A Vida Sempre Floresce

A Vida Sempre Floresce 1
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Ricardo Orestes Forni
A Vida Sempre
Floresce
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A Vida Sempre Floresce

Ricardo Orestes Forni
1ª edição - março/2007 - 5.000 exemplares
Capa:
Nori Figueiredo
Imagem: www.istockphoto.com
Diagramação
Sumário
Renan Braghieri Miguel
Revisão gramatical e doutrinária: A Vida Sempre Floresce! ....................................................... 7

Rubens Toledo
Lidia Regina M. Bonilha Curi Capítulo 1
A Caravana do Amor ............................................................ 9
Capítulo 2
O Resgate .............................................................................. 23
Capítulo 3
Tratamento e Planejamento ................................................ 33
Capítulo 4
Planejamento e Auxílio ....................................................... 43
Capítulo 5
Preparação para a volta ....................................................... 57
Capítulo 6
A Reencarnação em curso ................................................... 67
Ficha Catalográfica
Capítulo 7
Renasce Daniel ..................................................................... 81
Forni, Ricardo Orestes.
Capítulo 8
A Vida Sempre Floresce, Ricardo Ores-
Novas expiações e provas ................................................... 89
tes Forni, 1ª edição, março/2007, Editora EME,
Capítulo 9
Capivari - SP.
No Bosque das Acácias ..................................................... 107
200 p.
Capítulo 10
1 - Romance reencarnacionista.
Tréguas ............................................................................... 115
2 - Conseqüências do suicídio. Doação de órgãos.
Capítulo 11
3 - Lei de Causa e Efeito - Espiritismo
A Tragédia........................................................................... 123
CDD 133.9
Capítulo 12
A Decisão............................................................................. 143
Capítulo 13
Recordando o Evangelho .................................................. 153
Capítulo 14
O trabalho continua .......................................................... 165
Capítulo 15 A Vida Sempre Floresce!
O Regresso de Daniel ........................................................ 173
Capítulo 16
A vida que não cessa ......................................................... 185
Sim! Sempre estaremos mergulhados na Vida a partir do
Morte encefálica - Considerações simples ...................... 195 momento em que a pequena mônada iniciou, por ordem da Di-
vina Providência, sua marcha evolutiva submetendo-se ao deter-
minismo do progresso!
Agradeçamos ao Senhor da Vida a possibilidade de jornar-
dear por este vale de provas e expiações que se constitui em aben-
çoada escola de almas, embora tantas vezes estacionemos na in-
gratidão para reclamar contra o mundo que nos abriga e ensina!
Um dia, semelhante ao magistrado consagrado ou ao mé-
dico conhecido, passaremos agradecidos diante da escola onde
aprendemos a ler e a escrever, apesar de, por muitas vezes, ter
protestado quando nossos pais vinham interromper os embalos
da infância despreocupada, convocando-nos aos deveres no lar e
para a disciplina do horário nas salas de aula...
Fazemos parte do imenso oceano do existir como a gotícu-
la de água compõe os mares revoltos ou serenos. É preciso nos
esforçar para compreender de uma vez por todas que vida não é
sinônimo de corpo material! Estaremos sempre vivos, quer esta-
giando no veículo de carne, quer fora dele.
Não estamos condenados a viver no exíguo espaço delimita-
do do berço ao túmulo para uns tão fugazes e para outros bastan-
te dilatados, mas sempre conhecendo um fim!
A fuga através do suicídio é extremamente enganosa e pe-
nosa, acrescentando pesada parcela a ser resgatada, perante a
contabilidade da vida, à conta individual daquele que o perpetra.

Livra-se do corpo carnal, mas não se liberta do ato irrevogável de
continuar a viver e da responsabilidade de existir!
Esta é a história de um Espírito que, durante três reencar-
nações seguidas, permitiu-se enganar pela solução falsa do sui-
cídio, sofrendo a inenarrável decepção de reconhecer-se sempre
diante da realidade da Vida!
Socorrido pela Misericórdia da Providência Divina, que a
ninguém desampara, não pôde isentar-se, entretanto, de respon- Capítulo 1
der perante a Justiça que dá a cada um segundo as suas obras.
O trabalho de reparação do corpo espiritual e da própria
consciência é extremamente doloroso nos casos do autocídio por-
que não é dado ao homem, viajor da Eternidade, o direito de ani-
quilar aquilo que não é capaz de proporcionar!
Os ensinamentos da Doutrina Espírita são armas extrema- A Caravana do Amor
mente eficazes contra a idéia de autodestruição. Aqueles que tive-
rem banhado o Espírito nesse manancial de conhecimentos, não d
permitirão, nem por um segundo sequer, que tamanha afronta
ao Criador se nos apresente como solução para as atribulações do
mundo, por mais dolorosas e insuportáveis.
Não há como decretar a própria morte porque a Lei que or-
dena que haja vida, e vida em abundância, sobrepuja qualquer
tentativa de violar a determinação superior de que estejamos
A atmosfera lembrava madrugada de inverno com
intensa cerração, embora o clima não fosse frio
e sim, de uma modorra doentia. Uma espécie de fuligem
sempre na vida! partia do chão em direção ao alto como se brotasse do solo
amolecido, que lembrava a consistência de um pântano.
Tupã, 27 de outubro de 2003. Odores fétidos de substâncias apodrecidas impregnavam
o ar difícil de respirar. Nenhuma aragem, por mais frustra-
Do Autor da que fosse, conseguia beneficiar a atmosfera pestilenta.
Vozes sufocadas, distantes, lançavam gritos de socor-
ro, quando não ditavam imprecações contra a Providência
Divina, que não as socorria presta e rapidamente, como
julgavam merecedoras. Protestos, justificativas alucinadas,
gritos de dor e de pavor misturados a gargalhadas sarcás-
ticas ecoavam nas brumas de trevas. Acusações de assas-
sinato, peculato, corrupção e traições partiam de mentes exalações de consciências culpadas visitadas de maneira
em completo desequilíbrio, compondo sinistro coro, numa contínua pelo desespero de constatarem a inutilidade do
melodia triste que lembrava uma agonia sem fim e de exato lamentável do auto-aniquilamento. A sensação de chu-
tremo desespero. va invertida profundamente asfixiante se deve ao material
Um pequeno grupo, como luz bruxuleante em nevo- que procede das próprias criaturas, mergulhadas que se
eiro intenso, caminhava lentamente por essa região de so- encontram em pensamentos desequilibrantes, lodaçal que
frimento e de dor. Uma figura de meia idade liderava a é produto das próprias mentes em desalinho – explicou o
marcha, portando numa das mãos uma espécie de cajado, benfeitor.
que lhe conferia aspecto austero, não obstante irradiasse — E o odor intensamente desagradável como se fos-
profunda simpatia. Sustou o lento caminhar dos compa- sem vapores de um ácido poderosamente corrosivo... Tam-
nheiros e fez uso da palavra: bém é produto dessas consciências? – continuou Alcindo,
— Queridos irmãos. Transitamos por regiões vibrató- vivamente interessado.
rias de intenso sofrimento. Mantenhamos nossos corações — Sim. Tudo o que aqui vemos e sentimos é a imagem
firmes no amparo de nosso Pai, misericordioso, para que da criação mental dos irmãos sofredores. São eles os cons-
o auxílio possa chegar a estes irmãos, dentro dos limites trutores de tudo que possamos presenciar e sentir. A agi-
permitidos consoante a lei do retorno. Encontramo-nos no tação que lhes vai n’alma funciona como pincéis nas mãos
local onde consciências se desesperam ante a frustração de um pintor que, tomado de angústia, tentasse transmitir
completa de haverem confiado no poder do suicídio para, para o quadro as cores e as expressões dos sentimentos que
depois, decepcionadas, depararem consigo mesmas, revi- o invadem e alucinam, de forma implacável!
vendo a cada instante, de forma ininterrupta, as sensações — Sem querer atrever-me a julgamentos, posso fazer
do ato infeliz com que aniquilaram o corpo de carne, sem, uma pergunta que me agita a mente? – insistiu o jovem
contudo, terem acabado com a Vida, que continua sempre! senhor, que fora na Terra espírita estudioso.
Tenhamos compaixão destes nossos irmãos vitimados pe- — Todas as vezes que o objeto da nossa busca não for
las falsas ilusões do próprio aniquilamento, que se deba- a simples curiosidade e sempre que pudermos contar com
tem num drama inominável com a própria consciência. as explicações que nos orientem a caminhada, devemos in-
Assim se manifestava o mentor Justiniano, dispensan- dagar, mesmo porque, em nosso plano vibratório, os pen-
do instruções aos componentes da caravana. Em nome do samentos mais íntimos não podem ser escondidos como
amor, a comitiva percorria o ambiente, sondando as criatu- fazemos quando estamos no corpo físico!
ras em condições de ser resgatadas. — Posso concluir, então, que já sabe qual é a minha
— Senhor. Por que este ambiente sufocante que envol- dúvida? – retornou Alcindo, cujo raciocínio era acompa-
ve a todos? Como é formado? Tem-se a impressão de que nhado atentamente pelos demais companheiros do grupo.
cinzas chovem do chão para o alto!... – interrogou Alcindo, — Sim. Quer saber por que a Providência Divina con-
um dos caravaneiros. sente na existência de lugares de intenso sofrimento. E por
— Tudo o que aqui presenciamos é alimentado por que estes irmãos ainda não foram resgatados para locais
adequados ao tratamento de que tanto necessitam... – disse dora, o instrutor, satisfeito com o interesse da aluna. – Se
Justiniano, sorridente. a família de um doente resolve por conta própria, contra-
— Sim, senhor. É isto mesmo. Tenho receio do meu riando a prescrição médica, retirar o paciente do hospital
atrevimento, mas é sinceramente o que me aflige no mo- em que se encontra, este ficaria sem os devidos cuidados
mento – confessou o caravaneiro. médicos. Por mais que um determinado tratamento impo-
— Quando na Terra, alimentamos a idéia de que um nha sofrimentos com injeções dolorosas, remédios amar-
lugar bonito e tranqüilo pode nos devolver a paz e o equi- gos, a sua finalidade é devolver a saúde ao enfermo. Igual-
líbrio, não é isso? Se nos encontramos debilitados ou fragi- mente neste local. Por mais estranho nos possa parecer, os
lizados física ou emocionalmente, somos aconselhados a irmãos mergulhados nestes sofrimentos lamentáveis que
procurar a praia, a casa de campo, ou mesmo a fazer uma criaram para si mesmos, ao violarem as Leis da Vida, já
viagem para repor as energias. A paz verdadeira não pe- estão sendo medicados através da própria dor que os aflige
netra em nós, mas nasce no íntimo de cada um, irradiando- intensamente. Não seria sensato retirá-los daqui agora...
se em direção daqueles que vivem conosco. A felicidade — Justiniano – atalhou Jorge, outro componente do
perene tem alicerces em nós mesmos. Não é uma invasora! grupo, enquanto fazia anotações. – Podemos dizer que o
Resgatar uma destas almas sem que esteja preparada para sofrimento aqui, como também quando estamos no corpo
a devida transformação de si mesma não lhe conferirá o de carne, representa etapas abençoadas do longo tratamen-
direito àquilo de que ainda não é merecedora. Tais com- to em busca da perfeição?
panheiros estagiam no oceano de dores que brotam deles — As leis soberanas educam-nos dando aquilo de que
próprios. Enquanto o sofrimento atua como buril, o Espíri- cada um tem necessidade – continuou o orientador, estan-
to redime-se, etapa a etapa, até que esteja apto para daqui cando o passo. – A Psicologia fala em impor limites aos
sair e prosseguir, com proveito, em sua recuperação nos filhos para que eles sejam preparados para a vida. A crian-
hospitais ou outros locais onde o amparo infinito de Deus ça e, mais tarde, o jovem que obtém tudo o que deseja dos
a todos nos aguarda! Se rompermos a casca de um ovo fora pais, segue pensando que a vida sempre terá que dar-lhe
da ocasião da época ditada pelas leis da Natureza, por mais o que deseja! E sabemos que as coisas não se passam desse
que queiramos auxiliar, somente prejudicaremos a vida modo. Quem não conhece limites em época adequada do
que nele se encontra em formação! O mesmo se passa com processo educativo, semeia graves problemas para o futu-
cada Espírito em processo evolutivo rumo à perfeição final. ro. São exatamente esses limites que a Lei de Deus impõe a
— Se forem retirados daqui, sem o devido preparo, cada um de nós dentro do princípio da justiça perfeita que
não se beneficiarão, na seqüência do tratamento, com os vai educando-nos a caminho da perfeição, sem que abso-
recursos que a todos aguardam nesta dimensão da vida? lutamente signifique punição, castigo de Deus! Educar é
– contrapôs Mariana, senhora de meia idade, que buscava dever de qualquer pai e não significa castigar...
naquela missão aprimorar conhecimentos sobre operações Nesse ponto do diálogo ouviram-se, ao longe, gritos
de resgate nas regiões inferiores. alucinados, o que levou o benfeitor a solicitar atenção de
— Exatamente, Mariana – falou, de forma incentiva- todos para os gritos que vinham daquelas furnas.
— Socorro! O sangue não pára de jorrar da minha se tentado tantas vezes ao adultério. Mas foi ela quem me
cabeça... Socorro, senão vou acabar morrendo! Como me traiu! Justamente aquela a quem respeitei como esposa!
arrependo por haver disparado aquele gatilho! Não quero O quadro era constrangedor. Contorcendo-se sob o
mais morrer! Alguém me ajude!... efeito da bebida letal, o infeliz esperava que o mergulho no
O grupo, aproximando, observou a cena que se exte- nada pusesse fim à agonia. Em vão. Continuava vivo, não
riorizava daquela mente em desespero. Desenganado pe- obstante o estado deplorável.
los médicos, não suportara o diagnóstico implacável, dado A peregrinação continuou passos à frente, e novos la-
de maneira tão fria pelo oncologista... mentos encheram o ar, com gritos lancinantes de quem se
— Que Medicina é esta que destrói a sensibilidade de afogava em meio a águas profundas.
seus representantes? Queria vê-lo no meu lugar... Ah se — Prefiro morrer a enfrentar a falência, a vergonha de
queria! Como sofro... Estou sangrando! Socorro! não honrar uma dívida! A morte porá fim a esta tortura...
Gemidos vinham também da gruta ao lado. O aspecto Mas onde está a morte, que não vem? Falta-me o ar! Já de-
lúgubre da jovem denunciava a suicida que se projetara da via estar morto... Preciso sair destas águas, antes que acabe
janela do apartamento. enlouquecendo. Socorro!
— Por piedade, tirem-me daqui! Não consigo recom- Novamente Justiniano estancou o passo, compadecido.
por os ossos quebrados, nem me mover... Chamem a am- — Estes irmãos experimentam as sensações que an-
bulância! Ajudem-me! Sei que foi por minha vontade, tecederam e sucederam o ato definitivo. Vejamos aquele.
mas eu estava cega de ódio. Aquele canalha vai me pagar! Ainda repercute em sua mente o som da freada brusca do
Abandona-me na gravidez e acha que vai sair ileso, depois caminhão, no esforço do seu condutor em evitar a tragédia.
de tudo? Não vai mesmo... Os caravaneiros se aproximaram, silenciosos.
Cabelos em desalinho, hematomas visíveis pelo cor- — Estou caminhando à beira da rodovia. Agora é o
po, a jovem ainda não se dera conta de que se encontrava momento. Ah! Vida desgraçada... Ninguém lamentará mi-
do outro lado da Vida. nha perda. Afinal, nunca tive um lar. Apenas um andari-
— Ah... Se pudesse voltar atrás. Vejo que a queda não lho, esmolando um pedaço de pão ou um prato de comida,
foi capaz de aniquilar-me... Desejei tanto a morte e ela pa- enquanto outros vivem em verdadeiros palácios!... Vou
rece não querer me tomar nos seus braços libertadores... acabar com os problemas que nem Deus conseguiu resol-
Alguém me socorra! ver, por mais que implorasse. Vai ser agora!
Justiniano recomendou que todos se mantivessem em O impacto, o corpo estraçalhado sob as rodas... O qua-
prece. Nas vias escuras, uma extensa enfermaria esperava dro se repetia na tela mental do infeliz. Como aquele que
a intervenção dos socorristas. ingerira veneno e aquele outro que disparara contra os
— Como me queima esse corrosivo. Sinto-o nas entra- miolos, este também se debatia revendo o ato extremo.
nhas, penetrando-me como ácido. Que loucura! Tudo para — Ah! Maldita... Quero ver sua face! Quero defrontar
fugir desta vida... A ingrata já deve estar sabendo. A dor sua figura sinistra, portando uma foice e o manto negro,
de consciência será grande... Sempre fui fiel, embora fos- caminhando entre os homens e ceifando as vidas... Eu es-
tou lhe chamando! Venha buscar-me, logo! Leve-me para a solução para os seus problemas, por piores sejam eles,
o nada ou para o inferno, que deve ser preferível à vida começa a atrair desencarnados desejosos de que o ato ex-
que tenho levado! Liberte-me de vez, sua desgraçada! tremado do suicídio se concretize, seja porque foi ferido no
Nesse momento, um dos membros da Caravana inter- passado pelo atual Espírito reencarnado, seja pelo simples
rogou. Era Gildo, um dos mais jovens do grupo. prazer de ver o mal consumado trazendo os sofrimentos
— Mentor!— Não será melhor interromper essas vi- como conseqüência inevitável. Contudo, sempre a palavra
sões. Quem suportaria tamanha tortura? final será daquele que tem o livre-arbítrio e não do obses-
Justiniano fez um gesto, pedindo que aguardasse. sor. Podemos ser e somos muitas vezes, quando encarna-
Passos à frente, ainda ouviram os gritos da mulher que su- dos, procurados por Espíritos infelizes que desejam levar-
focava em meio ao gás de cozinha, cuja válvula fora aberta nos para o mau caminho, mas sempre a decisão final será
por ela própria. O instrutor pediu que “ouvissem” os seus individual, como dar a cada um segundo as suas obras.
pensamentos, sintonizando nas suas ondas mentais. – explanou Justiniano, chamando os alunos à reflexão.
— Devo ter deixado alguma fresta nas janelas. Já de- — Ouvindo as alegações das vítimas de si mesmo, em
veria estar morta. Tenho certeza de que tapei a soleira da análise superficial, somos tocados pela impressão de que
porta com pano úmido... Aquele bandido vai pagar caro! teriam realmente sido levadas ao ato extremo por alguém
O remorso será por toda a vida. Não consigo respirar!... que as prejudicou de alguma maneira. Não teria este res-
Justiniano, nesse instante, interrompe o processo de es- ponsabilidade maior pela desgraça daquele que se suici-
cuta acurada dos desesperos que inundavam aquela região dou? – argumentou Júlia.
de sofrimento. A amostra já fora suficiente para que seus — Sempre ao Espírito, que não esteja limitado em
companheiros pudessem aquilatar a gravidade da situação. sua capacidade de consciência perante a vida, cabe a res-
— Como puderam observar, nossos irmãos estão de- ponsabilidade final! Ninguém conseguirá eximir-se ante
frontando a realidade inevitável. A morte do Espírito não a Lei Maior, atribuindo a decisão de maneira totalitária a
existe! Com a destruição do corpo, eles anteciparam a volta outrem. Além do mais, se voltarmos ao passado espiritual
a esta dimensão da Vida, sem extinguir a existência. Trans- daquele que hoje sofre a agressão, poderemos encontrá-lo
portaram-se para cá com a carga de problemas extrema- como o agressor de ontem e que agora sofre as conseqüên-
mente aumentada, pelo mau uso do livre-arbítrio. Essa ati- cias de seus atos!
tude não encontra justificativas perante a Lei Maior. Pode — Mentor! – atalhou Gildo, timidamente. – Assim co-
haver atenuantes, conforme o caso. Justificativas, jamais! locado, não fica a impressão de que a Lei de Deus funciona
— Mentor, esses companheiros não poderiam estar como a lei de Talião da época de Moisés?
sob um processo obsessivo, cabendo maior culpa aos que — As Leis da Sabedoria Divina são sempre calcadas
contribuíram para o cometimento? – aproximou-se Júlia, nos convites do amor! Entretanto, quando não nos dis-
interessada. pomos a solver os débitos livremente contraídos por esse
— Sempre que o ser encarnado comete o descuido de meio, o amor, somos conduzidos à presença da dor, que
vislumbrar no ato de eliminar a própria existência material nos conduzirá ao ressarcimento do débito arquivado na
contabilidade da própria consciência. balha em nosso favor.

— Mas aqueles que se envolveram de alguma forma — Mas então, por que tornamos a repetir o mesmo
no ato do suicídio contraem sua parcela de responsabilida- erro como no caso específico desse nosso irmão que por
de perante a Vida, não é? – deduziu o rapaz, por si mesmo. três vezes cometeu o autocídio de tão graves conseqüên-
— Sempre que participamos de qualquer maneira das cias? – insistiu o mesmo Jorge.
lágrimas dos nossos semelhantes ou dos motivos da alegria — Porque o livre-arbítrio de cada um é respeitado por
dos companheiros encarnados ou desencarnados, somos nosso Criador para que a responsabilidade possa existir!
agendados perante as Leis Maiores como devedores ou Ninguém é obrigado a errar ou a acertar, porque, do con-
credores no “banco” da Providência Divina, podendo ter a trário, o mérito ou a culpa não existiriam em nossos atos.
certeza absoluta de que o dia de sacar o crédito ou pagar o Esse irmão infeliz que aqui se encontra e que poderia ser
débito é irreversível – continuou, paciente, o instrutor. qualquer um de nós, no exercício do livre-arbítrio, diante
— Viemos em busca de alguém específico neste local, das dificuldades da existência, ainda não se convenceu de
Mentor Justiniano? – retornou, Alcindo, procurando ante- que é absolutamente impossível extinguir aquilo que não
cipar o roteiro e as atividades programadas para o grupo criamos: a própria existência como seres espirituais desti-
de estudo. nados a vivermos infinitamente. Diante de um obstáculo
— Sim, meu amigo. Vamos resgatar um companheiro maior, com a participação de irmãos infelizes da nossa di-
que já desistiu da vida corporal por três vezes, na inútil mensão da vida, cai num mecanismo ilusório passando a
tentativa de fugir da Vida! crer, orientado pelo desespero e pela ausência da fé, firme-
— Mentor, não fica o registro dos sofrimentos colhi- mente, que encontrará no suicídio a solução enganosa para
dos nesses desencarnes no arquivo da memória espiritual? os males que o atormentam.
Como voltam a repetir o mesmo desequilíbrio? – contra- — Além desses sofrimentos que agora contemplamos,
pôs, intrigado, Jorge, incumbido de relatar cada detalhe ainda existem aqueles relacionados à transformação da
das observações. matéria do corpo assassinado na química do cemitério... –
— Sim, meu caro! Entretanto, consideremos que os en- comentou Mariana, que caminhava ao lado do instrutor.
sinamentos de Jesus se fazem presentes entre nós há mais — Sim, minha amiga Mariana. Mas não iremos nos
de 2.000 anos e, no entanto, continuamos a errar nos mes- aprofundar nesse ângulo do problema, porque cada caso é
mos obstáculos de sempre. O registro fica e ele é mobiliza- julgado pela Lei de Deus dentro de suas particularidades,
do em todas as ocasiões em que o Espírito encarnado dá não sendo nada útil fixarmos nossa mente no presente mo-
condições em forma de alertas chegadas através de pessoas mento em sofrimentos outros além do que já contempla-
amigas, de livros, de alguma forma de palestra edifican- mos neste local. Ao pensar, criamos imagens que irão au-
te, das religiões em sua maioria que condenam o suicídio, mentar ainda mais a agonia daqueles que já estão vivendo
quando desdobrado pelo sono do corpo e é trazido para a pesados desesperos no momento presente.
nossa dimensão e orientado, e de todas as outras formas — Aqueles que ficaram na carne também devem abs-
que possamos ou não imaginar, a Providência Divina tra- ter-se de emitir julgamentos em relação ao suicida, exa-
tamente porque desconhecem as atenuantes que possam enfermidade espiritual e medicações necessárias à sua re-
existir para cada caso. Não será esta a atitude mais cristã? cuperação. Assim sendo, colhemos informações com os
– aduziu Alcindo. companheiros que conhecem o caso específico em estudo
— Correto. Seria de extrema valia que os encarnados que nos passaram todas as informações necessárias para o
não emitissem nenhum tipo de arrazoamento em relação bom cumprimento de nossa tarefa – falou o benfeitor.
ao irmão infeliz que dessa maneira se despediu da existên- Deu alguns passos em direção ao grupo e acrescentou,
cia física, para não lançar mais sofrimento sobre a carga já em tom grave:
suportada pelo irmão que se equivocou. De que força dis- — Tenhamos confiança e disposição para o trabalho.
pomos para que em situações semelhantes, não caíssemos Analisando os pensamentos de nosso irmão aqui transito-
de forma menos comprometedora? Se podemos ditar al- riamente estagiando, saberemos das condições que apre-
guma orientação tanto a vocês que nos acompanham como senta para daqui ser retirado com destino à recuperação
àqueles que na carne ficaram, digo que não procurem ima- lenta e dolorosa, por meio de futuras reencarnações.
ginar o que poderão estar os desencarnados através do sui- O grupo silenciou, sem mais perguntas. As judicio-
cídio padecendo do outro lado da vida, porque esse tipo sas considerações de Justiniano impunham inevitáveis re-
de atitude, para a qual não dispomos de dados a fim de flexões para todos os caravaneiros. Entretanto, o trabalho
avaliar corretamente, acarretará enormes prejuízos para os chamava à ação.
seres por si mesmos mergulhados em sofrimentos indes-
critíveis. Junto a todos os nossos irmãos em erro, pratique-
mos a caridade do silêncio mental como um dia também
poderemos estar a implorar para nós mesmos!
— E como iremos encontrar especificamente esse nos-
so companheiro, irmão Justiniano?
— Não existe um só recanto em abandono pelo Pai
Celestial – respondeu, categórico, o benfeitor, continuan-
do: – Tudo o que aqui se passa como em qualquer outro
mais longínquo local que possamos imaginar está sob o
controle absoluto d’Aquele que a tudo e a todos criou atra-
vés de Seus prepostos, como Jesus e de Seus colaboradores
hierarquicamente subordinados.
O instrutor fez uma pausa, e, virando-se na direção
daquele vale de dores, adiu, com emoção:
— Este local de sofrimento assemelha-se a uma en-
fermaria de grande hospital onde cada paciente tem o seu
quarto e número de leito bem definidos, além da própria
Capítulo 2
O Resgate
d
O venerável benfeitor conduziu o grupo a determi-

