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Mneme – Revista de Humanidades. UFRN. Caicó (RN), v. 9. n. 24, Set/out. 2008. ISSN 1518-3394.
Disponível em www.cerescaico.ufrn.br/mneme/anais
Introdução
Desde os tempos coloniais o Brasil é palco de um intenso processo de
integração entre as várias culturas que se aventuram em visitá-lo. Colocamos aqui,
povos indígenas e africanos, além de católicos portugueses como protagonistas da
gênese do sincretismo religioso no período colonial. Consideramos, porém, que outras
culturas se fizeram presentes no processo de construção cultural brasileiro, como os
judeus e os árabes, aqueles desde a época das entradas e bandeiras, quando os
cristão-novos saíam em busca de ouro e indígenas para enriquecimento dos cofres
lusos e engrandecimento da Igreja Católica Apostólica Romana, recebedora de almas
para entrega a Deus, segundo dizia. É válido destacar ainda, que quando falamos em
indígenas, africanos e lusos, atentamos para as peculiaridades existentes em cada um
desses grupos humanos, pois nenhum deles se constitui como etnicamente ou
culturalmente isento de influências de outrem. Se os lusos haviam incorporado
costumes de outros povos europeus, asiáticos e africanos, o que diremos da
diversidade de sociedades existentes na África e no continente que viria a ser
chamado América?
O sincretismo foi intenso por cá, no entanto, não seria interessante para todos:
de um lado vemos uma religião católica, tentando se fechar em seus templos; de
outro, percebemos as crenças indígena e africana adentrando a casa-grande e os
recantos mais secretos da mente e vivência luso-brasileira, destronando promessas e
penitências, louvando trabalhos e forças mágicas. A religião na colônia, mesmo sob o
olhar atento e punitivo dos inquisidores, guarda práticas sincréticas que nos foram
legadas, preservando, mesmo que inconscientemente, sua memória.
Neste trabalho, pretendemos abordar as práticas religiosas que assinalaram o
período citado, como a pajelança e as santidades, de forma a qualificá-lo enquanto
profundamente hibridizado, considerando brevemente a atuação dos tribunais
inquisitoriais nas paragens brasileiras. Objetivamos ainda, perceber como ocorria a
convivência entre os rituais ditos heréticos, praticados por bruxas e feiticeiros e os
cultos cristãos, que transmitiam, na maior parte das vezes, a idéia de que não se devia
atentar para aquelas práticas “demoníacas”. Desse modo, procuramos entender como
ANAIS DO II ENCONTRO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA COLONIAL.
Mneme – Revista de Humanidades. UFRN. Caicó (RN), v. 9. n. 24, Set/out. 2008. ISSN 1518-3394.
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SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das
Letras, 1986. Pp. 77.
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Como nos afirma Sidney Chalhoub, embora relacione sua narrativa ao período imperial,
praticamente às vésperas da abolição, havia uma relação nem sempre conflituosa entre senhor
e escravo, que correspondia à tática da negociação entre as partes. Chalhoub pensa a
escravidão, objetivando desmistificar um velho caráter, o de que o escravo se colocava
enquanto passivo às ordens do senhor, enquanto aquele que já teria incutido a idéia de
inferioridade pregada por seu dono, qual animal que se acostuma a um novo tratador.
ANAIS DO II ENCONTRO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA COLONIAL.
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Como disse Bastide, foi o jesuíta que atribuiu ao negro aquela condição de
“desalmados”, pois seu contato com o pecado tinha profundas raízes, desde a estadia
na África com os muçulmanos, desde aquelas práticas animistas do começo de sua
cultura. Muitos diriam que não restava outra escolha ao negro que não fosse a
escravização, apoiados na filosofia aristotélica de justificação da servidão, pois talvez,
através do suor, os escravos conseguissem purgar o seu pecado. Enquanto a figura
do indígena ganhava ares europeus, retomando uma idéia de Platão de que existira
uma ilha esplêndida, Atlante, terra de valorosos homens e exemplar cultura que tinha
se colocado agora, sob o domínio indígena, ou seja, aqueles povos ainda poderiam
encontrar a salvação, para muitos religiosos, porque descendiam de antigos troncos
europeus.
