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História: Debates e Tendências

ISSN: 1517-2856
felipeabal@upf.br
Universidade de Passo Fundo
Brasil

Tedesco, João Carlos


Ruminantes de memórias: sentimentos, experiências e silêncios deliberados
História: Debates e Tendências, vol. 13, núm. 2, julio-diciembre, 2013, pp. 343-353
Universidade de Passo Fundo
Passo Fundo, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=552456388009

Como citar este artigo


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Ruminantes de memórias: sentimentos,
experiências e silêncios deliberados
Ruminants of  memories: feelings, experiences and
deliberate silences
Rumiantes de memorias: sentimientos, experiencias y
silencios deliberados
João Carlos Tedesco*
A luta do homem contra o poder torna-se
a luta da memória contra o esquecimento.
(Kundera, M. Il libro del riso e dell´oblio).

Resumo Introdução
O texto analisa horizontes subjetivos da A memória humana é uma realidade
memória bem como o seu uso político; complexa e produto de múltiplas interveni-
demonstra que lembrança e esqueci- ências, intencionalidades, condições e situa-
mento são indissociáveis e indissolú- ções temporais. A mesma expressa capaci-
veis, estão ligados entre si; podem ser-
dade de armazenar, de conservar traços de
vir para múltiplas intenções e funções.
Esquecimentos podem ser deliberados, experiências passadas, sentidas, vividas e
como também lembranças passam a ser observadas, de ter acesso a elas, posterior-
seletivizadas. Daremos ênfase à questão mente, pelo horizonte da lembrança, ou,
dos ressentimentos individuais e coleti- então, evitá-la por meio de esquecimento
vos demonstrando que há sentimentos
de memória que são profundos, intensos
e difíceis de apagar. Nesse sentido, tan-
to a lembrança, quanto o esquecimento *
Doutor em Ciências Sociais pela Universidade
são dinâmicas que servem para ajustar o de Campinas. Professor titular da Universidade
de Passo Fundo, nas áreas de Ciências Sociais e
passado com o presente. no PPG-História.

Palavras-chave: Memória. Ressentimento. Recebido em: 22/02/2013 - Aprovado em: 14/06/2013


Poder político. http://dx.doi.org/10.5335/hdtv.13n.2.3724

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auto/alter determinados. Nesse sentido, a consciência de que o mundo muda e, temos
memória pode também, deliberadamente, necessidade de acompanhar esse processo,
desenvolver o desejo de conservação e de si- em especial, as sensibilidades sociais e pes-
lêncio, pela possibilidade e/ou temor de es- soais do presente. O autor diz que os objetos
quecimento ou para servir de referência ao de referência vão se desgastando como se
convívio social (ANSART, 2002; POLLAK, corroem nossas vidas, nossa existência; re-
1989). tornar a ambas não é nada fácil, quando não
Os sentimentos de memória podem ser impossível, pois não somos cativados para
muito profundos e intensos; desse modo, as referências passadas.
quanto mais significativos, mais difíceis de É nesse horizonte de discussão que
serem apagados e não lembrados. Biólogos envolve (res)sentimentos, experiências sig-
dizem-nos que no nosso cérebro a memória nificativas, silêncios deliberados, filtragem
funciona em camadas sobrepostas, uma lem- de memória etc., que conduziremos nossa
brança vai cobrindo a outra, mas sem anulá- reflexão1. A intenção é dimensionar aspec-
-la. Intensidades de experiências e significa- tos fenomenológicos e políticos da memória,
dos resistem mais à sobreposição de outras centrados nas noções de intencionalidades,
lembranças, por isso que o alimento para a subjetividades, enquadramentos, ressenti-
memória é a capacidade de consciência e de mentos e experiências como processos que
lembrança de fatos e (situ)ações que marcam também dialetizam o lembrar e o esquecer.
a vida (IZQUIERDO, 2004).
Não podemos esquecer que a memó-
Lembrança, transmissão e esquecimento
ria, em suas dimensões do esquecimento e
da recordação, está impregnada na dimen- A lembrança é capacidade de efetiva-
são do sensível e da subjetividade (GALZE- ção da memória, de recuperar algo do pas-
RANI, 2008), fundadas, muitas vezes, em sado; ela escava na busca dos conteúdos da
sentimentos negativos, de perda, de raiva, consciência e da experiência vivida subjeti-
de humilhação que ruminam a consciência e va e coletivamente. Ela permite transmissão,
a experiência do vivido (HUYSSEN, 2000). capacidade do ser humano poder transcen-
Para Proust (1981), que fez um belo estudo der-se, exteriorizar-se, dizer quem o mesmo
fenomenológico sobre os passados significa- foi ou correlacionar sua existência a algo
tivos na memória, tentando entender os pro- externo e de significação. Sem transmissão,
cessos que objetivam buscar o tempo perdido não deixaremos marcas e, são essas que nos
e o sentimento de perda, em geral, vividos identificam no tempo, nas coisas e na cons-
na infância, em “outro tempo”, como ele diz, ciência das pessoas, nas linguagens, nos
carrega sentidos profundos e tornam a cons- símbolos, nas imagens (GAGNEBIN, 1998).
ciência e a sensibilidade da passagem do Porém, também, ao contrário, as lembran-
tempo na dimensão da perda e/ou da trans- ças podem nos fazer recordar de coisas, fa-
formação. Para o autor, a dificuldade é saber tos e sentidos que gostaríamos de esquecer,
lidar com o fantasma do esquecimento, da ou que não nos são agradáveis. No fundo,

