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II
Crimes contra a propriedade
III
O Furto
coisa (cfr. Faria Costa, Com. Con. do C.P., T. II, art. 203, § 18; Perez
S/S/Eser § 242 1; Tröndle/Fischer, Strafgesetzbuch § 242 1). Entre nós
Faria Costa sustenta que o bem jurídico protegido pela incriminação do
furto é " a especial relação de facto sobre a coisa - poder de facto sobre a
coisa -, tutelando-se, dessa maneira, a detenção ou mera posse como
disponibilidade material da coisa; como disponibilidade da fruição das
utilidades da coisa com um mínimo de representação jurídica". (ob. cit.,
§ 21). Não é, porém, esta a posição da Doutrina actualmente dominante,
segundo a qual o bem jurídico tutelado é só a propriedade; a detenção só é
protegida como emanação da protecção conferida ao direito de propriedade.
Assim, por exemplo, o usufrutuário ou o credor pignoratício só serão
protegidos pela incriminação do furto quando a subtracção da coisa
constituir um acto de expropriação dirigido contra o seu proprietário.
poder entre uma pessoa e uma coisa, não seja o bem jurídico protegido pela
incriminação do furto, ela constitui, no entanto, um critério fundamental
para determinar, por exemplo, a consumação do crime de furto ou, em
relação ao abuso de confiança, para determinar quando se lesa o direito de
propriedade e o modo como se lesa.
ilícito previsto no art. 259º, onde se pune, entre outras condutas, a de furto
de documentos. Tereza Beleza (A tutela penal do património após a revisão
do C.P. de 1995, 1998, p. 48 s.) entende, a meu ver bem, que o art. 203º é
aplicável ao furto de documentos quando exista intenção de apropriação do
documento, ao passo que o art. 259º será aplicável quando o documento não
for subtraído com intenção de apropriação, mas sim de causar prejuízo a
outrem.
2.1.3 Por último a coisa objecto do furto tem que ser alheia. Isto
significa que tem que se tratar de uma coisa não pertencente ao autor do
furto. Mas não é necessário determinar exactamente a existência de um
proprietário definido para se afirmar que a coisa é alheia. O objecto pode
ser alheio mesmo que não se identifique o titular do direito de propriedade.
Basta que se saiba em abstracto que a coisa é objecto do direito de
propriedade de alguém que não é o autor da subtracção. Assim, pode haver
furto, por exemplo, no caso de compropriedade de uma coisa indivisa ou no
caso de coisa sobre a qual exista acção judicial pendente para decidir quem
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água dos mares ou dos rios, o ar, ou a luz e o calor solares, etc., que, embora
no seu ambiente natural não sejam coisas móveis susceptíveis de
subtracção, passarão a sê-lo se, por exemplo, alguém recolher uma certa
quantidade dessas coisas em recipientes. Passa então a haver uma relação de
domínio sobre elas e podem, a partir daí, ser objecto de furto.
3. A Subtracção
3.1.1 A detenção
A detenção não deve ser confundida com a posse em sentido jurídico. Pode
haver furto de uma coisa a um detentor que não seja juridicamente seu
possuidor, como acontece, por exemplo, com o credor pignoratício, com o
mutuário, com o empregado que só detem a coisa temporariamente ou com
o gatuno que se apropria de uma coisa móvel alheia. Nenhuma destas
pessoas tem uma posse em sentido jurídico, mas todas elas têm a detenção.
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Além do domínio fáctico sobre a coisa, para que haja detenção exige ainda
a Doutrina um outro elemento - a vontade de domínio fáctico -, sobre o qual
eu tenho sérias dúvidas quanto à sua utilidade e interesse, porque, afinal, ele
pode não existir e nem por isso deixa de haver detenção. Em todo o caso,
entende a Doutrina na medida em que exige este elemento, que essa vontade
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de domínio só tem que ser uma vontade natural, e não uma capacidade de
acção no sentido do Direito Civil, de modo que também as crianças e os
doentes mentais podem ter vontade de domínio. Além disso, essa vontade
de domínio também não necessita de ser actual, basta que seja actualizável
(por exemplo, enquanto uma pessoa está a dormir ou está inconsciente não
perde a detenção, porque, embora nesse momento não tenha vontade,
nenhuma pode a todo o momento recuperá-la). Também não é necessário
que a vontade seja concretizada em determinado objecto, basta uma vontade
geral de exercício do poder de facto sobre as coisas que se encontram na sua
esfera de domínio. Assim, continua a ter a detenção quem, por exemplo,
não sabe exactamente a quantidade de garrafas que tem no bar ou a
quantidade de livros que tem no escritório, quem não sabe as cartas que
chegaram à sua caixa de correio, o comerciante que não conhece toda a
mercadoria que chegou ao seu armazém, etc.. ( Cfr. M/S/Maiwald, BT I, cit,
p. 308; Stratenwerth, BT I, cit., p. 198; Sousa e Brito, cit, p.57 s.).
Também a teoria da ablação, embora nos possa dar já alguma noção do que
significa quebrar a detenção alheia, não nos esclarece sobre o que seja a
constituição de uma nova detenção. Esta teoria, como há pouco referi, parte
da ideia de que a constituição de uma nova detenção se dá com o
afastamento da coisa do local de domínio do seu detentor. Suponha-se, por
exemplo, que alguém, numa casa comercial, desloca um determinado
objecto do local onde ele se encontra para outro local mais perto da porta,
com o objectivo de facilitar a operação posterior de o retirar do
estabelecimento. Para a teoria da ablação, no momento em que o agente
desloca o objecto do sítio onde ele se encontra para outro já estaria
constituída uma nova detenção, o que significa que já estaria formalmente
consumado o furto. Ora, esta teoria não pode aceitar-se, pois, como se
compreende, o deslocar a coisa, só por si, não pode significar uma nova
detenção, uma vez que, embora o objecto tenha sido colocado num local
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A teoria da ilacção é mais exigente do que qualquer das outras. Para esta
teoria, só quando houver uma utilização imperturbada da coisa por parte do
novo detentor é que, afinal, há constituição de uma nova detenção. Assim,
no exemplo dado da pessoa que esconde o objecto no saco, enquanto ela se
encontrar no espaço de domínio do dono do estabelecimento, não há
constituição de uma nova detenção. Esta só existirá quando o agente sair do
estabelecimento com o objecto e puder dispor dele sem perturbações, o que
não poderia acontecer enquanto o agente se encontrasse no espaço de
domínio do detentor do objecto, como se compreende. Esta teoria não serve
para caracterizar a subtracção, pois ela aproxima-a demasiado do conceito
de apropriação. Como melhor veremos, quando estudarmos o abuso de
confiança, a apropriação significa integração da coisa na esfera patrimonial
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4.1 O dolo, como elemento subjectivo geral dos tipos dolosos, traduz-
se no conhecimento e vontade de realização do facto típico. Concretamente
em relação ao crime de furto, o dolo (que pode verificar-se em qualquer das
formas previstas no art. 14º) consiste no conhecimento de que a coisa móvel
que está a subtraír é alheia e na vontade de a subtrair. Se o agente
desconhece, por exemplo, o carácter alheio da coisa, haverá um erro que
exclui o dolo, uma vez que esse erro incide sobre um elemento objectivo do
tipo, de carácter normativo. Assim, se, por hipótese, alguém vê em cima de
uma secretária uma caneta de outra pessoa, precisamente igual a uma que
tem e, convencido que é a sua caneta, se apodera dela, estará a actuar sem
dolo de subtracção de uma coisa alheia.
