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Abstract This text based on an ethnographic sur- Resumo Este texto apresenta, em estudo etnográ-
vey presents the social impact on the families of fico, impactos sociais gerados para famílias de tra-
victims of fatal work accidents in the ornamental balhadores vítimas de acidentes de trabalho fatais
stone industry in Itaoca, district of Cachoeiro de no setor de rochas ornamentais em Itaoca, distrito
Itapemirim, Espírito Santo, Brazil. The following de Cachoeiro do Itapemirim (ES). Analisaram-se
elements are analyzed: family culture; living with os núcleos de sentido: cultura familiar; vivência
fatal accidents; experiences of family grief; the way dos acidentes fatais; experiências de lutos familia-
the companies and the union deal with worker res; modo de agir da empresa e do sindicato em
rights; material, symbolic, and emotional resources relação aos direitos; recursos materiais, simbóli-
used by the families to face hardship caused by cos e afetivos usados pelas famílias para enfrentar
accidents. Authoritarian management appealing adversidades decorrentes do acidente. A gestão au-
to masculinity and improvisation are factors that toritária, baseada no apelo à virilidade e na im-
favor work accidents. The need to earn their liv- provisação, propicia a ocorrência de acidentes. Ne-
ing, the fact of valuing work as an attribute of cessidades de subsistência, valorização do trabalho
honorableness and lack of options render the work- como atributo de honradez e ausência de outras
ers subject to domination. Most of the widows are opções contribuem para sujeitar os trabalhadores.
highly religious and receive emotional, symbolic A maioria das viúvas encontra na fé religiosa, na
and material support from their families, the com- solidariedade da família e da comunidade e na as-
munity and the union. There is a notable lack of sistência prestada pelo sindicato, apoio afetivo,
concern and support for the families on the part of simbólico e material. Constata-se omissão dos
managers and public institutions. Advances in the empresários e ausência de proteção do poder pú-
organization of the union and improvement of blico às famílias. Apontam-se avanços na organi-
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Departamento de
the working conditions forced by the demands of zação dos trabalhadores em sindicato e mudanças
Psicologia Social e export buyers have occurred recently. positivas promovidas por empresários do setor,
Desenvolvimento, Key words Worker health, Work in the orna- premidos pelos critérios exigidos para exportação.
Universidade Federal de
Espírito Santo. Av. Fernando
mental stone sector, Fatal work accidents Palavras-chave Saúde dos trabalhadores, Traba-
Ferrari s/n, Goiabeiras. lho no setor de rochas, Acidentes fatais
29060-970 Vitória ES.
mgbmoulin@gmail.com
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Escola Nacional de Saúde
Pública, Fundação Oswaldo
Cruz.
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Moulin, M. G. B. & Minayo-Gomez, C.
mata deixa seqüelas muito grandes no ser huma- imediata chega a ser desconhecida para a família:
no. (Viúva 1) Eu não sei explicar, eu só sei que ele morreu na
Nas conversas mais privadas com suas mu- pedreira. Mas como foi exatamente eu não sei por-
lheres, os trabalhadores manifestaram a noção que os responsáveis, pela pedreira, nenhum me deu
clara do perigo que corriam e expressaram seus assistência e ninguém explica nada direito. Um
medos: Ele sempre falava assim: eu vou parar de fala uma coisa, outro fala outra coisa. Não tem
trabalhar nessa pedreira porque essa pedreira está uma versão certa do que aconteceu. Não tenho.
