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Resumo: A afirmação que serve de título para a presente comunicação foi proferida por Abdias do Nascimento
(1914-2011), quando da inauguração do I Congresso do Negro Brasileiro, em 26 de agosto de 1950, na cidade do
Rio de Janeiro. O Congresso foi organizado por intelectuais negros e brancos, mas acabou se tornando palco de
discussões acirradas entre os grupos e resultou na elaboração de dois documentos finais. O evento foi um marco
no campo das relações raciais brasileiras ao promover o rompimento dos intelectuais negros com os “homens de
ciência”. Eles foram duramente criticados por usar os negros apenas como objetos de suas pesquisas e chegar a
resultados descritivos e distantes da realidade. Os intelectuais negros buscavam o reconhecimento da sua participação
na construção do pensamento social brasileiro e um maior comprometimento dos cientistas com os problemas da
população negra.
Palavras-chave: Intelectuais negros; “homens de ciência” e relações raciais.
1 O presente artigo, com modificações no título e partes do texto, inicia o capítulo 2, da minha tese: Prisio-
neiros da história. Trajetórias intelectuais na imprensa negra meridional. Porto Alegre, PUC-RS, 2011.
2 A Frente Negra Brasileira – FNB, considerada o início do movimento negro, em 1931, foi fechada por
motivações políticas logo no início do Estado Novo, em 1937. As organizações negras posteriores se orga-
nizaram no clima político que antecedeu o final daquele regime, em 1945, e aprofundaram o debate sobre
o papel dos afro-brasileiros na construção do país.
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estudava o quadro das relações raciais brasileira. Foram os anos em que promoveram uma
série de eventos de âmbito nacional como a Convenção Nacional do Negro Brasileiro
e seu “Manifesto à Nação Brasileira”.3 Realizada em São Paulo, a Convenção tornou
público o “Manifesto”, em 11 de novembro de 1945, que trazia, dentre as reivindicações:
“Que se torne matéria de lei, na forma de crime lesa-pátria, o preconceito de cor e de
raça”.
A Convenção foi o primeiro evento nacional com temáticas e discussões
encaminhadas por militantes negros, que deu ênfase à resolução prática das principais
questões da população negra. A conhecida Lei Afonso Arinos, que incluiu o racismo
entre as contravenções penais, nasceu por demanda daquele movimento.4
Por outro lado, o acesso à educação gratuita era uma necessidade apontada
desde o período da escravidão, nesse sentido, outra reivindicação apontada naquele
“Manifesto” tocou em tema fundamental para a população negra, a saber:
“Enquanto não for tornado gratuito o ensino em todos os graus, sejam admitidos
brasileiros negros, como pensionistas do Estado, em todos os estabelecimentos
particulares e oficiais de ensino secundário e superior do país, inclusive nos
estabelecimentos militares”.
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Todas as citações a seguir, salvo informação ao contrário, fazem parte dos anexos disponíveis, em: NAS-
CIMENTO, 1982. (Este livro foi originalmente publicado em 1968, e traz cópias de boa parte dos pareceres
e teses aprovadas, além das principais resoluções dos eventos citados, principalmente, do I Congresso do
Negro Brasileiro).
4 A Lei nº 1.390, de 3 de julho de 1951, de autoria do deputado federal Afonso Arinos de Melo Franco,
diferencia-se da legislação atual, na medida em que o racismo deixou de ser apenas contravenção penal e
passou a ser considerado crime inafiançável. (Cf. Artigo 5º da Constituição Federal, regulamentado pela Lei
Federal nº 7.716, sancionada em 5 de janeiro de 1989).