integra o tipo objectivo, isto é, o tipo de furto não contém como seu
elemento objectivo a apropriação; esta é um resultado que está para além do
tipo objectivo, que, como se disse, não tem correspondência no tipo
objectivo. Para que exista um furto não é necessário que o agente se
aproprie da coisa móvel alheia que dolosamente subtraíu; basta que tenha
intenção de dela se apropriar. Por isso se diz que o furto é um crime de
resultado cortado ou parcial; consuma-se logo que haja subtracção,
independentemente de se verificar, ou não, o resultado intencionado, ou
seja, a apropriação. Assim, por exemplo, o ladrão que subtrai a coisa e vai a
fugir com ela já consumou o furto e, no entanto, ainda não se apropriou da
coisa.
A intenção de apropriação tem que ser ilegítima, para que de furto se possa
falar. A ilegitimidade é um elemento do tipo que não se confunde com a
ilicitude como elemento geral do crime. Para que haja ilegitimidade da
intenção de apropriação é necessário que ela esteja em contradição com o
direito de propriedade do lesado. Assim, não é ilegítima a intenção de
apropriação se, por exemplo, alguém subtrai uma coisa para a entregar ao
seu legítimo proprietário e receber alvíssaras, uma vez que essa intenção
não é reprovado pelo direito, não está em contradição com o direito de
propriedade. Do mesmo modo não haverá ilegítima intenção de apropriação
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Também não haverá furto por falta de intenção de apropriação se, por
exemplo, um trabalhador estraga as ferramentas ou os materiais que lhe
foram distribuídos pelo patrão e depois, com medo de ser despedido, subtrai
as ferramentas ou os materiais de um colega da mesma empresa e as
apresenta ao patrão como as que lhe tinham sido confiadas.
O furto qualificado
1. O furto qualificado (ou melhor, os furtos qualificados, porque o
art. 204º contém dois tipos de furto qualificado: um no nº1, outro no nº2) é
uma variante do crime de furto simples, que é o crime base. Por isso, as
considerações que temos vindo a fazer sobre o crime de furto simples do
art. 203º são igualmente válidas para o furto qualificado previsto no art.
204º. Apenas acrescem depois algumas circunstâncias que qualificam o tipo
básico do art. 203º.
3. O tipo objectivo
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3.2.3 O dano pode consistir também em tornar não utilizável uma coisa, mesmo
que só temporariamente, o que significa tornar a coisa inadequada para
cumprir o fim a que se destina sem, contudo, afectar a sua individualidade
(por exemplo, encher de gasóleo o depósito de um veículo que só funciona
a gasolina, pintar o pára-brisas de um veículo de modo a impedir a visão ao
condutor, introduzir corpos estranhos na engrenagem de uma máquina,
atirar ao mar uma jóia, abrir a porta de uma gaiola para libertar um pássaro,
etc.).
(Sobre os vários conceitos em referência- destruir, danificar, desfigurar,
tornar não utilizável, cfr. Maurach/Schroeder/Maiwld, ob. cit., p. 368 ss.;
Samson, SK § 303, nm 4 a 9; Stratenwerth, BT I, cit., p. 221 s.. Entre nós
veja-se C. Andrade, ob. cit., art. 212º, §§ 32 ss.; Leal Henriques/Simas
Santos, ob. cit., p. 510 s.).
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3.3 Sendo o dano um crime de forma livre qualquer das modalidades de acção (
destruir, danificar, desfigurar e tornar não utilizavel) pode ser realizada por
qualquer meio.
3.5 Tratando-se de um crime de resultado o dano tanto pode ser realizado por
acção como por omissão, desde que, no caso de omissão, o agente tenha um
dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar o resultado (art. 10º) e,
portanto, que lhe caiba uma posição de garante pela não produção do
resultado. Assim, cometerá o crime de dano por omissão, um trabalhador do
campo que, por inimizade para com o patrão, deixa de cumprir a obrigação
que assumira de lhe regar a plantação, em consequência do que as plantas
acabam por morrer. (Cfr. Leal Henriques/ Simas Santos, ob. cit., p. 511).
4. Outra questão que se pode colocar a propósito do crime de dano diz respeito
ao concurso. Alguma jurisprudência tem entendido que, por exemplo, nos
casos em que o agente parte o vidro de um veículo para furtar um rádio
haverá concurso efectivo entre um crime de dano e um crime de furto
qualificado (Cfr. neste sentido o Ac. do STJ de 6/5/93, sumariado em
L.Henriques/S.Santos, C.P. Anotado, 2º.vol., 1996, p. 515). Suponho que,
nestes casos, não existe nenhum concurso efectivo entre o crime de dano e o
crime de furto, pois o dano é instrumental relativamente ao furto. O agente
para subtrair o rádio de um veículo que se encontra fechado tem que
danificar a porta, arrombando a fechadura, ou partir o vidro. Por isso, quer o
dano da porta quer a quebra do vidro do veículo são actos de execução do
furto qualificado do auto-rádio, que lesam o mesmo bem jurídico, pelo que,
o dano produzido no veículo deve considerar-se consumido pelo furto
qualificado, mesmo que, como aconteceu no caso do acórdão referido, o
furto já fosse qualificado por outra circunstância. (Neste sentido cfr., por
exemplo, o Ac. do STJ de 4/5/94, sumariado em L.Henriques/ S.Santos,
C.P. Anotado, cit., p. 515.
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Diferentes serão os casos dos chamados danos vandálicos, como seria, por
exemplo, o caso de o agente entrar num veículo que se encontra aberto para
subtrair o rádio e não o conseguindo encontrar golpeia os assentos ou parte
o tablier. Neste caso os danos produzidos no veículo já não seriam
instrumentais do crime de furto, não seriam actos necessários à execução do
furto e, por isso, o dano concorreria em concurso efectivo com a tentativa
de furto.
5. Convém notar que, embora seja aplicável ao dano simples uma pena de
prisão até 3 anos, o legislador decidiu, a partir da revisão de 1995, punir a
tentativa de dano (art. 212, nº 2).
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6. Importa referir ainda que, nos termos do nº4 do art. 212º, o disposto no art.
206º é aplicável ao crime de dano, embora aqui só faça sentido a parte que
diz respeito à reparação do prejuízo causado, o que se compreende, pois, no
caso de dano da coisa, se o agente a restitui danificada ao seu proprietário
não haverá nenhuma conduta reparadora do dano.
