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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS

UNIDADE UNIVERSITÁRIA DE CIÊNCIAS SÓCIO-ECONÔMICAS E HUMANAS


CURSO DE HISTÓRIA

ARTE E POLÍTICA: CONFLITOS E CONTRADIÇÕES NA


INTERNACIONAL SITUACIONISTA (1957 - 1969)

MARCUS VINICIUS COSTA DA CONCEIÇÃO

ANÁPOLIS, 2009.
MARCUS VINICIUS COSTA DA CONCEIÇÃO

ARTE E POLÍTICA: CONFLITOS E CONTRADIÇÕES NA


INTERNACIONAL SITUACIONISTA (1957 - 1969)

Trabalho de conclusão de curso apresentado como


parte das atividades para a obtenção do título de
licenciado, do curso de História da Unidade
Universitária de Ciências Sócio-Econômicas e
Humanas da Universidade Estadual de Goiás.
Orientador: Prof. Dr. Nildo Silva Viana

ANÁPOLIS, 2009.
UNIDADE UNIVERSITÁRIA DE CIÊNCIAS HUMANAS E SÓCIO-ECONÔMICAS
CURSO DE HISTÓRIA

MARCUS VINICIUS COSTA DA CONCEIÇÃO

ARTE E POLÍTICA: CONFLITOS E CONTRADIÇÕES NA INTERNACIONAL


SITUACIONISTA (1957 - 1969)

Monografia apresentada em / / para a obtenção do título de Licenciatura em


História

Banca examinadora:

Dr. Nildo Silva Viana

Ms. Edmilson Marques


Aos meus pais, por me darem todo o apoio nesta jornada.
AGRADECIMENTOS

Esses agradecimentos se fazem necessários para aqueles que de um modo direto ou


indireto me ajudaram neste percurso.

Gostaria de agradecer primeiramente aos meus pais, Marcos e Beth, pelo apoio
durante toda a faculdade. Por aguentar os períodos de mau humor, de estresse, por terem me
possibilitado a realização de um curso pleno, com idas a congressos e cursos, que sem sombra
de dúvida me ajudaram tanto profissionalmente como pessoal. A minha irmã, pelas brigas
constantes, mas o apoio quando precisei, a sua jornada só está iniciando, espero que seja tão
frutífera quanto a minha. A minha vó, por sempre ter acreditado nas minhas escolhas.

A Mia, a irmã que eu pude escolher, por termos enfrentado e vencido várias batalhas
juntos nesses quatro anos. Pelas noites passadas em msn realizando trabalhos, pelas suas
correções precisas que me propiciaram não passar vergonha, como nesta monografia, por me
escutar quando eu mais precisei, saímos mais forte do que entramos.

Ao Adriano, companheiro de manifestações, por todas as tardes passadas envolvidos


em debates e ações que visavam uma melhor Universidade e outra Sociedade, sei que nossa
luta não foi em vão.

Aos colegas de classe: Robson, companheiro de viagem; Allyne, seu esforço me dá


força para continuar; Martha, por ter aguentada minhas piadas e comentários nestes anos e
todos aqueles com quem nesses anos compartilhei momentos que guardarei na memória:
Bethânia, Nayane, Gilson, Marco Aurélio, Bianca.

Ao Nildo, por ter me dado a oportunidade de desfrutar de uma bolsa de iniciação


científica que sem sombra de dúvidas me propiciou os elementos necessários para a
formulação deste trabalho, além de ter aceitado orientar um tema que ainda é visto como
"exótico" por muitos.

Ao Santana por suas aulas que me despertaram para um tema que até não tinha
interesse, a América Latina, quem sabe as próximas escolhas não apontem para este rumo.

A Patrícia, seu apoio e incentivo foram fundamentais para mim neste ano.
A arte em sua época de dissolução, como movimento
negativo que prossegue a superação da arte em uma sociedade
histórica na qual a história ainda não foi vivida, é ao mesmo
tempo uma arte da mudança e a pura expressão da mudança
impossível...Essa arte é forçosamente de vanguarda, e não
existe. Sua Vanguarda é seu desaparecimento.

Guy Debord

A vanguarda da classe é a própria classe.

Mauricio Tragtenberg
LISTA DE FIGURAS
Figura I - Paul Cézzane- Vista de Gardanne,1885-1886. Óleo s/tela, 92x74,5 cm.
Fundação Burnes, Pensilvânia, Estados Unidos.......................................................................22

Figura II - Salvador Dalí - A Persistência da Memória, 1931. 24x33cm.Óleo sobre


tela. Nova Iorque. The Museum of Modern Art.......................................................................22

Figura III - HQ de André Bertran com texto de Raul Vaneigem, Paris, 1967.............48
LISTA DE ABREVIATURAS

Internacional Situacionista - IS

Partido Comunista Francês - PCF

Partido Comunista Húngaro - PCH

Partido dos Trabalhadores da Hungria - PTH

Partido Comunista da União Soviética - PUCS

União das Repúblicas Socialistas Soviéticas - URSS


SUMÁRIO

RESUMO........................................................................................................................09

INTRODUÇÃO..............................................................................................................10

1. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS PARA UMA COMPREENSÃO DA


INTERNACIONAL SITUACIONISTA.........................................................................13
1.1 Um histórico do termo vanguarda......................................................................... 13
1.2 Por uma conceitualização do termo vanguarda artística....................................... 15
1.2.1O Internacionalismo: Um novo elemento na busca de uma nova arte.............. 16
1.2.2 A relação da vanguarda artística com a política...............................................19
1.2.3 – O que era ser de vanguarda?..........................................................................22
1.3 A totalidade e a determinação fundamental como elementos conceituais para a
compreensão histórica.................................................................................................... 25

2. O HOMEM COMO MEDIDA DO SEU TEMPO..................................................... 28


2.1 1956 - O paradoxo entre liberdade e autoritarismo: o XX Congresso do Partido
Comunista da União Soviética e a Revolução Húngara................................................ 29
2.2 A especificidade da Sociedade Francesa como elemento de compreensão do
processo de transição na Internacional Situacionista..................................................... 41

3. A INTERNACIONAL SITUACIONISTA E O DEBATE ACERCA DA


PROBLEMÁTICA DA ARTE ENQUANTO MEIO REVOLUCIONÁRIO ................47

CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................ 61

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................................... 63
RESUMO

A Internacional Situacionista surge em 1957 como um grupo artístico, herdeiro das

grandes Vanguardas Artísticas, realizando experimentos sobre a cidade e a arte como

elementos para uma crítica e superação da sociedade espetacular. No entanto, em 1962 os

rumos tomados pelo movimento apontam para outros rumos, relegando as suas antigas

influências. Deste modo, este trabalho procura analisar a partir de alguns elementos, como a

negação do seu caráter de Vanguarda Artística e a especificidade da sociedade francesa, as

determinações, em especial a determinação fundamental, que ocasionaram a mudança de

paradigma dentro da Internacional Situacionista.

Palavras-chave: Internacional Situacionista - Vanguarda artística - Revolução


INTRODUÇÃO

A presente investigação surge em decorrência da importância que a Internacional

Situacionista (IS) tem adquirido nos últimos anos em relação aos movimentos de contestação

anticapitalistas e de como esses movimentos têm se inspirado, tanto de modo teórico quanto prático,

na IS. A primeira vez que lemos algo sobre a IS foi em Matos (1981) em que ela ao elencar os

grupos que tiveram uma certa influência no Maio francês, cita o referido, grupo que este nunca

tinha lido nada a respeito e passo a procurar leituras, sendo que estas acabam levando ao estudo,

que tem como consequências uma bolsa de iniciação científica e esta monografia.

A Internacional Situacionista surge em 1957 como a união de três vanguardas artísticas

europeias do pós-segunda guerra mundial, sendo elas: a Internacional Letrista, o Movimento por

uma Bauhaus Imaginista(MIBI - composto em sua maioria por integrantes do grupo Cobra) e

também pelo Comitê Psicogeográfico de Londres. Essas vanguardas já eram responsáveis por

alguns estudos sobre a cidade que vão ser transplantados para a IS, principalmente na sua primeira

fase (1957-1962), a qual podemos classificar como a responsável pelas elaborações a respeito das

teorias criticas sobre a sociedade tendo como parâmetro as artes.

Procuramos neste trabalho descobrir as determinações, em especial a determinação

fundamental, que levou a IS passar de uma atuação artística, baseada na primeiras vanguardas, para

uma atuação política revolucionária efetiva e também pelas suas posteriores teses a respeito da arte

e sociedade. Desta forma procuramos ler vários textos que pudessem nos dar uma base sobre o

desenvolvimento do movimento e de suas questões.

A hipótese preliminar é a de que a partir do predomínio da seção francesa sobre as demais e

da própria conjuntura histórica pela qual a Europa e o mundo passavam naquele momento, ocorre

uma mudança de postura na IS, fazendo com que o grupo abandone as artes e a cultura como ponto

central e no seu lugar passe a desenvolver debates e formulações políticas que levaram seus

integrantes a participarem do Maio de 1968 na França - compondo nesta uma corrente conselhista
11

denominada Comitê pela Manutenção das Ocupações que reúne estudantes, operários e militantes

independentes que evocam teses como a autogestão das fábricas, a permanência das ocupações

realizadas durante o período da greve geral e a crítica ao Estado espetacular - e por uma nova

interpretação da sociedade capitalista.

Para a realização deste trabalho será necessário trabalhar com alguns conceitos

fundamentais, que serão tratados no capítulo I. O primeiro conceito a ser trabalhado é o de

vanguarda artística. A conceitualização desse termo1 vai ser útil para definir alguns trajetos que

relacionam a ligação entre a arte e política, que se constitui como um elemento chave que estará

presente nas vanguardas artísticas e posteriormente na Internacional Situacionista. A forma que a IS

se desenvolve, primeiramente se afirmando enquanto vanguarda artística e posteriormente negando

está tradição, é outro ponto que reafirma a importância da definição, para se entender porque ocorre

essa transição dentro do movimento.

No capítulo II será realizado uma contextualização histórica partindo de elementos que são

determinantes para a constituição, posicionamento e as ações da IS. O primeiro tópico é a

abordagem da revolução húngara de 1956 a partir de uma perspectiva dos conselhos operários. Foi

escolhida esta perspectiva porque ela se coloca como um contraponto entre o autoritarismo

bolchevista e o liberalismo capitalista e porque também é a posterior filiação teórica que o

movimento irá se alinhar. O outro tópico aborda a especificidade da França na sua reconstrução

após a Segunda Guerra Mundial - levando em conta aspectos como a Guerra de independência da

Argélia, o Gaullismo e as teses de Lefebvre sobre a sociedade capitalista daquele momento,

elaboradas a partir de um olhar sobre a França - sendo que é lá que se constitui a maior e mais

duradoura seção da IS, inclusive a que terá um papel fundamental na fase de transição pelo qual a

IS passa.

O capítulo III é onde ocorre as análises das teses situacionistas, que levam aos
1 Partiu-se para esta pequena conceitualização, pois dos conceitos lidos sobre Vanguardas Artísticas nenhum
conseguia apreender o processo dado.
12

desdobramentos já explicados anteriormente. E também onde ocorre o casamento dos dois

primeiros capítulos com o terceiro, desenvolvendo uma cadeia de análises a respeito das propostas

situacionistas nas artes e também o seu posterior filiamento teórico e sua rejeição à classificação

enquanto vanguarda.

As fontes utilizadas neste trabalho se dividem em três tipos: o primeiro corresponde aos

artigos publicados nos doze números da revista Internationale Situationniste2, principal revista do

grupo; o segundo corresponde aos livros produzidos por integrantes do movimento, que refletem as

ideias defendidas por este, mas não são documentos "oficiais" desse, neste caso temos três

especificamente: A sociedade do espetáculo de Guy Debord, A arte de viver para as novas gerações

de Raoul Vaneigem e Enragés y situacionistas en el movimiento de las ocupaciones de René

Viénet (os dois primeiros já se encontram publicados no Brasil, já o terceiro só foi possível o acesso

através de uma versão espanhola publicada em 1978 e digitalizada3) e o terceiro e último tipo se

refere aos documentos produzidos pela IS durante as ocupações do maio de 1968, entre textos,

HQ's e painéis4.

Para se compreender as diferenças entre os discursos que a IS adotou nas suas duas fases,

procedeu-se uma análise das fontes acima citadas, procurando perceber as nuances e as formas que

eram tratados temas como o urbanismo, as artes e a sociedade como uma forma global, partindo do

princípio da totalidade, uma vez que não é possível a análise de um determinado tema focalizando

somente um determinado aspecto. Uma leitura dessa resultaria em trabalho falho, pois não estaria

atento as dinâmicas impostas pela realidade.