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das questões referentes aos negros no ano seguinte. Nesse sentido, em comemoração
ao “Centenário do Final do Tráfico de Escravos”, convocaram para a participação no I
Congresso do Negro Brasileiro, demonstrando o grande apreço que aqueles homens e
mulheres tinham por efemérides que remetiam ao histórico de emancipação gradual da
escravidão.5
Segundo o documento de convocação, o Congresso deveria congregar
escritores, historiadores, antropólogos, folcloristas, musicistas, sociólogos e intelectuais
em geral, além de negros e mulatos, e homens do povo, para se tornar “representativo
das aspirações e tendências gerais da população de cor”. Os temas definidos na
Conferência para serem apresentados no Congresso como teses, eram: História (que
incluía a escravidão, os quilombos, a participação dos negros nas revoltas populares
e suas “figuras eminentes”); Vida Social (que devia tratar de aspectos demográficos,
natalidade e mortalidade infantil, associações culturais, recreativas e beneficentes, a
discriminação de cor, motivos e consequências, dentre outros); Sobrevivências Religiosas
(vários aspectos da diversidade religiosa afro-brasileira); Sobrevivências Folclóricas
(Maculelê, frevo, capoeira, rodas de samba, batuque, contos populares de procedência
africana, dentre outros aspectos culturais); e, finalmente, Línguas (que deveria tratar de
uma série de aspectos relacionados às “sobrevivências linguísticas” que se mantinham
como de origem africana ou que influenciaram o português do Brasil).
O Congresso foi realizado, de 26 de agosto a 4 de setembro de 1950, e tornou-se
o ápice daquele movimento social, que havia iniciado com a Frente Negra Brasileira –
FNB (São Paulo, 1931-1937), na primeira metade do século XX. Reputo a realização do
I Congresso do Negro Brasileiro como a principal iniciativa dos negros na disputa política
que se dava no campo das relações raciais brasileiras. O evento pode ser qualificado
com essa importância em virtude das questões levantadas pelos congressistas que se
consolidaram ao longo dos anos.
Naquela oportunidade, foi intensificada a tentativa de reconhecimento público
da participação dos intelectuais negros na construção do pensamento social brasileiro.
Eles passaram a criar dispositivos, como a promoção de eventos intelectuais e políticos,
a elaboração de estudos e a fundação de periódicos, para discutir suas questões em
âmbito nacional. Os objetivos eram se inserir no campo de estudos das relações raciais
como protagonistas históricos e produtores de conhecimento, assim como angariar
garantias legais para a melhoria da qualidade de vida da população negra.
Os documentos do Congresso demonstram a capacidade organizativa do
movimento que havia iniciado no princípio do século XX, e chegava ao ápice da sua
5 A Lei Eusébio de Queirós foi aprovada em 4 de setembro de 1850, visava proibir o tráfico transatlântico
de africanos para o Brasil. A Lei não gerou efeitos imediatos sobre a estrutura escravista, ao contrário, es-
timulou o tráfico interno e incrementou a entrada de escravizados no país.
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organização com a crítica dos resultados das pesquisas dos principais teóricos das
“questões raciais” do período. Os negros reunidos naquele evento tinham objetivos
comuns, no qual a chamada “cultura negra” passou a assumir papel político cada vez
mais proeminente. A história e a cultura desta parcela da população brasileira passaram
a ser agenciados pelas suas lideranças para demandar o início de uma legislação que
garantisse políticas sociais específicas.
As organizações negras anteriores, desde as irmandades católicas e as
“comunidades de terreiros”, a FNB, a imprensa negra brasileira, e alguns indivíduos
6
, considerados em diferentes graus de proeminência e momentos históricos também
foram responsáveis por confrontar os discursos da “inferioridade inata da raça negra”,
mas o que vou passar a destacar são as implicações epistemológicas dos lugares a partir
dos quais os intelectuais negros passaram a emitir seus discursos.
