uma interessante seleção de textos e autores e autoras da
literatura galega) e as de Latim que têm uma clara relação com os interesses últimos da
história‖ (Senín, 2009, p. 81, tradução nossa)16.
Por último, vale acrescentar que, embora Sofía e Lupe tenham tido muito apoio
dos gestores das escolas, de professores e de alunos quanto ao ocorrido com elas, a
violência simbólica e cultural também está representada nas atitudes de um grupo de
estudantes: ―[...] de Mauricio e seus amigos que riam delas, do Antonio e todos os que
pensam que as garotas com minissaia estão pedindo aos berros para que sejam

15
―– Díxome Jessica que acabou esquecéndoo. Que volveremos a gozar da vida‖ (ALEIXANDRE, 2008,
p. 113).
16
―as de Literatura (cunha interesante elección de textos e autores e autoras da literatura galega) e as de
Latín que teñen unha clara relación cos intereses últimos da historia‖ (SENÍN, 2009, p. 81).

272
violentadas, [...] de todos os que não compreendem que temos o direito de viver a nossa
vida‖ (ALEIXANDRE, 2008, p. 175, tradução nossa)17.

Palavras finais: fechamento e novas possibilidades


Regina Zilberman (2005, p. 179) explica que a literatura juvenil surge com
identidade própria, apresentando marcas específicas, mas não exclusivas. ―Uma dessas
marcas é a opção por uma narrativa em que os acontecimentos se desenvolvem no aqui
e agora do leitor, estando ausentes os elementos mágicos [...]‖. E complementa:

Característica a ser ressaltada nesse gênero é a presença de um protagonista de


preferência jovem, cuja idade não se diferencia daquela em que se encontra no
destinatário da narrativa. A eleição de personagens que espelham o leitor e representam
suas aspirações e problemas existenciais, o fato de que a ação transcorra no presente e
em espaço urbano conhecido (ou, ao menos, nomeado), e ainda a ausência de figuras e
eventos sobrenaturais remetem as obras classificadas como literatura juvenil è categoria
do realismo, afiançando sua identidade (ZILBERMAN, 2005, p. 179).

Sobre isso, mas em um contexto distinto, o subsistema literário juvenil galego é


hoje consolidado e apresenta inúmeras investigações realizadas, em particular, pela
professora Blanca-Ana Roig Rechou, da Universidade de Santiago de Compostela. São
décadas dedicadas a esses estudos e hoje há um acervo de artigos, trabalhos de
conclusão de curso, dissertações de Mestrado e teses de Doutorado que tratam do
Sistema Literário Infantil e Juvenil da Galícia. As parcerias com investigadores de
universidades de outros países aumentam ainda mais a visibilidade e a viabilidade das
pesquisas e das publicações periódicas dos grupos de investigação, como é o caso de
alguns já mencionados e também o da Rede Temática Las Literaturas Infantiles y
Juveniles del Marco Ibérico y Iberoamericanos (Rede LIJMI).
No que concerne à narrativa juvenil contemporânea selecionada para este artigo
– ademais de outros escritores, com estilos semelhantes, que integram o corpus da tese
de Doutorado, tais como: Agustín Fernández Paz, An Alfaya, Marilar Aleixandre, Fina
Cassadelrey, Santiago Jaureguizar e Marcos Calveiro –, apresenta um texto que
proporciona uma maior identificação com o receptor, além de tratar de questões, muitas
vezes, tabus e que foram silenciadas em obras juvenis durante muito tempo.
Os títulos produzidos para os jovens no século XXI – em especial a narrativa
juvenil, gênero com maior número de produção desde o marco inicial do subsistema
juvenil galego – apresentaram inúmeras inovações tanto em seus projetos gráficos
quanto em suas temáticas e estratégias textuais, como foi possível constatar por meio da
obra A cabeza de Medusa.
No que tange à obra A cabeza de Medusa, verificou-se que a narrativa, ademais
de tratar de um assunto delicado e complexo, rompendo com os próprios paradigmas do
subsistema literário juvenil, também desnuda uma sociedade patriarcal que condena a
mulher que sofreu uma violência sexual ao invés de acolhê-la. No entanto, a obra não
deixa de mostrar ângulos diferentes sobre o acontecimento central e

17
―[...] de Mauricio e os seus amigos que lle rin as grazas, do Antonio e todos os que pensan que as
rapazas en minisaia están pedindo a berros que as violen, [...] de todos os que non comprenden que temos
dereito a vivir a nosa vida‖ (ALEIXANDRE, 2008, p. 175).

273
[...] são oferecidos múltiplos olhares que mostram um amplo leque de diferentes
maneiras de atuar, de ideias e de opiniões diante da tripla violação – física, cultural e
social – a qual são submetidas as mulheres que sofrem uma agressão sexual
(FERREIRA BOO, 2013, p. 134, tradução nossa)18.

Ainda que se tenha abordado neste trabalho apenas a construção da temática


central, sabe-se que a obra de Aleixandre é repleta de elementos textuais que permitem
outras análises e discussões para novas possibilidades de divulgação dessa narrativa
galega.
Finalmente, nota-se que os escritores de literatura juvenil contemporânea galega
têm cada vez mais elaborado estratégias para aproximar o texto de seus leitores, pois
como já explicou Martha (2010, p. 121):

[...] a leitura de narrativas contemporâneas, destinadas ao público jovem, cuja temática


envolve acontecimentos problemáticos para os seres humanos na possibilidade de
perceber nos textos que lemos aquilo que nos incomoda ou nos agrada, podemos
pressupor uma das principais funções da literatura em tais narrativas: expressar, traduzir
e dar forma às emoções e aos sentimentos que nos enlevam e atormentam, muitas vezes,
ao mesmo tempo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALEIXANDRE, M. A cabeza de Medusa, 1. ed., ilust. Victoria Diehl, Vigo: Edicións
Xerais de Galicia, 2008.
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Kühler, 4. ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
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brasileira premiada (1978-1997). 2000. 681 f. Tese (Doutorado em Literaturas de
Língua Portuguesa) – Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Estadual
Júlio de Mesquita Filho, Assis.
FERREIRA BOO, C. Actualización dun mito nunha temática tabú: A cabeza de
Medusa, de Marilar Aleixandre. In: ROIG RECHOU, B. A. et al. (Orgs.) A narrativa
xuvenil a debate (2000-2011), Vigo: Edicións Xerais de Galicia, 2012. p. 97-111.
______. La representación de la familia en dos obras juveniles de Marilar Aleixandre:
Rúa Carbon y A cabeza de Medusa. In: FERREIRA BOO, C. et al. (Orgs.). La familia
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ANILIJ. Asociación Nacional de Investigación en Literatura Infantil y Juvenil/ELOS.
Asociación Galego-Portuguesa de Investigación e X/Juvenil/Centro de Investigação em
Estudos da Criança (Instituto de Educação-Universidade do Minho), col. Estudos 04,
2013. p. 125-142.

18
―[...] se ofrece una multiplicidad de miradas que muestra un abanico amplio de diferentes maneras de
actuar, de ideas y de opiniones ante la triple violación – física, cultural y social – a la que son sometidas
las mujeres que sufren una agresión sexual‖ (Ferreira Boo, 2013, p. 134).

274
MARTHA, A. A. P. Narrativas de Língua Portuguesa: temas de fronteira para crianças e
jovens. In: SIMPÓSIO MUNDIAL DE ESTUDOS DE LÍNGUA PORTUGUESA – A
LÍNGUA PORTUGUESA: ULTRAPASSAR FRONTEIRAS, JUNTAR CULTURAS,
2, 2009, Évora. Anais eletrônicos do II Simpósio Mundial de Estudos de Língua
Portuguesa – A Língua Portuguesa: Ultrapassar fronteiras, juntar culturas. Évora:
Universidade de Évora, 2009. p. 01-22. Disponível em:
http://www.simelp2009.uevora.pt/pdf/slt59/02.pdf. Acesso em: 25 jul. 2017.
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ROIG RECHOU, B. A. et al. (Orgs.). A Grey Backgroud in Children´s Literature:
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ZILBERMAN, R. Como e por que ler a Literatura Infantil Brasileira, rev. e ampl., Rio
de Janeiro: Objetiva, 2005.

275
Relações de poder em Breath, eyes, memory de Edwidge
Danticat: o agenciamento das personagens femininas
(Power relations in Edwidge Danticat‘s Breath, eyes, memory: the agency of
female characters)

Ana Flávia de Morais Faria Oliveira1


1
Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT)

anaflaviamt@gmail.com

Abstract: In Breath, eyes, memory (1994), Edwidge Danticat talks about the violence against
the women of Haiti and the collective trauma that this violence can cause. The narrative
portrays the serious consequences of three generations of women who underwent "purity"
tests, a practice that consisted of manual verification of the virginity of the Haitian girls. In
this way, the novel becomes a narrative space of questioning of hierarchies of gender
permeated inside and outside the society of Haiti. Using gender studies, this paper aims to
demonstrate how Danticat represents the relations of power and inequalities between male and
female genders and the agency of women in resisting these relationships and inequalities,
widening the ruptures of patriarchal hegemonic thinking.
Keywords: power relations; resistance, Edwidge Danticat.

Resumo: Em Breath, eyes, memory (1994), Edwidge Danticat fala sobre a violência contra as
mulheres do Haiti e o trauma coletivo que essa violência pode causar. A narrativa retrata as
graves consequências de três gerações de mulheres que eram submetidas a testes de ―pureza‖,
prática que consistia na averiguação manual da virgindade das moças haitianas. Dessa forma,
o romance se torna um espaço narrativo de questionamento de hierarquias de gêneros
permeadas dentro e fora da sociedade do Haiti. Utilizando os estudos de gênero, esse trabalho
tem o objetivo de demostrar como Danticat representa as relações de poder e desigualdades
entre os gêneros masculino e feminino e o agenciamento das mulheres em resistir a essas
relações e desigualdades, alargando as rupturas do pensamento hegemônico patriarcal.
Palavras-Chave: relações de poder; resistência, Edwidge Danticat.

Introdução
Neste trabalho, analisamos o romance Breath, eyes, memory (1994), de Edwidge
Danticat, objetivando mostrar como a autora representa as relações de poder e as
hierarquias entre os gêneros masculino e feminino no espaço do Haiti. O Haiti é uma
nação historicamente assolada por diversos problemas. De acordo com José Martins
(2015), o país atualmente vive à deriva porque foi alvo de sucessivas intervenções
externas, vivendo longos períodos de ditadura, e sofreu catástrofes naturais que
vitimaram grande parte da população, que, em razão dessas dificuldades, tem pelo
menos um terço do seu contingente vivendo fora do país.
Essas questões parecem se refletir diretamente na produção intelectual e artística
do país, pois, de acordo com Eurídice Figueiredo (2010), a literatura haitiana é
sobretudo a da diáspora, pelo fato de que, desde a ditadura duvalierista, a maioria dos
escritores haitianos se encontra no exterior devido às condições sociais, econômicas e
políticas do país. Edwidge Danticat, por exemplo, é refugiada política, atualmente vive
em uma comunidade haitiana em Miami, nos Estados Unidos, e escreve em inglês. Com

276
dupla nacionalidade – haitiana e estadunidense – a autora é uma das vozes mais
expressivas da diáspora nos dias atuais. Em suas obras, ela procura abordar muitos dos
problemas do Haiti, já que suas produções transitam entre histórias ficcionais e não
ficcionais, elucidando questões de gênero, raça, classe e nacionalidade.
Em Breath, eyes, memory, seu romance inaugural, Danticat retrata a condição
subjugada e subalterna das mulheres haitianas. A narrativa é centrada no trauma que
causam as variadas violências praticadas contra as mulheres inseridas em um contexto
de tradições patriarcais. A protagonista do romance, Sophie Caco, resultado de um
estupro, narra a experiência traumática de mulheres que eram submetidas a um teste de
―pureza‖, prática que consistia na averiguação manual da virgindade. A trama se
concentra nas histórias de Sophie e sua mãe Martine, tentando se recuperar desses
traumas causados pela violência sobre seus corpos: de um lado temos Sophie, que relata
as causas e o momento em que sua mãe inicia o teste e como isso impactou em sua vida;
por outro lado, é representada a tormenta vivenciada por Martine, em busca de curar
seus pesadelos causados tanto pelo teste, quanto pelo estupro praticado por um tonton
macoute1 do ditador François Duvalier, ambos na sua adolescência. Sendo assim,
vislumbramos parte da história da ditadura duvalierista, aparecendo como pano de
fundo na narrativa, nos levando a concordar com Yolanda Pierce (2010), que, em sua
análise, observou que o romance entrelaça as fortunas pessoais das mulheres haitianas e
a política maior de sua nação.
Nota-se, portanto, que Danticat dá enfoque às relações assimétricas de poder
entre os gêneros, uma vez que as mulheres aparecem ocupando uma posição hierárquica
de poder inferior à dos homens. Dessa forma, os estudos de gêneros serão o fio condutor
da nossa análise, pois procuramos demonstrar os danos que o pensamento hegemônico
pode causar para as mulheres que, desprovidas de quaisquer privilégios, buscam as mais
diversas maneiras de resistir e subverter às opressões impostas.

Desnaturalizando o gênero
Adriana Piscitelli (2009), ao discutir sobre a importância do estudo de gênero,
apresenta a posição marginal atual de mulheres, argumentando sobre a necessidade de
falar sobre o assunto na atualidade. Em seu estudo, a autora nota uma discriminação
feminina e uma atribuição de espaços sociais diferenciados para homens e mulheres,
ressaltando que os processos que conduzem a essas situações não são idênticos, pois
cada lugar tem sua particularidade, porém, a naturalização do gênero, como um
marcador da diferença é o que há em comum nesses processos.
Corroborando com a ideia, a escritora nigeriana Chimamanda Adichie (2015),
chama atenção para a condição marginalizada das mulheres na África, mais
especificamente em Lagos. Revelando sua experiência enquanto mulher na cidade,
Adichie fala que ela não pode ir sozinha a vários lugares, e se vai a um restaurante, por
exemplo, sua presença é ignorada pelos garçons – e ela sabe que eles não a ignoram por
mal, no entanto, sente um enorme desconforto em notar a naturalidade de como a

1
Tonton Macoute (literalmente "Tio do Saco", em crioulo haitiano, aludindo às figuras do "homem do
saco" ou "bicho papão") era uma força paramilitar haitiana criada em 1959, e que obedecia diretamente às
ordens do ditador daquele país, François Duvalier, 'Papa Doc', e de seu filho e sucessor, Jean-Claude, até
a saída do último do poder, em 1986.

277
maioria se comporta em situações como essa: ―toda vez que eles me ignoram, eu me
sinto invisível‖ (ADICHIE, 2017, p. 23).
Em uma ocasião, enquanto falava de gênero, foi interrogada por um homem por
que ela se via como mulher e não como um ser humano. Ela entende que isso ―é um tipo
de pergunta que funciona para silenciar a experiência específica de uma pessoa‖
(ADICHIE, 2017, p. 46), e explica que existem questões particulares que acontecem
com ela porque é mulher. Defendendo o termo feminismo como uma categoria distinta
de ‗direitos humanos‘ e específica das mulheres, Adichie afirma,

O feminismo faz, obviamente, parte dos direitos humanos de uma forma geral – mas
escolher uma expressão vaga como ‗direitos humanos‘ é negar a especificidade e
particularidade do problema de gênero. Seria uma maneira de fingir que as mulheres
não foram excluídas ao longo dos séculos (ADICHIE, 2017, p. 42-43).

Os argumentos defendidos tanto por Piscitelli quanto por Adichie reafirmam que
discutir sobre gênero é imprescindível na nossa atualidade, já que o assunto promove a
reflexão e problematização de parâmetros e normas hegemônicas presentes nas mais
diversas culturas e sociedades.
Maria Teresa Citeli (2001), em sua leitura sobre as teorias que tentam justificar
as diferenças pautadas em estudos científicos, diz que desnaturalizar hierarquias de
poder baseadas em diferenças de sexo tem sido um dos eixos centrais dos estudos de
gênero:

Estabelecer a distinção entre os componentes - natural/biológico em relação a sexo e


social/cultural em relação ao gênero – foi e continua sendo, um recurso utilizado pelos
estudos de gêneros para destacar essencialismos de toda ordem que há séculos
sustentam argumentos biologizantes para desqualificar as mulheres corporal, intelectual
e moralmente (CITELI, 2001, p. 132).

Citeli explica que teorias feministas foram assinalando que as afirmações das
ciências biológicas sobre os corpos feminino e masculino não podem ser tomadas como
espelho da natureza, ou seja, as diferenças entre homens e mulheres não são o que
determina comportamentos ou desigualdades sociais, por exemplo, pois a ciência, como
qualquer outro empreendimento humano, continua Citeli, está impregnada pelos valores
de seu tempo. Os trabalhos de Thomas Laqueur (2001) e Emily Martin (1996)
comprovam o quanto a ciência procurou legitimar as hierarquias de gênero.
Thomas Laqueur (2001) defende seu argumento por meio de uma abordagem
histórica, revelando que as afirmações sobre os sexos mudaram ao longo do tempo,
sendo a ciência a base utilizada como teorização. Em seu estudo, Laqueur observa que
só houve um interesse em buscar evidência de dois sexos distintos com suas respectivas
diferenças anatômicas e fisiológicas concretas entre o homem e a mulher, no momento
em que essas diferenças se tornaram politicamente importantes. Ele relata que somente
em 1879 alguém se importou em reproduzir um esqueleto feminino detalhado num livro
de anatomia para ilustrar as diferenças do esqueleto masculino, ―e quando essas
diferenças foram descobertas, elas já eram, na própria forma de sua representação,
profundamente marcadas pela política de poder do gênero‖ (LAQUEUR, 2001, p. 22).
Emily Martin (1996), na mesma linha, realiza um trabalho minucioso das
representações estereotipadas de gênero permeadas na linguagem científica. Martin
verifica que as figuras do óvulo e do esperma tais como são descritas nos relatos

278
populares e científicos da biologia reprodutiva, baseiam-se em estereótipos, nos quais os
processos femininos valem menos que seu correspondente masculino. Nota-se, portanto,
uma desvalorização nos processos fisiológicos das mulheres, enquanto que nos homens
há uma supervalorização. Seu trabalho revela que a linguagem metafórica empregada na
descrição desses processos é tendenciosa, pois, mesmo após novos estudos
reconhecerem uma igualdade de ambos óvulo e espermatozoide no processo de
fecundação, observou-se a continuidade da inferiorização da mulher em relação ao
homem.
Ambos Laqueur e Martin realizam uma análise dos determinismos biológicos na
tentativa de subverter as noções naturalizadas e reificadas que dão suporte tanto à
política, quanto a uma hegemonia masculina. ―A biologia – o corpo estável, não-
histórico e sexuado‖ (LAQUEUR, 2001, p. 18) – tem insistido em permanecer nos
discursos, legitimando as hierarquias de gênero, apesar das inconsistências das
mudanças culturais, tecnológicas e políticas. As teorias feministas, porém, procuram
alargar as rupturas desse pensamento hegemônico, e o texto ficcional, como veremos,
pode ser um forte aliado nesse processo, conforme asseveram Cláudia Nigro (2015) e
Divanize Carbonieri (2016).
Nigro argumenta que as relações entre os gêneros são relações assimétricas de
poder e desigualdade e que os estudos de gênero, incluídos nos estudos culturais,
apresentam-se cada vez mais comuns como uma das formas de analisar a condição
humana no texto literário. Para Nigro, portanto, a literatura é o espaço em que padrões
preestabelecidos ou discursos de tradição – defendidos tanto por homens quanto por
mulheres – sejam questionados. Nesse sentido, Nigro afirma que:

[...] a ficção quebra os signos e artefatos do considerado essencial e os recompõe com a


invenção, a fragmentação. Ao reavaliar os espaços ocupados pelo gênero na obra
literária, reavaliam-se os papéis das personagens femininas/masculinas e cria-se o lugar
para a ruptura (NIGRO, 2015, p. 16).

Carbonieri, pautada nos conceitos de Paulo Freire (1981), advoga sobre a


necessidade de se construir uma educação libertadora onde os estudantes pensem e ajam
de forma crítica sobre sua realidade, bem como sobre os desafios de diversas formas de
dominações e hierarquizações que os rodeiam. Para ela, o texto literário é capaz de
proporcionar conhecimento diferente e tão válido quanto o técnico-científico e despertar
uma visão mais crítica e humanizada nos leitores, sensibilizando-os para as diferentes
condições humanas existentes.
Conforme exposto, pudemos ver que as autoras sinalizam que o texto literário
pode ser uma das maneiras de compreender, interpretar e sensibilizar os/as leitores/ras
sobre as diferentes condições humanas. Partindo desse pressuposto, nota-se que em
Breath, eyes, memory, a escritora representa a experiência singular de mulheres,
objetivando revelar a existência daquelas que vivem em condições subjugadas e que
ainda são submetidas à práticas degradantes nos dias atuais, como veremos na seguinte
análise.

Agenciamento das personagens femininas


Estreitando nossa discussão sobre como os estudos de gêneros ajudam a
interpretar as hierarquias entre os gêneros masculino e feminino presentes na narrativa,
e como as personagens subvertem práticas e conceitos impregnados na sociedade, faz-se
279
necessário trazer para a presente análise os conceitos de Joan Scott (1995) e Judith
Butler (2003), a respeito do aspecto relacional nos quais a identidades de gênero são
construídas.
Na tentativa de responder como o gênero funciona nas relações sociais humanas
e como ele dá sentido à organização e a percepção do conhecimento histórico, Joan
Scott o discute como uma categoria analítica. A autora utiliza essa maneira porque
historiadores/as, em sua maioria, ao teorizar o gênero, permaneciam em quadros de
referência tradicionais das ciências sociais e utilizavam formulações estabelecidas e
baseadas em explicações causais universais. Scott explica que essas teorias tiveram um
caráter limitado e demasiadamente simplista. Para ela, o estudo de gênero não deve ser
feito de maneira isolada, mas temas como a sociedade, religião, raça e etnia, dentre
outros, necessitam ser considerados.
Butler também menciona as intersecções políticas e culturais do gênero,
mostrando que eles são social e culturalmente construídos. Estabelecendo uma crítica às
teorias feministas, uma de suas observações se refere ao problema político que o
feminismo encontra na suposição de que o termo mulheres denote uma identidade
comum. A autora alerta que a categoria ―mulheres‖ pode ser produzida e reprimida
pelas mesmas estruturas de poder por intermédio das quais busca-se a emancipação. Ela
afirma que ―mulheres‖ - ainda que no plural - tornou-se um termo problemático, passivo
de contestação porque se alguém ‗é‘ uma mulher, isso não é tudo que esse alguém é.
Ressaltando o caráter mutável do gênero, Butler afirma que:

[...] o gênero nem sempre se constitui de maneira coerente ou consistente nos diferentes
contextos históricos, e porque o gênero está em intersecção com modalidades raciais,
sociais, étnicas, sexuais e regionais. Como resultado, torna-se impossível separar gênero
de intersecções políticas e culturais nas quais é invariavelmente produzido e mantido
(BUTLER, 2003, p. 20).

Butler desconstrói o gênero base do discurso feminista, defendendo-o com uma


performance. Dessa maneira, o sexo previamente dado é um problema para a filósofa,
porque este não é fixo, nem um atributo da pessoa, mas uma ―relação entre sujeitos
socialmente constituídos, em contextos especificáveis‖ (BUTLER, 2003, p. 29), não
havendo, portanto, a existência de um corpo anterior ao social. Reelaborando a
afirmação de Simone de Beauvoir de que ―ninguém nasce mulher e sim torna-se
mulher‖ (BEAUVOIR, apud BUTLER, 2003, p. 58), Butler chama atenção para as
instabilidades do termo mulher, que deve ser entendido como um processo, como uma
prática discursiva contínua e aberto à intervenções e ressignificações.
Tomando por base essa concepção de gênero, percebe-se em Breath, eyes,
memory diversas performances desempenhadas por personagens femininas. O romance
retrata a história de três gerações de mulheres no Haiti: Ifé Caco, a avó; Martine Caco,
filha mais velha estuprada na adolescência; Atie Caco, irmã de Martine, que se
relacionava clandestinamente com outra mulher; e Sophie Caco, a neta e a narradora da
história. O teste de virgindade foi a experiência em comum entre essas mulheres. A
presente análise irá tratar do agenciamento das personagens Sophie e sua tia Atie.
Sophie Caco, resultado de um estupro, é criada pela tia Atie até a idade de 12
anos, e, após esse período, ela se desloca do Haiti para os Estados Unidos para viver
com a mãe, Martine. Aos dezoito anos, Sophie se apaixona por Joseph, um rapaz bem
mais velho que ela, e, por colocar a ―pureza‖ de seu corpo em xeque, com a

280
aproximação dessa figura masculina, a personagem é submetida ao teste pela primeira
vez:

―Onde você estava?‖ Ela bateu a cinta contra a palma da sua mão, suas linhas da vida
(linhas da mão) iam ficando mais e mais vermelhas. ―Ela pegou minha mão com uma
gentileza surpreendente e me levou para meu quarto. Lá, ela me fez deitar na minha
cama e me testou (DANTICAT, 1996, p. 84, tradução nossa).2

O excerto mostra o momento exato em que Martine inicia o teste com Sophie
porque houve uma quebra de confiança entre mãe e filha. Para Martine, sua filha só
teria sucesso na vida se se distanciasse dos homens, mantendo, principalmente, sua
virgindade intacta. A ascensão tão almejada por essas mulheres vinha atrelada à
―pureza‖ de seus corpos. Manter-se virgens, portanto, não só era encarado por Martine
como uma questão de honra para si e sua família, mas a garantia de dias melhores para
sua filha.
Miriam Grossi (2001) nos ajuda a entender essa visão, argumentando que
inúmeras sociedades se constroem em cima de valores e honra. A autora afirma que um
homem honrado, na nossa cultura ocidental, ―é aquele que tem uma mulher de respeito,
ou seja, recatada, controlada, pura, etc‖ (GROSSI, 2001, p. 12). Sendo assim, se o
homem não tem uma mulher que não possui essas características, ele perde sua honra.
Citando o trabalho de Claudia Fonseca, realizado no Brasil, Grossi nos chama atenção
para o fato de que a honra masculina depende exclusivamente das mulheres, e, por isso,
os homens tendem a controlá-las.
Como vimos, esse costume nocivo de submeter as mulheres a um rigoroso
controle moral, visando a honra masculina, é retratado na narrativa. A moça que não
preservava sua virgindade era desqualificada. Então, para evitar qualquer reprovação
desse pensamento masculino coletivo, as moças eram severamente controladas pelas
suas mães. A cruel verificação regular da intimidade dessas mulheres fazia parte do
pressuposto machista de que as mulheres necessitam ser fiscalizadas por serem
propensas ao erro.
Ainda Grossi nos ajuda a compreender esse comportamento, explicando que os
mitos ensinados em diferentes momentos da vida desenvolvem um papel importante ao
reatualizar os valores de uma cultura. Segundo a autora, por causa do grande mito de
que Eva comeu do fruto proibido, e ambos Eva e Adão foram penalizados, surge a ideia
de que as mulheres não são confiáveis e por isso devem ser controladas. Esse controle
sistemático é retratado por Sophie ao declarar que era semanalmente testada por sua
mãe, fato que a leva a tomar uma atitude radical, subvertendo, assim, mitos e
pensamentos hegemônicos. Vejamos qual a estratégia utilizada pela personagem:

Minha carne rasgou enquanto eu apertava o pilão dentro de mim. Eu podia ver o sangue
escorrendo lentamente sobre o lençol da cama. Peguei o pilão e o lençol sangrentos e os
coloquei em um saco. Ele se foi, o véu que sempre manteve o dedo da minha mãe de
volta cada vez que ela me testava. Meu corpo tremeu quando minha mãe entrou no meu
quarto para me testar. Minhas pernas estavam moles quando ela as puxou de lado. Doía

2
"Where were you?" She tapped the belt against her palm, her lifelines becoming more red, She took my
hand with surprised gentleness, and led me upstairs to my bedroom. There, she made me lie on my bed
and she tested me.

281
tanto que eu mal podia me mexer. Finalmente, eu falhei no teste (DANTICAT, 1996, p.
88, tradução nossa).3

O excerto deixa claro que a personagem tomou uma decisão drástica, com a
finalidade de se rebelar contra aquela prática, a qual ela ―chama de humilhação‖
(DANTICAT, 1996, p. 123, tradução nossa).4 A dor de ter sua intimidade invadida era
tamanha que Sophie não hesitou em mutilar seu próprio corpo com um objeto, para pôr
fim àquele cenário. No entanto, mesmo com sua automutilação, e, aparente liberdade de
seu corpo, Sophie não consegue se livrar dos traumas decorrentes dessa prática. Casada
e com uma filha de cinco meses de vida, Sophie realiza uma jornada à La Nouvelle
Dame (Haiti), a fim de curar as agressões inscritas em sua memória. Ela queria entender
por que as mulheres da sua família preservavam uma prática tão cruel, responsável pela
sua tormenta e que a fazia a odiar o corpo e a ter vergonha de mostrá-lo para qualquer
pessoa, inclusive para o seu marido. Conforme exposto no exemplo a seguir, o retorno
da personagem ao Haiti permitiu que ela enxergasse que existiam mulheres que não só
tinham a consciência das opressões que as castigavam dia após dia naquela sociedade,
mas que, apesar das circunstâncias, essas mulheres desenvolviam as mais diversas
maneiras de resistir às opressões. Isso fica muito evidente na fala de tia Atie, fazendo a
seguinte afirmação à sobrinha:

Homens haitianos, eles insistem que suas mulheres sejam virgens e tenham seus dez
dedos. De acordo com tia Atie, cada dedo tinha um propósito. Era a maneira pela qual
fora ensinada a se preparar para se tornar mulher. Ser mãe. Cozinhar. Amar. Cozinhar.
Cuidar. Cozinhar. Curar. Lavar. Passar roupa. Esfregar. Não era culpa dela, ela disse.
Seus dez dedos haviam sido nomeados para ela mesmo antes que ela nascesse. Às
vezes, ela até desejou que tivesse seis dedos em cada mão, então, poderia ter deixado
dois dedos para si mesma (DANTICAT, 1996, p. 151, tradução nossa).5

De acordo com o fragmento, pudemos ver que Danticat está chamando atenção
para a inferiorização do gênero feminino ao retratar as limitações sociais e políticas
dessas mulheres naquele contexto patriarcal machista. Conforme vimos, as condições
das mulheres haitianas eram tão degradantes que, além da pressão em manter sua
virgindade –, preservando a honra para seu futuro marido – elas, após o matrimônio,
eram designadas a uma posição secundária na família, de meras serviçais, cabendo a
elas a realização apenas dos afazeres domésticos. O trecho em que Atie relata a
circunstância na qual foi criada: ―era a maneira pela qual fora ensinada a se preparar
para se tornar mulher‖ mostra que a personagem tinha clareza de que a posição da
mulher naquele contexto era uma construção social. Conforme relata a personagem,

3
My flesh ripped part as I pressed the pestle into it. I could see the blood slowly dripping onto the bed
sheet. I took the pestle and the bloody sheet and stuffed them into a bag. It was gone, the veil that always
held my mother's finger back every time she tested me. My body was quivering when my mother walked
into my room to test me. My legs were limp when she drew them aside. I ached so hard I could hardly
move. Finally I failed the test.
4
[C]all it humiliation
5
Haitian men, they insist that their women are virgins and have their ten fingers. According to Tante Atie,
each finger had a purpose. It was the way she had been taught to prepare herself to become a woman.
Mothering. Boiling. Loving. Baking. Nursing. Frying. Healing. Washing. Ironing. Scrubbing. It wasn't
her fault, she said. Her ten fingers had been named for her even before she was born. Sometimes, she
even wished she had six fingers on each hand so she could have two left for herself.

282
desde muito cedo foi ensinada a se tornar mulher, o que naquela sociedade significava
ser ―pura‖ para o matrimônio, e realizar com eficácia as tarefas de casa, ou seja, ter seus
dez dedos.
Ainda, nota-se a delimitação do espaço que as mulheres daquela sociedade
deveriam ocupar pela representação dos verbos de ação: ―Boiling‖, ―Baking‖ e
―Frying‖. Em nossa estratégia de tradução, optamos por adaptar os respectivos verbos
em apenas ―cozinhar‖ porque todos eles se referem à diferentes maneiras de cozinhar e
ou preparar alimentos. Essa demarcação do espaço retratada na narrativa não só
restringe os lugares nos quais essas mulheres deveriam pertencer, mas também o que
elas deveriam fazer.
Essa noção limitada e inferiorizada de mulher não só foi percebida, mas também
refutada pela personagem, que subverte esse pensamento não se submetendo ao
casamento e se relacionando clandestinamente com Louise, a mulher que a ensinou a ler
e a escrever. As duas eram ― como café e leite, lábios e língua, dois dedos na mesma
mão, dois olhos na mesma cabeça‖6conforme relata Louise (DANTICAT, 1996, p. 98,
tradução nossa). O fragmento revela que, mais do que um caso amoroso às escondidas,
as personagens eram conectadas por uma convergência de pensamentos e ideias. Ambas
conheciam bem os parâmetros de mulher impostos no contexto em que viviam e juntas
lutavam contra eles, estabelecendo, assim, uma relação política, de companheirismo e
harmonia, tal como o leite e o café.
Ao representar tanto a personagem Sophie passando por um teste de virgindade,
quanto o conceito de mulher haitiana, segundo a visão masculina, Danticat está
questionando o pensamento hegemônico patriarcal, tal como as teóricas feministas do
patriarcado fizeram. No entanto, o momento em que a narrativa retrata Atie
reconhecendo a posição inferior da mulher e subvertendo essa noção se relacionando
com uma outra mulher, Danticat consegue transcender o significado de ―mulher‖ na
narrativa, representando seu caráter fluido como argumentado anteriormente por Butler.

Considerações finais
Com a criação do romance, Danticat questiona a condição subjugada de
mulheres haitianas que viviam sob a noção hegemônica biológica de gênero. Os estudos
de gênero foram o fio condutor da nossa análise que, enfatizando as relações
assimétricas de poder entre os gêneros masculino e feminino – nos levam a afirmar que
a condição de ser mulher no Haiti vinha com uma sobrecarga, regida pelo pensamento
masculino/patriarcal. Procuramos demonstrar os danos que esse pensamento masculino
pode causar para as mulheres que, através de diferentes maneiras, resistem às opressões
impostas.
A breve análise das personagens femininas nos mostrou que a noção de mulher
não é natural, mas culturalmente construída e que considerar as intersecções políticas e
culturais do gênero é fundamental na compreensão das variadas performances.
Conforme vimos, Sophie, quando submetida ao teste, estava morando nos Estados
Unidos, e, talvez, seja essa a razão pela qual a personagem opta por se casar e constituir
família. Tia Atie, por sua vez, inserida em um contexto social, político e cultural do

6
―We are like milk and coffee, lips and tongue. We are two fingers on the same hand. Two eyes on the
same head‖

283
Haiti, preferiu rejeitar o casamento como forma de subverter os valores e conceitos
daquela sociedade, assumindo, ainda que clandestinamente, a homossexualidade.
Através da análise podemos afirmar que as personagens tiveram reações distintas frente
a um problema, porém, elas apresentaram diferentes performances pelo aspecto
―relacional‖ em que os gêneros são construídos. Portanto, a desconstrução binária do
gênero conforme procuramos mostrar promove a emancipação intelectual e política no
que se refere à descolonização de hierarquizações de gênero tão presentes na atualidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Companhia das Letras, 2017 [2015].
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meio da literatura. In: ZOLIN-VESZ, Fernando (org.). Linguagens e descolonialidades
– Arena de embates de sentidos. Campinas-SP, Pontes Editores, 2016.
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baseado em papéis estereotipados masculinos e femininos. In: LASLET, B. (org.).
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Gênero. 1ª ed. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015.
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Realidade. Porto Alegre, v. 20, n. 2, jul/dez. 1995, p. 71-99.

284
De Juliana, Matilde e Juracis: um olhar sobre as
mulheres do universo literário de Dinorath do Valle
(About Juliana, Matilde and Juracis: a look at women of the literary universe
of Dinorath do Valle)

Vera Lúcia Guimarães Rezende1


1
Universidade Estadual Paulista (UNESP)

veralgrezende@gmail.com

Abstract: The present work deals with the narratives written by Dinorath do Valle carried out
by women. A teacher and writer working in the cultural scene of Northwest Paulista, Dinorath
do Valle also worked in newspapers and radio stations as a journalist and chronicler. This
communication focuses on some of its protagonists, women of free spirit, ladies of their
bodies, but doomed to tragic destinies. Dalcastagnè (2005) and (2012), sought to understand
the extent to which these narratives represent the author's critical view of society that, shaped
by patriarchal values, condemns and punishes those who escape the code of institutionalized
behavior.
Keywords: Woman; Protagonist; Narrative.

Resumo: O presente trabalho aborda as narrativas escritas por Dinorath do Valle


protagonizadas por mulheres. Professora e escritora atuante na cena cultural do Noroeste
Paulista, Dinorath do Valle atuou também em jornais e emissoras de rádio como jornalista e
cronista. Esta comunicação debruça-se sobre algumas de suas protagonistas, mulheres de
espírito livre, senhoras de seus corpos, mas fadadas a destinos trágicos. Amparados por
estudiosos da literatura feminina entre eles Dalcastagnè (2005) e (2012), busca-se
compreender até que ponto estas narrativas representam a visão crítica da autora em relação à
sociedade que, moldada por valores patriarcais, condena e pune quem escapa ao código de
comportamento institucionalizado.
Palavras-chave: Mulher; Protagonista; Narrativa.

Introdução
Professora e escritora atuante na cena cultural de São José do Rio Preto (SP),
várias vezes premiada em concursos literários nacionais e internacionais nas décadas de
70 e 80, Dinorath do Valle foitambém cronista de jornais e emissoras de rádio da maior
cidade do noroeste paulista. A rotina diária na sala de aula e nas redações, estreitou seu
contato com o dia a dia dos moradores de sua cidade, sobretudo os mais simples e
socialmente excluídos. Tais impressões, aliadas à infância pobre,se transfiguraram em
contos protagonizados pela gente simples da periferia urbana, ambiente que ela
conhecia bem conforme descreveu uma vez. ―Eu sou Dinorath, assim mesmo com th só
porque o tabelião quis. Nasci em Itápolis, cidade fundada pelo avô de meu pai. Apesar
dessa origem pioneira, sempre vivi em São José do Rio Preto, em casas com poço e um
só bico-de-luz.‖ (VALLE. 1976, orelha de livro O vestido amarelo)
Dinorath do Valle nunca fez faculdade, estudou até o antigo curso normal, atual
magistério, e se dizia uma autodidata. Sempre gostou de ler e por isso desde
criançavivia na Biblioteca Municipal onde leu todos os livros existentes no acervo, ―até
os de geografia! ‖, contava. O esforço pessoal e o talento natural para escrita fizeram da

285
professora uma exímia contadora de histórias sobre o dia a dia de moradores de sua
cidade; a rotina diária em sala de aula; críticas à situação de exclusão dos que viviam na
periferia, gente resignada com aposição que lhe coube numa época em que nenhuma
ascensão social lhe era possível. Dinorathfazia questão de se assumir como parte desta
realidade: ―Sou caipira, sou mulher de vila, nenhuma ascensão social há de me tirar
esses títulos‖ escreveu na orelha de seu primeiro livro publicado,O vestido amarelo pela
Editora Artenova.
O livro reunia 27 contos e ganhou o Prêmio Governador do Estado de São Paulo
de 1971. A obra, no entanto, só foi publicada em 1976 graças ao empenho do imortal
poeta e novelista Odylo Costa Filho. No trecho a seguir impresso na orelha do livro,
elerevela os detalhes sobre a descoberta da revelação literária daquele ano.

Que força de invenção! E que sabença de escrever, de criar e recriar vida! [...] Só este
ano vim a saber que, apesar de sucessivos prêmios, Dinorath ainda não encontrara
editor. Vai daí sugeri a Álvaro Pacheco publicar este livro em co-edição da Artenova
com a Secretaria de Cultura de São Paulo. E um dia destes Dinorath apareceu no Rio,
veio à nossa casa, jantou conosco. É uma caipira!

Em resenha crítica sobre O Vestido Amarelo, Santos Silva destacou a agilíssima


e surpreendente linguagem derivada do que ele chama de ―situação de fala‖ enquanto
expressão da língua viva.

Entendo por situação de fala aquela circunstância própria da língua viva, cujas
determinações são dinâmicas, diversamente variáveis e, portanto, em contínua
mudança. A situação de fala caracteriza-se, com outras palavras, pela incorporação da
linguagem em todos os seus aspectos: a linguagem verbal em si mesma, os seus agentes
humanos integralmente considerados (falante e ouvinte), as circunstâncias de espaço e
tempo presentes no ato da comunicação, a gestualidade ou a mímica, os desvios
emotivos, etc.(SANTOS SILVA. 1980)

O crítico destaca a técnica narrativa da professora Dinorath do Valle por meio de


diálogos impregnados de linguagem coloquial e sem a mediação do autor culto
preocupado com a escrita nobre, mas adequados às personagens e ao mundo em que
vivem. ―Este procedimento, que minimiza a intervenção autoral, parece explicar a
variedade estilística dos registros dialogais bem como a tendência para pequenos
quadros dramáticos, como em linguagem de teatro‖ (SANTOS SILVA. 1980).
Além de contos Dinorath do Valle publicou também romances e livros
infantispelos quais foi agraciada com 13 prêmios nacionais entre eles o 1º lugar no II
Concurso Nacional de Contos do Paraná, categoria estreante em 1968 e o Prêmio
Governador do Estado de São Paulo em 1971.O reconhecimento internacional veio com
o Prêmio Casa de Las Américas, em Cuba, pelo romance Pau Brasil no ano de 1982.
A escritora foi saudada por críticos como Fausto Cunha: ―Dinorath chega a ser
um caso extravagante em nosso meio literário, pois continuava até agora pouco menos
que uma desconhecida, apesar de haver ganho diversos prêmios nacionais e
estrangeiros‖1. Para Assis Brasil, ela foi a maior revelação de ficcionista da época,
―naquela faixa estreita em que o escritor interfere no código linguístico, para criar a sua

1
As críticas aqui reproduzidas foram publicas nas orelhas do segundo livro de contos de Dinorath do
Valle, A idade da cobra lascada, de 1982.