2 Os artigos dessa revista no Brasil se encontram publicados de forma dispersa em livros-coletânea como os
organizados por FELÍCIO(2006), HENRIQUES (1997), JACQUES (2003), INTERNACIONAL
SITUACIONISTA (2002). No entanto, é possível a ter acesso a todos os números da revista em inglês em vários
sites , o que mais utilizamos foi: http://www.cddc.vt.edu/sionline/si/situ.html
3 Essa versão está disponível em: http://sindominio.net/ash/enrages.htm
4 Esses documentos podem ser encontrados principalmente em: INTERNACIONAL SITUACIONISTA (2002),
http://www.cddc.vt.edu/sionline/, http://sindominio.net/ash/, http://www.notbored.org/SI.html,
http://www.nothingness.org/SI/, http://i-situationniste.blogspot.com/ e http://debordiana.chez.com/debordiana.htm
CAPÍTULO I - PRESSUPOSTOS TEÓRICOS PARA UMA
COMPREENSÃO DA INTERNACIONAL SITUACIONISTA

1.1 - Um histórico do termo Vanguarda


Vanguarda é um termo polissêmico de origem francesa, avant-garde, que significa

posição frontal. Foi primeiramente usado para designar o aspecto militar, significava um

conjunto de tropas que se portavam a frente do batalhão principal e eram responsáveis por

causar um “choque” nas tropas inimigas ou lugares a serem atacados, de preferência que

destruindo o inimigo em um único ataque. Porém, em meados do século XIX, este termo

passará por mudanças consideráveis, mas sem nunca perder o seu sentido inicial de significar

aquilo que está à frente de algo ou alguém.

As mudanças mais perceptíveis desse termo ocorrem no campo da política e da arte.

Na política o termo passa a ser utilizado a partir da primavera dos povos de 1848 e

inicialmente designava tanto a extrema direita como a extrema esquerda (COMPAGNON,

2003, pg. 39), no entanto com o advento do movimento operário e seus teóricos1 como Karl

Kautsky, certa vertente deste começa a se autodenominar como a vanguarda do movimento

operário, relegando a um segundo plano as lutas desencadeadas até então, sobretudo a

Comuna de Paris que negavam2, esta dita “teoria da vanguarda”, que como definiu Maurício

Tragtenberg em seu livro,

A fundação ideológica dessa tecnocracia dirigente está na célebre “teoria da


vanguarda” de Karl Kautsky...Segundo essa teoria, o proletariado entregue a
si mesmo chega somente a uma visão economicista do processo social; a

1
Karl Kaustsky é o mentor e um dos principais nomes da Segunda Internacional, aquela que transformou em
reformista a visão de Marx, que previa a chegada a um socialismo a partir da ação no parlamentar e sem uma
revolução. É interessante notar como até o advento da Primeira Guerra Mundial, Kautsky, tem prestigio dentro
do movimento operário, no entanto após esta e também com as suas críticas ao Estado Bolchevique é
abandonado por está facção, porém está não deixa ainda de ter a influência deste, sobretudo no que se refere a
“teoria da vanguarda” que foi absorvida por Lênin e os bolcheviques.
2
A Comuna de Paris é a primeira experiência de luta autogerida da história. A sua importância para o
movimento operário posterior é imensurável, uma vez que ela se tornou uma espécie de “modelo” a ser atingido
pelas revoluções posteriores.
14

consciência política lhe é injetada “de fora” pela vanguarda, que fala em seu
nome, pela voz dos intelectuais portadores da ciência e do conhecimento.

(TRAGTENBERG, 2008, pg. 11)

Ela ainda se caracterizava segundo Subirats,

Sobre a base de dois axiomas: sua força organizativa que permite dirigir as
massas e possibilitar através de estratégia adequadas a vitória política, ou
seja, a revolução social, e em segundo lugar, seu sentido utópico ou seu
caráter antecipador de uma nova realidade social. O primeiro aspecto
fundamenta seu papel dirigente e ordenador, ou seja a sua função como
sistema de poder; o segundo momento determina sua tarefa normativa e seu
valor ético-político num sentido ideal. (SUBIRATS, 1986, pg. 54 e 55)

Estas visões de certa forma estão implícitas, ou até mesmo escancaradas, nas

vanguardas artísticas do início do século XX, quando estas propunham uma revolução através

das artes e se achavam a ponta de lança do movimento revolucionário. Essa tomada de

posição desses movimentos muitas vezes entra em choque com as vanguardas políticas o que

acaba ocasionando a derrocada destes, como é o caso do Prolekult 3 e o Partido Bolchevique

no processo da Revolução Russa de 1917, em que este aos poucos é incorporado a estrutura

partidária e finda como um movimento autônomo.

Já o nascimento do termo vanguarda artística surge quase no mesmo período do

emprego no sentido político e é impossível pensá-lo como sendo apenas uma pura questão

estética, a criação deste termo nasce como algo muito maior, resultado do processo que as

artes passavam naquele momento, ele é resultado do processo sócio-histórico europeu do

período.

3
“O Prolekult (‘proletarskaia kultura’ - cultura proletária) objetiva propagar uma cultura de origem proletária,
que viesse dos próprios operários, constituindo, desse modo, a superestrutura que fortalecesse a ideologia
soviética. Funcionando como um organismo independente, fundado em 1917, o Prolekult cresce num ritmo
vertiginoso. Considera a arte como o mais poderosos instrumento das forças de classe, e defende que a arte deve
ser fundada no coletivismo trabalhista; também observa que o proletariado deve manifestar o máximo possível
de energia de classe, da espontaneidade e da inteligência revolucionário-socialista no processo artístico.”
(RENATO,2009).
15

1.2 – Por uma conceitualização do termo vanguarda artística.

Através das leituras realizadas, não foi possível encontrar nenhuma conceituação do

termo vanguarda artística que satisfizesse as necessidades do trabalho. Desta maneira pautada

na leitura de obras de referência em relação ao estudo das artes e das vanguardas artísticas

como COMPAGNON (2003), FERRY (1994), SUBIRATS (1986), DUPUIS (1979) será

construído um conceito que consiga abranger as demandas realizadas pela análise do trabalho.

Antes disso, porém, é preciso definir uma noção de arte que orientará a análise da

vanguarda artística e também servirá de parâmetro e contraposição para uma refutação do

conceito de arte realizado pela IS. Com o advento do modo de produção capitalista, a

produção artística deixa de ser vista como um elemento de pura estética e passa a ser

desenvolvida como um elemento comercial, em que o artista se torna um produtor e seu

produto é a arte que ele tem a oferecer. Desta forma, não é possível entender as vanguardas

artísticas no século XIX, sem ter a noção de que a arte naquele momento estava enquadrada

no processo da divisão social do trabalho. A própria visão da vanguarda4 vem contrapor esta

visão do artista como sendo um “ser especial” detentor de um elemento artístico supremo que

não estaria ao alcance de todos e também algumas delas, em especial o surrealismo e a

posteriormente a IS, compreendem que por ela estar inserida neste processo da sociedade

capitalista, ela não está fora do processo de luta de classes, sendo que muitas vezes ela é

utilizada como elemento amortecedor ou detonador dessa.

A concepção de vanguarda artística aparecerá desenvolvida através de vários

elementos chaves que foram compreendidos como sendo características essenciais para a

conceitualização do termo. Estes elementos não procuram privilegiar o caráter artístico das

vanguardas, mas sim a interação destes com os elementos sociais, políticos e culturais do
4
Esta visão será explicado no item 2.3.
16

contexto histórico da sua época5. Desta forma, parte-se da definição que vanguardas artísticas

são grupos de artistas que buscam através de algumas ideias-chave e de organização, tal como

revolução (estética ou política), o internacionalismo e novas técnicas artísticas, que são

marcas do período em que emergem (final do século XIX ao início da Segunda Guerra

Mundial) e que elas estão envolvidas e que lhes determina.

1.2.1 – O Internacionalismo: Um novo elemento na busca de uma nova arte

Um dos principais elementos negligenciados por quase todos os autores que estudam

as vanguardas artísticas, o único autor que cita este fato é SUBIRATS (1986) não chegando a

adentrar no tema, é o papel do internacionalismo no processo de formação e de constituição

desses grupos na Europa a partir de meados do século XIX. O internacionalismo aqui tem que

ser compreendido partindo de dois elementos: o primeiro referente à questão do tipo de

formação das escolas artísticas e o segundo ao papel que este tomou no movimento

revolucionário deste período, porém é preciso ressaltar que estes dois elementos estão de certa

forma conectados devido ao período histórico em que emergem.

No primeiro ponto, a análise de HAUSER (2003) nos permite compreender como o

processo de formação das escolas artísticas estava estruturado até o surgimento das

vanguardas artísticas. Ao longo de toda a sua obra é possível apreender que as escolas

artísticas se pautavam por uma série de características comuns, mas ao mesmo tempo se

diferiam por estarem voltadas para representação artística das suas características locais,

sendo que muitas das vezes nem mesmo essas características centrais eram dadas como certas,

O maneirismo, como o gótico, foi um fenômeno europeu universal, ainda que


fosse limitado a círculos muito mais estreitos do que a arte cristã da Idade
Média; o barroco, por outro lado, engloba tantas ramificações do esforço
5
Por isso apesar de existir grupos que se autodenominam como vanguardas artísticas após a Segunda Guerra
mundial, não é possível se entender estes como tal, pois as características históricas que foram responsáveis por
dar o fundamento histórico para estas tinham findado.
17

artístico, apresenta-se em formas tão diferentes de país para país e nas várias
esferas de cultura, que à primeira vista parece ser duvidoso que seja possível
reduzi-las todas a um denominador comum. (HAUSER, 2003, pg. 442).

Com o advento das vanguardas artísticas surge nas artes um novo tipo estruturação do

movimento artístico, que tenta romper as amarras dos Estados-nações e se articular a um nível

internacional, tanto na questão da produção artística quanto na dinâmica do movimento. O

dadaísmo é a vanguarda que melhor expressa essa tendência assumida neste período. O

movimento nasce em 1916 em Zurique6, cidade que representava naquele momento o maior

ideal de internacionalismo e de repulsa a guerra, uma vez que a Suíça por não estar envolvida

no conflito, se tornar um lugar de recepção de todos os degredados, desertores de guerra e

fugitivos políticos, isso faz com que convivam no mesmo círculo os fundadores do dadaísmo7

e Lênin, por exemplo.

Esta nova reorientação faz com que não se observe nas vanguardas artísticas a mesma

dinâmica das outras escolas, uma vez que não existe uma diferenciação entre “dadaísmos”, no

entanto temos que considerar que as vanguardas apesar deste novo apelo internacionalista, se

desenvolvem de forma mais intensa em uns países do que em outros, como o surrealismo que

teve a sua principal expressão na França, mas através do seu núcleo original, se difundiu a

outros países como Iugoslávia, Bélgica, Checoslováquia, Egito e México.

6
Naquele momento a Europa passava por uma guerra até então nunca vista, com um alto índice de mortos e o
uso da tecnologia militar de uma forma avassaladora.
7
Os fundadores do dadaísmo também expressam esta tendência uma vez que são frutos de várias partes da
Europa e inclusive de outros países, como por exemplo: Tristan Tzara e Marcel Janko da Romênia; Hugo Ball,
Hans Richtere e Hans Arp da Alemanha.
18

Sobre a influência do internacionalismo revolucionário 8 é preciso compreender que

este movimento nasce sobre um novo signo, que até então tinham colocado as revoluções

como elementos nacionais. O movimento socialista9 surge como a faísca deflagradora desta

nova bandeira. As revoluções de 1848, conhecidas como Primavera dos Povos devido em

grande parte a derrubada das monarquias absolutistas que foram incapazes de conter a crise

econômica que se agravava e as reivindicações de uma burguesia ascendente, são as primeiras

em que se pode observar uma alternância entre o nacionalismo e o internacionalismo

nascente. Neste mesmo ano ocorre a publicação do Manifesto do Partido Comunista de Marx

e Engels, em que a célebre frase “Proletários de todo o mundo, uni-vos”, demonstra que os

novos problemas enfrentados a partir daquele momento não eram mais a monarquia

absolutista, mas sim a exploração empreendida por uma nova classe que tinha ascendido ao

poder como revolucionária e a partir deste momento se utiliza de todos os meios para se

manter no poder, uma vez que a sua permanência enquanto classe dominante estava

fundamentada na exploração de outra classe, o proletariado.

O surgimento da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) em 1864, também

conhecida como Primeira Internacional, foi fundamental neste período por afirmar a

importância entre os trabalhadores da ajuda mútua e do internacionalismo, sendo que ela em

muitos momentos de luta neste período, não somente teorizou como também apoiou,

enviando associados e dinheiro (BEER, 2006) para operários em luta em toda a Europa.

Além disso, para Tragtenberg a AIT

8
Aqui designamos como internacionalismo revolucionário aquele que prega a supressão do estado-nação através
de uma revolução que culmine em um novo sistema social e não um internacionalismo político “que tenda a
transcender a nação em direção a uma comunidade mais ampla, da qual as nações continuam sendo as unidades
principais.” (ANDERSON, 2005, pg. 03). A relação entre as vanguardas artísticas e o movimento
revolucionário será discutida no próximo tópico.
9
Aqui definimos socialismo como sendo o anarquismo e o marxismo, não entrando nos méritos da discussão
sobre as suas tendências e contratendências.
19

Serviu, no entanto, para conscientizar os trabalhadores de que eles


pertenciam a uma comunidade internacional... Acima de tudo, foram méritos
da AIT a afirmação do internacionalismo proletário como um valor positivo e
a vinculação da luta pela libertação da classe trabalhadora da exploração
econômica, e da opressão política como sinônimo da libertação da
humanidade. (TRAGTENBERG, 2008, pg. 33).

A Comuna de Paris é a principal revolução que expressa essas tendências neste

momento, tanto do internacionalismo como do projeto revolucionário de derrubada do estado

burguês, mas que por uma série de fatores não tem o seu objetivo alcançando, sendo seus

membros mortos, presos ou deportados.

