Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
1.Introdução
O trabalho apresentado focaliza a dinâmica do poder na produção da memória em contexto do
desastre decorrente da abertura de um aparelho de radioterapia, na cidade de Goiânia (GO), em 1987. A
análise retoma o quarto capítulo (“Remembering and forgetting: the politics of memory”) da minha tese
de doutorado intitulada Radiation illness representation and experience: the aftermath of the Goiânia
radiological disaster, apresentada na City University of New York (2002).
A análise enfoca dez anos do desastre, isto é de 1987 a 1997. O trabalho de campo, financiado
pela Wenner-Gren Foundation for Anthropological Research (Grant - N° 5.969), foi efetuado no período
de 1996-1997. Os dados foram colhidos através de: observação participante; gravação de entrevistas
abertas; coleta de histórias de vida; pesquisa em arquivos públicos e particulares bem como a utilização
de matérias da mídia impressa e televisiva.
Partindo do pressuposto de que a atribuição de significado às coisas, aos atos e às idéias é fonte de
poder e que o mundo simbólico é decorrente de um sistema de classificação engendrado em situações de
relações sociais em conflito, eu argumento que as imagens e lembranças do desastre de Goiânia são
sustentadas por múltiplas e divergentes experiências. Como assinalado por outros estudos
(CONNERTON, 1996; YONEYAMA, 1993; LÜDTKE, 1993; TAYLOR, 1996; STURKEN, 1997), o
processo de lembrar, em contextos de desastre, aponta para um intricado campo de forças relacionado à
culpabilidade, indenizações, processos identitários e programas de atendimento à saúde. A produção do
saber sobre o desastre emerge da confrontação entre a memória oficial, sustentada pelas representações
governamentais e o saber subjugado (FOUCAULT, 1980:82) trazido pelas lembranças e experiências dos
sobreviventes. As experiências de sofrimento inscritas e incorporadas nos corpos dos indivíduos
constituem as memórias corporificadas (CONNERTON, 1996; DA SILVA 2001) que se contrapõem à
representação do desastre como história, situado no passado. Este trabalho então analisa esta política da
memória que processa o enquadramento do desastre como uma estratégia de purificação simbólica e que
ao mesmo tempo engendra a memória corporificada que traz o desastre para o presente.
2.1.A FUNLEIDE e a CNEN como “conteinêres radioativos”: o uso do saber médico na contenção das
lembranças
As novas alegações de sofrimento relacionado à radiação que emergem ao longo do tempo são
deslegitimadas no processo de contenção do desastre. Assim a população afetada é mantida aos números
definidos em 1987, ou sejam 249 indivíduos contaminados. O governo e os peritos nucleares fizeram uso
do saber médico neste processo de filtro das experiências e lembranças dos sobreviventes, como
aconteceu com os chamados ‘policiais do césio”. No primeiro semestre de 1997, a mídia goianiense
divulgou relatos de policiais militares que associavam suas doenças inexplicáveis a uma causa comum__
o contato com a radiação. As narrativas apontavam para uma mesma experiência de trabalho qual seja a
atuação na guarda do Depósito Provisório de Rejeitos Radioativos de Abadia de Goiás e/ ou em áreas
definidas pela CNEN como foco de radiação. Estes indivíduos se mobilizaram e tiveram o apoio da
Associação de Cabos e Soldados da Polícia Militar de Goiás e de alguns parlamentares. Em abril de 1997,
128 nomes constavam da lista organizada pelo movimento. A CNEN, preocupada com a repercussão
destas denúncias de contaminação nos meses que antecediam a inauguração do Depósito Definitivo de
Rejeitos Radioativo, se fez presente nestes debates na tentativa de descaracterizar o nexo causal entre as
doenças dos PM’s e a radiação. A instituição convocou o sistema perito nuclear e uma comissão médica
formada por profissionais ligados a CNEN e a FUNLEIDE foi constituída. Após examinar 155 PM’s no
período de dois dias, a comissão conclui que “as ma nifestações acusadas não são de natureza associativa
com exposição ionizante.” (Relatório de avaliação médica de militares da Polícia Militar do Estado de
Goiás. Apud DA SILVA, 1998a).