286
linguagem artística e uma nova realidade‖. Torrieri Guimarães destacou que ―Dinorath
do Valle com seu texto fluente, rico em imagens ajustadas ao fluxo narrativo, sem
exageros, com uma linguagem moderna e dinâmica, dá uma nova demonstração da
grande escritora que a crítica já consagrou‖.
Para além da forma de narrar histórias, esta comunicação debruça-se também
sobre algumas das personagens do universo literário de Dinorath, mulheres de espírito
livre, senhoras de seus corpos, mas fadadas a destinos trágicos. Adúlteras ou prostitutas,
elas buscam o prazer sem culpa num ambiente dominado pela pobreza, amantes casuais
e maridos submissos.Busca-se compreender até que ponto elas representam a visão
crítica da autora em relação à sociedade patriarcal que condena e pune quem escapa ao
código de comportamento institucionalizado.

Juliana
Protagonista do conto ―Língua Estrangeira‖ publicado em O Vestido Amarelo,
Juliana é a filha única de Seu Gusmão e Dona Ciça, que acabou de tirar o diploma do
grupo escolar quando um enorme baú é entregue na sua casa.

Foi Seu Gusmão quem começou. - É pro enxoval de Juliana. [...]


Menina, se viu de manhã pra tarde dona de mala-de-enxoval enchendo o vazio do
quarto em casa com nada de mobília, feita só de claros, de passagens, de xadrez de
cobertor, de guarda roupa antigo com poucos vestidos, escassa roupa-de-baixo, entulhos
de paletós de homem, capas de boiadeiro, cobertores velhos e sacos de farinha lavados e
dobrados em pilhas macias. (VALLE, 1976. Pg. 117-118)

As palavras do narrador onisciente sinalizam que o conto combina duas


histórias, uma à mostra e a outra oculta. Elas descrevem mais do que a rusticidade do
ambiente e sugerem a angústia de Juliana diante de um destino já traçado pelo pai: um
futuro casamento sobre o qual não lhe é dada chance de se manifestar.Aliás, Juliana não
tem direitos nem sobre os próprios cabelos, ― - Cabelo não pode cortar, quebra a
promessa de parto difícil‖, repete a mãe enquanto apara as pontas dos fios na lua quarto
crescente. (Pag. 118).
A tensão surgecom a chegada daparenta de Minas Gerais, convocada para iniciar
Juliana nas artesdo crochê, costura e bordado. A dentadura frouxa de Dona Eulália, os
erres gordos da fala mineirada e as rugas do pescoço tingidas de poeira incomodam a
protagonista, ―... a velha não se lavava. Chegando alegou cansaço, deixou sem uso a
água prevenida. Oito dias depois ainda em dúvida se molhava ou não a pele arisca‖
(pag. 119).O aprendizado não tem data para acabar, pois Dona Eulália avisa quepode
ficar tanto oito como oitenta dias. Juliana é habilidosa, o difícil é tolerar a tia.

Dividida: velha antipática, trabalhos bonitos, suportava a dona pelo segredo de seus
dedos. Naquele dia pegou o retalho, talhou na vertical entre dois fios prendeu na
almofada, puxou um, outro, outro, dobrou cada. Uso na agulha fio do tecido, passou-a
entre cada desfiado, acima e abaixo. Repetiu com outros, conforme. No final não havia
furo, só o acerto, o acabamento. Ficou com o cerzido na mão, maravilhoso, jeito
invisível de camaleão nas folhas (pano verde). Aprendeu a restaurar (foi a magia mais
bruxa da mãe dos cerzidos). Sabia todos de reforço, buraco, alinhavo, tules. (VALLE,
1976. Pag.120)

287
As aulas de enxoval seguem e se em primeiro plano, Juliana se mostra dócil e
obediente, o narrador logo dá pistas de que em seu interior, a menina amarga
sentimentos reprimidos que não demorarão a aflorar. Passa a ter aulas de corte e
costurafora e começa ocurso de admissão para o ginásio. Qual uma lagarta, Juliana se
transforma.

Saía cedo da aula, chegava tarde em casa. Rondava a padaria do Vendra, a porta única.
Lá dentro cestos de vime, pães mortos. E um Horácio cor de máquina Singer, olhos
preguiçosos. Juliana entrava, pedia um pudim (amarelo de retrós), ficava comendo
lentamente o açúcar farinhento: - Vamos conversar? Convidava. [...]. Dos encontros
restavam rodelas azuis como aplicações em colcha que escondia na gola do vestido.
Horácio se inaugurava tateando, movido pelo dever de moço em oportunidade.
(VALLE, 1976. Pg. 121-122)

O pai proíbe as aulas de corte e costura, nunca mais beijos de Horácio. Juliana se
fecha em linhas e agulhas de crochê e um asco cada vez maior pelatia. Reclama com a
mãe que pede caridade com a irmã de Seu Gusmão. A ruptura iminente é adiada com o
surgimento do sobrinho de um vizinho. ―Antonino olhou Juliana, os olhos enrabados
dela, foi fácil tomar suas mãos bordadeiras, sábias de agrado em pano. Sentiu o calor
das palmas rabiscadas, sua nervosa volúpia de, sendo borboleta, romper casulo‖ (Pag.
123). Juliana começa a se dedicar ainda mais ao enxoval, o casamento épassagem para
liberdade. De repente o namoro murcha, o potencial marido muda de cidade. A
protagonista retoma a lida com o enxoval e a arrumação do baú, até que uma tarde o
casulo da lagarta se rompe.

- Velha porca, cadela! Falou. A tia hibernou surpresa, estágio curto. Foi carregada ao
quarto gemendo acesso. D. Ciça achando impossível. Mas contaria ao Gusmão. Não foi
preciso. Quando ele entrou pela porta da sala Juliana saída pela do quarto (pé no pedal
de máquina). Pensou mais um pouco voz audível.
- Filho da puta! Irmão da cadela! (VALLE, 1976. Pg. 125)

Não houve chá, benzedura ou defumação que fizesse efeito. Juliana gritava
convidando, erguia a saia, ria enlouquecida. Fugia de casa,mas voltava dali a alguns
dias. Um dia não voltou mais. Ao abrirem o baú, deram com o enxoval todo
desmanchado. Bordados e franjasarrebentados, Julianase viu livre para viver o amor
com quantos homens quisesse.

Matilde
Em ―Margarida do Castelo‖ também do premiado livro O Vestido Amarelo,
Matilde é a esposa devotada de Juvenal, representante comercial que passa metade da
semana viajando. O título remete à uma velha cantiga de roda e outras mais pontuarão o
conto, num recurso estético que contrapõe o universo infantil e a vida nada pueril da
protagonista. O fluxo da narrativa sugere a métrica das quadrinhas folclóricas.

A casa impecável, chão de espelho, vidros polidos, tapetes penteados. Na sala, os


cinzeiros – às dúzias – empilhados e soltos, lugares imutáveis: o rosa de murano no
mármore cinza, os de metal nas mesinhas portáteis para cair e não quebrar, o de
estimação – quem deu mesmo? – forado alcance dos cigarros, cinzeiros de não cinzar.
Mas usavam, sujavam tudo, os veados.

288
Veadinho quer comer? Coma aí.
Veadinho quer lavar. Lava aí.
Veadinho quer fugir? Fugiu.
Pega o Veadinho! (VALLE, 1976. Pg. 117-118)95)

Os veados são estudantes que Matilde recebe no quarto de hóspede ou no sofá da


sala quando o marido está fora, ―Aprendizes, bons aprendizes.‖ (Pag. 96). Umarranjo
conveniente até o dia que Juvenal anunciaque está cheio de viajar. A figura do narrador
onisciente cede lugar à narrativa em modo dramático. A aflição de Matilde é nítida.

- Vou resolver esta situação. Já dei o ultimato, entreguei hoje o pedido. Por escrito.
Dezesseis anos de viagem, acho que chega. Produzi muito, mais do que esperavam.
Ninguém é insubstituível‖
- Parar? Não vão deixar. Você é um sistema! Onde vão achar outro tão relógio? Onde?
- O Pascoal, indiquei o Pascoal, se não é, vira relógio. Eu virei! Está doido pela
promoção, se enfia em qualquer buraco por causa dela. Dou o problema com solução: o
Pascoal pega o meu posto, eu fico com o do Tavares que vai para o Rio Grande. As
comissões que se danem, dá muito bem para vier sem as comissões. Arreio a mochila...
Rataplan, do arrebol...
Escoteiro vendo a luz... (VALLE, 1976. Pg. 97)

Para Matilde o casamento era como brincar de casinha, cada um no seu papel de
pai e mãe, sem filhos, comida na mesa, roupa lavada, trabalho fora, dedicação. ― Olhou
a cara dele: segunda, terça ainda dava. Mas quinta, sexta? Todo o dia? Não, antes
prevenir do que remediar‖ (Pag. 97). Disposta a manter o arranjo de sempre, se arruma e
vai ter com o chefe de Juvenal. Explica sem rodeios que a mudança não convém a
ninguém.

- Vai fazer sacrifício à toa, gosta de fazer o que faz e faz direito, é pontualíssimo. E eu
gosto de ficar só nos fins de semana.
- Deve estar habituada também.
- Estou (descruzou a perna, o vestido subiu). Eu não queria interferir, pensei muito antes
de vir, não sabia como ia ser recebida ou entendida (tirou um cigarro, não achou o
isqueiro, ele se levantou e foi acender por cima do decote dela que era um vale).Ele
sorriu, era quase bonito:
- Estou procurando ser inteligente e entender. A senhora prefere que ele viagem?
- Prefiro. É melhor para todos. [...]
Galinha gorda,
Feijão sem sal,
Que gosto tem?
De te pegar! (VALLE, 1976. Pg. 100)

As intervenções do narrador onisciente em meio ao diálogo são recursos


narrativos que revelam a linguagem corporal silenciosa de ambos. Naturalmente
Matildeconsegue o que quer e o chefe da Juvenal, primeiro homem de meia idade
conquistado, passa a fazer parte do seu grupo de aprendizes sexuais. Mas logo ela enjoa
do aluno, para o qual não temo que ensinar. ―[...] ele era apenas curioso, diferente,
adulto. Nunca pesquisava – como os meninos – sabia tudo de cor e salteado, não tinha
pressa, gozava mais o ritual do que o ato em si‖ (VALLE. Pag.101).O chefe não aceita
ser dispensado e exige novos encontros, Matilde, mestre em sedução, está irredutível.

289
- Mas eu gosto de você! Fiz alguma coisa errada?
- Não. Você é perfeito. Eu sou assim...
- Assim como?
- Assim, Acabo como começo.
- O Juvenal você aturou tanto tempo, isso não tem lógica!
- O Juvenal é marido. Essa durabilidade não tem nada a ver com o amor, tem lógica
sim!
- Mas faz amor com ele...
- Só quando não consigo negar sem ofender. Depois ele não perturba, e é o marido, o
vértice... [...]
Anambu, anambu
Quem sai és tu,
Pelo rabo do senhor Tatu...(VALLE, 1976. Pg. 103)

Livre do chefe de Juvenal que, por sua vez, continua viajando toda a semana,
Matilde, qual margarida do castelo, segue no centro da roda atraindo seus cavalheiros ao
apartamento no alto do ―prédio de pastilhas com seus quadradinhos de janelas, a sua lá
em cima, minarete de torre soltando Bach pelo cortinado‖ (Pag. 94).A narrativa
caminha para um desfecho surpreendente e trágico. Um crime passional às avessas.

Ela conseguiu vê-lo, incrédula, era uma cena de ficção barata, o André apreciando a
imobilidade de seu busto nu, lixadinho e bem-acabado como uma escultura clássica,
emergindo de outro corpo, siameses, cor e textura de meia de seda. Assustou-se quando
viu que ele suava.
– Sua vagabunda!
Arregalou os olhos, o estudante fechou os seus. Entre um ato e outro, a bereta cuspiu
barulho. [...]
Lá em cima
Do piano
Tem um copo
De veneno,
Quem bebeu
Morreu!
- Fui eu?(VALLE, 1976. Pg. 105)

Juraci
São três as Juracis da obra literária de Dinorath do Valle. A primeira é
coadjuvante do conto ―Ercília‖ de O Vestido Amarelo, de 1976. A outraé protagonista
do conto ―Confirmação de Ogã‖, do livro Idade da Pedra Lascada, de 1982. E a
terceira é personagem do romance Pau Brasil, de 1984. Elas têm em comum o nome de
origem tupi guarani que, segundo o Dicionário Etimológico de Nomes e Sobrenomes, é
resultado da junção das palavras jura (concha) eacy (mãe): mãe dos conchais. Difícil
saber se a opção de Dinorath por este nome para as personagens esteja relacionada com
seu sentido, mas o fato é que duas delas são mães que perdem seus filhos únicos em
acidentes semelhantes. Já a terceira Juraci é uma dama de um antigo bairro boêmio de
São José do Rio Preto.
O texto ―Ercília‖ tem como matéria fatos para-reais que se passam na periferia
urbana. Narra as andanças da menina do título, pela vizinhança da vila em que morae
até o momento em que Ercília se aproximar da casa de Dona Juraci. ―Casa dela até na

290
sala tinha planta: avencas, antúrios, bambuzinho, folhas brilhando. Mandava a
empregadinha polir até as folhas enquanto fazia plantão esperando os caminhões sem
horário firme, grandes, tratados, bonitos. Como seus homens‖ (Pag. 24. 1976). A
despeito disso, Dona Juraci tem marido, Juvenal, e um filho, Durval sempre muito
limpo, delicado com lencinho no bolso. Na serraria,Ercília avista o menino e o chama
para brincar na carroceria de um caminhão estacionado em frente à casa dele.

O caminhão se moveu como um bicho, arrancou sem se mexer antes, sem rosnar, de
uma vez, total e pronto, por encanto, voou em solavanco, pra frente, malhando o ar em
vento em soco-de-lutador, derrubou todos de mão solta (pé não agarra). Caíram que
nem fruta madura na malvadeza de cortar árvore. O chofer disse que avisou: ―desapeia
que vai sair! ‖ Ninguém ouviu. Só se lembravam do mundo virado, o chão subindo
emcéu, poeira encapando os olhos, a boca em buraco babando amargos. [...] sentada viu
o Durva também, tão perto que podia tocá-lo com as mãos, um pé calçadinho sobre o
outro, caído, educado, dormindo como se no berço. Nem tinha se sujado. (VALLE. Pg.
26. 1976)

A menina Ercília estranha a barriga achatada do garoto morto, nivelada nos


braços, bolso da calça manchado. Logo avista Juraci aos gritos ―bonita demais, olhos de
placa de entulho, de aqui-jaz, orai por ele‖. A despeito da tragédia Juraci é condenada
pelos moradores do lugar que aparecem na narrativa em modo dramático.

- Dona Juraci devia se enfiar uma bala!


- Morreu na hora. Daqui aqui ficou moído. O molhado no bolso era bala de licor.
- As crianças tiveram aviso: cataram coroas, levaram porção pro lugar.
- Nunca prestou, sempre atrás de homens, a cadela!
- Castigo! Ele nem brinca na serraria! Está mais na vó do que na mãe...
- Grande mãe! (VALLE. Pg. 26. 1976)

A Juraci personagem do romance Pau Brasil (1984) vive com Seu Nives e tem
um filho de nome Alberico, amigo de Doralice, narradora implícita da história que se
passa em uma vila na periferia de São José do Rio Preto. São relatos da infância
miserável da menina, filha de um viajante vendedor de tecidos que bebe e bate na
mulher e nas crianças da família. Além de gostar de brincar com Berico, Doralice
admira os pais dele.

Nives amava ternamente Juraci. Era um casamento sem astúcia nem enganos. Havia
amizade e estima. Ele a aceitava como mulher e como pessoa, não lhe dosava os
sentimentos, nem fazia cobranças ou diagramava que tipos de necessidades teria. Não
lhe devassava pensamentos com inquisições nem castrava ou subvertia seus impulsos.
Sei disso porque, certa feita, Seu Nives apareceu fora de hora, vindo do serviço, sabe lá
Deus para quê. Eu estava perto da serraria ajuntando parafusos, Nives chegou perto da
casa viu o caminhão estacionada entre a mangueira e o muro, era um Mercedão com
chapa de Marília, verde-fosco carregado de madeira. Nives parou a menos de vinte
metros, consultou-se e regressou pelo mesmo caminho, sem mudar a compostura ou
demonstrar fraqueza e aflição. (VALLE, 1984. Pag.38)

O olhar da narradora revela que dona Juraci, mãe extremada e esposa dedicada,
se relacionava com outros homens sem que isso incomodasse o companheiro. Ele se
mantém ao lado dela apesar do acidente que vitimou Berico enquantobrincava com
Doralice na carroceria de um caminhão estacionado na vizinhança.

291
Foi como se tudo criasse asa, gente também. Dora e Beri fazem um corso no ar,
pinchados fora do palanque. [...] Extorquida do lugar, deslocada, Dora está esfregando
os olhos cheios de terra, corpo logrado, abordoado, combatido. Espavorida, estuporada,
tremendo e chorando embutidos gritos e ais. Desancada. Olha ao lado e vê Berico.
Deitado, olhando firme para ela, a boca cheia de espumas brancas, escorrendo até na
orelha Olhar astuto, cauteloso, sagaz e sonso, subdoloso. Angelical, padecedor, doente.
[...] o tronco de Berico, abatido pelo dragão Stachini& Cia Ltda, achatado aluído, peito
desfeito, sovado como um pão. (VALLE, 1984. Pag.109)

A morte de Berico é uma entre as muitas tragédias da vida da narradora


Doralice. Seu Nives supera o luto trabalhando dia e noite na marcenaria, Dona Juraci
nunca mais foi a mesma, ―deu de varrer e revarrer com piaçaba tudo quanto foi terreiro
do quarto à cozinha (Pag. 33)‖.
No conto ―Confirmação de Ogã‖, do livro Idade da pedra lascada, Juraci não
tem marido nem filho, vive no Eldorado, bairro boêmio que abrigava a zona de
prostituição em São José do Rio Preto. Sua casa tem cortinas de filó e fitas nas janelas, é
a única pintada de branco. Juraci recebe na porta os clientes, geralmente caminhoneiros.

Juraci corre, desdormida, na camisola furta-cor de organsim, caso exista. E farfalha


babados em soprilho, soltando-os entre as coxas morenas. É toda um chocalho de risos,
folgas, bel-prazer, encanto e festa. Mulher cifrada de felicidades, rainha do Eldorado,
onde atingiu o ápice dos mistérios da carne, dos almejos, das veementes aspirâncias.
Vive apetecida, complacente, amante. Tem tudo que aspira e preza: o ágil leito
desenvolto, a predileção dos amados, a paixão e o galanteio, o idílio e a simpatia.
(VALLE, 1984. Pag. 40)

O conto narra um dia na vida desta Juraci que gosta dorodízio de homens em sua
casa onde o erótico, o lascivo e o impudico são suaves virtudes. Desta vez quem chega é
Jorlando que a enche de lembranças de lugares: rendas de Nova Jerusalém, um xale de
Maceió, perfumes de raízes, pinhas de prata, tiaras de conchas. Juraci retribui com
prazer entre os lençóis brancos da cama de casal.

Juraci não faz amor a marchas forçadas, é uma chinesa presciente, desabrochando cada
pétala no tempo certo. Não guia Jorlando, ampara e arrecada, amplia e ajusta, colhe e
desembaraça, ensarilhando pernas e fôlegos, matando sedes antigas e destravando
encabulados anseios. O gozo é um desfrute bem fruído, um aplauso ao amor, um
regozijo que deleita o homem e a mulher igualmente.(VALLE, 1984. Pag. 41)

O caminhoneiro se despede no dia seguinte de manhã. Juraci cumpre as


obrigações religiosas para com a Umbanda, pois quer a confirmação de ogã. Leva doce
de carambola para a vizinha e observa o bairro. ―São onze horas, o Eldorado está sendo
varrido, espanado, lavado, areado. A mulherada recolhe água nos tanques, os canos
secam à tarde. Falam de coisas triviais. ‖ (VALLE. Pag. 42). A movimentação de
homens só recomeça depois do jantar quando as mulheres se enfeitarão de novo para
recebe-los. Entre elas a faiscante legenda do Eldorado rio-pretense, Juraci, que se
enfeita e baila ao som da vitrola empolgando os clientes.

Conclusão

292
Quando estreou no mercado literário brasileiro em meados dos anos 70,
Dinorath do Valle ironizou o fato de estar sendo publicada tardiamente. ―Ninguém quis
me publicar em livro até o mês passado. [...] Sou dos ―novos‖. Com 49 anos sou o broto
literário do Brasil. Que os novos se cuidem com o atraso! ‖ (VALLE. 1976, orelha de
livro Vestido Amarelo). Vivendo no interior, a 443 quilômetros de distância da capital,
São Paulo, de nada adiantaram as premiações em concursos literários. O que fez a
diferença foi o empenho da professora em enviar originais a editores e críticos literários,
até que um deles, Odylo Costa Filho, lembrou-se dela como uma das finalistas de um
concurso de contos do Paraná.
Além de estar longe do eixo Rio-São Paulo, Dinorath do Valle sabia que a
carreira literária é uma atividade predominantemente masculina. Por isso tomava alguns
cuidados: ―Eu sempre coloquei nos concursos que eu participei, pseudônimo de homem
porque seguro morreu de velho. Todos os juízes são homens! Mulher é assim como se
fosse um preto na Globo: só de vez em quando. Eu sempre pus um pseudônimo:
Sartoris‖, revelou em depoimento gravado em 2003.
De fato, pesquisa desenvolvida por Dalcastagnè (2012) mostrou que os homens
predominam como autores no mercado editorial brasileiro. Dos 165 livros publicados
pelas três maiores editoras entre os anos de 1990 e 2004, constatou-se que 72,7% eram
de autoria masculina. A pesquisa apontou também a predominância de personagens do
sexo masculino nas obras analisadas, 62,1% contra 37,8% do sexo feminino.
Para criar personagens, o artista se inspira na realidade mas imprime sobre elas
sua imaginação criadora, transmutando-os em seres ficcionais capazes de serem
identificados pelo leitor. Os contos analisados neste trabalho fornecem uma
representação da condição da mulher brasileira do interior do maior estado brasileiro,
sobretudo da periferia urbana.
Oprimida pela família que espera dela apenas o casamento, Juliana enlouquece.
Senhora do seu corpo e do seu prazer, Matilde é vítima do ciúme de um dos seus
amantes. As Juracis esposas e mães, que se deitam com outros homens que não seus
maridos, perdem os filhos atropelados. É como se a vida punisse as mulheres que fogem
ao comportamento esperado pela sociedade. Por último a Juraci prostituta, a única com
uma trajetória linear, sem sobressaltos, talvez porque se dedique à vontade ao prazer
com seus homens, longe da vista e do julgamento da sociedade moldada sobre valores
patriarcais.
Coutinho destaca que a ficção é produto da imaginação criadora, mas como toda
arte tem raízes na experiência humana (2015. Pag.50) O destino trágico de quatro das
cinco personagens femininas abordadas neste artigo, sugerem uma visão realista da
sociedade da época em que foram criadas por Dinorath do Valle que, na condição de
professora e jornalista, podia observar de forma privilegiada a realidade das relações
humanas, tanto na sala de aula quanto nos jornais em que trabalhou escrevendo sobre os
fatos da sua cidade.Por mais que a experiência de vida influencie o autor, a literatura só
faz sentido quando ele submete a realidade à sua capacidade criadora. E no caso
daDinorathdo Valle escritora,a força de sua literatura está menos em seu engajamento
político social mas principalmente na organização estética das narrativas e na
verossimilhança das personagens, tornando a ficção igual à vida.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COUTINHO, Afrânio. Notas de Teoria Literária. 2ª ed. Petrópolis. Vozes, 2015

293
DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea: um território
contestado. Vinhedo. Editora Horizonte, 2012.
SILVA, Antonio M. S. O trabalho com a fala. Suplemento Cultural de O POPULAR.
(172). Goiânia, 1980, p. 1.
VALLE, Dinorath do. Depoimento história de vida, [julho de 2003]. Entrevistadora
Vera Lúcia Guimarães Rezende. São José do Rio Preto/SP. 2 cassetes sonoros (120
min)
________. O vestido amarelo. São Cristovão: Artenova, 1976
________. Idade da Cobra Lascada. São Paulo: Hucitec, 1982.
________. Pau Brasil. São Paulo: Hucitec, 1984.

294
Gênero e violência em o remorso de baltazar serapião1,
de valter hugo mãe
(Gender and violence in o remorso de baltazar serapião, de valter hugo mãe)

Penélope Eiko Aragaki Salles1


1
Universidade de São Paulo (USP)

penelope.eiko@gmail.com

Abstract: Gender inequalities reinforce an unfair social structure between men and women,
which validates the superiority of one over another. And as a way of maintaining a status or
order, they assign unequal powers to genders and a different distribution of rights and duties.
Even in environments where equality is assumed, it is possible to find the difference in the
distribution of power between men and women. In societies where this inequality
predominates, violence against women becomes a recurring practice. With this in view, the
present work intends to analyze how violence against women is constructed and justified in
the novel o remorso de baltazar serapião of the Portuguese writer valter hugo mãe. To analyze
these aspects, we begin with the studies of Joan Scott, Judith Butler and other researchers on
the subject.
Keywords: gender; violence; woman; valter hugo mãe; Contemporary Portuguese literature.

Resumo: As desigualdades entre os gêneros reforçam uma estrutura social injusta entre os
homens e mulheres, que validam a superioridade de um sobre outro. E como forma de
manutenção de um status ou ordem, atribuem poderes desiguais aos gêneros e uma
distribuição diferente de direitos e deveres. Mesmo em ambientes em que se pressupõe
igualdade, é possível encontrar diferença na distribuição do poder entre os gêneros. Nas
sociedades em que predominam essa desigualdade, a violência contra as mulheres torna-se
uma prática recorrente. Tendo isso em vista, o presente trabalho pretende analisar como a
violência contra mulher é construída e justificada no romance o remorso de baltazar serapião
do escritor português valter hugo mãe. Para analisar tais aspectos, partimos dos estudos de
Joan Scott, Judith Butler e outros pesquisadores sobre o tema.
Palavras-chaves: gênero; violência; mulher; valter hugo mãe; literatura portuguesa
contemporânea.

Introdução
Nas sociedades primitivas, havia uma clara separação entre as funções
desempenhadas por homens e mulheres. Na maioria delas, os homens desempenhavam
as atividades de caça e pesca enquanto as mulheres ficavam responsáveis pelo plantio e
cultivo de plantas e frutos.
Nessas sociedades não era atribuído um valor a determinado gênero ou havia
uma hierarquia entre eles na divisão de trabalho. Os dois desempenhavam as funções de
acordo não só com as características físicas (como, por exemplo, a força física) mas
também por se adequarem ao comportamento e hábito (no caso das mulheres era mais

1
O nome do romance e do autor, bem como demais nomes próprios, constam em letras minúsculas
conforme as edições publicadas do livro e, para manter a coerência, optamos por mantê-las dessa forma
ao longo do trabalho.

295
fácil cultivar e colher plantas e frutos devido as frequentes gestações e cuidados com os
filhos pequenos). Havia talvez um maior equilíbrio entre os papéis desempenhados por
homens e mulheres.
Com o estabelecimento dos homens em cidades e com o surgimento de novas
religiões que cultuavam um Deus Uno (caso do cristianismo, judaísmo e islamismo) em
detrimento do culto à ―Deusa Mãe ou Natureza‖ temos a valorização do papel do
homem e o rebaixamento da figura feminina. Após a descoberta do papel do homem na
concepção humana. Toda a devoção que era antes dedicada à mulher, como o de ser
capaz de engendrar a vida, a detentora do mistério da concepção, vai perdendo força.
(KRAMER, 2015)
Com o passar dos séculos as sociedades que adotaram essa perspectiva acabaram
por afirmar e reforçar o papel de inferioridade feminina na história e ao mesmo tempo
que práticas sexistas e misóginas começaram a se tornar frequentes.
A Idade Média foio período de auge dessas práticas. Por questões políticas e
econômicas, os religiosos viram uma vantagem no rebaixamento das mulheres. Daí
surgiram associações até hoje presentes no imaginário da população como a associação
das mulheres com o demônio ou a alegação das mulheres possuírem poderes
considerados de bruxas. E grandes perseguições foram feitas neste período. Milhares de
mulheres foram presas, torturadas e queimadas vivas.
Felizmente práticas como estas foram condenadas e, por fim, eliminadas a partir
dos séculos XVII e XVIII. Com a Revolução Industrial, as mulheres começaram a
participar mais ativamente no mercado de trabalho. E sua inserção no meio público
possibilitou que elas se unissem para reivindicar direito ao voto, direitos trabalhistas
como melhores condições de trabalho, posteriormente melhores salários, férias e licença
maternidade, exigência de creches e escolas para os filhos.
A partir da década de 60 e 70 movimentos feministas ganharam forças e isso
possibilitou uma série de avanços e conquistas. No entanto, apesar de tantas lutas, as
mulheres ainda hoje encontram muitas desigualdades e enfrentam muitos problemas por
causa da discriminação de gênero.
Para Joan Scott (1989, p. 21) ―o gênero é um elemento constitutivo de relações
sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma
primeira de significar as relações de poder‖. Nesse sentido a teoria de gêneros delimita
também o poder entre os sexos, ou melhor, a desigualdade de poder que perpassa as
relações entre eles. Mesmo em ambientes em que se pressupõe igualdade é possível
encontrar a diferença na distribuição do poder entre homens e mulheres. É preciso
ressaltar que a dinâmica dessas relações é recortada por uma assimetria que, inclusive,
leva à violência. (DEBERT, 2008)
De acordo com Laura Christina Piosiadlo, uma das formas de impor o poder sob
o outro é por meio da violência:

Conflitos de autoridade, lutas pelo poder, vontade de domínio, de posse e de


aniquilamento do outro e de seus bens são exemplos de manifestações violentas que
podem ser aprovadas ou não, lícitas ou não, dependendo das normas sociais e dos
processos culturais em uma determinada localidade, em uma determinada época. Parece
nunca haver existido sociedade totalmente sem violência, mas sempre existiram
sociedades mais violentas que outras. (PIOSIADLO, 2014, p. 729)

Assim, temos a manifestação da violência ao tentar impor o desejo ou vontade


ao outro sob a pena de ameaça, uso da força física ou supressão de bens. A violência

296
também se constitui como todo ato ou ação que denigre ou fere a dignidade e a
integridade da pessoa seja física, psicológica, sexual ou moral. Além disso,

A violência pode também ser vista como uma ação que envolve a perda de autonomia,
de forma que as pessoas são privadas de manifestarem sua vontade, submetendo-se à
vontade e ao desejo dos outros. Assim, a violência passa a ser utilizada como uma
maneira de manifestação das relações de dominação, expressando uma negação da
liberdade do outro, da igualdade, da vida. Essa desigualdade se manifesta como
assimetria de poder, a submissão do mais fraco pelo mais forte traduzindo-se em maus-
tratos (VECINA, 2002 apud ROSA, 2008, p. 156)

No entanto, Wânia Pasinato Izumino argumenta que

[...] pensar as relações de gênero como uma das formas de circulação de poder na
sociedade significa alterar os termos em que se baseiam as relações entre homens e
mulheres nas sociedades; implica em considerar essas relações como dinâmicas de
poder e não mais como resultado da dominação de homens sobre mulheres, estática,
polarizada.(2003 apud SANTOS, 2005, p. 12)

Nessa perspectiva, violência de gênero não pode ser definida como uma relação
de dominação do homem sobre a mulher. Judith Butler corrobora essa ideia e questiona
as teorias feministas sobre a opressão masculina e a noção de patriarcado ainda hoje
presente:

A urgência do feminismo no sentido de conferir um status universal ao patriarcado, com


vistas a fortalecer aparência de representatividade das reivindicações do feminismo,
motivou ocasionalmente um atalho na direção de uma universalidade categórica ou
fictícia da estrutura de dominação, tida como responsável pela produção da experiência
comum de subjugação das mulheres. (BUTLER, 2003, p. 21)

Para Butler, a ideia de uma opressão hegemônica não consegue explicar a


contento os mecanismos da opressão contra as mulheres nos diversos contextos
culturais em que ela existe. Ela considera necessário relativizar a violência como
expressão de dominação masculina.
Embora tais questionamentos sejam levados em consideração, neste artigo
faremos uso de termos como dominação ou ―opressão‖ masculina, pois ao analisarmos a
violência nas relações entre os indivíduos não podemos ignorar o contexto em que ela
acontece e quais são as relações de poder que a permeiam.
Apesar da obra literária estudada ser uma obra contemporânea (o remorso de
baltazar serapião foi publicado em 2006), temos que considerar que a história evoca
um um passado longínquo (Idade Média), período em que muitas práticas violentas não
eram consideradas crimes, e remete a relações entre senhores e servos, relações em que
a concepção de igualdade social entre os sujeitos não existia.
É preciso ressaltar que no contexto histórico, social e familiar do protagonista,
baltazar serapião, valores e concepções da modernidade ocidental como ―direitos
humanos‖, ―direitos das mulheres‖, ―igualdade de gênero‖ sequer existiam. Portanto, a
nossa preocupação neste artigo não será averiguar o desrespeito a esses direitos, mas
analisar como a violência, especificamente a violência contra a mulher, aparece na obra,
pautados nas concepções que, enquanto leitores do século XXI, temos do universo

297
ficcional do romance do escritor português valter hugo mãe. Como forma de
compreender melhor a dinâmica da violência, analisaremos alguns trechos do romance.

A desumanização das mulheres em o remorso de baltazar serapião


De acordo com Malleus Maleficarum, o corpo é o único ―lugar‖ que o Demônio
poderia habitar visto que Deus governa o espírito do homem;o anjo governa a vontade e
as estrelas, o corpo. Como o Demônio é um espírito, portanto mais forte que as estrelas,
ele conseguiria controlar o corpo do homem. Sendo assim, o Demônio se apropriaria do
corpo e da alma do homematravés da sexualidade. E por serem essencialmente ligadas à
sexualidade, as mulheres seriam agentes, por excelência, do Demônio. (KRAMER,
2015)
A associação da mulher ao demoníaco era uma prática frequente da Igreja, que
vinculava a figura da mulher a tudo aquilo que era nocivo e maligno, visto que o
demônio era a fonte de todo o pecado, principalmente, o pecado da carne. Nesse
sentido, a melhor forma de controlar as mulheres era através da coerção do corpo,
controle da sexualidade e do prazer feminino.
Em o remorso de baltazar serapião, temos as memórias de baltazar serapião, um
jovem simples, brutalizado pelas condições precárias de vida. Em seu relato, baltazar
expõe o ódio e a aversão às mulheres ao ridicularizá-las, criticando diretamente alguma
característica ou ao depreciar as ações e os comportamentos delas, empregando muitas
vezes palavrões e insultos.
Um dos casos mais representativos éo da personagem teresa diaba. O fato de
teresa apresentar a alcunha ―diaba‖, arquétipo literário recorrente no imaginário
medieval, está diretamente ligada a tudo de terrível que a figura do diabo representa,
inclusive, ao seu aspecto demoníaco.

[...] a teresa apercebera-se da minha efusiva maneira, e estrebuchava de prazer mais


acelerada nos proveitos, como lhe apetecia sempre quando era brutalizada pelo homem
que atraía. a diferença entre ela e uma vaca ou uma cabra era pouca, até gemia de
estranha forma, como lancinante e animalesca sinalização vocal do que sentia,
destituída de humanidade, com trejeitos de bicho desconhecido ou improvável. e era
como lhe vinha naquele fim de tarde, posta sob mim a bater com a cabeça no chão para
se verter de submissão aos meus grilhões. (MÃE, 2011, p. 36)

Este trecho evidencia essa conotação.baltazar reforça de forma gradual a sua


animalizaçãoao dar-lhe um aspecto horrível e disforme (gemia de estranha forma, com
trejeitos de bicho desconhecido ou improvável).
Além disso, notamos que os atos de violência praticados contra a mulher são
banalizados e considerados rotineiros.Primeiro por baltazar depreciá-la e compará-la a
um animal feito apenas de instintos (uma vaca ou uma cabra), depoispor se apropriar de
seu corpo para satisfazer suas necessidades sexuais sem o consentimento dela.
A posse do corpo da mulher serviria como uma reafirmação da identidade
masculina e, de certa forma, teria um efeito simbólico de colocar a mulher num lugar de
submissão em relação ao homem (posta sob mim a bater com a cabeça no chão para se
verter de submissão aos meus grilhões).
Ao contar esse episódio, percebemos que esta era uma prática comum não só de
baltazar mas também de outros homens.