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ninguém gosta de ritualizar lembranças que cias consideradas significativas (MARTINS,
quer esquecer, porém, autores colocam que 2007, p. 39).
o esquecimento, também, pressupõe rituais Alguns autores críticos da modernida-
para apagá-lo. de nos dizem que, no mundo atual, a me-
A lembrança pressupõe situações de mória não foi silenciada, mas desvirtuada
narrativas, força da transmissão para conti- (LEVI, 1986); foi dado a ela, e continua sen-
nuar a recordar e, com isso, a ativar a me- do, sentidos e conveniências. A mediação
mória. Rituais, comemorações, fotografias, da narração foi fragilizada; não se trocam
narrativas orais, imagens, objetos, museus, mais experiências (BENJAMIN, 1983); mui-
arquivos, saberes tradicionais, artesanatos, tos se sentem ressentidos por não poderem
festas, rituais fúnebres etc., tudo isso auxilia se defender do passado considerado injus-
nesse sentido; ambos/as estão envoltos/as to e mal interpretado/explicado, por não
nessas dimensões que produzem perdas, poder intercambiar fatos, desejos de falar e
medo da morte, reconhecimento, identida- acertar com o tempo e a História, de não po-
de, busca por espaços etc. der se expor para dizer que sua experiência
Segundo Sarlo (2007), não há como não de vida e seu passado histórico não foram
lembrar; propor-se a esquecer é como não vazios ou prenhes de significados (TODO-
perceber um cheiro, pois ambos são acome- ROV, 1995). Outros, então, poderão se res-
tidos até mesmo quando não são esperados. sentir por não encontrarem desejo, demanda
“Justamente porque o tempo do passado e recepção de transmissão, de narração de
não pode ser eliminado, e é um perseguidor seus vividos traumatizantes, como é o caso
que escraviza ou liberta, sua irrupção no de ex-prisioneiros de campos de concentra-
presente é compreensível na medida em que ção que, ao serem libertos e depois de passar
seja organizado por procedimentos da nar- alguns anos do trauma (LEVI, 1986), não en-
rativa” (SARLO, 2007, p. 12). contravam pessoas para ouvi-los e acreditar
Rememorar pode significar retirar do nas barbaridades cometidas nesses espaços,
esquecimento eventos marcantes, cuja im- tudo isso em nome de um pacto do silêncio,
portância considera-se fundamental para a como enquadramento social, produzido em
subsistência, tanto do grupo, quanto de sua determinados países da Comunidade Eu-
ética, como por exemplo, os genocídios dos ropeia, ou, então, como a Lei da Anistia no
armênios em 1915, os 500 anos da América Brasil que exerceu um grande papel: o de es-
ou do Brasil, os 60 anos do desembarque quecer e não permitir que sejam lembrados
na Normandia, o 14 de julho para a França, fatos e nem pessoas do período do governo
o 4 de julho e o 11 de setembro nos EUA, militar; como é o caso em vários países onde
os acordos de reparação de guerra em 1918 houve ditaduras e foram cometidos genocí-
para a Alemanha..., enfim, são “operações dios e, agora, em décadas posteriores, gover-
de lembrança”, que conseguem, pelos ritu- nos democráticos não tomam providências
ais e celebrações, fazer retornar à consciên- para promover abertura de arquivos, nem
cia histórica e grupal a presença de ocorrên- mesmo de fossas onde se sabem que estão

