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net/mundo/america-latina/os-saberes-indigenas-muito-alem-do-romantismo/
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8236.html
Não se trata de opor um fantasioso “espiritualismo” a um materialismo ocidental. Mas de desafiar nosso regime
de sociabilidade com outras ideias, disposições e possibilidades
Houve um tempo em que falar de índios no Brasil era um exercício romântico. Tão
romântico quanto fantasioso.
No começo do século XX, alguns doutos paulistas saíram pelo seu Estado batizando os
lugares com nomes tupi, do Anhangabaú a Araçatuba, movidos por ímpetos eruditos, não
necessariamente por remissões mais escrupulosas à realidade. Quando a região de
Guaianases, na cidade de São Paulo, foi batizada com esse nome, havia centenas de anos
que os Guainá, que ali teriam sido aldeados a força no século XVI, já não mais existiam para
contar qualquer coisa a respeito da sua história. Os índios daqueles eruditos paulistas,
cultores do “tupi antigo”, eram algo bastante postiço. Realizando com perversa ironia os
ideais antropofágicos dos mesmos tupi, que séculos antes iam à guerra, entre outras
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coisas, para caçar, para seus futuros filhos, os nomes daqueles que comeriam, acabaram
eles agora transformados em não mais que nomes, desta feita como que nomes em
conserva, para serem usados nessa curiosa salada toponímica.
Enquanto isso, no oeste paulista, a partir de Bauru, travava-se uma guerra pela expansão
da fronteira agrária, empurrada pela ferrovia. Era um legítimo cenário de bang-bang, e as
principais vítimas do extermínio, operado por “bugreiros” e outros agentes, eram os
Kaingang e os Xavante, genericamente chamados de Coroados, gente da família linguística
jê (muito diferente da família tupi, portanto); extermínio que a história oficial paulista fez
questão de sepultar sob a tampa de concreto do silêncio, escrevendo, em seu lugar, o
relato fantasioso de uma simples saga de imigrantes. Assim, Araçatuba, por exemplo, terra
kaingang, hoje capital do boi gordo, no extremo-oeste paulista, pôde, também ela, ganhar
seu bucólico nome tupi: bosque de araçás.
Note-se: não estamos nos confins selváticos e geograficamente obscuros de uma imensa
Amazônia; uma Amazônia quase que alheia e que nem parece ter fim (e que daí, pela “lei”
da oferta e da procura, se presuma como tão... barata). Estamos no hoje pujante e
urbanizado oeste paulista, há não mais que cem anos atrás, apenas vinte anos antes de São
Paulo embarcar em uma aventura militar contra um incipiente governo nacional
antioligárquico.
Se o novo romantismo ecológico ao menos chamou os índios para a agenda enquanto eles
ainda estão vivos, sua tônica acanhadamente preservacionista os fez equivaler, mais uma
vez, ao passado; a um passado de aparente pureza florística e faunística que precisaria ser
sempre revivido ― ou “resgatado”, como gosta de usar a terminologia patrimonializadora
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em voga ― de forma idealmente imutável. Mais uma vez, os índios parecem entrar na
(nossa) dança sob a clave do embalsamamento, mesmo que, agora, sob a agenda de uma
patrimonialização talvez tão fetichista quanto a toponímia mítica dos velhos eruditos
paulistas.
No entanto, nos últimos tempos, os últimos lastros românticos que ainda pareciam nos
avalizar a existência dos índios parecem estar ruindo, o que não nos augura
necessariamente algo virtuoso, porque ficamos mal-acostumados a depender dos
romantismos para assegurar uma (traiçoeira e manhosa) legitimidade simbólica desses
Outros Nacionais (como os chamou a antropóloga Alcida Ramos) e, por consequência,
garantir as bases institucionais da sua existência enquanto povos acolhidos e protegidos ―
não falemos sequer ainda de “respeitados”, porque o respeito à diferença não é algo que se
aprenda por meio de projeções românticas.
O que alenta e justifica essa marcha implacável nós também já sabemos o que é: a velha
ideologia desenvolvimentista repaginada pelo avatar inquestionável do consumo como
critério, seja de teórica “inclusão” seja de teórico “bem-estar”. Assim, no coração dessa
nova ideologia desenvolvimentista encontra-se uma operação utilitarista singela: trocar a
cidadania pelo consumo. E, nela, o único lugar para os índios ― uma vez corroídas, por
esse realismo neoclássico rasteiro, as amarras românticas que os sustentavam ― é o de se
tornarem, eles também, modestíssimos consumidores, apoiados por programas
assistenciais do governo, depois de entregarem seus “meios de produção” a quem
realmente interessa, como aqueles que, vencidos, entregaram outrora o que são hoje
terras de boi gordo.
meios e no seu afã predatório, quer apenas ganhar hoje, para a aventura de uns quantos, o
que o bem-comum poderia, de outra forma, ganhar multiplicado amanhã, se sobreviver até
lá. E é aí que a equação que move as curvas de utilidade se alarga para variáveis e
horizontes impensados pelos mecano-economistas.