298
eu sabia que mais do que dez se punham nela. só ali éramos cinco, que o meu pai devia
tê-la muito durante o dia, e o cristóvão das carroças, que estava de viuvez há anos,
diziam os atentos que se fazia dolorido para se disfarçar das putas que rondavam por
casa sua. também o pedro das montadas, atacado de urticárias e tiques vários, estava
perdido de famílias sozinho, mais feio que a teresadiaba, se a comesse era refeição
melhor do que merecia. e o teodolindo, meu amigo, com quem aprendi muito sobre
essas coisas de capturar raparigas, sobretudo a diaba que, mais novos, partilhávamos
para vermos um no outro o que haveríamos de fazer. (MÃE, 2011, p. 28)

Em nome da satisfação sexual da comunidade, os abusos cometidos contra


teresa diaba pelos homens são permitidos e considerados ―normais‖ como o expresso na
fala de baltazar que aprendeu com o amigo a ―capturar raparigas‖ e compartilhava
teresa diaba com ele. Assim, baltazar considera natural apoderar-se do corpo de teresa
diaba já que ela era ―usada‖ por todos os homens da comunidade e estava ―disponível‖
para satisfazer os desejos sexuais deles. Para ele, ela era uma mulher que sequer
precisava seduzir, já que não mostrava nenhum tipo de resistência, que se oferecia sem
contestação aos homens.
O discurso do rapaz nos chama atenção pois o corpo feminino, especificamenteo
de teresa, não pertenceà mulher, ele é considerado propriedade de todos os homens da
comunidade. Dessa forma, teresa é tratada como um mero objeto, um ser destituído de
desejos, cujavontade é totalmente desconsiderada. Lia Zanotta Machado faz importante
consideração a esse respeito:

O que quero apontar é como é construída culturalmente a analogia entre ato sexual
imposto e ato sexual que resulta do encontro das vontades dos parceiros. É cultural e
dominante a idéia de que o ―não‖ da mulher faz parte de um ritual de sedução. A
concepção de sexualidade dominante de longa duração inscreve um jogo cultural que já
é perverso, um jogo cultural em que o corpo feminino aparece como sacrificial.
(MACHADO, 2013, p. 7)

No romance, em função do período retratado, podemos observar que a mulher


não possui autonomia o suficiente para contestar a dominação masculina e sua recusa é
interpretada como um convite à apropriação de seu corpo. Neste sentido, mesmo que
teresa recusasse o avanço masculino, seria aceitável nesse grupo que o seu corpo fosse
violado sem o seu consentimento. Por causa de seu comportamento sexual ser
considerado condenável, a práticalhe serve como uma punição.
De maneira similar ocorre com brunilde, irmã de baltazar. Com apenas onze
anos de idadefoi aceita como serva na casa de dom afonso e colocada à disposição dele
e de sua esposa, prática comum na Idade Média, visto que as moças que pertenciam às
famílias de camponeses pobres eram entregues ainda muito novas às casas dos amos,
que se comprometiam a agregá-las na família em troca do serviço prestado. Para as
famílias das jovens era uma troca bastante vantajosa visto que esse tipo de acerto
garantia uma certa segurança para o futuro das moças e representava uma boca a menos
para alimentar na casa. (MACEDO, 1992)
Embora desempenhasse as funções de empregada doméstica, seu trabalho
principal era satisfazer sexualmente seu senhor. Apesar de não ter atingido ainda a
puberdade, brunilde foi considerada apta para relações sexuais e forçada a se
transformar em ―escrava sexual‖ de dom afonso:

299
[...] era para que se conservasse boa de aparências, com a pele clara e as mãos
ágeis, assim a queria o senhor para as sevícias que lhe davam a ele, a esfregar-se
e a meter-se nela pelos cantos da casa, a tentar retribuir-se de tudo o que dona
catarina, velha de carnes, descaídas e dada às maleitas, já não lhe oferecia. mais
tarde, ela passou a confirmar-mo e eu já nem lho perguntava.(MÃE, 2011, p. 20)

Segundo baltazar, brunilde era poupada dos serviços mais pesados como forma
de manter por mais tempo sua aparência jovem, visto que além de servir a casa, o seu
corpo deveria servir ao interesse sexual de dom afonso. De acordo com essa visão, a
disponibilidade sexual da jovem também fazia parte do serviço pelo qual era paga,
sendo esta desrespeitada como mulher.
Por causa de sua posição e poder, dom afonso sentia-se no direito de satisfazer
seus desejos sexuais com suas servas. Embora no período medieval o ato não fosse
considerado crime, cabe aqui esclarecer que a prática sexual imposta à jovem era feita
de maneira contínua e contra a vontade da mesma. Apesar de sofrer abusos sexuais
constantes de seu senhor, ela não considerava o ato sexual ruim, pois acreditava que era
algo comum em seu ambiente de trabalho, já que era ―aceito‖ socialmente ainda que não
de maneira explícita. Segundo Pierre Bourdieu (2011, p. 52), ―o poder simbólico não
pode se exercer sem a colaboração dos que lhe são subordinados e que só se subordinam
a ele porque o constroem como poder‖.E por esse motivo, o pai de baltazar ao tomar
conhecimento da situação, ―talvez já consciente de que se deitava aos préstimos de puta
para dom afonso‖ (MÃE, 2011, p. 22), se afastou da filha.
Com medo que dona catarina, mulher de dom afonso, descobrisse o que o
marido fazia com ela e com outras empregadas, brunilde fingia-se de desentendida e
inventava desculpas para não contar o que sofria. No entanto, um ponto deve ser levado
em consideração, embora as mulheres sejam oprimidas no romance, não podemos
esquecer que elas fazem parte de grupos distintos, as diferenças sociais precisam ser
consideradas neste caso. Ainda que brunilde sofra com os abusos de dom afonso e de
dona catarina por ser uma simples serva; dona catarina, em contrapartida, usufrui de
privilégios e benefícios de sua classe social como senhora feudal. Dessa forma,
reproduz as mesmas relações de poder ocorridas entre os homens, portanto, ―[...] a
esposa do senhor, a dama, comporta-se como o marido em relação aos seus
dependentes, tiranizando as domésticas‖.(MACEDO, 1992, p. 26)
E para finalizar nossa análise, é interessante também abordar o caso da mãe de
baltazar. De acordo com o filho, era uma mulherpassiva, sem desejo ou vontade própria,
que em obediência ao marido deveria se submeter aos seus desígnios, cuja identidade
estaria sempre determinada por sua relação com este. A mãe de baltazar representa a
típica mulher submissa e obediente do período medieval.
Na Idade Média, a mulher era considerada propriedade do pai enquanto
solteira,depois de casada, pertencia aomarido. Sendo assim, pais ou maridos tinham o
direito de castigar as mulheres se elas não lhes obedecessem ou não cumprissem com o
que era considerado o seu dever. Aliás, esse era um ―direito de justiça inquestionável,
primordial, absoluto‖ do marido. Portanto, o homem sentia-se no direito de castigar e de
descontar sua frustração (seja por não ser provedor, por não desempenhar uma
representação de masculinidade esperada ou por não conseguir controlar o
comportamento da companheira) na mulher. (MACEDO, 1992). Talvez por causa da
rígida hierarquia no mundo medieval: o suserano superior ao vassalo, o pai superior ao
filho, o homem superior a mulher; não existia espaço para o questionamento dessa

300
ordem.Sendo assim, caso a mulher não respeitasse o marido, ele a puniria através da
coerção de seu corpo e se fosse obediente, ela deveria ser ―suportada‖ como se fosse um
fardo a carregar e não alguém que deveria estabelecer uma relação sentimental.
Além disso, sua sexualidade era rigidamente controlada e, no caso de um
adultério, a mulher era punida com a própria morte. baltazar expõe a relação conflituosa
dos pais e mostra o acordo não-verbal estabelecido entre eles sobre o respeito e
obediência ao marido

o curandeiro, eu notei, sabia que ao meu pai aproveitava muito a tortice de minha mãe.
com o pé em modos de pouco andar, ela haveria de estar sempre por ali, e mais que a
fúria do meu pai pudesse acontecer um dia, à minha mãe não lhe valeria corrida alguma
haveria de estar parada por natureza, à mercê da sabedoria do marido. e mais nada se
intrometeria na administração tão correta de um casamento. (MÃE, 2011, p. 32)

Para o pai de baltazar a desconfiança da traição e de uma suposta gravidez são


justificativas suficientes para agredir violentamente a mulher. Era preciso punir seu
crime, pois se ela o traíra e engravidara de outro, ainda mais depois de velha, isso
aumentaria seu sentimento de vergonha e humilhação. Para puni-la, diante da certeza
que tinha da traição, aviolentou e agrediu de tal modo que a mãe de baltazar acabou
morrendo. Ou seja, a ideia que subjaz é que se a ameaça da violência física não
controlasse a fidelidade da mulher, serviria ao menos para puni-la e limpar a honra.
Apesar de a violência não ser bem vista na comunidade, ela era bem tolerada em
alguns ambientes no romance, como na família de baltazar. Ao crescer num ambiente
em que essa prática era comum, ele via a agressão como algo normal e acabava por
reproduzir o modelo de comportamento masculino passado pelo pai. Dessa maneira, a
violência praticada não era moralmente condenada, ao contrário, era até estimulada pelo
pai de baltazar.
Tanto baltazar quanto o seu pai utilizam a força física contra as mulheres como
uma maneira corretiva e punitiva por ações consideradas reprováveis por eles.Esses
atos, de extrema crueldade e violência, não sãoem nenhum momento questionados pelas
personagens da família de baltazar, sendo considerados aceitáveis e parte da realidade
deles.No entanto, para nós, leitores contemporâneos, provoca mal-estar.
Em o remorso de baltazar serapião, as mulheres sequer possuem o direito de
expressar seus sentimentos ou suas dores e quando falam ninguém lhes dá ouvidos.
Suas falas são desacreditadas e não são levadas a sério pela comunidade. Isso torna-se
evidente logo no início do romance, quando baltazar faz questão de mostrar como é a
voz das mulheres.

a voz das mulheres estava sob a terra, vinha de caldeiras fundas onde só o diabo e gente
a arder tinham destino. a voz das mulheres, perigosa e burra, estava abaixo de mugido e
atitude da nossa vaca, a sarga, como lhe chamávamos. (MÃE, 2011, p. 11)

Ele descreve a voz das mulheres como perigosa e burra e diz que ela estava
abaixo do mugido da vaca, isto é, o animal está num patamar acima ao da própria
mulher. Ao afirmar que a voz delas vinha de caldeiras fundas onde só o diabo e a gente
a arder tinha destino, baltazar associa a figura da mulher com o diabo.
Ao falar da sua mãe, explica o quanto a voz dela deve ser silenciada, assim
como a de outras mulheres:

301
uma mulher é ser de pouca fala, como se quer, parideira e calada, explicava o meu pai,
ajeitada nos atributos, procriadora, cuidadosa com as crianças e calada para não estragar
os filhos com os seus erros. também para não espalhar pela vizinhança a alma secreta da
família, que há coisas do decoro da casa que se devem confinar aos nossos. (MÃE,
2011, p. 17)

Assim como a voz de brunilde:

mas o meu pai ensinava-nos tudo a todos, e dava ares de quem se regozijava por ter
criado a brunilde, até o dia em que a serviu de idade para os senhores a usarem na casa,
e para assim nos livrarmos do espaço da cama dela e do diálogo constante e perigoso
que traria a sua cabeça de rapariga. (MÃE, 2011, p. 18)

Reiteramais uma vez que a voz das mulheres é perigosa e que não deveria ser
levada em consideração. Nesta breve exposição fica claro o quanto a voz das mulheres é
desprezada e desrespeitada. Isso corrobora a afirmação de Gayatri Spivak (2010) de que
o subalterno é privado de voz pois ainda que fale, não será ouvido.
A própria voz de teresa é comparada a de um animal que geme e gane sem parar.

[...] a diferença entre ela e uma vaca ou uma cabra era pouca, até gemia de estranha
forma, como lancinante e animalesca sinalização vocal do que sentia, destituída de
humanidade, com trejeitos de bicho desconhecido ou improvável. (MÃE, 2011, p. 36)

É importante ressaltar que, diferentemente de teresa diaba, de brunilde,da mãe


de baltazar e de outras personagens femininas, a vaca sarga recebe um tratamento mais
humanizado. Em um trecho do romance, baltazar fala da voz da vaca e de como dói para
ele e para sua família a lamentação dela nos dias de chuva.

abríamos os olhos pirilampos à fraca luz da vela, porque a sarga mugia noite inteira
quando havia tempestade. dava-lhe frio e aflição de barulhos. era pesado que nos
preocupássemos com a sua tristeza, se havia algo na sua voz que nos referia, como se
soubesse nosso nome, como se, por motivo perverso algum, nos fosse melódico o seu
timbre e nos fizesse sentido a medida da sua dor. por isso, custava deixa-la sem retorno,
sem aviso de que a má disposição das nuvens era fúria de passagem. (MÃE, 2011, p.
11)

É notável essa inversão de papéis. O tratamento dado à vaca é melhor que o


oferecido a um animal doméstico, visto que lhe é dado o nome da família ―sarga‖ e ela é
comparada com uma avó antiga, isto é, um ente da família.

era uma vaca como animal doméstico, mais do que isso, era a sarga, nosso nome, velha
e magra, como uma avó antiga que tivéssemos para deixar morrer com o tempo que
deus lhe desse. (MÃE, 2011, p. 29)

Desse modo, ao descrever as mulheres compara-as aos animais, aos seres


monstruosos ou figuras ligadas ao diabo enquanto a vaca recebe um tratamento mais
humano que as mulheres.

302
Considerações finais
A violência presente no romance confirma essa relação assimétrica ao revelar
uma relação de subordinação e dominação entre homens e mulheres. Ao pressupor que
um gênero domina (masculino) e o outro (feminino) é subordinado a ele.
O uso recorrente da violência era uma forma de legitimar e manter o poder e a
―ordem‖. Na sociedade medieval, os homens ditavam as leis e queriam impor suas
ordens e desejos na vida dos outros, seja através de uma hierarquia social (dom afonso),
seja através da força bruta (pai de baltazar, baltazar e outros homens da comunidade).
Nesta sociedade, o homem casado poderia ter relações sexuais fora do
casamento com mulheres que, na perspectiva de dominação masculina, estavam
disponíveis para seu usufruto. Caso a mulher fosse casada, essa opção não existiria,
visto que a sexualidade era rigidamente controlada, como no caso exemplificado da mãe
de baltazar.
Em todos os exemplos vistos,os corpos das mulheres,cada um à sua maneira,
não lhes pertenciam por direito. Os homens se sentiam no direito deusufruir deles para
sua própria satisfação sexual ou ainda para puni-los quando não fossem respeitados ou
obedecidos. Simplesmente pelo fato de serem homens e de se sentirem no direito de
fazê-lo comomarido, patrão ou mesmo membro da comunidade.
É importante ressaltar que na Idade Média, as mulheres não possuíam voz nem
autonomia, principalmente porque havia poucos registros da voz da mulher, seja dos
relatos de seus prazeres ou de suas dores, ou ainda do seu dia-a-dia e os registros que
temos foram feitos, em sua maioria, por homens. (LE GOFF, 1989).
Por isso, como não se trata de um romance em que o escritor pretenda retratar,
pelo menos a princípio, com a maior fidelidade possível o contexto sócio-histórico do
passado retratado ou reconstruído pela narrativa, o que mais nos chama a atenção é que
a localização do enredo, num passado longínquo, talvez seja apenas uma forma de valter
hugo mãe denunciar o quanto, em relação aos direitos humanos, sobretudo no que
concerne à violência contra a mulher, não estamos distantes de uma imagem da Idade
Média, independente do fato de essa imagem corresponder ou não à realidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? (Tradução: Sandra Regina
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Editora UFMG, 2010.

304
O espaço como vetor de construção do sentido em
―Linda, uma história horrível‖, de Caio Fernando
Abreu
(L‘espace comme vecteur de construction du sens dans ―Linda, uma história
horrível‖, de Caio Fernando Abreu)

Suzel Domini dos Santos1


1
Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖ (UNESP/SJRP)

su.domini@yahoo.com.br

Résumé: Ce travail vise à analyser la construction de l'espace dans le conte ―Linda, uma
história horrível‖, de Caio Fernando Abreu, présent dans le livre Os dragões não conhecem o
paraíso (1988), ennotant sa relation avec la constitution des personnages et aussi avec
l'arrangement des sens possibles pour le texte narratif. Le conte qu‘on détache manifeste une
dimension physique de l'espace qui sert à caractériser une dimension mentale et/ou affective
des personnages, de sorte qu'il devient possible d'établir une vision critique sur l'articulation de
l'espace domestique – le lieu ou le récit se déroule – comme vecteur de construction du sens
dans sa acception social, en particulier celle liée aux questions de genre. Compte tenu de cette
prémisse, cet article se concentre sur la figure de la vieille femme et de l'homosexuel, et
explore comment Caio Fernando Abreu utilize une élaboration approfondie de l'espace pour
problématiser des forces oppressives disséminées au sein d'une structure sociale traditionaliste
et patriarcale. Le drame existentiel vécu par des personnages de conte montre comment
l'oppression exercée par la société enfin de compte interfere dans la liberte individuelle. En ce
sens, on peut dire que l'auteur met les minorités au premier plan, en donnant la parole à ceux
qui ont été réprimés par la structure sociale.
Mots-clés: Caio Fernando Abreu; L‘espace; Genre.

Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar a construção do espaço no conto ―Linda, uma
história horrível‖, de Caio Fernando Abreu, presente no livro Os dragões não conhecem o
paraíso (1988), observando sua relação com a constituição das personagens e, também, com o
arranjo de sentidos possíveis para o texto narrativo. O conto destacado apresenta uma
dimensão física do espaço que serve à caracterização de uma dimensão mental e/ou afetiva das
personagens, de modo que se torna possível estabelecer uma leitura crítica voltada para a
articulação do espaço doméstico – lugar em que a narrativa se desenvolve – como vetor de
construção do sentido em sua acepção social, sobretudo vinculada às questões de gênero.
Considerando essa premissa, o presente artigo focaliza a figura da mulher idosa, bem como a
do homossexual, e explora a forma como Caio Fernando Abreu se vale de uma elaboração
minuciosa do espaço para potencializar a problematização das forças opressivas disseminadas
dentro de uma estrutura social tradicionalista e patriarcal, descortinando-as. O drama
existencial vivenciado pelas personagens do conto evidencia como a opressão exercida pela
sociedade acaba por interferir na liberdade individual. Nesse sentido, pode-se afirmar que o
autor coloca as minorias em primeiro plano, dando voz àqueles que foram recalcados pela
estrutura social.
Palavras-chave: Caio Fernando Abreu; Espaço; Gênero.

Por uma poética do espaço


Focalizamos, no presente artigo, o texto intitulado ―Linda, uma história
horrível‖, de Caio Fernando Abreu, enquanto objeto de estudo. Trata-se de um dos

305
contos que integram a obra Os dragões não conhecem o paraíso1, livro publicado pela
primeira vez no ano de 1988. O conto destacado é o primeiro que aparece na
organização do livro, e vale ressaltar, a princípio, que o autor oferece uma possibilidade
de abertura criativa à recepção, afirmando que o leitor pode encarar a obra como um
livro de contos ou, então, como ―uma espécie de romance-móbile‖, conforme é possível
verificar na citação da nota metalinguística que aparece logo nas páginas iniciais:

Se o leitor quiser, este pode ser um livro de contos. Um livro com 13 histórias
independentes, girando sempre em torno de um mesmo tema: amor. Amor e sexo, amor
e morte, amor e abandono, amor e alegria, amor e memória, amor e medo, amor e
loucura. Mas se o leitor também quiser, este pode ser uma espécie de romance-móbile.
Um romance desmontável, onde essas 13 peças talvez possam completar-se, esclarecer-
se, ampliar-se ou remeter-se de muitas maneiras umas às outras, para formarem uma
espécie de todo. Aparentemente fragmentado, mas de algum modo — suponho —
completo. (ABREU, 1988, p. 05; grifo no original)

A perspectiva que tomamos neste estudo, em particular, é a da possibilidade de


leitura dos textos como contos, e, mais especificamente, nos concentramos no texto
destacado no início. Mas sublinhamos a nota em questão para ressaltar um aspecto
fundamental do projeto literário de Caio Fernando Abreu, que desperta nosso interesse
crítico: a forte consciência criativa do autor, a evidência de que o pensamento acerca da
forma, a mobilização e articulação reflexivas dos elementos constituintes da narrativa se
fazem presentes.
Antes de determo-nos, terminantemente, em ―Linda, uma história horrível‖,
propondo uma análise da elaboração de uma poética do espaço, destacamos um outro
ponto, qual seja o título do livro, que já demarca uma tônica de criticidade, a visão
irônica e questionadora de Abreu em relação ao homem e ao mundo, uma vez que o
conceito de paraíso é, aí, desmistificado. O autor rasga o substantivo em sua acepção
idealista num arranjo metafórico subversivo, fazendo surgir um desdobramento de
significados, que apontam para a ideia de que a vida é marcada pelo enfrentamento
constante – e, muitas vezes, doloroso – de inúmeras situações existenciais complexas e
penosas.
Começamos nosso percurso crítico, de leitura do conto indicado, com um
procedimento basilar, isto é, destacando sua fábula2, no sentido formalista do termo,
para que os leitores que ainda não o conhecem possam ter ao menos um panorama
preambular.
O texto enfoca três personagens principais: o filho e a mãe, que não são
nomeados ao longo de toda a narrativa, e a cadela Linda, que dá nome ao conto, aliás. O
filho chega na casa da mãe, uma mulher idosa já, depois de ter passado um longo
período sem visitá-la; e o tempo da narrativa contempla esse momento de chegada dele,
e do encontro inicial entre os dois, em que eles se acomodam, conversam e tomam café.
A reflexão analítica que propomos no presente estudo tem por propósito maior
salientar a linguagem do espaço nesse conto de Caio Fernando de Abreu, mostrando
como o autor se vale de uma elaboração estética minuciosa do lugar físico em que a

1
Capa da primeira edição de Os dragões não conhecem o paraíso (1988), publicada pela editora
Companhia das Letras, segue em Anexo.
2
Evocamos o conceito de fábula que os formalistas russos utilizavam, isto é, enquanto ―descrição de
acontecimentos‖ (EIKHENBAUM, 1973, p. 22).

306
narrativa se desenvolve com o objetivo de moldar as dimensões e as características das
próprias personagens, conduta de criação que engendra a multiplicação de sentidos.
Dito de outra maneira, visamos, aqui, evidenciar o poder de significação que a
linguagem do espaço pode propiciar, enfocando que esse constituinte do texto narrativo
pode funcionar como um reflexo das personagens, não apenas naquilo que se refere às
perspectivas física e mental ou afetiva, mas também à própria condição social. Por um
lado, concentramo-nos na dimensão física do espaço doméstico, realçando todos os
detalhes que o compõem e, também, o modo como as personagens interagem com os
objetos e o lugar. Em seguida, debruçamo-nos sobre a dimensão mental e/ou afetiva que
o espaço revela das personagens, ao figurativizar-la.
Wesley A. Kort (2004) propõe, em seu trabalho intitulado Place and Space in
Modern Fiction, uma discussão crítica bastante profícua acerca do valor estético do
espaço no texto narrativo. O autor observa que a crítica literária tem postergado uma
reflexão mais incisiva do espaço, concentrando-se mais intensamente nos aspectos da
temporalidade, por exemplo. A perspectiva de Kort questiona essa supervalorização do
tempo em detrimento do espaço, defendendo a concepção de que a linguagem deste
também se manifesta enquanto um importante fator de caracterização das personagens,
podendo mostrar-se, inclusive, como elemento central da construção dos sentidos
possíveis do texto narrativo. Destacamos, na sequência, as palavras do autor, que
afirma: ―Os espaços, na narrativa, têm força e significado; eles estão relacionados a
valores e crenças humanas; e integram o vasto universo do homem, incluindo ações e
eventos.‖ (KORT, 2004, p. 11 – tradução nossa)3.
Além disso, consideramos de extrema relevância a análise detida dos aspetos
estruturais e constituintes do texto como ponto de partida nos estudos da literatura.
Alguns críticos veem a teoria formalista como vertente radical de ênfase do objeto
literário em sua estrutura formal, implicando, por conseguinte, uma abordagem que
trabalha no sentido de evidenciar a construção textual em detrimento das relações
referenciais que o texto literário pode evocar ou estabelecer. Um desses críticos é
Alfonso Berardinelli (2007), e, de acordo com sua visão, ao tomar a noção de amplo
afastamento do aspecto referencial da linguagem como elemento chave da literariedade,
o formalismo projeta uma disjunção entre os domínios da literatura e da comunicação.
O autor diz: ―A literariedade, objeto exclusivo da ciência da literatura, teria como traço
distintivo a ‗não referencialidade‘, o não se referir à realidade extra-lingüística, mas
somente à organização dos signos lingüísticos.‖ (BERARDINELLI, 2007, p. 14). Ainda
da leitura de Berardinelli sobre o formalismo, citamos o trecho que segue: ―Não
obstante a sua insistência na técnica, o formalismo, quando se transformou de atenção à
linguagem em estética e teoria geral da literatura como literariedade, acabou produzindo
idealismo. Ou seja, a literatura como idéia e a linguagem poética como mito.‖
(BERARDINELLI, 2007, p. 16; grifo no original).
Enfatizamos que, apesar de assinalarem como propósito de seus estudos a ênfase
do texto em si, os formalistas russos não defenderam a exclusão de possibilidades
significativas ligadas a aspectos sociais, históricos e/ou psicológicos, apenas legaram
como ponto de partida da análise literária a estrutura textual e seu processo de
construção. Os formalistas buscaram demarcar, cientificamente, a noção de literariedade
a partir da categoria linguagem poética em contraposição à categoria linguagem

3 ―Places in narrative have force and meaning; they are related to human values and beliefs; and they are
part of a larger human world, including actions and events.‖ (KORT, 2004, p. 11).

307
convencional, visando satisfazer, de modo muito consciente, às expectativas da seguinte
questão: ―em que é que a obra de literatura difere de outros produtos humanísticos?‖
(POMORSKA, 1972, p. 28). Nesse sentido, ressaltamos que a proposta original do
formalismo não é problemática em si, mas, sim, a leitura e aplicação radicais dela.
Partindo desse posicionamento, voltamo-nos, agora, à análise propriamente dita
de ―Linda, uma história horrível‖.
Percebemos, desde o início do texto, que a relação entre as personagens da mãe
e do filho é um pouco travada e embaraçosa, que tais personagens mantêm uma certa
dificuldade de comunicação e uma certa dificuldade de expressar afeto. Tal percepção
se dá ao notarmos os desvios que marcam o diálogo entre os dois, bem como suas
ações, de maneira que a dimensão afetiva e a experiência vivida por cada uma das
personagens vai se desenhando pelas sugestões que o leitor flagra nas entrelinhas do
tecido narrativo, como se faz possível observar na transcrição que segue:

— Tu não avisou que vinha — ela resmungou no seu velho jeito azedo, que
antigamente ele não compreendia. Mas agora, tantos anos depois, aprendera a traduzir
como que-saudade, seja-benvindo, que-bom-ver-você ou qualquer coisa assim. Mais
carinhosa, embora inábil.
Abraçou-a, desajeitado. Não era um hábito, contatos, afagos. (ABREU, 1988, p. 14;
grifos nossos)

É por meio das sugestões, dos elementos constituintes do texto, aliás, que
chegamos à compreensão de que ambas as personagens, mãe e filho, estão diante de um
grande drama existencial. Nada é dito de forma explícita no conto, tudo vai sendo
sugerido, para que o leitor preencha as lacunas e participe efetivamente da construção
do sentido. Na medida em que vamos atribuindo significado às argutas insinuações
tecidas por Caio Fernando Abreu, aos influxos presentes na condução do narrador, nos
diálogos, nas ações e caracterizações das personagens, e, especialmente, nos detalhes
que compõem o espaço, podemos chegar ao entendimento de que as personagens
principais estão lidando, mais precisamente, com a proximidade ou a possibilidade da
morte. Não apenas a mãe e o filho, mas a cadela também, Linda, que está bem velha,
cega, e reflete de modo imediato a condição de sua dona, a mãe, a mulher idosa. Nesse
ponto, citamos o seguinte trecho: ―— Sai, Linda — ela gritou, ameaçando um pontapé.
A cadela pulou de lado, ela riu. — Só ameaço, ela respeita. Coitada, quase cega. Uma
inútil, sarnenta. Só sabe dormir, comer e cagar, esperando a morte.‖ (ABREU, 1988,
p. 14; grifo nosso).
Observando o enorme contraste entre o nome da cadela e seu aspecto físico,
podemos notar a ironia ferina contida no título do conto. E essa ironia aponta,
justamente, para o fato de que as personagens estão passando por uma experiência
aterradora.
Salientamos que a mãe é uma personagem mais plana, então, sua situação fica,
desde o começo do texto, um tanto mais óbvia para o leitor. Trata-se de uma mulher
idosa, viúva, encerrada no espaço doméstico, em uma casa velha e decadente, e a única
companhia que ela tem é a cadela igualmente velha. Tudo aquilo que compõe a
personagem da mãe, e que a cerca, aponta muito diretamente para a ideia de ruína.
Quanto a seu aspecto físico, frisamos: ―Ela sentou à frente dele, o robe abriu-se. Por
entre as flores roxas, ele viu as inúmeras linhas da pele, papel de seda amassado.‖
(ABREU, 1988, p. 16). Com a metáfora do ―papel de seda amassado‖, o autor expressa
a evidência da velhice nas rugas que vincam a pele da personagem, sobressaindo-se

308
entre o tecido de sua roupa, um robe estampado com flores roxas. Simbolicamente, em
sua extensão negativa, a cor roxa pode reforçar a indicação de decadência e morte.
Naquilo que se refere ao reflexo da condição dessa personagem no espaço da casa, nos
detalhes que o constituem, destacamos alguns exemplos: ―E reviu o tapete gasto,
antigamente púrpura, depois apenas vermelho, mais tarde rosa cada vez mais claro —
agora, que cor? ‖ (ABREU, 1988, p. 13); ―A xícara amarela tinha uma nódoa escura no
fundo, bordas lascadas. Ele mexeu o café, sem vontade.‖ (idem, p. 15); ―Passou as
pontas dos dedos pelos losangos desbotados da toalha.‖ (idem, p. 17).
A personagem do filho apresenta um pouco mais de complexidade em sua
compleição, e sua situação precisa ser inferida pelo leitor. Ao preencher as lacunas do
conto, chegamos à conclusão de que ele é homossexual e portador do vírus HIV, e que,
provavelmente, está em uma fase de complicação da doença4.
A relação reflexiva que se estabelece entre a caracterização ou situação das
personagens e o espaço já está presente na fortuna crítica, como é o caso do trabalho de
Márcia Rohr Welter et al (2016), por exemplo. No trecho que transcrevemos a seguir, os
autores fazem uma análise de comparação entre o tapete, a cadela e o filho:

A analogia que se estabelece entre o tapete da casa, o filho e a cachorra acaba revelando
a vetustez das personagens e da casa. Unindo-se as descrições das degradações físicas –
a cadela que está velha e sarnenta, o tapete que perde a sua tonalidade com o passar dos
anos e o filho que se encontra envelhecido precocemente –, percebe-se que este esteja
gravemente doente. (WELTER, 2016, p. 7)

Além dessa relação, pensamos ser possível estabelecer uma leitura crítica que
explora a presença de uma sensibilidade social no conto de Caio Fernando Abreu,
também potencializada pelo espaço. Por esse prisma, afirmamos que, além de as
personagens estarem diante de uma verdade humana tão terrível, que é o enfrentamento
da morte, ou a possibilidade categórica de isso acontecer, elas podem, ainda, serem
vistas em uma condição de opressão e de isolamento ou marginalidade social: a mãe por
ser mulher, viúva e idosa; e o filho por ser gay e soro positivo.
Diante dessa perspectiva crítica, sublinhamos, na sequência, um pequeno trecho
do conto, a fim de trabalharmos a forma como a caracterização do espaço contribui de
modo definitivo e determinante para a construção do sentido proposto:

As costas dela, tão curvas. Parecia mais lenta, embora guardasse o mesmo jeito antigo
de abrir e fechar sem parar as portas dos armários, dispor xícaras, colheres,
guardanapos, fazendo muito ruído e forçando-o a sentar — enquanto ele via.
Manchadas de gordura, as paredes da cozinha. A pequena janela basculante, vidro
quebrado. No furo do vidro, ela colocara uma folha de jornal. País mergulha no caos,
na doença e na miséria — ele leu. E sentou na cadeira de plástico rasgado. (ABREU,
1988, p. 15; grifo no original)

A partir desse excerto, podemos demarcar a ideia de que a casa se mostra uma
reverberação da velhice e da decadência da personagem idosa e da cadela. Tudo está
velho, desgastado, manchado, empoeirado. Enfatizamos, além disso, um detalhe

4
Aos leitores que se interessarem pela questão da AIDS na obra de Caio Fernando Abreu, deixamos,
aqui, a referência de autores que a trabalham de forma mais aprofundada: Antonio Eduardo de Oliveira
(2009) e Fernando Oliveira Mendes (1988), por exemplo.

309
fundamental: no início do conto, o filho é puxado para esse ambiente, e vai adentrando a
casa. Quando ele chega sem aviso à casa de sua infância, a mãe o toma pela mão e vai
lhe conduzindo para o interior, cada vez mais fundo. Conforme a narrativa vai se
desenrolando, percebemos que o filho vai se enquadrando no espaço em ruínas, tal
como a mãe e a cadela já estão ali enquadradas. Ou seja, ao longo do texto, podemos
colher elementos carregados de sentidos que nos permitem dizer que a personagem
masculina também compartilha daquela situação decadente, de maneira que, ao final,
também acaba se fundindo completamente ao espaço da casa, juntando-se com a mãe e
Linda.
Voltando ao trecho do conto que destacamos mais acima, conseguimos discernir
um momento histórico muito preciso. Citamos, novamente então, o pedaço final, em
que o protagonista lê algo que está escrito na folha de jornal que a mãe usou para
tampar o buraco no vidro quebrado: ―País mergulha no caos, na doença e na miséria —
ele leu. E sentou na cadeira de plástico rasgado.‖ (ABREU, 1988, p. 15; grifo no
original). Esse pedaço estabelece uma relação direta com a condição do Brasil na
segunda metade dos anos 1980, um período bastante complicado, em que o país está em
processo de redemocratização, debatendo-se com as péssimas consequências
econômicas deixadas pelo regime militar, e, ademais, o país está encarando a
proliferação da AIDS, bem como a estigmatização social da doença.
Esse é um dos pontos do texto que sugerem a condição do protagonista; um dos
pontos que sugerem que ele é soro positivo. Lemos, aí, uma convergência extremamente
profícua, do ponto de vista crítico, entre o estado do país, que ―mergulha no caos‖, e a
ação da personagem, que ―senta na cadeira de plástico rasgado‖. Assim como o país, a
personagem realiza um movimento descendente, e isso ressalta a degradação.
Focalizando, agora, a figura da mãe, podemos afirmar que o ambiente
doméstico, e a personagem idosa encerrada dentro dele, apontam para a opressão da
mulher no interior de uma sociedade ordenada por uma mentalidade patriarcal. Em
outro momento do texto, o narrador flagra a movimentação da personagem dentro desse
espaço dizendo o seguinte: ―ela adentrava soberana pela cozinha, seu reino‖ (ABREU,
1988, p. 15; grifo nosso). Essa demarcação afirma o ambiente doméstico como lugar da
mulher, como se a figura feminina estivesse destinada a cumprir os afazeres da casa, e o
espaço público fosse reservado exclusivamente para o homem. A casa engendra o
sentido da clausura e do confinamento, ao passo que a rua e o espaço público estão mais
fortemente atrelados à ideia de liberdade. Eis, aí, uma oposição antropológica
tradicional dos espaços em sua relação de gênero, realçada por Filomena Silvano
(2010), em que o feminino se liga ao privado, e o masculino ao público.
Mais que isso, ainda, pensamos ser possível discernir o abandono, a solidão e o
isolamento social do idoso: a personagem feminina do conto está enfrentando a velhice
sozinha. E, nesse sentido, ressaltamos mais dois trechos do conto, logo no início,
quando o filho chega:

Só depois de apertar muitas vezes a campainha foi que escutou o rumor de passos
descendo a escada. E reviu o tapete gasto, antigamente púrpura, depois apenas
vermelho, mais tarde rosa cada vez mais claro — agora, que cor? — e ouviu o latido
desafinado de um cão, uma tosse noturna, ruídos secos, então sentiu a luz acesa do
interior da casa filtrada pelo vidro cair sobre sua cara de barba por fazer, três dias.
Meteu as mãos nos bolsos, procurou um cigarro ou um chaveiro para rodar entre os
dedos, antes que se abrisse a janelinha no alto da porta. (ABREU, 1988, p. 13)

310
Chamamos atenção para o fato de que o tapete é o primeiro elemento de
composição do espaço da casa que vai indicar a concepção de decadência, antecipando a
aparição da mãe. E a demora dessa personagem em atender à porta é igualmente
significativa, pois é como se ela estivesse um tanto desconectada do mundo exterior, ao
que citamos o segundo trecho, que encadeia o transcrito acima:

Enquadrado pelo retângulo, o rosto dela apertava os olhos para vê-lo melhor.
Mediram-se um pouco assim — de fora, de dentro da casa —, até ela afastar o rosto,
sem nenhuma surpresa. Estava mais velha, viu ao entrar. E mais amarga, percebeu
depois. (ABREU, 1988, p. 13-14; grifos nossos)

Antes de abrir a porta, ela olha pelo vidro, e o narrador focaliza seu rosto
enquadrado pela pequena janela, forte estímulo figurativo de sua condição de clausura.
Esses são os primeiros indícios do isolamento social da mãe, e ao longo do texto
existem muitos outros. Conforme o diálogo entre as duas personagens, mãe e filho, vai
de desenrolando, o leitor pode inferir que há uma outra filha, Elzinha. O protagonista
pergunta porque a mãe não vai morar com essa filha e o genro, e podemos flagrar,
assim, uma forte sugestão de que há um descaso por parte da família em relação a essa
idosa. Até mesmo do protagonista, porque ele também esteve longe durante muito
tempo e volta somente quando está doente. A respeito dessa questão, citamos um trecho
do conto:

— Não sei como a senhora consegue continuar morando aqui sozinha. Esta casa é
grande demais pra uma pessoa só. Por que não vai morar com a Elzinha?
Ela fingiu cuspir de lado, meio cínica. Aquele cinismo de telenovela não combinava
com o robe desbotado de flores roxas, cabelos quase inteiramente brancos, mãos de
manchas marrons segurando o cigarro quase no fim. (ABREU, 1988, p. 17)

A personagem da mãe reage como se fosse uma escolha sua viver sozinha, mas o
narrador nos diz que seu cinismo não combina com a situação que ela vivencia.
Segundo nosso ponto de vista, o despeito apresentado pela personagem, ao
(aparentemente) recusar a ideia de viver com Elzinha e o genro, pode ser compreendido
enquanto consciência de sua condição de abandono, solidão e proximidade da morte. A
propósito, a imagem do cigarro quase no fim pode ser lida como uma metáfora de uma
vida que vai se esgotando, que vai chegando ao fim.
Esse estado de isolamento ou marginalidade vai se estender para o filho, na
medida em que ele também acaba se fundindo com o espaço decadente da casa da mãe.
Conforme ocorre essa integração, o leitor pode inferir sua condição socialmente
estigmatizada e propensa à discriminação, isto é, um homossexual, soro positivo, no
contexto dos anos 1980. Nesse sentido, destacamos o final do conto, seu ponto máximo:
após receber o filho e conversar com ele, a mãe sai da cozinha e vai dormir, então o
protagonista fica sozinho, desabotoa a camisa e olha para a imagem de si mesmo no
espelho, magro, com os cabelos ralos, e a pele cheia de manchas:

Ele abriu os olhos. Como depois de uma vertigem, percebeu-se a olhar fixamente para o
grande espelho da sala. No fundo do espelho na parede da sala de uma casa antiga,
numa cidade provinciana, localizou a sombra de um homem magro demais, cabelos
quase raspados, olhos assustados feito os de uma criança. Colocou a garrafa sobre a
mesa, tirou o casaco. Suava muito. Jogou o casaco na guarda de uma cadeira. E
começou a desabotoar a camisa manchada de suor e uísque.

311
Um por um, foi abrindo os botões. Acendeu a luz do abajur, para que a sala ficasse mais
clara quando, sem camisa, começou a acariciar as manchas púrpura, da cor antiga do
tapete na escada — agora, que cor? —, espalhadas embaixo dos pêlos do peito. Na
ponta dos dedos, tocou o pescoço. Do lado direito, inclinando a cabeça, como se
apalpasse uma semente no escuro. Depois foi dobrando os joelhos até o chão. Deus,
pensou, antes de estender a outra mão para tocar no pêlo da cadela quase cega, cheio de
manchas rosadas. Iguais às do tapete gasto da escada, iguais às da pele do seu peito,
embaixo dos pêlos. Crespos, escuros, macios.
— Linda — sussurrou. — Linda, você é tão linda, Linda. (ABREU, 1988, p. 21-22)

Nesse trecho final do texto, notamos uma espécie de fusão ou integração plena
entre o corpo da personagem doente e os detalhes da casa, mais propriamente o tapete.
Conforme já ressaltamos, o tapete é o primeiro elemento que antecipa a velhice da mãe
e, por extensão, a da cadela. E, no final do conto, é o elemento que vai marcar o auge da
sugestão de que o filho vivencia uma experiência que se equipara à das outras duas
personagens, no sentido de que ele também encara a possibilidade do fim. A presença
do espelho é bastante significativa, pois pode apontar para a consciência do protagonista
em relação à sua própria condição, em conformidade com à da mãe e à de Linda.
Vemos, aí, que ele se confronta, ainda, com a autoconsciência da mutilação de sua
liberdade social. Linda e a mãe já estão integradas à casa, que figurativiza o isolamento
e a degradação, e ele passa a integrá-la também. O tempo interior das personagens é
colocado em destaque pelo autor. Não observamos acontecimentos ou ações de muita
relevância, já que estes servem mais bem aos desdobramentos que provocam no interior
das personagens, em seu estado mental e/ou afetivo.
Outro ponto a ressaltar, é o local fictício em que a narrativa se passa, a cidade
pequena e interiorana de Passo da Guanxuma. Essa cidade é uma criação de Caio
Fernando Abreu, e aparece em outros momentos de sua obra, às vezes sinalizando a
nostalgia de um lugar perdido, de um lugar para onde fugir. No conto, quando o
protagonista volta para esse lugar da infância, é como se ele quisesse voltar para o útero
materno; é como se ele buscasse alguma proteção ou algum refúgio diante da
experiência perturbadora que enfrenta. Nesse ponto, transcrevemos o excerto que segue:

De repente, então, enquanto nem ele nem ela diziam nada, quis fugir. Como se volta a
fita num videocassete, de costas, apanhar a mala, atravessar a sala, o corredor de
entrada, ultrapassar o caminho de pedras do jardim, sair novamente para a ruazinha de
casas quase todas brancas. Até algum táxi, o aeroporto, para outra cidade, longe do
Passo da Guanxuma, até a outra vida de onde vinha. Anônima, sem laços nem passado.
Para sempre, para nunca mais. Até a morte de qualquer um dos dois, teve medo. E
desejou. Alívio, vergonha. (ABREU, 1988, p. 15)

Por fim, sublinhamos que a construção do espaço da narrativa é pensada e


realizada para potencializar a problematização das forças opressivas disseminadas
dentro de uma estrutura social tradicionalista e patriarcal, descortinando-as e
questionando-as. O drama existencial vivenciado pelas personagens do conto evidencia
como a opressão exercida pela sociedade acaba por interferir na liberdade individual.
Nesse sentido, é possível afirmar que o autor coloca as minorias em primeiro plano,
dando voz àqueles que foram recalcados pela estrutura social.
Para aproveitar, aqui, uma das metáforas mais significativas do conto, podemos
dizer que Caio Fernando Abreu escancara aquilo que a sociedade tenta ―empurrar para
debaixo do tapete‖.

312
Considerando essa questão, afirmamos, com base no pensamento de Antonio
Candido (2002), que a literatura tem uma função humanizadora, devido à sua
capacidade de ―confirmar a humanidade do homem‖ (p. 77). Ou seja, ao propiciar um
lugar de encontro com a alteridade, o texto literário dá-nos a chance e a possibilidade de
conhecer e entender o diferente, e, principalmente, de irmanar-se com o outro, de aceitar
o divergente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABREU, C. F. Os dragões não conhecem o paraíso. São Paulo: Companhia das Letras,
1988.
BERARDINELLI, A. Da poesia à prosa. Trad. de M. S. Dias. São Paulo: Cosac Naify,
2007.
CANDIDO, A. A literatura e a formação do homem. In: ___. Textos de intervenção.
São Paulo: Duas Cidade; Ed. 34, 2002.
EIKHENBAUM, B. A teoria do ―Método Formal‖. In: EIKHENBAUM, B. et al. Teoria
da literatura: formalistas russos. Porto Alegre: Editora Globo, 1973, p. 03-38.
KORT, W. A. Place and Space in Modern Fiction. Florida: University Press of Florida,
2004.
MENDES, F. O. ―Linda, uma história horrível‖: a literatura encontra o vírus da AIDS.
In: Itinerários, Araraquara, n. 13, p. 217-223, 1998.
OLIVEIRA, A. E. Corpo, memória e AIDS na obra de Caio Fernando Abreu. In:
Bagoas, Natal, n. 3, p. 115-126, 2009.
POMORSKA, K. Formalismo e futurismo: a teoria formalista russa e seu ambiente
poético. Trad. de S. U. Leite. São Paulo: Perspectiva, 1972.
WERTER, M. R. et al. Manifestação da intertextualidade em ―Linda, uma história
horrível‖. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE EDUCAÇÃO DA FEEVALE, v.
4, 2016, Novo Hamburgo. Anais eletrônicos. Novo Hamburgo: FEEVALE, 2016.
Disponível em: http://www.feevale.br/hotsites/seminario-internacional-de-
educacao/edicao-atual. Acesso em: 15 ago. 2017.
SILVANO, F. Antropologia do espaço. Lisboa: Assírio e Alvim, 2010.