muito perigosa. Eu ia até pedir um pra ir lá orar (Viúva 1)
aquela pedreira [...] Tinha medo antes de aconte- Mas as mulheres e seus familiares sabem que
cer o acidente. Sempre chegava aqui e falava: ah, faltam equipamentos de segurança e que as em-
nega, eu estou trabalhando num lugar lá tão peri- presas mascaram as verdadeiras circunstâncias
goso. Sempre ele falava assim! (Viúva 3) dos acidentes: Ele caiu da pedreira, só que como
Como é comum nos processos mais arcaicos foi eu não sei. Segurança não tinha não. Ele recla-
de extração de minério4, a gestão do risco junto mava comigo: nega, lá eles não estão dando nada a
aos trabalhadores das pedreiras, em lugar de fo- não ser a corda para gente se amarrar. Aí manda-
calizar a previsibilidade do acidente, interpela o vam ele assinar uma folha como se ele tinha apa-
trabalhador em sua masculinidade: Falou comi- nhado os negócios de segurança. Aí quando chegou
go uma vez que o encarregado mandou: vai embai- no dia que ele caiu, eles foram e espalharam aquele
xo daquilo ali pra limpar. Ele falou que estava pe- monte de cinto de segurança, corda, luva, bota,
rigoso. O encarregado perguntou se ele não era aquele monte de negócio no chão. Aí passou na
homem. Poucos dias depois aconteceu o acidente! televisão no dia que ele caiu, aquele monte de ne-
(Viúva 3) gócio lá no chão. (Esposa de acidentado)
Por sua vez, para o trabalhador, o medo la- As versões sobre as fatalidades são sempre
tente não pode sobrepassar a necessidade do contraditórias e assim tendem a permanecer, pois
cumprimento do dever e a responsabilidade para os fatos dificilmente são apurados. Restam frag-
com a família. Sua alternativa é pedir demissão, mentos de discursos ouvidos de colegas de tra-
continuar enfrentando os riscos ou esperar pela balho e de sindicalistas, noticiados pela mídia ou
aposentadoria que pode ou não ocorrer se for comunicados oficiais da empresa: Dali ninguém
colhido pelo acidente fatal: Eu acho que eu tinha viu nada, porque eu não apurei isso. Da prancha
mais medo porque o homem é obrigado a traba- caiu e depois disseram que socorreram ele. Mas,
lhar. Eu acho que se ele tiver medo não consegue uns falam que ele saiu vivo, outros falam que ele
trabalhar. Talvez tem medo, mas não demonstra. morreu na hora. A gente não sabe nem em que
Ele sempre falava: assim que eu aposentar eu não acreditar. (Viúva 2)
vou trabalhar em pedreira mais não. Só faltavam Nas descrições das fatalidades, são impressi-
dois anos pra ele aposentar. onantes as imagens usadas pelas famílias para
Para enfrentar o cotidiano adverso, a valori- descrever os níveis de destruição dos corpos após
zação da virilidade e da coragem frente às situa- o acidente: “esmaga o sujeito”, “fica feito uma fo-
ções de risco induz os trabalhadores à constru- lha de papel”, “feito pedaços de homem”, “quebra
ção de “ideologias defensivas”8, que redundam ele todo”. Uma das viúvas refere: Eu já vi muito,
na minimização dos riscos reais, como se verifi- eu já fui a muitos velórios de pessoas mortas pela
cou também em estudo nessa mesma indústria9. pedreira, cada um pior que o outro. Você olha as-
As palavras de uma viúva remetem a algumas sim, um morre hoje, outro amanhã está pior do
das justificativas habituais que sustentam a dis- que aquele. Meu marido ficou em pedaços, tanto
posição diária de trabalhar e de enfrentar o tra- que a gente não pode nem colocar roupa nele. Ele
balho perigoso em lugar de recusá-lo: Quando foi sepultado enrolado num lençol, dentro de um
tem que acontecer alguma coisa acho que não tem caixão. Ele era alto, enorme, você olhava o caixão,
jeito. Acontece em qualquer lugar. A gente corre você dizia assim, aquele que está morto ali não é o
risco em qualquer lugar. Ninguém quer morrer, fulano. O caixão pequenininho, ele ficou totalmen-
ninguém tem esperança de morrer, todo mundo te irreconhecível. Estava com os dentes todos que-
quer é viver! Então, desde que a pessoa está traba- brados, o rosto todo mutilado. Não tinha cabeça,
lhando, pode ser clandestino ou não, ele está vivo. os meninos viram, todo mundo aqui viu! Um ho-
Ele trabalha hoje, hoje ele vem embora, está vivo. mem forte com quase dois metros. É horrível. Eu
Amanhã vem embora vivo, então a esperança dele não gosto muito de ficar falando nesse assunto por-
é de progredir, nunca de morrer. (Viúva 1) que é pior. Mas às vezes a gente tem que falar, tem
Quando o acidente acontece, até a sua causa que desabafar! (Viúva 1)
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Em janeiro de 1999, a Rede Globo de Televisão nam-se e servem-se da resignação como forma
transmitiu uma série de reportagens, mostran- de resistência e superação da dor. As viúvas abo-
do o cotidiano de trabalho e os acidentes na ati- minam os patrões por não terem sido tratadas
vidade de extração de mármore no sul do Esta- como parte de sua família e os respeitam porque
do. Também o jornal A Gazeta (de grande circu- é deles que esperam o emprego do qual tiram o
lação em todo o estado do Espírito Santo) publi- sustento.
cou reportagem sobre a realidade de trabalho e A mulher, englobada pela figura do homem
da vida em Itaoca. Em rede nacional, a sociedade provedor, não o substitui, quando viúva. Sua
tomou conhecimento das condições de trabalho tarefa reside nos valores ligados à casa, aos cui-
e das muitas viúvas de Itaoca com seus dramas e dados cotidianos e à função de manter a família
sua dor. Não há mais como escamotear uma re- ainda mais unida. Por isso, é tão importante ob-
alidade de trabalho que ganha horário nobre na ter os direitos ao seguro e à pensão.