nada região, sabedor, como era, de antemão, o
lugar e a identidade daquele que seria resgatado das som-
bras. Ao aproximar-se, Justiniano observou carinhosamen-
te:
— Não nos permitamos, na mente ou no coração,
qualquer interpelação, por menor que seja, sobre a Justiça
Divina, que jamais erra de endereço.
O corpo espiritual, na região do crânio, apresentava
uma perfuração pequena em um dos lados, o que indicava
ferimento por arma de fogo. Do lado oposto da cabeça, a
marca do projétil que lhe atravessara o encéfalo, estraça-
lhado.
Dementada, a vítima mantinha os olhos fixados em
um ponto indefinido e longínquo. Os cabelos, empastados
do sangue que jorrava sem ser estancado, num doloroso — Há quanto tempo estou aqui nesta situação? Mãe!
processo de auto-alimentação. Esboçava movimentos des- Por favor, me ajude! Se a morte não existe, a senhora deve
coordenados, murmurando palavras desconexas, e voltava estar em algum lugar! Em nome desse Deus, a quem me
a cabeça ora numa direção, ora em outra, como se procu- ensinou a crer, me ajude...
rasse por algo que nem ele mesmo sabia. Vozes ao longe desafiavam o ser desesperado, gritan-
Antecipando-se à indagação do grupo, Justiniano es- do acusações que mais o afligiam:
clareceu: — Assassino! Covarde! Tem que pagar e já está pa-
— Supliquemos ao Pai Criador, no amor de nosso gando! Vai sofrer para sempre nesse inferno destinado aos
Mestre Jesus, amparo e permissão para auxiliar e socorrer, descrentes e fracos! – zombavam.
conquanto conte Ele com nosso devotamento e disposição — Este é o momento, prezados irmãos! – interveio Jus-
para o socorro fraternal. tiniano, solicitando que todos guardassem os corações em
Mãos estendidas na direção da região afetada, o ben- prece.
feitor espiritual fez estancar o sangramento. Um pequeno foco de luz começou a se intensificar
— Penetremos a intimidade dos seus pensamentos, a naquele local de penumbra, tomando a forma de uma se-
fim de estabelecer sintonia e melhor poder ajudar – ins- nhora cuja expressão cativava pela doçura do sorriso. Era
truiu o mentor. como se uma aragem soprasse por entre o calor de intenso
Com leve toque na fronte do enfermo, imagens cons- deserto, tocando suavemente a pele do viajor esgotado.
truídas pelo ex-suicida começaram a ser captadas pelos Aproximou-se de Justiniano, numa discreta reverên-
componentes do grupo. O desespero, a desorientação, as cia, e dirigiu-se àquele que suplicava, mergulhado em pro-
surpresas, as dúvidas que lhe inundavam a mente pude- funda agonia.
ram ser sentidas e ouvidas: — Daniel, meu filho! Eu estou aqui como prova incon-
— Onde estou? Onde estou, meu Deus? Era para es- testável de que Deus existe e a ninguém desampara. Venho
tar morto! Como pude sobreviver? O que houve comigo? dizer que a morte é pura ilusão! Agradeçamos à Misericór-
O disparo aconteceu... Ainda ouço o estampido dentro da dia do Pai e de nosso Mestre Jesus por permitir recebê-lo
cabeça! Por que, meu Deus? Tanto pedi e não fui ouvido. de novo em meus braços!
Onde o anjo da guarda, de que minha pobre mãe tanto fa- — Mãe? É você mesma? Não estão tentando enganar-
lava? Se todos têm um, eu com certeza fui preterido... me? Onde está você?
Ao mencionar a figura materna, as lágrimas brotaram — Estou aqui, mercê da bondade de Deus, meu filho!
nos olhos esbugalhados. A modificação no psiquismo do Não se desespere mais. Venha aos meus braços... Vamos
enfermo, provocada pelas lembranças da mãezinha, ofere- levá-lo.
ceu ensejo para que a equipe socorrista entrasse em ação. — Levar-me para onde, mãe? Onde estou? O que
Justiniano fixava determinadas regiões do perispírito da- aconteceu comigo? Ah! Mãe... Se estivesse a meu lado na-
quele sofredor, captando o que lhe passava nos recônditos quele momento, quando tentei tirar a própria vida...
da alma. — Meu amado! Confiemos na Misericórdia de Deus...
— Deus? Pedi tanto a Deus e não fui ouvido! cou Justiniano, solícito.
— Não, meu filho! Deus sempre ouve os filhos Seus. — Por que a vítima ainda apresentava sangramento,
Nós é que nem sempre compreendemos Suas leis sobera- tanto tempo depois? – continuou Gildo, impressionado
nas e justas. Agora você precisa recuperar as forças. Sua com a cena.
revolta não contribuirá para a recuperação. — Ao agredir voluntariamente a matéria densa, a re-
Enquanto Daniel era acolhido no seio materno, o gru- gião correspondente no corpo perispiritual acusou a lesão,
po uniu-se à prece que mãe e filho entoavam, num mo- que continuará impressa nos tecidos sutis até o reajuste da
mento de extrema emoção. criatura perante as Leis da Vida.
— Vamos orar como fazíamos na sua infância. Pai — Quando agredimos o corpo físico, estamos atingin-
nosso, que estais nos céus... do também o corpo espiritual? – insistiu o caravaneiro, que
Os caravaneiros silenciaram, respeitosos. Uma luz desencarnara muito jovem, na última experiência terrena.
mais intensa deitava seus raios dourados sobre o Vale, O orientador tentou uma analogia para elucidar a
acalmando gemidos, enquanto Daniel era resgatado da questão.
densa região. — É possível habitar uma casa com vazamentos e pa-
Concluído o resgate, a senhora dirigiu ao grupo o redes trincadas, sem que nada se faça para providenciar o
olhar de agradecimento e partiu com o filho para estâncias conserto? A goteira incomodará o inquilino. O ranger da
de refazimento e reabilitação moral dos caídos e também janela quebrada afetará, mais ou menos, os moradores...
para recomposição dos seus tecidos perispirituais violen- O Espírito imortal habita temporariamente um corpo, que,
tamente lesados. se agredido, repercutirá sobre o primeiro, assim como as
Era o início da recuperação deste Espírito, assim como falhas morais do Espírito transparecem em forma de enfer-
de outros tantos, como ele, que, em fase posterior, retorna- midades somatizadas naquele.
riam à esfera física em existências reparadoras. Justiniano calara-se. O grupo reuniu-se mais à frente,
As perguntas fervilhavam nas mentes dos caravanei- para receber novas instruções.
ros. — Da mesma forma – continuou o instrutor –, os qua-
— Quantas lições em tão pouco tempo! – exclamou dros mórbidos da depressão, da ansiedade e do desânimo,
Gildo, vivamente interessado no aprendizado. – A nossa quando atingem o ser, farão o corpo físico padecer o reflexo
tarefa teria êxito sem a intercessão materna? negativo, que manifestará as conseqüências do processo.
— Tocado na emotividade, nosso irmão está mais pre- Há como uma troca constante, positiva ou negativa, entre o
disposto a ouvir as palavras maternas, pelos fortes víncu- ser imortal, o Espírito, e o corpo material. É impossível afe-
los afetivos. O amor filial abriu as portas para o diálogo tar o veículo carnal sem repercussões sobre o seu inquilino
providencial, dulcificado no amor entre ambos. Os com- temporário, que somos nós mesmos quando encarnados!
panheiros do Mundo Maior promoveram o encontro, aten- — É por isso, então – retornou Alcindo –, que os ir-
dendo naturalmente às preces da progenitora e também mãos suicidas estampam estas lesões no perispírito, rela-
aos créditos adquiridos por ela nas tarefas do bem – expli- cionadas com o tipo de agressão sofrida?
— Sem dúvida! Nesse corpo intermediário, envoltório à Natureza. Enquanto tal não ocorre, o Espírito não logra
do Espírito, ficam impressas as marcas de nossos desequi- desembaraçar-se dos liames que o prendem ao corpo. Essa
líbrios condição é que mantém ligado o projetor a reproduzir o
— Mas por que se repete por tantas vezes, dando a ato desequilibrado, como um filme repetido de tempos em
impressão ao ser desencarnado que ele está revivendo a tempos! Somente o passar das horas, dos dias, dos meses
cada segundo o mesmo ato praticado no momento do de- e, muitas vezes, dos anos é que permite a desvinculação
sespero maior? – quis saber o caravaneiro. numa intensidade que permita um novo planejamento do
— É um registro dinâmico da grave atitude! Como um Espírito, vítima de si mesmo.
projetor de imagens, acionado pela consciência endivida- — As mortes por acidente também não levam a situa-
da, repetindo o filme do qual é o protagonista. ção semelhante? – atalhou Gildo, intrigado, talvez buscan-
— Como cessar o processo e reconduzir a vítima à re- do entender o que se passara com ele próprio.
paração? – interrogou Júlia, que na Terra fora médica psi- — Isso é uma outra questão! Nos casos de acidente,
quiatra. via de regra, a vítima não tinha intenção de cometer o sui-
— Na medida em que a energia vital remanescente cídio, embora tenha agido de forma imprudente. Nos aci-
vai se dissipando e retornando à Natureza, os laços que dentes de trânsito, ainda que o condutor do veículo esteja
acionam esse projetor vão se enfraquecendo, ensejando ao embriagado e ponha em risco a própria vida, não há inten-
Espírito devedor a recuperação. Em ocasiões naturais a ção deliberada de morrer. O instinto de conservação o leva,
dissipação dessa energia ocorre espontaneamente, com o em maior ou menor grau, a temer a morte – observou Jus-
avançar da idade, ou pode ser provocada por meio de en- tiniano, para continuar em seguida - no suicídio, não. A in-
fermidades ou abusos. tenção primeira e única é deixar o mundo dos homens! São
O instrutor continuou o raciocínio, acompanhado pe- situações diversas, com conseqüências distintas, ainda que
los caravaneiros. o ato de dirigir embriagado ou displicentemente constitua
— No caso do suicídio, entretanto, ocorre rompimen- uma forma de suicídio indireto. O condutor do veículo está
to brusco com a vida material por intenção deliberada do ciente dos riscos que provoca contra si e contra a vida dos
Espírito! Seria assim como a quebra de contrato, sem co- demais. Responderá perante as Leis da Vida na proporção
municação prévia entre as partes, sem considerar que des- exata de sua consciência para com o ato cometido.
respeitar esse contrato entre o Espírito e o corpo que ha- — Podemos concluir que o desencarne pela enfermi-
bita, implica pesada multa estipulada pelas Leis da Vida! dade prolongada proporciona ao Espírito uma libertação
Não temos, enquanto encarnados, o direito de encurtar o menos dolorosa? – interrogou Júlia, antecipando-se nas
prazo da jornada que a Providência Divina nos concedeu. conclusões.
Sempre que esse contrato for violado, haverá conseqüên- — Principalmente se sofrida com resignação, por con-
cias profundamente negativas, e uma delas é exatamente fiar na Providência Divina! – respondeu Justiniano, acres-
o esgotamento da energia contida no perispírito. Com a centando: – A liberação dos liames que prendem o Espírito
consumação do ato suicida, a energia precisa ser devolvida ao corpo, nesses casos, é bastante abreviada. Quando o en-
fermo se revolta ante o sofrimento, anula parte do mérito mendasse “Vai e não peques mais, para que não te suce-
da prova que não soube suportar, e a liberdade pode ser da coisa pior”. Quando agonizava na cruz, o Mestre não
mais tardia. Mas nunca comparada ao do suicida! teve o amor daqueles a quem curara e livrara das aflições.
— O que caracterizaria o suicídio indireto, Justiniano? Estavam longe dele, porque não se haviam transformado
– interpelou Alcindo, mais uma vez. em seus seguidores. E assim estamos nós caminhando em
— Há suicídio indireto quando a pessoa no corpo fí- nossa rota rumo à evolução!
sico, que é o seu instrumento de trabalho, toma qualquer — Podemos dizer, caro Justiniano, que a misericórdia
atitude que promova a abreviação dos seus dias na escola de Deus é aplicada sem adulteração de sua Justiça? – ata-
que é o planeta Terra. Por exemplo: o ato de fumar ou de lhou Alcindo, meditativo.
ingerir bebidas alcoólicas. O hábito de comer demasiada- — Como expressão da Suprema Perfeição, a Justiça
mente ou de não dormir as horas necessárias... O ato de Divina recai sobre cada criatura de modo que não inva-
encolerizar-se, permitindo-se explosões de ira, provocan- da o território alheio. Podemos afirmar que a Misericórdia
do descarga de substâncias nocivas na corrente sangüínea, sempre estará presente, colocada ao lado da Justiça, para
que acarretam desgastes desnecessários aos órgãos físicos. que não haja privilégio ou parcialidade!
São alguns exemplos de suicídio indireto, pelos quais tere- — Mentor! Para onde foi conduzido Daniel? – pergun-
mos de responder perante a própria consciência. tou Jorge, que não perdia um só detalhe.
— Meu Deus! Como as leis divinas são sábias! Muitos — Nosso companheiro ainda tem longo processo de
na Terra sequer imaginam a energia que é despendida de recuperação nesta dimensão da Vida, até que reúna as con-
forma tão irresponsável! – exclamou Gildo, exprimindo o dições para novo mergulho na carne.
sentimento de todos os colegas caravaneiros. — Essa recuperação é feita através de qual ou quais
— Por isso tudo – retomou Justiniano –, a evolução métodos, Mentor? – continuou Jorge, anotando tudo quan-
é um processo extremamente lento para a imensa maio- to lhe era informado.
ria dos Espíritos. Enquanto no corpo, só se aproximam de — Podemos dizer que são múltiplos. Até, se preciso
Deus na hora da necessidade. Obtido o socorro de urgên- for, por meio de cirurgias realizadas no perispírito extre-
cia, por sua Misericórdia, retomam os velhos hábitos, es- mamente comprometido – informou Justiniano.
quecidos dos erros cometidos. O tempo perdido, no entan- — Cirurgias... Neste lado da vida? – insistiu o carava-
to, não retorna. Surgem novas oportunidades, mas aquelas neiro.
que são desperdiçadas jamais serão recuperadas! Jesus foi — Existem na Terra, para acudir o corpo físico. Por
o maior exemplo do interesse dos Espíritos encarnados que não existiriam aqui? Ou prefere acreditar que poderia
pela resolução dos problemas diretos do mundo material. ocorrer um “milagre” em nosso meio que resolvesse tudo?
Vivia cercado de pessoas que pediam as soluções para as Meu filho, não há saltos no caminho da evolução! Não há
dores que as afligiam fisicamente. O alerta do Cristo para a milagres em nenhum local do Universo! Apenas Leis de
saúde integral, que é a do corpo-mente-espírito, na maioria absoluta perfeição, e que, por isso mesmo, dispensam a
das vezes era deixado no esquecimento, ainda que reco- existência de milagres! O que é perfeito não tem necessida-
de de ser modificado, e a ocorrência de um milagre, caso

existisse, poderia pressupor a alteração de uma lei, que,
exatamente por ser perfeita, não admite modificação!
— Mas no mundo se fala tanto em milagres! Por que
então isso ocorre? – aduziu o aprendiz, ainda confuso.
— Porque ignoramos a grandiosidade do Deus que
nos criou! Se conhecêssemos verdadeiramente a Divindade
em toda a sua extensão e profundidade, jamais falaríamos
em “milagres”, como a derrogação daquilo que é perfeito Capítulo 3
e, volto a insistir, não comporta mudanças, exatamente por
já ser perfeito!
— Acompanhando o caso Daniel, talvez compreenda-
mos melhor, não é, Justiniano? – contrapôs Mariana, pro-
curando ir logo à ação prática. Enfermeira dedicada, deixa-
ra o mundo descrente da vida além-túmulo. Tratamento e Planejamento
— Roguemos então à Providência Divina que continue
permitindo acompanhemos sua trajetória. E que nossa fé d
seja fortalecida. Passemos da prosa para o trabalho! – disse
o benfeitor, conduzindo o grupo para novo aprendizado.
N uma clareira, em meio a um bosque repleto de

belezas, os caravaneiros, liderados por Justinia-
no, foram ao encontro de Daniel. A região era cercada de
meios eletromagnéticos que lhe garantiam total segurança
e privacidade, impedindo também que pacientes dali se
ausentassem, sem que isso fosse percebido.
As árvores não eram muito altas, permitindo dessa
forma recolher a luz e o calor do sol, e à noite era possível
visualizar as maravilhas dos mundos que se perdiam como
se bordados estivessem no pano do infinito! Por entre elas,
pássaros de diferentes espécies voavam, celebrando a vida
e a liberdade!
No centro, uma ampla clareira abrigava uma constru-
ção grande em forma circular e de arquitetura do período da
Renascença, onde os enfermos, ali recolhidos, eram tratados.
Todos os quartos se abriam para uma varanda que panheiros desejosos e confiantes na sua recuperação!
acompanhava toda a construção circular. Terminada a va- — Mas então não morri?! Como não morrer depois
randa, vinham árvores frutíferas, também dispostas em de atirar contra a própria cabeça?! Ouvi o barulho! Senti
círculo que se fechava sobre si mesmo, de cujos frutos eram a enorme pancada da bala entrando e estraçalhando-me o
retirados sucos e servidos aos pacientes. Mais internamen- crânio! Como não morri? Não consigo entender!
te ao pomar, canteiros de flores multicoloridas lançavam — Quando estamos no corpo de carne, meu filho,
no ar um aroma característico de cada categoria. devido à pouca fé que ainda nos caracteriza, acreditamos
Os grupos iguais cresciam, voltados para um qua- mais na morte do que na imortalidade! Passamos a inter-
drante do hospital, acabando por ocupar uma formação pretar a decadência do corpo como sinônimo de fim! Daí
circular, como se algum jardineiro muito especial soubesse para a idéia falsa de que o suicídio poderá resolver todos
o que cada espécie de flor poderia ofertar para os doentes os nossos problemas é um caminho muito curto! Entretan-
recolhidos naquele quadrante do hospital. to, determina a Lei de Deus que assim não sejam as coisas.
Nesse local aportou Justiniano com o seu grupo de es- Fomos criados para nunca mais conhecer o fim! Não há
tudo, pedindo a devida licença para continuarem o apren- como anular essa determinação superior! Por isso, inúme-
dizado, comprometendo-se a não interferir por nenhum ros irmãos retornam das agruras do mundo na ilusão do
motivo na rotina de tratamento. suicídio, esperando não mais existir e deparando-se com a
Daniel encontrava-se recolhido em um dos quartos, continuidade de uma vida mais intensa ainda. Essa consti-
sob os cuidados daquela que lhe fora mãe na última roma- tui a enorme decepção do suicida: a continuidade da vida!
gem terrestre, e que estava autorizada a atender o enfermo Mesmo assim, a Lei não nos abandona como muitos acre-
sempre que os seus afazeres em outros planos o permitis- ditam na Terra. Mesmo retornando para esta dimensão da
sem. A venerável senhora postara-se confiante ao lado do existência, por meio de um ato de revolta máxima contra o
filho. Criador, não somos desamparados. Pelo contrário, somos
— Mãe! Mãe! Onde você está? Onde estou? O que recolhidos pela Misericórdia para que a Justiça perfeita
ocorreu, se busquei na morte escapar dos meus tormentos? seja realizada. Desta maneira, meu filho, tudo dará certo.
Por acaso o revólver não disparou? O sangue jorrou como Porque assim deseja nosso Pai.
cascata de minha cabeça, sem tirar-me a vida! Não consi- — Não sei do que a senhora está falando. Aliás, nun-
go raciocinar! Pareço mergulhado numa escuridão, numa ca entendi quase nada quando a senhora me falava desse
confusão! Não sei se sonho e se estou tendo um pesade- Deus que nunca consegui entender!
lo, ou se vivo uma realidade na qual prefiro não acreditar, — Mas Ele a todos compreende e muito ama! A pro-
porque seria total inutilidade tentar acabar com a própria va é que você está aqui, amparado como muitos outros ir-
vida. mãos nas mesmas condições que as suas. Basta agradecer e
— Calma, meu filho. O pior já passou. Graças ao con- confiar, e tudo se encaminhará para que dê certo.
sentimento da Providência Divina você está recolhido em — Não estou enxergando nada! Tudo está escuro! Ouço
um hospital para tratamento. Está entre amigos, com com- a sua voz mas não a vejo! Tenho medo, muito medo, mãe!
— Pois pense em Jesus e não tema! Lembra-se de de três desencarnações através do suicídio exigirá doloro-
quando pequenino eu o tomava em meu colo e lia aquela so resgate. Porém, além de ninguém pagar pelo que não
passagem linda da Bíblia que fala do vale da sombra e da deve, haverá a Divina Providência de dosar as parcelas pe-
morte e que aquele que crê não deve temer, porque o Se- las quais Daniel é o responsável!
nhor é nosso pastor? — Sem dúvida, querida companheira e irmã. A Mise-
— Tenho saudades daquela época! Como desejaria ricórdia não pode interferir na Justiça, mas permite que ela
voltar para os seus braços e recomeçar! seja realizada da maneira que possamos agüentar o meca-
— Isso já é um sinal altamente positivo que o ajudará nismo do retorno. Agradeço ter-nos autorizado acompa-
a modificar inteiramente o seu interior! Continue confian- nhar o tratamento de Daniel, em regime de aprendizagem
do assim em Deus, meu filho! das lições em favor do grupo de caravaneiros.
— Não! Você não entendeu, mãe! Confio em você e — Devemos todos a Deus, nosso Pai, e somente a Ele,
não n’Ele! agradecer, prezado Justiniano. Sua tarefa de ensinar é no-
— Meu filho! É compreensível que esteja confuso al- bre, porque vai semeando alertas nos corações amigos que
terando e invertendo valores tão desiguais! Nada sou pe- eles poderão multiplicar em muitos outros companheiros.
rante a vida! Agradeçamos e peçamos forças ao Criador para prosse-
— Não concordo. Para mim você é tudo! guir na luta renovadora de todos nós!
A figura materna envolveu com muito carinho e pie- Afastando-se com um discreto cumprimento, a senho-
dade aquele que lhe fora filho na última reencarnação e ra deixou o recinto, enquanto o enfermo mergulhava num
que agora era um irmão muito necessitado. Afagou-lhe os sono agitado, visitado por lembranças extremamente desa-
cabelos, beijou-lhe as faces e sussurrou-lhe no ouvido: gradáveis. Mexia-se no leito arrancando os lençóis. Segu-
— Aproveite para descansar, meu filho! Guarde a rava-se no colchão, temendo cair ou algo semelhante.
imagem de Jesus em seus pensamentos antes de apagar a — Mentor! Mentor! – retornaram as perguntas, assim
luz mental para o repouso necessário. Deus o abençoe e que a mãe de Daniel se afastou.
guarde! — Por que nosso irmão continua agitado, se está re-
Justiniano, que assistia à cena junto com os demais colhido nesta abençoada instituição de tratamento? – era
companheiros, aproximou-se da senhora depositando a Gildo, intrigado com a reação do jovem.
mão direita respeitosamente sobre um dos seus ombros, ao — Primeiro e principalmente, porque a nossa paz ou
mesmo tempo em que procurava apoiá-la na continuação a nossa intranqüilidade está dentro de nós mesmos e não
da difícil tarefa perante o suicida reincidente: no ambiente exterior. De consciência endividada, Daniel
— Haverão de vencer! encontra-se extremamente comprometido consigo mesmo
— Deus lhe pague, amigo Justiniano. Sabemos bem para poder usufruir de paz. Segundo, porque repercutem
o que aguarda o meu querido Daniel. Infringir a Lei é tão nele os apelos mentais daqueles que o acusavam de suici-
rápido, entretanto, redimir-se perante a própria consciên- da no local de onde foi retirado, sintonia essa estabelecida
cia, muitas vezes demanda séculos! Infelizmente, o peso pela presença da culpa em si mesmo. Essas acusações con-
tinuam a atingi-lo, mesmo no interior deste recinto, por- lizados e empregados em favor dos pacientes que aqui se
que a mente é antena poderosíssima quando voltada para encontram. Assim como na crosta do planeta existem me-
o bem ou para o mal, emitindo ou recebendo sinais, em dicações fabricadas nos laboratórios e usadas nos hospitais
sintonia com as mentes que lhe são afins! Estas são as duas para o socorro aos internados, em nossa dimensão ocorre
razões para a agitação que presenciamos em nosso irmão fato parecido. A diferença é que aqui se utilizam recursos
enfermo, muito enfermo em si mesmo! naturais, os quais, sob a orientação e energias espirituais
— Mas, perto do espírito daquela que lhe foi mãe na dos companheiros especializados, transformam-se nas me-
Terra, parece demonstrar maior equilíbrio! Por que isso dicações que muito auxiliam no processo de recuperação
ocorreria? – observou Júlia. dos hospitalizados.
— O amor desinteressado é capaz de coisas inimagi- — O curioso é que, quando encarnados, não conside-
náveis! Perto daquela que o ama verdadeiramente, é sus- ramos, a não ser em casos excepcionais, essas possibilida-
tentado por essas poderosas vibrações que acabam por des, esses desdobramentos nesta dimensão da vida! – com-
conferir-lhe, embora transitoriamente, um grau maior de parou Gildo, com admiração.
lucidez. — Exatamente porque achamos que, depois da mor-
— O tratamento está sendo feito com os passes, os te, tudo se resolve por uma sucessão de milagres que nos
líquidos energizados pelos enfermeiros de nosso plano, desobriguem de fazer a nossa parte. Somos “loucos” para
seguindo as orientações médicas? As plantas frutíferas do aposentar de qualquer serviço, principalmente o difícil
belo pomar e as perfumadas flores do jardim também são dever de evoluir! Os encarnados já empregam princípios
utilizadas? – questionou Alcindo. semelhantes no tratamento dos seus doentes ou na preven-
— Também me considero leigo em termos da medi- ção das enfermidades! A homeopatia não aborda o doente
cina praticada em nossa dimensão, mas procurei recolher de uma forma diferente da medicina tradicional?! Muitas
algumas informações previamente para poder passar a vo- de suas medicações não são extraídas de determinadas
cês em nossos estudos. No pomar são cultivadas frutas que plantas, inclusive do reino mineral e animal?! Não se está
contêm princípios que, manipulados pelos médicos e en- na Terra, cada vez mais, valorizando a alimentação saudá-
fermeiros responsáveis por este hospital, muitas vezes com vel em substituição dos exageros alimentares?! Não se es-
a orientação e participação de entidades de regiões maio- tudam na Terra as propriedades fitoterápicas das diversas
res da espiritualidade, servem como substâncias propícias espécies vegetais?! Por que imaginar que, deste outro lado
ao tratamento dos enfermos aqui recolhidos. da Vida, as coisas deviam ser diferentes, contando com al-
Justiniano continuou, paciente: gum mecanismo mágico qualquer?
— Os detalhes técnicos desta utilização não são do Percebendo que suas palavras ainda eram digeridas
meu conhecimento, já que não pertenço a esse grupo de pelo grupo, o instrutor espiritual fez uma pausa, para reto-
trabalho. Sobre as flores, também me foi explicado que mar em seguida:
tanto em suas pétalas, em seu perfume e em suas cores — Precisamos entender de uma vez por todas que não
encontram esses trabalhadores meios que podem ser uti- há saltos no mecanismo do progresso moral dos Espíritos!
Precisamos nos esforçar mais para que a vaidade na carne Médiuns, para concluir em seguida:
não nos bloqueie as idéias, o raciocínio, de modo a entender — Pois então! Se essa indução estiver dentro da própria
melhor as possibilidades muito maiores de recursos de que vítima, ela poderá deformar o corpo espiritual, adquirindo
dispomos nesta dimensão espiritual da existência, que é a o formato ovóide, que causará mais transtornos no meca-
definitiva. Se no mundo das formas transitórias isso é pos- nismo da reencarnação. Lembremos que o perispírito repre-
sível, com muito mais justificativas o é no Mundo Maior. senta a forma para a formação de um novo veículo físico. Se
— Mentor! Sobre os apontamentos que fez sobre cirur- essa forma está desestruturada, seria como se tentássemos
gia no tecido perispiritual, Daniel terá de passar por essa guardar um objeto triangular dentro de outro, de formato
intervenção? – argüiu o relator Jorge, preocupado. retangular. São formas incompatíveis, que acabarão por de-
— Segundo pude recolher junto aos encarregados do formar os dois objetos! A cirurgia sobre o perispírito auxi-
tratamento que tem sido dispensado ao nosso irmão, a ci- lia no restabelecimento das condições necessárias para que
rurgia está prescrita, a fim de que o perispírito se estabilize ele cumpra o seu papel na reencarnação, readquirindo as
o suficiente para suportar o processo da reencarnação no condições de direcionar a geração do novo corpo material.
tempo mais breve possível. — Quer dizer que Daniel deverá voltar ao corpo car-
— Como assim, se estabilize? Poderia o perispírito nal num espaço de tempo mais curto do que o normal?
sofrer esse processo de desmontagem, se é que posso me — O conceito do que seja normal é uma discussão
exprimir dessa maneira? – continuou o aluno. muito complicada. Devemos dizer que, para o seu próprio
— Sabemos que Daniel por três reencarnações segui- bem, esse irmão deverá submeter-se à bênção da reencar-
das abandonou as lutas terrenas através do processo alta- nação por um ato da Misericórdia de Deus, no exato tempo
mente desestruturante do suicídio. Apresenta sérias lesões em que suas necessidades assim o exigirem!
no corpo perispiritual, como também na própria mente! — Mas já se sabe o prazo previsto para isso? – interro-
Quando se instala o processo de uma idéia fixa que no caso gou Gildo, interessado.
é o suicídio, que chamamos monoideísmo, existe a possibi- — Cremos que os orientadores do processo específico
lidade de o corpo perispiritual apresentar uma deformação desse nosso companheiro podem ter uma idéia bastante
que chamamos de ovóide. aproximada do tempo, o que para nós não vem ao caso,
— Ovóide? – Foi a exclamação geral que se levantou porque não estamos aqui para satisfazer curiosidades, mas
em uníssono no ambiente. sim, em processo de aprendizagem!
— Sim, ovóide, como o nome está a dizer, apresentan- — Mentor! – indagou novamente o jovem caravanei-
do o formato aproximado de um ovo, por perda da forma ro. – Provavelmente constará do seu novo veículo carnal as
normal do corpo espiritual. Não podem nossos irmãos ví- conseqüências do erro cometido?
timas de espíritos inferiores sofrerem a indução hipnóti- — De novo, o inesquecível sentimento de curiosidade
ca para apresentarem o formato de um animal, fenômeno que não conseguimos deixar no mundo material! Em vez
esse chamado de zoantropia?! – questionou, Justiniano, de ficar supondo, calculando, tentando adivinhar quais
evocando tema abordado por Allan Kardec em O Livro dos poderão ser as futuras limitações na forma física do irmão,
roguemos para que a Providência Divina o ampare, como