313
ANEXO

Figura 1. Capa da primeira edição de Os dragões não conhecem o paraíso (1988)

314
Cecília Meireles: entre a poesia e a tradução
(Cecília Meireles: entre la poesía y la traducción)

Jacicarla Souza da Silva1


1
Universidade Estadual de Londrina (UEL)

jacicarla.souza@gmail.com

Resumen: No cabe duda que la poetisa Cecília Meireles (1901-1964) representa uno de los
dos pocos nombres femeninos que integran parte del canon literario brasileño. Al hacer parte
de esta pléyade hegemónicamente masculina, la crítica tradicional le atribuye juicios que, a su
vez, tratan de diferenciar/alejar su obra de la producción de los autores modernistas de su
época. En este sentido, poco se comenta de las múltiples facetas cecilianas, las cuales señalan
una poetisa que va mucho más allá de lo efímero y de lo etéreo. Como forma de revisitar su
producción, se pretende con este estudio poner de relieve la actuación de Cecília Meireles en
el campo de la traducción.
Palabras clave: mujer; traducción; Cecília Meireles.

Resumo: A poetisa Cecília Meireles (1901-1964) representa, sem dúvida, um dos poucos
nomes femininos que integram o cânone literário brasileiro. Ao fazer parte desta plêiade
hegemonicamente masculina, a crítica tradicional atribui-lhe rótulos, como forma de
diferenciar/distanciar a sua obra da produção dos autores modernistas de sua época. Neste
sentido, pouco se fala das múltiplas facetas cecilianas, as quais evidenciam uma poetisa muito
além do efémero e do etéreo. Como forma de revisitar a sua produção, pretende-se com este
estudo destacar a atuação de Cecília Meireles no campo da tradução.
Palavras-chave: mulher; tradução; Cecília Meireles.

Sob o olhar da crítica cristalizada


Ao considerar a produção de autoria feminina na literatura brasileira, pode-se
afirmar que Cecília Meireles (1901-1964) representa uma minoria de autoras que
integram a historiografia canônica. O seu nome está presente inclusive em manuais,
livros didáticos, destinados aos alunos do ensino básico. É curioso observar que, tanto
nesses materiais de caráter pedagógico quanto nas Histórias Literárias, a obra da autora
de o Romanceiro da Inconfidência está atrelada a um perfil ―menos‖ modernista, se
assim se pode dizer, comparada aos demais escritores como Mario de Andrade, Carlos
Drummond, Manuel Bandeira, entre outros. O crítico literário Alfredo Bosi, por
exemplo, ao falar da poetisa afirma:

Com Cecília Meireles a vertente intimista, comum aos poetas que estamos estudando,
afina-se ao extremo e toca os limites da música abstrata. Mas, enquanto Murilo, Jorge
Lima, Schmidt e Vinícius são líricos do ser e da presença (religiosa, erótica ou social), o
poeta de Solombra parte de um certo distanciamento do real imediato e norteia os
processos imagéticos para a sombra, o indefinido, quando não para o sentimento
da ausência e do nada. (BOSI, 1993, p. 515, grifos meus)

315
Observa-se que assim como Bosi, grande parte da crítica sobre Cecília Meireles
irá cunhar a sua escrita como ―intimista‖, ―distante‖. Não é de se estranhar, portanto,
que os materiais didáticos reproduzam esse mesmo discurso:

Cecília Meireles e Vinícius de Morais completam o grupo dos principais poetas da


segunda geração do Modernismo brasileiro. Espiritualistas ambos, Cecília desenvolve
uma poesia intimista e reflexiva, de profunda sensibilidade feminina. Vinícius,
partindo de uma poesia religiosa e idealizante, chega a ser um dos poetas mais sensuais
da nossa literatura. [...] Cecília Meireles (1901-1964), a primeira grande escritora da
literatura brasileira e a principal voz feminina de nossa poesia moderna, nasceu no
Rio de Janeiro, onde fez seus primeiros estudos e se formou professora. Sempre
preocupada com a educação de crianças, dedicou-se ao magistério, ao mesmo tempo
que desenvolvia uma intensa atividade literária e jornalística, colaborando em quase
todos os jornais e revistas cariocas da época. (CEREZA; MAGALHÃES, 2000, p. 461,
grifos nossos)

Vale notar que novamente aparece a palavra ―intimista‖, bem como se destaca a
atuação da poetisa no que tange à produção de autoria feminina na literatura brasileira.
Na seção desse livro, o caráter ―efêmero e eterno‖, bastante presente na bibliografia
crítica sobre a escritora, também é ressaltado. Os poemas apresentados1 pelo material
corroboram a ideia de fugacidade, efemeridade do tempo e da vida em sua poesia.
A partir desse olhar, o qual tende a enfatizar o lado ―espiritual‖ e ―efêmero‖ da
obra ceciliana, que Ana Maria Domingues de Oliveira questiona a leitura que a crítica
tem feito em relação à produção da autora de Viagem:

[...] a leitura que, grosso modo, se tem feito da obra de Cecília Meireles está já
condicionada a encontrar, em seus textos, um modelo de feminino que se considera
inerente à obra da poetisa, ou seja, etéreo, espiritual, alienado, assexuado, incorpóreo.
Mas até que ponto se pode afirmar que essa correspondência é de fato inerente à
obra de Cecília? Até que ponto não seria esta correspondência o produto de uma leitura
de cartas marcadas, que buscaria, nos textos cecilianos, evidências que comprovassem
uma hipótese, já de antemão estabelecida, a propósito de supostas características da
escrita feminina? Acredito que, para muitos críticos, a poesia de Cecília
corresponderia à expectativa daquilo que socialmente se considera e espera que
seja a escrita feminina. (OLIVEIRA, 2007, sem paginação, grifos meus)

É justamente diante da proposta de revistar a obra de Cecília Meireles que o


presente estudo visa a observar a atuação da poetisa como tradutora, perfil pouco
explorado pelos estudiosos de sua produção. Pretende, portanto, trazer à luz uma outra
faceta da escritora que, por sua vez, foge do olhar cristalizado que vem sendo dado pela
crítica à sua obra.

1
Para exemplificar as afirmações tecidas sobre Cecília Meireles, o livro traz os seguintes poemas:
―Pequena canção da onda‖, ―Música‖, um fragmento de o Romanceiro da Inconfidência e ―1º Motivo da
rosa‖.

316
Traduções cecilianas2
Dentre o significativo número de textos que Cecília Meireles traduziu para a
língua portuguesa, vale ressaltar A canção de Amor e de Morte do porta estandarte
Cristóvão Rilke (1947), de Rainer Maria Rilke, feito a partir da versão francesa de
Suzanne Kra, com a assistência de Paulo Rónai; Orlando (1948), de Virginia Woolf,
publicado pela Editora Globo, de Porto Alegre; Bodas de sangue (1960) e Yerma
(1963), de Federico García Lorca, publicados pela Agir, do Rio de Janeiro; os poemas
―Sete poemas de Puravi‖, ―Minha bela vizinha‖, ―Conto‖, ―Mashi‖ e ―O carteiro do
rei‖, de Tagore, publicados em edição comemorativa do centenário do autor (1961),
bem como Çaturanga (1962), também do poeta indiano, publicado pela editora Delta,
no Rio de Janeiro; além de alguns poemas israelenses, reunidos em Poesia de Israel
(1962), com ilustrações de Portinari, em edição da Civilização Brasileira, do Rio de
Janeiro.
Essa notável quantidade de traduções realizadas pela poetisa nos mais diversos
idiomas revela a preocupação de Cecília Meireles em divulgar a cultura de outros países
através da literatura. Por outro lado, por necessidade financeira, ela também irá traduzir
algumas obras de cunho comercial, como Os caminhos de Deus (1958), de Kathryn
Hulme, Amado e glorioso médico (1960), de Taylor Caldwell, ambas publicadas por
Seleções do Reader‘s Digest, além de outros livros.
As traduções feitas por Cecília revelam ainda suas afinidades estético-literárias,
se assim pode-se dizer. Os textos dramáticos que aparecem de forma significativa na sua
atividade como tradutora, sem dúvida, mostram que ela não estava inclinada somente
para a poesia. Além de Yerma e Bodas de Sangre, de Lorca, Cecília chegou a traduzir
Peer Gynt, de Henrik Ibsen e Pélleas, de Maurice Maeterlinck, como mostra a carta
enviada a Gabriela Mistral em 07 de janeiro de 1944:

Agora preparo-me para traduzir ―Bodas de Sangre‖, para uma representação este ano
(talvez em abril) no Municipal, com a Dulcina. Não sei se lhe falei que havia traduzido
―Pélleas‖ de Maeterlinck, e ―Peer Gynt‖, de Ibsen para o grupo de amadores ―Os
comediantes‖, cuja temporada se encerra domingo próximo. ―Pélleas‖3 foi um sucesso.
Você gostaria de ter visto: cenários lindíssimos, e a representação superior à do teatro
profissional brasileiro, em geral. ―Peer Gynt‖4 deve ser representado esse ano.
Entrementes, Dulcina resolveu também melhorar o seu teatro, e pediram-me que
traduzisse Lorca. Embora me pareça muito difícil de representar, é um trabalho que faço
com prazer.
Terminei também um novo livro de poesia que sairá breve, e do qual me quero
livrar para pensar em noutras coisas. Estou muito animada com o teatro.
(MEIRELES, 1944, não paginado, grifo meu)

No comentário realizado pela poetisa fica perceptível o seu deslumbramento


com relação ao teatro. Nesse fragmento, Cecília menciona a atriz Dulcina Moraes

2
Sobre esse tema, ver capítulo 2, p. 79 de SILVA, J. S. Vozes femininas da poesia latino-americana:
Cecília e as poetisas uruguaias. São Paulo: Cultura acadêmica, 2009.
3
A obra foi encenada pela primeira vez em 1893, já a ópera Pélleas e Mélisande de Debussy, com livreto
de Maeterlinck, teve a primeira apresentação em 1902. A tradução realizada por Cecília Meireles está
disponível para visualização na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
4
Refere-se à peça teatral do dramaturgo Henrik Ibsen, publicada em 1867 e musicada pelo norueguês
Edvard Grieg.

317
(1908-1996), que funda em 1934, juntamente com seu marido, também ator, Odilon
Azevedo, a Companhia teatral Dulcina-Odilon, e o grupo ―Os comediantes‖, o qual
consolida o movimento de teatro amador no Brasil. O grupo inaugura a modernidade no
teatro brasileiro, encenando peças como o Vestido de Noiva de Nelson Rodrigues, sob a
direção de Ziembinski. O fato de ter seu trabalho representado por figuras de grande
importância para a dramaturgia brasileira mostra a relevância da contribuição da
escritora, não apenas no âmbito da poesia, mas também no contexto cultural de sua
época.
Outra atuação da poetisa no campo da tradução, e igualmente pouco comentada,
diz respeito às versões para a língua portuguesa dos textos de Gabriela Mistral,
conforme revelam as correspondências trocadas entre elas:

Cara Gabriela: escrevo lhe a correr, para dizer-lhe o seguinte: o ―Recado‖ sobre as
flores, não lho mando porque, com a ajuda de Haydée para os nomes das flores e das
plantas, já não tenho mais dúvidas. Ele está pronto, e vou mandá-lo a Connie5, que se
encarregará de enviá-lo em seu nome para uma das revistas indicadas.
Como sabe, a outra tradução ―Festa do cavalo chileno‖ já foi também para ―Eu sei
tudo‖.
Restam os ―Tlalocs‖6, que aqui vão, com as seguintes dúvidas:
1-- em que sentido está o verbo apurar?
2-- que quer dizer precisamente ―um solo tomado de sol e gredas‖? (sic)
3-- parece-me melhor deixar a palavra henequen e fazer uma chamada, explicando em
baixo que se trata do Agave Fourcroyedes. Que acha? […]
Mando também uma tradução de Barrechenea7. Embora não goste da pessoa os versos
me parecem bonitos. E ficam mesmo bonitos traduzidos.
Já tinha traduzido o seu ―Salto del Laja‖, mas agora com a nova versão é preciso
corrigir o que tinha feito. Irá em breve. […] (MEIRELES, s/d, não paginado, grifos do
autor)

O texto comentado por Cecília no início da carta corresponde ao ―Recado para


Inés Puyó sobre unas flores‖, publicado no periódico El Mercurio, em 17 de maio de
1943. É interessante observar a referência ao nome de Haydée de Meunier para quem a
escritora teria solicitado ajuda. Será a mesma Haydeé que traduzirá o poema ―Elegia a
morte de Gandhi‖, de Cecília Meireles, para o número 11 da revista espanhola Acalanto
de 1947, como destaca Ricardo Souza de Carvalho (2006, p. 77). Nessa correspondência
ainda é feita uma referência ao texto ―Salto de Laja‖. Trata-se de um poema, que
aparece primeiramente nos periódicos Sur (1938) e em El Mercurio (15 de maio de
1938), o qual faz parte da obra póstuma Poemas de Chile (1967) de Gabriela Mistral e
alude à beleza natural americana.
Neste sentido, é possível notar que a tradução será usada como forma de
fortalecer tanto a produção de Gabriela Mistral no Brasil quanto à obra de Cecília
Meireles nos países de língua espanhola8. Como lembra Pascale Casanova (2001, p.

5
Refere-se à porto-riquenha Consuelo Saleva, companheira de Gabriela Mistral.
6
―Recado sobre os Tlalocs‖, publicado em A Manhã de 20 de novembro de 1943.
7 Julio Barrechenea (1910-1979), poeta, político e diplomata chileno.
8
Sobre a troca de carta entre elas, ver: SILVA, J. S. Cecília Meireles, Gabriela Mistral e Victoria
Ocampo: em torno de um in(visible) college na América Latina. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
Disponível em: http://editoraunesp.com.br/catalogo/9788568334263,um-invisible-college-na-america-
latina. Acesso em: 15 ago. 2017.

318
183), a tradução é a via de principal acesso para os escritores considerados como
―periféricos‖: ―[...] es la traducción a una gran lengua literaria la que hará entrar su
texto en el universo literario: la traducción no es una simple ‗naturalización‘ (en el
sentido de un cambio de nacionalidad), ni el paso de una lengua a otra; es, mucho más
específicamente, una ‗literarización‘‖.
Se, por um lado, é possível observar que a atividade desenvolvida por Cecília
Meireles como tradutora está relacionada à inserção literária, como destaca Casanova,
por outro, percebe-se um esforço em colocar em circulação textos de grande valia no
que tange à produção literária do século XX. Trata-se de obras que inclusive
problematizam a construção dos papeis sociais de gênero como Orlando, de Virginia
Woolf, e Yerma, de Federico García Lorca. Tal questionamento, no caso da obra do
escritor espanhol, é trazido por meio da personagem Yerma que deseja engravidar, uma
vez que, para ela, a função da mulher no núcleo familiar seria o da procriação, além dos
cuidados com o lar. Assim, ao não conseguir cumprir com o papel de mãe, Yerma se vê
em um profundo vazio. O seu próprio nome em espanhol corresponde à ideia de um
lugar inabitado. Desta forma, como um terreno não cultivado, yermo, a protagonista
desta tragédia lorquiana desespera-se por não corresponder ao que lhe é esperado
socialmente:

Yerma
É certo. As mulheres dentro de suas casas. Quando as casas não são tumbas. Quando as
cadeiras se quebram e os lençóis de linho se gastam com o uso. Mas aqui, não. Todas
as noites, quando me deito, encontro a minha cama ainda mais nova, mais
reluzente, como se acabasse de ser trazida da cidade.
João
Tu mesma reconheces que tenho razão de queixar-me. Que tenho motivos para estar
alerta.
Yerma
Alerta? Por quê? Em nada te ofendo. Vivo submissa a ti, e o que sofro, guardo
pregado à minha carne. E cada dia que passa será pior. Não falemos nisso. Saberei
levar a minha cruz como melhor puder, mas não me perguntes nada. Se pudesse,
de repente, ficar velha e ter a boca como flor esmagada, poderia sorrir e ir levando
a vida contigo. Agora, agora – deixa-me com os pregos da minha cruz.
[...]
Yerma
Mas tu és tu, e eu sou eu. Os homens têm outra vida; o gado, as árvores, as
conversas; e nós mulheres, não temos mais que a cria e o cuidado da cria.
(LORCA, 1963, passim, grifos meus)

Neste trecho fica evidenciado o entendimento de Yerma quanto ao papel que


deveria cumprir como mulher, o da submissão, o do ―cria‖ e do ―o cuidado da cria‖.
Aqui também fica implícito que a ausência de um filho entre o casal é consequência da
falta de contato físico entre João e Yerma. Esse aspecto coloca em questionamento que
não somente Yerma, mas também seu companheiro, não estariam exercendo suas
―funções‖, de acordo com os valores impostos pela sociedade. Neste sentido, pode-se
afirmar que ambos são vítimas das imposições sociais.
A obra Orlando, assim como Yerma, também problematiza as relações de
gênero estabelecidas pelos princípios do patriarcado:

319
Recordava como tinha insistido, nos seus tempos de rapaz, em que as mulheres devem
ser obedientes, castas, perfumadas e caprichosa mente enfeitadas. “Agora tenho que
pagar com meu corpo por aquelas exigências‖, refletiu; “pois as mulheres não são
(a julgar pela minha própria experiência do sexo) obedientes, castas, perfumosas e
caprichosamente enfeitadas já por natureza. Só podem conseguir essas graças, sem
as quais não lhe é dado desfrutar nenhuma das delícias da vida, mediante a mais
enfadonha disciplina. Só o penteado‖, pensava, ―me tomará uma hora, todas as
manhãs; outra hora para mirar-me ao espelho; há o espartilho, o banho, os pós, há
que trocar a seda pela renda e a renda pelo brocado; há que ser casta o ano
inteiro...‖ Lorde Chesterfield murmurou-o a seu filho, sob as mais severas
recomendações confidenciais: ―As mulheres são apenas crianças grandes... Um
homem inteligente apenas se diverte com elas, agrada-as, adula-as‖. [...] As
mulheres sabem muito bem disso; embora um homem de talento lhes mande seus
poemas, elogie seu critério, solicite sua crítica e tome seu chá, isto de modo algum
significa que respeite suas opiniões, admire sua compreensão ou recuse, à falta de
espada, transpassá-la com sua pena. Tudo isso, por mais baixo que se murmure, pode
transpirar [...]. (WOOLF, s.d, passim, grifo meu)

Escrita em 1928, a obra tem como protagonista Orlando, que vive por quatro
séculos em sua propriedade e, durante esse tempo, muda de sexo e transforma-se numa
mulher. Ao longo da narrativa, o leitor depara-se com as mais diversas experiências da
personagem protagonista, desde a sua decepção amorosa por Sasha, a princesa russa, até
a sua experiência como cônsul na Turquia. Vale lembrar que neste mesmo lugar, após
acordar de um sono de sete dias, ele descobre que seu corpo é agora o de uma mulher. É
justamente ao experienciar o corpo feminino que Orlando começa a observar as
arbitrariedades atribuídas pela sociedade às mulheres, conforme aponta o fragmento
acima. Além disso, o trecho também mostra os pactos estabelecidos entre homens e
mulheres, em função do convívio social. Se, por um lado, os homens ―inteligentes‖
fingem respeitar as opiniões femininas, por outro lado, as mulheres dissimulam
acreditar que estão tendo suas opiniões consideradas pelo sexo masculino. Desta forma,
o romance coloca em discussão não apenas a condição da mulher, mas também traz à
luz o conceito de gênero, em função da presença ambígua da personagem Orlando que
pôde vivenciar os corpos masculino e feminino.
As traduções de Orlando e Yerma realizadas por Cecília Meireles, sem dúvida,
mostram, além de um lado pouco comentado sobre a poetisa, o de tradutora, ainda
revelam o interesse da autora de Vaga Música por temas voltados para a condição
feminina na sociedade. Como enfatiza Haroldo de Campos, a seleção de uma tradução é
sempre reveladora, e não um ato indiferente. Assim, o autor complementa: ―Os móveis
primeiros do tradutor, que seja também poeta ou prosador, são a configuração de uma
tradição ativa (daí não ser indiferente a escolha do texto a traduzir, mas sempre
reveladora), um exercício de intelecção e, através dele, uma operação de crítica ao
vivo.‖ (CAMPOS, 1970, p. 32)
Levando em conta os comentários de Campos, as traduções cecilianas indicam
uma preocupação por parte da poetisa no que tange às questões referentes ao universo
feminino. Ao trazer as versões dessas duas representativas obras para língua portuguesa,
Cecília demonstra que essa temática não lhe é indiferente; ao traduzir esses dois textos
ela ainda permite que leitores lusófonos possam apreciar e se questionar acerca de um
tema de relevância no que diz respeito aos papeis sociais impostos pela sociedade.
No que se refere aos estudos relacionados à mulher e tradução, é importante
ressaltar o enfoque que vem sendo dado pelas teorias feministas, principalmente sobre

320
os conceitos que colocam à margem mulheres e tradutores. Neste sentido, questionam-
se os processos que levaram essa atividade a ser ―feminizada‖. Além disso, procura-se
mostrar a preocupação das estruturas de poder em manter essa associação de maneira
negativa:

Por serem necessariamente ―defectivas‘‖ todas as traduções são ―reputadas como


females‖. Nesta cuidadosa equação, John Florio (1603) resume uma herança de dupla
inferioridade. Tradutores e mulheres têm historicamente sido as figuras mais fracas em
suas respectivas hierarquias: tradutores são governantas/donas de casa para os autores,
mulheres inferiores a homens. Seja afirmada ou denunciada, a feminilidade da tradução
é um tropos historicamente persistente. ‗Mulher‘ e ‗tradutor‘ têm sido relegados à
mesma posição de inferioridade discursiva. (SIMON, 1996, tradução minha, p. 1)9

Apesar da indiscutível importância cultural que as traduções representam, nota-


se um silenciamento em reconhecer os (as) que atuam nessa atividade. Esse mesmo
silenciamento também é perceptível ao considerar a escrita de autoria feminina. Ao
apresentar essa ideia da ―feminização‖ da tradução, Simon põe em discussão uma
relação pouco explorada, tanto no que diz respeito aos estudos da tradução quanto aos
trabalhos voltados para a produção intelectual realizada por mulheres.
Diante dessa ―inferioridade discursiva‖, pode-se afirmar que, ao reconhecer a
atuação de Cecília Meireles como tradutora e preocupada com as questões relacionadas
ao universo feminino, observa-se um perfil que contraria as afirmações que tende em
pensá-la como alheia a temas sociais de sua época.

Traduttore/Traditore
Apesar do seu vasto conhecimento cultural, a atividade como tradutora para
Cecília Meireles não era levada com tranquilidade, como mostra a carta enviada a sua
grande amiga e interlocutora Gabriela Mistral:

Não tenho feito as traduções chilenas, por que esperava conversar com V. sobre o
assunto. […] Querida Gabriela, vou procurar um chileno para traduzir. Na minha
opinião, aliás, os sulamericanos deviam ser publicados no original. Por que fazer este
crime de metê-los noutra pele, quando nós todos entendemos tão facilmente o espanhol,
e com a prática de lê-lo ainda o viríamos a entender melhor? Por que V. não explica isso
às gentes com que trata? Seu prestígio de rainha quéchua está muito consolidado, digam
o que digam os ―criollos‖. V. poderia mesmo decretar aos seus vassalos: ―Queda
establecido que en la cosa literaria cada uno escribe como habla, e (sic) así se publica,
consideradas todas las traducciones, aún las da sra. C.M., como abusivas, exóticas,
nocivas al bienestar de los pueblos y al sentido común. Etc, para que se cumpla, y que
se no lo cumplen (sic) sean llevados los traidores a un campo de concentración
prusiano, etc. (MEIRELES, 1943, não paginado)

9
Because they are necessarily ―defective‖ all translations are ―reputed females‖. In this neat equation,
John Florio (1603) summarizes a heritage of double inferiority. Translators and women have historically
been the weaker figures in their respective hierarchies: translators are handmaidens to authors, women
inferior to men. […] Whether affirmed or denounced, the femininity of translation is a persistent
historical trope. ―Woman‖ and ―translator‖ have been relegated to the same position of discursive
inferiority.

321
Esses comentários de Cecília Meireles, referente à carta de 26 de julho de 1943,
além de mostrar a posição da poetisa brasileira em relação às traduções nas línguas
espanhola e portuguesa entre os países da América do Sul, ainda expõe a angústia de
todos aqueles(as) que se deparam com o processo da tradução. Trata-se da busca por
alcançar uma versão ideal que, segundo Umberto Eco, seria ―não restituir em outra
língua nada a menos, mas também nada a mais do que aquilo que o texto fonte insinua‖
(ECO, 2014, p. 263). As considerações cecilianas ainda demonstram a consciência de
―traição‖ ao realizar essa atividade. Observa-se aqui uma referência implícita ao
conhecido trocadilho italiano ―traduttore/traditore‖ (tradutor/traidor). Para a poetisa
brasileira, submeter um texto em outra língua – ―metê-los noutra pele‖ – seria um crime.
No poema ―Tradução‖, de 1960, que se encontra em O estudante empírico e que
teve a sua primeira edição no volume 9 das Poesias Completas (1974), organizada por
Darcy Damasceno, também é possível notar alguns questionamentos em torno da
prática da tradução:

Tradução

Não são caracteres desconhecidos –


é a nossa escrita comum,
sem qualquer ambiguidade,
sem qualquer ornamento pessoal, manual, ideal.
Que diz o texto?

Não são palavras desusadas – nem de outro idioma –


é a linguagem de todos os dias,
sem qualquer erro gráfico,
sem qualquer variação ortográfica.
Ao certo, que diz o texto?

Estamos traduzindo, cada qual em sua banca.


Às vezes, a simples pontuação produz grandes equívocos.
Talvez seja da pontuação?
Sentimo-nos um pouco atônitos.
Ao certo, que pretendia dizer o autor do texto?
(MEIRELES, 2001, v. 2, p. 1399-1440)

Nesse texto poético o eu lírico lança algumas perguntas que a cada estrofe
ganham de maneira gradativa maiores proporções. Essas indagações sugerem as dúvidas
do próprio tradutor, ao se deparar com o seu objeto de trabalho. É interessante observar
a presença de um discurso que tenta direcionar a ideia dessa prática como uma tarefa de
simples decodificação, o que também vai sendo desconstruído gradualmente ao longo
do poema. Nos últimos versos o eu lírico, ao mencionar os grandes equívocos que
podem surgir durante o processo de tradução, questiona se esses mal-entendidos seriam
simplesmente provocados por desvios na pontuação. Em seguida, ele afirma a sensação
de confusão e desnorteamento. Assim, como um observador que tem a experiência de
maneira prática e não teórica, como indica o nome da obra a qual ele pertence, essa voz
enunciadora do poema revela alguns dos embates vivenciados frente essa difícil tarefa
de ―traduzir‖. Essas mesmas discussões apontadas nos versos cecilianos vão ao
encontro dos comentários feitos por Cecília Meireles, nas correspondências enviadas a

322
Gabriela Mistral, ao revelar as dificuldades e conflitos diante da sua atividade como
tradutora.
A respeito do caráter da tradução, Simon (1986, p. 83) ressalta o fato de a
tradução ser um ato da escrita e da comunicação que não se isenta de padrões, valores e
ideias. O objetivo do tradutor, assim como o seu próprio trabalho, são maneiras de
interagir com o mundo. Trata-se de um procedimento que reflete uma relação orgânica
entre texto e cultura, entre autor e leitor. O discurso e a prática da tradução, segundo a
autora, requerem, acima de tudo, um posicionamento diante da enunciação. Ao levar em
conta, portanto, a capacidade de circulação das traduções, é de grande valia analisar a
sua contribuição para o enriquecimento cultural. Isto lhe atribui grande valor, uma vez
que ela funciona como mediador de ideologias.
Neste sentido, as traduções cecilianas podem abrir caminho para um outro olhar
em relação à sua produção intelectual. Conforme destacou Oliveira (2007), é preciso
fugir do ―jogo de cartas marcadas‖ que a crítica tem feito sobre a sua obra. Uma visão
mais atenta ao seu legado mostra uma Cecília que, além de ―intimista‖, também se
preocupou em difundir diferentes culturas, trazendo à luz em suas traduções temáticas
de cunho social de relevância, não somente para a sua época, mas para o contexto atual.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CAMPOS, H. Da Tradução como criação e como crítica. In: _______. Metalinguagem.
2. ed. Vozes: Petrópolis, 1970. p. 21-38.
CARVALHO, R. S. Duas vozes para a literatura brasileira na Espanha: Ángel Crespo e
Gabino-Alejandro Carriedo. Anuario Brasileño de estudios hispánicos, Brasília, v. 16,
n.01, p. 76-80, 2006.
CASANOVA, P. Trad. Jaime Zulaika. La República mundial de las Letras. Barcelona:
Anagrama, 2001.
CEREJA, W. R.; MAGALHÃES, T. C. Literatura brasileira. 2.ed. São Paulo: Atual,
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ECO, H. Quase a mesma coisa. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2014.
GARCÍA LORCA, F. Yerma. Tradução Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Agir, 1963.
MAETERLINCK, Maurice. Pélleas. Tradução Cecília Meireles. Disponível em:
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_manuscritos/literatura/mss_I_07_21_001A.pdf
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MEIRELES, C. Carta a Gabriela Mistral: documento digitalizado pelo Arquivo
mistraliano da Biblioteca Nacional do Chile. Santiago: Biblioteca Nacional, 26 jul.
1943. 1f. Disponível em: http://bncatalogo.cl/escritor/AE0008261.pdf. Acesso em: 21
jul.2010.
MEIRELES, C. Carta a Gabriela Mistral: documento digitalizado pelo Arquivo
mistraliano da Biblioteca Nacional do Chile. Santiago: Biblioteca Nacional, 07 jan.
1944. 1f. Disponível em: http://bncatalogo.cl/escritor/AE0008262.pdf. Acesso em: 10
maio 2017.

323
MEIRELES, C. Carta a Gabriela Mistral: documento digitalizado pelo Arquivo
mistraliano da Biblioteca Nacional do Chile. Santiago: Biblioteca Nacional, s/d. 1f.
Disponível em: http://bncatalogo.cl/escritor/AE0008272.pdf. Acesso em: 21 jul.2010.
MEIRELES, C. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. 2v.
MISTRAL, G. Recado para Inés Puyó sobre unas flores, El Mercurio, 17 mayo 1943.
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MISTRAL, G. Recado sobre os Tlalocs, A Manhã de 20 nov.1943. Texto disponível
em: http://bncatalogo.cl/escritor/AE0015968.pdf. Acesso em: 11 abr. 2011.
OLIVEIRA, A. M. D. Figuras femininas na poesia de Cecília Meireles. In: Seminário
Nacional e Seminário Internacional Mulher e Literatura, 12. e 3., 2007, Ilhéus. Anais
eletrônicos [...] Ilhéus: UESC, 2007. Disponível em:
http://www.uesc.br/seminariomulher/anais/PDF/ANA%20MARIA%20DOMINGUES
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TEATRO. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural. Disponível em:
http://www.itaucultural.org.br/aplicExternas/enciclopedia_teatro/index.cfm?fuseaction=
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WOOLF, V. Orlando. Trad. Cecília Meireles. São Paulo: Círculo do Livro, s.d.

324
A performatividade como empoderamento subalterno
na personagem Luisa Rey e Robert Frobisher em Cloud
Atlas, de David Mitchell
(Performativity as a subaltern empowerment in Luisa Rey, from Cloud Atlas,
written by David Mitchell)

Davi Silistino de Souza1


1
Universidade Estadual Paulista (UNESP/IBILCE)

dvssouza@hotmail.com

Abstract: In the present work, we analyze how Luisa Rey and Robert Frobisher -
bothrepresentatives of subalternity - are able to fight against the sexist and homophobic
hegemony in the chapters "Half-Lives: The First Luisa Rey Mystery" and "Letters
FromZedelghem", of the novel Cloud Atlas, written by David Mitchell. In addition, we will
demonstrate how the characters oppose a society that sees the categories sex and gender as
inseparable; and, finally, we will interpret the actions of the characters through the concept of
performativity (BUTLER, 2015), tool of empowerment of subalterns.
Keywords: Performativity; Gender; Cloud Atlas; David Mitchell.

Resumo: No presente trabalho analisamos de que maneira Luisa Rey e Robert Frobisher,
representantes da subalternidade, são capazes de lutar contra a hegemonia machista e
homofóbica nos capítulos ―Half-Lives: The First Luisa Rey Mystery‖ e ―Letters From
Zedelghem‖, do romance Cloud Atlas, de autoria de David Mitchell. Além disso,
demonstraremos como as personagens se opõem a uma sociedade que enxerga as categorias
sexo e gênero como indissociáveis; e, enfim, interpretaremos as ações das personagens por
meio do conceito de performatividade (BUTLER, 2015), ferramenta de empoderamento dos
subalternos.
Palavras-chave: Performatividade; Gênero; Cloud Atlas; David Mitchell.

As discussões acerca das identidades de gênero perspassam vários níveis, nos


quais envolve-se a distinção (ou não) entre as categorias sexo, gênero e desejo, as quais
frequentemente são misturadas ou assumidas como bloco, isto é, constituintes
indissociáveis. Butler (2015) é uma das estudiosas que se aprofunda nesse debate,
interpretando, questionando e acrescentando às teorizações de Foucault, em A história
da sexualidade; de Beauvoir, em O segundo sexo; de Kristeva, em Revolução na
linguagem poética, assim como de Lacan, em O significado do falo, e de Freud, em O
ego e o superego.
A autora, frente às difíceis discussões, declara abertamente que a tarefa do
crítico dessa área é a de ―[...] formular, no interior dessa estrutura constituída, uma
crítica às categorias de identidade que as estruturas jurídicas contemporâneas
engendram, naturalizam e imobilizam.‖ (BUTLER, 2015, p. 24). A pensadora revela
que a constituição e as crenças acerca da identidade de gênero envolve uma estrutura
bem mais complexa do que primeiramente aparenta.
Seguindo as observações de Foucault, percebe-se uma mobilização jurídica e
política, responsáveis por uma ―[...] limitação, proibição, regulamentação, controle e
mesmo ‗proteção‘ dos indivíduos relacionados àquela estrutura política, mediante uma

325
ação contingente e retratável de escolha.‖ (BUTLER, 2015, p. 19). Tais estruturas de
poder estão relacionadas com a forma como enxergamos sexo, gênero e desejo, mas
principalmente com a indireta produção de identidades.
Para compreender essa afirmação devemos olhar atentamente para as distinções
entre as categorias de gênero e sexo, e para o modo como, comumente, se as observam
de forma indissociáveis. A complexidade em apreender as diferenças entre as categorias
é concebível, ainda mais considerando que o gênero, assim como pensa Beauvoir, é
construído por forças exteriores ao ser. De fato, por meio da famosa frase ―Ninguém
nasce mulher: torna-se mulher‖, a pensadora feminista enfatiza justamente as distinções
existentes entre as duas categorias.
Mas afinal o que está implícito na afirmação de que o sexo é indissociável à
categoria de gênero? Encaminhando para uma abordagem biológica, a qual
consideramos discutível, o ser humano nasceria com duas restritas possibilidades:
feminina e masculina. Dessa maneira, a identificação de gênero já estaria pré-
selecionada desde o nascer, estando atrelada a essas duas condições fixas.
Beauvoir e Butler questionam essa teoria, mostrando que o gênero não aparece
já no nascimento, mas sim é resultado de um processo bem mais complexo. Segundo
Butler (2015),

[...] não há razão para supor que os gêneros também devam permanecer em número de
dois. A hipótese de um sistema binário dos gêneros encerra implicitamente a crença
numa relação mimética entre gênero e sexo, na qual o gênero reflete o sexo ou é por ele
restrito (p. 26)

Assim, admite-se as mais diversas possibilidades de gênero, não restringindo-as


à categoria de sexo. Na visão de Butler, um corpo masculino pode muito bem exprimir
um gênero tido como masculino, assim como feminino; e o mesmo funciona para
ambos os lados.
Tomemos como exemplo dessa distinção entre sexo e gênero a personagem
Luisa Rey. A narrativa em que ela se encontraocorre na metade do século XX na cidade
fictícia de BuenasYerbas, nos Estados Unidos. Luisa é uma jornalista ambiociosa
querecebe um dossiê de Rufus Sixsmith, acusando uma famosa corporação de ir adiante
com a construção de plantas nucleares perigosas e instáveis. Em posse de tais
documentos, a personagemencara uma jornada para desmascarar as artimanhas da
companhia e publicar uma reportagem expondo possibilidades de perigo à população.
Luisa, desde o início da narrativa, não se submete às características que
normalmente as mulheres da época apresentavam. Em meio a uma sociedade machista,
repleta de homens ocupando o espaço profissional, seja nas editoras, nos cargos
políticos ou em qualquer outra profissão, a personagem desponta como uma força ativa,
imponente e corajosa. Claro, isso não faz de Luisa Rey menos mulher. Entretanto,
desestabiliza as fundações das teorias que associam o sexo ao gênero.
A personagem, de fato, interrompe as associações diretas do imaginário popular
de que as mulheres deveriam apresentar traços ―femininos‖, ou melhor, do que
socialmente está atrelado ao conceito de feminino. De fato, esse conceito é considerado
atrelado a uma significação da falta, do inexistente, do submisso, do passivo. Assim,
Luisa causa uma ruptura no binarismo feminino/masculino, carregando uma identidade
permeada por uma performance pouco marcada pela submissão, mas incorporada por
uma papel ativo, forte e corajoso.

