Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
RESUMO
ABSTRACT
This article presents the Idea of “Memory Place” and how this idea is appropiates
by the politics of patrimony preservation. Memory Place is a category that observes the
fisical space (material) as support to build a colective memory (imaterial). That idea is
studied through Pierre Nora analyse. We argue that one can find that category in the
preservation of Terreiro Casa Branca, in the city of Salvador. This preservation deals with
space as depository of imaterial patrimony.
I. Introdução
Este trabalho tentará traçar, por fim, o debate maior no qual está inserido: a
preservação de um patrimônio que se diz imaterial.
Jorge Luis Borges, nas suas Histórias da Noite, nos descreve os pensamentos de
um dos seus personagens a respeito da vida: "Sabia que o presente não passa de uma
partícula fugaz do passado e que estamos feitos de esquecimentos, sabedoria tão inútil
como os corolários de Spinoza ou as magias do medo".3 A citação acima exemplifica bem
a idéia que Pierre Nora desenvolve no seu já clássico texto Entre memória e história – a
problemática dos lugares: a afirmativa de que não existe mais memória, que esta só é
revivida e ritualizada numa tentativa de identificação por parte dos indivíduos e que a
sociedade utiliza-se hoje da história para lhe conferir lugares onde pode pensar que não
somos feitos de esquecimentos, mas, de lembranças: "Os lugares de memória são,
antes de tudo, restos. A forma extrema onde subsiste uma consciência comemorativa
numa história que a chama, porque ela a ignora".4
A década de 1970 foi marcada pelo descontentamento geral com o mundo pós-
industrializado e uma crise que refletia a necessidade da reelaboração da sociedade
moderna altamente historicizada, dando origem à chamada "crítica da modernidade". Na
modernidade surge a autoconsciência de que o passado não é um livro de exemplos, de
que o tempo que se vive é o reino do novo.5 A dinâmica da sociedade de massas parece
estar sempre em ruptura com o passado. Para Nora, no entanto, a necessidade de
passado se mostra latente através da busca pela memória.
Nora dirá então que "a memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na
imagem, no objeto. A história só se liga a continuidades temporais, às evoluções, e às
relações das coisas. A memória é o absoluto e a história o relativo".8
Com a observação desses dois conceitos, Nora faz o que parece ser a sua grande
denúncia: vivemos o momento em que as sociedades modernas, no limite de sua
transformação da memória em história, a eliminou já quase por completo. Para esse autor
o presente "é o momento preciso onde desaparece um imenso capital que nós vivíamos
na intimidade de uma memória, para só viver sob o olhar de uma história reconstituída".9
O autor, na sua busca para uma solução possível ao problema de "não se ter
memória", pontua que se não há uma memória espontânea e verdadeira, há, no entanto,
a possibilidade de se acessar a uma memória reconstituída que nos dê o sentido
necessário de identidade. Para Nora: "Os lugares de memória nascem e vivem do
sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, organizar
celebrações, manter aniversários, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque estas
operações não são naturais".14
Isso faz parte de sua idéia de que os lugares de memória se configuram
essencialmente ao serem espaço onde a ritualização de uma memória-história pode
ressuscitar a lembrança, tradicional meio de acesso a esta.
Os lugares de memória estão, portanto, definidos por este critério: "só é lugar de
memória se a imaginação o investe de uma aura simbólica [...] só entra na categoria se
for objeto de um ritual".15 Toda essa atenção de Nora à necessidade de ritualização da
memória pede que pensemos na função que o ritual exerce nas sociedades.
o rito distingue até o infinito, atribui valores discriminativos aos menores elementos, mas
também se abandona a uma orgia de repetições. Através das palavras proferidas, gestos
cumpridos, objetos manipulados, o ritual tanto introduz diferenças no seio de operações
que poderiam parecer idênticos, como reproduz interminavelmente o mesmo enunciado,
mostrando assim estar estranhamente habitado por uma obsessão: refazer o contínuo a
20
partir do descontínuo, evitar toda interrupção na continuidade do vivido [...].
Portanto, o ritual teria, nessa definição, o papel narrativo de consolidação e
totalização, é através de sua prática que se reúnem elementos característicos de um
grupo, conferindo-lhe sentido, unificando-o.
Podemos observar como esse discurso sobre os lugares de memória como único
meio de acesso da sociedade a sua memória formadora, organizadora e portadora de
sentidos encaixa-se dentro da crise pela qual passa as formas de conhecimento na
década de 1970.