a todos nós, na árdua luta que tem pela frente no longo
processo de seu aperfeiçoamento!
A resposta do Instrutor soou como uma prece, suge-
rindo recolhimento e reflexão.
Capítulo 4
Planejamento e Auxílio
d
N ão foram poucas as vezes em que a figura espiri-

tual daquela que lhe fora mãe na Terra foi vista
ao lado do leito do filho, procurando acalmá-lo, em meio
às crises que lhe advinham, decorrentes das lembranças e
perturbações mentais de um Espírito que, por três vezes
seguidas, evadira-se do corpo físico pela via do suicídio.
Daniel comprometera não somente o corpo perispiritual
mas principalmente o campo mental. Aliás, fora esse de-
sequilíbrio que o levou a repetir o gesto tresloucado em
seqüência nas reencarnações anteriores.
A figura materna, amparada pela enfermagem espi-
ritual, aconchegava Daniel no colo, ocasião em que ele to-
mava a forma de uma criança recém-nascida no regaço da
mãe que o embalava em cantigas de ninar.
Os aprendizes de Justiniano não perderam tempo em
perguntar:
— Mentor, a presença materna contribui para o trata- gura materna auxiliando-o num momento como esse, é de
mento de nosso amigo? – interrogou Jorge. suma importância. A lei do trabalho está sempre presente
— Sim. Faz parte do tratamento, imediato e mediato para todo aquele que deseja colaborar com as Leis Divinas.
também. Nada mais justo que auxiliemos na formação desse novo
— Como assim?! Imediato e mediato? Não entendo... molde que o perispírito terá de oferecer ao material gené-
– insistiu o caravaneiro. tico dos pais.
— O amor com que é amparado nesses momentos cai — Mesmo nas condições mentais em que Daniel se en-
sobre o seu ser como chuva de bênçãos. Daniel experimen- contra? – acrescentou Gildo, curioso.
ta, por esses minutos, uma paz que há muito não conhe- — Com a colaboração do Espírito que o ama profun-
cia. Isso é importante para que as energias reequilibrantes damente! – emendou o benfeitor espiritual, continuando
administradas através dos passes e as medicações que lhe – ao ser embalado no colo materno, Daniel será tocado de
são administradas funcionem mais e melhor. O sentimento lembranças agradáveis da infância. Sem que o saiba, está
materno abre verdadeiros caminhos na selva de desequilí- colaborando com o trabalho de preparação para o retorno
brios na mente do filho em preparo para nova reencarna- à carne. Esse preparo inclui a redução do corpo perispiri-
ção. tual, dando-lhe condições de acomodar-se no vaso físico da-
— Servirá ainda para o tratamento mediato, ou seja, quela que o receberá como mãe em seu próximo retorno.
aquele mais tardio? De que maneira? – acrescentou Gino, — Isso significa que a mãe de Daniel não é essa senho-
atento, ao que Justiniano respondeu, solícito. ra que aqui conhecemos e a quem se vincula afetivamente
— Quando vai reencarnar, o Espírito precisa ser repor vivências passadas? – voltou a interrogar Jorge.
duzido em seu corpo perispiritual. Ao aconchegar-se no — Não. A reencarnação de Daniel deve se dar sem de-
colo daquela que lhe fora mãe, curvando-se como uma mora. Nossa amiga, entretanto, identificará na Terra, entre
criancinha recém-chegada ao mundo, o ser reencarnante aquelas almas que lhe são afins, o coração nobre que deve-
vai moldando mentalmente o corpo perispiritual com a rá acolher o filho em nova romagem terrena.
forma que terá de adquirir para renascer entre os homens! — Mas como poderemos estar seguros de que isso
Estaria como que fazendo uma ginástica em seu perispíri- ocorrerá? – insistiram os caravaneiros.
to lesado pelos atos anteriores de maneira profunda, para — A partir de um planejamento cuidadoso. Ouvire-
ir, aos poucos, imprimindo-lhe o formato a ser adquirido mos de nossa amiga Dora como serão executadas as próxi-
posteriormente. mas etapas do tratamento de Daniel...
— Quer dizer, Justiniano, que também colaboramos A respeitável Entidade detinha nos braços aquele ser
na tomada da nova forma necessária ao renascimento? que se constituía para ela em rico tesouro. Cantarolava
– interrogou Jorge, ocupado em relatar tudo. cantigas que relembravam saudosos dias, em existência na
— Sim. Quanto mais as nossas condições permitirem, Terra, evocando a infância de Daniel. Vez por outra beija-
participamos desse processo, o que, evidentemente, não é va-lhe a face pálida e banhada pelo suor, enquanto ampa-
o caso do nosso amigo Daniel. Por isso mesmo que a fi- rava o corpo que sofria abalos freqüentes, reflexo das agi-
tações do seu mundo mental. se apertaram ainda mais na última existência. Daniel sem-
— Olá, minha dedicada amiga e irmã! Como está nos- pre se conservou rebelde e refratário a qualquer convite à
so companheiro? tarefa de edificação espiritual, ainda que a Misericórdia Di-
— Só posso agradecer a Deus, irmão Justiniano, pela vina lhe houvesse concedido a bênção de reencarnar num
abençoada oportunidade de continuar trabalhando em falar espírita. Apesar do contato próximo dos postulados es-
vor do meu querido Daniel! – falou Dora, com emoção. píritas, que lhe poderiam aumentar a resistência às idéias
— A reencarnação já está próxima, não é mesmo? de suicídio, sucumbiu mais uma vez diante dos conflitos
— Felizmente, sim. O esquecimento temporário dos íntimos e expiações que deveria suportar com resignação,
atos pretéritos, com o retorno à carne, poderá aliviar-lhe os somando-se a isso as influências de Entidades espirituais
sofrimentos, apesar das repercussões que deverá apresen- interessadas na sua desventura. Renascendo no lar da mi-
tar no corpo que lhe servirá em nova experiência na Terra. nha sobrinha Clara terá o amparo dos conceitos espíritas
Mas ser-lhe-á facultada a chance de recomeçar o que é o novamente. Fico maravilhada e agradecida com a Bondade
mais importante. – Ponderou, resignada, fazendo interes- infinita de Deus. Rogarei ao Pai para que ela consiga trans-
sante comparação. mitir a Daniel o que não consegui quando na posição de
— O metal irá ao forno dos sofrimentos redentores mãe na Terra.
novamente, para ser reformado no calor das expiações que — A responsabilidade e os recursos dos pais termi-
aguarda a todo Espírito em evolução. Daniel recebeu inten- nam onde inicia o livre-arbítrio dos filhos, prezada irmã!
sa dedicação dos companheiros deste abençoado hospital Tenho certeza de que você não falhou em fornecer a ele a
e creio, conforme orientam os Espíritos Superiores, que é parte que lhe cabia. A Providência Divina não interfere no
chegado o momento do retorno! Confio profundamente no livre-arbítrio das criaturas. Tampouco os pais podem vio-
amparo que a Providência Divina continuará dispensando lar esse direito, ainda que doa profundamente no coração
a todos nós, especialmente ao meu necessitado Daniel! vê-los transgredir as leis de Deus! A prova do seu mérito é
— O pedido a Clara será feito em breve? – falou Justi- a permissão em continuar, neste lado da vida, junto daque-
niano, antecipando-se. le que, agora, se tornou filho da sua alma!
— Sim. Desdobrada pelo sono, ela será trazida pelos — Ah! meu bom Justiniano. A Misericórdia de Deus
amigos espirituais. A esse coração, que se encontra ligado amplia sempre os horizontes do trabalho para além daqui-
à família pelos laços consangüíneos e espirituais, será con- lo que merecemos. Mercê desse Amor Infinito, estou tendo
fiada a missão de receber Daniel como filho – respondeu a graça de estar ao lado de Daniel, na sua luta de reabi-
Dora, com o brilho da esperança nos olhos. E asseverou, litação perante a Lei Maior – ponderou Dora, com olhos
confiante: marejados de felicidade.
— Além da nobreza dos sentimentos que lhe caracte- A essa altura da conversa, entrou um dos assistentes
riza as atitudes, Clara tem a alma luarizada pelo conhecido Departamento da Reencarnação:
mento espírita. Filha de minha irmã mais nova, era a sobri- — Senhora, venho avisar-lhe que Clara deverá nos vi-
nha dedicada e amorosa, cujos laços de afinidade conosco sitar esta noite. Companheiros nossos, que têm assistido
nossa irmã, informam que ela estará conosco, assim que lada ao corpo físico onde permanecerá ainda por muitos
liberar-se dos liames da matéria pelo processo de emanci- produtivos anos...
pação durante o sono físico. — Mas onde estou, então?! Quem são eles? – pergun-
— Graças à bondade de Deus, da qual sou a maior das tou Clara, referindo-se aos presentes.
devedoras! Tenho confiança absoluta que o planejamento — São amigos, trabalhadores do Bem, que cooperam
terá seqüência conforme as necessidades do meu Daniel. na reabilitação de Daniel...
Louvado seja, Senhor! — Daniel?! Como está ele, tia?
Na noite programada para o contato, Clara e o mari- — Está amparado pela Misericórdia do Pai, como to-
do, após retornarem do Centro Espírita que freqüentavam, dos nós – respondeu Dora, evitando que projeções mentais
mantiveram o seguinte diálogo: relacionadas com o suicídio prejudicassem o padrão vibra-
— Acho que me excedi nas atividades domésticas. Es- tório no ambiente.
tou me sentindo muito cansada... – falou a esposa. – Não se — Ele está aqui?!
importa que eu vá me deitar mais cedo? — Está recolhido sob os cuidados de corações amigos,
— Ora, meu bem. Não se preocupe. Hoje tivemos de em processo de reparação, conforme determinam as Leis
fato um dia de muito trabalho no Centro. Eu vou ler um Maiores da vida. Confiemos no Criador do Universo!
pouco mais... – respondeu Marcos, o esposo, dirigindo-se — Posso vê-lo, tia Dora?
à poltrona da sala, levando consigo O Livro dos Espíritos, de — Poderá, oportunamente, minha sobrinha. Antes,
Allan Kardec. porém, é preciso que se prepare para uma difícil tarefa,
O ambiente no lar do jovem casal era propício à in- caso você aceite, que a Providência Divina estará deposi-
tervenção da Espiritualidade amiga. Clara recolheu-se ao tando em suas mãos, mercê do merecimento espiritual e
leito e fez a sua costumeira oração. Minutos depois, assim nobreza de seus sentimentos.
que se afrouxaram os laços físicos que a prendiam ao cor- — Tarefa? No que posso ser útil, minha tia? Alguma
po, Clara foi conduzida por entidades amigas ao Centro coisa que possamos fazer por Daniel, além das preces que
Espírita que freqüentava com o esposo. Ali, Dora a aguar- temos feito?
dava, juntamente com outros companheiros envolvidos na — Daniel precisará retornar à carne. E contará muito
execução do programa reencarnatório de Daniel. com o seu amor! – falou Dora, reticente.
Em fração de segundos, Clara viu-se transportar no — Nós já o amávamos muito, a senhora sabe! – falou
espaço, amparada por mãos amigas. Reconheceu o lo- a sobrinha, sem compreender.
cal para onde era levada, embora não pudesse identificar — Sim, eu sei. Mas agora, Clara, nosso Daniel precisa
aqueles que a conduziam. Ao ver a tia querida, entretanto, de uma dose maior do seu amor...
não conteve a exclamação: — Amá-lo mais, tia? Como assim?
— Tia Dora! A senhora, aqui? Estarei eu desencarna- — Recebendo-o como filho! Daniel está extremamente
da também? necessitado de reencarnar para novo processo educativo.
— Não, minha querida. Você se encontra bem vincu- Como você e o seu marido possuem o conhecimento da
Doutrina Espírita, esse será o lar ideal para que ele inicie — O que posso garantir-lhe é que terá o auxílio das
a marcha regeneradora! Contudo só posso pedir-lhe isso Leis maiores da vida, que sempre permitem o amparo
como um enorme favor, porque as Leis do Pai a ninguém a onde o bem esteja sendo realizado. Evidentemente que
nada obriga, a não ser caminhar para a perfeição possível esse auxílio não dispensará a parte que lhe cabe realizar
de ser alcançada! Se aceitar, ficaremos-lhe, eu e ele, extre- como futura mãe de Daniel. Exatamente por isso, está livre
mamente devedores por esse seu ato de amor! para aceitar ou não.
— Mas... A senhora precisa pedir-me isso? — Tia, se a senhora e as Entidades amigas entendem
— Sim, Clara. Como todos sabemos, a reencarnação que estou preparada para receber o Espírito do primo Da-
de Daniel trará a colheita de suas atitudes, e não seria justo niel, agora como filho da minha própria carne, vou acre-
impor-lhe essa tarefa muito grande que promoverá você ditar mais em vocês do que em mim mesma, passando a
diante das Leis de Deus, já que não existe vínculo de res- dizer que as portas do meu coração estão abertas para a
ponsabilidade entre você e ele! Se aceitar, será de livre e maternidade de que Daniel necessita!
espontânea vontade! Dora aproximou-se da sobrinha e abraçou-a com a ter-
— A senhora está querendo dizer-me que terei um fi- nura de mãe reconhecida, sussurrando-lhe ao ouvido:
lho com as conseqüências do suicídio? — A batalha será árdua, mas compensadora minha fi-
— É isso mesmo, Clara. A Doutrina codificada por lha. Deus a abençoe como sempre faz com todos os seres
Allan Kardec nos esclarece com detalhes sobre esta ques- de boa vontade!
tão. Por isso, estamos solicitando sua colaboração, poden- Do rosto de Clara, algumas lágrimas deslizaram silen-
do concordar ou não. Não havendo ligação sua com o ato ciosas, num misto de alegria e preocupação pela tarefa an-
cometido por Daniel, não é obrigada a aceitar a tarefa. Mas tecipadamente aceita naquela noite de sucesso para todos.
a aceitação ser-lhe-á um passo à frente na escalada evoluti- Foi reconduzida ao corpo de carne que, adormecido,
va, muito mais por ser um ato de amor e não conseqüência recebeu como a mais perfeita das luvas o Espírito da jovem
da Lei de Causa e Efeito... e futura mãe.
— Compreendi, tia, a responsabilidade da tarefa. Os olhos físicos encontravam-se banhados das mes-
O semblante de Clara, Espírito, tomara ares de preocu- mas lágrimas emitidas pelo corpo espiritual, quando Clara
pação, percebido por Dora, que não tardou a acrescentar: despertou, suavemente. Passando os dedos na face, mur-
— Fique tranqüila quanto a sua decisão, minha filha. murou:
Como já disse, e quero insistir nesse ponto, não há com- — Que sonho mais estranho! – exclamou, refletindo
prometimento seu com a atitude de Daniel. Por isso, está – Minha tia Dora, já desencarnada! Parece que tive um lon-
livre para decidir e respeitaremos de maneira total a sua go diálogo com ela!
decisão. Na dimensão dos Espíritos, os pupilos de Justiniano
— Minha preocupação é se estarei preparada para tal estavam sedentos de informações e não perderam tempo
tarefa, tia Dora! Terei forças para desempenhar a minha em iniciar o interrogatório:
parte? — Mentor, por que a escolhida foi a antiga sobrinha de
Dora e prima de Daniel? Não poderia ser uma outra mu- com a devida consciência do processo. Nesses encontros
lher disposta a receber tal encargo? – quis entender Júlia. entre encarnados e desencarnados, quanto menos traumas,
— Evidentemente que sim. Contudo, pelos laços de quanto menos mudanças, melhor para que a compreensão
amor que já envolveram esses companheiros, enquanto na seja alcançada.
carne, torna-se mais fácil a aceitação de tal responsabili- — Mentor Justiniano! E as conseqüências sobre o cor-
dade. Já existem laços prévios de amizade e bem-querer po físico de Daniel... De que tipo serão? Já se tem conheci-
que estabelecem uma sintonia favorável ao bom êxito do mento? – continuou Jorge a bateria de perguntas sobre o
difícil trabalho de recuperação de nosso irmão. Natural- instrutor.
mente, todo Espírito de boa-vontade poderia ter aceito. Os — A decisão está a cargo dos Espíritos encarregados
privilegiados perante as Leis de Deus são aqueles que se desse tipo de tarefa, inspirados por Entidades de esferas
mostram dispostos a servir. Os excluídos existem por von- ainda mais elevadas, voltadas ao trabalho de programação
tade própria, pela má-vontade de abraçar responsabilida- das reencarnações expiatórias. Não poderíamos nós, ainda
des perante o próximo em dificuldades maiores. Muitos os limitados pela pequenez que nos caracteriza, deduzir as
chamados, mas poucos se fazem escolhidos! privações e os sinais do corpo que marcarão o Espírito que
— Clara mostrou-se lúcida, entre nós... Muito cons- retorna à carne.
ciente do que estava fazendo... A que se deve tal conduta? — Dora, no entanto, deu a entender que Daniel re-
– continua, observadora. ceberá, no corpo material, os efeitos dos atos realizados,
— Como estudiosa da Doutrina dos Espíritos e dedica- dentro do mecanismo de semeadura e colheita! – aduziu
da aos trabalhos em favor do próximo, Clara foi beneficia- Alcindo, consciente.
da, recebendo a atenção e carinho da equipe encarregada — Sim. Dora sabe dos processos de que a Justiça Divi-
de trazê-la. Pela aceitação da realidade espiritual, não foi na se vale para reabilitar o filho que erra. Falou com base
tomada de espanto ao ver a tia desencarnada e aceitou com nos conhecimentos que lhe enriquecem o patrimônio espi-
naturalidade o encontro. Isso tornou a tarefa mais amena e ritual, sorvidos na fonte límpida da Doutrina Espírita, um
mais fácil o entendimento do diálogo estabelecido com a tesouro que soube repartir com a sobrinha querida, quan-
tia, agora entre nós na dimensão espiritual, compreendeu, do na Terra. Entretanto, não poderia definir com precisão
Júlia? as marcas que o filho carregaria para o novo vaso físico
— Sim... Mas por que os encarregados de promover o que o receberá de volta ao círculo de provas. O criminoso
encontro entre tia e sobrinha escolheram o Centro Espírita? sabe que será punido pelo crime, sem saber, entretanto, a
– insistiu a ex-psiquiatra, que na Terra fora profunda pes- extensão da pena que lhe será aplicada pela autoridade ju-
quisadora da psiqué humana. dicial!
— Por se tratar de local conhecido daquela que entra- — Ao despertar, Clara lembrará da experiência vivida
ria em desdobramento, e protegido pelas vibrações que os fora do corpo? – quis saber Júlia.
trabalhos de amor ali desenvolvidos fazem por merecer, foi — De maneira plena, não. Lembrará, sim, do conta-
mais fácil nesse lugar para ela ausentar-se do vaso físico, to com a tia desencarnada, de fragmentos do diálogo que
manteve, especialmente os trechos mais relevantes, para que tanto necessita voltar a nova experiência física. Assim
que possam ser lembrados no estado de vigília. Esses si- como necessitaremos de apoio quando retornarmos a ou-
nais, mais eloqüentes, darão a Clara a certeza de que não tra encarnação, proporcionemos apoio a quem dele precisa
se tratou de um sonho puramente fisiológico, mas sim uma para sermos auxiliados no amanhã de todos nós.
experiência, em Espírito, fora do corpo. Não poderá, entre- A série de interrogações deixara o grupo bastante mo-
tanto, rememorar todos os detalhes da conversação. tivado com o aprendizado. Após uma prece de agradeci-
— Imagino que os conhecimentos que adquiriu nos mento a Deus e a Jesus naquele local, dirigiu-se cada um
estudos da revelação espírita lhe serão propícios nessa as suas tarefas, esperançosos do sucesso da proposta feita
hora... – ponderou Alcindo, considerando que ele próprio àquela jovem que tinha a oportunidade de ser mãe e anjo
muito se beneficiara do tesouro que levara da Terra para o daquele que haveria de retornar ao campo de lutas terres-
mundo dos Espíritos. tres.
— Nada se sobrepõe às Leis de Deus! Nenhuma re- Júlia recordou os próprios pacientes e lamentou pro-
ligião está acima ou à margem da Lei. A lembrança total fundamente aqueles que perdera, arrebatados pelo suicí-
do ocorrido cria, muitas vezes, uma idéia fixa na mente do dio. A missão em resgate daquelas almas sofredoras repre-
encarnado, exacerbando-lhe a vaidade. Isso poderia trazer sentava para ela oportunidade de continuar o aprendizado
prejuízos na execução do projeto que se iniciou. interrompido na Terra. Os demais companheiros, também
— A resolução de Clara será irreversível? Não po- meditativos, recolheram-se em prece, cada qual extraindo
derá voltar atrás em sua decisão perante as Leis de Deus? lições particulares para o próprio adiantamento espiritual.
– questionou o mesmo Alcindo. Jorge, por sua vez, debruçou-se nas anotações, na es-
— Somos sempre livres para mudar as escolhas que perança de que aquelas páginas pudessem, no futuro, ser
fizemos, arcando, evidentemente, com as conseqüências! ditadas aos companheiros na Terra, contribuindo, de al-
No caso em questão, o não comprometimento com os erros guma forma, para os estudos doutrinários e também para
do primo torna ainda mais meritório o gesto de Clara, en- afastar para longe quaisquer idéias de suicídio entre os ho-
sejando-lhe largos passos na sua trajetória de crescimento mens.
espiritual.
— E no caso de desistir, representará uma dívida pe-
rante a Lei? – continuou o devotado espírita.
— Dívida não, mas uma oportunidade muito valiosa
de crescimento espiritual seria perdida, aliás como fazemos
tantas vezes quando estagiamos na carne. Continuaremos,
dentro de nossas possibilidades, juntos com os demais en-
carregados desse caso, a incentivar Clara através de pensa-
mentos positivos para que aceite e seja bem sucedida nessa
tarefa de suma importância para ela e para o nosso irmão
Capítulo 5
Preparação para a volta