1.2.2 - A relação da vanguarda artística com a política

Até se chegar a relação entre arte e política primeiramente será analisado a relação

entre a arte e política. Esta ocorre desde os primórdios da humanidade, mas no século XIX ela

atinge outra conotação, sendo que HAUSER (2003) coloca como o ponto de virada a

Revolução Francesa.

A arte sempre foi utilizada com propósitos políticos, desde a Grécia, passando por

Roma, pela Idade Média, pelos artistas renascentista e principalmente na constituição do

Estado-nação. No entanto o que é possível observar é que esta arte está intimamente ligada ao

Estado constituído, reproduzindo os seus objetivos e a sua ideologia. A Revolução Francesa

quebra este paradigma, pois pela primeira vez a arte é usada conscientemente com o objetivo

de demonstrar os novos valores que estavam sendo propagados pelos revolucionários em

detrimento dos valores da monarquia absolutista, no entanto ela não rompe com a estética da

velha ordem e não consegue superar o problema que será colocado pelas vanguardas artísticas

da crítica da arte pela arte, porque “enfatiza-se que a arte do período revolucionário pode ser

descrita como revolucionária somente em relação aos temas e idéias, mas não em relação às

suas formas e princípios estilísticos.” (HAUSER, 2003, pg. 649).


20

Devido às vanguardas artísticas terem nascido quase ao mesmo tempo dos grandes

movimentos revolucionários da Europa, não é de se estranhar que eles travaram um intenso

debate a respeito do processo revolucionário, chegando muitas vezes a ocorrer a filiação de

vanguardas a grupos e partidos que pregavam uma revolução proletária10. Desta forma para

compreender a relação entre arte e política desenvolvida pelas vanguardas é preciso saber que

ela ocorreu de uma maneira ambígua.

A primeira que é colocada por COMPAGNON (2003), e que aqui se compartilha, vê a

diferença entre os dois modos como a mudança se daria na sociedade, todos atrelados a ideia

de revolução, mas uma política e outra estética. Os que defendem a ideia de uma revolução

política, como os surrealistas, que vêem a utilização da arte como forma de mudar o mundo; e

a estética, como os dadaístas, que rechaçam a idéia de uma revolução política11, mas lutam por

uma revolução nas artes enquanto forma, conceito e aplicação acreditando que ao fazerem

este tipo de revolução que afetaria a noção de arte estabelecida até então, a sociedade a

seguiria.

A segunda ambiguidade está colocada por SUBIRATS (1986) e aponta na direção dos

conflitos que ocorreram entre as vanguardas artísticas e política principalmente no início do

século XX. Para o autor devido às duas vanguardas defenderem a revolução por aspectos

contrários, por compartilharem os mesmos espaços sociais e por muitas vezes terem tido

relações de atrelamento ideológico levaram estas a constantes lutas por espaço. Sem dúvida, o

surrealismo foi a vanguarda artística que teve um maior estreitamento da relação entre arte e

política. O seu próprio nascimento ocorre através de artistas que tenham contato com os

10
O caso mais emblemático desta relação é a filiação de grande parte dos surrealistas franceses ao PCF. Alguns
se aproximaram, posteriormente, ao trotskismo (Breton, etc.).
11
Entretanto, a que se fazer um aparte neste ponto. Alguns dos fundadores do dadaísmo de origem alemão
conseguem romper a lógica do “artístico suicídio individual” como coloca DUPUIS (2003, pg. 7) e se lançam
com todas as suas forças no movimento revolucionário alemão.
21

dadaístas, mas negarem o seu princípio niilista e partem para uma proposta de arte engajada.

O ponto extremo desta proposta é quando os surrealistas se ligam organicamente à Associação

dos Artistas Revolucionários controlada pelo PCF e chegam inclusive a mudar o nome da

revista do movimento de La Révolution Surréaliste para Le Surrealisme au Service de la

Revolution demonstrando o novo papel que eles acreditavam que as artes, neste caso o

surrealismo, tinha que cumprir. As ingerências do PCF no surrealismo fazem com que essa

filiação não dure muito tempo, vista que o partido classifica como “libertárias” algumas

posições defendidas por Breton e alguns outros membros. Apesar disso, o surrealismo

continua a sua ligação com outros grupos políticos, como Breton na esfera de influência de

Trotsky e alguns outros surrealistas com a ala mais à esquerda do partido.

A ligação do surrealismo não ocorre somente com a esquerda, mas também com a

direita nacionalista, principalmente na Espanha com a figura de Salvador Dalí que adere ao

fascismo, ao catolicismo e ao regime de Franco e devido a essas suas posições é expulso em

1940 do movimento, e ainda assim foi considerado um dos principais pintores surrealistas.

DUPUIS (1979) analisando os fracassos da ligação das vanguardas artísticas e a

questão da revolução, chega a duas conclusões: a primeira relacionando a ligação das

vanguardas a partidos que apesar de se dizerem comunistas estavam relacionados direta ou

indiretamente ao esmagamento dos movimentos revolucionários e das reais formas de

subversão; e a segunda é que esses movimentos queriam fazer a revolução sem aqueles que

poderiam realmente subverter o sistema, o proletariado, caindo assim numa contradição sem

volta.
22

1.2.3 – O que era ser de vanguarda?

Este é o ponto em que encontramos ao mesmo tempo a maior confluência de ideias e a

que os autores apresentam as suas leituras mais originais a respeito do que as vanguardas

influíram na concepção de arte a partir de meados do século XIX.

A consciência que as vanguardas tinham em romper com o passado é um elemento

recorrente na análise desses movimentos, sobretudo porque elas pensam essa ruptura a partir

de dois elementos centrais: o desvencilhamento de uma estética academicista e a criação de

uma nova concepção de arte que ligasse este a vida. As vanguardas do final do século XIX se

diferem das do início do século XX nesta percepção. Enquanto as primeiras rompem em

certos aspectos com a arte estabelecida (nas formas de retratar os temas com imagens

distorcidas e utilizando-se de novas técnicas como a inserção de aspectos geométricos, que

mais tarde serão tão caros ao cubismo), continuam, porém pintando os temas (paisagens

bucólicas, a vida da aristocracia e burguesia e retratos). Já as do início do século XX incluem

não somente essas novas técnicas que pretendiam modificar a técnica artística, ela passa

também a incorporar elementos exteriores que estavam em voga no momento, como a

psicanálise, ocasionando um deslocamento das temáticas dos objetos abordados.

Os dois quadros abaixo representam essas posições (neste caso o pós-impressionismo

e o surrealismo) e ilustram a mudança de paradigmas que as vanguardas expressaram nas

artes, neste caso especificamente na pintura.


23

Figura I - Paul Cézzane- Vista de Gardanne,1885-1886.


Óleo s/tela, 92x74,5 cm. Fundação Burnes, Pensilvânia, Estados Unidos

Figura II - Salvador Dalí - A Persistência da Memória, 1931. 24x33cm.


Óleo sobre tela. Nova Iorque. The Museum of Modern Art.

A ligação da arte com a vida passa pelo processo de dessacralização da arte, isto é, a

arte não pode mais ser vista como um objeto único e inigualável, mas sim como qualquer

elemento do cotidiano que se tirado do seu contexto original assume tal posição. Esta nova

visão do que venha a ser a “obra” de arte, causa um imenso impacto no mundo da arte. O

dadaísmo é a vanguarda que mais se aproveita dessa nova técnica, denominada ready-made,

sendo que a peça A Fonte de Marcel Duchamp caracteriza bem essa visão. No entanto, não

são todos que concordam com essa visão dentro das vanguardas, Dalí a condena de maneira
24

enfática e a maneira como eram reverenciados estes artistas por apenas plagiar algo,

“Primeiro: o velho cornudo dadaísta de cabeleira esbranquiçada, que recebe um diploma de

honra ou uma medalha de ouro por ter querido assinar a pintura.” (DALÌ, 2008, pg.21).

Essa ruptura com o passado não pode ser pensada levando em consideração somente

os aspectos artísticos, mas há que se considerar também os ideológicos, uma vez que essas

vanguardas ao quererem romper, não somente com o passado, mas também com o presente,

crendo que através de suas práticas estavam antecipando o futuro, como a detentora de uma

nova ordem social (COMPAGNON, 2003), ela acaba por cair na armadilha, como coloca

FERRY (1994, pg. 271), do elitismo, pois ao se colocar “ a frente” do seu tempo 12 ele rompe

com qualquer possibilidade de articulação com as forças sociais do período em que se

encontra, porque estas são consideradas como não portadoras do signo do novo tempo.

Outro ponto que é consenso entre os analistas das vanguardas é no que se refere ao seu

papel dentro das instituições oficiais de arte. É notório que o grande marco inicial das

vanguardas artísticas é o Salon des Refusés, em que participam jovens artistas como Cézzane,

que é formado em sua maioria por rejeitados do Salon de Paris por não expressarem os

valores dominantes das artes da época. Desta forma é possível observar que as vanguardas

nascem como elementos contestadores, que saem das instituições oficiais e se formam a

margem de todo o sistema artístico do institucional. Porém, Coloca FERRY (1994, pg. 269)

que vários desses movimentos, começam a ser assimilados pelo Estado e por institutos

oficiais e o que se entendia como uma arte originalmente contestatória no final surge como

uma propaganda do estado capitalista.

O ponto que talvez haja maior discordância em relação ao sentido do que era ser uma

vanguarda artística é a questão do teor coletivo ou individualista desses movimentos. FERRY


12
No capítulo 2 há uma breve discussão a respeito do homem e da influência do período em que vive na sua
constituição social.
25

(1996) propõe uma análise que contraria todos os estudos de até então no que se refere a este

sentido da vanguarda. Ele propõe uma interpretação da vanguarda a partir do individualismo.

Para ele, as vanguardas artísticas quando surgem quebram vários paradigmas da sociedade

capitalista e apesar de levarem uma vida completamente diferente da burguesia, a vida boêmia

em contraste com a vida de filisteu, elas não conseguem romper um dos principais elementos

da sociedade capitalista: o individualismo burguês moderno.

Ora, assim como SUBIRATS (1986, pg.47), que caracteriza a vanguarda oscilando

entre os elementos individualistas e coletivos, por toda a análise empreendida até aqui, não se

pode descartar que a vanguarda seja fortemente marcada pela presença de um caráter coletivo

bem demarcado. Apesar dos constantes conflitos de ideias dentro desses movimentos e dos

rachas causados por estes, as vanguardas13 ao tentar romper com uma ideia de arte

individualizada propondo a criação coletiva de obras de arte 14e pela dinâmica de constituição

desses grupos (como a questão das revistas, que por serem criações coletivas demonstram

toda a variedade existentes nesses grupos).

1.3 – A totalidade e a determinação fundamental como elementos


conceituais para a compreensão histórica.
A totalidade e a determinação fundamental são dois elementos conceituais do

materialismo histórico-dialético que serão utilizados como forma de proporcionar a

compreensão da realidade.

A questão da totalidade terá um papel essencial para o estudo do período aqui

analisado. O desenvolvimento da ciência burguesa moderna produziu uma ciência em que a

separação está no cerne do seu método, e desta forma ocasionou o surgimento de ciências

específicas que cada uma em seu núcleo pretende entender de certo modo a sociedade, só que
13
Os dadaístas foram os primeiros a propor esta técnica.
14
Não cabe aqui o julgamento se essas ideias foram praticadas ou não.
26

a partir do momento em que estas se fecham em seus “mundos” não relacionando todos os

aspectos da sociedade (como o histórico, social, cultural, psicanalítico, entre outros) acabam

muitas vezes fazendo uma mera descrição do tema abordado ou meras análises superficiais,

não conseguindo adentrar no ponto central do problema. A categoria de totalidade,

desenvolvida por Marx, vem justamente superar essa separação imposta pela ciência moderna.

Isso ocorre porque, segundo Viana, pode-se definir totalidade como:

“ ...o que abarca o todo. Abarcar o todo de um ser é perceber a sua totalidade.
Acontece que dentro de um ser (compreendido como totalidade) pode estar
incluído outro ser e assim sucessivamente. Esse segundo ser pode ser uma
totalidade? Não, pois para abarcar o seu todo teria que ser incluído o primeiro
ser a ser citado.

A totalidade para o materialismo histórico-dialético é a


sociedade....O que caracteriza a concepção marxista da totalidade é a ideia de
que entre as partes que compõe o todo existe uma relação necessária e que o
resultado desta relação entre as partes é a totalidade” (VIANA, 2007, pg.
106)

A perspectiva da totalidade também nos será útil para a análise dos textos da IS,

principalmente a obra de Guy Debord A Sociedade do Espetáculo, na medida em que retoma

o aspecto da totalidade a partir de Marx como forma de superar a separação intensificada na

sociedade espetacular.