7. Também o disposto no art. 207º é aplicável ao dano por força do nº4 do art.
212º. Embora o crime de dano seja semi-público, como resulta do nº 3 do
art. 212º, nos casos previstos no art. 207º o dano segue o regime dos crimes
particulares.
furto, também o dano pode ser qualificado por circunstâncias que não têm a
ver com o valor elevado ou consideravelmente elevado da coisa e, por isso,
podem verificar-se quando a coisa seja de valor diminuto. Daí que o
legislador tenha feito valer também para o dano a cláusula restritiva da
agravação do furto, prevista no art. 204º, nº 4, impedindo, assim, que possa
haver qualificação do dano de uma coisa de valor diminuto com base na
verificação de circunstâncias alheias ao valor da coisa.
Com isto ficou dito o essencial sobre os crimes de dano. Como não vamos
tratar da usurpação de coisa imóvel (art. 215º), nem da alteração de marcos
(art. 216º), passaremos, de imediato, a analisar os crimes contra o
património em geral.
leva o ofendido a dispor do seu património, não através de engano, mas sim
por meio de coacção, utilizando violência ou ameaçando-o com um mal
importante, já não estaremos face a um crime de burla, mas sim de extorsão
(art. 223º), correntemente designado por chantagem.
Uma das críticas que se faz a esta concepção jurídica de património é que
ela não permite distinguir convenientemente os crimes contra a propriedade
dos crimes contra o património em geral, nem dos crimes contra direitos
patrimoniais, contemplados no Cap. IV do Título II, não podendo, por isso,
explicar a divisão sistemática do Código. Além disso, uma tal concepção de
património é, por um lado, demasiado restritiva, na medida em que, para
efeitos de protecção penal, só toma em consideração os direitos subjectivos
que merecem protecção civil, deixando de lado os direitos e obrigações
detidos sem título válido, bem como as meras expectativas patrimoniais, e,
por outro lado, é demasiado ampla pois, como vimos, o dano patrimonial
também existirá, para a referida concepção de património, mesmo que não
se verifique qualquer prejuízo patrimonial.
Esta posição também não é aceitável pois, de acordo com ela, seriam
protegidos pelo Direito Penal não só as expectativas que o Direito Civil não
protege mas também todas as vantagens económicas resultantes de negócios
ilícitos e imorais, incluindo as respectivas expectativas (por exemplo, se um
co-autor de furto ou de roubo enganasse outro co-autor na divisão do
produto do crime, ou se um traficante de droga enganasse outro traficante,
vendendo-lhe um pó inócuo em lugar de droga, haveria burla nos termos do
conceito económico de património).
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económica de património que exige que a pertença dos bens a uma pessoa
seja aprovada pelo Direito . No conceito de património jurídico-penalmente
protegido devem caber também aqueles bens cujo modo de aquisição,
embora não seja aprovado pela Ordem Jurídica, não é contrário a ela, antes
se situa num espaço livre de Direito.
Por lucro cessante entende-se toda a ausência de um ganho que, com maior
ou menor probabilidade, a vítima realizaria se não tivesse ocorrido o acto
lesivo do autor. Na noção de lucros cessantes cabem, portanto, não só os
lucros que com um grau de probabilidade raiante da certeza a vítima
legitimamente teria obtido se não se tivesse verificado o comportamento do
agente, mas também as meras expectativas de realização incerta de lucros.
Estes últimos lucros cessantes não integram o conceito de património e,
portanto, também não entram em consideração para a determinação do
prejuízo patrimonial. Já os primeiros nos parece que devem integrar a
noção de património e, consequentemente, entrar no cômputo do prejuízo
patrimonial.
É deste modo que, a nosso ver, deve ser equacionada e resolvida a questão
de saber se o prejuízo patrimonial nos crimes contra o património abrange
apenas os danos emergentes ou também os lucros cessantes (entgangene
Gewinne). Há alguma confusão no modo como esta questão é,
frequentemente, abordada. Assim, quando, por vezes, se nega que os lucros
cessantes possam constituir uma forma típica de prejuízo patrimonial nos
crimes contra o património, está-se a subentender que os lucros cessantes
são quaisquer hipóteses de ganho, por diminutas que sejam, desde que o
comportamento típico do agente tenha impedido a concretização de alguma
dessas hipóteses e, portanto, a realização de "lucros cessantes" nesse
sentido.
que os lucros cessantes - neste sentido restrito que lhes estamos a dar -
constituem, ao lado dos danos emergentes, uma forma de prejuízo
patrimonial típico, não só na burla, mas também nos outros crimes contra o
património em geral.
1998, p. 393 s.; Otto, ob. cit., p. 213; Samson/Günther SK § 263, nm. 1;
Sousa e Brito, "A burla do art. 451.º do Código Penal - Tentativa de
sistematização", separata da Revista Scientia Ivridica, tomo XXXII, nºs.
181-183, 1983, p. 4 = D.P.II, cit., p. 118).
a) A astúcia
A acção enganatória encontra-se referida no tipo como a provocação
"astuciosa" do erro ou engano. Segundo a Doutrina, a astúcia não é uma
característica psicológica do agente, mas sim "o modo de ser objectivo da
acção" que consiste numa manobra ardilosa, fraudulenta, ou numa
encenação (uma mise-en-scène, na terminologia da Doutrina francesa),
objectivamente idónea a produzir o erro ou engano da vítima. Também se
inclui aqui a chamada acção concludente, de que falaremos mais tarde, mas
sobre a qual podemos adiantar já que se trata de uma acção que tem um
significado socialmente determinado, o que significa que, uma pessoa
medianamente diligente entenderá o conteúdo da mensagem, mesmo que o
autor não o expresse. Na acção concludente não é expresso o conteúdo da
mensagem, mas ela entende-se por ter um significado social inequívoco.
Uma acção concludente pode ser uma acção silenciosa. O silêncio pode, em
determinadas circunstâncias concretas, ter um significado determinado para
qualquer pessoa medianamente diligente.
(Exemplos: entrar num restaurante e comer o que se pediu é acção
concludente de que se tem dinheiro para pagar a despesa; entrar num taxi e
pedir para ser transportado a determinado destino é acção concludente de
que se tem dinheiro para pagar o frete; pernoitar num hotel, etc.).
Por outro lado, é duvidoso que a astúcia possa ser reconduzida a uma
simples mentira, porque a simples mentira nada parece acrescentar à
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A meu ver, a posição mais correcta é a defendida pelo Dr. Sousa e Brito e
por boa parte da Doutrina e jurisprudência, que entendem que a burla,
embora seja um crime de forma vinculada, não cabe na ressalva da parte
final do nº1 do art. 10º. Por isso pode ser realizada por omissão, desde que
estejam verificados os pressupostos do art. 10º e que a acção enganosa seja
uma acção concludente. Portanto, não é qualquer omissão, mas apenas
uma omissão que tenha um significado social inequívoco.
Ainda sobre o erro ou engano é importante notar que não é necessária uma
certeza da vítima quanto à falsa representação da realidade. O erro ou
engano existirá mesmo que a vítima tenha dúvidas, sempre que ela se
disponha a praticar os actos de disposição patrimonial apesar das dúvidas.
(Sousa e Brito, ob. cit., p. 144; Fernanda Palma/Rui Pereira, ob. cit., p.