d
C lara tinha um casal de filhos – Luciana e Gustavo –,

mas alguma coisa lhe dizia, conforme comenta-
va com o marido, que ainda seria mãe novamente. Coisas
da intuição feminina, segundo ela. Através da intuição e
dos encontros em desdobramento espiritual nas condições
em que isso se fazia possível, os Espíritos amigos encora-
javam-na ao trabalho sobre o qual, entretanto, detinha a
palavra final.
Numa noite amena de outono, após o relacionamento
conjugal marcado pelo amor e o respeito da permuta su-
blime das energias criadoras do sexo, Clara adormeceu. A
Espiritualidade amiga, que criara barreira vibratória prote-
tora em torno do lar, aguardava o desdobramento de Clara
para conduzi-la à dimensão vinculada ao Centro Espírita
Apóstolos da Caridade, freqüentado pelo casal. toda a perfeição que caracteriza nosso Pai!
Dora, devido aos laços de amor que a ligavam à antiga Clara, profundamente emocionada, já irradiando a
sobrinha na carne, estava com os demais membros da equi- ternura de uma nova maternidade, depositou na face da
pe encarregada do retorno de Daniel, todos esperançosos e criança um beijo impregnado de profundo amor! Estava
confiantes na decisão final da jovem senhora. dada a resposta de coração para coração! Imediatamente,
— Olá, minha filha! Que Jesus nos ampare em mo- um laço brilhante e sutil se desprendeu do ser espiritual
mentos como este! Fico muito contente em vê-la tão feliz nos braços da jovem, vinculando-se ao seu perispírito! Es-
nesta noite abençoada, em que a bondade de Deus nos pro- tava reiniciado com sucesso o processo da reencarnação.
porciona o reencontro! Enquanto no corpo físico espermatozóides iniciavam
— Querida tia Dora! Deixe-me abraçá-la mais uma a corrida grandiosa em busca do óvulo, a futura mãe supli-
vez para diluir a saudade! – antecipou a sobrinha, expres- cava ao grupo de Espíritos que a rodeavam na dimensão
sando a afeição guardada por aquele Espírito que, quando espiritual:
no corpo, dispensara-lhe profundo amor. — Que os amigos me ajudem a cumprir a tarefa que
— E então, meu bem? Já chegou a uma decisão sobre me foi confiada pelo Altíssimo perante as Leis da Vida!
o trabalho que lhe é oferecido pela Divina Providência? — Deus a abençoe, minha filha, e que Jesus, nosso
Lembre-se de que a nada somos obrigados! Só deve aceitá- Mestre e Senhor, nos permita auxiliá-la em todos os mo-
lo por amor, sem qualquer forma de constrangimento. mentos de sua vida diante da nova e enobrecedora tarefa!
— Tia, a senhora disse-me que poderia ver Daniel em Nunca somos esquecidos ou desamparados nas atitudes
ocasião propícia. Poderia ser hoje? construtivas da existência, e a maternidade é uma dessas
— Sim. Vamos trazê-lo à sua presença. grandiosas ocasiões! Tenha a certeza de que não estará órfã
Nesse momento, como que atendendo a um silencio- do amparo do Criador, como ninguém é esquecido da sua
so chamado mental, entrou uma senhora com uma criança magnânima bondade. Não lhe faltará auxílio nos momen-
nos braços, à semelhança do que se passa na Terra na che- tos de dificuldades, porque Jesus há de permitir que mãos
gada de um recém-nascido. amigas a sustentem, quer seja pela intuição, quer seja nos
— Tia Dora! Não estou entendendo! É Daniel?! desdobramentos pelo sono físico, em novas oportunidades
— Sim, minha filha! Nosso irmão necessita de nova como esta.
reencarnação para redimir-se dos desatinos cometidos ao Aproximando-se de Clara, Justiniano falou-lhe com
longo de sua jornada, como todos nós! carinho paternal:
— Por que o formato de criança?! — Os que verdadeiramente se amam não são separa-
— Mercê da misericórdia de Deus, Daniel já vem sen- dos pela ausência do corpo! O amor é uma vibração tão po-
do preparado pelos companheiros encarregados da reen- derosa, que atravessa o túmulo, rastreando e encontrando a
carnação, tendo sofrido uma redução em seu perispírito pessoa amada onde ela se encontrar e nas condições em que
para acoplar-se no ninho materno novamente. Bendita estiver. Agradeçamos ao Senhor da Vida e ao Nosso Mestre
Doutrina dos Espíritos, que assim nos permite entender por esta ocasião de tantas alegrias e bênçãos para todos...
Em seguida, iniciou uma prece, que ecoou no ambien- — Iremos juntos até o lar da jovem senhora, onde te-
te, ao mesmo tempo que abria um halo de luz. remos oportunidade de aprender um pouco mais, não nos
— Deus, nosso Pai! Ampare e nos fortaleça no propó- esquecendo de que, quanto maior o conhecimento, maior a
sito abraçado neste instante perante a própria consciência! dívida diante do necessitado! – asseverou Justiniano.
Que o trabalho no bem seja alimentado em todos os mo- Ao ser novamente realojada de maneira plena no
mentos pela fé e pela esperança de conseguirmos o melhor, veículo físico, Clara soltou um profundo suspiro, momen-
não por méritos nossos, mas porque assim é a determina- to em que foi abraçada por Marcos.
ção da Lei para que o bem vença sempre. Pedimos a Sua Conservando certa distância do grupo, Justiniano rei-
misericórdia para o irmão que retorna a um novo corpo niciou:
pela bênção da reencarnação, sem que, em nenhum mo- — Acoplados Espírito, perispírito e corpo material, o
mento, deixemos de compreender que a Justiça precisa ser processo reencarnatório de Daniel passa a ser direcionado
dispensada em suas aplicações para o nosso reequilíbrio na matéria densa.
interior. — Como assim, Mentor? – perguntou Mariana, um
Depois de breve pausa, o benfeitor continuou: pouco ansiosa.
— Conscientes de nossos extremados limites, mas ar- — Os Espíritos incumbidos de promover a volta de
dorosamente confiantes nos horizontes infinitos do amor Daniel à nova existência darão prosseguimento em suas
de nosso Criador, nos atrevemos traçar planos em favor de tarefas junto ao corpo físico. A partir do perispírito de Cla-
Daniel e de nós mesmos. Permita, Senhor, que possamos ra, vinculado ao perispírito do futuro filho, auxiliarão na
invocar e agradecer o Seu nome neste instante e sempre, criação de campo magnético que irá atrair o espermato-
na dimensão dos encarnados ou de Espíritos fora da ex- zóide que transmitirá a herança genética que mais convém
periência na carne. Na certeza de que Jesus conosco está ao programa reencarnatório do ex-suicida, imprimindo no
até a consumação dos séculos, agradecemos por esta noite corpo físico as limitações que ensejarão ao reencarnante a
de bênçãos e de compromissos que iniciamos a partir de oportunidade de quitar seus débitos e redimir-se perante a
agora em Seu nome. própria consciência!
A claridade proporcionada pelos raios de prata do — Desculpe, Mentor, mas ficou confuso para o meu
luar a descoberto, parecia ter ganhando intensidade maior entendimento! Escolher através de um campo magnético o
durante a prece, derramando tênue chuva de prata sobre espermatozóide mais conveniente? Como assim? – insistiu
todos os componentes daquele grupo irmanados pela fé e Mariana. Para ela, as gestações de fetos com malformações
pelo amor. congênitas, quando enfermeira em hospital de maternida-
— Amigos! Clara precisa ser reconduzida ao corpo de, deveriam ser interrompidas. No mundo espiritual, es-
para continuar a dar seqüência ao compromisso assumido tava agora revendo conceitos antigos, demolidos ante o co-
em nossa dimensão. Auxiliemos com nossas preces e com- nhecimento das Leis Divinas. Aprendia a necessidade das
panhia até o seu lar na Terra – acrescentou Dora, amparan- limitações estampadas no corpo material como recursos
do amorosamente a sobrinha. de expurgo para as mazelas morais alojadas nos arquivos
espirituais daqueles comprometidos com o desequilíbrio. cesso criava uma rede energética com material fornecido
Concluía, dessa maneira, que os fetos com malformações pela mãe e pelo feto, numa conjugação de esforços para
representavam o tratamento necessário à enfermidade do que o espermatozóide trouxesse a carga genética que me-
Espírito e que, por isso mesmo, o aborto dessas criaturas se lhor se apropriasse ao momento. Vitalizada, a microscó-
constituía em crime perante a Lei maior. pica célula foi atraída por essa rede, atingindo o óvulo de
— Não se espante diante de nossa pequenez para maneira mais rápida que os demais.
compreender as Leis de perfeição absoluta! As lesões ar- Contemplando da dimensão espiritual, era como se a
quivadas no perispírito atingirão o novo corpo material, já célula reprodutora masculina escolhida sofresse uma in-
que o perispírito lesado será a forma desse novo corpo. Ao jeção de energia extra que lhe imprimia maior velocidade
transmitir tais marcas ao corpo denso, o perispírito provi- para chegar até a célula reprodutora feminina, confeccio-
denciará as limitações de que Daniel necessita. – explicou nando o corpo físico adequado àquela reencarnação.
Justiniano, pacientemente. Justiniano retornou às explicações:
— Mas que limitações serão essas, Mentor? – interes- — Estamos diante da materialização do perdão divino!
sou-se Mariana mais ainda. — Como assim, senhor? – perguntou Gildo.
— O tempo revelará quais serão as necessidades de — A reencarnação é a resposta de Deus aos nossos
nosso irmão sob o aspecto de seu novo corpo. A nós com- pedidos de perdão pelos erros cometidos! Como o perdão
pete orar e auxiliar para que, sejam quais forem, essas limi- gratuito não existe, porque o perdão sem esforços foi criado
tações se convertam em oportunidades de reajuste. Se ele pelos homens para negociar o céu em troca de interesses
falhar, falhamos juntos, já que endossamos os propósitos da Terra, receberemos quantas oportunidades forem neces-
redentores! sárias para retornar ao local do erro, mas jamais consegui-
Os aprendizes se entreolharam espantados pela sur- remos gratuitamente a quitação de nossos desequilíbrios!
presa da colocação. Enquanto isso, irmãos encarregados — Quer dizer que não adianta pedir perdão pelas fal-
das primeiras providências adentraram o local. tas cometidas? – retornou o jovem.
Justiniano em voz baixa, quase num sussurro, adver- — Devemos sempre suplicar o perdão a Deus, mas
tiu: entendendo que ele nos será dado através de novas opor-
— Vigiemos o pensamento! Qualquer vibração que tunidades no corpo para que reparemos o mal cometido
interfira negativamente no processo poderá comprometer de livre vontade! O perdão tácito de nossas faltas, apre-
o trabalho dos nossos amigos. E seremos convidados a nos goado por algumas religiões como forma de conquistar no-
retirar. É o velho princípio de justiça em ação: os nossos vos adeptos, não tem sentido na lógica da Justiça Divina.
direitos não se sobrepõem aos da mãe e do Espírito em A quitação do débito é alcançada pelo próprio interessado
processo de reencarne! Estejamos atentos e agradecidos quando se dispõe a reparar o mal praticado!
às Leis Maiores que nos proporcionam esses minutos de — Mas... No caso de Daniel, como poderia ele recla-
rara beleza! mar esta nova oportunidade no estado de confusão men-
O grupo incumbido de dar a trajetória inicial ao pro- tal e desequilíbrio em que se encontra? – continuou Gildo,
ainda sem entender. se dispor ao tratamento. E, não raras vezes, isso toma tem-
— Nesses casos, Espíritos amigos, juntamente com po e não se faz sem a presença da dor, mas acabará por fim
Mentores especializados em deliberações desse tipo, inter- levando-nos à cura definitiva. Ninguém a nada é obrigado
cedem em seu favor. Não se passa assim quando acompa- sem que antes, durante insistentes ocasiões, tenha sido con-
nhamos um ente querido que esteja doente a uma consulta vidado a redimir-se. Contudo, nos casos de resistência e re-
médica? Pois bem! Dora acompanhou o filho querido, que beldia, poderá ocorrer a intervenção da Espiritualidade, evi-
não tinha condições de caminhar por si mesmo, até o mé- tando que o Espírito renitente comprometa-se ainda mais.
dico Jesus! O Divino Amigo, por meio de seus prepostos — É quando ocorrem as reencarnações compulsórias?
e com a permissão do Criador, prescreveu-lhe a melhor – observou Alcindo.
medicação, que é, no momento, a volta à carne em busca — Sim. Semelhante à criança que chora, se joga no
da quitação, mesmo que parcial, das dívidas contraídas pe- chão, porque não quer ir para escola aprender a ler e a es-
rante a Lei! crever! Ela não quer porque não entende ou não enxerga
— Pobres daqueles que não têm quem possa interce- a importância da aprendizagem. Nessas ocasiões, os pais
der em seu favor quando se encontram nessas condições! deverão, com tato e a energia necessária, cumprir o seu pa-
– exclamou o jovem, associando o quadro à própria ex- pel de orientadores, arrumando meios para que a criança
periência. Responsável direto pelo acidente que o levara comece a freqüentar as aulas necessárias. Com o tempo, a
ao desencarne, por dirigir em alta velocidade e de forma criança começa a aprender a gostar ou, pelo menos, enten-
imprudente, Gildo sentia-se, de alguma forma, um tipo de der melhor a necessidade de ir à Escola. Assim também
suicida. se passa com os irmãos que, rebelados contra o bem, sem
— Não se esqueça de que somos no Universo uma perceberem que o mal os atinge em primeiro lugar, são
única família. Sempre haverá irmãos em melhores condi- conduzidos pela vontade do Pai à escola da Terra, mesmo
ções que se interessem e intercedam por nós ante a Mise- contra vontade, para que sejam devidamente educados e
ricórdia de Deus! Jesus nos deu um exemplo magnífico. esclarecidos.
Do alto da cruz, depois de todo o bem que nos havia pro- Os Espíritos encarregados do início do processo re-
porcionado, pediu perdão ao Pai por seus algozes. Sempre encarnatório de Daniel haviam completado as providên-
haverá quem por nós se interesse para que não fiquemos cias primeiras e preparavam-se para deixar o local. Nesse
desamparados sem o devido socorro. momento, Justiniano convidou os pupilos a agradecer por
— Mas o interessado precisa apresentar condições mí- mais essa oportunidade de aprendizado, deixando, em se-
nimas para receber o auxílio, não é mesmo? guida, a intimidade do casal.
— O remédio pode estar na cabeceira do doente, mas, — Mentor, todos os acontecimentos maravilhosos
se ele se negar a tomá-lo, conhecerá as dores até que se desta noite, transcorridos em nosso plano, serão lembra-
disponha utilizar a medicação adequada para o mal que o dos por Clara? – quis saber Mariana, embevecida com tudo
acomete! Por isso é que o estágio da alma nas regiões de so- o que observara.
frimento é variável com a disposição de cada enfermo em — Talvez não. Mas o fato de não poder rememorá-
los não deixará de beneficiar-lhe o corpo físico e, princi-

palmente, suas vibrações mentais, iniciando o seu preparo
para ser mãe novamente junto a um Espírito muito mais
necessitado do que os seus outros dois filhos.
— Podemos dizer que o Espírito em experiência no
sexo masculino, como é o caso de Marcos, leva desvanta-
gem em relação às bênçãos vivenciadas por Clara, não é?
– acrescentou a senhora, ainda emocionada.
— As vibrações de paz atingem o lar de uma maneira Capítulo 6
global e a própria companheira, estando feliz, fará por con-
seqüência também feliz o esposo. Por não renascer para
gerar a vida física, o espírito estagiário no sexo masculino
não pode, evidentemente, usufruir diretamente das vibra-
ções indescritíveis da maternidade! Mas acompanhar e dar
atenção à companheira durante todo o processo de gesta- A Reencarnação em curso
ção da criança também é uma atitude prazerosa. Ser apoio
para a esposa e para o filho em crescimento, promove sen- d
sações positivas na figura do marido dedicado. Aquele que
se transforma em segurança e felicidade para o seu próxi-
mo colhe os frutos de tal atitude. Nosso semelhante é um
espelho capaz de refletir sobre a fonte que o abençoa ou lhe
causa dissabores as vibrações daquilo que recebe. De tal
C lara, pela experiência das outras duas gestações,
diante do atraso menstrual daquele mês, tinha
quase certeza absoluta de que iria ser mãe novamente. Co-
forma que, não julguemos em inferioridade o nosso irmão municou o fato, feliz, ao marido:
Marcos, porque as bênçãos como as lágrimas que poderão — Marcos! Acho que vamos ter mais um filho! Minha
advir da reencarnação de Daniel também serão repartidas intuição não me enganou. Desde que tive aquele estranho
com ele na posição de pai aqui na Terra. sonho com a tia Dora, em que me entregava uma criança
A madrugada já ia longe, e as estrelas enfraqueciam- recém-nascida, essa idéia vem ocupando espaço em minha
se com a insistência dos primeiros raios de sol, na tentativa mente! E agora, com mais esse sinal, só falta consultar o
de romper no horizonte, quando Justiniano e a pequena doutor Celso Junqueira. Já marquei a consulta. Assim, à
comitiva deixaram, felizes, o lar de Clara e Marcos. noite no Centro poderemos agradecer a Deus a confiança
que depositou em nós ao entregar este Espírito à nossa res-
ponsabilidade! Está feliz como eu?
— Lógico, amor! Ainda que minha alegria não se
compare à ventura da mulher ante a maternidade, estou
revivendo a alegria de ser pai, agora pela terceira vez! Ale- vidade no Centro, não se esqueça!
grias que vivemos com o nascimento de Gustavo e Lucia- A quase certeza de Clara foi confirmada pelo exame
na... Quer que eu a acompanhe na consulta? clínico e ginecológico. O dr. Celso solicitara o exame de
— Não, não é preciso. Ele conhece bem os sintomas e gravidez, cumprindo procedimento de praxe. Chegou
as reações do meu organismo. Afinal, foi ele quem cuidou mesmo a cumprimentar Clara por mais um rebento a ca-
de mim nas outras vezes. minho, enviando o abraço também ao jovem pai.
— Mas cada gestação é diferente da outra, meu bem! O casal estava feliz entre os companheiros do Após-
Assim como não existem dois filhos iguais, não existem tolos da Caridade, dessa alegria que é impossível de ser
duas gestações iguais! É bom que o médico a acompanhe escondida ou disfarçada. Clara não se fez de rogada e
como se fosse a primeira vez! deu vazão à alegria que lhe invadia o íntimo, abraçando e
— Mas não gostaria de saber o sexo da criança. Pedirei sendo abraçada pelas amigas a quem contava a novidade
ao doutor Celso que não revele o resultado da ultra-sono- alvissareira. Alfredo, o dirigente da Casa, soube logo da
grafia... novidade e mencionou o fato, alegremente, durante a pre-
— Por que não? Este é um direito dos pais... leção da noite.
— Prefiro não saber... Você não se importa? Após leitura de uma página de O Evangelho Segundo o
— Para mim tudo estará bem, contanto que seja a sua Espiritismo, os passes foram aplicados. Freqüentadores dei-
vontade. Às vezes essa pressa em conhecer o sexo da crian- xaram a casa, mas o pequeno grupo de vibrações, do qual
ça tira um pouco o prazer da espera! Clara e Marcos participavam, permaneceu para a tarefa da
— Então, dispensaremos o ultra-som. Pedirei o acom- noite. Iniciados os trabalhos, seguiram-se as comunicações
panhamento pelos exames! mediúnicas, abertas pelo Mentor espiritual. Após algumas
— Aí já não sei se é possível. Esse exame, cada vez manifestações, em que irmãos desencarnados foram socor-
mais, traz segurança ao médico para acompanhar o desen- ridos em vibrações de amor e pelo diálogo esclarecedor, o
volvimento normal da gravidez! coordenador dos trabalhos pediu que todos se mantives-
— Está aí uma coisa que não consigo entender muito sem em prece. Nesse intervalo de preparação para o térmi-
bem! Nos casais como nós, que jamais provocaríamos o no da sessão, uma das médiuns começou a transmitir, pela
aborto diante de alguma anomalia do feto, de que adianta psicofonia, a seguinte mensagem:
dar-se ao trabalho de fazer a ultra-sonografia? Isso é coisa
para casal que teria a coragem de abortar! — Prezados companheiros e irmãos da jornada terrestre!
— Clara, não interfira na conduta médica! É preciso Possamos sempre comportarmo-nos com a dignidade que nos tor-
manter um clima de cordialidade para que você confie no ne merecedores das bênçãos do Senhor Jesus! Nunca há parada
médico e ele sinta que está cuidando de uma paciente obe- no trabalho construtivo, quer estejamos no corpo ou fora dele!
diente aos seus conselhos. Não acha melhor? Tudo é construção, aquisição, conquista para que possamos
— Sim! Claro, claro... Não sei nem por que tocamos estar de consciência tranqüila como reais proprietários daquilo
nesse assunto! Vá trabalhar, tranqüilo. À noite, temos ati- que conseguimos conquistar! Trabalhamos na dimensão espiritual
como o fazemos mergulhados no corpo de carne! E trabalhamos que irmãos pelo sangue buscam companhia em estranhos ao lar,
sempre de forma abençoada quando nos dedicamos a qualquer não suportando a presença do outro! Podemos adiantar-lhes que
tarefa, por menor seja ela, fora ou dentro do próprio lar, bastando nada erra de endereço ou deixa de ter uma razão de ser!
para isso haver o necessitado a ser socorrido em nome da caridade! O mais sensato é aproveitar o enorme laboratório do lar
Esse foi o grande ensinamento do Cristo na parábola do bom terrestre para as experiências do amor que será capaz de nos levar
Samaritano. Nosso próximo é sempre aquele em penúria física ou a regiões vibratórias de maior paz e felicidade verdadeiras após
moral que possamos aliviar e que esteja ao alcance de nossa visão abandonar o corpo.
e possibilidades! Alguns companheiros dentro da Doutrina Es- Não vale nunca a pena duvidar da infalibilidade das Leis
pírita, muitas vezes empolgados pelos grandes missionários que, de Deus, porque o tempo não retroage! Teremos novas oportu-
de tempo em tempo, os visitam na carne, desejariam desempenhar nidades, mas não recuperaremos o tempo perdido por duvidar!
tarefa de grande vulto. Construir uma creche, um orfanato, um A cruz no lar é mais pesada porque confeccionada por débitos ou
hospital espírita e por aí a fora. aceitação de tarefas propostas para a nossa evolução!
Em muitos desses casos não se sabe onde começa o real de- Não devemos, embora sejamos livres, abandonar a tarefa em
sejo de praticar a caridade e onde começa a vaidade. A mínima casa, procurando uma outra que a substitua fora do ambiente do
tarefa que seja em nome do amor, cumpra-se ela em que local for, lar em que a Providência Divina nos colocou! A dívida ou o com-
já estaremos honrando nosso dever como cristão. No serviço, na promisso mais imediato está aí. Não fosse assim, já teríamos sido
rua, nos hospitais, nos orfanatos, na casa de abrigo para velhos encaminhados para os locais onde elas nos exigissem a presença
abandonados, nas cadeias e penitenciárias, no interior do próprio com maior intensidade!
lar, a dor pede socorro! Dentro do próprio lar! Como é difícil tra- Honremos a oportunidade que o Criador nos proporciona
balhar nessa sagrada oficina que é o lar na Terra, não é mesmo?! por meio da reencarnação, onde estivermos, e quanto mais difícil
Muitas vezes sentimo-nos com disposição gigantesca de for servir em um determinado local, ao lado do nosso semelhante,
servir em qualquer outro lugar, menos na intimidade dos fami- tenhamos a certeza de que aí está a tarefa maior. Fiquemos todos
liares consangüíneos! Alguns dos companheiros aqui presentes na paz do Cristo!
estão indagando mentalmente neste momento se não somos uma
só família e por que esse destaque para o parentesco terreno! Ah! Todos estavam sob o impacto das palavras do Espírito
prezados irmãos! Somente poderão entender a grandiosidade do comunicante. A mensagem deixara nos ali presentes a sen-
serviço dentro do lar na Terra quando estiverem na dimensão sação de que fora direta, específica, diferente das habituais.
espiritual e aqui tomarem conhecimento dos mínimos detalhes Naquela noite as palavras tinham tido endereço definido!
que nos regem a vida! Finda a prece, os olhares se entrecruzaram, um procurando
Quando entenderem por que aquela esposa digna recebeu um no outro algum significado não compreendido. O dirigente
companheiro complicado! Por que o marido dedicado e trabalhador do grupo, mais experiente, interpôs:
não encontrou o ombro amigo de uma esposa fiel! Por que esse ou — Companheiros! Antes de fazer suposições apres-
aquele filho é deste ou daquele jeito e não de outro que agradaria sadas, a fim de identificar o destinatário da mensagem, é
mais aos pais! Por que pais na velhice são lançados em asilos! Por preciso compreender a necessidade do trabalho e mais es-
pecificamente do trabalho dentro de nossos lares. Não nos sejam vê-lo revelado.
permitamos derrapar para o terreno das suposições fanta- — Mas o senhor parece que demorou mais nesse exa-
siosas, o que somente servirá para desviar nossas atenções me do que nas minhas gestações anteriores!
do que é essencial na mensagem recebida. — Impressão sua, minha filha. Talvez porque esteja
A sessão estava encerrada. Um silêncio profundo pe- ficando velho e esteja enxergando menos!— sorriu o facul-
sou sobre o grupo. Uma onda de meditação tomou a cada tativo. – Marcos não quis acompanhá-la desta vez?
um no retorno ao lar. — Eu não quis preocupá-lo ou fazer que faltasse ao
— Sabe, querido – dizia Clara ao marido. – Parecia que trabalho sem uma razão. Afinal, já fui mãe por duas vezes
o Mentor estava se dirigindo a alguém do grupo, não achou? e, como se diz na gíria, já aprendi o caminho da roça...
— A mensagem teve caráter geral, já que todos nós so- — Marcos continua trabalhando no mesmo local,
mos Espíritos reencarnados para trabalhar, e todos aqueles Clara?
companheiros ali presentes possuem um lar. Portanto, não — Sim, doutor. Ele gosta muito dos companheiros e
vi nenhuma particularidade nas palavras de hoje. do seu patrão, além de nos proporcionar renda para uma
— Talvez você esteja certo – murmurou a esposa, pen- vida modesta, mas sem nenhuma necessidade!
sativa. – Talvez... — Está muito bem. Qualquer novidade você me
Os dias foram se passando, e o processo de formação procure. Não vá querer dar uma de obstetra baseando-se
do novo ser no ventre materno dando cumprimento às leis em seus conhecimentos das duas outras gestações, por-
biológicas, até que chegou a ocasião do primeiro exame de que cada filho é uma nova história que está sendo escrita
ultra-sonografia da jovem. Diante do dr. Celso, Clara se e precisa de todos os cuidados que tivemos nas gestações
manifestou: anteriores! Os telefones que tenho de sua última consulta
— Doutor, só vou fazer esse exame em respeito à con- sofreram alguma alteração?
duta do senhor, porque estou sentindo-me perfeitamente — Não, doutor. Por quê?
bem. Por isso gostaria de pedir-lhe o favor de não revelar o — Caso você me ligue e eu não esteja, retornarei o seu
sexo da criança, porque eu e Marcos concordamos que seja chamado! Se tivesse havido mudanças, não saberia como
desta maneira. procurá-la!
— Como quiser, Clara. O sexo é apenas um detalhe — Não, doutor. Todos os números são os mesmos,
dispensável do exame que visa acompanhar a boa forma- inclusive o do trabalho de Marcos.
ção do feto em desenvolvimento. Fique tranqüila. Mante- — Então, tudo bem. Agende, por favor, seu retorno
rei segredo – falou o ginecologista, com simpatia. com a minha secretária.
O exame foi realizado no próprio consultório médi- Clara despediu-se do médico dirigindo-se para a sua
co e mantido o segredo solicitado por Clara. Terminado o casa, enquanto o telefone no local de trabalho de Marcos
procedimento, Clara não resistiu: tocava chamando por ele. Era o dr. Celso Junqueira.
— Doutor, conseguiu ver o sexo deste meu filho? — Olá, doutor. Sou eu mesmo. E Clara, já passou por
— Não me preocupei com esse detalhe, já que não de- aí hoje?
— Sim, Marcos, e é por isso que estou ligando. um cumprimento de leis da Biologia. O aspecto mental tem
— Houve algum problema, doutor? Ela ainda está aí? profunda influência nessa relação desde os primeiros dias
— Não, já foi para casa. Gostaria que passasse em de vida intra-uterina! Impor sofrimento antecipado a Clara
meu consultório para que possamos conversar. Isso é pos- não irá alterar o quadro do feto, que continuará se desen-
sível? volvendo sem os membros superiores.
–Sim, claro! Irei vê-lo o quanto antes. Mas o senhor — E por que, doutor? O que teria prejudicado a ges-
poderia adiantar-me alguma coisa?! Há algum problema tação?
com a saúde de minha esposa? — A medicina não possui explicações completas sobre
— Não, com ela não. Venha ao meu consultório e con- essas malformações congênitas. Qualquer explicação mais
versaremos... detalhada chegaria num ponto em que o porquê ficaria
No mesmo dia, Marcos batia à porta da clínica gineco- sem resposta!
lógica do dr. Celso Junqueira. — Acho que posso entender, doutor! Existem fatos
— Preferi falar com você antes e, juntos, decidir se fa- desta vida que possuem explicações que a medicina ainda
laremos com Clara... não conhece! – disse Marcos, recordando-se das explica-
— O que houve, doutor?! Se não é problema com a ções encontradas na Revelação dos Espíritos.
saúde da minha esposa, só pode ser com a criança! — Então ficamos assim. Qualquer mudança de opi-
— O exame revelou um defeito congênito! A criança nião, me procure. Assim que tiver o resultado de novos
está sendo gerada sem os dois braços! exames, vou pondo-o a par de tudo. Esteja certo.
Marcos sofreu o impacto da notícia, mas logo procu- Marcos retirou-se. Em vez de retornar ao trabalho,
rou equilibrar-se. preferiu refletir um pouco mais dentro do carro. Dirigiu
— E não há possibilidade de nenhum engano no diag- por alguns minutos, até estacionar em uma rua tranqüila.
nóstico? Queria meditar... Do porta-luvas, retirou uma mensagem
— Infelizmente, não! A criança vai nascer sem os dois consoladora do Espírito Albino Teixeira. Com os olhos mo-
membros superiores! Como se trata de uma lesão grave, lhados, retomou o destino do lar. Haveria de ocultar o fato
resolvi primeiro falar com você... à esposa. A notícia só iria agravar o seu estado de ânimo,
— Entendo e agradeço a sua atenção, doutor. Creio por mais que já tivessem lido e ouvido sobre as provas e
que será melhor não dizer nada a Clara, para que não se expiações da existência.
abata mentalmente, evitando assim outros problemas. O Agora, como num relance, lembrava-se da longa men-
senhor não pensa assim também? sagem do diretor espiritual na última noite no Apóstolos
— Não é fácil para nenhuma mãe receber uma notí- da Caridade. Não parecia um aviso? Um filho sem os bra-
cia dessas, Marcos! Como você próprio já entendeu, isso ços era, sem dúvida, uma difícil provação para todos, por-
poderá gerar problemas psicológicos com repercussões que seria um ser sempre dependente do auxílio alheio!
imprevisíveis sobre a criança em formação! Sabemos hoje Mas era chegada a hora do testemunho. Saberiam, ele
em medicina que o relacionamento mãe–filho não é apenas e a esposa, que amava, comportarem-se de modo a não de-
cepcionarem os Espíritos amigos e a si próprios? E os ir- atividades doutrinárias, fazendo companhia ao marido, e
mãos, Gustavo e Luciana? Continuariam, sim, confiando foi assim que pôde presenciar mais uma manifestação de
na misericórdia da Providência Divina e, se tinham neces- um Espírito que se caracterizava como irmã e amiga dos
sidade daquela provação ou expiação, que assim fosse. Es- companheiros ali presentes:
taria, como sempre estivera, ao lado da companheira que
conhecera na juventude freqüentando o mesmo Centro Es- — Meus queridos companheiros irmanados na abençoada
pírita. Se a Justiça de Deus havia tomado aquela decisão, é Doutrina codificada por Allan Kardec.
porque existia uma causa justa para tudo aquilo. Era hora, Que possamos estar na paz do Cristo nestes dias agitados
não de pedir explicações, mas de buscar o fortalecimento que vive o planeta ao qual estamos vinculados, dentro ou fora do
da fé para encontrar soluções. Um dia saberiam o porquê corpo.
de tudo aquilo. A primeira providência era a de não mos- Muitas vezes acreditamos erradamente que não temos mais
trar aborrecimento ao retornar para o lar depois daquela como testemunhar a nossa fé como os primeiros cristãos o fize-
delicada notícia. ram, inclusive com o preço da própria vida!
Com algumas rosas vermelhas, Marcos chegou à casa. Engano nosso. Se já não pagamos mais com a existência
Clara, emocionou-se com a lembrança. física nas fogueiras, nas crucificações, devorados por feras famin-
— Que maravilha de rosas! – disse, depositando cari- tas ou qualquer outro tipo de martírio, temos nos dias atuais que
nhoso beijo no esposo. – Fui ao doutor! E consegui não sa- enfrentar provas, talvez, muito mais dolorosas, em que o nosso
ber o sexo do nosso filho. Colhi exames de sangue e estou orgulho, a nossa vaidade, o nosso egoísmo, a nossa paz, os nossos
me sentindo ótima... dias de tranqüilidade sofrem um processo vagaroso de extinção,
— Que bom, amor! Fico feliz por nós três – disse o impondo-nos sofrimentos de variada ordem!
marido, abraçando a esposa. Somente a fé semelhante à daqueles companheiros que cami-
O tempo foi passando, a gravidez prosseguia, sem nhavam para o sacrifício entoando hinos de alegria a Deus, é que
grandes anormalidades. No segundo ultra-som, Marcos nos dará as forças necessárias para vencer! Os dias atuais não
ainda tinha a esperança de que o quadro sofresse uma estão isentos da necessidade do testemunho!
transformação, não porque acreditasse em milagres, mas São tempos difíceis que, enfrentados sem a devida dose de
talvez uma falha tivesse ocorrido no exame anterior. fé, levar-nos-ão à revolta e à negação da confiança no Criador.
Entretanto, em conversa com o médico, teve a confir- Quando a dificuldade procurar-nos, interpretemos como a nossa
mação do quadro da ausência dos braços na criança. Era hora de testemunho, agradecendo pelo momento em que provare-
preciso que ele aceitasse a determinação dos desígnios de mos a fé.
Deus para poder servir de apoio à esposa no momento Uma das grandes provas da confiança em Deus é conse-
adequado. Afinal, um dia o bebê nasceria. E Clara saberia. guirmos sentir a dor do próximo, tudo fazendo para suavizá-las.
Naquela noite, o casal encontrava-se no Centro Espíri- Postemo-nos na estrada como o samaritano da parábola e, embo-
ta, e a jovem apresentava o abdome bastante volumoso por ra não possamos ser chamados de “bons”, como se referiu Jesus
encontrar-se em final de gestação. Apenas participaria das àquele homem, procuremos corresponder à expectativa do Mestre
ao lado daquele que sofre! pondo motivos pelos quais a mensagem chegou até nós
Quando julgarmos pesados demais nosso jugo e nosso fardo, na noite de hoje? Se realmente tratar-se de um alerta para
recorramos ao Cristo, que nos auxiliará a carregar a cruz que alguém, esse dia chegará. Não vamos antecipar preocupa-
construímos até o alto do Gólgota de cada um de nós! ções, meu amor!
Que a paz do Cristo possa estar conosco agora e sempre. — Você tem razão. Se existir, esse dia chegará mesmo
Obrigada. para quem quer que seja. Mudarei minha estação mental
para um programa melhor – contrapôs Clara, sorrindo e
Encerrada a comunicação daquela irmã, que não se abraçando-se ao marido naquela noite fria de inverno.
identificara, o grupo se desfez. As amigas desejaram saúde
e um bom parto à Clara, prometendo visitá-la no hospital
assim que ocorresse o nascimento. A caminho de casa, ela
comentou com o esposo:
— Que mensagem! De novo um tema semelhante
àquele primeiro, lembra-se?
— Sim, é claro! Dessas mensagens, com conteúdo tão
forte, nós não nos esquecemos rapidamente.
— Não parece a você que tem um tom de alerta a al-
guém do grupo?! Não sei, mas me parece que a mensagem
tem endereço certo!
— Clara, não se preocupe com isso. Não faz bem ao
seu estado. O alerta sobre os testemunhos da vida é amplo,
extensivo a todos. Quem não terá a sua hora de testemu-
nho neste mundo?! Afinal, não estamos aqui em viagem
de férias, mas sim, em trabalho! De tal forma que o alerta
da mensagem alcança a todos nós, sem exceção! – disse o
marido, procurando poupá-la de preocupações, embora,
a essa altura dos acontecimentos, tivesse quase certeza de
que eram eles os destinatários da mensagem.
— Estranho! Da outra vez você achou que não tinha
nada conosco. Agora está vestindo a carapuça!
— Seria orgulho não fazê-lo, concorda? Afinal, somos
Espíritos em luta evolutiva como nossos companheiros
do Centro, amor! Pensemos no nosso filho que está para
chegar e vamos dar tempo ao tempo. Adianta ficarmos su-
Capítulo 7
Renasce Daniel
d
C hegara, enfim, o dia da volta de Daniel ao mun-