A memória oficial também conteve as mortes causadas pelo desastre limitando o seu número
àqueles óbitos que aconteceram em 1987, isto é quatro. Desta forma, quando D. A. Fe., o dono do ferro-
velho que abriu a marmita contendo o pó de césio, e uma das pessoas mais contaminadas, morreu em
maio de 1994, o relatório médico oficial atesta como causa mortis a cirrose. Este relatório foi
publicamente contestado pelo médico Coronel Vasco Martins Cardoso, ex-diretor do departamento de
saúde do Hospital da Polícia Militar e que trabalhou durante a fase emergencial do desastre. Para
desautorizar sua afirmação, os representantes da CNEN declararam que os médicos desta instituição eram
os únicos a terem o conhecimento científico necessário para se pronunciar sobre a saúde dos
radioacidentados.
Para controlar a memória do desastre, FUNLEIDE tembém usa as vítimas como uma fonte
controlada de dados. Os indivíduos afetados, rotulados como vítimas oficiais, identificados como
pacientes em conseqüência da radiação e categorizados dentro dos grupos definidos pela FUNLEIDE, se
transformam em “corpos biomédicos”. A instituição administra os corpos dos radioacidentados como uma
forma de controlar a investigação científica.
Ao ocultar da esfera pública as atuais condições de saúde das vítimas e seus sofrimentos, a
instituição desinfeta a cidade contaminada fazendo uso da estratégia do esquecimento forçado. Além
disto, o contínuo processo de deslegitimação de novas vítimas, o controle dos pacientes da FUNLEIDE
como “corpos biomédicos”, e o coibir das atividades dos investigadores independentes expande o papel
da instituição como um “contêiner radioativo” (FUSTIER 1991; NETO 1994). A instituição também e,
Memória corporificada, marcas urbanas e esquecimento: a descontaminação... Telma Camargo DA SILVA 3
principalmente, exerce o papel de contêiner porque ela atua na administração da memória do desastre
para encerrá-la e assim, libertar Goiânia da poluição e restaurar a cidade a sua condição idealizada de
cidade saudável.
4.Conclusão
No caso de Goiânia, a multiplicidade das lembranças se articula em torno de dois eixos: a
memória oficial, sustentada pelas representações produzidas pelo poder institucional (i.e., governo, saber
médico e peritos nucleares) e o saber subjugado dos sobreviventes. As afirmações da CNEN de que “tudo
esta sob controle”; “os desastres acontecem, mas a radioatividade pode ser controlada” se misturam com
as memórias corporificadas dos sobreviventes. As primeiras encerram as lembranças do desastre em
experiências, sent imentos e classificações fixas. Esta perspectiva aponta para um evento localizado no
passado e trazido ao presente através de números, mapas e locais imutáveis. A segunda perspectiva, a dos
sobreviventes, indica a prevalência de experiências que atualizam continuamente os eventos de 1987 e
engendram o lócus das memórias. Este trabalho analisa esta política da memória (DA SILVA 1998b) que
processa o enquadramento do desastre como uma estratégia de purificação simbólica e que ao mesmo
tempo engendra a memória corporificada que traz o desastre para o presente. Em conseqüência, enquanto
a memória oficial se impõe na esfera do espaço público da política, ela simultaneamente repercute para as
vítimas como silêncio, deslegitimação e com a subjugação de suas lembranças e experiências.