328).
Note-se que a vítima do erro ou engano pode não ser a vítima do crime de
burla, o que acontecerá sempre que o acto de disposição a que o enganado
foi determinado lese, não o seu património, mas sim o de outra pessoa.
Nestes casos, em que não há coincidência entre a vítima do erro ou engano
e a vítima do crime de burla, ou seja, na chamada burla triangular, é
necessário que o enganado tenha poder de disposição sobre o património
que é lesado pelo seu acto; caso contrário não haverá burla, mas sim furto
em autoria mediata. (Stratenwerth, cit., 242)
Ex: A encontra-se sentado à mesa de um bar e, vendo que outro
cliente deixou uma carteira em cima de uma das mesas, pede ao empregado
do bar que lha traga, fingindo que se esquecera lá dela. O empregado do
bar, acreditando que a carteira era de A vai buscá-la e entrega-lha.
Neste caso o empregado do bar não tem nenhum poder de disposição sobre
a carteira. Por isso, não existe aqui uma burla triangular, mas sim um furto
em autoria mediata, em que A, com intenção de apropriação subtrai a
carteira por intermédio do empregado induzindo-o em erro sobre o carácter
alheio da coisa.
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Exige-se, além disso, que tenha sido o erro ou engano a motivar o acto de
disposição patrimonial. Stratenwerth chama a esta relação "nexo de
motivação". Quer dizer: entre o erro ou engano e a disposição patrimonial
tem que existir, não apenas um nexo de imputação objectiva mas também
um nexo subjectivo. A vontade da pessoa que pratica o acto de disposição
patrimonial tem que se determinar pelo erro ou engano que o autor
astuciosamente nela provocou.(Stratenwerth, BT I, cit., p. 244).
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d) O prejuízo patrimonial
O quarto e último elemento do tipo objectivo da burla é o prejuízo
patrimonial. Caso este resultado típico não chegue a verificar-se, apenas
poderá haver tentativa de burla.
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ressarcido (Ac. STJ, 7.10.91, MBJ, nº 410, p.305; Barreiros, ob. cit., p.
175).
"A mera lesão de um direito quando não haja prejuízo económico, deve ser
questão exclusivamente civil", pois não constitui crime de burla a
defraudação de um direito sem conteúdo económico (Conde-Pumpido
"apud" Bajo Fernández/Pérez Manzano, ob. cit., p. 287).
O tipo subjectivo
4.A burla é, como se sabe, um crime doloso, portanto, o tipo
subjectivo é constituído, antes de mais, pelo dolo, que deverá abarcar todos
os elementos objectivos referidos. Ele consiste em conhecer e querer
praticar uma conduta astuciosa, uma manobra ardilosa, tendo em vista
provocar um erro ou engano em outra pessoa, com base no qual essa outra
pessoa fará, em benefício do autor, uma disposição patrimonial que lhe
causa a ela ou a um terceiro um prejuízo patrimonial.
Note-se, ainda quanto a este elemento que tanto preenche o tipo de burla o
agente que actua com intenção de enriquecer o seu património como o de
terceira pessoa, como claramente resulta das palavras da lei ("com intenção
de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo").
Concurso
5. Quanto ao tipo subjectivo dissemos o essencial. Passaremos agora
a analisar algumas situações de concurso e a forma como a nossa Doutrina e
Jurisprudência as consideram.
A primeira delas tem a ver com o concurso entre o furto e a burla e aquilo a
que a Doutrina alemã chama burla de garantia ou burla de aproveitamento.
Há um Acórdão do STJ de 19.10.94, que tem por base o seguinte caso: em
Novembro de 1989, na Calçada do Tojal, um indivíduo que se dedica a
arrombar caixas de correio para retirar vales postais, arromba uma caixa de
correio e apodera-se dos vales postais que se encontram no seu interior. No
dia seguinte vai à Amadora e faz a mesma coisa. Depois dirige-se a um
estabelecimento de pronto a vestir, situado na Amadora, e, com o propósito
de endossar os vales, furta um carimbo. No espaço dos vales destinado ao
endosso escreve o nome dos destinatários dos vales precedido da expressão
"a rogo de" e apõe por debaixo o carimbo do estabelecimento comercial e
apresenta-se em duas estações dos CTT da Amadora para receber os vales
postais. Na primeira tem êxito, mas na segunda o funcionário dos correios é
mais perspicaz e alerta as autoridades, que surpreendem o indivíduo e o
prendem.
315
Por outro lado o património lesado com o furto dos vales e com a burla de
aproveitamento do seu valor é o mesmo, porque o valor dos vales não
pertence aos correios, mas sim ao titular dos vales que, mediante a
apresentação deles, tem direito a recebê-los. Portanto, embora o dinheiro
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não esteja na detenção do legítimo titular dos vales, a verdade é que esse
dinheiro pertence-lhe, integra o seu património. Por isso, o património
lesado com o furto e com a subsquente burla de aproveitamento é o mesmo.
Sendo assim, e constituindo a burla apenas o modo de apropriação do
produto do furto, deve considerar-se haver apenas um concurso aparente
entre o furto e a burla, e não um concurso efectivo, como entendeu o STJ.
punir o agente duas vezes pelo mesmo acto de execução e, portanto, violar o
princípio "ne bis in idem".
Condições de procedibilidade
6. No que respeita às condições de procedibilidade, como resulta do
nº 3 do art. 217º, a burla é um crime semi-público. Porém, se o agente do
crime for uma das pessoas indicadas no art. 207º alínea a) ( cônjuge ou
companheiro em união de facto, ascendente, descendente, adoptante,
adoptado, parente ou afim até ao 2º grau da vítima), a burla transformar-se-á
em crime particular, uma vez que o art. 217º, nº 4, in fine, remete para
aquele dispositivo.
alínea a) do art. 207º) o crime continua a ser semi-público, pois o art. 217º,
nº4 apenas declara aplicável o disposto na alínea a) daquele normativo. Isto
deve-se ao facto de nos casos previstos na alínea a) a vítima ser um familiar
do agente, ao passo que nas situações previstas na alínea b) o crime não é
praticado no âmbito familiar, a vítima é um terceiro. O beneficiário da burla
é que pode ser familiar do agente, ter com este uma das relações previstas
na alínea a) do art. 207º (assim, Silva Dias, no seu ensino oral). No entanto,
uma grande parte das burlas a que poderia aplicar-se a alínea b) do art. 207º,
poderão ser enquadradas no art. 220º, burla para a obtenção de alimentos, à
qual se aplicam ambas as alíneas do art. 207º, como resulta da remissão
feita no nº 3 daquele art..
6. O Dr. Almeida Costa (Com.Conimb., II, cit., p. 312) entende que parece ser
de aplicar à burla qualificada, por analogia, o disposto no nº 4 do art. 204º,
onde se prevê que não haverá lugar à qualificação do furto se a coisa
furtada for de valor diminuto, o que, em todo o caso só terá conteúdo útil no
caso da alínea b). Este raciocínio parece-me correcto, uma vez que se trata
de analogia em favor do réu, portanto permitida, e de um ponto de vista de
justiça material, não parece haver qualquer razão para não qualificar o furto
de coisa de valor diminuto e qualificar a burla quando o prejuízo
patrimonial seja de valor diminuto.