televisão, por isso as empresas maiores estão ten- O discurso do heroísmo, tanto em vida, en-
dendo a obedecer às leis trabalhistas e de segu- frentando os perigos, quanto na morte digna e
rança. No entanto, os acidentes migraram para honrada revela alguns dos caminhos tortuosos
as empresas clandestinas e de extração de pedras pelos quais os valores e a cultura dessa população
marruadas. Nelas, reproduz-se no cotidiano a contribui para uma noção fatalista, tanto do pro-
informalidade e a improvisação. Nas pedreiras cesso do trabalho quanto da aceitação resignada
clandestinas, as mineradoras que detêm o decre- de grande número de acidentes ali ocorridos.
to de lavra arrendam a pedreira para ex-empre- Faz parte desse contexto a crença no suporte
gados que as exploram sem nenhum critério de religioso para a vida cotidiana e para os desafios
segurança, sem preocupação com a saúde, a vida promovidos pelos acidentes fatais. Apesar da fé,
do trabalhador e o meio ambiente. Diferente- da solidariedade e do apoio sindical, a vida das
mente do início da atividade no setor, tais empre- viúvas de Itaoca é marcada pelo sofrimento, pelo
sas enfrentam atualmente a organização sindical silêncio. O re-ordenamento da sua vida cotidia-
empenhada em garantir o direito à saúde e a vida na, tangida a partir da tragédia, lhes exige um
dos trabalhadores da categoria. novo olhar para o mundo. E seria muito impor-
tante que pudessem contribuir para uma melhor
gestão dos riscos, voltada para a vida e não para
Considerações finais a morte.
A mudança nas relações e condições de traba-
Tentamos compreender o surgimento de uma lho dependerá cada vez mais do movimento dos
chamada “Vila das Viúvas” na localidade de Ita- trabalhadores e das pressões externas. Para a fa-
oca. A vivência das famílias face aos acidentes de mília dos acidentados, urge que os efeitos sociais
trabalho incapacitantes e fatais evidenciam os do acidente fatal no setor de rochas se tornem
problemas e as contradições existentes, tanto no uma questão importante para os poderes públi-
processo de produção como de reprodução. As cos que têm por obrigação proteger a vida huma-
famílias criticam o processo de trabalho na ex- na. E, sobretudo, é preciso que o conjunto de ato-
tração de mármore e, ao mesmo tempo, se orgu- res – empresários, trabalhadores, familiares, sin-
lham de aí operarem. Reconhecem a exploração dicato e instâncias públicas – avancem de modo
que sofrem, mas se resignam e encaminham seus que o acidente de trabalho fatal ou mutilante seja
filhos para o mesmo tipo de atividade. Resig- uma absoluta exceção ou real fatalidade.
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MGB Moulin participou de todas as etapas, des- 1. Oliveira JI. O grito das pedras – a romaria dos mártires
de a concepção, coleta e análise dos dados à re- do mármore. Cachoeiro do Itapemirim: [s. n.]; 2005.
2. Duarte LFD. Da vida nervosa nas classes trabalhado-
dação do artigo e C Minayo-Gomez participou ras. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1986.
da concepção do estudo, da interpretação dos 3. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa
resultados e na elaboração final do artigo. qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; Rio de
Janeiro: Abrasco; 2006.
4. Minayo MCS. De ferro e flexíveis: marcas do Estado
empresário e da privatização na subjetividade operá-
ria. Rio de Janeiro: Garamond; 2004.
5. Piquet R. Cidade-Empresa: presença na paisagem
urbana brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1998.
6. Hoggart R. Utilizações da cultura. Lisboa: Editorial
Presença; 1973.
7. Almeida MV. Senhores de si: uma interpretação an-
tropológica da masculinidade. Lisboa: Fim de Século
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trabalho. São Paulo: Atlas; 1994.
9. Moulin MGB, Reis CT, Wenichi GH. No meio do
caminho havia uma pedra - organização do traba-
lho e saúde no processo de extração e beneficia-
mento de mármore. In: Kiefer C, Fagá I, Sampaio
MR, organizadores. Trabalho, Educação e Saúde: um
mosaico em múltiplos tons. Vitória: Fundacentro;
2000. p. 221-240.
10. Rodrigues JC. Tabu da morte. Rio de Janeiro: Achia-
mé; 1983.
11. Geertz C. A interpretação das culturas.. Rio de Janei-
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12. Thompson EP. The moral economy of the English
crowd in the eighteenth century. Past and present 1971;
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