É por isso que os jesuítas defendem muitos indígenas da escravidão,
condenando apenas os mais “bravios” ao jugo. Preferiam levá-los aos aldeamentos,
onde ficariam sob os auspícios da Igreja, na pessoa dos religiosos.
A América seria agora, o palco da luta entre a força doutrinária da Igreja e os
cultos de matrizes africanas e indígenas; o lugar onde os escravos podiam purgar
seus pecados através do trabalho; onde os nativos, alguns deles antropófagos, se
faziam típicos servos de Satanás, sem conseguirem oportunidade para falarem sobre
suas crenças, empurrados pelos jesuítas às pias batismais ou aos aldeamentos,
quando não para a escravização na lavoura, trabalho que exigia esforço, suor, que os
colonizadores, imbuídos de uma questionável autoridade, mas que governavam e
formavam a elite econômica, diziam purificador; o campo de batalha entre Deus e o
Diabo.
Os próprios portugueses dialogavam com o mundo vil do pecado em sua terra
natal. Lembremos dos inúmeros casos de degredo de lusos às terras purgantes dos
trópicos e percebamos quão contaminada pelas ervas satânicas era a vivência
religiosa em solo europeu. Os tribunais inquisitoriais não se estabeleceram só para
assegurar a devoção católica, mas também para punir os desviados pela imundície do
pecado. Autos de fé condenaram muitos ao Brasil, terra que os abrigaria, absorvendo
de suas práticas o suficiente para trazer até essas paragens três visitas dos “diabos da
inquisição”, pois:
Se Deus era cultuado d’aquém e d’além-mar, Satanás também o era,
reinando ainda nas vagas e turbilhões oceânicos. Numa época em que
o Sistema Colonial articulava boa parte das terras do globo, é natural
que sonhos, anseios, desejos, projeções imaginárias refletissem sua
importância que tinha na vida cotidiana, nos afetos e na subsistência
de cada um.3
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Idem, ibidem. Pp. 190.
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Os encantados eram reinos idealizados pelos adeptos dessa prática religiosa. Alguns deles:
Vajucá, Tigre, Canindé, Urubá, Juremal, Josafá e Fundo do Mar.
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BASTIDE, Roger Bastide. As religiões africanas no Brasil. Tradução de Maria Eloísa
Capellato e Olívia Krähenbühl. São Paulo: EDUSP, 1960. P. 244.
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Idem, ibidem.
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Considerações Finais
A vivência no Brasil colônia inspirava muitas promessas. E cada indivíduo tinha
sua particularidade ao pedir. Aqui, já não nos é possível separar os povos que se
encontraram em terras ainda edênicas, pois já não são os mesmos. Encaramos
agora, o produto do tão comentado hibridismo: uns pedindo ajoelhados frente a
altares, outros, com o auxílio de orações de mandinga e outros ainda, ocupados em
seus transes místicos, portais para um mundo idealizado. E é como se cada
promessa, cada pedido, cada palavra dedicada a Deus ou a Ogum ou mesmo aos
antepassados idealizassem um mundo, uma vivência.
E já não contemplamos mais uma homogeneidade nos ambientes, seja ela
étnica ou religiosa. Em alguns momentos percebemos um africano rezando a Ave
Maria, um índio recebendo em seus cultos aos encantados um negro banto como
líder, um luso-brasileiro encomendando um trabalho. Todos mensageiros da
mestiçagem, arautos de uma identidade.
A coexistência inicial foi eficaz para que acontecesse essa bela mistura sob a
iluminação espetacular do Sol nos trópicos. A prática dos contatos híbridos era uma
questão de tempo. Pouco. As paragens brasileiras proporcionavam um convite ao
sincretismo, à mistura, ao convívio. Embates não deixaram, é claro, de existir, afinal
não é só a memória de saudáveis receitas que insiste em se fazer lembrar. Vivências
e práticas sempre vão guardar singularidades, já que nenhum povo é homogeneizado.
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Idem, ibidem.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MOTT, Luiz. Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu. In: SOUZA,
Laura de Mello e (org). História da Vida Privada no Brasil: Cotidiano e Vida
Privada na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Pp. 155-
220.
SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia
das Letras, 1986.