326
Essas características de bravura, coragem e independência são confrontadas por
personagens que acreditam no conceito arcaico e binário de sexo e gênero. No trecho a
seguir, Luisa está em uma festa promovida por sua mãe e padrasto, momento em que a
personagem lida com situações em que sua atitude não corresponde com o esperado a
ser realizado por uma mulher na sociedade binária:

Uma convidada, cuja idade é semelhante a de Luisa, abraça-a. ―Luisa! Se passaram três
ou quatro anos!‖ De perto, o charme da convidada é malicioso e impertinente. ―Mas é
verdade que você ainda não se casou?‖
―Certamente não.‖ É a seca resposta de Luisa. ―Você já?‖ (MITCHELL, 2004, p. 402)1

A festa promovida pelos familiares da personagem revelam, de forma explicita,


características patriarcais e machistas veladas apresentadas anteriormente no capítulo.
Assim, ao invés de uma personagem fazer uma piada com Luisa, ou subestimá-la no
trabalho, nessa cena mostra-se direta a imagem de mulher como sendo dona de casa,
cuja função é se casar, ter filhos e acatar as opiniões do marido.
Em face disso, devemos nos atentar para o modo como Luisa lida com a
situação. Ao invés de acatar a uma performance de gênero retrógrado, não condizendo
as suas ideologias, a personagem reforça uma postura reafirmativa, na qual se orgulha
das escolhas de não seguir o trajeto de vida esperado por essa sociedade.Luisa, em um
sentido, vai de acordo com Butler quando esta critica as relações entre sexo e gênero
como uma unidade. Para a autora,

O gênero só pode denotar uma unidade de experiência, de sexo, gênero e desejo,


quando se entende que o sexo [...] exige um gênero – sendo o gênero uma designação
psíquica e/ou cultural do eu – e um desejo – sendo o desejo heterossexual e, portanto,
diferenciando-se mediante uma relação de oposição ao outro gênero que ele deseja.
(BUTLER, 2015, p. 52)

Luisa, dessa maneira, discorda do posicionamento de que o gênero, sexo e


desejo se enquadram em um bloco de unidade, visto que em sua performance de gênero
não se segue às expectativas dessa afirmação. No entanto, não é um trabalho fácil para a
personagem se portar dessa maneira e enfrentar uma sociedade repleta de ideologias
machistas.
Nota-se o perfil hegemônico machista explícito, isto é, à todo tempo diminuindo
e rebaixando as mulheres, em dois momentos do capítulo dedicado a Luisa Rey. O
primeiro se passa na editora da revista Spyglass, quando Luisa expõe o desejo de
investigar o caso trazido por Sixsmith, sendo menosprezada pelo colega de trabalho
Nussbaum:

―Ele [Sixsmith] acredita que o novo reator nuclear HYDRA na ilha de Swannekke não é
tão seguro como dito oficialmente. De fato, não é nada seguro. A cerimônia de abertura
é nessa tarde, então gostaria de participar e ver se consigo encontrar algo.‖
―Que daora, uma cerimônia de abertura técnica,‖ exclama Nussbaum. ―Que ressoar é
esse, pessoal? Um prêmio Pulitzer, a caminho?‖
―Ah, vai se fuder, Nussbaum.‖

1
Tradução nossa do excerto: ―A female guest of Luisa‘s age hugs her. ―Luisa! It‘s been three or four
years!‖ Close-up, the guest‘s charm is cattish and prying. ―But is it true you‘re not married yet?‖
―I certainly am not‖ is Luisa‘s crisp reply ―Are you?‖ (MITCHELL, 2004, p. 402)

327
Jerry Nussbaum suspira. ―Só se você estiver junta...‖
Luisa está dividida entre retaliar – Sim, e deixar o verme notar o quanto ele te irrita – e
ignorá-lo – Sim, e deixar o verme se safar dizendo o que ele bem entende.‖
(MITCHELL, 2004, p. 100)2

Se não bastasse o menosprezo pelo campo investigativo de Luisa, o jornalista faz


um comentário explicitamente machista e característico de assédio. A reação de
Nussbaum, na realidade, não seria o mesmo caso ela fosse um jornalista do sexo
masculino; porém, mais do que isso, o espaço de trabalho, isto é, os outros empregados,
incluindo o chefe, e o conjunto de leis veladas e indiretas permitem que haja atitudes
como essa.
Ademais, essas características sociais são revestidas por um grande
patriarcalismo, elemento estudado por Butler (2015), baseada em Lévi-Strauss. A
sociedade ocidental é construída em cima desses ideais patriarcais, nos quais uma das
únicas funções das mulheres é ser o objeto de casamento.
Segundo a pesquisadora, ―[...] a noiva funciona como termo relacional entre
grupos de homens; ela não tem uma identidade [...]. Ela reflete a identidade masculina,
precisamente por ser o lugar de sua ausência.‖ (p. 77). Dessa maneira, a importância das
mulheres nas sociedades patriarcais é considerada quase nula; fato que explica os
motivos pelos quais uma atitude como a de Nussbaum é simplesmente ignorada pelo
grupo de trabalhadores, provavelmente em sua maioria homens.
O segundo momento em que Luisa Rey reflete sobre essa sociedade é quando
conversa abertamente com uma funcionária da companhia Seaboard, a última expondo
as vivências de assédio que sofrera no passado:

―O que você faria? Dizer alguma frase inteligente e humilhadora, deixando-os saber que
você está irritada? Dar-lhe um tapa, ser rotulada de histérica? Ademais, nojentos desse
jeito gostam de ser esbofeteados. Fazer nada? Então qualquer homem no local pode
dizer merdas como essa com você e sair impune?‖
―Uma reclamação oficial?‖
―Provar que as mulheres correm para os homens mais importantes quando a coisa fica
feia?‖
―Então o que você fez?‖
―Fiz o transferirem para nossa planta em Kansas. No meio do nada, no meio de Janeiro.
[...] Fofoca vai fofoca vem, esou apelidada de Senhor Li. Uma mulher de verdade não
teria tratado o pobre homem tão cruelmente, não, uma mulher de verdade teria
assumido a piada dele como um elogio.‖ Fay Li amacia a toalha de mesa amarrotada.
―Você enfrenta essas porcarias no seu trabalho?‖
Luisa pensa em Nussbaum e Jakes. ―Todo o tempo.‖

2
Tradução nossa do excerto: ―‗He believes the new HYDRA nuclear reactor at Swannekke Island isn‘t as
safe as the official line. Isn‘t safe at all, in fact. Its launch ceremony is this afternoon, so I want to drive
out and see if I can turn anything up.‘
‗Hot shit, a technical launch ceremony,‘ exclaims Nussbaum. ‗What‘s that rumbling sound, everyone? A
Pulitzer Prize, rolling this way?‘
―Oh, kiss my ass, Nussbaum.‖
Jerry Nussbaum sighs. ‗In my wettest dreams …‘
Luisa is torn between retaliation—Yeah, and letting the worm know how much he riles you—and ignoring
him—Yeah, and letting the worm get away with saying what the heck he wants.‖ (MITCHELL, 2004, p.
100)

328
―Talvez nossas filhas viverão em um mundo livre, mas nós, esqueça. Nós temos que nos
ajudar, Luisa. Os homens não vão fazer isso para nós.‖ (MITCHELL, 2004, p. 136-
137)3

Apesar de Fay Li utilizar de um discurso manipulativo, com o objetivo de


ganhar a confiança de Luisa Rey, as mulheres discutem aspectos importantes em termos
de identidade de gênero e sexo. Li compartilha experiências em que sofre assédio pelo
fato de ser mulher no trabalho e revela que, ao punir o responsável, foi denominada de
Senhor Li. Essa atitude se justifica na medida em que é inconcebível para aquele
contexto e sociedade considerarem uma mulher que não seja submissa e aceite os
desaforos dos outros. Assim, em termos binários, em que sexo está diretamente
vinculado com o gênero feminino, Fay Li não pode ser uma mulher; por isso, o apelido
masculino.
Longe dessa perspectiva dual, consideramos que tanto o gênero como o sexo é
resultado de uma construção que envolve diversos fatores – entre eles uma imposição
normatizada que regula e proíbe manifestações de gênero contrárias à
heteronormatividade. Em outras palavras, ―A matriz cultural por meio da qual a
identidade de gênero se torna inteligível exige que certos tipos de ‗identidade‘ não
possam ‗existir‘ – isto é, aqueles em que o gênero não decorre do sexo [...].‖ (BUTLER,
2015, p. 44).
Entretanto, o questionamento é ainda mais amplo: já vimos uma dissociação
entre as categorias de sexo e de gênero, sendo essa última vasta e numerosa; mas porque
devemos continuar adotando um binarismo também para a concepção de sexo? O
mesmo conjunto de leis que tornam intelegíveis identidades de gêneros dissociadas do
respectivo sexo também não admitem o não dualismo sexual.
Foucault, por meio da publicação de diários de um/uma hermafrodita, se torna
um dos primeiros estudiosos que trazem questionamentos acerca do sexo e das
possibilidades não binárias dessa classificação. Na curta introdução aos textos de
Herculine, o autor expõe uma genealogia ao sexo e ao hermafroditismo, revelando que o
tabu instituído aos que fogemaos binarismos sexuais não era tão forte durante a Idade
Média. De acordo com suas pesquisas, Foucault descobre que, embora o pai decida o
gênero da criança no nascimento de um/uma hermafrodita, naquela época havia a
possibilidade de escolha da identificação sexual pelo próprio sujeito no momento da
adultidade.
Com o passar do tempo, no entanto,

3
Tradução nossa do excerto: ―What would you do? Dash off some witty put-down line, let ‘em know
you‘re riled? Slap him, get labeled hysterical? Besides, creeps like that enjoy being slapped. Do nothing?
So any man on site can say shit like that to you with impunity?‖
―An official complaint?‖
―Prove that women run to senior men when the going gets tough?‖
―So what did you do?‖
―Had him transferred to our Kansas plant. Middle of nowhere, middle of January. I pity his wife, but she
married him. Word gets around, I get dubbed Mr. Li. A real woman wouldn‘t have treated the poor guy so
cruelly, no, a real woman would have taken his joke as a compliment.‖ Fay Li smooths wrinkles in the
tablecloth. ―You run up against this crap in your work?‖
Luisa thinks of Nussbaum and Jakes. ―All the time.‖
―Maybe our daughters‘ll live in a liberated world, but us, forget it. We‘ve got to help ourselves, Luisa.
Men won‘t do it for us.‖ (MITCHELL, 2004, p. 136-137)

329
Teorias biológicas da sexualidade, concepções juridicas do indivíduo, formas de
controle administrativo nas nações modernas levaram, pouco a pouco, a rejeição da
ideia da mistura de dois sexos em um único corpo, e, consequentemente, a limitação da
livre escolha de indivíduos indeterminados. Portanto, todos deveriam ter somente um
único sexo. (FOUCAULT, 1980, p. viii)4

E é justamente essa sociedade controladora, repletas de tabus sexuais, que faz


a/o hermafrodita Herculine sofrer uma crise de identidade e, posteriormente, cometer o
suicídio. Essa sociedade, representada principalmente pela religião e pela medicina da
época, decidiram limitar as possibilidades de Herculine, tornando-a/o do sexo
masculino.
Consideramos, assim como Foucault, que os contextos mudaram e que no século
atual há uma maior aceitação e uma menor discriminação acerca àqueles que não se
enquadram ao modelo sexual normatizado (considerando aqui as culturas e contextos
ocidentais). Entretanto, assim como observamos em Robert Frobisher, protagonista da
segunda história em Cloud Atlas, a sociedade ainda precisa de um tempo maior para
evoluir e aceitar as diferenças.
A narrativa se passa no início do século XX, em Zedelghem, na Bélgica,
narrando a história de Robert Frobisher, jovem músico que deixa sua casa e família na
Inglaterra para se tornar um copista do famoso compositor Vyvyan Ayrs. O que
assemelha essa narrativa das teorizações de Foucault acerca da sexualidade é justamente
o motivo da jornada de Frobisher, isto é, ele ter sido deserdado e, provavelmente,
expulso da casa dos pais. Tudo motivado pela sexualidade não binária da personagem, a
qual se considerava bissexual.
Sendo desenvolvida por meio de cartas para o amante Rufus Sixsmith, nesse
capítulo, a personagem, poucas vezes, trata desse assunto tão delicado e marcante. No
entanto, na primeira das cartas, Frobisher revela partes do acontecimento:

Não, nem precisa me dizer, eu não posso correr de volta ao Pai com mais um cri de
coeur. Validaria cada palavra venenosa que ele disse sobre mim. Preferia ao invés saltar
da ponte de Waterloo e deixar o Velho Pai Tâmisa me honrar. Sério. (MITCHELL,
2004, p. 44-45)5

Embora explicitamente Frobisher não tenha revelado o motivo, é deixado claro


que houve uma altercação, principalmente com o pai, de maneira que resultou em um
ressentimento e mágoa por parte do protagonista. Nesse trecho, já se nota indícios do
fim trágico que terá Frobisher, ao ver a carreira destruída e seus relacionamentos em
ruínas.
Todavia, somente na segunda parte da narrativa, chegamos perto do motivo da
briga com o pai. Sim, a relação entre Frobisher e Sixsmith, proibida à época, já nos
fornece pistas; porém no seguinte excerto há uma clarificação: ―Me pergunto se meu

4
Tradução nossa do excerto: ―Biological theories of sexuality, juridical conceptions of the individual,
forms of administrative control in modern nations, led little by little to rejecting the idea of a mixture of
the two sexes in a single body, and consequently to limiting the free choice of indeterminate individuals.
Henceforth, everybody was to have one and only one sex.‖ (FOUCAULT, 1980, p. viii)
5
Tradução nossa do excerto: ―No, before you say it, I can‘t go running back to Pater with yet another cri
de coeur. Would validate every poisonous word he said about me. Would rather jump off Waterloo
Bridge and let Old Father Thames humble me. Mean it.‖ (MITCHELL, 2004, p. 44-45)

330
irmão gostava de meninos assim como de meninas também, ou se esse defeito é
somente meu. Me pergunto se ele morreu celibatário.‖ (MITCHELL, 2004, p. 442)6
Se na história de Luisa a sociedade questinava a identidade de gênero não
condizendo com a imagem submissa e passiva da mulher, na narrativa de Frobisher a
sociedade nem ao menos concebe a possibilidade do desejo homossexual ou ainda do
bissexual. Assim, a personagem tem de viver uma mentira, em termos de identidade de
gênero, a fim de não ser despejado da casa de Ayrs e de viver marginalizado
socialmente.
Segundo Butler (2015), baseada nas teorizações de Freud, a sexualidade, no caso
tanto a de Luisa quanto a de Frobisher, tem raízes na infância, principalmente com o
desenvolvimento e desenrolar do complexo de édipo na criança. De fato, por meio do
tabu do incesto, o/a jovem é proibido de se relacionar sexualmente com o/a pai/mãe,
havendo uma internalização do objeto tabu do desejo e o consequente desvio ―[...] desse
objeto para outros objetos do sexo oposto.‖ (p. 109). A questão é que, para Freud, a
homossexualidade se desenvolveria por meio da estratégia da melancolia, isto é, não só
há uma perda do objeto de amor, mas também uma identificação por ele.
Por meio desses posicionamentos, o psicanalista começa a construir um
argumento da possibilidade da bissexualidade ser uma realidade na infância, de modo
que

[...] o menino tem de escolher não só entre as duas escolhas de objeto, mas entre as duas
predisposições sexuais, masculina e feminina. [...] Torna-se cada vez mais duvidosa [...]
a heterossexualidade primária do investimento objetal do menino. (BUTLER, 2015, p.
109-110)

Butler, no entanto, vai além dessas afirmações. Caminhando lado a lado com
Foucault, a autora defende que os tabus do incesto e contra a homossexualidade são leis
que, na realidade, objetivam a proibição por meio de um rede de possíveis punições. No
entanto, essas mesmas leis parecem ―[...] produzir tanto a heterossexualidade
sancionada como a homossexualidade transgressora. Ambas são na verdade efeitos
[...].‖ (BUTLER, 2015, p. 133)
Ou seja, Butler traz a possibilidade da própria sociedade excludente e
marginalizadora ser responsável pela produção de ambas as identidades de gênero,
inclusive a bissexualidade em Frobisher. De fato, o ato de recalcar ou de tentar proibir
não fazem com que uma realidade seja apagada ou destruída, mas sim que aumente a
discriminação, o preconceito e, consequentemente, o sofrimento por parte dos
marginalizados.
A grande ironia de tudo é: ―[...] para que a heterossexualidade permaneça intata
como forma social distinta, ela exige uma concepção inteligível da homossexualidade e
também a proibição dessa concepção, tornando-a culturalmente ininteligível.‖
(BUTLER, 2015, p. 138). Isto é, para que a hegemonia permaneça com o poderio, cria-
se uma concepção compreensível da homossexualidade somente para depois
transformá-la em objeto de subjugação e silenciamento.
Consideramos que as personagens subalternas em Cloud Atlas trabalham com
um conceito de que, por mais que a sociedade esteja repleta de leis repressivas e

6
Tradução nossa do excerto: ―Do wonder if my brother liked boys as well as girls too, or if my vice is
mine alone. Wonder if he died celibate.‖ (MITCHELL, 2004, p. 442)

331
proibitivas, os sujeitos têm a possibilidade (dependendo dos contextos específicos) de
expressar identidades de gênero por meio da performatividade.Assim, a rigidez de
identidade não é uma realidade na narrativa de Mitchell.
O gênero como performance é proposto por Butler como uma alternativa a
teorias que buscam defender a manifestação do gênero, ou seja, a adoção de uma
identidade de gênero, como algo fixo, uma unidade na qual sexo e desejo também estão
incluídas. Por meio da performance, o gênero se mostra de uma forma fluída, leve e
aberta às mais diversas possibilidades.
Segundo a autora, a performance se dá por meio de

[...] atos, gestos e desejo [, os quais] produzem o efeito de um núcleo ou substância


interna, mas o produzem na superfície do corpo [...]. Esses atos, gestos e atuações [...]
são performátivos, no sentido de que a essência ou identidade que por outro lado
pretendem expressar são fabricações manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos
e outros meios discursivos. (BUTLER, 2015, p. 235)

Assim, compreendendo que o gênero não se limita a uma única realidade, como
definir se há ou não um gênero verdadeiro, assim como a sociedade heterossexista
busca? Devido à repetição desses atos, gestos e discursos, uma identidade de gênero é
construída; no entanto, essa identidade é altamente instável, podendo (ou não) variar
dependendo do contexto situacional ou, simplesmente, da vontade do indivíduo.
Indo de acordo com Butler (2015) de que ―[...] o gênero é uma identidade
tenuamente constituída no tempo, instituído num espaço externo por meio de uma
repetição estilizada de atos.‖ (p. 242), tanto Luisa Rey quanto Robert Frobisher
manifestam-se de modo performático. A performance de gênero de Luisa, por exemplo,
varia de acordo com os contextos em que ela está inserida, sendo reforçado e incisivo no
momento em que está em uma festa na casa da mãe:

Judith Rey encontra Luisa assistindo o noticiário da tarde no quarto de seu marido. ―
‗Sapatão,‘ escutei Anton Henderson dizer, e se não era sobre você, doçura, eu não sei –
não é engraçado! Seus... problemas de rebelião estão piorando. Você reclama de estar
sozinha então eu te apresento bons jovens, e você dá uma de machona pra eles em sua
voz da Spyglass.‖
―Quando eu reclamei sobre estar solitária?‖
―Rapazes como os Hendersons não nascem em árvores, sabia?‖
―Pulgões crescem em árvores.‖ (MITCHELL, 2004, p. 403-404)7

Vemos aqui o tabu contra a homossexualidade bem expressivo, no qual Judith


Rey admite que gostaria que a identidade de gênero da filha não se distanciasse do tido
comumente como feminino. Luisa, impassíva, não acata aos desejos da mãe, reforçando

7
Tradução nossa do excerto: ―Judith Rey finds Luisa watching an afternoon news report in her husband‘s
den. ― ‗Bull dyke,‘ I heard Anton Henderson say, and if it wasn‘t about you, Cookie, I don‘t know—it‘s
not funny! Your … rebellion issues are getting worse. You complain about being lonely so I introduce
you to nice young men, and you ‗bull-dyke‘ them in your Spyglass voice.‖
―When did I ever complain about being lonely?‖
―Boys like the Hendersons don‘t grow on trees, you know.‖
―Aphids grow on trees.‖ (MITCHELL, 2004, p. 403-404)

332
no jantar com os jovens Hendersons a sua ―voz da Spyglass‖, que nada mais é que sua
performance de gênero como uma mulher ativa, corajosa e independente.
Frobisher, por outro lado, em virtude da época e do contexto, não se vê capaz de
ter uma perfomance de gênero assim como ele gostaria, isto é, expor livremente a
bissexualidade. Se, com a exposição à família, foi forçado a mudar para outro país, a
personagem vê a si mesmo na urgência de se utilizar de uma performance de gênero não
contraditório às leis proibitivas da sociedade europeia do início do século XX.
Todavia, embora tendo que esconder traços do universo pessoal da sexualidade
para algumas pessoas, Frobisher atua e performa diferentemente quando escreve para
Sixsmith, do que nos momentos em que conversa com Vyvyan Ayrs, ou ainda do que
quando se vê num amor platônico com a filha de seu patrão. Em nenhum momento, a
personagem luta contra uma identidade de gênero verdadeira, assim como não vai
contra uma identidade permanente de masculinidade.
E diferente das variadas motivações da/do hermafrodita Herculine, Frobisher
não comete suicídio no final da narrativa motivado, em partes, por uma impossibilidade
de viver com uma perspectiva de identidade limitada. A personagem deixa claro na
última carta:

―Não deixem falar que eu me matei por amor, Sixsmith, isso seria muito ridículo. Fui
acometido por uma paixão por Eva Crommelynck por um piscar de olhos, mas nós dois
sabemos nos nossos corações quem é o único amor da minha breve, brilhante vida.‖
(MITCHELL, 2004, p. 470)8

Dessa maneira, a personagem revela que não se vê tão incomodado pelas


questões de gênero, justamente por compreender a natureza da performatividade e a
necessidade nos contextos em que vive. A motivação pelo suicídio, assim como
compreendemos, está mais atrelada com a impossibilidade de compor músicas
livremente e com o abuso psicológico sofrido com Ayrs.
Portanto,mostramos como as personagens Luisa Rey e Robert Frobisher fazem
uma ruptura com as dualidades de gênero, a primeira lutando contra uma sociedade
machista que não admite a separação entre as categorias de sexo e gênero, e o segundo
lutando contra uma sociedade homofóbica, repletas de tabu contra a homossexualidade.
Seguindo o caminho de Butler (2015), consideramos que ambas as protagonistas
constroem identidades de gênero por meio da performatividade, isto é, por meio de atos,
ações, falas e discursos utilizados em situações diferentes. Longe de manter um
pensamento rígido, a identidade de gênero no romance não só se apresenta maleável e
adaptável para situações conflituosas, mas também como uma ferramenta de oposição a
uma sociedade hegemônica subjugadora e silenciadora.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de
Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2003.
FOUCAULT, M. ―Introduction‖ to Herculine Barbin.Nova York: Pantheon, 1980.

8
Tradução nossa do excerto: ―Don‘t let ‘em say I killed myself for love, Sixsmith, that would be too
ridiculous. Was infatuated by Eva Crommelynck for a blink of an eye, but we both know in our hearts
who is the sole love of my short, bright life.‖ (MITCHELL, 2004, p. 470)

333
MITCHELL, D. Cloud Atlas. London: Random House, 2004.

334
Corpo escrito – a mulher erótica: a poesia de Maria
Teresa Horta
(The written body – the erotic woman: the poetry of Maria Teresa Horta)

Natália Salomé de Souza1,Vinícius Carvalho Pereira2


1-2
Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT)
1
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)

natsalome@gmail.com; viniciuscarpe@gmail.com

Abstract: The woman's body was the object of domination and subjugation by
phallogocentrism throughout history. Under a fallacious argumentation based on
morphophysiological aspects, the woman was imprisoned in a web of impossibilities. Within
the physiology of the body, menstruation and gestation were determining factors for female
confinement; in addition to the prohibitions of social insertion, these interdicts served to
prevent the existence of female sexuality. This study intends to inquire, in the light of four
poems of Maria Teresa Horta, the static and general idea resulting from a phallogocentric
society about what is to be woman. Recovering the spaces of writing and female sexuality, we
observe that the poetry of Teresa Horta is erotic and, therefore, transgressor of the modes of
institutionalization of phallogocentrism, promoting female empowerment in literature.
Keywords: Maria Teresa Horta; Eroticism; body.

Resumo: O corpo da mulher foi objeto de dominação e subjugação por parte do


falogocentrismo ao longo da história. Sob uma falaciosa argumentação baseada em aspectos
morfofisiológicos, a mulher foi aprisionada em uma teia de impossibilidades. Dentro da
fisiologia do corpo, a menstruação e a gestação foram fatores determinantes para o
confinamento feminino; para além dos interditos de inserção social, esses interditos serviram
para impedir a existência da sexualidade feminina. Este estudo pretende problematizar, à luz
de quatro poemas dede Maria Teresa Horta, a ideia estática e geral resultante de uma
sociedade falogocêntrica acerca do que é ser mulher. Recuperando os espaços da escrita e da
sexualidade feminina, observamos que a poesia de Teresa Horta é erótica e, por isso,
transgressora dos modos de institucionalização do falogocentrismo, promovendo o
empoderamento feminino na literatura.
Palavras-chave: Maria Teresa Horta; erotismo; corpo.

O corpo
Ao debatermos a instância do corpo da mulher temos em mente a clareza de que,
embora existam características semelhantes entre os corpos, eles são também muito
diversos. O corpo se constrói a partir de diversas vivências de subjetificação do ser
humano. Nessa formação, contamos com uma enorme carga bio-fisiológica, definida
não apenas por padrões biológicos mas também culturais, que, ao longo dos anos, foi
responsável pela construção cultural de uma fragilidade feminina nos termos que
vivenciamos hoje. Embora possamos contar, agora no século XXI, com teorias que vão
aos poucos libertando as mulheres em especial dessa carga bio-fisiológicaimposta
socioculturalmente em virtude de uma economia do falo – como a teoria queer e em
especial os estudos da filósofa e ativista Judith Butler –, ainda vivemos sobre a regência
de tais preceitos que visam a subalternidade feminina em favor do poder masculino.

335
Essa carga fisiológica fortalecida pelo patriarcado foi emaranhando a mulher
numa teia de impossibilidades: da dita fraqueza do corpo surgiram argumentos de uma
incapacidade intelectual e moral que fizeram com que a mulher assumisse cada vez
menos uma vida política e acadêmica, dando a ela a única possibilidade de uma vida
privada, donde não se ouvia com clareza sua voz. Dentro da fisiologia do corpo1, a
menstruação e a gestação foram fatores determinantes para o confinamento feminino,
uma vez que a primeira deixava a mulher em uma situação de vulnerabilidade sob
influência de seus humores e a segunda esgotava-a com o cuidado da gestação e logo
após o nascimento da criança. As mulheres tiveram o seu ciclo menstrual e a ausência
dele como grandes justificativas da sociedade para que elas não pudessem ser fortes.
Do mesmo modo, a cultura, permeada pelas relações de poder, também constrói
esse corpo de diferentes formas, pois, dependendo do grupo social, os corpos recebem
significações diferentes; ainda que possam existir traços semelhantes em diferentes
culturas, a localização geográfica e histórica desses corpos fará com que divergentes
facetas do mesmo corpo sejam elucidadas. No caso das sociedades ocidentais,
estabeleceu-se largamente o patriarcado, enfatizando relações assimétricas e
hierárquicas de poder, em que a mulher ocupa o espaço do subalterno. É aqui
importante lembrar que esse espaço não vai ser semelhante em todas as culturas, mas
via de regra, a mulher é submetida à lei do pai, do marido, dos filhos – do homem.
No emaranhamento de forças que constroem o corpo, temos uma fonte
inesgotável de força que parte da economia que rege os corpos, intrincando-os cada vez
mais numa rede de poder que os submete a novas significações a cada passar de hora.
Vivenciamos também um construto simbólico e ideológico atuando em nossas mentes,
dizendo o que somos e como devemos nos comportar porque nascemos com
determinada genitália. Em conjuntura com esses traços simbólico, ideológico e
econômico podemos observar que as questões de cor, nacionalidade, origem e classe
social contribuem para que não tenhamos uma uniformidade e uma fixidez identitária.
Essa percepção da construção identitária coaduna com as discussões de Hall (2006)
sobre a mobilidade das identidades. Este autor sugere que, após diferentes processos
culturais e sociais, o ser humano, sujeito de uma pós-modernidade, passa por uma crise
de identidade, que é justamente a dificuldade de centrar-se em alguma característica
principal. Assim, a identidade não é mais centralizada, mas depende dos fatores que
envolvem o momento de sua enunciação, de forma que o sujeito adquire diferentes
perspectivas de mundo e de si em distintos contextos sócio-histórico-culturais. Isso faz
com que a sociedade, a partir do sujeito, seja menos estática e que seja mais abrangente
no que concerne a possibilidade de mistura entre as culturas.
Como sujeitos não fixos, podemos, hoje, contar com uma formação de gênero
que não é uniforme, de forma que nem mulheres nem homens precisem se comprometer
com algo fundamentado a partir de suas genitálias de nascimento, dando a possibilidade
de ambos se definirem a partir de suas performatividades (BUTLER, 2016), de modo a
terem agência sobre suas próprias identidades de gênero.

1
Embora acreditemos que ser mulher independe da fisiologia corporal – aqui ressaltadas pela
menstruação e pela gestação –, mas que é uma identidade performada de acordo com a agência de cada
pessoa que assim se identifica seguindo a teoria da performatividade de Butler (2016), o presente estudo
vai dialogar com essas imposições patriarcais sobre o corpo para proceder com a ruptura de tais estruturas
através da poética de Maria Teresa Horta.

336
Dito isso, que fique claro que este estudo não pretende encontrar formas fixas,
mas problematizar a ideia estática e geral resultante de uma sociedade falogocêntrica
acerca do que é ser mulher com base na leitura da produção lírica de uma escritora.
Tentar encontrar a imanência feminina no texto literário se aproxima mais à
transgressão de uma linguagem pautada na ordem falogocêntrica do que à busca de uma
essencialidade biológica feminina.
Pensando nesse corpo feminino, que se constrói no entrelaçamento do corpo
biológico e psíquico com a cultura e economia, precisamos nos perguntar qual a relação
que a mulher tem, a partir das constatações levantadas até o momento, com o erotismo.
Ele faz parte dela? É excluído dela? É permitido a ela? É consequência dela? É ela?
Lorde (1984) nos diz que o erótico faz parte dos conhecimentos mais profundos de nós
mesmos, mas, por ser fortemente reprimido ao longo da vida das mulheres, ao invés de
se tornar um poder se tornou uma ameaça: para uma mulher reconhecer o erótico nela
mesma é secondenar a um mundo de reclusão, de bocas caladas e pernas fechadas. Elas
aprendem que ser forte é suprimir essas forças tão inerentes ao próprio corpo, e ao fazer
isso dão poder a quem ―merece‖ o poder: os homens. Essa é a lógica do patriarcado, a
lógica da força, da economia do poder masculino e da subjugação e dominação do corpo
feminino. Compartilhar o poder erótico que temos em cada um de nós, mulheres e
homens, homens e mulheres, é compartilhar o poder, e isso, na sociedade do falo, é
impossível, pois subverte a hierarquia que ordena a sociedade.
É exatamente desse interdito que a sexualidade da mulher precisa ressurgir.
Afinal, embora muitos pressupostos do patriarcado já venham sendo questionados e
ressignificados na atualidade, ―a restrição a alguns lugares de fala ainda é perpetuada
em relação às mulheres‖ (BORGES, 2013, p. 24). Por isso olhamos, nesse estudo, para
o espaço literário como um dos que foi censurado às mulheres, e ainda mais
especificamente para esse local do erótico na literatura feminina.
Contudo, o que está em jogo nesse espaço não é apenas a sexualidade, mas o
domínio do corpo feminino, o domínio deste corpo pelas mulheres e para as mulheres, o
reconhecimento de seus desejos, seus pensamentos e sua voz, o que leva a uma restrição
da escrita. Recuperemos o que se perdeu ao longo dos anos em que o sangue menstrual,
as febres do corpo, a ardência dos lábios, a escrita foram suprimidos e os únicos
espaços habitados foram os da frigidez, da dureza e do silêncio, deixando o amor apenas
para a reprodução.

Corpo escrito – a mulher erótica


Dessa forma, recuperando os espaços da escrita literária e da sexualidade
feminina nos deparamos com a obra lírica de Maria Teresa Horta. A poetisa portuguesa
tem uma larga produção poética em que as palavras falam do corpo e o corpo se torna
palavra e talvez por isso seja hoje uma das maiores escritoras portuguesas da
contemporaneidade. Ativista das palavras e em favor da sexualidade poética feminina,
Maria Teresa Horta chegou a ser processada pelo Estado Novo Português na década de
70 do século passado por contrapor-se ao sistema patriarcal de uma ditadura ao escrever
uma obra literária em conjunto com Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa que
contestava as definições do que é ser mulher. Além disso, foi agredida em rua durante
esse mesmo período quando da publicação de um livro de poesia erótica. Teresa Horta
não se deixou intimidar e mesmo hoje, em 2017, aos 80 anos de idade, lançou mais um
livro de poesia erótica intitulado ―Poesis‖.

337
Em sua luta poética para abrir espaço para as mulheres e para seus erotismos,
Maria Teresa Horta escreve uma série de poemas intitulados ―Modo de Amar‖ na obra
―Educação Sentimental‖ nos quais a eu lírica2 (SOUZA, 2015) vai, poeticamente,
descrevendo o seu prazer e as suas vontades, fazendo com que o seu interlocutor siga
suas ordens a fim de que os seus desejos sejam praticados e o gozo realizado. No
primeiro poema da série, observamos, atentamente, a construção do ato de amar.

MODO DE AMAR I

Lambe-me os seios
desmancha-me a loucura

usa-me as coxas
afaga-me o umbigo

abre-me as pernas
põe-nas nos teus ombros

e lentamente faz o que eu te digo

(HORTA, 2012, p. 132)

O poema é construído majoritariamente com versos curtos que são iniciados


com verbos no modo imperativo, determinando logo de princípio o tom de como a ação
deve transcorrer. São pequenas ordens que vão explicando como se dá o modo de amar
para a eulírica. O uso do pronome oblíquo me deixa claro que as ordens devem ser
obedecidas na interação com a própria eulírica, que dessa forma se torna dona de seu
próprio prazer.
A própria estrutura do poema que apresenta uma regularidade métrica nos
dísticos faz com que haja a apropriação da eulírica sobre a poesia. A escolha pela
regularidade faz com que a voz feminina se aproprie de um recurso dominado pela
tradição (logo, pelo falo), e é exatamente o desvio dessa dominação que abre espaço
para que a mulher se escreva. Junta-se ao regime da forma um conteúdo que ainda nos
dias de hoje cai de forma estranha aos leitores: o desejo sexual feminino. Não há no
poema uma erotização da fecundação, ou seja, o intercurso sexual não tem fim
reprodutivo, mas ele é repleto de sensações erotizadas, de movimento com o fim no
prazer. Há, então, mais uma barreira quebrada: o desejo feminino que conduz o/a
parceiro/a a proporcionar o gozo.
Temos aqui a presença feminina no local que lhe fora proibido; além de habitar
esse lugar, a eulírica se torna dona de si e de seu corpo, falando de sua sexualidade
através dos ensinamentos do modo de amar. Há a recuperação de seu corpo e o
apoderamento do local da escrita.
Dentro dessa perspectiva, a eu lírica se afasta do que Bataille (1987) nos lembra
ser a grande razão para o ato sexual: a vontade de dar continuidade a nós mesmos. Ele
argumenta que nessa vontade de continuidade cada orgasmo seria uma pequena morte,

2
O termo eu lírica é entendido como uma instância de recuperação do espaço do feminino dentro da
estrutura literária como forma de manutenção da diferença sexual e contra o apagamento do feminino
através de um falso-universal masculino (SOUZA, 2015).

338
enaltecendo o caráter de violência que há no sexo. O único fim do intercurso sexual
seria a reprodução, mas se esse fim fosse transformado, teríamos então o nascimento do
erotismo. O autor ainda argumenta que é através do erotismo que vemos o avesso dessa
carapuça que vestimos todos os dias, tentando negar o que há de sexual em nós: ―no
avesso revelam-se sentimentos, partes do corpo e maneiras de ser de que temos
habitualmente vergonha‖ (BATAILLE, 1987, p. 72). No poema a eu lírica desmascara
os véus da vergonha, mas sem que o objetivo último seja a reprodução, pois se trata nos
versos apenas da busca do prazer, caracterizando, portanto, o intercurso sexual dentro
do erotismo, ou ainda, do jogo subversivo do erótico.
Não podemos deixar de lado o fato de que essas afirmações de Bataille são feitas
dentro de uma perspectiva androcêntrica na qual a mulher e sua vida não estavam em
jogo, por isso temos que imaginar qual era a realidade das mulheres nesse contexto em
que elas não eram importantes. Sabemos que os interditos são talvez maiores quando
notamos que o próprio sangue que as mulheres deixam fluir mensalmente é sinônimo de
impureza e profanação. Porém, o corpo feminino não é profano, é sagrado. O sagrado
está no corpo e deixá-lo fluir – com clareza, com amor, com vontade e desejo – é o que
as liberta dos interditos dos homens (que são impostos no Logos, na economia, na
cultura, na casa e na rua). Perceber o contraste que existe entre a visão feminina sobre as
mulheres e aquela imposta a elas sobre si mesmas através de um olhar masculino é
mutilador, uma vez que essas visões pretendem apenas apagar a existência do ―segundo
sexo‖. É necessário, portanto, se pensar numa nova forma de ―ser‖ do feminino que não
passe pela definição masculinista.
A ressignificação do corpo deve perpassar também a questão da construção do
que é o erotismo já que ao se relacionar com o corpo, o erotismo foi um outro espalho
de apagamento feminino. Bataille (1987) nos relata que, apesar de não termos muitos
dados sobre a forma como a sexualidade era praticada por nossos ancestrais, podemos
ter certeza de que, assim como em relação à morte, os interditos sempre se
sobrepuseram às práticas sexuais – e é exatamente isso que diferia os seres humanos dos
animais. Para o autor, existem interditos de caráter universal e aqueles particulares,
sendo que esses segundos são variáveis em relação aos primeiros. Os interditos estão,
em especial, ligados à morte e à reprodução, dada a violência que elas ensejam; daí, a
importância que se dá às proibições ligadas ao incesto e à menstruação – que reúnem
em si a possibilidade da vida e a violência da morte.
Quando olhamos para a questão do tabu da menstruação apresentada por
Bataille, percebemos que este pode ser entendido com clareza em relação ao interdito da
morte: há nos seres humanos, segundo Bataille (1987), desde o homo faber, o temor da
morte, pois esta representa a violência final da qual não podemos fugir. Ela acomete
um, mas acometerá a todos. E a menstruação, no ciclo fértil da mulher, é a
representação da impossibilidade da vida. Quando o corpo sanguíneo que reveste o
útero, pronto para ser fecundado, percebe que não mais terá utilidade, começa a se soltar
e, pela força natural da gravidade, será expelido do corpo da mulher, como um sangue
que já não é possibilidade de vida. Nessa linha de pensamento, a menstruação
corresponde à morte interna da mulher e à impossibilidade de geração de uma nova
vida. Dessa forma, a violência do corpo feminino se manifesta em sua natureza
indomada (e o interdito em relação a essa natureza específica é uma forma de domá-la).
A menstruação é, portanto, colocada na posição do profano, do pecado, da morte.
Em relação ao incesto, o que se observa é que ele pode ser lido como uma
questão secundária a uma primeira: as regras do casamento. Bataille (1987) nos alertará

339
acerca dos processos de ―doação‖ de mulheres, elucidado por Claude Lévi-Strauss, a
fim de que se equilibrasse a distribuição delas em relação aos homens. ―Dar‖ sua filha
ao filho de outro homem significava que, em retorno, o pai teria direito de receber uma
filha da outra família para seu filho. Ao mesmo tempo que se resolviam as questões de
casamentos consanguíneos, fazia-se com que cada pai usufruísse livremente de um
prestígio – prestígio esse oriundo da posse de uma mulher de outra família –, criando
uma harmônica distribuição de mulheres e do poder entre os homens, visto que essas se
tornavam objeto de troca. Essa relação atribui valor aos homens de família, fazendo
com que haja um jogo de poder entre eles. Nessas relações, a mulher recebe um valor de
objeto, e por se encontrar dentro de um interdito, aliás, por ela ser esse próprio interdito,
recebe um valor sexual objetificado:

o interdito, sendo de natureza sexual, acentuou, de acordo com a aparência, o valor


sexual do objeto. Ou melhor, deu um valor erótico a esse objeto. Aí está o que opõe o
homem ao animal: o limite oposto à livre atividade deu um valor novo e irresistível ao
impulso animal (BATAILLE, 1987, p. 138).

Nota-se com franca incredulidade que a mulher se torna apenas objeto de


comércio e de manifestação de poder, transformando uma regra de casamento em toda
uma construção de erotismo em que a relação entre pessoas da mesma família pudesse
vir a significar um enfraquecimento de influências e a perda de poder. Para a sociedade
descrita por Bataille, a mulher é valorada de acordo com sua fecundidade, com seu
trabalho e com seu poder de mercadoria de troca. Portanto, qual seria uma possibilidade
de lógica invertida donde o incesto retirasse a mulher de uma posição de mercadoria?
Talvez aquela em que os corpos femininos de uma mesma família se celebrem e se
encontrem um no outro, fazendo com que o reconhecimento do prazer em uma seja uma
descoberta do corpo da outra: a celebração do corpo e de suas águas como comunhão ao
invés de objetificação dentro de um continuum lésbico3 (RICH, 2010).
Podemos ler nos poemas 11 e 15 da série ―O transfert‖ uma tentativa de
reaproximação dos corpos das mulheres (de mãe e filha) numa relação de união, que
poderia ser pensada como incestuosa segundo a lógica batailliana, mas que é subvertida
e erotizadas dentro do Continuum Lésbico (RICH, 2010). De acordo com a perspectiva
falocêntrica, os corpos que se viram separados em primeiro lugar pelo parto, para em
seguida, na sociedade do falo, aprenderem a se odiar e disputar um lugar privilegiado ao
lado do pai, terminam fundidos, em imagens que culminam em incesto e morte
menstrual. Enaltece-se, desse modo, a sacralidade do feminino que transborda a ordem
de restrição do Pai, dando-se na relação de mulher para mulher, não mediada pelo falo.

11
Não é apenas o desejo
mas o mesmo corpo:

a vagina
o útero
a matriz

3
Adrienne Rich cunha o termo continuum lésbico para definir todas as relações de identificação entre
mulheres, não apenas aquelas de caráter sexual.