As ciências sociais e a história constituíram suas pesquisas baseadas no método

importado das ciências naturais da causa e consequência. VIANA (2001) aponta as falhas

desse método uma vez que

A ideia de causalidade (ou ‘principio de causalidade’) segundo a qual ‘todo


efeito tem uma causa’ aponta para a relação entre dois seres e mesmo nas
concepções onde há ‘multiplicidade de causas’ ou ‘diversas possibilidades de
efeito’ acabam criando um isolamento fantástico do fenômeno a ser analisado
e assim a análise fica aquém da realidade. (Viana, 2001, pg.60 e 61).
27

Assim como o contraponto da totalidade, utilizaremos aqui o princípio da

determinação fundamental que é extraído da obra de Marx, como um elemento de superação

dessa lógica burguesa de entendimento da realidade. Para Marx, o modo de produção é o

elemento fundamental para compreender a sociedade, e ele que proporciona a determinação

fundamental do conjunto das relações sociais, como coloca Viana. No entanto, o concreto –

que é uma totalidade, embora podendo estar incluído em outra mais ampla – é síntese de

múltiplas determinações e assim há a determinação fundamental, mas existem as demais

determinações. Neste contexto, a reconstituição do concreto no pensamento é a reconstituição

dele como síntese de múltiplas determinações e da determinação fundamental, chave para

compreender os fenômenos sociais.


CAPÍTULO II – O HOMEM COMO MEDIDA DO SEU TEMPO

O título é uma alusão a proposta que será desenvolvida neste capítulo. É comum ver

em biografias, em estudos de determinados movimentos e grupos a tese de que estes se

situavam a frente do seu tempo, ideia inclusive que foi assimilada pelas vanguardas artísticas

durante todo o seu período de existência. Aqui será demonstrado justamente o contrário, que

estes grupos na verdade assimilam as principais demandas de seu período, se portando como

verdadeiros detentores da realidade em que vivem.

A análise do processo histórico se constitui como ponto fundamental para descobrir as

determinações que levaram a formação da IS e seus posteriores posicionamentos sobre a

sociedade capitalista. A sociedade europeia do período pós-2ª Guerra mundial se encontra

destruída e em uma situação complexa. De um lado a União Soviética (URSS) consegue

anexar e estender a sua influência dos países do leste europeu até a Alemanha e a Europa

Central encontrava-se destruída e sem capacidade própria para se re-erguer.

Neste momento com medo de que toda a Europa sucumbisse ao domínio da URSS, é

que os Estados Unidos desenvolveram o Programa de Recuperação Europeia, conhecido

como Plano Marshall (que tem início em 1947/48 e se desenvolve até 1952, e resultou num

total de 13 bilhões de dólares em empréstimo a Europa). Este tinha o intuito de ao emprestar

dinheiro para a recuperação dos países europeus estes se ligassem à órbita capitalista, livrando

o resto da Europa de vez do perigo do Capitalismo Estatal Soviético (apesar deste ter sido

convidado a participar, Stálin negou a ajuda), além de beneficiar o capital norte-americano

com a exportação de bens e produtos para a Europa.

Pelos próximos vinte anos a Europa passará por um período de crescimento e

prosperidade em que o Estado de bem estar social dominará o continente. Apesar do

crescimento da URSS, os Partidos Comunistas não conseguem atrair os jovens, uma vez que,
29

especialmente os PCs (como podemos observar na França) encontram-se totalmente atrelados

a URSS e à sua política autoritária e dogmática, como se verá mais adiante quando for

discutido o papel da Hungria e da sua revolução em 1956.

Será neste contexto que a partir da década de 1950 começará a se reerguer na Europa

uma outra esquerda, que irá contestar os rumos que o capitalismo estatal soviético tomou com

a burocratização do estado e o totalitarismo empreendido por Stálin, além de não ter se

constituído como uma verdadeira alternativa ao capitalismo tendo se tornado na verdade mais

uma outra forma deste dominado totalmente pelo Estado Bolchevique, denominada de

Eurocomunismo.

Os próximos dois tópicos abordarão duas características das décadas de 1950 e 1960 e

que devem ser analisadas para se pensar a emergência da IS e também a sua mudança de

pensamento e relação a orientação do grupo. O primeiro se refere a questão da dita

desestalinização ocorrida na URSS a partir de 1956 através do XX Congresso do Partido

Comunista, em que Kruschev denuncia os crimes de Stálin e o culto a sua personalidade e a

sua relação com a Revolução Húngara de 1956. O segundo é sobre a especificidade da

sociedade francesa levando em consideração principalmente o período posterior a Segunda

Guerra Mundial e os seus desdobramentos históricos.

2.1 - 1956 - O paradoxo entre liberdade e autoritarismo: o XX Congresso do


Partido Comunista da União Soviética e a Revolução Húngara.
1956 é um ano emblemático para os PC's e para os movimentos operários de todo o

mundo, pois ocorrem dois fatos que marcaram uma esperança de renovação nos quadros do

dito "socialismo soviético"1. O primeiro é o XX Congresso do Partido Comunista da União

1Coloca-se entre aspas o termo socialismo soviético aqui por entender que o que se constitui na URSS não foi
Socialismo, mas sim Capitalismo de Estado, uma vez que as principais características deste não foram abolidas
naquele Estado, como por exemplo a produção de mais valia e a aplicação do modelo de produção no primeiro
momento taylorista e posteriormente stakhnovista nas fábricas.
30

Soviética, em que o então Secretário-Geral do partido, Nikita Kruschev, através do discurso

feito a portas fechadas somente para os delegados, denunciou os crimes de Stálin e iniciou o

processo conhecido como desestalinização. O outro é a Revolução Húngara de 1956 que

esboçou um processo social no qual os operários e camponeses, através dos conselhos,

pudessem decidir o seu próprio destino.

Para se entender o processo de desestalinização que é ocorrido no XX Congresso, é

necessário voltar a Revolução Russa e compreender a dinâmica da tomada de poder dos

bolcheviques em cima dos sovietes em 1917.

Os sovietes se constituem enquanto prática operário-revolucionária pela primeira vez

em 1905 na Rússia, quando explode a insatisfação popular contra a Guerra e as condições de

vida do povo e esta acaba se transformando em uma revolução. Deste momento em diante, os

sovietes, apesar de toda a repressão desencadeada pelo Czar Nicolau II, se tornam o principal

elemento de organização da classe operária e surgem como uma verdadeira alternativa aos

sindicatos, que neste momento não representam verdadeiramente a classe.

Os sovietes ressurgem com toda a força a partir de 1917, quando as condições de vida

da população caem drasticamente devido a Primeira Guerra Mundial, o número de mortes de

soldados russos atinge números alarmantes e a população começa a se questionar qual o real

sentido de se permanecer em uma guerra que naquela atual conjuntura não traz nenhum

grande perigo ao território e tinha vislumbrado o seu real sentido desde o início, era uma

guerra imperialista. Através de várias manobras, como a convocação da Duma, o Czar tenta se

manter no poder, mas já era tarde, o golpe de misericórdia no Império Russo já tinha ocorrido.

É aqui que os sovietes ressurgem com toda a força e se colocam como a verdadeira vanguarda

do movimento, não é por acaso que Lênin ao retornar do exílio lança a palavra de ordem:

Todo o poder aos sovietes!


31

Mas na verdade o que se observa é que quando o Partido Comunista começa a

participar da Revolução, um dos seus primeiros objetivos como coloca Brinton (1975) é

conseguir dominar os sovietes e para isso eles criam um aparelho estatal separado dos

trabalhadores que logo consegue distanciar a massa das decisões. Para o autor, este foi o

último grande obstáculo que os bolcheviques tiveram que enfrentar para conseguir se

apossarem de vez do poder na Rússia.

Muito se fala que o processo de culto a imagem e a repressão contra a oposição

considerada contra-revolucionária, mas que na verdade eram operários e camponeses que

defendiam a autonomia dos sovietes em relação ao partido, começou com a subida de Stálin

ao governo, mas se pode observar que desde a guerra civil, o exército vermelho comandado

por Trotski foi responsável por massacrar levantes populares que apoiaram na guerra contra

os brancos, como no caso do exército negro de Makno e dos soldados rebelados de Kronstadt

que tinham toda uma extensa pauta de reivindicações em que a principal era a volta dos

sovietes livres.

Porém, o período stalinista aprofunda esse processo de expurgos, a ponto de que

dos 1906 delegados ao XVII Congresso do PCUS, realizado em 1934, 1 108


foram presos e acusados de crimes contra a revolução; e dos 70% dos
membros e candidatos eleitos para o Comitê Central, nesse Congresso, foram
presos e fuzilados, a maior parte entre 1937 e 1938...cálculos feitos pelo
KGB, na época de Krutchev, que estabelecem, para o período de 1930-53,
um total de 3 777 380 pessoas, acusadas de «crimes contra-revolucionários»,
e o número de sentenças de morte de cerca de 700 000 – correspondendo na
sua maioria às purgas de 1937-1938. " (Brito, 2006).

Esses números apresentados por Brito (2006) demonstram o quanto a oposição e

qualquer pessoa que desafiasse a uma ordem de Stálin fosse considerado um traidor, as suas

atitudes remetem e se assemelham muito aos czares da Rússia Imperial, sendo que nem estes
32

possuem o aparato repressor do governo stalinista. O culto a personalidade também atinge um

nível extremo, chegando ao fato de cidade, aeroportos, escolas e ruas levarem o seu nome,

além da construção de estátuas, exposição de fotos e monumentos em sua homenagem. A sua

morte em 1953 causa um vácuo de liderança, uma vez que o seu substituto Nikita Kruschev,

não possui a mesma "imponência" de seu antecessor. Desde que assume o governo, este já

vem tomando medidas que visavam diminuir a influência da memória do ex-governante sobre

o Estado, mas nada que pudesse ser considerado um elemento de ataque aberto a figura de

Stálin.

É com um governo relativamente tranquilo que o XX Congresso do PCUS é

convocado. Ele ocorre entre os 14 e 25 de fevereiro de 1956 e tem entre os seus integrantes

representantes de 55 PC's de todo o mundo, inclusive do Brasil. O congresso transcorre de

maneira normal, sendo que durante alguns pronunciamentos são dirigidas algumas pequenas

críticas a Stálin, mas nada que pudesse deixar transparecer o processo que estava sendo

colocado em curso. No último dia, uma sessão extra é convocada e o então secretário-geral do

PCUS, lê a portas fechadas um relatório em que denuncia os erros e deturpações de Stálin a

frente do governo da URSS. Este relatório caiu como uma bomba no plenário, uma vez que os

delegados não esperavam uma atitude dessa. O discurso foi marcado por denunciar o culto a

personalidade, os expurgos e assassinatos de membros do partido, a coletivização forçada da

terra que gerou ondas de fome e milhares de morte, sendo que até o testamento de Lênin foi

citado, no qual ele critica a personalidade de Stálin e adverte os membros do partido para

tomarem cuidado com ele. O outro ponto abordado foi a relação da URSS com o mundo

capitalista, que para o atual secretário-geral, esta deveria ser reestabelecida e ambos

conviverem em uma coexistência pacífica, cada um respeitando a área de influência do outro.

Esse processo ficou conhecido como desestalinização, e posteriormente ao congresso foram


33

tomadas uma série de medidas que visavam apagar as influências da era stalinista na União

Soviética, da qual se pode destacar três fatos: a libertação de milhares de presos de campos de

trabalhos forçados; a mudança de nome da cidade de Stalingrado, considerada o símbolo da

resistência russa a invasão alemã na Segunda Guerra Mundial, para Volgogrado; e a última e

que traz uma questão muito representativa, que é a retirada do corpo de Stálin do Mausoléu da

Praça Vermelha e o seu enterro.

Para Segrillo (2006), a insurreição húngara ocorre como consequência do processo de

desestalinização empreendido por Kruschev, uma vez que na Hungria Rákosi é obrigado a

anunciar que várias mortes de membros do PTH acusados de traição ao "socialismo" eram

falsas e que na verdade foram realizadas com o intuito de acabar com a oposição. Essas

declarações o fazem deixar o poder que em pouco tempo é assumido por Imre Nagy, político

moderado afeito as ideias lançadas no XX Congresso.

A Hungria só se consolida como Estado Nacional independente a partir de 1918 com

o fim da Primeira Guerra Mundial e a dissolução do Império Austro-Húngaro. Em 1919 ela

vive a sua primeira experiência revolucionária, na tentativa de implementação de uma

sociedade comunista apoiado por Moscou, porém com características próprias, tendo no

comando Bela Kun, mas que devido a problemas na coletivização da terra, que desagradou

parte dos camponeses2 e a contra-ofensiva que atingia naquele momento também a Rússia3, o

governo de Kun, dura pouco tempo, sendo que o exército interventor coloca no governo do

país o almirante Miklós Horthy que governa durante 20 anos a Hungria. Na década de 1930

esta sela uma aliança com a Alemanha hitlerista e participa da Segunda Guerra Mundial ao

2 Os camponeses constituem neste momento na Hungria aproximadamente de 50% da mão de obra produtiva.
(LEFORT, 1987, pg.153).

3 Que prometeu enviar ajuda militar ao país húngaro para o combate as tropas contra-revolucionárias, mas no
enanto não cumpriu a promessa.
34

seu lado. A sua derrota é decretada pela invasão do exército russo4, assim como em todos os

outros países do leste europeu, que vem provocar o caos em uma sociedade desestruturada

que não consegue ditar os rumos do país que a partir deste momento passa a ser orientado por

Moscou.