Um destes livros tem como nome “Livro de registro dos lugares” no qual, segundo
o texto do decreto, estarão inscritos "mercados, feiras, santuários, praças e demais
espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas", o decreto ainda
observa a finalidade desta inscrição: "A inscrição num dos livros de registro terá sempre
como referência a continuidade histórica do bem e sua relevância nacional para a
memória, a identidade e a formação da sociedade brasileira".23
Francisco Weffort, então Ministro da Cultura quando da legislação do
decreto, em carta ao Presidente da República expondo os motivos de sua criação e do
registro de um patrimônio imaterial, afirma que uma das utilidades do registro, como nova
ferramenta de proteção legal do patrimônio, seria a de "instituir obrigação pública e
governamental, sobretudo de inventariar, documentar, acompanhar e apoiar a dinâmica
das manifestações culturais, mecanismo fundamental para a preservação de sua
memória".24
A idéia exposta no livro de registro dos lugares é essencialmente aquela aqui já
apresentada, que o espaço pode e traz uma memória coletiva, fundamentada pela
realização nele de práticas culturais e que, por isso, deve ser preservado. A política de
preservação, no entanto, ainda observa a categoria nação. O espaço que tem uma
memória coletiva que deve ser preservada é aquele que identifica um grupo social
importante na construção de uma identidade maior: a da nação brasileira.
A política de preservação iniciada em 2000 traz elementos que desde a década de
1980 já estavam sendo discutidos e apropriados, especialmente após a gestão de Aloísio
Magalhães no IPHAN, que teve papel fundamental na reorientação pela qual passou a
política de preservação federal nos fins da década de 1970. 25
Um destes elementos presentes já na política do IPHAN durante a década de 1980
é exatamente a noção que Nora expõem: a de Lugares de Memória.
O exemplo que podemos observar claramente é o da preservação do terreiro Casa
Branca em Salvador. A polêmica gerada a partir da preservação deste bem nos mostra
como estava em jogo uma visão de patrimônio diferente daquela desenvolvida desde
1937.26
O terreiro Casa Branca, segundo seus integrantes, foi fundado no começo do
século XIX, inicialmente atrás da Igreja da Barroquinha, no centro de Salvador,
posteriormente (na metade do mesmo século) foi transferido para a periferia de Salvador
onde se encontra até hoje. Considerado o terreiro mais antigo do país, teria sido fundado
por um grupo de sacerdotisas da nação Nagô que o teriam consagrado a Xangô (senhor
do raio e do trovão). Isto indica que o terreiro seria a primeira casa onde se celebrava as
tradições da mitologia Iorubá.27
[...] existe vasta gama de bens – procedentes, sobretudo do fazer popular – que por
estarem inseridos numa dinâmica viva do cotidiano não são considerados como bens
culturais nem utilizados na formulação das políticas econômicas e tecnológicas. No
entanto, é a partir deles que se afere o potencial, se reconhece a vocação e se descobrem
31
os valores mais autênticos de uma nacionalidade.
No entanto, “os valores mais autênticos de uma nacionalidade” não são vistos na
preservação do Casa Branca como os valores religiosos de uma nação, mesmo porque a
nação é, nesse discurso, plural e não poderia privilegiar a religião de um grupo específico,
o foco é dado, nesta preservação, ao grupo social que envolve a religião. O grupo social
em questão aqui é o dos negros, tidos, como seria depois colocado na constituição
federal de 1988, como um dos "grupos participantes do processo civilizatório nacional".32
A nação, no discurso da política de preservação, é tida como múltipla, diversa. A
constituição de 1988 tem no seu artigo 215 a função de assegurar essa premissa. Mas,
olhando para a preservação do Casa Branca, observamos que esta política esconde o
fato de que ela está formando a nação através de memórias fragmentadas,
configurando-a assim em espaço de luta de grupos sociais para o reconhecimento de
suas memórias especificas como portadoras de algo que forma ou formou a nação.33 Tal
processo se dá pela crise em que se encontra o Estado-nação, que suprimia as
diferenças em prol da "comunidade".34
Gonçalves, na sua análise dos discursos do patrimônio cultural, expõe esta
questão aproximando-se de Nora ao dizer:
Tal realidade [a nação Brasil], no entanto, é uma promessa, uma realização sempre
adiada, o objeto de um desejo permanentemente insatisfeito. Ela é produzida por meio de
elementos que compõem o patrimônio cultural e que são, ao mesmo tempo, fragmentárias
35
e parte de uma totalidade perdida.