340
o cordão umbilical
entre uma e outra

a vulva
o clitóris

a raiz

(HORTA, 2009, p. 953)

15
Secretamente
com a boca escondida
na menstruação do teu corpo

crescendo
pelo avesso profundíssimo
do teu útero

a beber
a nascer pela taça
da tua vagina

(HORTA, 2009, p. 594-595)

Na perspectiva da ressignificação do corpo e da mulher, é importante olhar para


o corpo primeiro, a mulher que gera mulher e que, por isso – por ser ela mãe e filha ao
mesmo tempo – diz tanto da segunda. Observamos na relação entre mãe e filha, corpos
que são unos, mas que são vários, tal qual expresso nos versos ―a vagina/o útero/a
matriz‖ ou ―a vulva/o clitóris‖, que nomeiam partes do corpo que podem ser da eu lírica
ou da interlocutora, indecidíveis enquanto ocupantes da posição de mãe ou filha – até
porque toda mãe é também uma filha. No poema, a sucessão de tais versos
isossintáticos constrói uma relação de especularidade entre ambas, ainda que não se
saiba quem é quem – apenas duas partes indissociáveis ligadas pelo ―cordão
umbilical/entre uma e outra‖. Considerando ainda que ―Não é apenas o desejo/mas o
mesmo corpo‖, mesmo a divisão entre uma e outra, entre eu e o outro, se perde: uma
mulher é sempre todas as mulheres, num corpo único e vário.
Nesse contexto, os segredos que as mulherescompartilham, ao negarem o
interdito do incesto – porque gozam o corpo da mãe, ainda que como de filha–, fazem
parte da esfera do sagrado batailliano. É o reino da continuidade em que do corpo
primordial se nasce, e do corpo segundo outras nascerão. Habita-se dessa forma o
mesmo corpo – ―a raiz‖ comum em que se encerra o poema 11, donde brotam,
organicamente, as mulheres do poema.
Essa continuidade se dá na medida em que, na lógica da presença, habita-se o
mesmo corpo e nele se goza, ou seja, as mulheres não estão limitadas às proibições,
cortes ou castrações, pois estes não fazem sentido para esse corpo uno. Nessa
concepção, os interditos obedecem às ordens do pai, remetendo-nos a Totem e Tabu
(FREUD, 1996), o reino da descontinuidade. As mulheres superam essa lógica e
deliciam-se na continuidade que suas próprias águas oferecem, bebendo do cálice umas
das outras, como na última estrofe do poema 15. Esse cálice oferece o sangue sagrado

341
da continuidade e da morte, instâncias que coexistem no ciclo menstrual: elevamos a
menstruação da violência para a manutenção da vida e dela as mulheres se nutrem e
gozam. Sendo, para Bataille (1987), a ambivalência do temor e da vontade da
transgressão a origem do erotismo, percebemos que, no que concerne às mulheres, o
erotismo se faz presente não como medo, mas como transgressão do interdito que leva à
natural jouissance dos corpos.
No poema 15, observamos a completa inversão do interdito relacionado à morte
e à menstruação como sua manifestação sanguínea. Em vez desse simbolismo
culturalmente convencionado, a eu lírica apresenta uma relação de vida com a
menstruação. O sangue menstrual se torna alimento de crescimento, e curiosamente este
crescimento acontece pelo ―avesso profundíssimo‖; ou seja, ele não obedece à lei do
interdito do nascimento, ele se alimenta do que o patriarcado definiu como putrefação
do corpo. E o que é nascer pelo avesso do útero? É permear o corpo da mãe através de
outras forças que não a do crescimento biológico, predestinado, pré-estabelecido. A eu
lírica ainda ressalta a ideia de líquido materno da vida quando diz que bebe, sorve
através da taça materna, da mesma taça da qual ela nascerá.
É importante ter em mente que, ao expor parte do ciclo biológico feminino,
como a menstruação, não colocamos este como fundamental para o desenvolvimento da
mulher ou sua interação no mundo social, pois frequentemente a associação das
mulheres com as questões de natureza biológica justificou que estas fossem vistas sob a
ótica da irracionalidade (não há controle natural da menstruação, da mudança hormonal,
fazendo com que o útero fosse entendido como o lócus de histeria). Posto isto, é curioso
notar que, em verdade, segundo Millett (2000), essa construção de um corpo biológico
mais frágil nada tem a ver com os fatores da fisiologia da mulher e do homem, e sim
com a construção de um sistema cultural de valores que foi imposta sobre esses corpos
desde tempos imemoriais para que eles se tornassem, respectivamente, um corpo frágil e
um corpo forte, justificando uma hierarquia de poder.
Há, pois, no poema uma problematização da ordem natural-biológica do corpo,
enobrecendo essa ligação fisiológica das mulheres numa tentativa de aproximá-las de
uma imanência comum e transcender a ordem cultural que deprecia os corpos. Constrói-
se, assim, uma nova visão do mundo que perpassa também os aspectos biológicos
inerentes às mulheres.

Considerações finais
A partir da problematização levantada acima acerca do universo feminino e
masculino da erotização, apontamos que o segundo sempre se vê em posição
privilegiada em detrimento do primeiro, contudo a intenção dos estudos feministas aqui
apontados é a de ressignificar esse universo de forma a abolir uma hierarquia do prazer,
construindo um novo rastro (DERRIDA, 2013) que não anula a escrita do logos,
dominante, a fim de construir um novo discurso. Em vez disso, contrapõe-se ao logos
para que possa surgir algo novo, feminino, que não se prenda à lógica anterior, nem
mesmo para negá-la. É na interação entre a fala e a escrita, no momento do fazer-se
escrita, que o rastro aparece. Rastro como marca que é sempre refeita e ressignificada.
Daí a importância também do estudo que transcende as questões estéticas dos
textos, pois a percepção do erótico e do pornográfico abarca a questão estética, mas a
ultrapassa num estudo que se dá por um viés político (BORGES, 2013), percebendo de

342
que maneiras a sexualidade feminina é construída e desconstruída a partir de uma
elaboração que foge à visão monossexista da sociedade.
No caminho da subversão desses sistemas políticos que encarceram as mulheres,
o percurso de retomada de si próprias também deve acontecer no sentido de um
empoderamento de uma linguagem não obedeça à estaticidade da linguagem masculina
permeada pelas relações do simbólico (KRISTEVA, 1984), pois esta, ao invés de abrir
espaços para que se crie, obriga a todos a segundo sua lógica fascista (BARTHES,
1994). Como Cixous (1991) elabora, as mulheres deveriam aceitar a ordem imperativa
de seus próprios corpos e não se deixarem mais dominar pelo lugar da exclusão ou do
silenciamento, e devem, ainda, encontrar o que nesse corpo feminino é verdadeiramente
delas, e não uma imagem milimetricamente delineada pelo falo. Linguagem feminina e
linguagem poética se unem em movimento transgressor, pois ultrapassam a lógica da
linguagem. O corpo de prazer feminino pode ser expresso através de uma linguagem
semiótica (Kristeva, 1984) que, embora faça a passagem para a simbólica, o faz numa
relação de transformação, sem se deixar dominar pelas leis ―fascistas‖ (Barthes, 1994)
dessa linguagem. É o encontro de uma identidade feminina dentro da poesia, numa
prática incorporada dentro da lógica da diferença sexual a qual é buscada com tanta
intensidade.
Como linguagem do corpo, encontramos no erotismo a possibilidade de
ultrapassar as leis que prendem as mulheres, sem voz, dentro de seus próprios corpos e
tentam regular a sua sexualidade. É exatamente na escrita erótica do corpo na poesia
que a mulher se liberta, aos poucos, das amarras sociais que a prendem. O interdito
como aquilo que impede às mulheres de serem donas de si é rompido e um novo espaço
é ocupado, um espaço que lhes foi obliterado ao longo da nossa história.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARTHES, R. Aula. São Paulo: Cultrix, 1994.
BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987
BORGES, Luciana. O erotismo como ruptura na ficção brasileira de autoria feminina:
um estudo de Clarice Lispector, Hilda Hilst e Fernanda Young. Florianópolis: Ed.
Mulheres, 2013.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad.
Renato Aguiar. 12ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
CIXOUS, Hélène. ―Coming to Writing‖ and Other Essays. Cambridge: Harvard
University Press. 1991.
DERRIDA, Jacques. Gramatologia. 5areimp. da 2a ed. Tradução Miriam Chnaiderman e
Renato Jaime Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 2013.
FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
Imago, 1996.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP & A, 2006.
HORTA, Maria Teresa. As Palavras do Corpo (Antologia de Poesia Erótica). Lisboa:
Publicações Dom Quixote, 2012
_____ Poesia Reunida. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2009.

343
KRISTEVA, Julia. Revolution in Poetic Language. New York: Columbia University
Press. 1984.
LORDE, Audre. Uses of the Erotic: The Erotic as Power, In: Sisters Outsider: essays
and speeches. New York: The Crossing Press Feminist Series, 1984. P. 53-594.
MILLETT, Kate. Sexual Politics. University of Illinois Press, Chicago: 2000.
RICH, Adrienne. Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Revista Bagoas.
N. 05. 2010. P. 17-44.
SOUZA, Natália Salomé. A escrita feminina na lírica de Maria Teresa Horta. 2015.
120 f. Dissertação de Mestrado. Programa de pós-graduação em estudos de linguagens.
Instituto de Linguagens. Universidade Federal de Mato Grosso. 07 de dezembro de
2015.

344
A feiura física feminina na sátira de Afonso X
(The feminine physical ugliness in Alfonso X's satire)

Vanessa Giuliani Barbosa Tavares1


1
Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes)
1
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)

vanessa.tvrs@outlook.com

Abstract: This paper analyses the physical descriptions of women in two Alfonso X‘s, king
and medieval troubadour, satirical songs, with the objective to understand the aspects
concerning to the ugliness between the XII and XIV centuries in the Iberian Peninsula.
Starting from philological, literary and historiographic studies, it‘s understood the ugliness as
relative to social and political and aesthetic criteria, and, in this way, it‘s verified medieval
antifeminism would be responsible for conceiving the way women were described in this
literature. Therefore, female ugliness is understood as motivating the laughter in the
troubadour satirical compositions, considering that the laughable objects can also be those
despised in a given social context.
Keywords: Galician Portuguese satirical songs; physical ugliness, woman.

Resumo: Este trabalho analisa as descrições físicas femininas em duas cantigas satíricas de
Afonso X, rei e trovador medieval, com o objetivo compreender os aspectos concernentes à
feiura entre os séculos XII e XIV na Península Ibérica. Partindo de estudos filológicos, críticos
literários e historiográficos, compreende-se a feiura como relativa a critérios sociais e
políticos, além de estéticos, e, desse modo, constata-se o antifeminismo medieval seria
responsável por conceber o modo como as mulheres eram descritas nessa literatura. Dessa
maneira, entende-se a feiura feminina como motivadora do riso nas composições satíricas
trovadorescas, considerando que os objetos risíveis podem ser também aqueles desprezados
em um dado contexto social.
Palavras-chave: cantigas satíricas galego-portuguesa; feiura física; mulher.

Introdução
As cantigas de escárnio e maldizer galego-portuguesas, produzidas entre os
séculos XII e XIV na Península Ibérica, apesar de pertencerem à tradição lírica
trovadoresca, baseada na transmissão oral, deixaram um legado manuscrito considerável
para os estudos literários e também histórico-culturais.Graça Videira Lopes (1998)
contabiliza que chegaram até os dias atuais cerca de 1679 cantigas profanas e, deste
espólio, estima-se que 465 sejam de escárnio e maldizer, produzidas por
aproximadamente 93 trovadores e jograis (LOPES, 1998, p. 30).
Graça Videira Lopes estabelece que o escárnio e maldizer carrega uma função
satírica explícita nos termos utilizados pelos próprios trovadores, como chufar, retar,
profaçar (LOPES, 1998, p. 102) e também na definição fornecida pela Arte de trovar –
―dizer mal de alguém‖ (A POÉTICA, p. 5), motivos pelos quais essas composições
figuram no domínio da sátira.

as regras fixas a que deveriam obedecer, a discussão de critérios e de métodos de que


elas próprias são, por vezes, porta-voz, dão-nos conta (para além do talento dos poetas,
obviamente) de que estamos face a uma arte elaborada, que o termo sátira poderá,

345
melhor que nenhum outro, definir. Diga-se, pois, em resumo, que tal como acontece
com a arte lírica das cantigas de amor e das cantigas de amigo, a arte satírica galego-
portuguesa nos legou um conjunto de textos, em geral notáveis, onde os trovadores
riem, criticam, combatem pessoalmente e politicamente, dando largas a uma veia
cômica e satírica que permanece como uma herança maior da Idade Média peninsular
(LOPES, 2002, p. 13)

A sátira galego-portuguesa tratava, de forma cômica, o vulgar, o obsceno e o


ridículo, apoiada em uma função lúdica de divertir a corte (MONTOYA-MARTINEZ,
1989, p. 437). Contudo, para além desse teor lúdico, as composições estavam, quase
sempre, acompanhadas de um discurso moral, com um intuito reformador, que incidia
sobre o que aparentava ser ―errado, falho ou mal concebido‖ (MONGELLI, 2009, p.
185).
Nessa literatura os trovadores representavam o cotidiano cortês por meio da
descrição de aspectos físicos ou morais impróprios e risíveis de pessoas da corte ou de
categorias sociais e profissionais. Assim, com base no propósito de satirizar alguém,
compreende-se que os trovadores expunham nessas cantigas as fraquezas e os defeitos
humanos e denunciavam o desvio ou o rompimento de valores estéticos e morais
instituídos naquele contexto, ludibriando hábitos ou vícios de personagens conhecidos
na corte ou de categorias sociais e profissionais (TAVANI, 1993, p. 138).
Um dos alvos frequentes da sátira galego-portuguesa é a figura feminina, que
aparece como protagonista em 106 dessas composições (LOPES, 1998, p. 227). Cabe
salientar que, conforme aponta Esther Corral-Díaz, a mulher se configura como centro
indiscutível da literatura trovadoresca (CORRAL-DÍAZ, 1996, p. 16), seja porque são o
objeto de louvor nas cantigas de amor, a voz que enuncia seus lamentos nas cantigas de
amigo ou as personagens às quais são destinadas cerca de um quarto do espólio de
escárnio e maldizer.
As caracterizações desse grupo na sátira, em geral,referem-se às suas atividades
sexuais ou à sua aparência.Segundo José Luiz Rodriguez, essa poética oferece uma
estética da feiura que aponta para os aspectos físicos e morais negativos das mulheres
satirizadas, principalmente concernentes a três grandes tópicos: feiura, velhice e
comportamentos sexuais desordenados. (RODRIGUEZ, 1993, p. 44).
No caso deste estudo, com base em estudos literários, filológicos e
historiográficos, analisaremos duas cantigas do trovador Afonso X (1221-1284), rei de
Leão e Castela, com o intuito de observarmos como as descrições de aspectos físicos
dessas mulheres apontavam para a feiura. Partindo do princípio de que essas cantigas
exibiam os desajustes dos satirizados aos padrões requeridos pelo ambiente cortês,
podemos inferir quais as características femininas que figuravam entre os motivos de
riso para os trovadores e, por conseguinte, seriam desprezadas.

A feiura e a mulher
Conforme Umberto Eco, os critérios relativos à beleza e feiura manifestam-se
não apenas por meio da percepção de características físicas de um indivíduo, mas
também pela relação com critérios políticos e sociais (ECO, 2007, p. 12). Segundo o
autor, os sinônimos de beleza originam um sentimento de admiração, enquanto os
sinônimos de feiura são motivadores de uma imediata repulsa ou, por outro lado, de um
riso desdenhoso:

346
se examinarmos os sinônimos de belo e feio, veremos que, enquanto se considera belo
aquilo que é bonito, gracioso, prazenteiro, atraente, agradável, garboso, delicioso,
fascinante, harmônico, maravilhoso, delicado, leve, encantador, magnífico, estupendo,
excelso, excepcional, fabuloso, legendário, fantástico, mágico, admirável, apreciável,
espetacular, esplêndido, sublime, soberbo; é feio aquilo que é repelente, horrendo,
asqueroso, desagradável, grotesco, abominável, vomitante, odioso, indecente, imundo,
sujo, obsceno, repugnante, assustador, abjeto, monstruoso, horrível, hórrido,
horripilante, nojento, terrível, terrificante, tremendo, monstruoso, revoltante, repulsivo,
desgostante, aflitivo, nauseabundo, fétido, apavorante, ignóbil, desgracioso, desprezível,
pesado, indecente, deformado, disforme, desfigurado (ECO, 2007, p. 16)

Em breve alusão à condição feminina entre os séculos XII e XIV, nota-se que as
sociedades do Ocidente medieval estavam imersas em uma tradição misógina,
sustentada principalmente pelo cristianismo que, valendo-se de interpretações da Bíblia
e da filosofia antiga, menosprezou e normalizou o feminino. Nesse contexto,
abundavam discursos cuja argumentação pairava sobre a suposta inferioridade biológica
e moral do sexo, o que legitimava sua submissão ao masculino. Ainda, a argumentação,
sobretudo religiosa, de que as mulheres são seres carnais, volúveis e inconstantes foi
largamente difundida, motivo pelo qual os homens da Igreja passaram a produzir
diversos documentos para prescrever o modo como deveriam vestir-se, adornar-se e
portar-se. Assim, a mulher medieval foi cerceada socialmente num movimento que, sob
o pretexto de salvação religiosa, ratificou o antifeminismo e promoveu o apagamento
social e histórico do gênero feminino. Ganha relevância, assim, a ideia de que a mulher
foi criada a partir da costela do homem, portanto, em segundo lugar (DALARUN, 1993,
p. 35), dado que é esta narrativa da criação humana que basicamente construiu o modo
como foi tratada a mulher:

então Iahweh Deus vez cair um torpor sobre o homem, e ele dormiu. Tomou uma de
suas costelas e fez crescer carne em seu lugar. Depois, da costela que tirou do homem,
Iahweh Deus modelou uma mulher e a trouxe ao homem. Então o homem exclamou:
‗esta, sim, é o osso de meus ossos e carne de minha carne! Ela será chamada 'mulher',
porque foi tirada do homem!‘ (GÊNESIS, 2:21-23, 2002, p. 37)

A partir, pois, da interpretação exaustiva e do enaltecimento desses escritos


bíblicos, a subordinação feminina começa a ser sustentada nos discursos religiosos pela
ideia da criação da mulher como posterior à do homem. Tal interpretação constitui a
fundação da lógica ―falogocêntrica‖ (BLOCH, 1995, p. 33) que dominou o pensamento
medieval e ampara a moral hierarquizante que rege a humanidade.A partir dessas
noções, a mulher vê-se relegada às funções de filha, esposa e mãe, sempre em posição
de submissão e criada apenas com um único objetivo secundário: a procriação.
Ademais, a figura bíblica de Eva é indicada como a responsável pela
condenação dos seres humanos por ter cometido o pecado original de desobediência a
Deus: ―a mulher viu que a árvore era boa ao apetite e formosa à vista, e que essa árvore
era desejável para adquirir discernimento. Tomou-lhe do fruto e comeu. Deu-o também
ao marido, que com ela estava, e ele comeu‖ (GÊNESIS 3:6, 2002, p. 36). Culpada por
deixar-se seduzir pela serpente, a mulher arrasta o companheiro para a desobediência e
condena toda a espécie humana à expulsão do paraíso. O pecado condena Eva – e todas
as mulheres – às dores do parto, bem como ao domínio masculino: ―multiplicarei as
dores de tuas gravidezes, na dor darás à luz filhos. Teu desejo te impelirá ao teu marido
e ele te dominará‖ (GÊNESIS 3:16, 2002, p. 38).

347
Nesse contexto, os critérios de beleza e feiura femininas eram projetados
segundo as percepções que se tinha sobre a inferioridade natural do gênero. Dessa
maneira, a prescrição de modelos estéticos e sua aceitação pelas mulheres seria um
modo de garantir a remissão pelo mal que as acompanha. Pedro Fonseca aponta que
essa pedagogia que se firmou na Idade Média vinha de fontes Antigas, como a literatura
de Tertuliano (século I):

esse processo de teologização da mulher como condenada desde a Criação nada mais é
do que uma estratégia retórica com vistas a naturalizar sua presença, desde a origem,
como nefasta, necessitando, portanto, de redirecionamento doutrinário a partir do
julgamento da sua realidade física e aparente. Nesse sentido, continua Tertuliano a sua
litania da desgraça acerca da realidade feminina, apostrofando a mulher como
propiciadora do demoníaco, de soltar a praga advinda com a ingestão do fruto da árvore
proibida, de dar as costas à lei divina, de ter persuadido aquele que o demônio não fora
capaz de corromper, de ter destruído a imagem de Deus, Adão. E conclui a sua
iconoclastia da figura feminina dizendo que a mulher, por introduzir a morte no mundo,
é a causadora inclusive da morte do Filho de Deus. Tudo isso para, outra vez, fazer a
mesma pergunta retórica anteriormente feita acerca do adorno feminino, em tudo
contrário à penitência dos trajes da modéstia, com os quais a mulher deve
constantemente se vestir, para não piorar a presença do mal por ela introduzida no
mundo (FONSECA, 2013, p. 447)

Essas prescrições estéticas, segundo Carla Casagrande, tinham por objetivo o


fortalecimento da custódia e sujeição femininas (CASAGRANDE, 1993, 121),
moldando-as de acordo com a tradição misógina. Com isso, entre os séculos XII e XIV,
multiplicaram-se os escritos ascéticos, cuja preocupação era apontar para as mulheres,
independente da idade1, o caminho da salvação e livrá-las da condenação natural de seu
gênero, o que, com efeito, mascarava a custódia do sexo feminino, conquistada pelo
masculino a partir do momento em que eles ditavam às mulheres o modo como elas
deveriam portar-se, adornar-se e vestir-se.
Os escritos ascéticos propunham que a mulher deveria enfeitar o seu corpo de
forma modesta para que não valorizasse exageradamente o exterior. O enfeite do corpo
e o apreço pelas roupas e adornos demonstra não só a valorização externa, mas também
o exibicionismo das mulheres, que desejam ser olhadas, apreciadas, invejadas. Assim,
aquelas que valorizam o exterior provocam uma desordem social, pois, desejadas,
sucumbem aos pecados da carne, perdem a castidade e destroem a paz masculina
(CASAGRANDE, 1993, p. 127).

a mulher que pinta suas faces ou de vermelho ou altera a cor dos cabelos ou que
esconde os sinais do envelhecimento sob cosméticos e perucas é uma mulher que, a par
de Lúcifer, contesta e pretende melhorar a imagem que Deus lhe deu, chegando até a
julgar-se capaz de intervir nas leis da temporalidade governadas por ele
(CASAGRANDE, 1993, p. 127).

1
Conforme Carla Casagrande, as anciãs são consideradas interlocutoras decisivas da pedagogia
endereçada às mulheres, tornando-se modelo exemplar para as mais jovens caso sejam prudentes e
virtuosas. As jovens também tornam-se objeto de uma pedagogia específica, porém, neste caso, os
critérios se expandem para classificações relativas à classe econômica ou ao matrimônio.

348
Ademais das prescrições com a aparência física, alguns textos apontavam para a
sobriedade e consumo moderado de comidas e bebidas (CASAGRANDE, 1993, p. 130).
Uma mulher que não possuía equilíbrio no consumo de alimentos recaía sobre o pecado
comum de seu gênero, a gula, e poderia prejudicar sua castidade, uma vez que os
alimentos a impeliriam à luxúria:

a mulher é também tão escrava da boa mesa que não se envergonharia de consentir em
tudo, desde que lhe possibilitem degustar iguarias refinadas; quando tem fome, acha que
nada poderá saciar-lhe o apetite, por mais farta que seja a mesa; também nunca deseja
ter um comensal a seu lado, pois para comer sempre procura lugares escondidos e
secretos, onde possa empanturrar-se à vontade. Se, por um lado, as mulheres são sempre
avaras e dominadas pela rapacidade, por outro, gastam com desvario tudo o que
possuem para satisfazer a gula, e nunca se viu mulher que não tenha sucumbido a esse
pecado quando tentada. Acreditamos, aliás, descobrir todos esses defeitos em Eva, a
primeira mulher: embora criada pela mão de Deus, sem a intervenção do homem, não
teve medo de comer o fruto proibido, e foi sua gula que lhe valeu ser expulsa do paraíso
(CAPELÃO, 2000, p. 293-294)

Em síntese, as prescrições para elaboradas pelos clérigos propunham à mulher


uma custódia em que seus movimentos, gestos, palavras hábitos, fecundidade e
religiosidade eram controladas, garantindo a continuidade da tradição antifeminina e a
submissão dessas mulheres aos pais e maridos (CASAGRANDE, 1993, p. 139). Sendo
as cantigas representações literárias do ambiente cortês medieval, considera-se também
que elas serviriam ao propósito de intensificar a dominação social do masculino ao
feminino, na medida em que:

as representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade


de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo
que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos
proferidos com a posição de quem os utiliza. As percepções do social não são, de forma
alguma, discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas)
que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a
legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas
escolhas e condutas (CHARTIER, 2002, p. 17)

A partir disso, podemos inferir que a feiura feminina descrita nas cantigas estaria
relacionada ao afastamento desses padrões prescritos pelos homens e firmados no
Ocidente Medieval. Nesse sentido, uma mulher que não buscava as virtudes para
afastar-se dos pecados comuns de seu gênero, seria uma mulher considerada feia aos
olhos daquela sociedade, principalmente se recuperarmos a noção de que a feiura está
relacionada ao riso e este ao desprezo, proposta por Eco.
Vale ainda salientar que nessa poética a feiura feminina é representada por meio
de descrições risíveis, de modo a garantir o divertimento cortesão.
Nesse sentido, segundo Vladimir Propp, a comicidade encontra-se na correlação
entre a natureza física e a natureza espiritual do sujeito (PROPP, 1992, p. 46), o que
corrobora a noção de que o antifeminismo medieval estaria patente nessas produções.

―Nom quer eu donzela fea‖ e ―Achei Sancha Anes encavalgada‖: a feiura


feminina na sátira de Afonso X

349
Conforme El cancioneiro profano de Alfonso X el Sabio(2010), editado por Juan
Paredes, o rei-trovador legou-nos um espólio de 44 cantigas profanas, das quais 39 são
de escárnio e maldizer‖ (PAREDES, 2010, p. 35). Dentre estas, identificamos duas
cantigas que fazem clara alusão à feiura física e cujos alvos são femininos.
Citamos, primeiramente, a afamada cantiga ―Nom quer eu donzela fea‖ (B 476;
ALFONSO X, 2010, p. 165, LAPA, 1995, p. 23):

Non quer'eu donzela fea


que [ant'] a mia porta pea.

Non quer'eu donzela fea


e negra come carvon,
que ant'a mia porta pea
nem faça come sison.

Non quer'eu [donzela fea


que ant'a mia porta pea].

Non quer'eu donzela fea


e velosa come can,
que ant'a mia porta pea
nen faça come alerman

Non quer'eu donzela fea


que ant' a mia porta pea.

Non quer'eu donzela fea


que há brancos os cabelos
que ant' a mia porta pea
nen faça come camelos.

Non quer'eu donzela fea


que ant' a mia porta pea.

Non quer'eu donzela fea,


veelha de má[a] coor
que ant' a mia porta pea
nen [me] faça i peior.

Non quer'eu donzela fea


que ant' a mia porta pea.

Manuel Rodrigues Lapa descreve a composição como um texto em que régio


trovador infringe todas as regras da cortesia, rebaixando a mulher a um nível
perfeitamente animal, com comparações de escala zoológica e botânica (LAPA, 1995,
p. 23), o que é ratificado por Paredes (2010, p. 166) e Lopes (2011 [2017]). Há ainda
em Lopes a ideia de que a cantiga é construída como um contratexto das cantigas
amorosas, na medida em que apresenta uma donzela em apuros digestivos (LOPES,
[2011] 2017) em vez de uma dama bela e sublimada. José Luiz Rodríguez comenta que
os versos pares de cada cobra constituem expansões semânticas dos versos do estribilho,
repetidos nos versos ímpares de cada cobra (RODRIGUEZ, 1993, p. 44). Dessa

350
maneira, podemos constatar as descrições relativas ao que designaria uma donzela fea
para o trovador: a cor da pele (―e negra come carvon,‖, ―de má[a] coor‖), o excesso de
pelos corporais (―e velosa come can,‖) e a velhice (―que há brancos os cabelos‖,
―velha‖). A feiura física expressa-se na composição por meio de descrições que afastam
a mulher satirizada das descrições comuns nos gêneros amorosos, demonstrando quais
seriam os aspectos femininos desprezados naquele contexto.

Ademais, constatamos que as descrições dessa donzela comparadas a uma planta


(―alermã‖)2 e a animais (―sison‖, ―cam‖, ―camelos‖)3, o que aponta para a inferiorização
da mulher que encontra-se fora dos padrões estéticos prescritos para o gênero, pois a
associação da donzela a esses elementos alude à desumanização feminino.
Outra composição de Afonso X que faz alusão à estética feminina é ―Achei
Sanch[a] Anes encavalgada‖ (B458; PAREDES, 2010, p. 86; LAPA, 1995, p. 38):

Achei Sanch[a] Anes encavalgada


e dix'eu por ela cousa guisada:
ca nunca vi dona peior talhada,
e quige jurar que era mostea;
e vi-a cavalgar per ũa aldeia
e quige jurar que era mostea.

Vi-a cavalgar com um seu 'scudeiro


e nom ia milhor um cavaleiro.
Santiaguei-m'e disse: - Gram foi o palheiro
onde carregarom tam gram mostea;
vi-a cavalgar per ũa aldeia
e quige jurar que era mostea.

Vi-a cavalgar indo pela rua,


mui bem vistida em cima da mua;
dix'eu: - Ai, velha fududancua,
que me semelhades ora mostea!
Vi-a cavalgar per ũa aldeia
equige jurar que era mostea.

Esta composição tem como foco o jogo metafórico com o vocábulo mostea.
Conforme Paredes, esta composição está destinada a realizar uma caricatura burlesca de
uma senhora, cujo aspecto e compostura são ridicularizados por meio da comparação
dela com um gambá (PAREDES, 2010, p. 87). Lapa não compartilha a interpretação de
Paredes e comenta que a cantiga exibe um retrato pitoresco de uma dona de formas
avantajadas que cavalga pelas ruas de uma aldeia, sendo comparada a uma carrada de
palha (LAPA, 1995, p. 38). Lopes, por sua vez, comenta apenas que a cantiga apresenta
um contrarretrato das cantigas de amor descrevendo uma gorda matrona atravessando as
ruas de uma aldeia (LOPES, 2001 [2017]). Para este estudo, concordaremos com as
proposições destes últimos e consideraremos as metaforização com uma carrada de
palha.

2
Planta de odor desagradável conhecida como arruda silvestre (LOPES, [2011] 2017).
3
Ave, cão e camelo, respectivamente (LOPES, [2011] 2017).

351
Nota-se que as alusões à feiura física de Sancha Anes4 apresentam-se claramente
por meio de descrições como ―dona peior talhada‖, ―e quige jurar que era mostea‖,
―Gram foi o palheiro/onde carregarom tam gram mostea‖ ―mui bem vistida em cima da
mua;‖, ―Ai, velha fududancua, que me semelhades ora mostea‖. Podemos perceber que
imagem de Sancha Anes passeando a cavalo contradiz aquilo que os escritos ascéticos
propõem para a mulher: enquanto a discrição e simplicidade são os aspectos ditados
para as mulheres do ocidente medieval, o passeio da dona chama atenção dos
espectadores da aldeia, principalmente pelo excesso de roupas que vestia (―mui bem
vistida em cima da mua‖) ou, ainda, se desconsiderarmos a ironia na composição, pela
suntuosidade dessas vestimentas.
Outrossim, se jugarmos, como Lapa, que Sancha Anes é uma senhora de formas
avantajadas, noção expressa principalmente pelos versos ―Gram foi o palheiro/onde
carregarom tam gram mostea‖, podemos inferir que a mulher estava em desacordo com
os princípios de parcimônia alimentar propostos pelos clérigos medievais. A
protagonista da composição, nesse sentido, seria satirizada por seu excesso de peso e,
consequentemente, por sua gula. Ela, portanto, seria uma mulher que expressa a feiura
feminina, pois, além de extravagante em seu passeio, seria exagerada na alimentação,
compondo o quadro de uma ―dona peior talhada‖.
Observa-se também que tópico da velhice consta em ambas as composições. A
feiura física das mulheres velhas é tema recorrente na sátira galego-portuguesa, dado
que a concepção de beleza está comumente associada à juventude. Entretanto, podemos
entender que a recorrência das caracterizações da velhice tem outro motivo, mais
relacionado à função social dos sexos que à estética propriamente dita: uma mulher em
idade avançada é, em geral, incapacitada de procriar. Com isso, percebe-se que a feiura
dessas mulheres está associada à sua suposta inutilidade naquela sociedade, uma vez
que as mulheres que não dedicavam-se à vida nos mosteiros tinham no matrimônio sua
única perspectiva de futuro e, com ele, a geração de descendentes. Logo, uma mulher
velha é feia e risível no caso das cantigas não somente pela sua aparência, mas também
pelo prejuízo de sua função social.
Por fim, Vladimir Propp salienta que três temas cômicos comuns na literatura
são o excesso de peso, o ato de comer e as funções fisiológicas involuntárias do corpo
humano (PROPP, 1992, p. 45-54). Em ―Achei Sancha Anes encavalgada‖ e ―Nom
quer‘eu donzela fea‖, os três tópicos são claramente utilizados pelo trovador para
provocar o riso; um riso cuja função primária era o divertimento cortesão, mas que,
ainda assim, exibia o repúdio à feiura feminina.

Considerações finais
Com base nas cantigas expostas, a feiura feminina e a misoginia serão
concebidas não apenas como parte de um discurso de propósito exclusivamente
moralista, mas também como efeito lúdico de uma literatura produzida no período de
apogeu dos escritos misóginos e que, por este motivo, estaria imersa em um ideário no
qual o gênero feminino era cerceado por inúmeras prescrições estéticas e
comportamentais. Logo, ao descreverem comicamente a feiura feminina, os trovadores

4
Segundo Lopes, não há documentos que permitam a identificação dessa dona no contexto peninsular.

352
reproduziriam as noções relativas ao julgado como feio e risível nas mulheres daquela
sociedade.
Sendo assim, é possível confirmar que as mulheres que figuravam na sátira eram
ainda mais inferiorizadas que as mulheres em geral, - considerando o contexto
antifeminino medieval - pois as composições dos trovadores apresentavam
peculiaridades relativas ao que era considerado feio naquele contexto. Sendo os
compositores homens, os quais detinham a condição de superioridade cultural, ao
compor cantigas que fazem rir das mulheres de aparência inapropriada, criavam ou
mantinham padrões estéticos e de conduta feminina a serem perpetuados – sob pena de,
desobedecido o padrão, tornarem-se as mulheres da corte alvos das impiedosas sátiras –,
o que contribui para o exercício da autoridade do homem sobre a mulher.

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Tradução de José Colaço Barreiros e Artur Guerra. Lisboa: Caminho, 1993. p. 138-139.
698 p.

354
Capitu e Lavínia: duas mulheres, um mesmo destino?
(Capitu and Lavínia: two women, one same destiny?)

Adriana da Costa Teles1


1
Universidade de São Paulo (USP)

adriana_c_teles@hotmail.com

Abstract: Capitu, the main character of Machado de Assis‘s novel Dom Casmurro, and
Lavínia, from Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, by Marçal Aquino, have
in common the fact of being enigmatic women and maintain a relationship with men
imprisoned by their strong personalities. Very distant in time, they put in evidence women as
the subject of men‘s speech and wishes, something that even Lavinia‘s freedom in the way she
deals with her life and sexuality cannot resolve. The endings of these two novels are quite
similar. Capitu dies after years exiled in Switzerland and Lavíniaends living in a sanatory
inPará. The aim of this paper is to discuss this dramatic mismatch between psychologic
complex women and men that are not able to understand them.
Keywords: Machado de Assis; Marçal Aquino; intertextualidade; feminino; dominação.

Resumo: Capitu, personagem de Dom Casmurro, de Machado de Assis, e Lavínia, de Eu


receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, de Marçal Aquino, têm em comum o fato
de serem mulheres enigmáticas e de se relacionarem com homens que se deixaram aprisionar
por suas personalidades. Personagens distantes no tempo, elas colocam em evidência o
feminino como um ser sujeito ao discurso e aos desígnios masculinos, algo que nem mesmo a
liberdade de Lavínia no trato com a própria vida e sexualidade consegue resolver. O fim de
ambas é semelhante. Capitu termina morta, depois de anos exilada na Suíça, e Lavínia
internada em um sanatório, no interior do Pará. O objetivo deste trabalho é discutir esse
desencontro dramático entre mulheres psicologicamente complexas e homens aquém da
possibilidade de compreendê-las.
Palavras-chave: Machado de Assis; Marçal Aquino; intertextualidade; feminino; dominação.

Uma personagem sempre na memória


―Capitu não existiu e continua a existir. [...]. Em termos óbvios, Capitu é uma
personagem ficcional, agigantado pela estima e a lente das sucessivas gerações de
leitores do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis‖ (SANTIAGO, 2008, p. 83).
Com essas palavras, Silviano Santiago inicia o artigo ―Uma linhagem esquisita‖,
publicado em Quem é Capitu?, volume organizado por Alberto Schprejer e editado pela
Nova Fronteira, em 2008. É nesse mesmo artigo que Silviano Santiago afirma ser a
personagem da mesma linhagem de Iracema

manifestação mais inequívoca do real feminino brasileiro, [...] notável encarnação de


gênero (gender) na nossa literatura, descendente de mito feminino anterior, o fundador
da brasilidade, Iracema, sacerdotisa tabajara, cujo corpo sagrado foi conspurcado por
Martin, o conquistador português‖ (SANTIAGO, 2008, p. 84-85).

Moacir e Ezequiel, filhos malditos, traduziriam cada um a seu modo, a sofrida


descendência patriarcal brasileira. Ainda segundo Santiago, Capitu contrabalança a

355
ingenuidade selvagem da personagem de José de Alencar e o mito fundador se restaura
em Rita Baiana e Gabriela, por exemplo:

Historicamente, fazia-se necessário contrabalançar a ingenuidade selvagem da ―virgem


dos lábios de mel‖ com ―os olhos oblíquos e dissimulados‖ de Capitu, para que o mito
fundado se restaurasse [...]. Tanto Moacir, filho de Iracema, quanto Ezequiel, filho de
Capitu, são personagens necessariamente órfãos de mãe, problemáticos e malditos. O
primeiro, ao nascer das dores sangrentas do parto desassistido; o segundo, julgado
adulterino pelo pai, ao morrer de febre em Jerusalém. (SANTIAGO, 2008, p. 85)

Capitu, de fato, vive em nosso imaginário. E não é preciso ser estudioso ou


apreciador da literatura para tê-la em mente. Não é raro, para o pesquisador que lida
com a obra de Machado de Assis, ser indagadopor pessoas das mais diversas profissões
em variadas situações sobre a suposta traição de Capitu, como se tivéssemos a resposta
para a pergunta. Capitu vive à sombra de seus olhos supostamente oblíquos e
dissimulados e da suspeita de cálculo e perfídia. Uma dúvida que, não é exagero dizer,
mostra o peso do patriarcalismo sobre a personagem. Aliás, foi apenas em 1960
(sessenta após a publicação de Dom Casmurro) que surgiu o primeiro trabalho que
lançou essa questão sobre o romance. Até a publicação de O Otelo brasileiro de
Machado de Assis, de Helen Caldwell, a traição era tida como certa e Bentoera uma
vítima da namorada da adolescência e do melhor amigo. Ninguém havia, até então,
duvidado das palavras do advogado rico e de família tradicional. O papel que cabia à
Capitu era o de uma mulher desde sempre dissimulada, dona de olhos de ressaca, a
arrastar o observador de maneira quase demoníaca. A ela coube, ainda, fazer parte de
uma história em que não teve voz. O seu fim? O exílio e a morte na Suíça.
Nos últimos anos, muitos escritores revisitaram Capitu e procuraram lhe dar voz
narrativa, caso, por exemplo, de Domínio Proença Filho com o romance Capitu:
memórias póstumas (1998); de Lya Luft com o conto ―Capitu: para que saber?‖ (2008)
e Nilto Maciel com ―Dez libras esterlinas‖ (2008). São iniciativas que mostram uma
pergunta latente: qual teria sido, afinal, a versão de Capitu para a história que Bento
Santigo nos narra? É evidente que a situação permanecerá incógnita e que essas
iniciativas acabam por jogar luz sobre o silêncio da personagem. Capitu, a criação de
Machado, sempre chegará a nós por meio da construção memorialística de ummarido
rancoroso, do discurso vigoroso de um advogado e ex-seminarista, como nos lembra
ainda Silviano Santiago:

Capitu é um ser de papel. É quem é por ser fruto duma mentira inventada por Machado
de Assis, com a finalidade de se chegar à verdade poética sobre a condição –
psicológica, social, política e econômica – da mulher no século XIX brasileiro. [...].
Sem nunca ter existido como tal na realidade, Capitu se transformou na verdade sobre a
complexa identidade e situação da mulher numa sociedade da burguesia patriarcal
periférica, cuja elite branca, letrada e cristã era constituída e dominada pelo machismo
fidalgo, de que é exemplar o narrador do romance, conhecido pela alcunha de Dom
Casmurro. (SANTIAGO, 2008, p. 84, grifos do autor)

É evidente que essamanifestação do feminino brasileiro, encarnação de gênero,


deixou herança em nossa literatura. Há toda uma linhagem de personagensfemininas
caladas pelo discurso masculino e notadamente inspiradas em Capitu. Cada uma com a
sua peculiaridade, podemos citar, aqui, Madalena, de São Bernardo (1934), de
Graciliano Ramos; Matilde, de Leite Derramado (2009), de Chico Buarque, e Lavínia,

356
de Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios (2005), de Marçal
Aquino.Todas elas são personagens que se envolveram com homens de condição
financeira mais elevada do que a delas, sofreram as consequências de seu poder, em
sentido amplo, e, finalmente, fizeram parte de suas memórias, por meio de um discurso
unilateral.

Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios


Interessa, neste trabalho, discutir a figura de Lavínia, protagonista do romancede
Marçal Aquino. Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, narrativa que
aborda o amor e, nesse caso, as suas funestas consequências, é dividida em quatro partes
e tem dois narradores. Um deles é onisciente e se encarrega de contar a história da
moça, uma jovem de vinte e poucos anos, olhos ―cor de lodo de bauxita‖ (AQUINO,
2005, p. 13) e casada com o pastor de uma igreja evangélica. O outro é o fotógrafo
Cauby, que conta sua história de amor com Lavínia, num tempo posterior aos fatos
ocorridos, mas não muito distante deles. Cauby é um paulistano de quarenta e poucos
anos, solteiro, apreciador de cinema e música clássica, que passa temporada em uma
cidade que vive da mineração no interior do Pará a fim de produzir um livro financiado
por uma agência francesa. Dedica-se também a fotografar prostitutas que sobrevivem do
garimpo e eventualmente realiza trabalhos para o delegado ou políticos locais. Lavínia
tem pouco mais de vinte anos e um passado de violência e privações. Após sofrer
sucessivos abusos por parte do padrasto, fugiu de casa, no interior do Espírito Santo, em
direção à capital do estado, onde se envolveu com drogas e ganhou a vida como
prostituta. É em Vitória que conheceu o marido, Ernani, um pastor evangélico viúvo e
muito mais velho do que ela, que a converte e com ela se casa, para tempos depois
acompanhá-lo em missão no interior do Pará.
A maneira como o romance é elaborado – tendo como plano principal a narração
em primeira pessoa – guarda semelhanças com Dom Casmurro e é difícil, para o
estudioso da obra de Machado, não estabelecer relações entre os textos. De imediato
temos os dois narradores, Cauby e Bento, emocionalmente envolvidos com a história de
amor que narram. É certo que as peculiaridades que caracterizam esses narradores se
assemelham até certo ponto. Bento quer convencer o leitor – e talvez a si mesmo – de
que a sua vida foi uma tragédia. Cauby não parece ter como objetivo convencer o outro,
mas carrega a postura quase passiva de relatar o que suas escolhas no campo do amor
lhe causaram:

Não adianta explicar. Você não vai entender.


Às vezes, como num sonho, vejo o dia da minha morte. É uma coisa meio espírita, um
flash. E, embora a mulher não apareça, sei que é por causa dela que estão me matando.
E tenho tempo de saber que não me deixa infeliz o desfecho de nossa história. Terá
valido a pena. (AQUINO, 2005, p. 11)

Há certa melancolia na narração de Cauby e, em ambos os romances, no de


Aquino e no de Machado, os narradores compartilham a incômoda posição de
perdedores no jogo amoroso.
Cauby é um narrador cheio de ressalvas. Além de estar extremamente envolvido
com a história que narra, ele carrega limitações físicas que parecem justamente apontar
para a sua fragilidade:

357
Tenho no corpo dezessete ossos que precisam de reparos. Fora o crânio. Meus ouvidos
foram comprometidos de modo irreversível, é como se alguém tivesse baixado o
volume do mundo. [...]. Parece que suprimiram alguns instrumentos das gravações, tudo
soa oco, incompleto. Minha cabeça dói de forma crônica desde que acordo. E desconfio
que meu olfato e paladar também mudaram. (AQUINO, 2005, p. 188)

O fotógrafo convive, no momento da enunciação narrativa, com sequelas que


herdou da tentativa de linchamento sofrida após a suspeita de ter assassinado o marido
de Lavínia. Com problemas de audição e cego do olho direito – justamente o que usava
no trabalho – ele visivelmente tem dificuldades em apreender o mundo ao seu redor. E,
por fim, se misturam as lembranças, os sentimentos, as sequelas. É à luz desse narrar
que conhecemos Lavínia, cujos olhos de uma cor um tanto peculiar haviam atraído, de
imediato a atenção do narrador, tempos antes:

Foi na loja do Chang. Enquanto esperava que ele embalasse os filmes que havia
comprado, distraí os olhos nas fotos da vitrine. O rosto de uma mulher num porta-
retratos capturou a minha atenção. Era jovem ainda, e muito bonita. Tinha os olhos
grandes e escuros e sorria como se estivesse vendo, atrás de quem a fotografava, algo
que a deixava imensamente feliz. Só vi mulheres sorrindo daquela maneira quando
olhavam para gatos e crianças.
Que rosto maravilhoso, eu disse.
E ouvi uma voz às minhas costas:
Muito obrigada.
Eu me virei e dei de cara com ela, a mulher do porta-retratos. Os cabelos estavam mais
compridos e sorria de um jeito bem diferente do sorriso da foto. [...] Cravou em mim
um par de olhos cor de lodo de bauxita. (AQUINO, 2005, p. 13)

A mulher enigmática rememorada à luz da melancolia do presente e do fracasso


da relação amorosa nos conduz às considerações de teóricos que tratam da
intertextualidade e que orientam a nossa reflexão. Em O trabalho da citação, Antoine
Compagnon afirma que ―toda prática do texto é sempre citação‖ (COMPAGNON,
2007, p. 41). Para Compagnon, o procedimento pertence à origem, retoma o jogo
arcaico da criança, que, munida de tesoura e cola, fratura o material com o qual se
depara e constrói, por meio desse processo, um mundo à sua imagem, um mundo a qual
ela se pertence (COMPAGNON, 2007, p. 11).
Essa rememoração primeira ―age e reage‖, em seus dizeres, em qualquer tipo de
atividade com o papel. Afinal, consciente ou inconscientemente, ao escrever retomamos
nossos referenciais e leituras e originamos textos que expõem o que somos, o que
pensamos e o retrato que fazemos do que está à nossa volta. As ideias expostas por
Compagnon nos levam a resgatar os famosos dizeres de Julia Kristeva, a qual, em
Introdução à Semanálise (1969), afirma que ―todo texto se constrói como mosaico de
citações‖ (KRISTEVA, 1969, p. 64), se constitui enquanto fruto de um processo de
absorção e transformação e que, evidentemente, espelha a percepção pessoal do escritor:
―a palavra (o texto) é um cruzamento de palavras (de textos) onde se lê, pelo menos,
uma outra palavra (texto)‖ (KRISTEVA, 1969, p. 64). Estamos face ao conceito da
intertextualidade, que abole a ideia de fonte ou influência, ao propor que o conjunto
literário se encontra em constante diálogo e intercâmbio, o que revitaliza a tradição.
A partir da reflexão dos dois estudiosos elencados acima, não há como negar que
o ato de escrever coloca em jogo todo um referencial do escritor, o que Compagnon
expressa por meio do trabalho de recorte e colagem que realizamos todo o tempo em

358
que criamos, desde crianças, e Kristeva, décadas antes, com a imagem do mosaico. É
certo que, retomando Laurent Jenny, esse trabalho constante de assimilação e
transformação a que os dois estudiosos, em tempos diferentes, se referem, resulta em
―um texto centralizador, que detém o comando do sentido‖ (JENNY, 1979, p. 14).
Desse modo, a intertextualidade apela para a competência do leitor, uma vez que
estimula ―a máquina de leitura‖ (COMPAGNON, 2007, p. 59). Afinal, a relação entre
dois textos nunca é de equivalência ou redundância. Estabelece-se, assim, uma relação
complexa entre o escritor e o leitor, uma vez que o trabalho intertextual denuncia uma
determinada leitura que o autor faz do texto e solicita do receptor uma postura ativa.
É um pouco desse exercício, que fazemos aqui. E, se a maneira como a narrativa
é organizada nos remete a Dom Casmurro, o modo como a figura feminina é
representada também torna a relação entre os textos um tanto clara. Lavínia é uma
figura enigmática:

Detalhe: existiam duas mulheres dentro de Lavínia.


Uma delas era casada. Casadíssima. Com um homem a quem chamava de santo. Um
homem exatos trinta e oito anos mais velho do que ela.
A outra Lavínia vinha me visitar. A bela da tarde. (AQUINO, 2005, p. 43)

Trata-se de um traço da personagem que também nos é relatado pelo narrador


onisciente, quando discorre sobre a infância e a adolescência da personagem:

O dualismo tornou o comportamento de Lavínia errático. Ela parou de ir à escola – e


ninguém em casa pareceu notar. A mãe e o seu companheiro se consumiam e se
bastavam um ao outro – desde que houvesse bebida. Os irmãos estavam prestes a se
doutorar no crime. Carreiras em ascensão [...].
Ninguém viu brotar a flor esplêndida. Metade branca, metade sombria. (AQUINO,
2005, p. 120)

Com o desenrolar da trama, vemos que, diferente do que ocorre com Capitu, a
ambiguidade da figura feminina aparece,no romance de Aquino, personificada em algo
físico. Lavínia não é apenas uma mulher intrigante, mas um ser psiquicamente duplo a
integrar um lado puritano e outro libertino. Isso se dá a ponto de o narrador apelidar a
―outra‖ Lavínia com o nome de Shirley:

Quem me contava isso era a Lavínia doida. A que eu, de brincadeira, chamava de
Shirley. Aquela que a Lavínia mansa, a sério, xingava de vadia. Era bem mais do que
dupla personalidade. Era uma doença. E não tinha cura. E eu adoeci daquela mulher.
Contraí o vírus da sua insensatez. (AQUINO, 2005, p. 46)

A opção de Cauby é a de conviver com essas duas: ―Eu me contentava em


reconhecer se era uma ou a outra quem estava em cena. No começo, achei que tinha a
ver com a Lua. [...]. Embora parecesse um jogo, logo descobri que era intenso demais
para ser um jogo‖ (AQUINO, 2005, p. 46). Lavínia alternava, ainda, ―fases de furor
sexual com períodos de quase desinteresse‖ (AQUINO, 2005, p. 42), era ―capaz de
dormir vinte horas seguidas. Ao acordar não se lembrava dos sonhos; só sabia que eram
ameaçadores‖ (AQUINO, 2005, p. 42) e ―não fazia objeção às drogas‖ (AQUINO,
2005, p. 43). Nas palavras do narrador: ―A pessoa mais estranha que encontrei na vida.
E a mais sem medo da morte. Encarava o inevitável como inevitável e pronto‖
(AQUINO, 2005, p. 43).

359
Cauby e Lavínia vêm de contextos socioculturais bastante distintos, o que,
guardadas as proporções, conduz ao paralelo com Bento e Capitu. O fotógrafo é um
homem culto e viajado, filho de um jornalista de classe média, ao passo que Lavínia não
tinha terminado o ensino fundamental, carecia de intimidade com os livros e foi
abandonada pelo pai no início da gestação da mãe, uma faxineira alcoólatra. É Cauby
quem a apresenta ao cinema e à música clássica, sem sucesso com os livros. A história
de vida tão diferente de cada um, não resiste à paixão doentia que os envolve. A
personalidade tão peculiar de Lavínia aponta para uma presença avassaladora e
intrigante. Ela é, ao mesmo tempo, uma sobrevivente em um mundo que lhe é, antes de
tudo, hostil, mas também um ser frágil, que, por si só, vive uma situação extrema. É
coerente, assim, que não suporte os limites emocionais vividos com o fim do
relacionamento com o fotógrafo.
O problema físico que carrega e que sabemos apenas tratar-se de uma ciclotimia,
ocasionacrises, resolvidas pelo marido com internações periódicas em uma clínica
psiquiátrica, fato que não é de conhecimento de Cauby, que fica sempre angustiado com
os sumiços inexplicáveisda amante:

Sem Lavínia, foi como se uma nuvem sinistra de abandono estacionasse em cima de
mim. Passei a me fotografar todos os dias com uma Polaroid e espetava o resultado no
painel de cortiça da cozinha. A decadência documentada nessa sequência de auto-
retratos não deixa dúvida: eu e minha barba ficávamos cada vez mais tristes. Eu estava
deteriorando. (AQUINO, 2005, p. 67)

Depois que manifesta a sua intenção de voltar para São Paulo e Lavínia aborta o
filho que esperava do fotógrafo,em virtude do tratamento com eletrochoque, recebido
em uma dessas internações, ela transforma-se em outra. Assume a personalidade de uma
mulher chamada Lúcia e vive alheia ao mundo e às pessoas que conhecia:

Lavínia.
Ela ergue a cabeça e fazemos contato. E uma emoção se acende em seu rosto, uma brasa
breve que não sobrevive e logo se apaga. E só. Um fragmento de lembrança que emerge
do passado, tão tênue que chega a ser decifrado. Uma quase-lembrança, que surge e se
desfaz com a mesma rapidez no ar engordurado do refeitório.
Lúcia, ela me corrige.
Ela não é mais Lavínia. Desde que entrou e puseram fogo no seu cérebro, ela deixou de
ser. É outra. Em mais de um sentido. Trocou de pele. De alma. E de nome. (AQUINO,
2005, p. 223).

O fim da personagem é apenas a situação extrema da história de dominação que


enfrentou. Lavínia, ao mesmo tempo em que exerce grande poder sobre os homens ao
seu redor, poder este sempre vinculado à sua sexualidade e magnetismo, acaba sofrendo
as consequências dos encontros amargos que a vida lhe proporcionou. O padrasto e os
sucessivos abusos, a prostituição nas ruas de Vitória, os amantes ricos que lhe
prometeram estabilidade e casamento. Por fim, um marido que lhe deu segurança, mas a
enquadrou em seus próprios conceitos de normal e aceitável.

Duas mulheres, um mesmo destino?


A aproximação com Capitu, dentro dessa semântica comparativa, é inevitável.
Ambas têm os seus respectivos caminhos marcados pela dominação masculina.
360
Terminam exiladas – uma na Suíça, outra em um sanatório no interior do Pará – e
silenciadas dentro das narrativas da qual fazem parte. Mal ouvimos os seus discursos e
quando o fazemos é pelo filtro do narrador, que as insere dentro de seu discurso e de sua
lógica.
A peculiaridade desse romance, no que diz respeito a Dom Casmurro, é que a
relação entre Cauby e Lavínia é extraconjugal. Ele é o amante. Desse modo, a questão
do ciúme se inverte. Cauby se sente à mercê das condições de Lavínia e é ele quem
sente ciúme do marido:

O monstro despertou e se remexeu entre as minhas vísceras. Meu cheiro ainda deve
estar naquele corpo, pensei com despeito.
Lavínia acendeu um cigarro e o pastor falou alguma coisa. Uma recriminação. Ela riu e
passou a mão de leve no rosto dele. O monstro dentro de mim rosnou. (AQUINO, 2005,
p. 77)

Por outro lado, o sentimento o iguala a Bento, na medida em que aponta para o
anseio de ter o outro para si. Uma espécie de dependência, vínculo que não pode ser
rompido, e uma ausência que degrada o narrador e o leva à solidão irremediável: ―Sem
Lavínia foi como se uma nuvem sinistra de abandono estacionasse em cima de mim‖.
(Aquino, 2005, p. 67)
Devemos assinalar, no entanto, que o fato de Aquino optar por uma personagem
que carrega um problema físico acaba por empobrecer a sua caracterização. Capitu é
refratária a qualquer tipo de verdade. Nesse sentido, o fato de ser apresentada pelo
homem apaixonado dramatiza a pouca transparência do humano em suas relações com o
outro. Para um homem inseguro, como Bento, esse vai ser um problema intransponível.
No caso de Lavínia e Cauby, restam a paixão que destrói por si, os encontros mal
sucedidos, as trapaças do destino, um homem melancólico frente às escolhas que fez.
No que diz respeito ao feminino, sobra silêncio, solidão e exílio, exercido pelo outro e,
por fim, por si mesma.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AQUINO, M. Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005.
BUARQUE, C. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
COMPAGNON, A. O trabalho da citação. Trad. Cleonice Mourão Consuelo Fortes
Santiago. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
JENNY, L. et al. Intertextualidades. Coimbra: Almedina, 1979.
KRISTEVA, J. Introdução à semanálise. Trad. L. França. São Paulo: Perspectiva, 1969.
LUFT, L. Capitu: para que saber? In: SCHPREJER, A. Quem é Capitu?. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2008.
MACIEL, N. Dez libras esterlinas. In: FERNANDES, R. Capitu mandou flores: contos
para Machado de Assis nos cem anos de sua morte. São Paulo: Geração Editorial, 2008,
p. 472-475.
MACHADO DE ASSIS, J. M. Dom Casmurro. São Paulo: Cotia, 2008.

361
PROENÇA FILHO, D. Capitu: memórias póstumas. Rio de Janeiro: Artium, 1998.
RAMOS, G. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 1996.
SANTIAGO, S. Uma linhagem esquisita. In: SCHPREJER, A. Quem é Capitu?. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

362
A escravidão sobe ao palco: uma possível leitura da
questão de gênero nas peças Mãe e O Demônio Familiar
de José de Alencar
(Slavery onstage: a possible reading of the gender issue in José de Alencar's
plays, Mãe and O Demônio Familiar)

Maria Domingos Pereira Ventura1, Angela Maria Rubel Fanini2


1-2
Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR)
2
Bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq (Processo 302811/2013-3)

mdventura@gmail.com; rubel@utfpr.edu.br

Abstract: This study aims to analyze how the slave characters in the drama Mãe (1860) and
the comedy O Demônio Familiar (1857) by José de Alencar are represented. Also this work
brings some possible implications of this representation of the male and female to the
descendants of black people after the end of slavery in the country. The analysis is based on a
sociological perspective and by Dialogical Discourse Analysis, throughout Bakhtin and the
Circle, seeking to understand the interactions between social context and the construction of
protagonists. As a result, it was observed that black people haven't gone away from the scene
with the abolition, they were pushed away towards the periphery of cities and social
representation is not unbiased. Sometimes that carries inside prejudices that might prevent the
bodies from (trans-) forming and taking their rightful place in society.
Keywords: Literature; Gender; Slavery; Dialogical discourse analysis.

Resumo: O presente estudo tem como objetivo analisar como são representados os
personagens escravos na comédia O Demônio Familiar (1857) e no drama Mãe (1860) de José
de Alencar. Este trabalho apresenta algumas possíveis implicações dessa representação do
masculino e feminino para os descendentes de negros após o término da escravidão no país. A
análise se dará a partir do viés sociológico e da Análise Dialógica do Discurso – ADD de
Bakhtin e o Círculo, buscando entender como o contexto social é referido na construção dos
protagonistas. Como resultado observou-se que os negros não sumiram de cena com a
abolição, eles foram afastados para a periferia das cidades e que a representação social não é
isenta. Por vezes essa carrega em seu bojo preconceitos que podem impedir que os corpos se
(trans-)formem e ocupem seu lugar de direito na sociedade.
Palavras-chave: Literatura; Gênero; Escravidão; Análise do discurso.

Considerações iniciais
O presente artigo busca refletir sobre a representação do escravo e da escrava na
comédia O Demônio Familiar (1857) e no drama Mãe (1860) de José de Alencar,
pensando-a como forma de dominação e manutenção de estruturas sociais. A escravidão
ocorre sempre que um grupo subjuga outro e acompanha a história da humanidade. No
Brasil, a escravidão foi introduzida para suprir a necessidade de braços na plantação de
cana de açúcar e posteriormente nas demais atividades econômicas do país, ―uma vez
que os homens livres não eram suficientemente numerosos para suprir a força de
trabalho requerida pela plantação, e uma vez que os nativos se mostraram
―incompetentes‖ para o trabalho na fazenda‖ (COSTA, 1999, p. 174-175). Explorando a

363
ideia da necessidade de produzir para o mercado internacional, Costa (1999, p. 352),
salienta que:

Existiu uma precisa correlação entre a acumulação de capital e o uso de escravos


africanos. Onde o capital não se acumulou, os colonos recorreram ao trabalho indígena.
A escravidão brasileira, como a escravidão em outras partes do Novo Mundo, foi um
sistema de exploração do trabalho baseado na posse sobre o trabalhador.

Diferente dos demais regimes de trabalho, no regime escravocrata, o escravo é


propriedade de outro, que pode dispor dele como desejar: vender, doar, emprestar,
alugar, hipotecar etc. Esse regime esteve presente no país desde meados do século XVI,
mas somente começa a aparecer com destaque na literatura a partir da segunda metade
do século XIX. O século XIX é especial na história do país por acontecimentos como a
vinda da família real em 1808, a independência do país em 1822, a abolição da
escravidão em 1888 e a proclamação da República em 1891, ou seja, em um século o
país sai da condição de colônia portuguesa e chega à República. Durante esse período,
muitos interesses em prol do término da escravidão, fizeram com que o negro ficasse
em destaque e a existência, ou o reconhecimento do objeto, insta que se criem discursos
sobre ele. Por isso, de acordo com Aguiar (1984, p. 23-24):

Em 1850 fora extinto, ou quase isso, o tráfico negreiro da África para o Brasil. A
extinção do tráfico tornava a falta de braços coisa a longo prazo irremediável: soaram
para o escravismo no Brasil, os primeiros acordes da trombeta do juízo final.
Acentuam-se, nos anos da década de 50, as tentativas de substituir o trabalho escravo
pelo trabalho do imigrante europeu, transformado em colono. [...] ―O que fazer com a
escravidão‖ era a pergunta que se havia tornado premente, na época em que Alencar
começa a escrever para o teatro; tão premente quanto a outro ―o que fazer sem ela?‖ –
para essa sociedade de senhores brancos e adjacentes.

Mesmo com pressões internacionais lideradas pela Inglaterra e movimentos pró-


abolição em luta com as forças a favor da manutenção do sistema, a cessação da
escravidão tardou a chegar. Analisando a situação da literatura no país, Brookshaw
(1983) afirma que, a partir da promulgação da Lei Eusébio de Queiroz, os autores
nacionais não podiam deixar de dar visibilidade ao negro. Como nos disse Aguiar
(1984), Alencar vive o dilema de seus pares: ‖O que fazer com a escravidão‖ e ―O que
fazer sem ela?‖. Para tratar da escravidão doméstica e seus possíveis problemas,
Alencar escreve duas peças e coloca como protagonistas um escravo e uma escrava, o
que leva ao público a ter diante de seus olhos o que em geral não era visto.
Obras como essas nos permitem recuperar através do texto realista como era o
tratamento dado aos escravos domésticos no século XIX, nas personagens que aqui
analisamos: Pedro e Joana. Uma das características do teatro realista é retratar os
costumes do período e por isso, podemos pensá-las como possíveis documentos
históricos.
Como dito anteriormente, o século XIX foi especial para a história do país. Nele
ocorreu o embate de ideologias, o qual, segundo Prado (2004), permitiu que discursos
como a democracia, a situação da mulher e do negro, a construção de uma nação e sua
identidade se sedimentassem. As peças que analisadas no presente trabalho vão de
encontro a dois destes discursos: o do negro e o da mulher, em nosso estudo, a escrava.
Nossa análise mostrará que, mesmo dentro de uma classe escravizada, existe diferença
na visibilidade dada ao homem e a mulher. De acordo com Possas, ―[...] os papeis

364
sociais normativos, os comportamentos atribuídos a homens e mulheres e a relação
entre os sexos não são discursos neutros, mas representações construídas repletas de
significados e de relações de poder‖ (POSSAS, 2004, p. 265). A construção das relações
de gênero se dá nas relações sociais e é a sociedade que estabelece responsabilidades de
acordo com o sexo, classe ou raça do indivíduo e aparecem na caracterização dos dois
personagens analisados.
A peça O Demônio Familiar, marca a ruptura com o romantismo teatral e inicia
uma dramaturgia voltada para os problemas sociais e é considerada por Faria (1987, p.
37) a primeira comédia realista brasileira. A mesma apresenta em seu enredo os
expedientes utilizados por um moleque escravo no seio de uma família burguesa para
ascender socialmente. Já o drama Mãe, datado e ambientado na cidade do Rio de
Janeiro, apresenta como protagonista uma escrava, Joana, que engravida de um homem
branco, enquanto propriedade de outro senhor. Observando mais atentamente a
construção das narrativas, observa-se que nos detalhes, Alencar desvela os
comportamentos sociais esperados por parte de um escravo, como a docilidade de Joana
ou considerados negativos, a alcovitice de Pedro. Foucault (1987) propõe a disciplina
como capaz de controlar e tornar dóceis os corpos para a realização de uma determinada
função, disciplina essa que não teria sido aplicada no moleque Pedro. Alencar consegue
efeito semelhante na literatura, trazendo personagens que refletem estereótipos de
comportamento que mantém a ordem na sociedade ou geram problemas nas famílias,
além de salvaguardar a diferença entre homens e mulheres quer escravos ou livres. Para
tratar da influência do social na representação dos dois personagens recorreremos à
Análise Dialógica do Discurso – ADD proposta por Bakhtin e os demais membros do
Círculo de Bakhtin.

Bakhtin e a linguagem
Antes de adentrarmos em nossa análise, alguns conceitos devem ser clareados.
Falar em análise do discurso é mergulhar em possibilidades de estudar o objeto
discurso. As correntes mais estudadas são a francesa de Pêcheux, a de Foucault, e a de
Bakhtin e seu círculo. Deter-nos-emos na análise proposta por Bakhtin. A ADD
diferencia língua como sistema de discurso, pois para esse viés de análise, a língua só
adquire significação quando se constrói como discurso, ou seja, no uso real entre
falantes. Ao ser proferido, o discurso vai-se além dos meros significados dicionarizados
das palavras, passando a envolver o contexto (o lugar e o momento da fala, a quem se
dirige o locutor). O discurso, a despeito de usar palavras não originais1, é sempre
original, pois muda dependendo do que e para quem falamos.

Toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de
alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto
da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação
ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise,
em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os

1
Apenas o Adão mítico que chegou com a primeira palavra num mundo virgem, ainda não desacreditado,
somente este Adão podia realmente evitar por completo esta mútua orientação dialógica do discurso
alheio para o objeto. Para o discurso humano, concreto e histórico, isso não é possível: só em certa
medida e convencionalmente é que pode dela se afastar. (BAKHTIN, 1990, p. 88).

365
outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apóia-se sobre o meu
interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor (BAKHTIN;
VOLOCHÍNOV, 2009, p. 117).

Cada ser humano nasce num mundo povoado por palavras e desde cedo aprende
a usar as mesmas para a comunicação, por isso, a linguagem aparece como algo natural.
Mas, o que é a palavra? A palavra é o signo ideológico por excelência em Bakhtin. A
palavra é neutra apenas no dicionário. As palavras formam as frases, que ao serem
proferidas se constituem em enunciados e estes não são neutros, estão carregados de
intencionalidades. Os enunciados respondem a alguém, ou antecipam a resposta a um
possível interlocutor. Nas peças aqui analisadas, Alencar está respondendo a uma dada
situação social e pretende ter a resposta ao problema que se apresenta: a influência do
escravo doméstico dentro dos lares das famílias burgueses que estão se constituindo na
capital do Império.

A escrava no drama Mãe


Alencar usa de dois gêneros teatrais nas peças estudadas, o drama e a comédia.
O drama é segundo o dicionário, qualquer peça de caráter grave ou patético que
representa ações da vida comum. O drama Mãe como o nome diz trata da maternidade,
mas não de qualquer maternidade e sim, da maternidade escrava. Alencar apresenta para
a sociedade do século XIX, como protagonista e mãe, uma escrava. Soares, homem
livre de poucas posses, engravida a escrava Joana, enquanto esta é propriedade de outro
senhor. Ao saber da gravidez da escrava, Soares a compra e a leva para sua casa. Soares
morre logo após perfilhar a criança, sem revelar o nome da mãe. Joana e a criança são
acolhidas pelo padrinho da criança, o Dr. Lima, médico de poucas posses. Jorge cresce
sem saber que Joana é sua mãe e imagina que suas despesas sejam supridas por uma
mãe ausente ou pelo padrinho. Joana mantém-se na condição de escrava do filho sem
revelar sua condição de mãe para não comprometer o futuro do filho na sociedade de
classes que se constitui no século XIX no Brasil. A escrava é mãe extremada que fará
todos os sacrifícios para que o filho não se envergonhe dela. Ao final, derrama-se em
amor, ao cometer suicídio e assim apagar todas as marcas da origem de Jorge que
podem comprometê-lo na sociedade.
A maternidade é um mito que acompanha a história da humanidade, e é muito
cara ao autor que dedica a peça à sua mãe D. Ana. Alencar justifica a escolha de sua
protagonista ao dizer que ―inalterável é o coração materno, que mais brilha quanto mais
espessa é a treva‖ (ALENCAR, s/d, p. 1). Joana se porta de forma submissa como uma
escrava civilizada pela ―revolução dos costumes‖, que era como Alencar imaginava que
os escravos passariam do estado de barbárie em que se encontravam para atingir o
estágio de civilização.
Se nas peças analisadas, o autor defende o fim da escravidão doméstica,
enquanto político nas Cartas a Erasmo (1865), endereçadas ao imperador D. Pedro II,
ele irá defender a escravidão do eito como necessária à economia do país e como um
estágio civilizatório para os escravos. O que parece uma barbárie à mentalidade do
século XXI era perfeitamente plausível em meados do século XIX. Alencar olha o país
como um todo e, ao defender o fim da escravidão doméstica, pensa nos males que a
mesma traz para as famílias e para os escravos. O personagem Pedro é um exemplo
claro deste comportamento semeando intrigas para conseguir o posto de cocheiro, mas

366
sem perceber que seu comportamento é fruto do que vê na sociedade. Alencar escreve
sobre a escravidão por que este assunto está em discussão na corte imperial. Os
discursos são aceitos quando plausíveis, caso contrário, sofreriam interdição, tal qual o
discurso do louco. As palavras usadas pelo autor não são novas, mas a lição nelas
contida sim. Como nos lembra Bakhtin, nenhum de nós, exceto Adão tem a palavra
original, todas as palavras que usamos não são novas. Elas adquirem significações
novas a cada vez que são usadas, de forma que os discursos não se repetem.
As mulheres, com poucas exceções, são representadas de forma submissa na
literatura romântica do período, assim como se esperava que as mulheres fossem dóceis.
A personagem Aurélia do romance Senhora (1875) de Alencar, apresenta-se como
independente e forte após ser rejeitada por Fernando por ser pobre. Torna-se rica ao
receber a herança do avô paterno. Agora pode vingar-se da rejeição e compra Fernando
como marido, mas ao final deixa a vingança de lado e se rende ao amor.
A peça Mãe é uma peça realista e não é um romance romântico. A despeito
disto, Joana lembra uma heroína romântica que sofre, não reclama do sofrimento, não se
vangloria de ser mãe de um filho branco ou dos sacrifícios que fez para criá-lo. Alencar,
como os demais escritores brasileiros, sofreu forte influência de escritores europeus. Ele
inaugura o teatro realista no Brasil, baseado no modelo europeu de Dumas Filho, e
acrescenta a cor local a suas obras. Segundo Castro (2011), o teatro realista procurava
mostrar a superioridade dos valores éticos da burguesia em temáticas que envolviam o
trabalho, a honestidade, o casamento, a família, a prostituição e até mesmo a escravidão.
Todavia, Alencar faz críticas à escravidão uma vez que a sociedade oitocentista
brasileira estava dividida entre os a favor e os contrários à escravidão, demonstrando em
suas peças os malefícios desse estatuto. O teatro realista apresenta como característica o
fato de ser um instrumento moralizador da sociedade. Alencar havia iniciado sua
carreira jornalística como crítico de teatro, pretende agora, como dramaturgo fazer ―rir
sem corar‖, de forma que suas peças possam ser vistas por toda a família.
O teatro realista é inovador, e Joana e Elisa são apresentadas ora como dóceis e
submissas, ora como agentes de seu destino. Apesar de mulheres, as escravas eram
vistas como instrumentos de trabalho e voltadas para a reprodução. Seus filhos podiam
ser separados delas e vendidos conforme o desejo de seus donos. Assim, para proteger
os filhos que não traziam na pele a marca da escravidão, muitas escravas silenciaram
sobre a maternidade, como Joana. De acordo com Fanini (2008), ―a independência
cultural e a implantação da nação e de sua nova simbologia enquanto país independente
passa a ser um processo lento em que se empenham muitos intelectuais‖, entre eles
Freyre. A despeito de autores posteriores a Freyre afirmarem que ele apresenta as
relações entre senhores e escravos no país de forma branda, ele afirma que os mestiços
sofriam ―preconceitos de cor por parte de uns; contra a origem escrava, da parte de
outros‖ (2004, p. 537). Preconceito este ainda sentido por milhões de descendentes de
escravos mantidos em condição econômica, social e cultural inferior em nosso país,
mesmo após a cessação da escravidão.

O escravo na comédia O Demônio Familiar


A comédia é o gênero do teatro que se caracteriza pela leveza do tema, na
maioria das vezes alegre e com o final feliz. Embora não possamos afirmar que a
escravidão seja um tema leve, Alencar consegue levar o tema ao palco e arrancar o riso
de seu público através das artimanhas do moleque Pedro. O lado cômico aparece nas

367
tramas do esperto moleque que engana a família durante a trama, só sendo descoberto
ao final da mesma quando se dá conta do que está fazendo e resolve os imbróglios por
ele articulados.
O tratamento dado por Alencar ao escravo na comédia O Demônio Familiar é
muito mais leve que o de Joana. O moleque Pedro tem acesso a todas as pessoas da
casa, é capaz de citar trechos de óperas e possui grande capacidade de manipulação, é
vivaz e inteligente. Tem um objetivo fixo conforme relata Alencar na conversa de Pedro
com Carlotinha:

nhanhã fica rica, compra Pedro; manda fazer para ele sobrecasaca preta à inglesa: bota
de canhão até aqui (marca o joelho); chapéu de castor; tope de sinhá, tope azul no
ombro. E Pedro só, trás, zaz, zaz! E moleque da rua dizendo "Eh! cocheiro de sinhá
D.Carlotinha!‖ (ALENCAR, s/d, p. 9).

Apesar de escravo, o moleque não sonha com a liberdade e sim, em sobressair-se


sobre os demais escravos, ao se tornar cocheiro. A obra de Alencar apresenta uma
descrição do malandro, como outros da literatura, que usam de expedientes para
conseguir seus objetivos. Mas Pedro é ingênuo, inocente, não tem consciência do
alcance de seus atos.
Machado de Assis no conto O Espelho (1882) relata a história de Jacobina,
nomeado Alferes da Guarda Nacional aos 25 anos. A partir da nomeação todos lhe
gabam a farda. A partir da nomeação, ele passa a ser o ―Sr. Alferes‖ e, ao olhar-se no
espelho, vê apenas o que os outros pensam dele. Certo dia, ao olhar-se no espelho sem a
farda, nada vê e relata o que ocorre após decidir vestir a farda: ―Vesti-a, e aprontei-me
todo, e como estava defronte do espelho, levantei os olhos e [...] o vidro reproduziu a
figura integral‖ (ASSIS, 1882). O conto de Assis apresenta uma reflexão sobre as duas
almas que compõe o ser humano e que devem estar em equilíbrio, para que o ser
humano não perca sua identidade. Sem dúvida, o conto de Machado vai além do desejo
do moleque Pedro, que é apenas um escravo.
As duas obras trabalham a questão da imagem ideal e a imagem real. A obra de
Machado traz como protagonista Jacobina, um jovem que aos poucos vai deixando de
se ver e passa a ver apenas a figura do alferes ao se olhar no espelho, passa a ser o que a
sociedade pensa, ―o alferes eliminou o homem‖ (ASSIS, 1882, s/p.). Alencar apresenta
Pedro, um moleque escravo, invisível que aspira tornar-se ―cocheiro‖, ganhando
visibilidade e o respeito dos demais escravos com a posição e a veste que a acompanha.
Os esforços do menino Pedro dão a entender que ele se acha um nada, mas quer mudar
o olhar social sobre si ao tornar-se um cocheiro. Vendo o empenho do moleque em se
tornar cocheiro, parece que o novo ofício lhe dará uma identidade e ele não se sentirá
menor que os demais enquanto escravo.
Em momento algum Pedro reclama da condição de ser escravo, o que ele deseja
é ser reconhecido, destacar-se dos demais escravos. Essa conformidade do moleque com
a escravidão pode parecer uma contradição num momento em que se discute a
libertação dos escravos, mas não podemos esquecer que a história é contada do ponto de
vista do senhor e não do escravo. O autor denuncia as sequelas da escravidão para a
família burguesa, mas ele é parte de sua época, seu olhar vem de seu lugar na sociedade.
Entretanto, não podemos afirmar que o escravo doméstico, cujo tratamento era
totalmente diferente do escravo do eito, não possuísse tais ideias, ou seja, ascender
dentro da escravidão, sem sair dela, pois sofria bem menos que o escravo que trabalhava
na lavoura.

368
Alencar tem como projeto construir uma identidade para a nação brasileira
recém constituída em sua literatura. Historicamente sabe-se que o povo brasileiro foi
composto por brancos, índios e negros. O branco é o conquistador, o índio pode ter sua
origem resgatada como um príncipe ou princesa indígena, mas o que fazer com o
escravo nessa idealização de nação? Ele é escravo, coisa, propriedade de alguém. Como
incluí-lo no amalgama de raças que compõe o país? O que o autor pode fazer é expor o
problema, buscando levar à reflexão dos problemas decorrentes da escravidão na época.
Entretanto, o legado de sua obra permanece e permite que se deitem novos olhares sobre
a escravidão no país passado mais de um século de seu término. Além dos discursos da
história, a literatura se apresenta como material importante para entendermos como se
davam as relações entre as diversas parcelas da população.

Alencar e a escravidão
Alencar (1829-1877) é um dos escritores mais importantes para a literatura
nacional no século XIX. Ele é conhecido por seus romances que buscavam criar uma
identidade nacional para o país recém independente. Escreveu romances indianistas
como O Guarani (1857) e Iracema (1865), regionalistas como O Gaúcho (1870), entre
outros. Homem múltiplo, além de romancista e dramaturgo, Alencar foi também
político e escreveu Cartas a Erasmo (1865), textos endereçados ao imperador D. Pedro
II, nas quais trata de assuntos diversos, entre eles, a escravidão. Como jornalista
assinava a seção de crônicas Ao correr da pena na qual comenta ao teatro da época e
sugere a necessidade de um teatro brasileiro. Além de escritor e político, o autor exerceu
as atividades de advogado, poeta, jornalista, ensaísta e orador parlamentar.
Segundo Faria (1987), Alencar embora defendesse o realismo francês no teatro,
e seguisse os procedimentos relativos ao gênero, em muitas de suas peças, mesclava
soluções românticas, o que segundo o crítico torna sua obra única. A produção vasta e
variada de Alencar levou-o a ser considerado escravocrata por uns e abolicionista por
outros.
O tema central das peças analisadas é a escravidão, que em nosso país ocorreu
tanto no campo como na cidade. Os escravos representavam capital, trabalho e status
para os senhores. Segundo Costa (1999, p. 351), ―em razão da natureza exploradora do
sistema e da ausência de vínculo salarial, o senhor era obrigado a forjar formas de
compulsão: punição física e pequenas, mas sedutoras recompensas‖. Observamos a
prática de pequenas regalias na liberdade de movimento dada ao moleque Pedro, ou na
fala de Joana que diz que seu ―nhonhô‖ jamais levantara a voz para ela.
Alencar, nas peças que compuseram o corpus deste artigo trata especificamente
da escravidão doméstica e os possíveis problemas que os escravos, ao participarem
ativamente da vida das famílias, poderiam trazer para as mesmas e para eles mesmos.
Para tentar entender a contradição entre a abolição e a sua manutenção em
algumas circunstâncias recorreu-se a dois conceitos presentes na obra de Marx: a noção
de infraestrutura e de superestrutura. A partir desses, percebe-se que uma nova ordem
social é gestada no interior da velha ordem social e que a nova ordem somente emerge
quando a velha ordem não mais atende aos interesses das forças produtivas envolvidas.
Mas nosso autor está imerso no embate de forças que irá levar à cessação da escravidão
em 1888. Segundo Marx, as mudanças da infraestrutura (base econômica) são mais
rápidas que as da superestrutura (sistemas de ideias que norteiam uma sociedade):

369
Na produção social de sua existência, os homens entram em relações determinadas,
necessárias, independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a
um dado grau de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. O conjunto
destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real
sobre a qual se ergue uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem
determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material
condiciona o processo de vida social, política e intelectual em geral. Não é a
consciência dos homens que lhes determina o ser; ao contrário, seu ser social determina
sua consciência. Em um certo estado de seu desenvolvimento, as forças produtivas
materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes,
ou, o que não é mais que a expressão jurídica disso, com as relações de propriedade no
seio das quais se haviam movido até então. De formas de desenvolvimento das forças
produtivas que eram, estas relações transformam-se em seus entraves. Abre-se então
uma época de revolução social. A mudança na base econômica subverte mais ou menos
lentamente, mais ou menos rapidamente toda a enorme superestrutura. Quando
consideramos tais subversões, é preciso distinguir sempre a revolução material que pode
ser constatada de modo cientificamente rigoroso — das condições de produção
econômica e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em suma,
as formas ideológicas sob as quais os homens tomam consciência deste conflito e o
levam até o fim. Da mesma maneira que não se julga um indivíduo pela idéia que ele
faz de si próprio não se deve julgar tal época de subversão por sua consciência de si
mesma; ao contrário, é preciso explicar esta consciência pelas contradições da vida
material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de
produção. Uma formação social só desaparece depois de se terem desenvolvido todas as
forças produtivas que ela pode conter jamais novas e superiores relações de produção a
substituem antes que as condições materiais de existência destas relações tenham
eclodido no próprio seio da velha sociedade. Eis porque a humanidade não formula
jamais senão problemas que pode resolver, porque, se olharmos mais de perto, vemos
sempre que o próprio problema só surge onde as condições materiais para resolvê-lo
existem ou, pelo menos, estão em vias de aparecer (MARX, 2008, p. 47).

A base econômica muda mais rápido que a superestrutura, e no caso de nossas


peças, apesar da discussão sobre a cessação da escravidão no período de sua escritura,
as mulheres negras estavam em posição de inferioridade em relação ao homem negro. A
violência contra a mulher negra é maior do que a sofrida pelo homem negro. Pedro está
em uma posição de trabalho hierarquicamente superior a de Joana, pois sua tarefa é a de
um moleque de recados, um mimo. Em momento algum é exigido dele mais do que
possa fazer. Ao serem descobertas suas maquinações para conseguir o cargo de
cocheiro, seu dono coloca a culpa de seu comportamento na sociedade escravocrata e
ele recebe como castigo a liberdade, mesmo que as perspectivas para os escravos
libertos não sejam alvissareiras.
Joana que trabalhara duramente para manter economicamente o filho durante
mais de 20 anos, e se doara e ajudara a todos ao seu redor, ao ter revelada sua condição
de mãe, vê na morte a saída para não comprometer o filho mestiço perante a sociedade.
Joana, apesar de escrava, conhece os mecanismos de funcionamento da sociedade de
classes e para proteger seu filho, ela irá negar até seu último momento a condição de
mãe apesar do muito amor que tem pelo filho. A morte de Joana é simbólica e ela traz
para o palco os milhões de escravos que foram sacrificados no eito até a morte para o
progresso e riqueza do país. Apesar da questão feminina estar aí imbricada, percebemos
que Joana representa boa parte de todos os escravizados, independente de gênero, pois é

370
dela que o econômico depende e é ela que é sacrificada. A riqueza nacional oitocentista
foi construída pelo trabalho escravo e este se esvaiu ali no eito.