do que deixara pela via do suicídio. As dores de
parto se tornaram intensas, e Clara foi levada ao Hospital.
Marcos estava extremamente preocupado. Afinal, a esposa
teria de saber a realidade. Clara continuava muito alegre,
apesar das contrações que denunciavam a aproximação do
parto através de uma cesariana, para que a “fábrica fosse
fechada”.
Três filhos, nas condições financeiras do casal, basta-
vam à família. Enquanto era levada para a sala de cirur-
gia, o marido procurou entabular conversa com o pediatra,
para a difícil abordagem da notícia que não poderia mais
ser adiada. A criança seria levada para o quarto da mãe e
não havia mais a mínima possibilidade de ocultar o acon-
tecimento.
Passados aqueles instantes de angústia, o ato cirúrgi- Na dimensão espiritual, Dora, Justiniano e alguns co-
co estava concluído. A paciente, após um curto período de rações queridos acompanhavam a cena, prontos para ofe-
recuperação em local apropriado para esse fim, foi levada recer amparo e sustentação ao casal nos instantes de prova
de volta ao quarto. que haveriam de passar.
Apesar de ainda sob os efeitos parciais das medica- Bateram à porta, que se fez abrir anunciando a en-
ções sedativas, Clara sorria, fruindo a bênção e a alegria da fermeira com a criança no colo, envolta com as roupinhas
maternidade que lhe visitava pela terceira vez. características dos recém-nascidos. Aproximou-se da mãe,
Procurou pelo marido assim que foi acomodada no juntamente com o pediatra, e entregou-lhe o filho nos braços.
leito. Imensamente feliz, Clara tomou aquele ser frágil e bei-
— Está feliz, Marcos? Completamos o time com a vi- jou-lhe a face com ternura, apertando-o contra o peito. Esse
tória do sexo masculino, já que nasceu mais um menino! ato foi o suficiente para sentir algo estranho. Com uma ex-
Onde ele está? pressão de dúvida e dor, apalpou o corpinho do bebê e,
— Estão tomando as últimas providências para que o virando-se para os que se encontravam no ambiente:
bebê possa vir para o quarto, meu bem – disse o marido, — Mas o que é isso, meu Deus?! Meu filho não tem os...
abraçando e beijando com carinho a esposa, na tentativa de — Calma, dona Clara – apressou-se a dizer o pediatra...
suavizar o impacto da notícia próxima. — Mas, por quê? Meu Deus! – balbuciou Clara, derra-
— Gostaria que se chamasse Daniel, caso você con- mando lágrimas que lhe banhavam o rosto, ao mesmo tem-
corde... po em que abraçava o pequenino, com ternura redobrada.
— Não, não me oponho. Foi você quem escolheu os Da dimensão dos Espíritos, Dora e outros mensageiros
nomes dos outros dois. do bem oravam a Jesus, rogando amparo e coragem moral
— Gostaria de prestar uma homenagem à tia Dora, à jovem mãe que principiava o seu calvário ao lado do re-
que foi para mim uma segunda mãe. Ela teve um filho, cém-nascido. Procuravam sintonia na sua faixa mental, in-
você sabe... tuindo pensamentos e imagens que pudessem remeter aos
— Tudo bem, amor! Então ele se chamará Daniel, em ensinamentos do Cristo e às mensagens consoladoras que
homenagem à tia Dora! Daniel... O profeta Daniel sobrevi- aprendera a recolher nas obras espíritas.
veu à cova dos leões! Quem sabe este nosso filho não nasça — Marcos, você sabia? Por que, então... Mas o que
com a mesma fé!? Poderia ensinar-nos como sermos fortes está acontecendo, meu Deus? – bradou a mãe, com a voz
e resignados! entrecortada de soluços.
Clara sorriu, sem entender o sentido oculto que o ma- — Sabia, sim, meu bem. Após o primeiro exame de
rido depunha naquelas palavras. Em seguida, continuou, ultra-som, o doutor Celso já suspeitava do problema com
em tom confidencial: o feto.
— Eu vinha sonhando com tia Dora, mesmo durante — Mas você nunca me disse nada! Por quê?! Eu tinha
a gravidez. Tenho certeza de que ela estará feliz com a ho- o direito de saber!
menagem. — Clara, acalme-se. Vou explicar. De nada adianta-
ria ter-lhe contado. Apenas deixaria você ainda mais preo- a criança. Me desculpe... meu amor.
cupada! Sofreria antes do tempo e isso poderia agravar o — Venha até aqui. Deixe-me beijá-lo... Como pôde su-
quadro! Minha atitude, conforme orientação do médico, portar tudo isso sozinho? Ah! querido...
foi para poupar sua saúde e também do ser em formação. Na dimensão espiritual, Dora abraçava a sobrinha em
Clara deixou que lágrimas silenciosas deslizassem vibrações carinhosas, ao tempo que projetava jatos de luz
pela face pálida. Com muita ternura, foi retirando as roupi- que alcançavam o pequeno Daniel, que retornava para a
nhas que envolviam o corpinho do filho até que descobriu dolorosa colheita dos seus atos.
o tronco da criança, dando pela falta dos dois bracinhos, A equipe espiritual estava alegre com esse primeiro
que nem começaram a ser gerados. bom resultado obtido no quarto daquele hospital, sem des-
Num gesto de profundo carinho, beijou aqueles om- conhecer que intensas batalhas se desenhavam no horizon-
bros estreitos, que revelavam anomalia congênita, enquan- te do casal e do filho recém-nascido.
to acariciava as extremidades, com imensa ternura, como Justiniano, percebendo que muitas perguntas aflora-
se quisesse, caso fosse possível, restaurar de imediato os vam na mente dos pupilos, afastou-se do recinto para es-
membros ausentes. Nesse momento, projetados pelas enti- paço externo e abriu diálogo instrutivo:
dades amigas, desfilaram por sua mente os ensinamentos — Como tivemos oportunidade de presenciar, inicia-
da abençoada Doutrina dos Espíritos como uma brisa de se para Daniel a difícil jornada no caminho da reparação
paz no deserto dos seus sofrimentos. que é a manifestação do perdão de Deus.
Os amigos espirituais envolviam-na em sentimento — Mentor, a ausência dos braços na criança já é um
de grande amor e direcionavam para ela vibrações de con- mecanismo punitivo da Lei? – perguntou Mariana, de-
forto, de forças, de confiança e resignação nos desígnios de monstrando forte emoção na voz.
Deus! Se assim tinha acontecido, sem que tivesse sido atin- — Punitivo, não! Diante de um Deus que Jesus nos
gida por qualquer enfermidade e muito menos ingerido ensinou como sendo um Pai, a palavra punição não tem
uma medicação sequer, é que assim deveria ser. E caberia razão de existir. Reencarnamos para sermos reeducados
a ela respeitar e aceitar, confiando! Era chegada a hora do perante a própria consciência e não castigados como se
testemunho! pensou e, infelizmente, ainda se pensa!
Recolocou as fraldas no bebê, enquanto lágrimas sur- — Mas a ausência dos braços é uma conseqüência do
das escorriam-lhe dos olhos. Dominando esse impacto de ato de Daniel ter atentado contra a própria vida durante
profunda dor, voltou a dizer em voz baixa e calma: três reencarnações?! – insistiu a ex-enfermeira.
— Agora compreendo as mensagens recebidas nas — Creio que ficaria melhor dizer que é uma maneira
sessões mediúnicas. Marcos... Conhecemos agora os desde impedir que, utilizando-se dos membros, Daniel atente
tinatários! de novo contra a sua nova existência.
— Da segunda vez, Clara, eu praticamente tinha a cer- — Mas, ele já não sofreu o bastante para aprender que
teza. Mas decidi continuar poupando-a, já que a revelação o suicídio não compensa?! Seus sofrimentos no retorno à
apenas traria tristeza e vibrações que poderiam prejudicar nossa dimensão; o estágio em regiões inferiores da espi-
ritualidade; nos hospitais onde são recolhidos; os sonhos situação de Daniel, diante de novos pensamentos de auto-
que se repetem como um pesadelo sem fim; tudo isso e aniquilamento.
muito mais, que não conhecemos, ainda não foi o suficien- — Justiniano, querido amigo!— interrompeu Dora,
te? Seria ele capaz de atentar novamente contra a própria aproximando-se do grupo. – Esta noite, aproveitando a
vida a ponto de ter que nascer num veículo físico sem os medicação sedativa sobre o corpo físico de Clara, procu-
braços?! – continuou Mariana, inconformada. raremos trazê-la até nossa dimensão para fortalecê-la na
— Infelizmente somos ainda maus alunos! Vejamos sua nobre atitude em receber Daniel como filho, em condi-
o seguinte raciocínio: há mais de 2.000 anos Jesus esteve ções tão difíceis. Com a permissão da Misericórdia do Pai
em corpo carnal na Terra demonstrando, ele mesmo, como e do Amor de Jesus, relevando as nossas fraquezas, procu-
devemos agir, como devemos proceder diante das Leis da raremos servir-lhe de arrimo nos dias que advirão após a
Vida. Entretanto, continuamos a repetir os mesmos erros, chegada de Daniel entre eles. Gostaríamos de contar com
motivados pela ausência de amor a Deus e ao nosso pró- as vibrações do amigo querido. Caso deseje, pode se fazer
ximo. Concorda? Depois do Cristo, missionários por ele acompanhar dos companheiros em aprendizado.
enviados à Terra tornaram a nos lembrar os mesmos ensi- — Estaremos lá com certeza – aduziu o venerando
namentos. Conseguiram eles modificar nossa conduta? Por benfeitor, acrescentando: – Quero que o grupo veja a gran-
que, então, duvidar de que Daniel possa outra vez reinci- deza da bondade de Deus, que nunca nos abandona nos
dir no suicídio? momentos de dor em trânsito pelo corpo.
— Se não tentar matar-se, por faltar-lhe os braços para
consumar o intento, mas ainda assim continuar alimentan-
do o desejo da autodestruição, terá servido para alguma
coisa? Não somos julgados pelas nossas intenções? – argu-
mentou ainda uma vez.
— Desde que não consiga consumar o mal, não agra-
vará ainda mais a situação diante da própria consciência.
Exigirá tempo prolongado de ação da dor para que seja
convencido de que o crime contra a própria vida não com-
pensa, mas pelo menos não agravará ainda mais a situação
atual. Vamos tomar um outro exemplo: se uma pessoa pára
de fumar, após muitos anos no vício, evidentemente que as
lesões instaladas não serão revertidas, mas não serão agra-
vadas como seriam caso o hábito nocivo persistisse. O ideal
é que nunca houvesse fumado, mas entre largar, ainda que
tarde, ou desencarnar em virtude do fumo, a primeira hi-
pótese é, sem dúvida, a melhor. Seria mais ou menos essa a
Capítulo 8
Novas expiações e provas