É na função de um exército invasor, que a URSS organiza o novo governo húngaro,

através das eleições gerais multipartidárias em novembro de 1945, em que consegue menos de

20% dos votos sendo que a grande vitória fica para o Partido dos Pequenos Proprietários

Rurais que representa a grande massa camponesa húngara (SZABO, 2006, pg. 14). No

entanto, os soviéticos não aceitam a derrota e forçam um governo de coalização nacional, em

que ele ficaria com o Ministério do Interior, que detinha o controle da polícia e desta forma o

aparato repressor do Estado. Mas a farsa começa a desmoronar em março de 1947 com a

"declaração da Guerra Fria", através da Doutrina Trumann, uma vez que não é necessário

mais manter as aparências de um regime democrático. O Partido Comunista Húngaro passa a

perseguir, prender e deportar os principais dirigentes do Partido os Pequenos Proprietários

Rurais e de outros partidos minoritários que formavam a coalização, como o Partido Social-

Democrata. Muitos desses líderes viajam ao exterior e por pressão do PCH não retornam,

como o primeiro-ministro Ferenc Nagy, abrindo de vez o caminho para a chegada definitiva

do PCH ao poder. O golpe de misericórdia foi a fusão do Partido Comunista com o Partido

Social-Democrata, que em última instância resultou na eliminação deste, e criou-se o Partido

dos Trabalhadores da Hungria (PTH) que se declarava marxista-leninista e tinha como

secretário-geral Mátyas Rákosi, destacado militante do PCH que teve uma sólida formação

4A invasão do exército russo em território húngaro foi um verdadeiro desastre, pois apesar de derrotarem a
Alemanha, foram responsáveis por uma série de atrocidades que rivalizam com a invasão alemã, como estupros
e assassinatos de apoiadores do antigo estado húngaro em massa, deportações para campos de trabalhos
forçados. (SZABO, 2006, 14).
35

política na URSS. É interessante observar a justificativa do PTH para o golpe de Estado que

foi dado na Hungria, como demonstra Szabo (2006), para eles

a nação húngara deveria aceitar um sistema político "superior" em nome do


progresso e de um futuro melhor, pois o que interessava não era o regime
democrático, mas seu conteúdo, que serviria aos interesses da classe operária,
interesses que só o Partido sabia reconhecer na sua totalidade. (SZABO,
2006, pg. 17)

Esse regime que foi concretizado na Hungria, não se diferencia em nada daquele que

estava instalado na URSS naquele momento, um sistema despótico, baseado em uma

repressão violenta (executada sobretudo pela Autoridade de Proteção do Estado, a polícia

política do regime de Rákosi) e por um culto a personalidade que em nada fica devendo ao de

Stálin, só que neste caso o grande líder é Mátyas Rákosi.

Foi necessário essa primeira contextualização, feita de maneira rápida e até mesmo

descritiva, para se entender o contexto que a Revolução Húngara de 1956 emergiu. Ela só

ocorre porque, contrariamente ao discurso do PTH, o governo que se instalou na Hungria em

nada foi feito para reconhecer os interesses dos operários e dos camponeses, mas sim os

interesses da URSS uma vez que a sua industrialização - baseada na indústria metalúrgica-

não levava em consideração as necessidades do país e do povo, mas sim o que foi ordenado

pela nova classe que ali se instalou, a burocracia, nos moldes do modelo capitalista de estado

russo, que inclusive se aproveitou de muitos elementos e técnicos do antigo regime do

Almirante Horthy para o seu governo, como oficiais do exército e gerentes de fábricas.

As interpretações sobre a insurreição húngara, em geral, caminham em três direções

duas que caminham paralela e se entrelaçam em alguns pontos e outra que caminha em um

sentido totalmente oposto àquelas. As duas primeiras vêem esse movimento como legítimo e
36

derivado da insatisfação popular contra o regime autoritário de Rákosi, mas se divergem

quando partem para a análise dos sujeitos desse movimento.

A primeira pode ser caracterizada como uma análise personalista, que coloca a figura

de Imre Nagy como o centro das principais ações e repercussões dos eventos de 1956

(levando em consideração as suas tentativas de mudança a frente do governo húngaro entre

1953 e 1955), mas sem desconsiderar totalmente o papel dos trabalhadores, apesar de colocá-

los em ações muitos pontuais e sobretudo de resistência e não de formulação da ação, papel

esse que é dado aos intelectuais húngaros que são destacados através do Círculo Petoefi. A

obra organizada por Szabo (2006) é uma das que defendem essa visão da insurreição.

Na segunda, o destaque é dado aos operários (a Hungria possui o segundo maior

contingente de operários dos países que formam a Cortina de Ferro, perdendo somente a

Checoslováquia), sobretudo pela sua ação revolucionária e de constituição dos conselhos

operários, que chegam em alguns lugares a se tornarem o único poder real frente ao exército

russo. Tragtenberg vê a revolução húngara como

realmente soviética enquanto entendida como o exercício do poder por


mediação de conselhos livremente eleitos pelos trabalhadores. Criou seus
órgãos revolucionários estruturados horizontalmente (conselhos operários),
comitês urbanos, conselhos de bairros e conselhos profissionais, Foi a
primeira revolução soviética anti-soviética dirigida contra a burocracia do PC
e do Estado. (TRAGTENBERG, 2008, pg. 66)

Na mesma linha, há Claude Lefort, enxerga nas reivindicações dos trabalhadores e na

formação dos conselhos operários um avanço em relação ao governo e ao Estado húngaro.

Para o autor, as reivindicações operárias superam e muito as de caráter burguês, sendo que o

próprio Nagy, na hora de tomar as decisões privilegia mais a burguesia do que os próprios

trabalhadores.
37

A terceira é última interpretação a respeito da Revolução Húngara é a "oficial" dada

pelo PCUS e que serviu de base para todas as análises e manifestações contrárias ao processo

que se desencadeava no país naquele momento e que no geral foram feitas pelos PC's

atrelados a URSS em todo o mundo, como no caso do Brasil em que o Comitê Central do

Partido Comunista (PCB) lança uma resolução pedindo aos trabalhadores, estudantes e

intelectuais que declarem seu apoio ao Estado Húngaro e ao PTH, pois o que na verdade

estava ocorrendo era

uma tentativa das forças reacionárias internas, apoiadas pelos imperialistas,


visando a derrubada do Poder popular e a liquidação das conquistas
socialistas dos trabalhadores. Seus objetivos eram a entrega das fábricas aos
capitalistas, a volta das terras dos camponeses para as mãos dos
latifundiários, a restauração dos privilégios feudais, a denúncia do Tratado de
Varsóvia e a mudança política externa da Hungria em favor do campo e do
imperialismo e da guerra. (COMITÊ CENTRAL In SZABO, 2006, 167).

É impressionante ver como o PCB lança mão de elementos totalmente contraditórios

com o que se passa na realidade húngara, como veremos mais adiante, somente para não ir

contra as decisões e deliberações do governo de Moscou. Até mesmo o governo de Kádár

(que vem substituir Imre Nagy em 1956 no cargo de Primeiro-Ministro) reconhece que as

reivindicações dos operários são coerentes e importante e não fruto de uma contra-revolução

fascista como prega esta interpretação. No entanto, há que se reconhecer que como toda

revolução, a húngara é um movimento plural, que há operários, intelectuais e burgueses, mas

que o papel desempenhado pelas classes reacionárias nesse processo, não chega nem perto do

papel de vanguarda que foi realizado pelos conselhos operários, mas mesmo assim, preferiu-

se dar evidências a aqueles aspectos reacionários pedidos pelos burgueses. Já as outras duas (a

personalista e a operária) creditam a revolução com uma face não para o estabelecimento de
38

uma democracia burguesa, mas sim meios mais eficientes para se debater e implementar

realmente o socialismo na Hungria.

Mas é necessário levar em consideração que por mais que as suas propostas fossem

consideradas ousadas, Imre Nagy, não avança em direção a estabelecer uma autonomia

operária, muito pelo contrário, quando ele se reestabelece no poder chama para formar um

governo de coalização multipartidário com membros do Partido dos Pequenos Proprietários

Rurais, mas não coloca lá nenhum operário representante dos conselhos que se formaram

naquele momento, ele os reconhece mas não como força política expressiva. Isso pode ser

explicado, através de sua formação política, de caráter a privilegiar a burocracia, ter sido

realizada toda dentro do PCH e ele compreender que o Partido é a expressão e a voz da classe

operária, definindo assim, as suas reformas pretendiam criar um socialismo mais humano e

nacional, sem contudo alterar as bases políticas já delineadas no país.

A insurreição húngara começa através de uma simples manifestação do Círculo

Petoefi, de intelectuais e estudantes, de apoio aos poloneses no dia 23 de outubro. Esta

primeiramente é proibida de ocorrer, sendo liberada de última hora e acaba reunindo um

número bem superior do que o PTH esperava (acreditava-se que a manobra esvaziaria a

manifestação), mas ela ocorre de maneira pacífica. Mas a declaração de um membro do

governo é o estopim para uma série de manifestação que levam o povo às ruas e a tentativa de

invasão de uma rádio leva a morte de alguns manifestantes e a chamada de Nagy para compor

o governo novamente. No entanto, este não consegue dar vazão às propostas feitas pelos

operários. Já no dia seguinte começam a se organizar em conselhos, sendo que o da fábrica

Csepel de Budapeste é o primeiro a ser formado e os trabalhadores desta, estão a frente do

movimento de resistência na capital, em que a convocação de uma greve geral - contra a

violência empreendida pelo governo - leva a paralisação da produção no país por alguns dias.
39

É preciso notar que apesar de ter se constituído primeiramente em Budapeste, os conselhos

operários irão se destacar de forma mais ativa nas províncias.

Nestes treze dias de insurreição os conselhos se tornam os principais elementos de luta

nas provínciais de Miskolc, Györ, Szeged e Pecs. Nestes lugares os conselhos eram

responsáveis não somente por controlar a produção nas fábricas, mas também por armar os

combatentes que lutavam contra as tropas russas, organizavam o abastecimento e

apresentavam reivindicações políticas e econômicas. Apesar de algumas propostas divergirem

entre si, em geral elas pediam: a substituição das autoridades locais stalinistas, a aplicação da

autogestão operária, a partida das tropas russas, direito de greve e a anistia ao insurretos.

Para Lefort (1987) a Hungria teve a chance de se constituir durante a primeira semana

da revolução como uma República dos conselhos, devido ao grau de autonomia e controle que

estes fizeram, sendo que nem mesmo o governo central se colocou como um poder capaz de

enfrentá-los, somente o exército russo tinha essa capacidade. Para ele, a maturidade dos

conselhos é demonstrada nas suas reivindicações que não fazem a separação entre os aspectos

econômicos e políticos.

Os sindicatos húngaros, assim como os conselhos operários, lançam uma resolução em

que pedem uma série de exigências do novo governo de Imre Nagy, no entanto as suas

propostas, devido até mesmo a questão dos sindicatos serem vinculados organicamente ao

PTH, não avançam mais do que a dos conselhos, sendo que algumas até mesmo entram em

contradição, uma vez que quando os conselhos pedem uma autogestão operária nas fábricas,

os sindicatos pedem a instauração de uma direção operária que iria conduzir as fábricas.

Nagy não consegue conter o clamor dos operários e a perseguição de Rákosi ao seu

governo. Vendo que o atual governo húngaro seria incapaz de por fim às pressões populares,
40

a URSS reinvidica o Pacto de Varsóvia como meio de salvar o "socialismo" na Hungria e em

4 de novembro com a ajuda de mais de mil tanques e aviões, Budapeste e outras províncias

(como Miskolc) em que os conselhos operários detinham o poder foram bombardeadas. As

milícias armadas pelos conselhos foram incapazes de conter a nova leva de tanques e tropas

russas que entraram em território húngaro. Segundo Segrillo (2006) foram mais de 20.000

pessoas mortas na invasão soviética e outras tantas presas, deportadas e uma infinidade de

pessoas que deixam a Hungria por causam da repressão.

Janos Kádár assume o governo no lugar de Imre Nagy que é preso e depois executado.

Com a impossibilidade de governar sem o apoio dos conselhos operários, Kádár reconhece a

sua autoridade e legitimidade, mas não integralmente e aos poucos vai reduzindo seus poderes

nas decisões das fábricas até que em novembro de 1957, o governo considera os governos

finalmente dissolvidos.

A repressão desencadeada pela URSS contra a Hungria demonstra que o processo de

desestalinização não consegue atingir plenamente os seus efeitos e que este se mostra mais

como um projeto pessoal de Kruschev do que do PCUS, além do que, não seria uma reforma

que tentava apagar uns erros cometidos por um dos seus representantes que iria mudar o

sistema, porque na verdade, o problema não estava no governante mas sim na essência do

sistema. Além disso, a invasão foi responsável pelo primeiro grande racha nos PC's após a

Segunda Guerra Mundial que ocasiona a saída de quadros importantes de dentro dos partidos,

como no caso do PCF em que Henri Lefebvre rompe por não aceitar o posicionamento do

partido em relação a URSS.

O último ponto a ser discutido são as novas forças que emergem deste processo

revolucionário, em especial uma, que na década de 1960 será a responsável por um dos

maiores movimentos de contestação do pós-segunda guerra mundial. A juventude (composta


41

de jovens operários e estudantes) é essa nova força que durante a revolução se constitui como

uma camada que tem reivindicações próprias e chega a formar durante esse processo uma

federação que é o instrumento através do qual as suas exigências são transmitidas. Em

Budapeste ela é, juntamente com o operariado, a principal força revolucionária que organiza a

resistência.