Não basta, pois, que o agente, com intenção de não pagar, consuma
alimentos ou bebidas ou utilize serviços de hotelaria ou de transporte que
supõem o pagamento de um preço. É necessário que tais bens ou serviços
sejam gratuitamente fornecidos ao agente em consequência de erro que ele
astuciosamente provocou na vítima (através de uma acção concludente).
O Dr. Silva Dias, no seu ensino oral, concorda com a posição de Marques
Borges, no que se refere a entender a recusa de pagamento da dívida como
uma condição de punibilidade até ao incício do procedimento criminal.
Mas, na verdade, a posição do Dr. Silva Dias é diferente, pois ele entende
que nem sequer a primeira recusa de pagamento da dívida por parte do
agente é um resultado que faça parte do tipo, mas tão só uma condição de
punibilidade, que se situa fora da estrutura do ilícito típico, que acresce a
este. O art. 220º é, na perspectiva deste autor, um crime de mera actividade,
que se consuma com o "fazer servir" os alimentos ou bebidas ou com o
"utilizar" os serviços indicados no referido art.. No entanto, parece-nos que
o Dr. Silva Dias entra em contradição quando, a determinada altura do seu
pensamento, diz que "o não pagamento resulta da própria factualidade
típica, porque se o agente pagar não há tipo". Não vemos como possa o tipo
estar preenchido com o "fazer servir" os alimentos ou as bebidas ou com o
"utilizar" os serviços e depois deixar de existir o tipo com o pagamento do
preço. Se não há tipo caso o agente pague, isto só pode significar que o
preenchimento do tipo pressupõe como resultado que o agente não pague. E
não nos parece que resolva esta contradição o facto de o Dr. Silva Dias
entender, como entende, que "o agente não pagar" é diferente de "o agente
se negar pagar", e que "o não pagar" é requisito típico, mas o "negar-se a
pagar" é simples condição de punibilidade. É que, ainda que houvesse
diferença nos dois referidos comportamentos e que essa diferença relevasse
para o preenchimento do tipo, continuaria por explicar como pode o crime
estar já consumado com o simples "fazer servir" ou "utilizar", se o "não
pagar" é elemento do tipo. Além de que, também não se compreende como
possa o não pagamento - que é um resultado, separável no tempo e no
337
Não cremos que este entendimento do art. 220º seja correcto. A nosso ver a
recusa de solvência da dívida contraída não é uma mera condição de
punibilidade, mas sim (quando conjugada com a utilização dos bens ou
serviços pelo agente, com base no engano que este produziu na vítima), o
próprio desvalor do resultado, o que constitui, como se sabe, um dos dois
aspectos fundamentais do ilícito (desvalor de acção e desvalor de resultado).
O resultado ilícito, em suma, consiste aqui na deslocação dos bens e
serviços do património da vítima para o património do agente, sem qualquer
contrapartida e com base no engano que o agente produziu na vítima, acerca
da sua intenção de não pagar. Dizer que o comportamento do agente, ao
negar-se a solver a dívida contraída, constitui no tipo legal do art. 220º uma
mera condição de punibilidade é, a nosso ver, tão inexacto como seria
afirmar que a morte da vítima é uma condição de punibilidade do
homicídio. Não se trata, num caso e noutro, de condições de punibilidade,
mas sim de factos que incorporam o núcleo essencial do desvalor de
resultado que caracteriza o respectivo tipo legal de crime.
oferecida pela casa, visto ela comemorar nessa data o 10º aniversário da sua
existência, para o Dr. Silva Dias existirá já um crime consumado. Em nosso
entender, porém, nada mais há do que uma tentativa, aliás impossível, da
infracção prevista e punida no art. 220º, uma vez que o resultado típico - a
recusa de pagamento da contra-prestação - não se verificou.
Tipo subjectivo
4. Quanto ao tipo subjectivo, entende o Dr. Silva Dias que ele exige,
além do dolo, a intenção específica de não pagar. Para ele, como vimos, a
recusa de pagamento da dívida por parte do agente não é um resultado que
339
faça parte do ilícito, mas sim um resultado que está para além do tipo e,
portanto, nessa perspectiva, não tem que ser abrangido pelo dolo.
Condições de procedibilidade
5. A burla prevista no art. 220º é um crime crime semi-público, como
resulta do disposto no nº 2 desse art., mas pode transformar-se em crime
particular se se verificarem os requisitos do art. 207º, para o qual remete o
nº 3 do crime em análise.
Tipo subjectivo
3. Quanto ao tipo subjectivo do art. 221º, ele é também idêntico ao da
burla do art. 217º. Além do dolo, que tem que abranger todos os elementos
objectivos do tipo, exige-se a intenção específica de enriquecimento
ilegítimo que, como sabemos, é um elemento subjectivo da ilicitude que
não se confunde com o dolo intencional, pois a intenção de enriquecimento
não tem correspondência no tipo objectivo, uma vez que o tipo não exige o
enriquecimento.
Trata-se de um tipo legal de crime cujo bem jurídico é (tal como na burla
simples prevista no art. 217º e na burla informática prevista no nº 1 do
preceito em análise) o património. Visa-se aqui proteger o património
através da incriminação de vários comportamentos que põem em causa o
normal funcionamento ou exploração de serviços de telecomunicações.
Tipo objectivo
6. O tipo objectivo do crime previsto no nº 2 do art. 221º consiste em
o agente causar a outrem um prejuízo patrimonial, usando:
- programas
347
- dispositivos electrónicos ou
- outros meios
que, separadamente ou em conjunto, se destinem a diminuir, alterar ou
impedir, total ou parcialmente, o normal funcionamento ou exploração de
serviços de telecomunicações.
Tal como acontece no nº1 do art. 221º, trata-se aqui também de um crime de
resultado. Exige-se que o agente, com o seu comportamento, cause a outra
pessoa um prejuízo patrimonial .
Tipo subjectivo
7. No que respeita ao tipo subjectivo, ele requer, além do dolo, um
outro elemento subjectivo da ilicitude, que é a intenção de obter, para o
agente ou para terceiro, um benefício ilegítimo. Tal como a intenção de
enriquecimento ilegítimo, exigida pelo nº 1, também a intenção de obter
benefício ilegítimo, a que se refere o nº 2, não tem correspondência no tipo
objectivo. Não é necessário para o preenchimento do tipo que o agente
chegue, realmente, a obter, com a sua conduta, um benefício ilegítimo;
basta para o preenchimento do tipo que o agente tenha actuado com a
intenção de o obter.
Tentativa
8. Não obstante a pena aplicável, quer ao nº 1, quer ao nº 2, do art.
221º, ser até 3 anos de prisão, a tentativa é punível, nos termos do nº 3 do
referido art., o que, como é sabido, constitui uma excepção à regra geral do
art. 23º, nº 1.