No atual estado de coisas, entretanto, parece haver apenas duas alternativas para salvar a
(potencialmente subversiva) diversidade existencial dos Outros Nacionais da sanha
desenvolvimentista de moê-la e transformá-la em salsicha: ou reciclamos as projeções
românticas em algum novo (e duvidoso) feitiço encantatório das nossas narrativas
nacionais, ou tiramos os índios do alheamento passadista a que sempre foram condenados
e os reconhecemos como uma aposta sincera no futuro; num futuro não apenas deles,
como também não apenas nosso, mas num futuro de diálogo, para além do alheamento, no
qual eles também são, necessariamente, sujeitos de fala ― não “eles” a pessoa x ou y, ou a
“representação” w ou z, mas, ainda mais radicalmente, as suas visões de mundo. A primeira
alternativa, a da reciclagem das projeções românticas, sempre foi aquela imediatamente
sedutora, e, com ela, chega-se até mesmo a lançar mão de alegados exotéricos. A segunda,
por sua vez, é a que reclama uma reflexão antiutilitária, mas estratégica, que talvez seja
exatamente aquilo pelo qual muitos de nós, antropólogos, trabalhamos.
Em 1952, num texto escrito para a Unesco, Lévi-Strauss defendia que as sociedades só
sobrevivem porque aprendem umas com as outras. Uma sociedade que se isola na certeza
das suas verdades fenece diante dos problemas para os quais sua visão de mundo não
alcança soluções. As “soluções” de grande alcance, portanto, não são meramente
tecnológicas, mas conceituais. São as ideias que dimensionam a técnica e que dão uso às
ferramentas, ou, segundo a fórmula famosa do epistemólogo Georges Canguilhem: o
microscópio não é a extensão da vista, mas a extensão da inteligência. Sem o conceito de
micro-organismo, o que se veria pelas lentes de um microscópio seria apenas um conto de
fadas.
Evidentemente que as tecnologias ajudam, mas o que está sempre por detrás delas são as
ideias. De pouco adiantaria, para a expansão européia dos séculos XV e XVI, o astrolábio
que os europeus aprenderam dos árabes, se alguns deles não dispusessem do novo e
herético conceito de uma Terra redonda. Descobrir a América, nesse sentido, foi a
consagração de uma grande heresia, frente a uma doxa tão potente à sua época quanto os
mitos econômicos atuais e suas leis inquestionáveis. E as coisas não pararam por aí,
evidentemente, porque, como também nos lembrava Lévi-Strauss, isso é a história, e os
europeus, casualmente, não se encontravam na situação dos Mayas em torno do ano 1.000,
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quando, orgulhosos e isolados, viram suas opulentas cidades colapsarem por conta de uma
crise ecológica, por eles mesmo provocada, e para a qual nem o refinamento do
conhecimento dos seus astrônomos e sacerdotes tinha uma solução a dar.
Ainda assim, um milênio após o fim do período Maya Clássico, o muralista Diego Rivera
pintaria em uma das paredes do Palácio Nacional do México, a lista do que a tradição
ameríndia mexicana havia legado ao mundo: uma lista de cultivos alimentares que, além
de cacau, tomate e feijão, é encabeçada, evidentemente, pelo milho, cuja notável
diversidade genética dos cultivares meso-americanos a Monsanto está tratando hoje de
eliminar, por meio de seu milho transgênico com patente “made in USA”. Não apenas o
milho, mas sobretudo a batata, levada dos Andes pelos europeus, produzem muito mais
calorias por hectare plantado que o trigo, nascido na Mesopotâmia e levado para a Europa.
O cultivo desse tubérculo, rapidamente estimulado e expandido no Velho Continente, foi
responsável por eliminar a fome endêmica e medieval da Europa, e constituir a base
demográfica sem a qual a Revolução Industrial não teria sido possível e, com ela, a nossa
arrogante modernidade.
Por trás da domesticação dos tubérculos nos Andes, há um enorme conjunto de ideias
sobre como a mãe-terra gera seus frutos, como o trabalho comum os recolhe, como eles
podem ser acumulados e conservados, e como devem ser distribuídos. À época da
Conquista, os indígenas dos Andes eram muitíssimo mais bem nutridos e saudáveis que os
europeus. Diante dessa diferença evidente, estes últimos aproveitaram apenas um produto
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específico, o que, para eles, já foi muito. Há quem acredite que o socialismo e o Estado do
bem-estar social teriam sido inventados alguns séculos antes se os europeus, além das
batatas, tivessem levado as ideias.
Apostar nos índios, e portanto na diversidade cultural, como nosso futuro comum de não-
alheamento, não significa meramente apostar que a erva de algum pajé possa trazer a cura
para o câncer. Expor nossas ideias ao contato com outras visões de mundo pode nos curar
de coisas muito piores: nossos próprios e mesquinhos limites.
fazem as grandes apostas no futuro, porque é isso que, para o bem ou para o mal, com a
lista de Diego Rivera e muitas outras, e também com toda a precariedade das experiências,
constituiu o Novo Mundo.
Talvez seja também preciso dizer que encarar seriamente a opção do não-alheamento
significa, com bastante probabilidade, molestar alguns lugares comuns tidos hoje como
“politicamente corretos”, e que são aqueles tributários do multiculturalismo neoliberal,
quais sejam, suas obsessões com fronteiras bem acabadas, identidades amuralhadas e os
contratos de patrimonialização. Os verdadeiros diálogos não se realizam sobre a prévia
domesticação dos seus termos por gramáticas unilaterais ― ou uma pretensa
universalidade habermasiana. Eles não são uma mera exibição de emblemas, para marcar
posição dentro de um mercado contratualista ― ou uma economia contratualista da
alteridade. Os verdadeiros diálogos são aqueles em que nos “contaminamos” e nos
arriscamos com as razões de ser dos outros. Os pós-estruturalistas talvez tenham nisso
razão ao usarem o termo “devir”.
[1] http://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-isa/o-brasil-e-grande-mas-o-mundo-e-
pequeno