2.2 - A especificidade da Sociedade Francesa como elemento de


compreensão do processo de transição na Internacional Situacionista
O objetivo deste tópico é perceber como pontos específicos da sociedade francesa em

relação aos demais influenciaram a IS, sobretudo a seção francesa. É notório que a França

durante toda a sua história produziu sistemas de pensamentos (como o Iluminismo),

Revoluções (como a Francesa) e modelos de conduta social e cultural (como no período que

ficou conhecido como Belle Époque) que foram exportados para vários lugares do mundo,

uma vez que o próprio conceito francês de cultura está intimamente associado ao conceito de

civilização.

Aqui cabe ressaltar a especificidade francesa, sobretudo, a partir do período pós-

Segunda Mundial, não perdendo o foco, no entanto nos acontecimentos que são importantes

para esta constituição, mas que não estão localizados neste período histórico delimitado, como

é o caso das vanguardas artísticas que se destacam na França, sobretudo o dadaísmo e o

surrealismo5. A colaboração francesa com a Alemanha nazista, através do governo de Vichy,

foi responsável por criar no país uma rede de resistência que terá após o final da guerra uma

influência muito forte sobre o controle do governo, podendo destacar o fato que o líder da

resistência no exterior, o General Charles De Gaulle, foi o que conduziu o governo provisório

no pós-guerra, permanecendo no cargo somente até janeiro de 1946, uma vez que problemas

com a Assembleia Constituinte o faz renunciar ao cargo, desta forma abrindo espaço para o

5 Não cabe aqui uma volta ao tema uma vez que já foi abordada no capítulo I e será retomada no III.
42

que ficaria conhecido como a Quarta República Francesa (1947 - 1958), que terá durante toda

a sua existência governos ligados a social-democracia, mas De Gaulle continuará

representando uma figura forte na sociedade francesa.

A Quarta República é caracterizada por ter colocado a França, de volta, entre os

países mais destacados da Europa, isso se deu sobretudo ao processo de modernização da

sociedade, com a garantia dos direitos democráticos burgueses, isso tudo conseguido através

da injeção de dinheiro norte americano através do plano Marshall, que já foi discutido

anteriormente. Mas ela não conseguiu resolver o problema, comum aos países imperialistas

europeus, que marcou profundamente a Europa após a guerra, a questão da descolonização

dos países Afro-Asiáticos.

A guerra tinha enfraquecido esses países e consequentemente tinha aberto uma brecha

para que os países que se encontravam sobre a dominação imperialista começassem o

processo de luta, e muitas vezes até guerra aberta, contra as suas metrópoles. Os países do

Eixo foram os primeiros no pós-guerra a verem as suas colônias escaparem do seu controle.

Na França a questão da descolonização torna-se um grave problema político e social, pois

diferentemente de outros países europeus, uma parte considerável da população francesa se

engaja na luta pela independência das colônias.

A derrocada do Império Colonial Francês começa com a guerra da Indochina, em que

a resistência vietnamita comandados por Ho Chi Min, consegue através de uma guerra de

libertação nacional proclamar a independência frente a sua metrópole. Este fato, associado aos

fracassos da Quarta República em conseguir dar uma saída plausível para as reivindicações de

autonomia das colônias francesas faz com que os colonos e partidos da direita façam um

lobby para a volta de De Gaulle ao poder.


43

Sem dúvida de todas as colônias, a Argélia é que terá um papel fundamental para a

volta do general ao poder, para a instauração da Quinta República e para a formação daquilo

que ficou conhecido como Gaullismo. A Argélia é a principal colônia francesa do período e é

também a que possui a maior quantidade de residentes franceses, conhecidos como colonos,

cerca de um milhão de pessoas, segundo Ferro ( 2006). Esse grupo de colonos detém um

poder extremo sobre instituições políticas francesas, uma vez que ela comporta muitos

deputados, grandes latifundiários, generais do exército e entre outros grupos de relevância

dentro da França. São eles que através da crise causada pela Guerra Argelina de

independência - que tinha passado a usar métodos de guerrilha e ataques terroristas inspirados

no movimento de independência vietnamita e as forças francesas de segurança se utilizam da

tortura para tentar barrar o crescimento do movimento, causando indignação na população

francesa - em que o governo sugere começar uma negociação com os argelinos, tomam o

poder em Argel e forçam a entrada de Charles De Gaulle na presidência, sendo que este só

aceita se ocorrer uma nova reforma constitucional. Essa reforma ocorre e tem como principal

característica o fortalecimento da figura presidencial, deste modo está criada a Quinta

República Francesa (que é a que vigora até os dias de hoje na França, apesar de algumas

reformas constitucionais que o Estado sofreu).

Acreditava-se que De Gaulle, por suas ideias e por ter ascendido ao cargo com apoio

dos colonos, faria de tudo para manter o status da Argélia como colônia, impedindo assim a

dissolução do Império francês. Mas Ferro (2006) demonstra que, contrariamente ao esperado,

o presidente começa uma série de negociações com os insurretos, se afasta da extrema-direita

colona e inclusive começa a combatê-la e começa a construir um processo de descolonização

que resultará na independência da Argélia em 1962.


44

Charles De Gaulle ao assumir a presidência francesa em 1958 imprime a ela

características pessoais de seus ideais políticos que a partir daquele momento irão criar um

novo modelo político, que influenciará todo a vida política francesa posterior. Esse regime

ficou conhecido como Gaullismo e é caracterizado por Wallerstein (2007) por se apoiar em

três bases principais: "uma afirmação do direito da França a ter um papel fundamental,

independente, na política mundial; dirigisme, uma espécie de política econômica keynesiana

com um papel principal do Estado francês; e anticomunismo interno." Além dessas

características enunciadas por Wallerstein é possível vislumbrar outras que são preceitos do

gaullismo, como a centralização do Estado na figura de uma pessoa, sendo esta entendida

muitas vezes como a detentora da possibilidade de mudança. É somente deste modo de

governar de De Gaulle, autoritário, mas com ares democráticos, que é possível compreender a

sua atitude de fechar o Congresso, devido aos eventos estudantis e operários ocorridos em

maio e junho de 1968, convocar novas eleições gerais, além de ter conversações para uma

intervenção militar caso os eventos não ocorressem como o esperado e não ser taxado de

ditatorial.

Lefebvre (1991) realiza uma série de estudos, em que o seu principal exemplo é a

sociedade francesa, mas que a sua teoria não se baseia especificamente nela, é na verdade uma

leitura global das distinções da sociedade capitalista daquele período. Para isto, ele cria o

conceito de sociedade burocrática de consumo dirigido, que ele define como sendo a sua

proposta aqui para ... sociedade. Marcam-se assim tanto o caráter racional
dessa sociedade, como também os limites dessa racionalidade (burocrática), o
objeto que ela organiza (o consumo no lugar da produção) e o plano para o
qual dirige seu esforço a fim de se sentar sobre: o cotidiano. (LEFEBVRE,
1991, pg. 68)
45

A sociedade conceituada por Lefebvre é aquela que o consumo se tornou o ponto alto

do capitalismo e não a produção. Nesta sociedade, há a ilusão do ser humano se sentir livre,

como se fosse o responsável pelas suas escolhas, como se tivesse o controle total sobre a sua

vida, mas que na verdade isso só ocorre quando ele está efetivamente consumindo, pois

quando ele não detém esse poder, ele permanece a margem dessa sociedade. O tema do

consumo e do cotidiano são elementos que também são estudados pela IS que durante um

certo tempo irá ter um diálogo bem profícuo com este intelectual.

Uma característica particular que podemos observar no pós-segunda guerra mundial é

o crescimento da juventude na Europa. Este conflito foi, em termos de mortos, o maior da

história da Humanidade, sendo que em seis anos morreram cerca de 50 milhões de pessoas, a

sua maior parte, pertencentes ao continente europeu e mais ainda, na sua maioria jovens,

fazendo com que a Europa se tornasse nesse período uma terra de velhos e crianças. A partir

do final da década de 1950, a juventude começa a se tornar numericamente grande na Europa,

fato que foi denominado de baby boom devido as altas taxas de nascimento neste momento na

Europa, sendo que as estruturas sociais - como universidades, mercado de trabalho e a própria

questão cultural - de então não são capazes de receber todo esse novo grupo que desponta

neste cenário.

Para tentar sanar esses problemas, na França ocorre no início da década de 1960 uma

reforma nas universidades que visava poder receber todo esse novo contingente jovem que

estava batendo a porta das Universidades. É dessa reforma que a Universidade de Paris é

desmembrada e são criadas outras, como a Universidade de Nanterre palco das manifestações

que resultaram no Maio de 1968.

O capitalismo também se adapta a essa nova realidade e procura criar um nicho

específico de consumo para eles. É notável nos anos 1960 a ascensão do rock como um
46

fenômeno juvenil, tendo nos Beatles a sua maior expressão. Não é somente na música que isto

ocorre, mas também na moda , nos meios de comunicação (vide a criação da revista Rolling

Stones) e em todos os meios da sociedade (no Estado, na educação entre outros), sendo que

ocorre até a criação de um termo especifico para demarcar essa nova virada da juventude,

denominada contracultura.
CAPÍTULO III - A INTERNACIONAL SITUACIONISTA E O
DEBATE ACERCA DA PROBLEMÁTICA DA ARTE
ENQUANTO MEIO REVOLUCIONÁRIO

O surgimento de grupos no pós-Segunda Guerra Mundial que se reivindicavam

enquanto vanguardas artísticas é problemático e contraditório, uma vez que se não encontra

um nexo histórico e artístico que se possa sustentar tal alegação. Esses grupos nada mais

fazem do que repetir as teses que as vanguardas da primeira metade do século produzem e não

avançam em nenhum outro ponto. É neste contexto, que a Internacional Situacionista irá

surgir, da fusão de três grupos dessa época que se declaravam herdeiros dos vanguardistas e

que pretendem continuar o projeto artístico desenvolvidos por eles.

A sua estrutura baseia-se nos moldes das antigas vanguardas, inclusive a forma de

organização, uma vez que ela se afirma enquanto um grupo internacionalista composto de

sessões em vários países. Durante os 15 anos da sua existência, a IS tem seções em 9 países 1,

sendo a francesa a que irá possuir um maior número de membros durante a existência do

movimento. A maior quantidade de membros da sessão francesa, vai permiti-la ter uma maior

expressividade, neste primeiro momento, mas que no decorrer dos anos fará com que ela

possa ter um maior peso nas decisões do grupo. Esse caráter é afirmado no primeiro número

da revista2, quando Debord esboçando as teses sobre a revolução cultural afirma que "uma

associação internacional de situacionistas pode ser considerada como uma união de um setor

avançado da cultura3....uma tentativa de organização de revolucionários profissionais da

cultura" (DEBORD in JACQUES, 2006, 72). A afirmação demonstra claramente como era

visto o papel da cultura e dos artistas, neste momento na IS, sendo encarados ainda como

revolucionários, como se a arte fosse realmente o elemento revolucionário da sociedade.

1 São elas: argelina, alemã, americana, inglesa, belga, francesa, holandesa, italiana e escandinava.
2 Quando for referido a revista do movimento, considere-se a Internationale Situationniste.
3 Grifo feito por nós, para demonstrar como é colocada a visão de uma cultura superior neste período pela IS.
48

A IS se torna uma continuação dos laboratórios sobre a cidade e sobre artes que

vinham sendo realizados nos grupos que lhe deram origem. Apesar dos situacionistas

desenvolverem nesse período obras que podem ser consideradas como arte, eles não

consideram como tal, uma vez que compreendem que o processo de criação artístico nesta

sociedade, a capitalista, se realiza de maneira alienada, então desta forma resta pegar esses

objetos e ressignificarem seus objetivos. Isso fica bem claro com a afirmação:

“É impossível existir, uma pintura ou uma música situacionista. O que pode


ocorrer é uma utilização situacionista destes meios. Numa acepção mais
básica, o deutournement no interior das antigas esferas culturais constitui, um
método de propaganda, testemunhando o desgaste e a perda de importância
dessas esferas”. (INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 2002, p. 16).

Para compreender esta posição assumida pela IS, será realizado num primeiro

momento uma breve discussão dos principais conceitos e teses para compreendermos os seus

posteriores desdobramentos e as consequências que estas teses assumiram no grupo. Desta

forma será realizada uma abordagem das técnicas e teorias a respeito das artes e das cidades,

como o Détournement (desvio), Urbanismo Unitário, a Teoria da Deriva e a Psicogeografia.

O método conhecido como Détournement (nome dado pelo letrista Isidore Isou) foi

uma das principais formas que os situacionistas utilizaram na forma de subverter as artes e a

linguagem e lhes darem um novo sentido revolucionário. Esse método já empregado

anteriormente pelos surrealistas (conhecido por estes, como colagem) consistia em utilizar

textos, quadros, filmes ou qualquer criação artística e fazer com que este se voltasse para a

sua própria crítica (técnica muito usada pelos situacionistas em suas revistas com a utilização

dos HQ’s e posteriormente o emprego dessa técnica por parte de Debord em suas obras A

Sociedade do Espetáculo – o livro e o filme), esta técnica pode ser observada nesse fragmento

de HQ de André Bertrand com texto de Raoul Vaneigem de 1967.


49

Figura III - HQ de André Bertran com texto de Raul Vaneigem, Paris, 1967.

A crítica à cultura, tão recorrente nos dois períodos da IS, tem um ponto central nessa

HQ, em que fica clara a posição contrária à instituição dos bens culturais e contra aqueles que

se consideram radicais e na verdade se tornam apenas outra vertente de consumidores.