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enterradas muitas pessoas, para, justamen- indiferença e não reconhecimento do pre-
te, não mexer em feridas e não ferir acordos sente para com o passado (BRESCIANI;
políticos (na Argentina, na Espanha, em NAXARA, 2004). Por isso que se diz que
Portugal, em países africanos, dentre outros, a memória é uma espécie de ruminante, mas
essa realidade é lugar comum). que necessita de auxílio, desejo, apreensão,
recepção de alguém para com outro alguém.
Não é incomum no meio social a pro-
dução do esquecimento ou do silêncio para
ajustar o passado com as intenções/ressen-
timentos, ainda consequentes, do presente e
das perspectivas futuras. Para Rossi (2010), a
história e a vida pessoal fazem parte de um
jogo, disputas essas em que há uma dialé-
tica entre revelação e encobrimento, mani-
festação e ocultação. Para o autor, o futuro
Fonte: http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticia/manifes
tações+pro+contra+atual+governo+marcam+35+anive dependerá da aceitação do passado. Porém,
rsario+do+golpe+na+ Argentina_10722.shtml; acesso esse sempre foi, de vários modos, percebido,
em 27/03/2011. Foto: Aldo Jofre Osorio.
Figura 1: Cartazes fazem um chamamento para que
vivido, reconstruído, falsificado, restaura-
pessoas “cuspam sua raiva” em fotos de do, inventado, questionado, removido... Por
pessoas acusadas de cumplicidade com isso que há várias maneiras de produzir e/
ditadores na Argentina; rituais públicos que
marcaram os 35 anos do golpe no país, nos ou induzir ao esquecimento. Diz o mesmo
primeiros meses de 2011. que “apagar tem a ver com esconder, ocul-
tar, despistar, confundir os vestígios, afas-
Os rituais de memória são importantes tar da verdade, destruir a verdade” (IDEM,
para impedir as perdas de memória, para p. 32). Desse modo, há sempre certa coer-
não esquecermos (o) que vivemos, ou o que ção ao esquecimento, ao enquadramento
os outros fizeram (SARLO, 2007). No entan- de pensamentos, à necessidade de eliminar
to, sabemos que tanto as lembranças quanto conteúdos de história ou a própria História,
os esquecimentos, dependendo de seu con- tenta-se também apagar os apagamentos,
teúdo e uso que se faz, podem ser positivos negar os fatos, dificultar a reconstrução de
e/ou negativos, traumáticos ou algo novo fatos, impedir que alguém possa lembrar
sobreposto. A memória coletiva pode ser in- (LEVI, 1986, p. 3). Diz Levi, de uma forma
duzida a esquecer e/ou a não ser justiciada muito contundente e significativa, para
pela lembrança, ou, então, por ações políti- quem viveu essa realidade de apagamento
cas, jurídicas e ideológicas do tempo presen- forçado que “ninguém de vocês viverá para
te e não necessariamente do tempo memori- dar testemunho; ainda que alguém esca-
zado (TODOROV, 1995). passe, o mundo não acreditaria em vocês”
O ressentimento pode se dar em torno (militares alemães falando para judeus em
do fato passado como também em torno da campos de concentração). Sobre esse apaga-