d
A o anoitecer, Clara recebeu medicações destina-

das a combater a dor antes que ela surgisse, além
de calmantes, que lhe pudessem amenizar o impacto sofri-
do. A ação relaxante dos remédios sobre o veículo físico
facilitava o desdobramento do ser espiritual, contribuindo
para o processo.
Tomados os devidos cuidados, o Espírito da jovem
encontrou-se novamente nas dimensões espirituais, con-
tíguas ao Centro Espírita Apóstolos da Caridade, ao qual
Clara se dedicava com muito amor. A equipe de Espíritos
amigos estava presente e entre eles destacava-se a figura
de Dora, devido à afinidade mantida por laços anteriores.
Foi ela quem saudou a sobrinha em desdobramento:
— Seja bem-vinda, minha filha. Que Jesus a abençoe
muito nesta noite e sempre!
Aquele sentimento sincero como que disparou raios — Irmão Justiniano – perguntou Jorge. – Por que Dora
de energias desconhecidas na Terra, envolvendo a jovem reforça a idéia de que Clara estaria sonhando e não diz a
numa sensação de grande bem-estar e segurança. verdade?
— Tia Dora! Que bom poder estar com a senhora no- — Ora, meu amigo, até parece que nunca esteve na
vamente! Sua presença faz-me sentir revigorada para as dúvida quando no corpo de carne e ossos! Quando esta-
lutas da vida. giamos na matéria, a percepção da dimensão espiritual,
— Abençoados estes momentos em que o Espírito, salvo exceções, é bastante difícil. Então é melhor que Clara
emancipado do corpo, pode fruir a companhia dos entes conserve a idéia do encontro com a tia, mesmo achando
queridos, que se encontram além das fronteiras que se- tratar-se de um sonho, porque isso mantém o vínculo men-
param os dois planos. Estou feliz por ter acolhido nosso tal, do que tentar dizer-lhe a verdade plena, levando assim
Daniel. Deus, o Pai Eterno, e Jesus, o amado Mestre, hão a jovem ficar ainda mais em dúvida.
de abençoá-la em tamanha prova de renúncia – disse, de Jorge pareceu não compreender. Por isso, Justiniano
olhos lacrimejados, envolvendo a sobrinha em vibrações continuou:
de verdadeiro amor. — Quando estamos encarnados, “matamos” aqueles
— Há algo que quero lhe contar, mas não consigo. Foge- que para nossa dimensão partiram, mesmo os que possuem
me à lembrança, mas deixa a sensação de que algo está che- os conhecimentos da Doutrina Espírita. Não se esqueça!
gando, depois se retira rapidamente. Que coisa estranha! Não existem milagres! O convencimento da continuidade
Justiniano, nesse instante, esclareceu ao grupo que da vida, da realidade pujante da dimensão em que vive-
acompanhava o diálogo: mos, não é obra de um passe de mágica! Só o trabalho pa-
— Clara tem períodos de chamamento do corpo fí- ciencioso do tempo, que nunca se cansa, colocará cada um
sico de maneira mais intensa devido à cirurgia realizada. de nós na vivência da realidade. Clara não é uma exceção
Nesses momentos, enfraquece-lhe a consciência. Ela não se à regra. Dedica-se às atividades doutrinárias com fervor
lembra do que desejaria falar – comentou o instrutor espi- sincero, mas engatinha, como todos nós, nas conquistas
ritual. profundas da grande realidade!
— Não tem importância, Clara – acudiu Dora. – Es- Clara permaneceu mais dois dias hospitalizada, oca-
taremos juntas outras vezes, quando então não faltarão sião em que foi visitada por companheiras de atividades
oportunidades para contar-me o que quiser! Vá em paz, no Centro Espírita. Todas tinham palavra de conforto e
minha filha. E não se esqueça de que a tia Dora, com quem bom ânimo.
“sonhou” mais uma vez, estará sempre a seu lado, com a — Coragem, minha irmã! Tenha fé em Deus! – dizia
permissão das Leis Maiores da Vida, apoiando-a no que dona Therezinha, uma das médiuns do Apóstolos da Ca-
for possível! ridade, sempre prestativa e pronta para levar o socorro do
A jovem esboçou um sorriso e deixou-se conduzir ao passe aos hospitais, presídios e nos lares, de onde os neces-
corpo material, que se agitava, recuperando-se do pós- sitados não podiam deslocar-se.
operatório. — Estamos fazendo nossas vibrações, todas as noites,
pela família toda. Não faltarão proteção e amparo dos ami- neurologista infantil para Daniel.
gos espirituais, minha irmã – dizia com simpatia e afeição. Vez por outra, os “sonhos” com tia Dora se repetiam.
Enquanto isso, Justiniano reunia os caravaneiros, para Embora não conseguisse se lembrar do assunto que haviam
anunciar que o grupo partiria em nova missão de resgate conversado, por apresentarem-se essas lembranças como
ao Vale, orientados por Alcindo. que envoltas em um nevoeiro que impedisse a visão, Clara
— Preces se levantam da Terra, intercedendo por ou- acordava no corpo sempre mais feliz e com a imagem da
tros irmãos que se deixaram prender nas malhas do suicí- tia sorrindo, como fazia enquanto na vida física.
dio. Mas será importante que acompanhemos o desdobrar Os resultados não demoraram, levando o casal a pre-
do caso Daniel, que deverá trazer ainda importantes lições sença do novo especialista que assim se pronunciou:
para o grupo. — Infelizmente não tenho boas notícias para dar a vo-
Os caravaneiros se abraçaram. Outros dirigiram pala- cês – falou o médico neurologista, com ar grave.
vras de confiança e coragem ao companheiro Alcindo, na Marcos e Clara apertaram-se as mãos, com os olhos
sua empreitada. fixos no doutor.
— É preciso paciência com Daniel. Temos informações
x também do psiquiatra especializado na área infantil...
No dia seguinte, Clara era reconduzida ao lar. Uma — Mas, doutor! Psiquiatra? O senhor está querendo
nova etapa teria início. O tempo prosseguia em sua marcha me dizer que meu filho está desequilibrado mentalmen-
irrefreável no calendário dos homens. A jovem mãe dedi- te? – agitava-se Clara, buscando em alguma parte de sua
cava-se com maior carinho e atenção ao filho mais neces- mente as possíveis explicações para tudo aquilo que ela e o
sitado. Enquanto embalava o pequeno Daniel, raciocinava: marido estavam passando.
“Se Deus havia permitido que renascesse no seu lar, é por- — Daniel é portador de uma patologia identificada
que julgava que ela e o esposo seriam capazes de acolher como autismo. Por isso tem se comportado de maneira di-
aquele Espírito em difícil provação”. versa dos irmãos – falou o dr. Lélis Fonseca, neurologista.
Marcos auxiliava a esposa em todas as tarefas do lar, — Já ouvi e li alguma coisa sobre crianças autistas.
doando sua parcela de amor ao filho recém-nascido. O me- Pelo que sei é doença incurável...
nino alimentava-se bem, embora demonstrasse, à medida — A medicina utiliza-se dos recursos que possui. Com
que o tempo passava, uma retração da vida social no lar. o tratamento de que dispomos hoje em dia, é possível ate-
Vivia quieto em um canto da casa que elegia, pouco falava. nuar os sintomas. Aliás os dois maiores remédios, neste
Quando procurado pelos irmãos em manifestação de cari- caso, são o amor e muita dedicação! – falou o conceituado
nho, não demonstrava nenhum ponto de contato com eles. médico, reconhecido pelas terapias alternativas adotadas
Clara e o marido compreendiam o comportamento de nas suas condutas terapêuticas.
Daniel, que trazia bagagem espiritual diferente dos irmãos. Clara buscou o olhar de Marcos a perguntar o que esta-
Comentando essas diferenças com a dra. Sandra, pediatra ria acontecendo a eles e àquele Espírito que havia retorna-
e amiga da família, a médica solicitou a avaliação de um do em tão penosa provação. Acreditavam, como espíritas,
que razões anteriores existiam, porque nada na vida atual — Embora a medicina da Terra não encontre explica-
justificava aqueles acontecimentos. Mas o coração aflito de ções definitivas e plenas das razões dessa moléstia como
mãe procurava consolo. Marcos tentou aliviar a esposa: de tantas outras, estudando o caso de nossa dimensão po-
— Paciência, doutor. Temos de enfrentar mais este demos entender melhor os acontecimentos. As auto-agres-
problema com os auxílios que a medicina pode proporcio- sões morais, com a opção pelo suicídio, atingiram não só
nar e com os nossos melhores esforços, fazendo a parte que o perispírito, como também o próprio mundo íntimo de
nos cabe como pais. Tenho uma esposa suficientemente Daniel. Em sua mente fervilham lembranças extremamen-
forte, que é o arrimo moral no lar, e haveremos de cumprir te desagradáveis dos atos anteriores num processo de au-
a nossa parte — concluiu, beijando no rosto a face pálida tocobrança. Para que tenha alívio, é preciso passar pelos
da esposa. mecanismos de resgate determinados pelas Leis da Vida.
Abatidos com a notícia, Marcos e Clara retiraram-se O seu retorno à vida corporal, da qual se evadiu por três
do consultório médico. Todavia, estavam decididos a con- vezes, não pode ocorrer sem traumas.
duzir o fardo, dispostos a enfrentar a luta que a vida lhes — E a bênção do esquecimento? Não será suficiente?
impunha. Raciocinavam que, não fossem os ensinamentos – continuou aquela que, na Terra, estudara com afinco as
do Espiritismo, estariam entregues à revolta ante a Provi- patologias mentais e desencarnara sem compreender exa-
dência Divina. tamente a origem causal das muitas doenças da alma.
Justiniano e o grupo, que assistiam o desenrolar dos — É poderoso instrumento terapêutico, quando o Es-
acontecimentos nos dois lados da realidade, estavam aten- pírito se encontra consciente no corpo, mas nos arquivos
tos a tudo. do inconsciente somente após o devido resgate são apa-
— O homem, de conceitos arcaicos sedimentados ao gadas as nossas dívidas, os nossos desequilíbrios. Vamos
longo de várias existências corporais, cria uma separação nos utilizar de outro exemplo baseado nos fatos da vida
do mundo dos encarnados e desencarnados, como se es- corporal, por estarmos mais próximos dela. Suponhamos
ses últimos estivessem muito distantes, vivendo uma outra que uma determinada pessoa se apresente em sua casa ex-
realidade, quando, na verdade, todos os que estagiam no tremamente limpa, com roupas limpas, mas sem o devido
corpo ou fora dele próximos à crosta terrestre, estão sim banho indispensável à higiene corporal. Na aparência tudo
em regiões vibratórias diferentes mas não distantes, como estará bem, mas na intimidade da própria pessoa ela sabe
quer crer a nossa fértil, porém mal informada, imaginação! que algo ainda está faltando...
– ponderou o orientador, cercado por um grupo ampliado Percebendo o efeito das palavras nos ouvintes atentos,
de aprendizes. continuou Justiniano.
As perguntas voltaram a surgir. — Creio que, com essa imagem, podemos dar uma
— Por que mais este comprometimento na área men- idéia de que a reencarnação, propiciando a bênção do es-
tal, além dos membros superiores mutilados? – perguntou quecimento, é um recurso sem o qual não suportaríamos
Júlia, mais experiente, após novas incursões no Vale dos os novos retornos ao corpo físico, mas esse esquecimento
Suicidas. não anula o débito registrado na intimidade do ser imortal.
Esses débitos ainda não resolvidos podem aflorar no nível ex-psiquiatra, revelando acurada inteligência.
de consciência, causando patologias tais que a Medicina — Sim! A Misericórdia Divina utiliza as dores que so-
oficial, materialista, será incapaz de localizar no campo sofremos como uma professora capaz de se fazer ouvir pelo
mático, a não ser quando se dispuser a investigar o que se nosso orgulho e teimosia. Em tempos vindouros, Daniel
passa além do corpo físico. As causas hoje tidas como des- será convidado a analisar a correlação entre suas decisões
conhecidas serão vislumbradas gradativamente na medida anteriores e as posteriores conseqüências, sendo auxiliado
em que o homem, Espírito encarnado, passe a considerar pelos Espíritos amigos a entender que o crime contra as
os outros componentes de si mesmo, aliás, de valores mui- Leis Maiores jamais compensam, principalmente quando
to mais importantes e determinantes dos fatos da existên- cometido contra si mesmo!
cia do que o veículo material. — E os pais, Mentor, terão forças para suportar essa
— Mentor, essas expiações poderão estar sendo supor- pesada cruz não estando envolvidos com ela pelo mecanis-
tadas sob revolta, embora o Espírito não se manifeste neste mo de causa e efeito, ou seja, sem terem participado nas de-
sentido? – quis saber Jorge, que continuava sua missão de cisões anteriores de Daniel? – foi a pergunta do novo cara-
secretário e relator das atividades. vaneiro Alberto, que participara de recente missão ao Vale.
— Não podemos perder de vista que as dores inscritas — As Leis são de perfeita justiça! Todas as vezes em
no roteiro da atual existência física nada mais são do que que participamos como indutores do mal contra alguém,
aquilo que Daniel semeou para si mesmo. Como, entretan- mesmo de forma indireta, responderemos no futuro. No
to, a revolta está mais próxima de nós do que a resigna- caso em questão, Clara e Marcos não tiveram participação
ção, é provável que, trancafiado no atual veículo físico, não nem direta e nem indireta com os suicídios anteriores de
aceite de bom grado os problemas, porque ninguém gosta nosso irmão. Constitui-se então, para eles, em abençoada
de sofrer, embora não nos importemos em fazer sofrer. O oportunidade de serviço e promoção espiritual se tudo fi-
criminoso recolhido na cela da penitenciária, evidente- zerem para apoiarem Daniel na atual jornada. Exatamen-
mente, não gosta de ali estar, mesmo lembrando-se de que te pelo fato de não haver comprometimento é que os pais
foi ele mesmo quem ali se colocou. Daniel encontra-se em poderão notar com maior facilidade o apoio que lhes virá
situação semelhante. Mesmo sob revolta, irá aprendendo ininterruptamente de nossa dimensão.
que o crime cometido perante a Lei de Deus terá de ser — Apoio esse que também existiria caso tivessem par-
resgatado e, na sucessão dos sofrimentos e do tempo, o ticipação no desequilíbrio do irmão em expiação? – consi-
Espírito acaba dobrando a cerviz, para essa grande ver- derou o aprendiz, fazendo rápido raciocínio.
dade que teimamos em desafiar, principalmente quando — Sim! Sempre! As Leis são de amor e nunca de vin-
estamos próximos das ilusões do mundo. – Fez uma pausa gança! No caso, entretanto, de haver envolvimento na ati-
e continuou: tude, o complexo de culpa na inconsciência, promove um
— E isso, mais tarde, será mostrado a ele na dimensão bloqueio na percepção desse auxílio, que jamais é negado a
espiritual como mecanismo de esclarecimento e fortaleci- ninguém. Seria mais ou menos semelhante aos companhei-
mento para que não reincida no mesmo erro? – deduziu a ros que estagiam nas regiões de sofrimento e não conse-
guem perceber o socorro constante ali existente, mas que, e vinha nos seus pensamentos. Clara não sabia, mas os Es-
ao menor sinal de arrependimento, são dali retirados para píritos amigos responsáveis por conduzi-la para mais um
prosseguirem em tratamento e recuperação em outros lo- encontro, encontravam-se presentes no interior do seu lar,
cais de nossa dimensão. Posso adiantar que esta noite Cla- tomando as providências necessárias.
ra terá um outro “sonho” com irmã Dora, com o objetivo A moça, como de costume, convidou o marido para
de revigorar as forças abaladas. fazerem juntos a prece antes de adormecerem:
— Por quê? Marcos também não será trazido para o — Deus, nosso Pai. Jesus nosso paciencioso e constan-
mesmo tipo de socorro? te Mestre. Espiritualidade amiga que nos ampara nas lutas
— Pelo vínculo muito forte entre Clara e Dora, este terrenas. Suplicamos o bálsamo da renovação de nossas
auxílio torna-se mais fácil de ser dispensado à mãe da forças físicas e, principalmente, morais para que possamos
criança. Por isso disse a vocês anteriormente que era mais continuar dando cumprimento a esse difícil compromis-
importante manter a sintonia mental entre as duas, mes- so assumido. Suplicamos as bênçãos e coragem para que
mo acreditando a primeira tratar-se de um simples sonho. possamos servir através do trabalho ao próximo. E quem
O que importa é o vínculo afetivo para que a sintonia se estará nesta atual reencarnação mais próximo e necessita-
estabeleça e por ela fluam os recursos da nossa dimensão. do dos pais do que nosso filho Daniel, Senhor!? Silencia
É fácil entender que, sendo a esposa fortalecida, o marido em nós os pensamentos de desânimo e fraqueza para que
também se beneficiará, encontrando nela um forte arrimo possamos ser dignos da tua misericórdia.
para a jornada a dois. Aguardemos o desenrolar das provi- Beijou carinhosamente o marido no que foi correspon-
dências por ordem da Misericórdia do Pai. dida e, rapidamente, adormeceu suavemente. Sentindo-se
Enquanto o grupo mobilizava-se em novas providên- flutuar a uma distância razoável do corpo, Clara foi ampa-
cias de socorro, Jorge continuava anotando impressões e os rada por duas entidades amigas que lhe sussurraram na
diálogos travados com o benfeitor Justiniano. alma, sem palavras:
Clara retornou para o lar evidentemente entristecida — Viemos por pedido de sua tia Dora que deseja mui-
por mais uma notícia que prenunciava outras batalhas sem to vê-la nesta noite! Tranquilize-se, prezada irmã, que ire-
tréguas! Raciocinava, porém, baseada nos ensinamentos mos conduzi-la sem problemas até ela.
espíritas, que Daniel era também filho de Deus, que, sem Ao ouvir o nome da tia querida, Clara serenou os âni-
nenhuma dúvida, preocupava-se também com ele. E se mos e entregou-se confiante nas mãos dos companheiros
haviam recebido a criança com aqueles angustiosos pro- espirituais. Como numa lufada suave de uma brisa viu-se
blemas era porque isso havia sido permitido pelo planeja- em companhia da querida tia novamente. Juntamente com
mento superior. os demais companheiros, muito pouco percebidos por
Exausta pela descarga de adrenalina recebida no cho- ela, Dora sorria-lhe com os braços abertos, convidando-a a
que da resposta médica, reviu os três filhos antes de se dei- aconchegar-se no colo da própria alma.
tar para o repouso de que estava precisando muito naquela — Mentor, desculpe a pergunta, mas como pode exis-
noite, enquanto a figura de sua tia Dora, insistentemente ia tir tal afinidade entre as duas se foram apenas tia e sobri-
nha na última reencarnação? Essa afinidade não era para Clara deslizou rapidamente para os braços de Dora,
ser com a própria figura materna? – interrogou Gildo, sem- como a ave cansada que encontra o refúgio do ninho..
pre observador. Abraçada a ela, lágrimas silenciosas desciam pela face de
— Segundo as convenções dos homens, sim. Mas aqui Clara. Dora, sem que a sobrinha dissesse palavra alguma,
reina a Lei Maior que a tudo apresenta uma justa razão. já sabia do drama que se desenrolava no coração ferido da-
Essa afinidade entre as duas irmãs não teve início na última quela mãe amorosa. Afagou por alguns instantes os ca-
existência na Terra. Você se esquece de que os Espíritos se belos da sobrinha enquanto a apertava contra o peito. Do
vinculam por laços de antigo pretérito? É exatamente por Espírito de Dora partiam raios de luminosidade esbranqui-
isso que Dora e Clara são tão próximas espiritualmente. Já çada em direção a Clara, como se esta tivesse sido mergu-
foram, por muitas reencarnações, mãe e filha! Como dis- lhada dentro deles. Aguardou alguns segundos e iniciou
se, as Leis de Deus enxergam todo o curso de nossa cami- em tom carinhoso, porém, firme.
nhada rumo à perfeição, visão essa que não estamos nem — Que bom podermos nos ver novamente, minha fi-
preparados para entender, quanto mais para enxergar! É lha! Agradeçamos sempre ao Pai por esses momentos de
também pelo mesmo motivo que os homens procurando reencontros felizes. Sinto que deseja abrir o seu coração...
explicações para as amarguras da vida dentro da lógica hu- — Ah! tia Dora, se a senhora estivesse conosco nos
mana e no estreito espaço que medeia do berço ao túmulo, momentos difíceis que estamos passando! Poderia confor-
acabam por não entender nada e arvoram-se no direito de tar-me tanto!
pedir contas à Providência Divina! Além do mais, não es- — Estamos juntas, meu bem! Confie em Deus, que
queçamos que a mãe atual de Clara está ainda encarnada e sempre estaremos juntas! Quando, em suas doces lembran-
não professa a mesma religião que a filha. É preciso, urgen- ças você se recorda de mim, é como se um poderoso ímã
temente, confiar mais e pedir menos contas a Deus e mais me atraísse até onde está. Não estamos e nunca estaremos
contas a nossa consciência! Continuemos observando com separadas, porque assim determina a Lei do Amor!
respeito e confiança. — Meu filho, tia! Nasceu sem os braços e agora apre-
— Mentor Justiniano, poderia fazer uma última per- senta grave problema mental! Será que vamos ter forças
gunta relacionada com a anterior? – insistiu Gildo. para suportar a prova? Teremos na Terra tempo suficien-
— Seja breve, porque Clara não tarda a chegar. te para cuidar dessa criança, dependente e necessitada de
— A afinidade muito grande que a irmã demonstra amor e paciência?
em relação a Daniel também teria ligações com o passado — Duvidar seria admitir que a Divina Providência er-
dos dois? rou ao entregar-lhe, e ao esposo, essa criança tão especial,
— Com o passado dos três, posso adiantar. Clara, Da- essa oportunidade tão grande de crescimento espiritual
niel e Dora estão envolvidos em laços afetivos há muito para vocês dois! Acha possível ter ocorrido um erro?
tempo, o que criou as condições melhores para que a jovem — Não, querida tia! Nunca! Só posso concluir que não
o recebesse como filho na atual existência dela, apoiada por tenho tido a fé e a coragem necessárias para a tarefa a nós
nossa irmã Dora. confiada.
— Tem tido, sim, e, se continuar buscando refúgio outros dois ao bosque das Acácias. Podemos fazer uma boa
nas forças maiores da vida, continuará tendo. Não é fácil, caminhada; levaremos lanches e passaremos umas horas
Clara, contemplar um filho a quem amamos muito nas alegres. Creio que vão adorar brincar ali. Tem muita som-
condições em que Daniel se encontra! E é exatamente esse bra, alimento, água fresca, passarinhos de todas as cores e
amor, que a faz sofrer, que lhe dará forças e a paciência cantos, ar fresco. Poderemos ainda ver o rio que corre no
necessária para que os desígnios maiores se cumpram, mi- vale, buscando o mar, como nós, pequenas criaturas, nos
nha filha! Você e Marcos não decepcionarão aqueles que dirigimos para o Criador! Creio que o maior beneficiado
endossaram o seu retorno ao novo corpo de carne. Confie! será Daniel, no seu processo de insulamento mental. O que
Continue freqüentando a casa de estudo e trabalho à qual acha da sugestão?
tem se dedicado com devotamento, na medida em que seus — Acho excelente! Podemos ir no domingo bem cedo
compromissos no lar o permitirem. Continue orando para aproveitando a fresca para andar. Mas agora vamos tratar
que a sintonia entre os dois planos da Vida não sofra inter- de dormir, porque amanhã é dia de serviço para mim e
ferências e creia. Forças não lhe faltarão. Estaremos juntas para você!
nos mesmos sentimentos, em cada momento que sua doce Enquanto o casal se acomodava no leito para mais
lembrança nos alcançar. Também no grupo de assistência uma noite de sono reparador, os amigos no plano espiri-
a outros nossos irmãos, os companheiros não pouparão es- tual continuavam estudando o assunto.
forços para que você, Marcos e Daniel sejam vencedores, Ficando a sós com os aprendizes, Justiniano abriu es-
porque assim deseja a Lei de Deus! paço para perguntas.
Num átimo de segundo, Clara já se encontrava de vol- — Mentor, não seria melhor que Clara recordasse do
ta ao corpo. Retornava ao estado de vigília, auxiliada pelos que realmente ocorreu em nossa dimensão para o seu con-
mesmos companheiros que a tinham levado à esfera espiri- solo? Imaginando tratar-se de um sonho, ela não receberá
tual. Na lembrança fugidia, permanecera a sensação do beijo com a mesma certeza o apoio que vem recebendo – observou
de despedida de alguém que lhe era muito caro ao coração. Júlia, intrigada com o que se passava no cérebro de Clara.
Despertou com lágrimas nos olhos e espantou-se, acor- — Nossa irmã dispõe dos conhecimentos da Doutrina
dando também ao marido. Marcos, preocupado, indagou: Espírita e, por eles, sabe que esses encontros são possíveis
— Que foi, meu bem? Está sentindo alguma coisa? de acontecer. Sabe também que a lembrança integral do
— Eu sonhava novamente com minha tia Dora. Lem- acontecimento, muitas vezes, não é tão construtiva como
bro que me abraçava carinhosamente ao mesmo tempo possamos imaginar.
que pronunciava palavras doces à minha alma, das quais — Por que, Mentor?! – continuou, interessada.
não consigo lembrar-me. — Nossos irmãos no corpo físico lá estão para toma-
— Então, não há motivos para lágrimas e sim para rem decisões, assumirem responsabilidades! Não reencar-
alegria – disse o marido, tentando acalmar as emoções da naram para ficar como fantoches manipulados pelos que
esposa. ficaram em nossa dimensão espiritual. Precisam tomar
— Marcos... Gostaria de levar o Daniel junto com os decisões, caminhar com as próprias pernas. Do contrá-
rio, o processo evolutivo pela experiência estaciona. Se a será posta em dúvida, mas através da própria ciência do
mãe não deixasse a criança tentar andar, com medo de que homem, para que ele se convença de maneira definitiva e
caísse, imaginem o atraso no desenvolvimento motor que sem preconceitos – ponderou Justiniano.
seria imposto ao ser! Precisamos aprender a andar também — Eu, no lugar da irmã Clara, gostaria de lembrar-me
no sentido espiritual da vida. Ora, se os encarnados tives- de maneira integral do auxílio dos desencarnados – disse
sem a lembrança integral do ocorrido na nossa dimensão, Gildo, sempre bem-humorado, provocando risos nos de-
passariam a se anular, esperando soluções prontas que de mais.
nada adiantariam para o seu crescimento! — A Lei é cumprida por uma determinação inquestio-
Após alguns passos, aproximando-se do grupo, vati- nável, porque é perfeita. Lembra-se daquela expressão no
cionou, com sabedoria: final dos textos de decretos, leis e portarias: “revogadas as
— Clara, despertando bem, já está sendo beneficiada disposições em contrário”? Pois, com muito maior razão,
pelas vibrações positivas que recolhe nos momentos de assim são cumpridas as disposições Divinas, porque sim-
emancipação. Esse bem-estar será irradiado ao marido. É plesmente são perfeitas!
preciso, no entanto, destacar que a proteção e o apoio dos — Virão provas mais acerbas para o casal? – ajuntou
amigos da Espiritualidade não eximem o ente encarnado Mariana, antevendo novas provas.
do esforço que lhe cabe realizar, em benefício de si mes- — Só a Justiça Divina o sabe... – encerrou Justiniano,
mo. Aliás, Jesus foi bem claro ao dizer, aos que desejas- convidando os caravaneiros à prece.
sem segui-lo, que tomassem sua cruz! Não nos dispensou
da própria caminhada. Ele, que possuía todos os créditos,
não recusou o cálice de dor e sofrimentos! Por que nós, de- x
vedores perante a Lei, haveríamos de merecer tratamento
diferente? O dia amanhecera, e Clara despertara impregnada
– O esquecimento do passado nem sempre é compre- de energias renovadas. O impacto inicial da má notícia da
endido pelas pessoas. Os detratores do Espiritismo costu- véspera atenuara-se. Enquanto tomava o café da manhã,
mam considerar o fato uma prova contrária à tese reencar- comentava com Marcos o sonho daquela noite.
nacionista... Se o esquecimento não ocorresse, a crença na — Engraçado! Como um simples sonho pode modifi-
reencarnação seria aceita mais rapidamente, não? – argu- car nosso humor, fortalecer as nossas forças! Desperto revi-
mentou Alberto, do outro lado. gorada, como uma pilha que tivesse sido recarregada! Ou
– Existe um ditado humano de que a pressa é inimiga será mais do que um sonho?
da perfeição que pode responder muito bem a sua inda- — Meu bem, sabemos que é possível reencontrar os
gação. Se temos pressa, Deus não tem! Como bem diz o seres que amamos durante o desprendimento espiritual.
ditado humano: a pressa é inimiga da perfeição! E a nossa Entretanto, creio que não devemos ficar tentando adivinhar
meta é a perfeição! O homem receberá as provas da reen- o que realmente ocorreu. O importante é o seu bom ânimo
carnação, não por meio de alguma religião, que sempre renovado. Se foi um encontro na dimensão dos Espíritos,
agradeçamos a Deus tamanha bênção! Um dia, se assim

estiver de acordo com as Leis Maiores da vida, ficaremos
sabendo o que se passou. O importante é saber aproveitar
esses estímulos, como o que tia Dora vem nos ofertando.
Não acha?
— Tem razão. Aliás, vou cuidar dos preparativos para
o nosso passeio neste domingo... Lembra-se do lhe falei?
Com um aceno positivo de cabeça, o marido beijou a
esposa e dirigiu-se para o trabalho, contagiado com o bom Capítulo 9
ânimo da companheira. Clara, enquanto isso, mãe extre-
mamente amorosa e dedicada, buscava os filhos em seus
respectivos quartos para o café da manhã.
No Bosque das Acácias

d
O local era muito agradável. Um bosque onde di-

versas plantas nativas haviam sido preservadas
ofertava sombra farta aos visitantes. Algumas espécies de
animais mantidos em jaulas apropriadas, muito limpas,
bem alimentados e com assistência veterinária competen-
te, colaboravam para a alegria da criançada.
Por ficar em uma elevação de terreno, a brisa estava
sempre presente, brincando entre as folhas dos arvoredos.
Mesas de madeiras com bancadas ofereciam aos visitantes
a possibilidade de ali fazerem as refeições trazidas de casa.
Um pequeno rancho ofertava refrigerantes, água fresca e
alguns salgadinhos caseiros para quem se interessasse.
Cestos de lixo e avisos constantes solicitavam a cola-
boração para que o local fosse mantido em grande limpeza
e muito convidativo. Mourões de concreto com ganchos
ofereciam a possibilidade para, quem desejasse, fixar re- vores e muita sombra para você brincar de esconde-escon-
des e relaxar em meio à paz da natureza. de com seus irmãos. Se você quiser dormir na rede com
O local era tão completo que até mesmo um rio pas- o papai, também pode! Veja, minha vida, o macaquinho
sava no meio das árvores, sendo sobreposto por uma de- está fazendo caretas para você! Repare nas cores dos pas-
licada ponte de madeira que ligava uma parte à outra do sarinhos... Não são bonitas? Respira fundo o ar puro, meu
bosque. filho! Faz bem a nossa saúde!
Clara e Marcos, aproveitando a temperatura amena A criança, de vez em quando, olhava para a mãe e re-
da manhã, dirigiram-se para o local em suave caminhada, tornava a contemplar alguma coisa perdida, em local mui-
levando o material necessário em um carrinho de mão que to longe. Caminharam até a ponte e pararam sobre ela a
era utilizado também para fazer a feira. O serviço público contemplar as águas do rio que rolavam com o som carac-
de transportes disponibilizava uma linha de ônibus para terístico. Daniel parou com os olhos fixos naquele movi-
diversos locais, na ida e na volta, não constituindo empeci- mento e, de repente, começou a bater os pés no chão, como
lho para ninguém o acesso ao local. se estivesse sapateando. Olhava fixamente o movimento
Ao lado do esposo, Clara caminhava com o pequeno das águas e sapateava um outro período. Clara, feliz, co-
Daniel nos braços, em atitude de afeto e proteção. A crian- mentou com o marido:
ça não dizia nada e só raramente mostrava interesse por — Olha, Marcos! O movimento das águas que rolam
alguma paisagem ou local, quando então se detinha a con- livres, parece que atraiu a atenção dele! Talvez lhe trans-
templar de forma muda o objeto ou local que despertara mita uma noção melhor e maior de liberdade que ele sente
sua atenção. não possuir com a ausência dos braços! Viu que bonito,
Nessas ocasiões, tanto o pai como a mãe estimulavam meu filho! O rio corre solto sobre o chão, como uma mi-
o diálogo com o filho, procurando fazer com que manifes- nhoca apressada! Ele vai lá para o mar que está tão longe!
tasse seus pensamentos, suas emoções, que permitissem Mas o rio não se cansa, não! Continua a deslizar dia e noite
estabelecer um contato cada vez maior com o ambiente ex- à procura do mar! O rio é apaixonado pelo mar, como a
terno a ele mesmo. Muito esporadicamente conseguiam o mamãe e o papai somos por você, meu filho.
intento desejado, limitando-se o filho a olhar para os pais Clara tentava, diante do interesse da criança pelo rio,
e voltando a contemplar a imagem que conseguira desper- buscar um ponto de conexão entre o interior trancado do
tar algum interesse, embora não dissesse palavra alguma. filho, como se fosse um enorme cofre , com a realidade da
Mesmo assim, Marcos e Clara não desanimavam em suas vida. Era preciso trazê-lo para fora de si mesmo a fim de
funções de “psicólogos” mais próximos da criança autista. que percebesse o amor que estava em sua volta, oferecen-
Era a primeira visita de Daniel àquele local. A mãe do-lhe o convite para viver novamente.
procurava estimular o filho perante o ambiente repleto de O marido ficava sensibilizado pela imensa dose de
novidades para ele: amor da esposa para com aquele filho, com problemas
— Olha, meu amor! Veja que lugar agradável! Tem tão graves pela vida. Se pessoas sãs, materialmente falan-
muitos animaizinhos para você ver, meu bem! Muitas ár- do, já encontram enorme dificuldades, ficava a imaginar
11 0 Ricardo Orestes Forni A Vida Sempre Floresce 111
o que estaria aguardando aquele Espírito que reencarnara de ser obtidos da Natureza em equilíbrio, o homem seria
no seu lar! Procurando estimular a esposa para que ela se um obstinado defensor dos recursos naturais, em vez de
mantivesse sempre com a dedicação necessária e suficiente agredir e maltratar o meio ambiente... – comentou Gildo,
diante de Daniel, ele buscava palavras de bom ânimo para caminhando lado a lado com o instrutor.
apoiar Clara: — O mundo, obra da Inteligência Suprema, propor-
— Que coisa boa, meu bem. Parece que esta paisagem ciona recursos inestimáveis aos encarnados e desencarna-
diferente e nova repercutiu positivamente em seu estado dos! Infelizmente, essa consciência ainda está muito longe
psicológico! O contato com a Natureza que nos fala tão de ser atingida. Ao violentar e desequilibrar o meio am-
intensamente de Deus tocou a intimidade de nosso filho. biente em que vive, o homem subtrai de si mesmo recur-
Creio que a movimentação constante das águas do rio dá a sos que ele ainda está longe de perceber e acreditar que
ele uma idéia mais dinâmica da vida. Seria assim, como se existem! O encarnado se mata ao mesmo tempo em que
ele também pudesse, a exemplo do rio, retomar a sua cami- mata o meio em que vive! Seria o mesmo que os morado-
nhada buscando novos rumos, novos horizontes! Não sou res de uma casa, destruindo a própria residência, na qual
psicólogo e talvez esse meu raciocínio seja fruto do nosso deverão abrigar-se. O amor do Pai por toda a sua criação
amor por Daniel, mas creio que a Providência Divina nos impregna todo o Universo no eterno convite para o bem,
auxiliará, senão na cura, na melhora do quadro como um para o equilíbrio, para o crescimento intelectual e moral do
todo, mesmo que essa melhora ocorra no lado espiritual de espírito imortal. Nós somos a nota distoante nessa sinfonia
Daniel. Creio que devemos voltar sempre aqui, para reco- de perfeição, que se faz ouvir cada vez em plenitude maior
lher estes bons fluidos em favor do nosso filho! – observou quanto mais perfeito é o ser espiritual!
o marido abraçando a esposa com muito carinho. — Podemos ter no campo em equilíbrio, recursos ini-
Justiniano, com os aprendizes no local, observava as magináveis como também os encontrados à beira-mar,
cenas e o diálogo entre os cônjuges e registrara igualmen- onde muitos Espíritos, encarnados ou não, são como que
te as vibrações positivas atraídas pelo sentimento de es- medicados pelos irmãos que nessa especialidade se fize-
perança na Providência Divina. Aquele local interessante, ram peritos? – perguntou Júlia, estudiosa das terapias al-
que ainda não fora agredido pelos homens na sua busca ternativas quando na Terra, psiquiatra que fora.
ilimitada por lucros materiais, era também benéfico para — Sim, evidentemente guardando a diferença e poten-
os desencarnados. cialidade de cada local com os seus respectivos recursos. Se
Abstraindo as pessoas que daí se valiam para exce- tudo quanto existe fosse como uma expansão do próprio
derem na bebida alcoólica e no excesso de alimentação, Criador, podemos considerar que nessa expansão encon-
os bens naturais eram fonte de energias positivas para os tramos uma representatividade do seu Autor! Se a autoria
Espíritos fora da experiência carnal. Nesse momento de do princípio espiritual como do princípio material é única,
paz e alegria para Clara e Marcos, o orientador permitiu o não somente em nós o Ser maior haveria de estar presente.
diálogo novamente. Lembrando o “vaso escolhido” para a divulgação do Evan-
— Mentor, se pudesse avaliar os benefícios capazes gelho de Nosso Senhor entre os chamados gentios, o ines-
quecível apóstolo Paulo, “em Deus existimos e em Deus de fé nas determinações da Providência Divina. Entretan-
nos movemos”! Deus está em tudo e em todos! O grande to, para aqueles outros que buscam por explicações racio-
obstáculo é quando não queremos estar com Ele e Nele. nais, lógicas, não dogmáticas, para as desigualdades da
— Essa esperança de Clara e Marcos poderá ser cor- vida, a ausência da Doutrina Espírita pode encaminhá-los
respondida em relação à cura do filho? – tentou deduzir a para a incredulidade total, porque não conseguem enten-
aluna. der como a Justiça perfeita pode criar um ser com tantas
— Como não existe o milagre, que implicaria a mu- deficiências, enquanto o outro, num corpo saudável exibe
dança de uma Lei já criada perfeita, e, portanto, que não várias perfeições!
comporta mudanças, cura no sentido total da matéria, não. — Mas qual é a fé mais correta: aquela que crê sem
Mas a esperança, em lugar do pessimismo, e a disposição questionar ou aquela que crê após o questionamento? –
de servir, em lugar de desistir, auxiliarão muito a Daniel! quis saber o novato Alberto.
— Por que a criança se sentiu mais identificada com a — Não diria mais correta, porém mais sólida! Se você
movimentação das águas do rio do que com outra parte do acredita porque entendeu todo o mecanismo da Lei, essa
bosque? As razões aventadas pelos pais não poderiam ser fé é mais robusta, é capaz de trazer o consolo através de
a explicação real, ou seja, a movimentação das águas do rio explicações lógicas que pacificam os sentimentos e a razão!
representar uma sintonia maior com o exterior da criança, De outro lado, a fé que não busca alicerce sólido, pode so-
auxiliando no tratamento da doença do autismo? – apon- frer um processo de exaustão, de cansaço diante da suces-
tou Júlia, ainda intrigada. são dos fatos aparentemente inexplicáveis da existência!
— São possibilidades a ser consideradas, sem que eu Percebeu a diferença? – perguntou Justiniano, avaliando a
detenha algum recurso para adiantar quais os verdadeiros compreensão do caravaneiro. E continuou, calmamente.
motivos. Temos de aproveitar o fator positivo que foi des- — Seria como a fé, que não sofreu o processo de escla-
pertar algum interesse da criança para o meio onde ela está recimento total da razão, uma fé de superfície e não de pro-
vivendo. Isso poderá auxiliar, sem que para isso tenha que fundidade total, como aquela guiada pelo raciocínio. Pode
ocorrer um milagre. até atingir a profundidade do ser, mas se os fatos negati-
— Podemos dizer que Clara e Marcos teriam dificul- vos, desagradáveis, se sucederem numa intensidade muito
dades maiores fora dos ensinamentos da Doutrina Espírita grande, ficará aberta à possibilidade de, num determinado
para buscar as forças necessárias ao compromisso assumi- momento, fragilizar-se perante os obstáculos.
do diante de Daniel? – aduziu Jorge, que continuava, como — Não obstante, Espíritos há, educados dentro de ou-
repórter no Além, a registrar cada comentário. tras religiões, que sempre demonstraram firmeza em sua fé
— Se forem companheiros questionadores do porquê – argumentou Jorge, pensativo.
dos fatos da vida, como é um direito de todo ser no seu — Sim! A Doutrina Espírita chegou aos homens na se-
caminho evolutivo, podemos considerar que sim! Existem, gunda metade do século XIX. Seria errado entender que
contudo, companheiros que aceitam os fatos da vida sem os fundamentos da Doutrina estariam presentes entre os
questionarem, entregando-se com uma dose muito grande ensinamentos de Jesus? Ou até mesmo em doutrinas ante-
riores que admitiam a reencarnação como um mecanismo