Neste período (até 1962) também a IS fará uma grande contribuição aos estudos sobre

urbanismo e arquitetura, e sua importância na revolução a partir do cotidiano. Os

situacionistas compreendiam a cidade como um espaço fundamental para a construção de

novas situações. A análise do estudo situacionista sobre a cidade passa por três pontos

fundamentais. São eles: a Psicogeografia, o Urbanismo Unitário e a Teoria da Deriva.

A psicogeografia é definida como “o estudo das leis exatas e dos efeitos precisos do

meio geográfico, planejado conscientemente ou não, que agem diretamente sobre o

comportamento afetivo dos indivíduos” (DEBORD in JACQUES,1955: 39). Este é o único

procedimento que não se originará dos situacionistas, entretanto eles serão responsáveis pelo

seu desenvolvimento. Esta técnica está intimamente interligada com a Deriva (principal

procedimento situacionista) a qual consiste em andar apressadamente por vários lugares

deixando-se levar pelas paisagens e aspectos daquela determinada área com o intuito de
50

construção de um mapa particular da cidade quebrando a estrutura dominante da cidade sobre

o homem.

O Urbanismo Unitário se constitui como um elemento fundamental da crítica ao

urbanismo que é realizado nesse momento na Europa. Um dos seus principais pontos de

contestação é a separação moderna que as grandes cidades atingiram nesse momento em todo

o mundo.

Constant foi sem dúvida um dos membros da IS que mais a fundo levou os seus

estudos sobre a cidade. Considerado um urbanista utópico passou o tempo que esteve na IS

(os seus estudos sobre a cidade vem de antes) esboçando o que seria uma cidade situacionista,

mesmo depois de expulso continua a formulação de seu projeto, é na década de 1960 o lança

dando o nome de Nova Babilônia.

Os situacionistas fazem uma crítica feroz às novas arquiteturas, principalmente ao

funcionalismo de Le Coubusier, o qual proclamava uma arquitetura contra a revolução,

enquanto os situacionistas entendiam, nesse período, que este era um dos principais pontos

para que a revolução acontecesse. Para os situacionistas, as novas cidades e o rumo que as

antigas tomaram após a reconstrução da Segunda Guerra Mundial estavam privilegiando

somente os valores burgueses da vida (o conforto e o automóvel) e deixando de lado os seus

aspectos lúdicos e a impossibilidade de contato social entre as pessoas.

Paris é uma cidade em que esse aspecto pode ser observada, antes mesmo da criação

da Arquitetura Funcionalista. Depois dos movimentos de 1848 e 1871, esta começa a passar

por uma remodelação, comandada por Hausmann a pedido de Napoleão III, com a abertura de

avenidas largas, em detrimento das antigas vielas, com o objetivo de impedir as novas

barricadas e facilitar a repressão aos movimentos sociais. Apesar disso, em 1968, o bairro
51

parisiense do Quartier Latin, onde se encontra a Universidade Sorbonne – principal palco das

manifestações desse ano, com suas ruas de pedras vão ser totalmente remodeladas após as

manifestações, chegando ao calçamento das ruas de pedras históricas com objetivo de que

novas manifestações ali não pudessem encontrar novos meios de florescer.

Essas novas cidades serão um entrave às experiências situacionistas sobre a cidade,

uma vez que passaram a constituir um núcleo urbano extremamente organizado não

permitindo a Deriva nesses ambientes. Os bairros proletários serão a maior demonstração

desse tipo de organização com sua homogeneização. A visão da IS sobre esses acontecimentos

fica muito claro no texto de Raoul Vaneigem, Comentários contra o Urbanismo, em que ele

chega a declarar: “Se os nazistas tivessem conhecido os urbanistas contemporâneos, teriam

transformado os campos de concentração em conjuntos habitacionais” (VANEIGEM in

JACQUES, 1961:154), demonstrando claramente a mudança de paradigma que estava

ocorrendo no interior da IS nesse período.

Juntamente com os estudos sobre a cidade se desenvolve também a crítica da vida

cotidiana. Os situacionistas compreendem que uma revolução só será possível se esta ocorrer

a partir da vida cotidiana, uma vez que esta se tornou a representação máxima da sociedade

capitalista. Desta forma, eles compreendem que o cotidiano nesta sociedade se restringe ao

consumo, à sobrevivência, não deixando o ser humano livre para se desenvolver. É neste

ponto que os estudos sobre a cidade e o cotidiano na IS se casam, uma vez que não é possível

uma revolução total, como pretendiam os situacionistas, sem que esses pontos se casassem.

A análise da vida cotidiana se situa nesse momento como uma alternativa aos estudos

economicistas realizados pelos teóricos ditos marxistas, é neste ponto que se situa Henri

Lefebvre, sociólogo e teórico marxista francês, que será um nome que estará em permanente

contato com a IS até 1961, o único intelectual com que se correspondiam. Apesar disso e do
52

intenso contato e troca de teorias sobre o cotidiano e a cidade, a IS vai negar qualquer

influência do pensamento de Lefebrve nas suas teorias. A IS e Lefebvre desenvolvem

paralelamente estudos sobre o cotidiano, enquanto a IS trabalha com a construção de

situações, Lefebvre trabalha com a teoria dos momentos, em que chegam a conclusões

basicamente semelhantes sobre o papel do cotidiano, sendo que eles levam posteriormente

procuram levar a teoria para a práxis, como forma de superar essa dicotomia que eles tanto

criticavam.

Lefebvre foi importante pois, começa o seu estudo sobre o cotidiano com a publicação

do volume I da sua trilogia Critique de la vie quotidiennne realizado em 1946, e com volumes

posteriores em 1962 e 1981, ocorre a consolidação dos estudos da crítica da vida cotidiana

como forma de superação da sociedade capitalista. Em 1957 rompe com o PCF e intensifica

os seus estudos sobre o cotidiano. Porém a sua influência pode ser definida como anterior a

essa, como responsável pela tradução dos Manuscritos Econômicos e Filosóficos,

introduzindo assim na França a questão da alienação tão recorrente na IS pós-1962, quando se

trata da sociedade espetacular.

Contudo, a principal discussão que se dará dentro da IS nesse período será a respeito

do conceito de arte e de como ela deveria ser executada. Nesse momento a IS tem duas

posturas diferentes: a) a primeira representada pela seção francesa que conta com nomes

como Guy Debord e Michele Bernestein, que acreditava que a arte deveria ser abolida e

integrada à vida cotidiana como um meio de se processar a revolução através da participação

efetiva de todos os indivíduos; b) a segunda representada pela seção alemã, holandesa e mais

alguns integrantes como Asger Jorn, que acreditavam em uma realização coletiva da arte.

A primeira pautada, sobretudo, numa visão revolucionária que via a sociedade a partir

da luta de classes e que compreendia o processo artístico como burguês e que queria a
53

abolição da arte, juntamente com a destruição do capitalismo. Para essa tendência, a partir da

supressão da sociedade capitalista, e a implantação da sociedade comunista, o indivíduo seria

livre para desenvolver todas as suas habilidades e a arte se desenvolveria livre, e não como

uma especialidade causada pela divisão social do trabalho.

A segunda, pautada numa visão mais reformista, não previa a supressão da sociedade

capitalista e dessa forma compreendia que a arte deveria continuar existindo nos paramentos

da sociedade burguesa, ou seja, no bojo da divisão social do trabalho, mas defendia que ela

fosse feita de forma coletiva e não individualizada.

Até 1960, essas duas tendências conseguem conviver em sintonia. Esse será o período

em que a IS desenvolverá uma série de exposições artísticas e de intervenções urbanas.

Destaca-se aqui uma técnica de pintura conhecida como industrial, desenvolvida por Gallizio

e Malanotte, que consistia em pintar enormes rolos de tela e depois vender os seus pedaços.

Essa técnica servia tanto como uma crítica a forma mercadológica que a arte tinha tomado

com as galerias em que quadros eram vendidos a preços exorbitantes e também como uma

maneira de financiar a IS, uma vez que era preciso dinheiro para a manutenção da revista.

Esses rolos também serviam como processos de intervenção urbana, uma vez que esses não

eram expostos nas galerias, mas sim nas ruas e prédios das cidades.

A partir de 1959 esses desentendimentos começam a se mostrar mais acirrados

principalmente nas conferências4 realizadas com todas as facções. Entre 1960-61 ocorre a

expulsão de vários artistas como Gallizio e Melanotte e a retirada de Constant e a entrada de

outros membros como Raoul Vaneigem e Attila Kotanyi. Essa reconfiguração que ocorre na

IS nesse período vai ser de fundamental importância para compreender o posterior


4 As conferências realizadas pela IS, são reuniões em que se congregavam os membros das mais diversas
seções para discutir assuntos de interesse coletivo e muitas vezes para expulsar determinado membro do
coletivo, aliás, algo bem comum durante a história do movimento. Dos 72 integrantes que a IS teve durante
toda a sua existência, aproximadamente 43 foram expulsos do grupo.
54

posicionamento do grupo. Podemos compreender essas expulsões como uma maneira de tirar

da IS o seu caráter de vanguarda artística, já que ela se auto-intitulava e agia como tal até esse

momento. Observamos que todos os seus posteriores atos e textos seguem uma posição de

negação dessa tradição e de se afirmar como um grupo político.

É interessante observarmos a tentativa de negação de toda a antiga tradição da IS com

respeito ao estudo da cidade e aos seus projetos artísticos. Isso ocorre com o intuito de tentar

apagar o passado de uma vanguarda artística que o movimento declarava ser:

“O urbanismo não existe: não passa de uma ‘ideologia’, no sentido definido


por Marx. A arquitetura existe realmente tanto quanto a Coca-Cola: é uma
produção envolta em ideologia, mas real, satisfazendo falsamente uma
necessidade forjada; ao passo que o urbanismo é compatível ao alarido
publicitário em torno da Coca-Cola, pura ideologia espetacular. O
capitalismo moderno, organizado de modo a reduzir toda a vida social a
espetáculo, é incapaz de oferecer um espetáculo que não seja o de nossa
própria alienação. O seu sonho de urbanismo é sua obra-prima.” (KOTÁNYI
e VANEIGEM IN JACQUES, 1961, p. 139)

Esse processo de negação do seu passado de vanguarda artística é de extrema

importância para se compreender a transição que a ocorre dentro da IS. Isso ocorre pelas

novas posições tomadas em relação à interpretação da sociedade capitalista. A própria teoria

da criação de situações, que deu nome ao movimento, é relegada a um segundo plano uma vez

que essa nova orientação, não irá aceitar o papel que era destinado a arte na primeira fase do

grupo. No artigo Relatório sobre a construção de situações e sobre as condições de

organização e de ação da tendência situacionista internacionalista5 de Guy Debord, ele

expõe todas as falhas cometidas pelas vanguardas artísticas da primeira metade do século XX,

inclusive a principal falha de querer colocar a arte enquanto um projeto revolucionário, mas

então porque ela assume essa mesma postura? A resposta para essa pergunta tem que ser

5 Este texto foi apresentado na Conferência de fundação da Internacional Situacionista em Cosio D'Arroscia na
Itália em julho de 1957.
55

compreendida na medida em que a formação dos integrantes que formam a IS são artísticas e

que eles vislumbram que ao apontar as falhas cometidas por essas vanguardas, inclusive

criticando-as e tentando avançar nos pontos por elas não abordados, eles conseguiriam ir além

e realizar o projeto revolucionário pela arte, no entanto eles acabam caindo nos mesmos erros

dos seus antecessores.

Essa nova visão empreendida pelo grupo tem que ser analisada partindo de duas

vertentes. A primeira é a análise do predomínio que a seção francesa terá sobre o movimento e

o segundo é compreender as determinações do período histórico e como este influenciou as

mudanças no movimento.

É preciso lembrar que a França é o país que tem uma longa tradição dentro das artes

de vanguarda no século XX, vide dadaísmo e surrealismo, e que a partir das influências e

divisões dessa se formam vários outros grupos. A Internacional Letrista é um desses grupos

que herdam essa herança e que quando há a fusão dos grupos para a formação da IS, ele é o

que leva o maior número de participantes e também as principais ideias sobre arte e alguns

experimentos urbanísticos. A relação entre arte, sociedade e política na França, desde o século

XIX6, é muito próxima é isto que faz com que o debate sobre a arte na IS, mesmo no período,

seja politizado. Eles visualizam os erros das vanguardas, mas mesmo assim, permanecem no

erro, durante um tempo,de colocar a arte como o elemento capaz de realizar a revolução. É

através dos estudos que são realizados predominantemente pela seção francesa sobre a

questão do cotidiano7 que é possível começar a vislumbrar os primeiros avanços em relação a

compreensão da arte como "o" elemento revolucionário.

A IS não fica imune ao desenrolar do processo histórico do período de sua existência.