Os descendentes de escravos
Como dito no início, a representação social não é isenta e algumas vezes carrega
em seu bojo preconceitos que podem impedir que os corpos se (trans-)formem e
ocupem seu lugar de direito na sociedade. Ao analisar historicamente o destino dos
descendentes de escravos no país, observa-se que ainda hoje estes não conquistaram um
lugar de igualdade na estrutura social brasileira. A maioria ainda vive como no tempo
da escravidão submetida a condições precárias de emprego e moradia e sem poder
usufruir de direitos básicos como educação e segurança.
Aos negros escravos e às mulheres era negada a educação pública desde as
legislações coloniais. Somente em 1879, foi publicado o Decreto nº 7.247, permitindo o
acesso dos mesmos à educação pública. Esse decreto ficou conhecido por Reforma
Leôncio de Carvalho. O conhecimento desse tipo de informação chama a atenção, pois
tal como nascemos num mundo povoado por palavras, a maioria dos adultos e crianças
do século XXI, nasceu num mundo onde a educação pública era acessível, ao menos
para os habitantes das cidades. Mas, as restrições educacionais impostas aos negros e às
mulheres contribuíram para parte da exclusão social para estes segmentos e a despeito
da Constituição de 1988 permanecem até os dias atuais.
As estatísticas do IPEA confirmam essa diferença entre homens e mulheres de
acordo com a cor. A tabela 1, referente ao ano de 1998, ilustra a desigualdade presentes
em nossa sociedade e mostra que homens e mulheres negros recebem menos que
homens e mulheres brancos (SOARES, 2000).

Tabela 1: Comparação de Rendimentos Mensais Padronizados por 40 Horas de Trabalho em


Setembro de 1998
Como Porcentagem do Grupo
Grupo Renda Mensal em Reais
Padrão
Homens brancos 726,89 –
Homens negros 337,13 46
Mulheres brancas 572,86 79
Mulheres negras 289,22 40
Fonte: Microdados das PNAD padronizados pelo IPEA (2000)

Apesar de não termos uma pesquisa precisa acerca da distribuição salarial na


época de Alencar, nota-se que a situação não mudou muito. As mulheres negras
continuam com rendimentos menores que os demais membros da sociedade e várias
trabalham como empregadas domésticas e muitas sem carteira assinada. A cor da pele
leva negros a perceberem salários inferiores aos percebidos por mulheres e homens
brancos. O paradigma presente na obra de Alencar se mantém a despeito da abolição da
escravidão em 1888. Como bem assevera Marx, a infraestrutura mudou, não há trabalho
escravo no Brasil de forma legal, mas a cultura escravocrata perdura, pois a
superestrutura não muda facilmente.

371
À guisa de conclusão
Os tempos vividos pelo autor são turbulentos e este se vê cindido, por um lado,
vê os inconvenientes da escravidão doméstica para a família burguesa que está se
constituindo no país e, por outro, percebe a necessidade do braço escravo para a
manutenção da base econômica no campo. O embate de forças perdurará até 1888, onde
se decretará o fim da escravidão no país, mas não seus efeitos. Mesmo sendo livres, os
ex-escravos continuaram a sentir na pele o fardo de ter sido escravo ou descendente de
escravo. A fala de Joana é emblemática e justifica o temor que seu filho Jorge fosse
excluído do mundo dos brancos: ―pois meu filho havia de ser escravo como eu?‖
(ALENCAR, s/d, p. 34). Alencar, ao dar voz à personagem, intui o destino dos escravos
ao serem libertos.
Joana morre para que seu filho, que tem os pés nos dois mundos, viva. Da
mesma forma, milhares de mulheres se esvairão em condições miseráveis de trabalho
para os antigos senhores para garantir que seus companheiros e filhos sobrevivam.
Pedro condenado à liberdade por suas peripécias para tentar conseguir o posto de
cocheiro, prefigura o destino de muitos homens libertos, que só aprenderam a ser
escravos e essa função não estar mais disponível na República: usar de pequenos
expedientes para sobreviver. Como vimos ao longo desta exposição, a representação
social apresenta as características de cada época. Na época da escrita da peça não havia
discussões de gênero, mas apesar disso, percebe-se que há tratamento diferenciado entre
homens e mulheres, ainda que escravos. Passados 129 anos do término da escravidão,
suas marcas ainda se fazem presentes na vida daqueles que trazem na cor a marca de sua
origem.
A representação social não é isenta e, no caso dos escravos e seus descendentes,
carrega em seu bojo preconceitos que podem impedir que os corpos se (trans-)formem e
ocupem seu lugar de direito na sociedade. Os negros feitos escravos e mantidos como
tal durante mais de 300 anos no país não sumiram de cena com a abolição, como Joana
que se suicida, eles saíram das casas e senzalas para a periferia das cidades. Embora o
suicídio de Joana represente a exaustão do corpo físico no trabalho escravo da grande
maioria dos escravos brasileiros.
Com o término da escravidão surgiram, não raramente, dois tipos sociais
decorrentes: as ex-escravas que irão trabalhar como cozinheiras, lavadeiras,
arrumadeiras para sustentarem a si e a sua família e, o malandro que irá sobreviver de
pequenos expedientes, por não encontrar lugar no mercado de trabalho e só conhecer
por ofício o ser escravo.
Pesquisas econômicas, como a do IPEA, mostram que a lógica da escravidão
que os manteve escravos por mais de 300 anos foi mantida, o negro ainda não foi
inserido plenamente na sociedade. À maioria dos negros restaram as posições
subalternas, em geral no setor de subsistência, cuja remuneração é menor possível, nas
quais não se respeitam os direitos trabalhistas e prevalece a ausência de proteção
previdenciária. Entretanto, a desigualdade não atinge apenas a cor da pele, pois mesmo
entre os negros ainda se observam desigualdades quanto ao gênero: as mulheres
recebem ainda menos. As leituras referidas, ao longo deste artigo, mostram que
permanecem as caracterizações presentes nas peças analisadas em relação ao escravo e
que mesmo depois de ―livres‖ legalmente, as condições atuais de nossa sociedade
mantêm os descendentes de escravos no cárcere da exclusão social.

372
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Homens Negros, Mulheres Brancas e Mulheres Negras. IPEA, 2000. Disponível em:
http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/TDs/td_0769.pdf. Acesso em: 13
de maio de 2017.

373
Liberdade e submissão: a inversão de papéis
―femininos‖ e ―masculinos‖ em ―La escuela de la
carne‖ de Yukio Mishima
(Freedom and submission: the inversion of ―female‖ and ―male‖ roles in ―La
escuela de la carne‖ from Yukio Mishima)

Bruna Wagner1, Henrique de Oliveira Lee2


1-2
Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT)

bruna.wagner.sci@gmail.com; holiveiralee@gmail.com

Abstract: This work seeks to make intersections between the places occupied by two
characters of Yukio Mishima in his novel "La escuela de la carne" (2013), being the
protagonist of the novel, a successful woman in the Japanese high society, and his Lover, a
bartender from a gay nightclub. Our discussions intent to show how the major character of the
Mishima‘s book and the man whom she relates are in opposite positions those that are often
elucidated as belonging to the masculine or feminine gender. In order to base our argument,
we will use as theoretical contribution authors such as Butler (2015), elucidating about the
notion of gender and the binary framework in which it is related; Beauvoir (2016), talking
about the facts and myths of the female gender and Haraway (2004), as support for the debates
about feminism.
Key-words: Genre; Role inversion; Yukio Mishima.

Resumo: O presente trabalho busca fazer intersecções entre os lugares ocupados por duas
personagens de Yukio Mishima em seu romance ―La escuela de la carne‖ (2013), sendo elas a
protagonista do romance, uma mulher bem-sucedida da alta sociedade japonesa, e de seu
amante, um barman de uma boate gay. Nossas discussões visam mostrar como a personagem
principal do livro de Mishima e o homem com o qual ela se relaciona estão em posições
opostas aquelas que são muitas vezes elucidadas como pertencentes ao gênero masculino ou
feminino. Para embasarmos nossa argumentação utilizaremos como aporte teórico autores
como Butler (2015), elucidando sobre a noção de gênero e o enquadramento binário em que
este se encontra relacionado; Beauvoir (2016), falando sobre os fatos e mitos do gênero
feminino e Haraway (2004), como apoio para os debates a respeito do feminismo.
Palavras-chave: Gênero; Inversão de papéis; Yukio Mishima.

Introdução
Ser mulher, em muitas culturas, ideologias e sociedades, é encarado como um
atributo de inferioridade, de impotência, incapacidade e fragilidade quando comparado
as atribuições conferidas aos adjetivos que geralmente são atribuídos as figuras
masculinas. Na literatura, assim como no plano físico, também encontramos
representações de mulheres que seguem essa linha de pensamento mais conservadora.
Porém, há uma crescente no âmbito literário que retira as personagens femininas da
sombra e proteção dos homens, conferindo a elas papéis de igualdade em relação a esses
personagens, invertendo as velhas concepções de papéis pertencentes a um ou outro
gênero em específico.
Um dos autores que desempenham esse progresso literário em relação aos
lugares ocupados pelas mulheres em suas obras é Yukio Mishima (1925-1970). Parte de

374
seu universo ficcional atravessa uma atmosfera de volta aos costumes tradicionais da
sociedade japonesa, porém, o autor revela, em algumas de suas obras, uma inquietante
inversão dessa característica. Como é o caso de seu trabalho em descrever figuras
femininas que quebram os padrões impostos por suas sociedades de cultura
conservadora, transcendendo as noções de feminino de seus meios sociais por
consequência da subversão de valores, papéis e comportamentos considerados
predominantemente femininos ou masculinos. Uma de suas obras em que é possível
observar essa transgressão de paradigmas é seu romance intitulado ―La escuela de la
carne‖ (2013).
Em ―La escuela de la carne‖ (2013) Mishima narra passagens de uma fase da
vida da protagonista Taeko Asano, uma empresária do ramo da moda no Japão dos anos
sessenta. Cercada por um ambiente de luxo e extravagância, Taeko, aos 39 anos,
mantém uma vida de liberdade financeira, social e sexual. A narrativa traz uma
atmosfera em que coabitam os costumes e imposições da sociedade tradicional japonesa
com a modernidade que concede as mulheres uma maior flexibilidade, mas que ainda
apresenta velhos preconceitos. A protagonista apresenta uma série de atributos que
podem ser considerados pertencentes ao gênero masculino, porém, também são
apresentados a nós alguns personagens masculinos que ocupam uma posição oposta.
Entre esses personagens se destaca Senkitchi, amante de Taeko. No romance Senkitchi
se vê ocupando um papel de dependente de sua ―protetora‖, situação que é
constantemente relatada de maneira inversa a encontrada no romance.
Dessa forma, após a constatação desses elementos, podemos perceber que o
romance de Mishima nos apresenta recursos para alavancarmos uma discussão acerca
da inversão de papéis enquadrados como pertencentes ao universo feminino e/ou
masculino. Esse substrato nos faz refletir como a mulher vem conquistando um espaço
mais igualitário em relação ao ocupado pelo homem, ainda que a passos lentos, e
também como velhos pensamentos pertencentes ao imaginário coletivo das sociedades
em relação a divisão de papéis por gênero estão refletidos dentro da obra. Para
embasarmos nossa argumentação utilizaremos como aporte teórico autores como Butler
(2015), elucidando sobre a noção de gênero e o enquadramento binário em que este se
encontra relacionado; Beauvoir (2016), falando sobre os fatos e mitos do gênero
feminino e Haraway (2004), como apoio para os debates a respeito do feminismo.

Mulher: o sujeito diferenciado


―O que é uma mulher?‖, questiona Beauvoir (2016, p. 9). Porque uma mulher
precisa se afirmar como tal? É intrigante a necessidade que observamos dessa
autoafirmação de alguém que pertence a uma determinada ―categoria‖. Ao contrário dos
homens, que não carecem de se afirmar como tais, as mulheres encontram-se
encurraladas em seu gênero. Vivenciam, ao decorrer dos séculos, uma diferenciação em
sua própria espécie, e são cobradas, a todo momento, de manterem determinados
comportamentos e adjetivos que há muito tempo são considerados como constituidores
de suas características particularizantes.
De acordo com o escopo das ideologias eurocentradas a respeito de quem seria a
mulher, podemos resumir a definição do termo como sendo aquela de papel inferior ao
homem, genitora, responsável pela manutenção da casa e da criação da prole,
desprovida de outros papéis sociais que não sejam os de mãe, esposa e dona de casa.
Porém, pertencer ao gênero feminino, que, de acordo com Butler (2015), é uma

375
construção social, histórica e cultural, não se encerra somente nessas poucas definições.
As mulheres não são todas iguais, não pertencem todas ao mesmo universo. Definir
mulher apenas pelo seu lugar subjugado em relação à figura masculina não é suficiente
para constituir um padrão homogeneizador do gênero. Mulher não é um termo
homogêneo. Beauvoir elucida que:

Todo mundo concorda que há fêmea na espécie humana; constituem hoje, como
outrora, mais ou menos a metade da humanidade; e contudo dizem-nos que a
feminilidade ―corre perigo‖; e exortam-nos: ―Sejam mulheres, permaneçam mulheres,
tornem-se mulheres.‖ Todo ser humano do sexo feminino não é, portanto,
necessariamente mulher; cumpre-se participar dessa realidade misteriosa e ameaçada
que é a feminilidade. Será esta secretada pelos ovários? Ou estará congelada no fundo
de um céu platônico? (BEAUVOIR, 2016, p. 9-10)

Se a fêmea humana compõe cerca da metade do total de indivíduos de sua


espécie, por que ela é tão diferenciada de seu equivalente macho? Qual a necessidade de
manter as mulheres sempre pressionadas a afirmarem sua feminilidade? Como Beauvoir
comenta no excerto acima, as pessoas pertencentes ao sexo feminino só são ―mulheres‖
por consequência dos significados instaurados em seus corpos, cristalizados a partir de
sua repetição e reafirmação por parte dos indivíduos pertencentes ao sexo oposto.
Assim, ser mulher se tornou uma problemática, uma questão que busca resposta e uma
condição que diferencia os seres humanos. ―Não sabemos mais exatamente se ainda
existem mulheres se existirão sempre, se devemos ou não desejar que existam, que lugar
ocupam ou deveriam ocupar no mundo‖ (BEAUVOIR, 2016, p. 9).
Butler (2015) elucida que, em algumas explicações referentes à questão das
mulheres, elas, por terem sua marca de diferenciação em relação aos homens construída
social e culturalmente, estão presas a um corpo com vários determinismos simplificados
implicados a ele, como a categorização do corpo feminino pela diferença biológica, um
recipiente passível de um imaginário cultural inflexível. A herança cultural constrói o
gênero e o diferencia em superior e inferior, no caso, o primeiro termo faz referência à
figura masculina e o segundo à figura feminina.
De acordo com Butler (2005), ao citar Beauvoir, o sujeito pertencente tem sua
identidade de gênero construída através de um cogito que se apropria desse gênero,
assim, ―‗o corpo‘ aparece como um meio passivo sobre o qual se inscrevem significados
culturais, ou então como o instrumento pelo qual uma vontade de apropriação ou
interpretação determina o significado cultural por si mesma‖ (BUTLER, 2015, p. 29-
30). Consoante essa afirmação, podemos entender que o corpo feminino recebe um
emaranhado de construções imaginárias criadas pela cultura patriarcal, ou seja, ―o corpo
é representado como um mero instrumento ou meio com o qual um conjunto de
significados culturais é apenas externamente relacionado‖ (BUTLER, 2015, p. 30).
O feminino é uma invenção. Os papéis, adjetivos, condutas, características que
condizem a ele também o são. São constructos criados pelos indivíduos singulares,
homens, que por uma necessidade de poder, ou de uma autoafirmação enquanto seres
superiores, designam ao sexo feminino um status de inferioridade e de ―Outro‖ perante
eles. O feminino não existe oficialmente, ―Embora certas mulheres se esforcem por
encarná-lo, o modelo nunca foi registrado‖ (BEAUVOIR, 2016, p. 10). Beauvoir (2016)
comenta que houveram várias tentativas de descrevê-lo, porém, sempre o fizeram de
maneira vaga e delirante. Como no tempo de santo Tomás, em que os significados

376
atribuídos ao feminino eram baseados em definições pouco palpáveis como, por
exemplo, ―a virtude dormitiva da papoula‖ (BEAUVOIR, 2016, p. 10).
Por sorte, estas tentativas de conceituação do feminino e da feminilidade
perderam terreno. Como afirma Beauvoir (2016, p. 10), ―as ciências biológicas e sociais
não acreditam mais na existência de entidades imutavelmente fixadas, que definiriam
determinadas características como as da mulher, do judeu ou do negro‖. Os novos
estudos a respeito dos lugares ocupados por essas ―categorias‖ conferiram a elas novas
percepções. Agora, os comportamentos desempenhados por esses grupos de indivíduos
não são mais tidos como inatos ou preexistentes, mas sim frutos de uma ―situação‖ a
que eles estão expostos. Beauvoir conclui com o seguinte posicionamento:

Se hoje não há mais feminilidade, é porque nunca houve. Isso significa que a palavra
―mulher‖ não tem nenhum conteúdo? É o que afirmam vigorosamente os partidários da
filosofia das luzes, do racionalismo, do nominalismo: as mulheres, entre os seres
humanos, seriam apenas os designados arbitrariamente pela palavra ―mulher‖.
(BEAUVOIR, 2016, p. 10)

Beauvoir (2016) afirma que, assim como o homem, a mulher também é um ser
humano, mas a ela é negado o lugar de sujeito singular, sua imagem está sempre
atrelada a de um exemplar do sexo oposto ao dela. Portanto, esta afirmação se torna
abstrata. Apesar das mudanças de posição em relação aos conceitos erigidos a respeito
das mulheres e do feminino, ainda hoje é possível notar, no imaginário coletivo das
sociedades ao redor do globo, uma diferenciação entre o homem e seu Outro. Os antigos
pensamentos consoante os papéis, posições, comportamentos, etc., que deveriam ser
desempenhados pelas figuras femininas ainda se encontram em vigência. Como observa
Beauvoir na seguinte passagem:

[...] em verdade, basta passear de olhos abertos para comprovar que a humanidade se
reparte em duas categorias de indivíduos, cujas roupas, rostos, corpos, sorrisos, atitudes,
interesses, ocupações são manifestadamente diferentes; talvez essas diferenças sejam
superficiais, talvez se destinem a desaparecer. O certo é que por enquanto elas existem
com uma evidência total. (BEAUVOIR, 2016, p. 11)

Enquanto essas diferenciações existirem a literatura, como ferramenta de


elucidação, representação e formação crítica, torna-se indispensável para que velhas e
ultrapassadas ideias a respeito do feminino e de o que é ser mulher, de quem são as
mulheres e de seus papéis nas sociedades em todo o mundo, sejam problematizados e
reavaliados. Beauvoir (2016, p. 10) salienta que, ―Recusar as noções de eterno
feminino, alma negra, caráter judeu, não é negar que haja hoje judeus, negros e
mulheres; a negação não representa para os interessados uma libertação, e sim uma fuga
inautêntica‖. Consoante essa afirmação, o debate acerca das questões relacionadas as
mulheres não pode ser deixado de lado. Calar-se diante destas questões é deixar que elas
continuem a existir, que se perpetuem pelas gerações. Ainda que tenhamos a
consciência de que não há diferença entre os sexos da espécie humana, as consequências
causadas pelos discursos de diferenciação entre homens e mulheres, até hoje, estão
presentes veementemente nos discursos das mais diferentes sociedades.

Liberdade e submissão: a ―igualdade‖ que não equipara

377
A modernidade conferiu as mulheres uma maior liberdade de pensamento, bem
como uma maior flexibilização em outros âmbitos da vida pública e privada que
anteriormente eram considerados estritamente masculinos. A diferenciação entre
homens e mulheres começou a ser problematizada, porém, este processo se mostrou
lento. Na literatura a passagem do pensamento conservador para outro mais igualitário
entre os diferentes sexos também se apresentou como uma tarefa árdua e demorada.
Apesar de muitos autores começarem a conceder as suas personagens femininas papéis
de maior destaque dentro de suas obras, essas mesmas personagens ainda sofrem com
diversos conceitos que estão instaurados no pensamento dos personagens masculinos
que as cercam.
Um dos autores que, mesmo vivendo em uma sociedade de maioria
conservadora, buscou conferir as mulheres de suas obras papéis de maior relevância,
inclusive de destaque superior aos ocupados pelos homens, foi Yukio Mishima. Em seu
romance ―La escuela de la carne‖ (2013), Mishima narra a história da protagonista
Taeko Asano, uma empresária do ramo da moda no Japão dos anos sessenta. Taeko se
apresenta enquanto uma personagem fora dos padrões que sua sociedade espera que
sejam seguidos por uma mulher. O presente trabalho busca problematizar as
intersecções entre os lugares ocupados por Taeko e seu amante, bem como mostrar que,
mesmo estando em uma posição de maior prestígio, ela ainda sofre pelo fato de ser
mulher.
A protagonista de ―La escuela de la carne‖ (2013) apresenta uma configuração
de personagem na narrativa que soa ameaçadora para os homens de seu meio. Isso
acontece por causa de sua condição de mulher que além de divorciada é bem-sucedida,
desfruta de uma liberdade sexual, e não depende de um marido para se sentir feliz. É
julgada por membros da alta sociedade por ter ―traído‖ seu meio, ao se separar de seu
ex-marido barão, bem como por levar uma vida em que ela se permite usufruir de certas
liberdades.

Los ojos de la totalidad de ellos reflejaban uma mezcla de desdén y envidia por el éxito
de la boutique que Taeko había abierto. No les hubiera importado hacer zalamerías ante
cualquier atriz de cine, pero adoptaban de forma instintiva una postura desafiante ante
alguien como ella que, en su opinión, había traicionado su pertinência a la antigua clase
social. Es más, antes de ser menospreciados, se apresuraban a tomar la delantera y
menospreciar ellos mismos. (MISHIMA, 2013, p. 13-4)

Aos 39 anos a protagonista experimenta os prazeres da vida de solteira e gosta


de ter relações com homens mais novos que ela, sendo uma de suas principais
características a atração e anseio pela juventude. Este atributo se reflete inclusive em
sua aparência física, não aparentando possuir a idade que realmente tem, de acordo com
observações do narrador. Mesmo aparentando ser mais jovem, as ações e palavras de
Taeko eram de uma mulher madura e decidida, que enfrentava qualquer situação com
discernimento e sobriedade.

A pesar de que la espléndida y radiante belleza del rosto de Taeko la hacía parecer
mucho más joven de lo que podrían indicar sus trienta u nueve años, de sus ojos y
lábios emanaba la expresión de fuerza y resolución de una época anterior, una sombra
en la cual flotaban vagamente la distinción y la dignidad de otros tiempos. Quizás por
esto los hombres de antes no se habrían sentido intimidados por este tipo de mujer. Los
de hoy en día, en cambio, habituados solamente a una belleza fácil y próxima, solían

378
experimentar cierto temor ante una mujer como Taeko a causa, además, de su estilo
distante. (MISHIMA, 2013, p. 18-9)

Taeko é divorciada e enxerga a instituição do casamento como uma prisão, que


ceifava sua vida das maravilhas que sua nova condição a oferece. Seu novo status de
solteira é visto por ela como a libertação das amarras, tendo agora a sua frente todas as
possibilidades que antes não possuía. Para muitos homens o casamento é visto como
uma espécie de cárcere, porém, em diversos casos, em regime semiaberto. O homem,
mesmo casado, se permite desfrutar de relacionamentos extraconjugais, o que acontece
também com Taeko, que, logo no início da narrativa, é avisado ao leitor de que ela,
ainda casada, se relacionava com outros homens.

Durante la guerra a nadie le extraño que, tratándose de unas mujeres jóvenes como ellas
y con una fama ya en entredicho, acabaran divorciándose. Bien es certo que no se les
dio mal mantener en secreto los devaneios efímeros que se permitieron con bastantes
personas en los años de la contienda, unas ligerezas que la confusión de la pós-guerra
pareció haber borrado por completo. (MISHIMA, 2013, p. 7)

Generalmente, los padres com hijas de conduct semejante a la de ellas lo que más
quieren es casarlas cuanto antes, una rapidez causante tal ves de que, em este caso, la
vida matrimonial de estas tres amigas hubiera sido, por igual en las tres, bastante
desgraciada. Por lo que atañe a Taeko, su marido resultó un perfecto inútil para la vida
y, por añadidura, un hombre poseído por unas inclinaciones insoportables. A las otras
dos, los maridos les salieron por el estilo. (MISHIMA, 2013, p. 8)

El corto periodo de casada de cada uma de ellas, lleno de memorias desagradables, que
detestaban recordar, había sido, igual que la iluminación de sus casas, la parte más
sombria de sus vidas. (MISHIMA, 2013, p. 9)

Percebemos por meio destas configurações da protagonista que ela é


praticamente o modelo de ―homem-ideal‖ daquela sociedade. O autor nos apresenta
uma personagem feminina que possui algumas características almejadas pela maioria
dos homens, e outras encontradas em grande parte dos ―homens-comuns‖, como o
desejo por mulheres mais jovens que eles, que, no seu caso, efetiva-se por meio da
configuração oposta.
Após a Segunda Guerra Mundial a posição predominantemente ocupada pelas
mulheres no Japão era a de ―dona de casa‖, dedicada ao lar e a família. Já aos homens,
enquanto maridos, ocupavam a posição de provedor da casa. O homem é quem
trabalhava fora, tinha o domínio sobre o dinheiro e possuía uma maior rede de interação
social. Taeko subverte a noção de ―dona de casa‖, pois, além de ocupar posições
diferentes daquelas que a maioria das mulheres de sua sociedade ocupavam, ela também
não possuía ―dons‖ domésticos.
A protagonista apresenta uma série de atributos que podem ser considerados
pertencentes ao gênero masculino, porém, também são apresentados a nós alguns
personagens masculinos que ocupam uma posição oposta. Entre esses se destaca
Senkitchi, amante de Taeko. A protagonista de ―La escuela de la carne‖ vive um
romance com Senktichi, um rapaz de 20 anos, barman de uma boate gay que também
trabalha como garoto de programa para conseguir uma renda extra, se relacionando
tanto com mulheres como com homens. Sen-chan, apelido de Senkyichi, é um ex-
estudante, que sonha em ser ―alguém na vida‖.

379
Ya antes de meterme a barman, me gustaba mirar ese hotel desde el campus de la
universidad. No sé, pero al verlo me daban ganas de triunfar en la vida. Soñaba en
convertirme rápidamente en alguien importante, en llevar allí chicas, en presentarme en
el hotel al volante de un Cadillac... (MISHIMA, 2013, p. 118)

Ao se envolver com Taeko ele passa a ser uma espécie de ―protegido‖ da


protagonista. Mostra-se um homem muito orgulhoso, ainda que trabalhe em dois
empregos de pouquíssimo prestígio, ou nenhum, para aquela sociedade. Mesmo sendo
mais novo do que Taeko e pertencendo a uma classe social bastante inferior à dela, Sen-
chan exerce um tipo de domínio sobre a personagem que se prolonga por quase toda a
narrativa. O rapaz se relaciona com uma mulher que já ―é alguém na vida‖, e que não
depende dele financeiramente, isso faz com que o personagem crie uma espécie de
barreira entre ele e Taeko.

– ?No es hora de que te vayas a la boutique?


– Bueno, hoy voy a llegar tarde.
– Siendo que haya sido por mi culpa. Por cierto, quiero que antes de que te vayas me
prometas una cosa.
– ?Qué?
Los ojos de Senkitchi adquirieron un brillo especial.
– Si me vengo a vivir contigo, es con una condición. Aunque vivamos juntos, debes
garantizarme mi liberdad. Si me pones frenos, la que saldrá perdiendo serás tú.
?Entendido? (MISHIMA, 2013, p. 164-5)

Vivendo em lados opostos, Taeko e Sen-chan parecem fazer uma representação


inversa de um comumente encontrado casal de ―homem mais velho e ninfeta‖. Taeko
faz as vezes do ―homem‖ da relação, pois encontramos na personagem configurações
atribuídas na maioria das vezes a figuras masculinas. Na narrativa, Sen-chan aparece
com o papel de protegido, de jovem objeto de prazer sexual, que desperta os mais
efervescentes desejos da personagem principal do romance, ocupando uma posição mais
caracterizada como ―feminina‖. Taeko é quem provém Senkitchi, e é ele quem é o
objeto de desejo carnal. Mesmo desafiando a ordem social, Taeko ainda carrega consigo
a preocupação com a sua imagem perante a sociedade, mostrando que ela não está
totalmente liberta de pensamentos mais conservadores. Para conservar sua imagem, a
personagem pede para que Sen-chan finja ser seu sobrinho nos momentos em que
estiverem em meio a outras pessoas, como exemplificado nos seguintes excertos:

Lo certo es que ella seguia conservando valores de antes de la Segunda Guerra Mundíal;
por ejemplo, no había podido deshacerse de una consciência exagerada de su propia
dignidad. Tal vez por eso sintió alivio una vez que le permitió a Senkitchi entrar y salir
libremente de su apartamento. (MISHIMA, 2013, p. 126-7)

– Entonces, ¿cómo te tengo que llamar yo a ti?, ? «tia»?


– Nada de «tía». Llámame «Taeko-san» y ya está. (MISHIMA, 2013, p. 128)

A narrativa traz uma atmosfera em que coabitam os costumes e imposições da


sociedade tradicional japonesa com a modernidade que concede as mulheres uma maior
flexibilidade, mas que ainda apresenta velhos preconceitos. Taeko consegue seu lugar
de prestígio na alta sociedade japonesa por meio de seu trabalho, não depende de um
título de realeza para conquistar seu ―lugar ao sol‖. Sen-chan apresenta uma
configuração oposta, almeja o casamento com uma mulher da alta sociedade para passar
380
a ser ―alguém‖ e pertencer aquele nicho frequentado apenas pelos ricos e poderosos. Em
muitas narrativas papéis opostos a esse são comumente encontrados, homens poderosos
que se relacionam com mulheres simples e as elevam socialmente.
Ao decorrer de toda a narrativa podemos observar que existe essa troca dos
papéis considerados majoritariamente ―masculinos‖ ou ―femininos‖ entre os dois
personagens. Taeko e Sentktichi percorrem o texto como um casal mal visto por a
sociedade que os cerca, relação que talvez não seria rejeitada de tal maneira caso os
papéis fossem os habitualmente vistos nos relacionamentos entre uma pessoa mais velha
e outra mais jovem.
Esse substrato nos faz refletir como a mulher vem conquistando um espaço mais
igualitário em relação ao ocupado pelo homem, mas também como velhos pensamentos
pertencentes ao imaginário coletivo das sociedades em relação a divisão de papéis por
gênero estão refletidos dentro da obra. Mesmo ocupando uma posição de maior
prestígio do que seu parceiro, Taeko se encontra ainda em um status considerado
inferior em seu meio. Até mesmo para nós leitores a inversão de papéis presente dentro
da obra soa estranha em um primeiro momento. Isso mostra o quanto estamos ainda
presos a um pensamento de distribuição de papéis que soam bem ou não ao gênero
feminino. Sen-chan é o oposto de sua protetora, ainda assim, é melhor visto aos olhos
da sociedade do que a protagonista do romance de Mishima.
Representações de mulheres como prostitutas, amparadas por um marido ou
amante rico, jovens gananciosas são muito comuns na literatura, bem como
representação de homens poderosos, aventureiros, prósperos e inteligentes. Nesta obra
somos apresentados a uma narrativa inversa, em que uma mulher de 39 anos e um
jovem de 20 estão em papéis opostos aqueles frequentemente utilizados
tradicionalmente. O estranhamento é comum, a reflexão é necessária. O que nos faz
pensar que a situação relatada em ―La escuela de la carne‖ é incomum? A cristalização
de um pensamento patriarcal talvez seja a resposta para este questionamento.
Taeko é subjugada por seu meio social por não estar casada, por se relacionar
com um homem mais novo que ela, por não ter filhos, por ser independente, por ser
dona de seu próprio corpo e por satisfazer seus desejos. Ela é julgada por tudo aquilo
que estando associado a uma figura masculina seria tido como normal, até mesmo
aplaudido. Percebemos que mesmo possuindo uma liberdade maior do que outras
mulheres, Taeko se vê presa aos preconceitos e julgamentos de uma sociedade machista,
em que determinados papéis são associados a um ou outro gênero específico, e, em
algumas situações, precisa se submeter aos padrões impostos a ela por seu meio.
Isso nos leva ao seguinte questionamento: Quais lugares dentro do âmbito
familiar e social uma mulher pode ocupar? Observamos que o sistema da disposição de
papéis, nesta sociedade como em tantas outras, está fortemente ligado a noção gênero e
em sua separação de maneira definida. Masculino e feminino são opostos quase
intocáveis no imaginário desta sociedade que ainda carrega um pensamento
conservador. Mesmo com a subversão deste sistema binário de papéis, ainda que a
protagonista de Mishima se mostre apta a ocupar as mais diversas posições e qualidades
constantemente relacionadas ao universo masculino, seu meio social não se encontra
preparado ainda para uma mulher como Taeko.
Donna Haraway (2004), fala que a palavra ―Gênero‖ é um dos principais pilares
no que diz respeito às concepções e categorizações de ―sistemas de diferença‖.
Observamos que a protagonista de Mishima vive em um ambiente que está atravessado
por concepções de poder que colocam os homens em patamares mais elevados do que as

381
mulheres. Isso ocorre por consequência de construções culturais cristalizadas através de
gerações em que havia uma clara distinção entre papéis entre os sexos.
Haraway (2004, p. 211) comenta que ―Apesar de importantes diferenças, todos
os significados modernos de gênero se enraízam na observação de Simone de Beauvoir
de que ‗não se nasce mulher‘‖, e acrescenta que está significação só é possível a partir
das circunstâncias sociais que permitiram uma problematização da naturalização da
diferença entre sexos, possibilitando que pensemos o feminino como consequência da
―construção de um coletivo histórico‖. Observamos que Taeko está à frente de funções e
posições sociais ocupadas por figuras masculinas em sua sociedade, e, o fato de ser
mulher não a impede de exercer tais comportamentos. Do mesmo modo, Sen-chan
desempenha papéis relacionados mais frequentemente ao universo feminino, como a
prostituição e ser provido financeiramente por sua parceira, sem perder sua virilidade.
Taeko não considera Sen-chan menos másculo por estar sendo ―protegido‖ por ela.
Isso nos mostra que a personagem está sujeita as mesmas condições de
relacionamento, comportamento, desempenho profissional e amoroso quanto os homens
a sua volta, mostrando-se até mesmo mais competente em alguns aspectos do que os
representantes masculinos. Taeko não é colocada em uma relação de antagonismo com
seu parceiro ou com qualquer outro homem de seu meio, está em nível de igualdade.
Dessa forma, ser biologicamente pertencente ao sexo masculino ou feminino não
impede que alguém seja mais ou menos apto a desempenhar um ou outro papel dentro
de uma esfera social ou interpessoal. A colocação da mulher em uma posição de
―Outro‖, e não de sujeito, se mostra, então, cultural.
Butler (2015, p. 31) afirma que mesmo o gênero feminino sendo ―compreendido
como um significado assumido por um corpo (já) diferenciado sexualmente; [...] esse
significado só existe em relação a outro significado oposto‖, em que este significado se
encontra representado por um elemento não-feminino. Assim, podemos observar que a
marcação de diferença de gênero apenas existe pois há um segundo elemento
diferenciador, construído culturalmente, que marca as relações de superioridade e
inferioridade dos elementos presentes na cadeia de significação. O homem, o masculino,
é tido como o universal, o sujeito. Consoante Beauvoir, citada por Butler (2015, p. 34),
apenas o gênero feminino é marcado, pois destoa do universal masculino, da pessoa que
transcende o corpo, o não-marcado ―diferenciando-se de um ‗Outro‘ feminino que está
fora das normas universalizantes que constituem a condição de pessoa, inexoravelmente
‗particular‘, corporificado e condenado a imanência‖. Dessa forma, apesar de Taeko
apresentar uma configuração de vida e de personalidade que podem ser consideradas
elevadas em relação aquelas de Sem-chan, sua situação de mulher, seu marcador
biológico, ainda pesam, na sociedade em que ela está inserida, enquanto uma mácula e
um sinal de inferioridade.

Considerações finais
Yukio Mishima publicou ―La escuela de la carne‖ no ano de 1963, porém, sua
temática, mesmo com o passar dos anos, ainda se apresenta bastante atual. Até hoje
observamos que, mesmo com uma maior liberdade conquistada pelas mulheres, estas
ainda precisam se submeter a determinados padrões, culturas, epistemologias e
conceitos vivenciados por Taeko em sua sociedade pós Segunda Guerra Mundial. O
romance de Mishima é marcado por ambiente onde habita uma cultura cristalizada de
classificação de posições sociais, comportamentos e papéis definidos por um

382
patriarcado que resiste às mudanças que se evidenciaram com os novos tempos pós-
guerra e que são eminentes. Taeko é um grito de liberdade, ainda que em regime
semiaberto, de mulheres que reivindicam seus lugares como sujeitos.

O falogocentrismo foi ovulado pelo sujeito dominador, o galo inseminador das galinhas
permanentes da história. Mas no ninho com este ovo prosaico foi posto o germe de uma
fênix que falará todas as línguas de um mundo virado de ponta cabeça. (HARAWAY,
2004, p. 246)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BEAUVOIR, Simone de. Introdução. In:______ O segundo sexo: fatos e mitos.
Tradução de Sérgio Millet. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016, p. 9-27.
BUTLER, Judith. Sujeitos do sexo/gênero/desejo. In:______ Problemas de Gênero:
Feminismo e Subversão da Identidade. Tradução Renato Aguiar. 8. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2015, p. 17-70.
HARAWAY, Donna. ―Gênero‖ para um dicionário marxista: a política sexual de uma
palavra. Tradução de Mariza Corrêa. In: Cadernos Pagu Online. 22. ed. Campinas,
2004, p. 201-246. Disponível em:
http://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8644638. Acesso
em: 27 abr. 2017.
MISHIMA, Yukio. La escuela de la carne. Tradução de Carlos Rubio. Madri: Alianza
Editorial, 2013.

383
Ficha técnica
Editoração eletrônica, revisão e formatação textual
Juliane Camila Chatagnier Garcia
Lucas de Castro Marques
Michelle Rubiane da Rocha Laranja

Coordenação
Cláudia Maria Ceneviva Nigro

Realização
Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖
Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas
Departamento de Letras Modernas

Apoio/Patrocínio
Unesp/Ibilce
Fundação Vunesp
FAPESP
Ccli – Consultoria Linguística
CAPES

384
Índice Remissivo de Autores
AUTORES PÁGINA
Adriana da Costa Teles 355
Ana Flávia de Morais Faria Oliveira 276
Andrezza Jaquier Pigozzo de Oliveira 250
Angela Maria Rubel Fanini 363
Antony Eduardo Galvão 132
Aparecida Maria Nunes 223
Aparecida Maria Nunes 238
Bruna Wagner 374
Bruno Vinicius Kutelak Dias 111
Cláudia Maria Ceneviva Nigro 7
Consoelo Costa Soares Carvalho 88
Davi Silistino de Souza 325
Dolores Aparecida Garcia 142
Dolores Aparecida Garcia 200
Eliana Alda de Freitas Calado 162
Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira 182
Fabrícia Rodrigues Carrijo 79
Fernando Ribas Camargo 69
Guilherme Augusto Louzada Ferreira de Morais 191
Henrique de Oliveira Lee 8
Henrique de Oliveira Lee 142
Henrique de Oliveira Lee 200
Henrique de Oliveira Lee 374
Jacicarla Souza da Silva 315
Jacob dos Santos Biziak 69
Jucimar Lopes 172
Juliana Coetti Basso 58
Juliane Camila Chatagnier Garcia 7
Karina de Oliveira 265
Laís Maíra Ferreira 122
Leonardo Estrada de Aguiar 8
Lorena Santos de Araújo 26
Luciana Ferreira Leal 151
Lucianne Christina Fasolo Normândia Moreira 210
Lucy Ferreira Azevedo 142
Luiz Henrique dos Santos Cordeiro 101
Maria Domingos Pereira Ventura 363
Marly Catarina Soares 132
Michelle Rubiane da Rocha Laranja 7
Natália Salomé de Souza 335
Nataly Rafaele Ternero 238
Penélope Eiko Aragaki Salles 295
Providence Bampoky 36

385
Renan Augusto Barili 46
Renata da Silva Leite 162
Simone Sanches Vicente Morais 142
Simone Sanches Vicente Morais 200
Suzel Domini dos Santos 305
Tauane Nunes Alamino 15
Thais Oliveira Kalil Modesto 182
Vanessa Giuliani Barbosa Tavares 345
Vera Lúcia Guimarães Rezende 285
Vinícius Carvalho Pereira 335

386

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