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mento e o sentimento de impotência frente dau (2005), se o esquecimento não seria uma
à verdade de fatos bárbaros, Orwell (apud forma de evitar os conflitos de memória? Se
ROSSI, 2010, p. 34) descreve e projeta essa determinados monumentos poderiam ser-
tendência e a importância de destruir e fal- vir de catarse? Se pacto de memória teria
sificar documentos, de deter a História, de um efeito pacificador no interior de grupos
que “não existe mais nada, exceto um pre- confrontados em memórias conflituosas e
sente sem fim”; ou seja, a dificuldade de res- dolorosas? Se a memória seria um entrave
surgir de um passado que foi apagado, da para a liberdade e a ação? Se o esquecimento
necessidade de apagamentos deliberados da produziria uma natureza emancipatória em
memória, de produzir em seu lugar passa- sujeitos e grupos sociais? Se o esquecimento
dos míticos. Afirma Levi (1986) que a histó- deliberado seria sempre causador de tragé-
ria sempre necessitou de agentes do esque- dias, ou se permitiria que pessoas ou pudes-
cimento e que servem aos poderes políticos, sem construir e/ou restaurar uma imagem
religiosos e culturais em especial. A atuali- positiva de si? É interessante consentir o
dade expressa um grande “produtivismo ar- esquecimento, ou seja, “fazer passar o tem-
quivístico”, muitos “ativistas da memória”, po”? Uma coisa é certa: as políticas de me-
“turistas da memória”, como diz Nora em mória fazem parte de um jogo para decidir
que muitas comemorações, monumentos se o que, quando, como, onde... lembrar, das
constituem num recurso e instrumento de modalidades de representação do passado.
ação política (é o caso dos debates e confli- Pollak (1989) fala que não é possível
tos na decisão do Ground Zero, sobre o 11 de completa supressão de lembrança; o que
setembro nos EUA, bem como em torno do existe é uma memória condicionada, repri-
Memorial do Holocausto em 1993, do Viet- mida, não enquadrada, não lembrada no
nan Memorial nos Estados Unidos em 1982, coletivo histórico. Realidades negativas, vi-
bem como uma série de outros de grande vidas e acomodadas, funcionam como po-
expressão mundial)2. tencialidade, força de reserva, munição guar-
As “batalhas de memória”, as “autoce- dada para situações específicas do presente,
lebrações”, as “panes de memória”, as “me- principalmente no campo político e étnico.
mórias hierarquizadas, as oficiais, subterrâ- Evitar falar, poupar alguém de ter a
neas e ocultadas” (genocídio de Ruanda em consciência de estar em meio a lembranças
1994, por exemplo, em que foram feitas mais pouco edificantes, como é o caso, por exem-
de 800 mil vítimas em mais ou menos cem plo, de memórias envergonhadas de uma famí-
dias) oscilam entre o esquecimento e a lem- lia, de um sobrenome, de uma opção a um
brança. Ambos esses horizontes estão entra- movimento histórico que ganhou ambiva-
nhados no campo político. O passado pode lência histórico-temporal como o nazismo,
ser despótico e fossilizador do presente, bem o fascismo, de uma empresa que faliu, de
como produzir transformações profundas uma passagem familiar traumática etc., não
na convivência social (TODOROV, 1995). é algo incomum no universo da memória,
Poderíamos nos perguntar como fez Can- principalmente na sua dimensão histórica e