Condição de procedibilidade
348
Tipo subjectivo
4. Ao nível do tipo subjectivo exige-se, quer no nº 1, quer no nº 2, o
dolo e, além disso, a intenção de obter enriquecimento ilegítimo para si
mesmo ou para terceiro.
Qualificação
5. Por remissão do nº3 do art. 222º a burla relativa a trabalho ou
emprego pode ser qualificada em função das circunstâncias previstas no nº
350
Tipo objectivo
2. O tipo objectivo da extorsão consiste em constranger outra
pessoa a uma disposição patrimonial que acarrete, para ela ou para
outrem, prejuízo. Os meios utilizados pelo agente para constranger a vítima
terão que ser a violência ou a ameaça com mal importante. Trata-se, pois,
de um crime de execução vinculada.
2.3 A ameaça com mal importante a que se refere o art. 223º é mais
abrangente do que a ameaça prevista no art. 153º, não só porque a ameaça
pode ter por objecto um mal que não constitua ilícito penal ou de qualquer
outra espécie (civil, laboral, etc.), mas também pelo facto de a ameaça com
mal importante, no âmbito da extorsão, poder traduzir-se numa ameaça a
bens não protegidos pelo art. 153º (por exemplo, a ameaça para a honra, a
reputação, o crédito comercial, o bom nome profissional ou artístico, a
tranquilidade pessoal ou familiar, etc.). (Taipa de Carvalho, Coment.
Conimb. ao C.P., p. 356; L.Henriques/S.Santos, ob. cit., p. 586).
Em nosso entender, o mal importante com que o agente ameaça tanto pode
ser ilícito como lícito. O facto de o agente ter direito a praticar determinado
comportamento não impede que esse comportamento constitua um mal
importante para a vítima. É o que acontece com a ameaça de queixa
criminal fundada; o facto de ser um direito do ameaçante interpor a queixa
crime não impede que ela se traduza num mal importante para o ameaçado.
Do mesmo modo, a ameaça de despedimento de um trabalhador com
355
O Dr. Silva Dias entende que a posição do Prof. Taipa de Carvalho não é
correcta, por duas ordens de razões: em primeiro lugar “porque a construção
de um tipo de crime com elementos constitutivos da coacção ou de qualquer
outro, não autoriza a transferência do regime jurídico desse crime, cujos
elementos constitutivos se integra. Se ass im fosse, se cada vez que a
construção de um tipo de crime com elementos pertencentes a outro tipo de
crime implicasse a importação do regime jurídico desse outro tipo de crime,
se isso pudesse fazer-se, então nós teríamos de transferir a cláusula de não
censurabilidade do art. 154º, nº 3, alínea a), também para o âmbito da
coacção sexual, o que conduziria a resultados altamente insustentáveis”.
O exemplo da coacção sexual é dado pelo Dr. Silva Dias porque, como ele
diz, “a coacção sexual é construída também com base na coacção do art.
154º, é um caso especial da coacção do art. 154º que integra elementos
constitutivos do crime de coacção do art. 154º”.
O Dr. Silva Dias entende que “uma vez que o crime complexo é um crime
autónomo", deve aplicar-se a regra de que "sempre que um tipo de crime é
construído com base em elementos constitutivos de um outro tipo de crime,
isso não implica, necessariamente, a transferência para este tipo de crime do
regime jurídico do outro”. Segundo o Dr. Silva Dias, o caso apresentado
pelo Prof. Taipa de Carvalho pode ser solucionado no âmbito do art. 223º,
pelo afastamento da tipicidade, mas por falta de intenção de enriquecimento
ilegítimo.
Estou plenamente de acordo com o Dr. Silva Dias quando ele diz que no
caso apresentado pelo Prof. Taipa de Carvalho seria de excluir a tipicidade
com base na falta de intenção de enriquecimento ilegítimo. Na verdade, se
B tinha um crédito sobre A no valor do cheque, não se pode dizer que
358
Já não estou de acordo com o Dr. Silva Dias quando, para afastar a cláusula
da não censurabilidade, argumenta que não se pode transpor para o crime
complexo o regime do crime simples e utiliza o exemplo da coacção sexual
para mostrar a incorrecção da aplicabilidade da cláusula da não
censurabilidade à extorsão. É que, em primeiro lugar, não se vê como possa
a coacção sexual não ser censurável, em segundo lugar, a questão de saber
se o regime da não censurabilidade previsto para o crime de coacção pode
ou não ser aplicado ao crime de extorsão, não tem a ver com o facto de se
tratar de um crime complexo autónomo ou de um crime simples. Tudo
depende da interpretação dos tipos e de saber se a analogia é ou não
essencial, isto é, se se refere àquele mesmo elemento que é comum aos dois
tipos legais e que foi determinante da valoração do tipo penal. E não há
dúvida de que existe analogia essencial entre os dois tipos, no que se refere
ao meio empregado pelo agente para obter o resultado pretendido. Na
verdade esse meio é, tanto num como noutro tipo legal, "a violência ou
ameaça com mal importante" e a utilização de violência ou ameaça com
mal importante requer como limitação do tipo legal a cláusula da
censurabilidade, pois, de outra forma, estes tipos de crimes restringiriam de
modo insuportável a liberdade de exercício de direitos. Há, nomeadamente
ameaças com males importantes (para a vítima) que, apesar de tudo, são
actos lícitos, não constituindo, portanto, qualquer crime, como é o caso dos
exemplos que demos supra. É a cláusula da censurabilidade que permite
aqui delimitar os casos de ameaça com relevância criminal dos actos lícitos.
359
3. Tipo subjectivo
Do exposto resulta que também não podemos concordar com o Prof. Taipa
de Carvalho quando diz que a errónea suposição da legitimidade do
enriquecimento exclui o dolo da extorsão. Na verdade, não sendo o
enriquecimento ilegítimo elemento objectivo do tipo que deva ser abrangido
pelo dolo, o erro sobre a legitimidade do enriquecimento não é nenhum erro
sobre o facto típico que exclua o dolo. É sim um erro sobre um elemento
objectivo da intenção de carácter normativo - a ilegitimidade do
enriquecimento - . Tal erro poderá ser análogo ao erro sobre o típico,
devendo, nesse caso, excluir a intenção de enriquecimento ilegítimo e com
isso o próprio tipo da extorsão por falta desse seu elemento subjectivo.
Assim, se, por exemplo, o agente quer constranger a vítima a entregar-lhe
uma coisa a que tem direito e a confunde com outra que não é sua, por
analogia com o erro sobre o tipo estará excluída a intenção de
enriquecimento ilegítimo (não o dolo), porque a intenção do agente não se
dirige a um enriquecimento contrário ao direito.