Nessa política de preservação, o terreiro cumpre a função de lugar de memória ao
confirmamos que o Casa Branca contém o critério colocado por Nora como principal: é
portador de uma aura simbólica, objeto de um ritual.
[...] encontram-se significados trazidos pelas diversas redes sociais atuando no mundo do
candomblé, e simultaneamente, interpretando-o. Consensuais ou conflituais, essas redes
e essas interpretações orientam as identificações individuais e coletivas formadas no
37
espaço social dos terreiros.
As redes, para este estudioso, estariam configuradas quase que inteiramente
pelas famílias e os laços que esta produz. No entanto, a partir da década de 1950 isso
parece mudar. O autor observa a politização dos terreiros. Membros dos terreiros
engajados em movimentos sociais e políticos provocaram uma mudança de eixos, as
redes estariam hoje articuladas em torno da consolidação e expansão do candomblé
baiano como máxima cultural dos negros.
Contudo, concluímos que, pelo modelo proposto por Nora, a preservação do Casa
Branca seria legítima se observada dentro do contexto político em que aparece, pois traz
a constatação de que a sociedade busca os lugares de memória como ferramenta para
tornar-se agente de seu tempo. O movimento negro, expresso através do candomblé,
seria a forma de exemplificar o que Nora pensa ser a volta dos sujeitos.
O que parece haver, no entanto, é uma outra leitura desta categoria pela política
de preservação. Esta a utiliza percebendo o espaço como parte importante na criação de
uma memória coletiva que identifica grupos sociais importantes e atuantes na formação
de uma identidade maior, a da nação. No entanto, para Nora, os lugares de memória são
essencialmente meios, meio de acesso a uma memória, que não é memória, é história,
porque esta reconstituída através de vestígios e, mais importante, uma memória que é
reivindicada e não espontânea, como queria Hallbwachs.41 Essa memória não é mais
construída no grupo, mas para o grupo pela história, para que este possa nela encontrar
elementos que legitimem sua ação política no presente.42
Borges diria que o presente não passa de uma partícula fugaz do passado e Nora
sobre a memória concluiria o mesmo: "O que nós chamamos de memória, é de fato, a
constituição gigantesca e vertiginosa do estoque material daquilo que nos é impossível
lembrar, repertório insondável daquilo que poderíamos ter necessidade de lembrar". 43
1
Texto inicialmente apresentado no I Encontro Memorial do Instituto de Ciências humanas e
Sociais – Mariana / MG, 9-12 de novembro de 2004.
2
Graduanda de história do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de
Ouro Preto. Este trabalho faz parte da pesquisa intitulada "Patrimônio Imaterial: os debates, os
critérios e o histórico de uma política cultural", financiada pelo PIBIC/ CNPq. Esta tem como
objetivo traçar a trajetória da política de preservação do chamado Patrimônio Imaterial. Conto
nesta pesquisa com a orientação dos professores Dr. Valdei Lopes de Araujo (UFOP) e Dr. Tiago
de Melo Gomes (UNILESTE), aos quais deixo aqui meus agradecimentos pela ajuda com
observações e revisões deste texto.
3
BORGES, Jorge Luis. História das Noites In: Obras completas. Buenos Aires: EMECE, 1990.
4
NORA, Pierre.Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo:
PUC-SP. N° 10, p. 12. 1993.
5
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e Crise. Uma contribuição à patogênese do mundo burguês, p
111.
6
NORA, op cit, p. 18.
7
Ibidem, p. 8. O mito é visto aqui como expresso por Marcel Detiénne: "Contam-se os mitos para
justificar, reforçar, codificar as práticas e as crenças postas em prática na organização social,
totalmente investida pelo discurso ritual". DETIÈNNE, Marcel. Mito-rito. In: Enciclopédia Einaudi.
Vol. 5. Lisboa: Imprensa Oficial/ Casa da Moeda, 1989, p.58.
8
NORA, op cit, p. 9.
9
Ibidem, p. 12.
10
Ibidem, p. 14.
11
Alguns teóricos pós-modernos observam o "desejo de passado" da sociedade contemporânea
como o abandono da necessidade latente do "novo", que consideram uma característica moderna.
Como exemplo, ver GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos sentidos. São Paulo: Editora
34,1998. No entanto, Nora acredita que a sociedade contemporânea não abandona a questão,
somente a reformula, e o faz através das novas tecnologias e dos meios de comunicação em
massa. NORA, Pierre. O retorno do fato. In LE GOFF, J. & NORA, P. (org). História: novos
problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, pp. 179-193.