de reparação e evolução das criaturas? Os grandes missio-
nários que estiveram na Terra, como enviados do Cristo,
deram exemplos de fé e amor à Verdade, ainda que en-
carnados em culturas e religiões distintas do Cristianismo.
Inspirado, Justiniano continuou, dirigindo-se a todo o
grupo de aprendizes.
— Ademais, nunca faltaram à humanidade fontes de
conhecimento que pudessem satisfazer sua busca pela Ver- Capítulo 10
dade, em todas as fases da civilização. Que seria dos ho-
mens se tivessem de esperar até 1857, ano do advento do
Espiritismo, para conhecer as verdades que revela à huma-
nidade? Ao longo dos séculos, as criaturas sempre tiveram
referências morais que as orientassem, além da própria
consciência, para que soubessem discernir entre o bem e o Tréguas
mal. Não fosse assim, que culpa teriam em suas quedas?
Como reprovar o aluno que não tivesse onde aprender, d
onde estudar? Da mesma forma, nunca faltaram, àquele
que busca a Verdade, fontes onde a pudesse encontrar, ou
exemplos que lhe servissem de guia ou modelo.
Um silêncio pairou entre os caravaneiros. Justiniano
retirou-se e, com ele, o grupo. Ao mesmo tempo, Clara,
O tempo passou, inflexível. O casal, sempre dedi-
cado aos filhos, não se cansava no cumprimento
dos compromissos da paternidade que o caso de Daniel
Marcos e os filhos também deixavam o parque florido. reivindicava, cumprindo perante a própria consciência os
deveres assumidos diante da Grande Lei.
Apesar das muitas oportunidades de questionamen-
tos, naturais na faixa evolutiva em que se encontravam,
jamais Marcos e Clara fizeram, das deficiências físicas e
mentais do filho, motivo para se afastarem do Centro Es-
pírita que freqüentavam desde a mocidade. Agora, mais
do que nunca, era ali que renovavam suas esperanças e
encontravam a compreensão das dificuldades enfrentadas
até então.
Daniel, graças à enorme dedicação dos pais, acompa-
nhava-os, algumas vezes, às reuniões doutrinárias, sem
registrar qualquer reação às preleções que ouvia. Ficava ra enxugou a lágrima furtiva e, tomando o filho pela mão,
indiferente e estático, voltado para si mesmo, comporta- procurou o ombro do esposo, também emocionado. No
mento que caracterizava a enfermidade emocional de que trajeto para casa, com o filho adormecido ainda, no banco
era portador. traseiro do automóvel, ambos comentavam o conteúdo das
Naquela noite, porém, terminada a exposição de uma palavras ouvidas:
página do Evangelho de Jesus e concluída a sessão de pas- — Cada vez que ouço uma mensagem como essa fico
ses, o mundo espiritual daria ainda uma mensagem ao ca- pensando que a nós tenha sido dirigida. Tenho ainda a sen-
sal. Clara afagava a cabeça do filho, sentado a seu lado, sação de que é mais uma preparação para novas provas
com imenso amor. O garoto adormecia, suavemente. Nes- que se avizinham. Sei que é errado pensar assim, mas o
se instante, um dos médiuns da casa leu a mensagem que meu coração está angustiado...
recebera dos guias espirituais. — A mensagem está destinada a todos. Seu conteúdo
é de aproveitamento geral. Mas se foi dirigida a nós, não
“Prezados irmãos! Que a Paz do Mestre nos envolva a to- teremos por que temer. O que tiver de vir, virá. Estamos
dos. A paz do Mestre, não a paz do mundo, que se traduz na Ter- cientes de que não faltarão o apoio e a proteção dos Espí-
ra como ausência de problemas, dor ou dificuldades. Essa é a paz ritos amigos. Temos vencido até agora e assim continua-
do mundo, segundo os homens. No entanto, a paz do Cristo é um remos, meu amor. Dessa forma, procuro aliviar as tensões
estado permanente de serenidade. Pode o homem estar vivendo as que ameaçam invadir-me o pensamento.
dores mais atrozes, as mais duras batalhas morais ou físicas, e — Você tem razão, Marcos... Eu estou errada na mi-
ainda estará mergulhado na paz da consciência, que não duvida nha maneira de sentir as coisas!
de estar cumprindo com o dever, não obstante as dificuldades que — Os maus bocados que temos passado justificam
possa estar enfrentando. Esta é a paz que devemos buscar: a do suas preocupações, embora não devamos alimentar vi-
dever cumprido perante a própria consciência! brações negativas que tais pensamentos podem suscitar
Estamos dispostos a isso? Se estamos, não duvidemos de quando batem ondas de temor e intranqüilidade – acres-
que não nos faltará jamais o auxílio do Alto. Somos uma grande centou Marcos, inspirado pelas lições da noite. – Oremos e
família e, como tal, jamais lutaremos sozinhos, por mais que a vigiemos para não cairmos em tentação. Foi o que ensinou
visão pessimista possa nos sugerir que assim aconteça! Não nos Jesus!
esqueçamos da promessa do Cristo, de que estaria conosco até a — Sim! Se dermos brechas mentais, os inimigos de-
consumação dos séculos! Ainda que nuvens cinzentas turvem sencarnados e, por que não dizer, as pessoas que não se
nosso horizonte, prenunciando tempestades, não temamos. O sol simpatizam conosco, emitirão pensamentos de desequilí-
voltará a brilhar. Que a paz do Mestre e a Misericórdia do Pai brio, que minarão nossas forças!
nos amparem hoje e sempre!” Justiniano e os alunos, que acompanhavam o diálo-
go, em sintonia de pensamentos com o casal, aproveitaram
Concluída a leitura e, após a prece proferida por um para perguntas e comentários elucidativos.
dos dirigentes da Casa, os trabalhos foram encerrados. Cla- — Mentor! Podemos considerar que o casal assumiu
bem o conceito de que os desencarnados podem tentar in- “grão de mostarda”, fica sempre um questionamento em
fluenciar para o mal, mas a decisão final cabe ao encarna- seu íntimo sobre a presença ou não dos Espíritos amigos
do, não é? – observou Jorge. nas reuniões deles.
— Sim. Os iniciantes no estudo do Espiritismo, que — Chegam a duvidar de que estejamos presentes?
ainda não o compreenderam bem, tendem a considerar que – interrogou ainda uma vez o novo caravaneiro.
os encarnados são marionetes dos Espíritos. Para muitos, — Sim. Se a fé raciocinada não estiver presente con-
isso seria mesmo uma justificativa para os erros dos que se ferindo segurança àquilo em que o encarnado acredita. Os
encontram em provas no mundo. Os desencarnados infeli- problemas do mundo físico passam a sufocar a realidade
zes, voltados para o mal, tentam persuadir aqueles, a quem espiritual do ser encarnado.
perseguem, a tomar esta ou aquela resolução, seja na Terra, — Mas quando estamos na carne nos preocupamos
seja no mundo espiritual. Entretanto, para que a responsa- muito com a morte física. Por que não solidificar a fé, única
bilidade recaia sobre o verdadeiro autor, que responderá arma para esse momento e que dissiparia todas as dúvidas,
perante a própria consciência, caberá ao encarnado a deci- todas as inseguranças? – observou o aluno, perspicaz.
são final, porque dispõe de livre-arbítrio – expôs Justiniano, — Pois é, meu caro Alberto, é uma pergunta que deve
que participara com os caravaneiros no atendimento aos ser levantada entre nós os desencarnados. Esse seu racio-
desencarnados naquela noite no Apóstolos da Caridade. cínio de solidificar a fé também deve ocorrer na nossa di-
— Podemos entender que os alienados, em estado de mensão. Quando do lado espiritual, retornar à Terra, pela
perturbação mental, impedidos de usar plenamente a ra- encarnação, é como uma espécie de morte, porque o corpo
zão, são menos responsáveis por seus deslizes ante a Lei de físico se nos assemelha a um escafandro de carne e ossos!
Deus? – considerou Júlia, atenta. A situação se inverte. Passamos a temer o retorno ao local
— Não poderia ser de outra forma. Se forem respon- onde nos aguardam novas provas ou expiações perante as
sabilizados, terão suas faltas atenuadas, num grau que quais dependerá o nosso melhor retorno para este lado da
somente nossos Maiores poderão avaliar, considerando o vida. Assim como aquele que “morre” no corpo e deixa os
que está registrado na “ficha” espiritual de cada um. Não amigos e parentes, nós também temos a mesma sensação,
temos condições de entender, quanto mais de nos arvorar- ao nos separarmos visualmente dos amigos desta nossa di-
mos em juízes de quem quer que seja. Muitas vezes, infe- mensão. Como vêem, tudo é relativo na vida, dependendo
lizmente, esquecemos esse detalhe grandioso! de que ângulo olhamos o problema. Contudo, a fé robusta
— Em relação às comunicações da nossa dimensão sempre é a única solução, independente de que lado este-
para os encarnados, podemos observar que eles como que jamos.
a procuram, a esperam com ansiedade até. Por que essa — Por isso é que se faz necessária, de vez em quando,
necessidade, essa busca? – questionou Alberto. a manifestação de amigos da nossa dimensão entre os en-
— Quando mergulhamos nas experiências de um carnados? – deduziu o caravaneiro.
novo corpo, passamos a viver a realidade que pode ser — É uma necessidade que os nossos irmãos na Ter-
vista e tocada. Naqueles em que a fé não atingiu ainda o ra não gostam muito de admitir, mas que, infelizmente, é
uma realidade ainda presente entre os encarnados. tualidade, até mesmo para tomar decisões administrativas,
— Mas essas manifestações de nossa dimensão da gerando, muitas vezes, atritos no grupo. Mantêm-se na fal-
Vida não devem ser muito freqüentes, não é mesmo? – in- sa ilusão de que isso os isentará de culpa nas resoluções
sistiu Alberto, que ensaiava os primeiros passos nas ativi- tomadas. Temos de assumir nossas decisões perante a vida
dades socorristas. para evoluir! Um estudante de Direito que só ficasse restri-
— Não, não devem, para que os encarnados não caiam to aos estudos acadêmicos, sem acompanhar um só julga-
no problema que eles mesmos chamam de “guiismos”. mento nos tribunais, apenas perguntando aos professores
— “Guiismos, irmão Justiniano? – redargüiu, sorri- sobre as suas dúvidas, seria eternamente um aluno!
dente. — Será pelo medo de errar, Mentor? – acrescentou
— Refiro-me ao hábito de, diante de qualquer deci- Gildo.
são, consultar o guia espiritual, como se ele tudo soubesse — Mas os erros podem converter-se também em sóli-
e ainda, como se pudesse tomar a iniciativa dos seus prote- do ensinamento! Podemos mesmo considerar que o erro é
gidos, agindo no lugar deles. uma normalidade na senda evolutiva do Espírito que ca-
— Existem Espíritos dispostos a alimentar uma situa- minha em busca da perfeição. A criança, que está apren-
ção dessas? dendo a andar, não cai? Assim somos nós: crianças que en-
— Perfeitamente! Não é porque deixamos nosso veí- gatinhamos sob o ponto de vista espiritual e que desejamos
culo denso entregue ao fenômeno da morte que aqui nos começar a aprender a andar. Por que o orgulho ou a vaida-
tornamos santos! Não existem na Terra aqueles irmãos que de em não cair? Será que é o medo de errar ou a vaidade
se envaidecem ao passar a impressão de que sabem tudo, ferida por ter errado? Eis um questionamento pertinente
de que tudo deve ser perguntado para eles? Pois então! Os para o qual cada um deve buscar dentro de si a resposta...
Espíritos pseudo-sábios, os que se prestam a mistificações, Um intervalo de silêncio seguiu-se à conversação edi-
adoram alimentar tal situação entre os encarnados, sobre- ficante. O grupo continuaria suas reflexões no plano maior
tudo entre aqueles que têm o hábito de tudo perguntar ao da Vida. Na Terra, as provas pareciam ter dado uma tré-
guia, sem assumir a responsabilidade por si mesmos! Que gua ao casal.
seria da criança se, para dar os primeiros passos, tivesse
sempre que apoiar-se na mãe? Seu desenvolvimento motor
seria prejudicado.
— Os encarnados têm idéia dessa realidade? – obser-
vou Jorge, que se colocara bem ao lado de Justiniano.
— Os espíritas dedicados ao “amai-vos e instruí-vos”,
que procuram estudar o Espiritismo com seriedade, sabem
que o relacionamento com os Espíritos não deve atender
a veleidades e caprichos de ninguém. Nas casas espíritas,
porém, não faltam aqueles que adoram consultar a Espiri-
Capítulo 11
A Tragédia
d
D aniel estava com 15 anos de idade. Apesar das