364
4. Tentativa
Extorsão agravada
5. A pena da extorsão pode ser agravada nos termos dos nºs 2 e 3 do
art. 223º. No nº 2 a pena é agravada no seu limite mínimo para 6 meses de
prisão, se a ameaça consistir na revelação, por meio da comunicação social,
de factos que possam lesar gravemente a reputação da vítima ou de outra
pessoa. Portanto, a ameaça de revelação de factos que possam lesar
gravemente a reputação de outra pessoa só constituirá agravante do crime
de extorsão se o mal com que a vítima é ameaçada for a revelação dos
factos através da comunicação social. Quando a ameaça seja de revelação
de factos que possam lesar a reputação de outra pessoa tem que tratar-se de
pessoa próxima da vítima, cuja lesão da reputação possa coagir a vítima à
disposição patrimonial. É uma situação idêntica à do estado de necessidade
subjectivo que só se verifica relativamente a pessoas muito próximas da
vítima.
No nº3 prevê-se uma agravação da pena nos seus limites mínimo e máximo,
que passará a ser de 3 a 15 anos de prisão, caso se verifiquem determinados
elementos de agravação do furto qualificado ou do roubo. Assim, a extorsão
será agravada, de acordo com a remissão feita no nº 3 línea a), quando se
verificarem as seguintes circunstâncias:
- ser o valor do prejuízo patrimonial consideravelmente elevado
(alínea a) do nº 2 do art. 204º);
- trazer o agente no momento da prática do crime arma aparente ou
oculta (alínea f) do nº 2 do art. 204º);
- ser a extorsão realizada por membro de bando destinado à prática
reiterada de crimes contra o património, com a colaboração de
pelo menos mais um membro do mesmo bando (alínea g) do nº 2
do art. 204º);
367
Extorsão de documento
6. O nº 4 do art. 223º foi introduzido pela reforma de 1998, mas
equivale, com ligeiras alterações de forma, ao art. 223º, antes da referida
revisão, que tinha por título "Extorsão de documento" e que, por sua vez
,correspondia ao art. 318º da versão originária do Código Penal de 1982,
que resultou do art. 219º do Projecto do Prof. de Eduardo Correia. A ratio
legis do art. 223º, nº 4, é, como dizia o Prof. Eduardo Correia a propósito da
justificação do art. 219º do seu Projecto, "punir quem abusando da situação
de necessidade de outrem, recebe deste um documento que o põe à mercê
de um procedimento criminal" (Acta, nº 9). Por outras palavras, o
fundamento político-criminal do art. 223º, nº 4, é impedir que o credor
exerça coação sobre o devedor com vista a obter deste um documento que
possa dar causa a procedimento criminal. Visa-se, portanto, com a
incriminação em análise, como diz o Prof. Taipa de Carvalho, "evitar que o
credor constranja o devedor a praticar um crime, cuja prova ficaria nas
mãos do credor, o que, evidentemente, constituiria, na prática, uma
'garantia' ou um reforço de garantia do credor, que, a todo o momento,
podia fazer 'chantagem' sobre o devedor, ficando inutilizados, na prática, e
368
Tipo objectivo
7. O tipo objectivo é composto pelos seguintes elementos:
369
- "garantia de dívida"
- "abuso da situação de necessidade"
- "obtenção de documento que possa dar causa a procedimento
criminal"
Estamos plenamente de acordo com o Dr. Silva Dias quando diz que não é
necessário que o documento dê efectivamente causa ao procedimento
criminal, pois o tipo não exige, para o seu preenchimento, que seja
instaurado com base no documento qualquer processo criminal. Basta que o
credor, aproveitando-se da situação de necessidade do devedor, obtenha
deste, como garantia de dívida, documento apto a dar origem a um
procedimento criminal para, sem mais, estar preenchido o tipo.
Já não estamos de acordo com o Dr. Silva Dias quando ele, no caso de ter
sido instaurado o procedimento criminal independentemente da existência
do documento extorquido, exige, para a existência da infracção, que o
documento seja apresentado como meio de prova no procedimento criminal.
Porque das duas uma: ou o documento é apto a dar causa a um
procedimento criminal - e, em tal hipótese, está preenchido o tipo legal,
independentemente de o documento estar na origem do procedimento
criminal ou ser apresentado no decurso desse procedimento; ou o
documento, pelo contrário, não é apto para dar causa a um procedimento
criminal - e, nessa hipótese, o tipo legal não está preenchido, mesmo que o
documento venha a ser apresentado no decurso do procedimento criminal.
373
Tipo subjectivo
375
Concurso
9. Relativamente ao concurso, entre a extorsão prevista nos nºs 1 a 3
do art. 223º e a coacção (art. 154º) haverá concurso de normas, em que a
extorsão prevalecerá por aplicação da regras da especialidade, dado que a
extorsão é, como já vimos, uma norma especial em relação à coacção.
Quanto à relação entre a extorsão simples e a coacção grave (art. 155º),
funcionará uma consumpção impura, uma vez que o limite mínimo da pena
prevista neste preceito é superior à pena da extorsão simples. Também entre
a extorsão e o crime de ameaças (art. 153º) funciona a regra da
especialidade, uma vez que a coacção é lei especial relativamente ao crime
de ameaças e a extorsão é, por sua vez, lei especial relativamente à
coacção.
Tipo Objectivo
2. Quanto ao tipo objectivo, o crime de infidelidade é constituído por
uma relação de confiança, por uma violação grave dos deveres decorrentes
dessa relação de confiança e por um prejuízo patrimonial importante que daí
resulta.
378
2.3 Não basta, além disso, qualquer violação dos deveres confiados
ao agente; é necessário que se trate de uma violação grave "intensa,
importante, significativa". (Leal Henriques/Simas Santos, ob. cit, p. 595).
Tipo subjectivo
4. Quanto ao elemento subjectivo, exige o tipo que o prejuízo
patrimonial importante seja causado intencionalmente. Não se trata aqui de
uma intenção especial que acresce ao dolo, mas sim do próprio dolo
intencional, ou dolo directo do 1º grau a que se refere o art. 14º, nº 1, pois o
objecto da intenção é o resultado exigido pelo tipo. Afasta-se, portanto, a
possibilidade de o tipo legal da infidelidade poder ser realizado com dolo
eventual ou com dolo necessário.
Não queremos com isto dizer que não existam casos de verdadeiro dolo
necessário, em que a não punição pelo art. 224º, por falta de dolo
intencional, possa afigurar-se chocante de um ponto de vista de justiça
material. Mas, bem vistas as coisas, é exactamente em tais situações que é
posto à prova o respeito ou desrespeito pelo princípio da legalidade. Ao fim
e ao cabo, é mais importante num Estado de Direito que não se ofenda esse
princípio, do que deixar impunes alguns casos com clara dignidade penal. É
ao legislador, e não ao intérprete, que cabe alterar, nos devidos termos, a
formulação de um tipo legal de crime, quando a sua redacção actual leva a
que fiquem impunes casos que mereciam tanto ser punidos como alguns, ou
até a maior parte daqueles que são indubitavelemte abrangidos por tal tipo
legal. Considerações semelhantes valem para outros tipos legais de crime,
em que o legislador exige expressamente dolo intencional, como acontece
no nº 1 do art. 220º ("com intenção de não pagar"). Também aí, a grande
maioria das dificuldades desaparecerá se for tido em conta que muitas das
situações frequentemente consideradas de dolo necessário, são,
verdadeiramente, casos de dolo intencional, pois referem-se a objectivos
intermédios do agente.