12 a
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. Trad. Luiz Baeta Neves. 5 edição. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, p. 15.
13
NORA, op cit, p. 19.
14
Ibidem, p. 13.
15
Ibidem, p. 21.
16
Tradução Livre de " It is thus posible to view ritual as a way of defining or describing man. Ritual
may be viewed as a system of simbolic acts that is based upon arbitrary rules." Enciclopédia
Britânica, London. 1953, p.778.
17
Guia Prático de Antropologia. Trad. Octavio Mendes Cajado. São Paulo: Cultrix. 1971, p.171.
18
Tradução livre de " Ritual is a form of prescribed and elaborated behavior and occurs both as
spontaneous invention of the individual, especially of the compulsion neurotic and as culture trait.
[...] the simbolism employed as the basis of the ritual throws light in the one case of the psychology
of the patient and inthe other on the behavior patterns of the culture." Enciclopedia of the social
sciences, p. 396.
19
DETIÉNNE, Marcel. Op cit, p. 58.
20
LEVI-STRAUSS apud DETIÈNNE, Op cit, p. 72.
21
NORA. Op cit, pp. 17-18.
22
Ibidem, p. 18.
23
DECRETO 3551/2000. Artigo 1, 2º parágrafo.
24
WEFFORT, Francisco. Carta de exposição de motivos ao Presidente. O Registro do Patrimônio
Imaterial: dossiê final das atividades da comissão e do grupo de trabalho Patrimônio Imaterial
Brasília: Minc/IPHAN, 2003, p. 26.
25
FONSECA, Maria Cecília Londres. Patrimônio em processo: trajetória da política federal de
preservação do Brasil. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ/ IPHAN, 1997.
26
Quando da criação do SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) tal visão
refletia uma preocupação maior com o patrimônio arquitetônico de origem luso-brasileira,
especialmente os bens culturais barrocos.
27
CAPINAM, Maria Bernadete & RIBEIRO, Orlando. A coroa de xangô no terreiro da Casa Grande.
Revista do patrimônio histórico e artístico nacional. Brasília: SPHAN, N° 22. 1987, p. 165. Meus
agradecimentos a esclarecimentos dados por Marcia Valadares, moradora de Ouro Preto e
frequentadora do Candomblé.
28
GONÇALVES, José Reginaldo. A retórica da perda. Os discursos do patrimônio. Rio de Janeiro:
Ed. UFRJ/IPHAN. 1996, p. 76.
29
NORA. Op cit, p. 27.
30
A preservação do terreiro Casa Branca se dá oficialmente em 1986, em 1984 ocorre sua
elevação como monumento nacional, que lhe confere o status de propriedade da União, não
podendo portanto ser vendido.
31 a
MAGALHÃES, Aloísio. E Triunfo?. A questão dos bens culturais no Brasil. 2 edição.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1997, p. 60. Grifo nosso.
32
2º parágrafo do Artigo 215 da Constituição Federal de 1988.
33
Observar sobre esta questão: NASCIMENTO, Rodrigo Modesto. "Poder público e política
cultural".In: XVII Encontro Regional de História - O lugar da História, 2004, Campinas. Anais - XVII
Encontro Regional de História - O lugar da História, 2004. [ mídia eletrônica – ISBN : 8598711012.
34
ANDERSON, Benedict. Nação e Consciência Nacional. São Paulo: Ed. Ática, 1989.
35
GONÇALVES. Op cit, p. 128.
36
CAPINAM & RIBEIRO. Op cit, p. 165.
37
ARGIER, Michel A cultura dos terreiros. Revista de Antropologia. São Paulo: Ed. USP. Vol. 39,
n° 2. 1996, p. 225.
38
Ibidem, p. 242.
39
Para maiores informações sobre o assunto ver: Michel Argier. "Etnopolítica - a dinâmica do
espaço afro-baiano. Revista dos Estudos Afro-asiáticos. Rio de Janeiro: Cadernos Candido
Mendes. N° 22, 1992.
40
NORA. Op cit, p. 14.
41
SORGENTINI, Hernán. Reflexión sobre la memória y autorreflexión de la história. Revista
Brasileira de História. V. 23, N° 45. São Paulo: Ed. USP, 2003, pp. 103-128.
42
NORA, Op cit, p. 11.
43
Ibidem, p. 15.