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cultural (SARLO, 2007). O que está em jogo, Recuperar fatos e coisas do passado
é a busca da eliminação do estigma da ver- pode-se tornar nostálgico demais, quando
gonha pela esfera do silêncio e da passagem não melancólico (OLIVIERO, 1994), assim
do tempo. Há uma noção de temporalidade como cultuar e ritualizar memórias em de-
que se ordena com o “não dito” e se confia masia pode-se sacralizá-las, ou, então, tor-
em seu esquecimento. Desse modo, ficamos ná-las impotentes e infrutíferas. O trabalho
com a consciência de que o que é esquecido de luto (ritualizado), ou seja, vivenciar por
não some, mas permanece no profundo a es- algum tempo a realidade da perda, é uma
pera de ocasião adequada para sua desocul- das formas de se desangustiar, de acomodar
tação (POLLAK, 1989). o sentimento da perda e permitir a liberação
Para Gadamer (1983, p. 38-39), esque- da dominação da lembrança (TODOROV,
cimento e lembrança não possuem limites 1995). É evidente que, por mais sofrível, in-
definidos e nem definitivos; ao contrário, compreensível e indesejável que seja, o es-
pode haver um diálogo, um entrecruzamen- quecimento possui uma função social, assim
to de apelos que acaba renovando e redefi- como a possui a memória como expressão de
nindo a memória. Há uma dimensão política uma história comum, de garantir uma iden-
e deliberada do lembrar e do esquecer. Por tidade coletiva, superando ressentimentos,
isso que dominar esse processo é interes- os quais eternizam ódios e impedem a pro-
sante para o campo do poder; controlar o jeção no tempo, produzem tremendos e/ou
esquecimento e a lembrança é um importan- potenciais conflitos sociais, fazem grupos,
te trunfo de quem governa (LE GOFF, 1979; nações e indivíduos se armarem simbólica
KUNDERA, 1998). É bom que se diga que, e efetivamente contra possíveis ataques ou
com o passar do tempo, há ambivalências ações de vingança (BRESCIANI; NAXARA,
do esquecimento e da lembrança, em geral, 2004).
como forma de salvaguardar memórias e Insistimos na ideia de que o ressen-
identidades coletivas, ou, então, pelo desejo timento é uma forma de tornar a memória
de expressão no futuro. Para Oliviero (1994), ativa. A culpa, a dívida, o rancor, a mágoa
há sempre um certo equilíbrio entre lembrar são ruminadores que ameaçam, exigem des-
e esquecer, entre as memórias que agregam forra, vingança, castigo, desejo de exorcizar
e que estão na base da coesão social e as que a dívida, a má-consciência (NIETZSCHE,
são necessárias velar, esquecer ou deixar de 1998). Isso permite “lavar a alma”, produzir
lado, por serem desagregadoras, desagradá- o esquecimento necessário e que permite ao
veis, traumáticas e ressentidas. Assim, me- organismo (psiqué) curar-se, dar lugar ao
mória e esquecimento não se anulam e nem novo, à paz, à ordem psíquica harmônica e
se excluem, entrecruzam-se e podem até se sadia (ROSSI, 2010).
compensar e se alimentar, mas tudo vai de-
pender das circunstâncias sociais e tempo-
rais.