Exemplos:
1)Admitamos que A, administrador de um condomínio, sem
consultar os condóminos investe todo o dinheiro do condomínio na bolsa,
numa fase em que tal comportamento, segundo as regras de uma boa gestão,
não era aconselhavel (o exemplo é dado por Silva Dias). Poder-se-à
387
Tentativa
5. A tentativa de infidelidade é punível, conforme preceitua o nº
2 do art. 224º, não obstante a pena aplicável ao crime consumado não ser
superior a 3 anos. O articulado proposto pelo Prof. Eduardo Correia à
consideração e discussão da Comissão Revisora do Código de 1982 não
previa a punibilidade da tentativa e, embora tivesse sido sugerido pelo Dr.
Fernando Lopes que ela ficasse consagrada, tal sugestão mereceu a
reprovação do Prof. Figueiredo Dias e do Dr. António Simões que
entendera, que, dessa forma, se daria ao tipo da infidelidade uma excessiva
amplitude. No entanto a punibilidade da tentativa veio a ser consagrada já
na versão originária do Código (art. 319, nº 3), tendo-se mantido após as
revisões de 1995 e de 1998.
Concurso
6. Entre a infidelidade e vários outros crimes contra o património,
nomeadamente o abuso de confiança ( art. 205º, nº 4) e a burla qualificada
(art. 218º, nºs 1 e 2, alíneas a) e c)), existe uma relação de subsidiariedade.
Entre o crime de administração danosa (art. 235, nº 1) e o crime de
infidelidade pode existir uma relação de especialidade, prevalecendo, nesse
caso, o crime de administração danosa.
Condição de procedibilidade
7. O crime de infidelidade é semi-público, como resulta do nº 3 do
preceito em análise, podendo transformar-se em particular, nos casos
389
previstos na alínea a) do art. 207º, por força da remissão feita para este art.
na parte final do nº 4 do art. 224º.
O Dr. José António Barreiros entende que o crime em análise visa proteger
as entidades emitente de cartões face aos titulares destes que ultrapassam o
limite do crédito que lhes é concedido. Diz ele que da formulação legal
"quem abusando da possibilidade" há que retirar a conclusão de que a
aplicação do tipo se restringe "às pessoas que tenham ao seu dispor essa
possibilidade e que são afinal e limitadamente os titulares dos cartões".
390
Mas ele não tem razão porque (para além das considerações feitas no
âmbito da Comissão de Revisão, aquando da proposta de introdução da
incriminação em causa, que são claras no sentido de que se quis abranger no
preceito, não só o titular legítimo do cartão, mas qualquer possuidor), - da
expressão legal "quem, abusando da possibilidade" de modo algum se pode
retirar que só o titular legítimo do cartão pode cometer o crime.
Elementos objectivos
2. A conduta típica traduz-se num abuso da possibilidade que é
conferida pela posse de um cartão de garantia ou de crédito. Quer dizer: o
abuso da posse de cartão de garantia ou de crédito consiste em levar a
entidade emitente do cartão a fazer um pagamento que lhe causa a ela ou a
terceiro um prejuízo patrimonial. O titular do cartão pode abusar da
possibilidade que lhe é conferida pela posse do cartão, por exemplo,
ultrapassando os "plafonds" de crédito. Outra qualquer pessoa abusará
391
Tipo subjectivo
3.O dolo, em qualquer das suas modalidades, é o elemento subjectivo
do tipo de abuso de cartão de garantia ou de crédito. Não se exige qualquer
outro elemento subjectivo para além do dolo.
Tentativa
4. A tentativa é punível, de acordo com o nº 2 do preceito em análise.
Agravação
7. No nº 5 do art. 225º preveem-se agravações do crime de abuso do
cartão de crédito ou de garantia em função do valor elevado e
consideravelmente elevado do prejuízo (alíneas a) e b), respectivamente),
392
Concurso
8. Quando o agente do crime de abuso de cartão de garantia ou de
crédito não for o titular do cartão a obtenção deste pode ter sido conseguida
através de um outro crime (por exemplo, o furto). Nesse caso, poderá
verificar-se um concurso efectivo, se os patrimónios lesados forem
diferentes. Mas haverá apenas um concurso aparente se o património lesado
for o mesmo. Nesse caso o abuso de cartão de garantia consumirá o furto do
cartão.
Mas embora haja uma certa sobreposição nas previsões do art. 282º do C.C.
e do art. 226º do Código Penal, a meu ver há algumas diferenças entre as
duas normas, quer ao nível objectivo, quer ao nível subjectivo, que se
395
Por isso, não creio que o Dr. Silva Dias tenha razão quando diz que a
distinção entre os artº 282º do C.C. e 226º do C.P. tem que ser feita apenas
com base no elemento subjectivo, porque entre as duas disposições não há
diferença substancial no plano objectivo. Para ele "benefícios excessivos ou
injustificados" tem o mesmo significado que "vantagem pecuniária
manifestamente desproporcionada com a contraprestação".
No que respeita aos elementos subjectivos, o art. 226º exige, para além do
dolo, que o agente actue com especial "intenção de alcançar um benefício
patrimonial" para si ou para terceira pessoa. Portanto, o elemento
subjectivo específico do art. 226º constitui também um importante elemento
diferenciador do tipo de usura relativamente à anulação dos negócios
usurários ilícitos.
Tipo objectivo
4. O tipo objectivo do crime de usura é constituído pela exploração de
uma situação de necessidade, anomalia psíquica, incapacidade, inépcia,
inexperiência, fraqueza de carácter ou relação de dependência do devedor,
que leva a que este prometa ou se obrigue a conceder vantagem pecuniária
manifestamente desproporcionada com a contraprestação.
397
Já não se verificará aquele elemento típico se, por exemplo, alguém, para
satisfazer necessidades de luxo, para investir, para jogar, etc., aceitar um
empréstimo com juros usurários, mesmo que não haja alternativas, pois, em
tais casos, faltará uma motivação ético-socialmente relevante.
Tipo subjectivo
1. O tipo subjectivo da usura é constituído pelo dolo e pela intenção
especial de alcançar um benefício patrimonial.
Tentativa
5. De acordo com o nº 2 é punível a tentativa, não obstante a pena
aplicável ao crime consumado não ser superior a 3 anos.
Condições de procedibilidade
7. A usura é um crime semi-público, não convertível em crime
particular.
399
Usura agravada
8. No nº 4 encontram-se previstas várias circunstâncias que agravam
a usura.
Na alínea a) considera-se agravante o agente fazer da usura modo de vida.
Quanto à interpretação desta circunstância vale aqui, mutatis mutandis o
que dissemos relativamente à alínea b) do nº 2 do art. 218º (burla
qualificada com base em o agente fazer da burla modo de vida).
Na alínea b) agrava-se a usura pela circunstância de o agente dissimular a
vantagem pecuniária ilegítima exigindo letra ou simulando contrato. Será,
por exemplo, o caso de o usurário exigir que a vítima lhe assine uma letra
ou um contrato para encobrir a vantagem pecuniária que irá conseguir com
o negócio usurário.