6 Como foi visto no capítulo I.


7 Os principais textos são: Introdução a uma crítica a geografia urbana e Perspectivas de modificações
conscientes na vida cotidiana de Guy Debord e A arte de viver para as novas gerações de Raoul Vaneigem.
56

Ao se analisar a principal revista do grupo8 pode-se perceber logo pelo título e pelo idioma, o

predomínio da seção francesa, sendo que o principal editor da revista será Guy Debord, que

fica no cargo durante todo o período que a revista será publicada. Através da análise dos

temas dos artigos da revista é possível perceber a mudança de enfoque do lado artístico-

político para o político-revolucionário do grupo. A partir do número 7 de abril de 1962, quase

todos os artigos que se referem à arte ou ao urbanismo se restringem praticamente a um por

número, sendo que em alguns eles não aparacem e quando aparecem eles são feitos a partir da

nova ótica do movimento. Uma prova disso é o texto Os situacionistas e as novas formas de

ação na política e na arte de René Vienet, publicado no nº11/1967, que demonstra que as

artes não saem totalmente do debate situacionista, somente ganham uma outra realidade, pois

agora elas não são os elementos responsáveis por processarem a revolução, mas se tornaram

mais um elemento entre tantos de crítica ao capital e a sociedade espetacular e a proposta aqui

não é a utilização da arte como a defendida anteriormente, mas sim elementos como HQ e

filmes que seriam deturnados9.

Home (2004), trabalha a sua análise da IS baseado na dicotomia entre duas

internacionais – o grupo artístico e o político – afirmando que sempre existiu essa divisão

dentro do movimento, sendo que o caminho tomado com o racha seria o natural, uma vez que

ele enxerga quase como conflitante essas duas atuações.

E notável ver a percepção do autor quando ao classificar os períodos da IS: 1957 a

1962 como sendo a “fase heroica” e depois disso com o racha ela se subdividisse em duas –

A Specto- Situacionista e a Segunda Internacional Situacionista. O autor deixa claro na

8 A principal revista do movimento é a Internationale Situationniste, que é publicada em francês e é designada


como sendo o boletim central editado pelas sessões da Internacional Situacionista. Além dela, existiram outras
de menores importância e que eram órgãos de sessões nacionais, como a Spur da sessão alemã, a Situationistk
Revolution da sessão escandinava, Der Deutsche Gedanke da Europa Central, Situacionist International da
sessão norte-americana e a Internazionale Situazionista da sessão italiana.
9 Neologismo criado nas traduções para ação do Détournement.
57

introdução do seu livro que o seu objetivo é analisar as vanguardas e grupos artísticos que

emergiram na Europa após a Segunda Guerra Mundial. Dessa forma pode-se compreender o

motivo do autor de chamar justo a fase da IS voltada para projetos artísticos como “heroica”,

em detrimento da fase compreendida como política da IS.

Outra discordância é em relação ao texto e sua afirmação de que a fase que o autor

chama de “specto-situacionista” não seja “situacionista. Para o autor a IS acaba em 1962 e a

partir de então se desenvolvem outras duas derivadas dela (já citadas anteriormente):

“No, entanto já que existiam duas facções que alegavam ser a Internacional
Situacionista – o grupo Nashista pelo menos teve a decência de colocar a
palavra Segunda antes de seu nome-, uso o termo ‘specto’ para diferenciar a
facção debordista da IS original, que existia antes da divisão em 1962. O
termo “specto” faz referência à teoria do espetáculo (em inglês spectale), na
qual a facção de Debord acreditava.” (HOME, 2004, pg. 69).

Dessa forma pode-se ver a imprecisão que o autor faz da teoria da “sociedade do

espetáculo”. Em nenhum momento é possível considerá-la como algo restrito, como Home

coloca, ao círculo de Debord, mas sim, como um projeto da IS de compreensão da sociedade

capitalista que tinha se instalado no mundo a partir daquele período. Isso pode ser

demonstrado a partir do próprio texto de abertura da Primeira Conferência (a de fundação) da

IS, com um posterior comentário de Anselm Jappe:

“‘A construção de situações começa além do desmoronamento moderno da


noção de espetáculo. É fácil ver a que ponto está ligada à alienação do velho
mundo o princípio mesmo do espetáculo: a não-intervenção.’ Nos doze
números da revista internationale Situationniste, publicados entre 1958 e
1969, esse conceito ocupa lugar cada vez mais importante, mas sua análise
sistemática é desenvolvida em 1967, nos 221 parágrafos de A sociedade do
espetáculo.” (JAPPE, 1999, pg. 19).

As questões que passam a ser discutidas na revista são aquelas que estão no foco da

sociedade daquele momento. A nova orientação política, que será analisada posteriormente,
58

que o grupo assume faz com que novos temas entrem na pauta de discussão. A de número

10/1966, demonstra como esse processo se firmou. Um dos principais pontos discutidos é a

questão da nação independente da Argélia e o problema da luta de classes que passa a ser

travada no interior daquela sociedade pelo destino do Estado recém implantado.

É nesse momento em que fará sentir também na IS a influência do marxismo. Este é

"apresentado" através de Lefebvre, com quem a IS desenvolve um trabalho em conjunto, e

também conta com a influência do grupo Socialismo e Barbárie, com quem os situacionistas

chegam a fazer uma plataforma de ações em comum e orientará o desenvolvimento dos temas

do grupo até a sua dissolução em 1972. Podemos ver isso através de um manifesto do grupo

publicado na sua revista em 1966:

“O movimento situacionista não pode de maneira alguma ser qualificado


como anarquista e menos ainda como pós-surrealista. As posições
desenvolvidas aqui são notadamente marxistas: na verdade, as únicas
posições realmente marxistas de que temos conhecimento.”
(INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 2002, pg. 20).

A sua ligação se dá a um marxismo não-ortodoxo, negando as influências do

leninismo e se ligando a outras como as do jovem Marx dos Manuscritos Econômicos e

Filosóficos, de György Lukács de História e Consciência de Classe e de Karl Korsch de

Marxismo e Filosofia, tradição denominada de esquerdismo por ser uma “fracção do

movimento revolucionário que oferece, ou quer oferecer, uma alternativa radical ao

marxismo-leninismo como teoria do movimento operário e da sua revolução”

(GOMBIN,1972, pg. 20 e 21).

É preciso salientar a questão do Espetáculo, essencial para compreender a segunda

fase da IS. O conceito surge praticamente junto com o movimento e apesar de não ter ponto

central no primeiro período, a partir 1962 este será a sua principal teorização. É no primeiro
59

capítulo de A sociedade do espetáculo que Debord apresenta várias características do que

venha a ser esta - "O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre

pessoas, mediada por imagens"(14), "O espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que

se torna imagem" (25), apesar disso não encontramos na obra situacionista uma definição para

o que venha a ser o espetáculo10, apenas algumas de suas características, deste modo,

baseando-se em Gombim (1972) podemos defini-lo pela degradação da vida cotidiana, a partir

do momento em que se soma a produção alienada, o consumo – também alienado – e a

mercadoria passou a valer não pelo seu conteúdo, mas pela sua representação.

É por esta linha também que eles passam a realizar a crítica da União Soviética

caracterizando-a como uma sociedade de Capitalismo de Estado e tornam-se herdeiros dos

comunistas de conselhos, crendo que o verdadeiro embrião revolucionário seriam os

conselhos operários. Debord no seu livro A Sociedade do Espetáculo deixa claro esse novo

posicionamento do grupo:

“a organização revolucionária só pode ser a crítica unitária da sociedade, isto


é, uma crítica que não pactua com nenhuma forma de poder separado, em
nenhum ponto do mundo, e uma crítica formulada globalmente contra todos
os aspectos da vida social alienada” (Debord, 2006, p. 85).

De 1962 a 1968, a IS basicamente se enclausura na prática teórica, sendo neste período

que ocorre a publicação de seus textos mais importantes11. Este momento em que ela fica
10 Gobim em sua obra traz uma definição que consideramos a melhor para o conceito de espetáculo: “A
degradação e a decomposição da vida cotidiana correspondem à transformação do capitalismo moderno. Nas
sociedades de produção do século XIX (cuja racionalidade era a acumulação de capital), a mercadoria tinha-
se tornado um fetiche na medida em que era considerada como figurando um produto (objeto), e não uma
relação social. Nas sociedades modernas, em que o consumo é a ultima ratio, todas as relações humanas têm
sido impregnadas da racionalidade do intercâmbio mercantil. É o motivo por que o vivido se afastou ainda
mais numa representação: tudo aí é representação. É a este fenômeno que os situacionistas chamam
espetáculo (a concepção de Lefebvre é mais neutra: o espetáculo moderno, para ele, deve-se simplesmente à
atitude contemplativa dos seus participantes). O espetáculo instaura-se quando a mercadoria vem ocupar
totalmente a vida social. É assim que, numa economia mercantil-espetacular, à produção alienada vem juntar-
se o consumo alienado. O pária moderno, o proletário de Marx, não é já tanto o produtor separado do seu
produto como o consumidor. O valor de troca das mercadorias acabou por dirigir o seu uso. O consumidor
tornou-se consumidor de ilusões”(Gombim, 1972, p. 82).
11 Estes são três: Da miséria do meio estudantil, assinado pela IS; A Sociedade do Espetáculo de Guy Debord e
A arte de viver para as novas gerações.
60

fechada em si mesma, é importante pois propicia uma análise da totalidade da sociedade

espetacular, que será essencial para a passagem para a prática. No entanto, no maio de 1968 é

quando ocorre a passagem à práxis, com os situacionistas participando do Comitê de

Ocupação da Sorbonne e posteriormente do Comitê de Manutenção das Ocupações, sendo que

este deu muita visibilidade e propaganda ao movimento, sendo uma das causas de sua

dissolução12. Será nesse Comitê que será colocado em prática a proposta situacionista da

autogestão, através do poder dos conselhos, como forma de criar um embrião revolucionário

dentro dos limites impostos por um movimento plural, como foi o Maio francês.

12 Não cabe aqui a discussão sobre os motivos que levaram ao fim da IS.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O nascimento da Internacional Situacionista como herdeira das vanguardas artísticas se dá

devido ao seu posicionamento e até mesmo pela sua composição enquanto grupo. Não é possível

compreender que ela pudesse surgir em outras condições, visto que, isto seria desconsiderar todas as

determinações que foram resultantes para a sua formação.

No entanto, com o próprio desenrolar da IS, como a entrada de novos integrantes e com o

próprio desenvolvimento das pesquisas e experimentos no campo artístico, começa-se a perceber

que somente aquelas ações são insuficientes para o projeto de superação da sociedade espetacular,

que eles vinham analisando e criticando deste o surgimento do grupo, e que somente uma atitude

mais radical em relação à superação a especialização do artístico é que se poderia atingir tal

objetivo. Desta maneira, o processo de negação a seu passado de vanguarda artística se torna um

elemento muito importante dentro da nova perspectiva que é adotada pela IS, mas é preciso saber

que o processo ocorrido não é somente de negação, mas também de combate a concepção de

vanguarda enquanto detentora do caráter revolucionário da classe, como demonstra Vaneigem1 ao

afirmar que a IS deve se aproveitar da crise dos partidos de massa (enfatizando nesse caso a crise

do, por ele denominado, Comitê Central Bolchevique, o qual representa o projeto dos PC's aliados a

URSS, que sofre uma terrível perda de influência a partir dos eventos de 1956, como foi

demonstrado no capítulo II) para afirmar a sua posição de combate a essa postura e colocar uma

verdadeira proposta revolucionária na pauta dos movimentos.

Assim, pode-se compreender que a passagem da Internacional Situacionista de uma fase

artística-política para uma política-revolucionária, ocorreu de certa maneira pelo predomínio de

uma seção pelas outras- ressaltando aqui o papel desempenhado pela seção francesa, como foi

desenvolvido no capítulo III- como previa nossa hipótese inicial, mas a determinação fundamental a

qual levou a essa mudança de postura foi a conjuntura histórica que foi propícia ao

1 VANEIGEM, Raul. Banalidades básicas. In: INTERNACIONAL SITUACIONISTA. Situacionista: teoria e


prática da revolução. São Paulo: Conrad, 2002. pp. 75-118.
62

desenvolvimento de um pensamento heterodoxo, que rompesse com os padrões entendidos como

marxistas no período (neste caso entendido como a União Soviética) e a própria conjuntura

francesa, como demonstrado no capítulo II, ao qual fez com que naquele país o movimento

começasse a se importar com outros temas que levassem a superação do capitalismo.

Não podemos concordar então, com a posição desenvolvida por Home (2004) que coloca

esse deslocamento ocorrido na IS como fundamentalmente um resultado da megalomania de

Debord, da sua mania de controle, pelo seu papel autoritário e de liderança do movimento.

A posição assumida pela IS a partir deste momento é de formulação de uma teoria que

visasse a explicação das sociedades (classificadas como espetacular concentrado - URSS e aliados e

a espetacular difuso - o mundo capitalista) e através disso, pudesse nas brechas do sistema, erguer

uma luta revolucionária a qual viesse destruir as sociedades espetaculares e implementar uma nova

forma de organização, baseada como declarou Debord:

A ideia mais revolucionária a respeito do urbanismo não é uma ideia urbanística,


tecnológica ou estética. É a decisão de reconstruir integralmente o território de
acordo com as necessidades do poder dos conselhos de trabalhadores, da ditadura
do anti-estatal do proletariado, de diálogo executório. E o poder dos conselhos que
só pode ser efetivo ao transformar a totalidade das condições existentes, não poderá
adotar uma tarefa menor se quiser ser reconhecido e reconhecer a si mesmo em seu
mundo (DEBORD, 2006; 118).

O surgimento da perspectiva conselhista na IS, tem como plano de fundo a crítica do que é

denominado "socialismo realmente existente" e se baseia nas experiências revolucionárias desde a

Comuna de Paris até a Revolução Húngara de 1956, que se constitui como sendo a experiência

histórica mais próxima do movimento.


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