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Esquecer para lembrar e lembrar para Cada povo, para saber viver, diz To-
dorov (1995), precisa saber recordar e saber
não esquecer esquecer. Porém, em geral, não gostamos de
O passado não pode ser inteiramente recordar o que nos machuca, os conteúdos
recordado e nem da mesma forma que foi dolorosos da memória. Contudo, também,
vivido; a memória não tem essa capacidade sabemos que não podemos tudo esquecer,
de congelamento e cristalização, ou melhor, nem tudo lembrar; lembrar de algo significa
de ser um mero depósito, de resgate automá- escolher, selecionar, priorizar (BRESCIANI;
tico de tudo o que foi “colocado pra dentro”. NAXARA, 2004). A memória se presta para
Lembrar algo significa colocar em evidência isso também; é como se houvesse uma racio-
e/ou à parte determinados conteúdos. Essa nalização da lembrança, um pragmatismo,
é uma espécie de dialética da memória, ne- um dever de recordar ou para superar, ree-
cessária para dar o dinamismo que, tanto o laborar, dramatizar, acordar com o passado,
esquecimento, quanto a recordação necessi- servir de guia para o presente (ANSART,
tam (BRESCIANI; NAXARA, 2004). Por isso 2004). Há vontades de memória e exterio-
Jedlowski (2000) diz que, em determinadas rização que fazem parte das estratégias de
circunstâncias é interessante esquecer de ter produção e reprodução do tempo (tempos
esquecido alguma coisa. A consciência histó- de homenagens, rituais de celebração, ca-
rica se reconstrói sob um fundo de esqueci-
lendários oficiais, festejos etc.) que refletem
mento; a mesma poderia se tornar infértil se
situações de necessidade de recordação.
mantivesse viva na memória a totalidade dos
Rituais políticos de memória tendem a
terríveis acontecimentos (ANSART, 2004).
fazer reavivar contatos sociais, coletivos de
Todorov (1995) insiste na dimensão
uma forma deliberada. O poder político e
ética da memória tanto em suas manifesta-
de algumas outras instituições (família, reli-
ções de lembranças quanto de esquecimen-
gião, empresas) adotam critérios de referên-
tos, pois, de qualquer forma, ambos podem
cia que orientam a experiência do recordar
servir de exemplaridade, superação, mo-
e do esquecer em seus rituais linguísticos e
delos para construir o futuro e orientação
(pedagógico) para o presente sem que haja narrativos3.
uma obsessão desmesurada, tanto para um, A história de nosso século, como sabemos
bem, ainda quando buscamos esquecer,
quanto para outro. Por isso, haveria, em es-
é cheia de censuras, cancelamentos, ocul-
pecial na esfera do poder, o uso político de tamentos, desaparições, condenações,
ambos, por meio dos calendários oficiais, das retrações públicas e confissões, traições,
festas, dos eventos necessários, dos tempos declarações de culpabilidade e de ver-
gonha. Muitas obras históricas foram re-
para a lembrança, na criação de monumen- escritas cancelando os nomes dos heróis
tos em tempos e locais determinados etc. Na de um tempo, catálogos editoriais foram
realidade, há necessidade de lembrar juntos, mutilados, foram reeditados livros com
conclusões diferentes daquelas originais…
bem como de esquecer juntos (ELIAS, 1998), Primeiramente foram queimados livros,
de criar uma seleção do senso comum, de depois se fizeram desaparecer bibliotecas
pertencimentos, de recíproca conveniência na tentativa de negar os fatos, de obstaculi-
zar a reconstrução dos eventos, de impedir
reavivada por rituais linguísticos de conser-
de contar as vítimas, de impedir as lem-
vação e de esquecimentos. branças (ROSSI, 1991, p. 26).