O entendimento de boa parte daquela intelectualidade vinculada à organização
do Congresso, capitaneada por Abdias do Nascimento e Alberto Guerreiro Ramos,
era de que a população negra fora “abandonada” pelo Estado.7 Não houve, por parte
do governo republicano, qualquer medida de integração social e econômica voltada
aos negros depois da abolição formal em 1888. Na “Declaração final” do Congresso,
inclusive, recomendavam:
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Manuel Querino (1851-1923), por exemplo, foi um intelectual negro preocupado em recuperar as “so-
brevivências africanas” na cultura popular da Bahia no início dos anos de 1900. Ele tornou-se um dos
primeiros pensadores a conferir importância à contribuição africana para a formação do Brasil, e colocou-se
contra alguns “homens de ciência” da época, como Raimundo Nina Rodrigues e Silvio Romero, que rep-
resentavam os negros e mestiços como inferiores, mas não teve o apoio dos demais negros de sua época.
Ver: REIS, 2007.
7 ��������������������������������������������������������������������������������������������������
Além de Abdias do Nascimento e Alberto Guerreiro Ramos, fizeram parte do Congresso: Aguinaldo Ca-
margo, Geraldo Campos de Oliveira, José Pompílio da Hora, Ruth de Souza, Ironides Rodrigues, Sebastião
Rodrigues Alves, Maria de Lourdes Vale Nascimento, o senador Hamilton Nogueira, Claudino José da
Silva (deputado federal do Partido Comunista), entre outros. O Congresso teve representações políticas de
São Paulo, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul (Sociedade Floresta Aurora).
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8 Suas propostas foram desenvolvidas no jornal Quilombo, publicado pelo TEN, de dezembro de 1948
a julho de 1950, nos seguintes artigos: “Teoria e prática do psicodrama”, nº 6, p. 6-7; “Teoria e prática do
sociodrama”, nº 7 e 8, p. 9; “Uma experiência de grupoterapia”, nº 4, p. 7.
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9 No Prefácio à segunda edição do seu livro, a primeira edição era de 1953, Costa Pinto mostrou-se
amargurado pela recepção que o mesmo obteve na época. Segundo ele, no primeiro mês foram vendidos
dez exemplares ao dia, depois de “crítica ardente e emocional – às vezes alcançando um nível bem sub-
alterno”, provavelmente realizada por algum intelectual negro, a circulação de suas ideias parece ter ar-
refecido. A reedição do livro, realizada 45 anos depois do lançamento, sem dúvida demonstrou o quanto a
sua contribuição para os estudos das relações raciais brasileiras foi relegada ao esquecimento. Isso se deu,
no mesmo momento em que a sociologia paulista tornava-se hegemônica no campo das relações raciais
brasileira. Cf. PINTO, 1998.
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Charles Wagley, professor da Columbia University, dirigiu os trabalhos de pesquisa da Unesco no
Brasil. Thales de Azevedo, professor da Universidade da Bahia, foi o responsável pelos trabalhos naquele
Estado e L. A. Costa Pinto, professor da Universidade do Brasil, fez pesquisas no Rio de Janeiro. Os resul-
tados começaram a aparecer a partir de 1952, com Race and class in rural Brazil de Wagley, seguido de Les
élites de couleur dans une ville brésilienne de Azevedo. No ano seguinte, 1953, teríamos o livro de Costa
Pinto já citado. SIQUEIRA, 2005.
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Analisando o mesmo período e atores políticos, Motta-Maués (1999), qualificou aquelas discussões
entre os dois grupos, como, um “diálogo entre acadêmicos e militantes negros”. As críticas dos negros aos
pesquisadores foram interpretadas como sendo de teor mais político do que propriamente científico. Por
outro lado, eu entendo como um debate intelectual, levado a cabo por contendores com origens sociais, in-
teresses políticos e que propunham epistemologias diferenciadas para compreender uma mesma realidade.
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O trabalho de Santos
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(2002) é uma recuperação bibliográfica abrangente de todos os intelectuais
brasileiros que se interessaram pelos principais problemas nacionais, passando pela escravidão, abolição,
construção da nacionalidade, educação, economia, política nacional, relações internacionais, entre outros.