Assim, através da memória opera o processo de construção do sentido do desastre definindo quem
são as vítimas, quais são as representações legítimas para a aflição, qual a linguagem autorizada para
expressão do sofrimento e quais as le mbranças consentidas. Como conseqüência, o sofrimento social
(KLEINMAN at al. 1997: IX) intensifica as aflições daqueles que já carregam o impacto do desastre em
seus cotidianos. Eu concluo, repetindo o que já foi apontado por outros estudiosos sobre este tema: os
desastres são eventos que não acabam quando são oficialmente declarados encerrados. Em decorrência, os
estudos sobre a produção das memórias dos desastres podem contribuir não só para uma reflexão em
termos acadêmicos e teóricos, mas também fornecer elementos para uma atuação na esfera das políticas
públicas, subsidiando ações em defesa dos direitos dos grupos afetados.
REFERÊNCIAS
ALVARES, G. T. Luta na Epopéia de Goiânia: Uma Obra da Engenharia Nacional. São Paulo:
Associação Paulista de Imprensa.1942.
CAMPOS, F.I. Mudança da Capital: Uma Estratégia de Poder. Cadernos do INDUR- Estudos Urbanos e
Regionais. Goiânia. Fundação Instituto de Desenvolvimento Urbano e Regional, n. 2, p. 29-39, nov. 1980.
______. Serviço de Higiene, Origem da Saúde Pública em Goiás, In: FREITAS, L. C. B. F. de. (Org.).
Saúde e Doenças em Goiás: A Medicina Possível - Uma Contribuição para a História da Medicina em
Goiás.Goiânia: Editora da Universidade Federal de Goiás, 1999. p. 223 – 238.
DA SILVA, T. C.1997. Biomedical Discourses and Health Care Experiences. In: LEIBING, A. (Org.).
TheMedical Anthropologies in Brazil. Berlim: VWB. Curare n. 12, p. 67 -79. 1997.
Memória corporificada, marcas urbanas e esquecimento: a descontaminação... Telma Camargo DA SILVA 8
______. Radiation Illness Representation and Experience: The Aftermath of the Goiânia Radiological
Disaster. 283 f. Tese (Ph.D. em Antropologia). Programa de Antropologia. City University of New York,
Graduate Center (CUNY – GC). Nova York, E.U.A. 2002.UMI n. 3047208.
ESTADO insiste no depósito de lixo sem ônus. Jornal O Popular. Goiânia 05 de agosto de 1989.
FOUCAULT, M. Power / Knowledge: Selected Interviews & Other Writings 1972 – 1977. Tradução
Colin Gordon, Leo Marshall, John Mephan, e Kate Soper. New York: Pantheon Books, 1980.
FREITAS, L.C. B . F. de. Goiânia: “Goiânia Locus Privilegiado de Saúde”. In: FREITAS, L.C. B . F.
de.(Org.). Saúde e Doenças em Goiás: A Medicina Possível - Uma Contribuição para a História da
Medicina em Goiás.Goiânia: Editora da Universidade Federal de Goiás,1999. p. 239 - 289.
GARB, P. Complex Problems and No Clear Solutions: Radiation Victimization in Russia”. In:
JOHNSTON, B. (Org.). Life and Death Matters: Human Rights and the Environment at the end of the
Millennium. Walnut Creek, California: Altamira Press, 1997. p. 307 - 329.
HARVEY, D. The Urban Experience. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1989.
ITÁLIA se propõe a construir de graça depósito para lixo. 1989. Jornal O Popular. Goiânia 13 de julho de
1989.
KLEINMAN, A. at. al. Social Suffering. Berkeley: University of California Press, 1997.
STURKEN, M. Tangled Memories: the Vietnam War, the AIDS Epidemic, and the Politics of
Remembering. Berkeley: University of California Press, 1997.
TAYLOR, G. Cultural Selection. Why Some Achievements Survive the Test of Time And Others Don’t.
New York: Basic Books, 1996
TURNER, V. Dramas, Fields, and Metaphors: Symbolic Action in Human Society. Ithaca: Cornell
University Press. California Press,1974.
YONEYAMA, L. Hiroshima Narratives and the Politics of Memory. Tese. (Ph.D. em Antropologia).
Programa de antropologia. Stanford University. Stanford. E.U.A. 1993. UMI n. 9309690.