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O trabalho de enquadramento de me- A experiência recalcada de fatos pro-
mória, ou seja, de fazer referência ao passa- dutores de ódio pode ser causa de coesão
do para manter a coesão grupal, para legiti- e pertencimento, de desejos coletivos de
mar ações dos mesmos e/ou de instituições vingança (queimar bandeiras de inimigos,
ou, então, para evitar oposições irredutíveis, apedrejar símbolos), uma espécie de fusão
define fronteiras grupais, possibilidades ou emocional que serve de maná, força, orgu-
não de alteração pelos materiais que a His- lho, expressos em sentimentos coletivos e/
tória dispõe (ZAWADZKI, 2004). ou individuais de desprezo, de desqualifi-
Fatos históricos, dependendo das cir- cação, quando não de um conflito aberto e
cunstâncias e conveniências, também po- ostensivo. O horizonte político (partidário
dem passar pelo campo da ambiguidade e e de nações) expressa muito bem isso (ZA-
da incompreensão em torno de seus signifi-
WADZKI, 2004; ANSART, 2002). O ressen-
cados. Conchavos de hoje podem tornar-se
timento é um grande mobilizador coletivo.
conflitos de amanhã; ligações amistosas en-
O que se questiona é a importância do res-
tre governos e países, de uma hora para ou-
sentimento para o convívio social; ele seria
tra, dependendo dos fatos, das pressões ex-
necessário para não esquecer injustiças?
ternas e públicas, podem também produzir
Sabemos que ódios e ações de hostilidades
conflitos. Governos e nações ressentem-se,
manifestam-se de formas variadas nos tem-
produzem vínculos que começam a relem-
brar ou usar o passado como arma política. pos e nos grupos sociais (rivalidades vão
Essas realidades revelam que nem tudo se sendo alimentadas e têm vida longa, seitas,
apaga, que a memória pode ser usada como representações e imaginários que vão se for-
arma política, que grupos sociais aliam-se e mando – antiamericanismo, antissemitas,
pactuam silêncios, muitas vezes, condicio- antiestrangeiros, antimuçulmanos, anticiga-
nados por acordos políticos de momentos. nos etc.) e podem, também, servir de arma
política, causa de mobilização de grupos,
ser uma ameaça pública, um temor simbó-
lico que se alimenta no decorrer do tempo,
renova-se com as conjunturas de oportuni-
dades políticas e crises sociais e econômicas
(ZAWADZKI, 2004; ANSART 2002).
Com isso tudo queremos dizer que a
experiência em seus sentidos mais profun-
dos é de difícil gerenciamento externo e in-
Fonte: <http://www.grandorient.org/Agencia/Noticias/Noticias.
asp?Id=80>. Acesso em: 27 mar. 2011. Foto: Redação terno; sentimentos não se apagam facilmen-
da Agência Illumitati. te e nem se acomodam por determinadas
Figura 2: Presidente Sarkosi recebendo com honra- ações de caráter apaziguador (ações afir-
rias o líder líbio Kadafi. Difícil imaginar que
algum tempo depois desses encontros,
mativas, perdão e reconhecimento público
Sarkosy passaria a ser peça-chave na coa- – como determinadas instituições o fazem
lizão internacional que promoveu o assassi- tempos depois, a Igreja católica em especial
nato do líder líbio.

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[vide o caso Galileu, o caso do Nazismo na Por isso que o ressentimento pode ser um
2ª Guerra] –, legislação favorecedora aos ato de “reparação” (ANGENOT, 1996), pois,
trabalhadores como forma de acomodação segundo Namer (1983), pedir para as pesso-
social; políticas de compensação e responsa- as esquecerem, é fazer perpetuar a ferida, o
bilidade social nas empresas etc.). perdão até pode amenizar a consequência,
mas não produzir o apagamento. Exigir es-
Enfim... quecimento é acabar com a autoestima, com
O antônimo do esquecimento não é a
a capacidade de reparação, é a resignação
memória, mas a justiça
(Yerushalmi). suprema (SILVA, 2010).
Insistimos no fato de que há uma pro-
Horizontes invisíveis e não ditos não dução também social dos ressentimentos,
significam que não possuam existência, que dos silêncios e das lembranças; revoltas,
não possam se revelar; há uma grande fron- insurreições, linchamentos, terrorismos,
teira do conhecível no horizonte dos sentidos queima de carros, invasões de terra, expa-
e da consciência do vivido humano e social. triamentos e expulsões de grupos étnicos
A correlação entre memória/lembrança (como as recentes ocorridas na França e na
e ressentimento nos diz isso muito bem. É Itália com os ciganos [ROMs]), movimentos
importante termos presente que perceber sociais de reparação e de promoção de justi-
esse sensível, muitas vezes inconsciente, é ça etc., podem ser alimentadas por ressenti-
mostrar que possuímos zonas confusas e mentos. O sentimento ressentido por ser um
incertas em nosso agir social e experiência antídoto e uma ação simbólica importantes
pessoal; essa dimensão pode estar impreg- no mundo atual para fazer frente à forte ten-
nada também no campo político e produzir dência de tudo esquecer rapidamente.
realidades de grande intensidade de adesão A dialética entre o esquecer e o lem-
coletiva (ANSART, 2002). Vários autores brar está muito ligada ao ressentimento, aos
analisaram a preparação de guerra da Ale- ruminantes de memória; é parte da dinâmica
manha nos anos 1930 e início dos anos 1940 social dos tempos e dos fatos, dos desejos e
como fruto de uma “guerra de memórias” das potencialidades históricas da memória,
(NAMER, 1983), de humilhações e desejos dos significados que as pessoas e os grupos
de vingança (aos judeus, aos franco-ma- sociais e políticos dão ao passado. Por isso,
çons), da revolta submissa, da passividade, dimensões subjetivas e políticas em torno da
da resignação e submissão à autoridade memória não podem ser negligenciadas.
(ARENDT, 2002); da sede de vingança, do
peso do passado, da infelicidade de sentir Abstract
e não poder fazer nada (PORTELLI, 1995).
Isso fez também passar de um sentimento The text analyzes subjective horizons of
a outro (de inferioridade para o de superio- memory and its political use; it shows
ridade, sem limite, ideal de nacionalismo, that remembering and forgetting is so-
mething inseparable and indissoluble,
“mitificação da coletividade” (ELIAS, 1998).