Guerreiro Ramos é o único intelectual brasileiro destacado como o fundador de uma matriz do pensamento
político-social que faz a crítica de todas as outras, elencadas como resultado da contribuição de vários
pensadores.
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e propôs a continuidade, no que era visto como um limite, entre a produção sociológica
institucionalizada dos anos de 1930, e a chamada “pré-científica” ou “ensaística” dos
anos anteriores. O exercício intelectual proposto por ele, comparado com os estudos
anteriores, conforme Miceli (1989) e Maio (1996), foi considerado uma guinada radical
na literatura sociológica ao aproximar as contribuições intelectuais dos séculos XIX e
XX.
Segundo as conclusões de Guerreiro, os trabalhos de Silvio Romero, Euclides
da Cunha, Oliveira Viana e Alberto Torres, ao articular o problema racial com a questão
nacional, teriam a preocupação de criar um “instrumento para a construção nacional”.
Embora houvesse alguns equívocos de natureza preconceituosa entre eles, para Guerreiro,
eles procuravam um lugar para o negro na sociedade brasileira, ao contrário de outros
intelectuais que seguiram os ensinamentos de Nina Rodrigues. Nessa direção teriam
seguido Arthur Ramos, Gilberto Freyre, Roger Bastide, Costa Pinto, entre outros, que
viam o negro como uma ameaça aos destinos da nação desejada – civilizada, branca e
ocidental.
Guerreiro foi um crítico feroz da importação de ideias e do elitismo dos
intelectuais brasileiros que, segundo ele, revestidos de cientificismo, encontravam-se
distantes dos problemas que afligiam o povo brasileiro. Depois da sua morte, em 1982,
e de forma mais definitiva a partir da década de 1990, a obra de Guerreiro Ramos
passou a ser exumada como uma mostra de que, afinal de contas, existiram pensadores
brasileiros originais que fugiram aos cânones tradicionais. Ao retomar algumas de suas
proposições, é possível refletir sobre o que o I Congresso do Negro Brasileiro contribui
para a inserção diferenciada de Guerreio aos cânones do pensamento social brasileiro, o
que cada vez mais tem sido realizado nos mais diferentes aspectos.13
O entendimento de quais eram os “problemas nacionais” a ser enfrentados
pela sociedade brasileira era diferente entre os intelectuais negros e os acadêmicos.
Os resultados do Congresso, onde houve a aprovação em assembleia da “Declaração
final”, que ratificava as discussões e os encaminhamentos da maioria dos congressistas
(intelectuais e militantes negros, em grande número, destituídos de títulos acadêmicos),
foram questionados pelos “homens de ciência”. Eles fizeram aprovar uma outra
“Declaração”, que, por sua vez, iniciava afirmando não acreditar na “superioridade de
raças”, motivo pelo qual eles não “emprestariam seu concurso à criação de atitudes que
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Souza (2000) e Bariani (2006), exumaram a obra de Guerreiro Ramos em aspectos pouco trabalhados
anteriormente. Vianna et. al (1994:381), por outro lado, colocam Guerreiro como caudatário do que enten-
dem como “iberismo”, uma tradição de pensamento social que teve grande influência em autores como Gil-
berto Freyre, Oliveira Viana, Alberto Torres e Silvio Romero. O “iberismo” teria como base “concepções
organicistas e comunitaristas da ordem nacional e as suas reservas quanto ao individualismo e ao mundo
livre dos interesses”. Tirando Gilberto Freyre, todos os outros eram influências intelectuais reconhecidas
por Guerreiro na seu trabalho.
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Bibliografia
BARIANI, Edison. Guerreiro Ramos: uma sociologia em mangas de camisa. In: CAOS
– Revista Eletrônica de Ciências Sociais, n. 11, out. 2006. p. 84-92
MAIO, Marcos C. A questão racial no pensamento de Guerreiro Ramos. In: MAIO, M. C.
(Org.). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: FIOCRUZ/CCBB, 1996.
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Cf. Nascimento, (1982:399-400).
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