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they are interconnected; they may serve Notas
multiple functions and intentions. For-
getting can be deliberate, but also me- 1
As reflexões aqui desenvolvidas estão, de uma
mories become selected. It will be given forma ou de outra, presente em nossos livros so-
bre memória; ver nas referências no final.
emphasis to the issue of individual and 2
Um outro exemplo foi o demonstrado pelo pro-
collective grievances demonstrating that grama da TVE espanhola - “Las fosas del olvido”,
there are feelings of memory which are em 28 de janeiro de 2004, revelando a existência
de em torno de 800 fossas comuns contendo pro-
deep, intense and difficult to erase. In vavelmente 30mil republicanos mortos durante a
this sense, both the remembrance and guerra civil de meados do século XX no país. O
forgetfulness are dynamics that serve to programa fazia uma crítica ao governo socialis-
ta pelo fato de não “desenterrar os mortos”, ou
adjust the past with the present. seja, de não fazer nada pelo temor de desesta-
bilizar o pacto de convivência social produzido
Keywords: Memory. Resentment. Politi- pós-conflito pelas várias forças. Depoimentos de
cal power. grande expressão emotiva se fizeram presentes,
bem como comentários em torno do fato de que
os mortos “que estão lá”, são os culpados hoje
por uma possível desestabilização da democracia
Resumen no país; antes os mesmos lutaram e foram mortos
por ela (contra a política de repressão e autorita-
El texto analiza horizontes subjetivos rismo do general Franco), agora eles são os cul-
pados; ou seja, culpados são os que lutaram pela
de la memoria bien como su uso polí-
democracia e não os franchistas. A lembrança
tico; demuestra que recuerdo y olvido pública/oficial dos mortos altera a organização
son indisociables e indisolubles, están política e social dos vivos.
ligados entre sí; pueden servir para múl-
3
Ver BRESCIANI, S.; NAXARA, M. (Orgs.). Memó-
ria e (res)sentimento: indagações sobre uma ques-
tiples intenciones y funciones. Olvidos tão sensível. Campinas: Unicamp, 2004. Os arti-
pueden ser deliberados, como también gos do livro são importantes fontes, inauguraram
recuerdos pasan a ser seleccionados. uma temática importante e que, acreditamos, ten-
de a crescer nos estudos sobre memória. Muito
Enfatizaremos a la cuestión de los re- do que analisamos aqui tem como referência os
sentimientos individuales y colectivos seus estudos.
demostrando que hay sentimientos de
memoria que son profundos, intensos y
difíciles de borrar. En este sentido, tanto Referências
el recuerdo, cuanto el olvido son diná-
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