malformações congênitas, que lhe assinalavam o
espírito em processo expiatório, contava ele com o amparo
de pais dedicados e de amigos espirituais que procuravam
proporcionar-lhe, nos momentos de relativa lucidez, o so-
corro possível. Somente saía de casa acompanhado pelos
progenitores. Apreciava sentar-se, à frente do portão da
casa, observando o movimento da rua, embora com o olhar
e os pensamentos localizados em ponto indeterminado do
horizonte visual e mental.
Numa dessas ocasiões, levantou-se repentinamente
como se fosse atrás de alguma coisa e iniciou a travessia
da rua. Com o olhar fixo num ponto do horizonte, dir-se-ia
que era atraído por vozes e imagens distantes. No insu-
lamento em que se encontrava, impermeável a quaisquer
estímulos externos, avançou o passo. A forma como o fez, Marcos chegaria ao local menos de uma hora depois,
abruptamente, não permitiu que o motorista do carro, que procurando pela esposa. Clara aguardava a presença do
vinha em sentido contrário, evitasse o choque, apesar da médico assistente, já que Daniel havia sido encaminhado
forte freada. à sala de cirurgia de urgência com um trauma no crânio e
Clara, ocupada nos afazeres do lar, ouviu o ruído da nas pernas.
pancada e imediatamente precipitou-se em direção ao lo- Três longas e angustiosas horas, as mais longas da
cal, extremamente aflita. vida do casal, arrastaram-se penosamente. Com o coração
— Meu Deus! Onde estará Daniel? Não quero que voltado a Deus, pediam em orações o socorro dos Espíritos
presencie alguma cena mais agressiva, que poderá trau- amigos, após o atordoamento da notícia inicial.
matizá-lo – pensou a pobre mãe, já com o coração em so- Um e outro companheiro do Centro Espírita, avisa-
bressaltos. dos pelo filho mais velho, começaram a chegar ao hospital
— Daniel! Daniel, meu filho! Venha para cá... – repe- para levar solidariedade. Num dado momento, um médi-
tia Clara, enquanto se aproximava do portão. co aproximou-se:
Ao percebê-lo aberto, seu coração assumiu um ritmo — Os pais do menino, por favor!
extremamente acelerado. Não vendo o filho no lugar de — Somos nós, doutor – adiantou-se Marcos, amparan-
costume, foi tomada de pavor. Um pensamento aflitivo do a esposa com um dos braços por sobre os seus ombros.
percorreu-lhe todo o ser: — Devo informar-lhes que o seu filho sofreu um trau-
— Jesus! Será possível?! matismo craniano, tendo de ser submetido a uma cirurgia
Da calçada, viu um corpo estirado no meio da rua e de urgência para a retirada de um derrame sangüíneo.
um grupo de pedestres que se aproximavam. Era ele! — Meu Deus! – balbuciou Clara, que se aninhava no
— Daniel! Daniel! – gritou extremamente desespera- braço do marido como a buscar abrigo para situação tão
da. grave.
A visão não permitia àquele coração de mãe amoro- — Entretanto, o que me preocupa não é essa parte do
so que o cérebro raciocinasse. A emoção vencia facilmente trauma.
a razão no momento em que se precipitou sobre o jovem — Coisa mais grave aconteceu, doutor? – perguntou
imóvel na via pública. agora Marcos, revelando também preocupação e angústia.
— Pelo amor de Deus! Chamem uma ambulância! — Infelizmente, sim, senhor. Principalmente em se
— Já chamamos, senhora! – disse alguém, entre os considerando que o seu filho já não possui os braços!
curiosos que presenciavam a cena. — Doutor, o senhor está querendo nos dizer que,
Sem muita demora, Daniel foi transportado para o que...
hospital, no próprio carro que o atropelara. O coração ma- Clara não teve condições de concluir o pensamento,
terno, mais uma vez, era atingido. Clara só teve tempo para prendendo-se a um fio de esperança de que a sua preocu-
pedir ao filho mais velho, que também acorrera ao local do pação não fosse verdadeira.
acidente, para que avisasse ao pai. — Não posso esconder a gravidade, senhora – retor-
nou o médico. Seu filho sofreu graves traumas nas duas dos pais. As visitas estavam proibidas até então. O casal
pernas e corre o risco de perdê-las. O cirurgião vascular e o retornou ao lar, em profunda melancolia. Um companhei-
ortopedista estão cuidando disso no momento. ro procurou levar-lhes consolo. Recomendou mesmo que
A mãe sentiu-se como a despencar num abismo que fossem receber passes no Centro Espírita logo mais à noite.
nunca tivesse fim! Sem os braços e, agora, sem as pernas? O Grupo estaria também orando por Daniel.
Como aquele filho iria suportar tudo isso? Ela, com o au- As angustiosas horas daquele dia transcorreram lenta
xílio de Marcos, conseguiria. Mas e Daniel? O que seria e dolorosamente para o casal. A cirurgia terminara nas úl-
dele?! Ela sentiu-se como uma pluma que flutuasse no ar timas horas da tarde com o estado das pernas do jovem em
e procurou segurar-se no marido para não ir ao solo. Este, condições precárias. Havia sido feita uma tentativa para se
amparando a esposa, levou-a, rapidamente, até uma pol- manter os membros, mas sem nenhuma garantia de que
trona próxima. isso seria alcançado. Ele encontrava-se na UTI, respirando
— Doutor, quanto ao ferimento na cabeça... – quis sa- com o auxílio de aparelhos e com as medicações exigidas
ber Marcos, preocupadíssimo. para o caso.
— Senhor... A tomografia mostra um derrame sangüí- À noitinha, o casal preparava-se para ir ao Centro.
neo. Não posso garantir nada no momento. A medicina, Clara, no entanto, não estava disposta a sair.
infelizmente, não segue um cálculo matemático. Muitas — Perdão, querido. Não conseguiria ser, no estado
vezes há surpresas tanto para melhor como para pior. A emocional em que me encontro, uma boa presença entre os
única coisa que posso garantir-lhe é que a intervenção ci- amigos. Aliás alguns deles se encontram no hospital dan-
rúrgica necessária foi realizada. do-me o apoio fraterno e desfalcando o grupo. Peço-lhe o
— Está bem, doutor. Agradecemos a atenção. Conti- favor de que vá e ore por todos nós.
nuaremos a pedir a Deus pelo nosso filho, enquanto a me- Marcos julgou melhor não insistir com aquele coração
dicina da Terra faz a sua parte. de mãe aflito e angustiado pelos últimos acontecimentos.
Clara ouvia o diálogo com o médico sem forças para Também sofria, mas alguém necessitava continuar buscan-
perguntar alguma coisa. Sabia que as ocorrências seguiam do o auxílio da Espiritualidade, embora soubesse que este
aquele curso por algum motivo que não lhes era dado sa- já estava sendo dispensado. Alguma coisa, porém, dizia-
ber, mas esse conhecimento não a fazia deixar de lamentar lhe no íntimo que não deveria faltar àquela reunião. Aten-
intimamente pela sorte de Daniel, tão marcado nessa exis- deria a esse chamado interior, voltando logo em seguida
tência por uma seqüência de sofrimentos extremamente para ficar ao lado da esposa.
dolorosos. A reunião seguiu seu curso normal. Marcos pedia em
Olhou o marido com os olhos marejados de lágrimas pensamento o socorro de uma mensagem que pudesse ali-
e encostou a cabeça em seu ombro amigo, deixando que as viá-los e dar-lhes esperanças. Compreendia que não cabia
lágrimas escorressem pelo rosto. a ele como a ninguém questionar os desígnios de Deus,
Daniel permaneceu na Unidade de Tratamento Inten- mas pedia fervorosamente para que a Misericórdia do Pai
sivo. Apesar da insistência , não foi autorizada a presença permitisse alguma notícia dos Espíritos.
Aberto o tempo para manifestações, o mesmo mé- da lhe envolvem os sentimentos. – completou o Espírito que se
dium de outras comunicações iniciou em tom grave, já em comunicava.
transe profundo: — Daniel nasceu sem os dois braços. Ele é uma criança
autista, e, nessas condições, um ser dependente dos pais
— Prezados irmãos e companheiros da caminhada terres- por toda a sua vida física. Agora, com o acidente ocorri-
tre. Não nos sintamos ao desamparo da proteção de Deus porque do, hoje, a notícia médica de que poderá perder as duas
a tempestade desaba sobre a terra necessitada de nossas almas pernas, transformando-se num pedaço de gente sobre um
fecundando o solo de onde brotará, viçosa, a nossa evolução espi- leito, nos tortura muito como pais falíveis aqui na Terra.
ritual! Agradeço à permissão recebida de Jesus e Nosso Pai para Feito o desabafo, lágrimas silenciosas começaram a es-
aqui estar novamente, pedindo licença aos demais presentes para correr dos olhos cansados do pai abatido pela dor. Ainda
dirigir-me a um irmão em particular. procurou acrescentar:
Como é natural, esses amigos estão em difíceis provas, que, — Peço perdão a Deus, mas é o que sinto no momento
se suportadas com resignação, redundarão em bênçãos para to- em que as dores parecem atingir com uma violência que
dos. Dentro do limite estabelecido pelas Leis maiores, coloco-me jamais esperávamos.
à disposição para que desanuvie o seu coração e a sua mente com — Compreensível o sofrimento do irmão e de sua esposa, que
perguntas que, volto a frisar, sejam permitidas ser respondidas têm se dedicado de forma meritória perante o lar, os filhos e mais
pela Providência Divina. especificamente ao último, nascido com problemas sérios, sob o
Portanto, querido companheiro, temos alguns minutos para ponto de vista físico e emocional. Posso garantir-lhe, entretanto,
que abra o seu coração, agradecendo a Deus e a Jesus por essa que Daniel é um espírito endividado perante a consciência e ne-
oportunidade pouco freqüente aos encarnados. Não que haja pri- cessita de semelhantes mecanismos expiatórios. Se duvidarmos
vilegiados, mas sim credores de que tais oportunidades ocorram disso, estaremos duvidando das Leis de absoluta justiça! Com os
pelo desempenho a contento da tarefa assumida. sofrimentos atuais, apoiado como tem sido por pais dedicados a
ele, sem terem compromisso de causa e efeito com as suas atitudes
Pego de surpresa, Marcos não refreou a dúvida que anteriores, visa a Providência propiciar os meios de dar a esse
lhe invadia o ser e, provavelmente, a esposa também, in- companheiro as condições de quitar-se, mesmo que, parcialmente,
dagando: perante o seu passado comprometedor.
— Sei perfeitamente que não temos o direito de ques- — Desculpe-me se ouso contrapor às suas explicações
tionar os desígnios da Providência Divina, pois isto é um uma outra pergunta.
ato de revolta contra as decisões absolutamente justas de — Como dissemos no início, estamos autorizados a ir até
Deus. No entanto, se posso usar de toda a sinceridade que um determinado limite. E se a pergunta do irmão Marcos estiver
me invade a alma e tortura o meu ser, gostaria de entender entre esses limites poderemos responder.
o que se passa com o meu filho Daniel que, desde o nasci- — Sabemos que a Justiça perfeita tem de ser feita!
mento, já veio golpeado pela vida. Aprendemos muito bem isso na Doutrina Espírita que nos
— Pode completar a pergunta, já que outras amarguras ain- abençoa a existência, principalmente em momentos como
esses. Mas não desconhecemos que a Justiça de Deus é águas daquele rio que cruza o bosque.
acompanhada por sua Misericórdia, não é mesmo? — Sim é isso mesmo! Por isso lá voltamos outra vezes!
— Não tenha dúvidas quanto a isso, meu irmão. — Para que ele visse o rio?
— Os dois mecanismos já em vigência, ou seja, a au- — Sim, para que ele visse o rio! Mas continuo sem
sência dos braços e o autismo, que o transforma num de- entender!
pendente durante toda essa existência na carne, não cons- — Marcos, o embevecimento de Daniel pelas águas do rio
tituem mecanismos depuratórios suficientes se aliarmos tinha um motivo único.
justiça e misericórdia? — Também assim cremos eu e minha esposa. Que po-
— Poderiam até constituir, caro irmão, caso o perigo de um deria ser benéfico para ele!
outro ato extremado de suicídio não estivesse rondando os pensa- — Disse bem, meu amigo. Poderia. Mas não com os pro-
mentos do seu filho mais uma vez! pósitos que foram crescendo em sua mente a cada vez que, nas
— Desculpe-me, mas não entendi! melhores das intenções, vocês o levavam até lá!
— Vou repetir estimado companheiro: os dois mecanismos — Continuo confuso. O irmão poderia esclarecer-me
existentes seriam suficientes para o redimir parcialmente, não melhor?
fosse o perigo do suicídio aproximando-se de novo! — Sim. Vamos à realidade alimentada pelo nosso querido
— Mas, como assim?! Não consigo entender! Seriam Daniel: ele planejava jogar-se nas águas daquele rio porque, sem
obsessores querendo matá-lo? os braços, pereceria novamente pelo suicídio! Entendeu, meu ir-
— Não, meu filho. Os irmãos infelizes que se entregam ao mão? A proporção da ameaça que se avizinhava mais uma vez
mal e tentam nos fazer o mal, não conseguem agir sem a nossa dessa alma infeliz, apesar de todos os esforços dos pais amorosos
autorização, sem o nosso consentimento mental! que possui? Daniel iria cometer novamente o suicídio!
— Confesso que continuo não entendendo! Como ele O trauma sofrido nas pernas tolheria totalmente esse novo
poderia tirar a própria vida sem os braços?! Como empu- desastre, percebeu? Vê agora como funciona a perfeição das Leis
nhar uma arma ou levar algum tóxico à boca sem as mãos?! do Pai sempre procurando conduzir-nos para o verdadeiro cami-
Como suicidar-se nas condições de limitação física em que nho, mesmo que isso nos custe muitos sofrimentos em uma ou vá-
se encontra? rias existências no corpo? Terminado o veículo físico com enor-
— Meu amigo, confie na infalibilidade das Leis de Deus! mes restrições, liberta-se o Espírito imortal aprimorado diante de
Vamos às explicações porque o tempo, com o cansaço da mediuni- si mesmo! Rompido o casulo da lagarta disforme que rastejava,
dade, está a acabar. Lembra-se da primeira vez que levaram seu liberta-se a borboleta multicolorida que se eleva nas alturas!
filho ao bosque da cidade? São esses objetivos, que não conseguimos entender na
— Sim, claro! Ele até se encantou com as águas do Lei, o que nos leva à revolta e ao desespero, irmão Marcos.
rio, a tal ponto que retornamos muitas vezes ao bosque das Creio que o companheiro desejaria também maiores infor-
Acácias, porque parecia um método de tratamento para o mações sobre o que determina a Lei maior sobre a seqüência dos
seu problema de autismo! fatos que se sucederão com Daniel, entretanto, essas determina-
— É verdade. Daniel encantou-se com o movimentar das ções chegarão das regiões maiores da Vida, cabendo-nos aguardar
com confiança e resignação, sejam quais forem essas decisões. ou exageros na Lei. Marcos tivera a bênção das explica-
Como já disse, não podemos sobrecarregar a médium e, por ções da noite graças às possibilidades que o Espiritismo
isso, despeço-me, esperando ter colaborado para minorar os sofri- lhe proporcionara, mas ficava pensando nas milhares de
mentos que se avolumam e se avizinham em cumprimento daqui- pessoas que, por desconhecer esses ensinamentos, davam
lo que visa o melhor para Daniel. interpretações pessoais para os acontecimentos da vida!
Que a paz do nosso Mestre e Senhor se constitua no arrimo Por isso, muitos têm sido e ainda são levados ao materia-
para todos. lismo!
Julgavam as respostas de Deus com base nos estreitos
x limites do berço ao túmulo. Tempo por demais curto para
que a Justiça do Pai seja compreendida, já que abraça o ser
Marcos havia sofrido um choque maior do que o im- em toda a sua extensão, desde que foi criado! Sentia-se
pacto pelo atropelamento do filho! Quando parava diante consolado, confortado por aquelas revelações que, como
das águas do rio, Daniel planejava jogar-se no meio de- sempre, provavam a perfeição do Deus que nos criou.
las?! Fossem quais fossem os próximos passos do desenrolar
Se não tivesse ouvido a orientação num centro espí- daquele drama, saberia enfrentá-los com mais tranqüili-
rita como aquele, que se regia baseando-se na Codificação dade.
Kardequiana, julgaria estar diante de um romance impreg- Tinha também a certeza de que o mesmo se passaria
nado de ficções! A esperança de Marcos e de Clara, ao ver com Clara a quem não via a hora de comunicar as explica-
o filho sair de si mesmo ao contemplar aquele local do bos- ções abençoadas ouvidas naquela noite.
que, contribuía, ao contrário do que supunham, para que Retornou ao hospital mais confortado pela lógica dos
o filho consumasse a própria destruição. Nunca poderiam acontecimentos que conciliavam a Justiça com a Misericór-
ter considerado essa hipótese! dia de Deus. Nas primeiras horas da madrugada, quando
Levaram-no ao bosque para que pudesse se divertir, o silêncio da noite trazia uma paz maior aos corações do
para ter um estímulo novo que agisse beneficamente no casal, Marcos, paulatinamente, foi confidenciando à espo-
problema do autismo. Entretanto, a mente monopolizava a sa as explicações ouvidas na reunião.
idéia do suicídio. Vislumbrava executá-lo nas profundezas Ao mesmo tempo em que se espantava diante das re-
das águas que, sem os braços, acabariam por arrastá-lo até velações, encontrava a lógica dos acontecimentos que ao
a morte! Não eram as Leis da Providência Divina difíceis homem de boa vontade revelava toda a grandiosidade da
de ser entendidas, mas sim o ser humano, em suas deci- Divina Providência. Comentou ao final da exposição:
sões complicadas! As Leis nada mais faziam do que agir — Meu Deus, Marcos! E pensávamos que o rio des-
de acordo com as atitudes ininteligíveis da criatura no me- pertava outro tipo de sentimentos na alma de nosso filho!
canismo do dar-se a cada um segundo as suas obras! Temos de agradecer muito por essas informações dos Es-
Daniel, infelizmente, como todas as criaturas, colhia píritos amigos, que permitem o fortalecimento de nossas
as conseqüências da má semeadura! Não havia engano forças para a luta e para a nossa resignação!
Afagou os cabelos em desalinho do marido, beijou- — Entendemos, doutor. O senhor faça como jul-
lhe o rosto e pediu que ele fosse descansar um pouco para gar melhor – disse apertando os ombros da esposa como
enfrentar o trabalho no dia seguinte. Marcos, a princípio a transmitir-lhe todo o carinho que pudesse sustentá-la
relutou, querendo ficar ao lado dela, mas, diante das ar- diante do novo choque.
gumentações ponderadas e carinhosas da esposa, aquies- Clara apenas aconchegou-se ainda mais ao marido
ceu. como se buscasse o apoio físico, além do moral que vinha
Felizmente, o casal encontrava nos outros dois filhos tendo desde a união pelo casamento.
uma retaguarda confiável na luta do dia-a-dia. — Entretanto – continuou o médico com o semblante
No segundo dia após o acidente, o neurologista que carregado pela desagradável missão de que era portador
acompanhava mais diretamente o caso de Daniel, procu- –, as notícias ruins não param por aí. Devo informar-lhes
rou pelos pais para esclarecimentos mais detalhados em ainda que o quadro neurológico de Daniel vem apresen-
diálogo franco: tando piora que não esperávamos em face das providên-
— Procurei pelos senhores em virtude de dois fatos cias tomadas. Vamos rever com outros colegas médicos
que, infelizmente, não posso ocultar – falou o dr. Fonseca, os acontecimentos antes que eu possa dar uma informação
o mesmo que já cuidara de Daniel, na infância. definitiva. Julguei melhor alertá-los para que os aconteci-
— Agradecemos pela sua atenção para conosco como mentos não os apanhem desprevenidos. Gostaria de ser
para com o nosso filho – antecipou-se Marcos, antevendo portador de notícias melhores, mas não posso transmitir-
revelações mais graves, aliviando, dessa maneira, a esposa, lhes ilusões no campo da medicina.
poupando-a de manter o diálogo direto. — Entendemos, doutor. Nosso filho está entregue nas
— Daniel terá que ter seus membros inferiores ampu- mãos dos recursos médicos, nos quais confiamos, e a Deus,
tados. A tentativa de reparar os danos causados pelo aci- a quem temos pedido desde sempre.
dente não deram resultado e não nos resta alternativa sob O médico afastou-se. Marcos e Clara ficaram entre-
o ponto de vista médico. gues à dor surda da dúvida quanto às horas que se segui-
Se o impacto da notícia pudesse ser representado por riam. Olhando para o esposo, comentou:
alguma forma de desenho, veríamos o casal curvar-se ain- — Que será que nos espera, Marcos?
da mais sob o peso da cruz que o acompanhava desde o — Segundo orientação dos amigos espirituais, um
nascimento de Daniel. programa de vida, elaborado com uma finalidade maior
Por alguns segundos pareceu que marido e mulher para nós três. O mais importante a fazer é continuar oran-
mergulhavam dentro de si próprios, em busca de forças do, resignados diante da Lei, que enxerga aquilo que nos-
para continuarem a suportar com dignidade mais essa no- sos olhos humanos não vêem! Podemos perder tudo, mas
tícia, sem esboçar qualquer questionamento que pudesse não podemos perder nossa fé e entrega aos desígnios da
representar rebeldia ou protesto ante as Leis Divinas. Re- sabedoria Divina! Se isso viesse a ocorrer, seria como se
tornaram ao momento presente após esse curto espaço de nos perdêssemos, espiritualmente falando! Além de pe-
tempo de introspecção. E foi Marcos quem falou pelos dois: dirmos pela saúde de Daniel, peçamos também pela nossa
saúde espiritual, para continuarmos realizando a parte que existe todo um protocolo a ser cumprido. Nenhum médico
Deus espera que façamos! sozinho, ou mesmo em equipe, assumirá a responsabilida-
— Fico a imaginar, Marcos, aquelas pessoas que não de de chegar a um diagnóstico de tal gravidade sem estar
podem ter os esclarecimentos que temos. Como suportar alicerçado em todos os passos exigidos pela medicina atual
momentos como esses ou até piores? para que se possa chegar com segurança a uma conclusão
— Mais se pedirá a quem mais tiver sido dado, não é desse tipo. Somente após completados os exames e discuti-
assim? do o caso com a equipe médica é que daremos aos senhores
As horas transcorriam lentamente. Não faltava um re- uma resposta definitiva.
vezar de amigos do casal no apoio moral possível de ser — Doutor – antecipou-se Clara, na esperança de en-
estendido em ocasiões como aquela. Cada pessoa dentro contrar alguma outra saída. – E quanto ao que temos lido e
do seu ponto de vista, no seu ângulo de entendimento da ouvido sobre pacientes em coma e que, ao se desligarem os
vida, opinava, procurando levar conforto. aparelhos que os mantêm em vida, continuam respirando,
Naquela noite, o médico se fez presente novamente com suas próprias forças? Isso não indicaria a possibilida-
perante o casal. de de falha no diagnóstico?
— A cirurgia dos membros foi realizada conforme a — Dona Clara, acho que, mesmo de longe, posso ava-
necessidade, e Daniel continua requerendo cuidados in- liar o que se passa em seu coração de mãe dedicada. Mas,
tensivos na unidade apropriada. O que me faz mais difí- nesses casos a que a senhora se refere, não houve morte
cil, contudo, de abordar com vocês, embora seja da minha encefálica. Eram cérebros gravemente comprometidos mas
obrigação como médico, é da possibilidade da morte ence- não a ponto de impedir o retorno à vida, mesmo que vege-
fálica de Daniel! tativa, como chamamos em medicina. São situações dife-
— Doutor! O senhor está querendo dizer que o nosso rentes. O nosso sistema nervoso central, não suporta a falta
filho está com morte cerebral? – antecipou-se Clara, num de oxigênio por muito tempo. Nos casos de parada car-
ímpeto de extravasamento de amarguras que vinham sen- díaca, por exemplo, procuramos recuperar o mais rápido
do colecionadas com o suceder dos acontecimentos. possível a circulação do sangue pelo corpo, principalmente
— Estou, dona Clara! Infelizmente, estou! Os sinais em regiões chamadas nobres do organismo, uma delas é
clínicos são evidentes, e vocês precisam saber disso. o cérebro, exatamente para que não ocorram lesões cada
A sofrida mãe sentiu ser percorrida por uma espé- vez mais graves, chegando até a irreversibilidade total da
cie de um raio que a atravessava da cabeça aos pés. Pediu possibilidade de voltar o cérebro a viver e sustentar deter-
mentalmente o socorro dos Espíritos amigos para conti- minadas funções do corpo. Ocorrida a morte encefálica,
nuar enfrentando com dignidade cristã os fatos sombrios não há retorno.
que se apresentavam cada vez em intensidade maior. — Doutor – insistiu a mãe, aflita. – Esse diagnóstico
— Mas e os exames, doutor? Os exames já foram feitos? não é passível de erro?!
— Pode ficar tranqüila quanto a esse aspecto, dona Cla- — Desde que executados como determina o protocolo
ra, porque para se chegar à conclusão de morte encefálica, médico estabelecido, não há essa possibilidade, dona Cla-
ra. Que fique claro, entretanto, que estou dando a minha Naquela manhã, prevista para o resultado do exame
opinião, em concordância com a opinião de um grande nú- conclusivo de morte encefálica e, portanto, da condenação
mero de colegas, podendo existir, como em tudo na vida, à morte física de Daniel, Marcos não foi ao trabalho, justi-
opiniões contrárias. ficando a ausência à chefia imediata. Não poderia deixar a
— Doutor, repito a pergunta: no caso do meu filho... cargo da esposa a incumbência de receber sozinha o diag-
Os exames conclusivos já foram feitos? nóstico final.
— Só falta o exame da angiografia cerebral, ou seja, Aproximadamente pelas 9 horas da manhã, o médico
a injeção de um contraste que permite verificar se o cére- chamou o casal até a sua sala, convidando-os a sentarem-se.
bro recebe algum sangue. Caso isso não esteja ocorrendo, — O exame de angiografia cerebral não revelou qual-
o diagnóstico estará confirmado. Procurarei vocês assim quer irrigação sangüínea. Ou seja uma medicação injetada
que tiver o resultado. em um vaso que deveria levar sangue até o cérebro de seu
O casal ficou por alguns minutos sem dizer nada um ao filho, revelou que isso já não ocorre mais. Não há nenhuma
outro após a saída do médico. Dizer mais o quê, diante dos possibilidade de vida para Daniel. Sinto dar essa informa-
últimos acontecimentos? Foi Clara quem quebrou o silêncio. ção, mas não posso ocultar ou proporcionar falsas esperan-
— Se for confirmado o parecer do médico, Marcos, ças a vocês.
nossa luta foi perdida. Clara apertou a mão que segurava a do marido e abai-
— Teria sido, amor, caso a morte fosse o fim. O corpo xou a cabeça, dando lugar, mais uma vez, a lágrimas si-
de Daniel pode estar condenado, mas o seu Espírito pre- lenciosas de dor, mas livres de revolta. Não era a notícia
para-se, caso assim se confirme, para retornar à dimensão que desejavam ouvir, mas era conforme determinava a Lei.
dos Espíritos, deixando-nos, além da saudade, a sensação Marcos passou o braço sobre os ombros da esposa e disse
do dever cumprido, principalmente o seu, na atenção diá- ao médico:
ria que a ele dispensou. Devolvemo-lo ao Pai, tendo feito — Como o senhor já nos explicou, não há nenhuma
tudo o que as nossas imperfeições permitiram que fizésse- possibilidade de retorno? Existem aqueles que defendem o
mos! Felizmente podemos entender as coisas dessa ma- ponto de vista de que uma pessoa está viva até que morra.
neira graças às explicações do Espiritismo, cuja doutrina Outros ainda vão mais longe, dizendo que um diagnóstico
vimos estudando desde a nossa adolescência. Só por esse apressado de morte cerebral poderia até mesmo constituir
fato, temos muito que agradecer a Deus! – disse, abraçando um assassinato ou imperícia médica!
a esposa, como se desejasse retirar dela todo aquele inevi- — Não, não há! Nesse mundo as exceções sempre
tável sofrimento. costumam aparecer em momentos de profunda angústia,
Somente restava ao casal o escoar lento e melancóli- como o que estão vivendo agora. Aguardar a parada car-
co das horas impassíveis da noite, como se o mundo fosse díaca como sinônimo de morte, inviabiliza a doação de
um enorme silêncio. A Doutrina Espírita esclarecia-os para determinados órgãos, que entram em sofrimento com a in-
que o sentimento de revolta não tivesse guarida em suas terrupção da irrigação sangüínea. Alegar que houve pressa
almas, mas a dor sempre encontra caminho para os nossos no diagnóstico de morte encefálica é presumir que esteja
corações.
havendo má-fé para se capturar órgãos para transplantes. — São adeptos de alguma religião?
Posso assegurar-lhes que não é esse o nosso caso, mesmo — Sim. Somos espíritas. Por quê?
porque ninguém é obrigado a doar. O médico, apesar de — Isso facilitará o tema que vou abordar. Como já ex-
conviver com a morte desde a fase acadêmica e de com- pliquei, diante dos recursos da medicina atual, Daniel está
bater a morte todos os dias, não é devidamente preparado irreversivelmente condenado, sendo questão de horas ou
psicologicamente, durante a sua formação, para bem en- dias a consumação da morte. Apesar das anomalias físicas
frentar a perda de seus pacientes. Essa situação nos passa e do problema mental, ele não tem outras doenças no seu
uma sensação de impotência, de derrota, além de lembrar- organismo físico. Ou seja, seus órgãos estão em condições
nos, o que talvez seja mais angustiante ainda, que um dia de serem doados...
chegará a nossa própria hora! Não imagina, admitindo as Um pesado e constrangedor silêncio desabou sobre o
exceções, o sofrimento moral de um médico, além do físico, ambiente, quebrado pela voz do médico novamente:
ao saber que seu paciente é portador de doença incurável! — Estou cumprindo um dever, em atenção ao que
Nenhum médico sente-se vitorioso diante da perda de qual- outros pacientes esperam da minha pessoa. Órgãos como
quer paciente. É sempre melhor dar uma boa notícia para coração, rins e fígado só serão aproveitados caso não te-
os familiares do que essa que estou dando agora a vocês. nham sofrido deterioração, devido a quedas de pressão
— Isso evidentemente, doutor, para os médicos que e determinadas drogas que tenham sido administradas
possuem sensibilidade como o senhor... para manter artificialmente a vida. Não é necessário que
— Creio que não. Existem aqueles que demonstram me respondam neste momento. Mas não deixem de dar a
essa sensibilidade, e outros que procuram disfarçá-la, para resposta o mais breve possível, para que a doação seja viá-
não sofrer mais. No fundo, porém, creio eu, a morte aca- vel. Pensei em falar particularmente só com o senhor, mas
ba atingindo com mais ou menos intensidade a todos, por entendo que a mãe tem todo o direito de opinar também.
representar sempre uma perda. Perde o paciente a vida; Garanto a vocês, contudo, que não será tocado em parte
perde a família o ser amado; perde a sociedade um dos nenhuma do seu filho enquanto não deliberarem sobre o
seus membros; perde o médico o seu paciente e a batalha, assunto. Continuaremos a manter todos os recursos da
e isso nunca é bom para ninguém! Agora, devo tocar no medicina à disposição, embora, como já adiantei, a conti-
ponto mais sensível de nossa conversa, pedindo desculpas nuação da vida de Daniel é impossível diante do último
se vou abordar tal assunto, mas o faço como parte de uma resultado. Respeitaremos a decisão de vocês, seja ela qual
obrigação da profissão. Permitem? for, podem ficar tranqüilos.
Clara e Marcos se entreolharam, buscando imaginar o Marcos e Clara não tinham vontade de responder à
que mais os poderia atingir! Se a vida física de Daniel esta- pergunta, mas, por educação, prometeram pensar sobre o
va irremediavelmente perdida, o que mais poderia abalá- assunto e manifestar a sua decisão o mais breve possível,
los? fosse ela qual fosse.
— Doutor – disse Marcos com segurança. – Cumpra O médico pediu licença ao casal, chamou uma enfer-
o seu papel até o fim. meira e pediu que os encaminhasse à sala de espera. Clara
e Marcos sentaram-se, como se um peso muito grande pai-

rasse sobre os seus ombros, empurrando-os para baixo. Os
pensamentos estavam descoordenados, velozes, como se
tentassem fugir da própria realidade. Eram espíritas, mas
amavam aquele ser que viera ao mundo marcado com as
conseqüências de desequilíbrios anteriores.
Abraçado, o casal derramou lágrimas silenciosas
oriundas da dor que se instalara em seus corações diante
dos últimos fatos, enquanto eram observados pelos paren- Capítulo 12
tes de outros pacientes, igualmente enfrentando vicissitu-
des naturais deste Planeta de provas e expiações.
À saída, alguns amigos os esperavam, entre eles Alfre-
do, velho companheiro no Apóstolos da Caridade. Marcos
o abraçou, com lágrimas nos olhos.
— Desculpe, Alfredo. Mas não podemos evitar... A A Decisão
prova parece superior às nossas forças... Nestas horas, é
impossível conter as lágrimas – falou o pai, abatido. d
— Pois, deixem cair as lágrimas. Quem disse que es-
pírita não chora? Não deve revoltar-se ante os fatos de-
terminados pela Providência Divina, mas ninguém está
proibido de chorar! Nem Jesus foi poupado. No Monte das
Oliveiras, nos momentos que anteciparam a sua prisão e
P assado o impacto inicial, o casal reabriu o diálo-
go:
— Marcos, creio que devemos buscar auxílio. Quero
martírio, o Mestre chorou, não foi? Pois, desabafe o cora- conversar com Alfredo. Ele possui muito conhecimento e
ção – disse Alfredo, confortando o amigo. vivência para nos orientar sobre a decisão da doação de
órgãos. À primeira vista parece uma decisão fácil para os
espíritas, mas os conhecimentos que temos da caridade e,
ao mesmo tempo, da desvinculação do Espírito dos laços
materiais, sabendo que muitas vezes ocorre a morte, mas
não a desencarnação, traz uma série de conflitos.
Convicta, Clara continuou, pensativa:
— Não me esqueço de Chico Xavier, um dos maiores
parâmetros da Doutrina em nosso tempo, na entrevista que
concedeu a um jornal, de Uberaba, posicionou-se dizendo
que ele havia doado a sua mediunidade e a sua vida na
atual reencarnação a todos, mas que a sua morte pertencia vidência Divina faça o resto nos parece simplista demais e
a ele, deixando registrado que queria que devolvessem o relativo. As repercussões do presente são uma resultante
seu corpo à terra. Evidentemente que esse Espírito gran- do somatório de todas as existências que tivemos no rei-
dioso poderia ter nessa sua vontade alguma atitude que no hominal, no reino da consciência! Tudo obedece a uma
estivesse evitando qualquer ato de idolatria ou, sabe-se lá o Lei que não prevê nem milagres, nem saltos, mas uma se-
quê, mas pelo menos precisamos parar para refletir, princi- qüência inevitável que não fira nem derrogue qualquer lei
palmente quando estamos decidindo pelos outros. No caso natural estabelecida! É o que temos aprendido na cartilha
particular, pelo nosso filho. espírita, não é, Alfredo?
Clara continuou, parecendo intuída por um Espírito — Vejamos, então a pergunta 155 de O Livro dos Es-
familiar. píritos. Repitamos a resposta dada a Kardec quando ele
— Não duvido que existam muitas pessoas que, pela perguntou como se operava a separação entre a alma e o
vida de desprendimento material, estejam preparadas para corpo... – falou Alfredo, enquanto folheava a obra, já bem
doarem seus órgãos sem repercussão sobre o ser espiritual, desgastada pelo constante manuseio. Ajeitando os óculos,
mas um grande número não está. Por isso, gostaria de con- iniciou a leitura:
versar com Alfredo, que poderá nos orientar melhor... — “A alma liberta-se gradualmente e não se escapa
— Concordo com você. Acho que devemos ir procu- como um pássaro cativo que ganha subitamente a liberda-
rá-lo agora, dada a urgência de nossa decisão, conforme de. Esses dois estados se tocam e se confundem; assim o
explicou o médico. Espírito se liberta pouco a pouco de seus laços; os laços se
Em pouco mais de uma hora haviam localizado o ami- desatam, não se quebram.”
go, que há tempos conduzia as atividades doutrinárias no Em seguida, retornou, mirando o casal e falando com
Apóstolos da Caridade. segurança.
— Pois o problema todo é esse, Alfredo. Ainda nos — Aí estão as palavras textuais dos Espíritos ao Co-
resta mais essa decisão a ser tomada, para a qual pedimos dificador. Desatar pressupõe um processo gradativo, mui-
sua orientação. to diferente de quebrar, que traduz rapidez, violência, que
— O que posso fazer é recordar determinados escla- não é próprio da Lei. O ensinamento dos Espíritos está des-
recimentos da Doutrina Espírita com vocês, auxiliando dobrado ainda na obra de André Luiz, que juntos temos es-
através daquilo que os Espíritos Superiores nos facultam tudado no Centro que freqüentamos. Como sabem, André
ensinar. Nenhuma autoridade existe na minha pessoa e transmitiu inúmeras informações através da mediunida-
muito menos posso comprometer a Doutrina Espírita com de bendita de Chico Xavier. No seu livro, Obreiros da Vida
alguma má interpretação das obras da Codificação. Eterna, ele descreve a intervenção espiritual no processo de
— Entendemos seus cuidados, mas pedimos-lhe o fa- liberação do Espírito do corpo já sem vida.
vor de lembrar-nos o que a Doutrina ensina. Já nos será — De fato... São cinco casos diferentes de desencarna-
de grande valia e entendemos, desde já, que a decisão final ção – recordou Clara.
caberá a nós. O conceito de que basta doar para que a Pro- — Pois bem, nessa leitura podemos entender que é um
processo que segue determinadas etapas e que inclusive lavras desse venerável benfeitor ao indicar que a separação
leva cansaço aos Espíritos encarregados da tarefa, depen- entre o Espírito em processo de desencarne, dependendo
dendo do grau de vinculação do Espírito em desencarna- evidentemente de cada um, mantém um grau de ligação
ção. Quanto mais materiais tiverem sido os sentimentos, as com os restos mortais!
decisões, o sentido da existência, tanto mais ligado estará — Por favor, gente, sirvam-se! – convidou Therezinha,
ao veículo físico, demandando mais tempo e trabalho no solícita.
processo de libertação – dizia Alfredo, mostrando sólida O casal sorriu em agradecimento. Alfredo prosseguiu
base doutrinária. explorando a vasta bibliografia espírita acerca do tema.
Retirando outra obra da vasta prateleira do escritório, — Joanna de Ângelis também nos traz ensinamentos
prosseguiu Alfredo: a respeito da doação de órgãos neste livro aqui – erguendo
— A respeitável entidade denominada Manoel Phi- numa das mãos o livro Dias Gloriosos, ditado por aquele
lomeno de Miranda, através da mediunidade de Divaldo Espírito ao mesmo médium Divaldo Pereira Franco.
Pereira Franco, esclarece que “morrer, do ponto de vista — Joanna recomenda cautela ao decidir sobre doação
espiritual, nem sempre é desencarnar, isto é, liberar-se da de órgãos – falava Alfredo, com a autoridade de quem co-
matéria e das suas implicações”. Veja ainda o que diz Be- nhecia bem a matéria.
zerra de Menezes no livro Voltei, em que narra a desencar- — Quanta informação! – exclamou Marcos, admira-
nação de Jacob. Bezerra assevera que a rapidez do processo do.
liberatório dependia, em grande parte, da opção de vida — Este foi tema de uma das palestras nossas no Após-
de cada um aqui na Terra, da sua vida mental, da conduta, tolos. E mesmo assim não foi suficiente para abordar todos
das atitudes tomadas, enfim, de como se viveu no mundo os ângulos da questão – continuou Alfredo, ainda buscan-
dos homens. do novas fontes bibliográficas. Após alguns segundos, reti-
Therezinha, a esposa, entrou na sala com uma jarra e rou da estante O Céu e o Inferno, de Allan Kardec.
alguns copos e começou a servir aos amigos delicioso suco — Vejamos aqui o que dizem os Espíritos – prosse-
de maracujá. Médium de extraordinárias faculdades, era o guiu ele, com interesse, abrindo a obra na parte II, Capítulo
esteio das reuniões mediúnicas no Apóstolos da Caridade. I. Recolocando os óculos, leu em voz alta:
Enquanto isso, Alfredo continuou, animado: — “A causa principal da maior ou menor facilidade
— O honorável mentor Emmanuel não recomenda de desprendimento é o estado moral da alma. A afinida-
que aguardemos no mínimo 72 horas para submeter o corde entre o corpo e o perispírito é proporcional ao apego à
po à cremação? Este mesmo Espírito, no livro O Consola- matéria, que atinge o seu máximo no homem cujas preo-
dor, na questão 151, afirma que devemos atrasar por um cupações dizem respeito exclusiva e unicamente à vida e
tempo maior possível a destruição das vísceras materiais, gozos materiais. Ao contrário, nas almas puras, que ante-
porque, “de certo modo, existem sempre muitos ecos de cipadamente se identificam com a vida espiritual, o apego
sensibilidade entre o Espírito desencarnado e o corpo onde é quase nulo.”
se extinguiu o tônus vital”! São extremamente claras as pa- Marcos e Clara ouviam atentos. Alfredo continuou:
— Vejam isto: “Em se tratando de morte natural re- ideal em qualquer decisão. Assim como não existem dois
sultante da extinção das forças vitais por velhice ou doen- desencarnes iguais, não podemos criar normas que, isen-
ça, o desprendimento opera-se gradualmente; para o ho- tas de erro, recomendassem a alguém se deve ou não doar
mem, cuja alma se desmaterializou e cujos pensamentos se seus órgãos – continuou o dirigente espírita.
destacam das coisas terrenas, o desprendimento quase se Alfredo e a esposa Therezinha prestavam ajuda pro-
completa antes da morte real, isto é, ao passo que o corpo videncial ao casal.
ainda tem vida orgânica...” — A pessoa que está preparada para o desprendimen-
Levantou os olhos na direção do casal, fez uma breve to, como Espírito imortal que continua a viver, evidente-
pausa e retomou a leitura, enfático: mente não sofrerá impactos negativos pela doação; mas,
— “...Já o Espírito penetra a vida espiritual, apenas li- muito pelo contrário, se beneficiará consideravelmente
gado por elo tão frágil, que se rompe com a última pancada com o gesto de solidariedade. De tal forma que é preciso
do coração.” Viram? Vocês então poderão estar pensando: um conhecimento próprio profundo de si mesmo por parte
afinal, a Doutrina Espírita é a favor ou contra a doação?! do doador, dos seus sentimentos, daquilo que lhe norteou
Respondemos, com cuidado: Cada caso é um caso a ser as decisões e do proceder em relação à própria consciência.
analisado com muito amor e carinho. Não pode existir uma Quem se achar devidamente preparado, realmente prepa-
regra geral. Nossa fé, como ensinou Kardec, é uma fé racio- rado para doar seus órgãos, disso apenas alcançará benefí-
cinada e estamos exercendo nesses comentários o direito cios. Aqueles, entretanto, que possuem dúvidas, é melhor
e o dever de raciocinar! Se nos entregarmos às respostas que reflitam sobre a decisão.
emocionais, excluímos o uso da razão, como enfatizava o Após uma pausa mais longa, continuou o dirigente:
Codificador e, sem a razão, não conseguiremos acompa- — Kardec, o bom senso encarnado, deixou-nos monu-
nhar a evolução da ciência. Sem a razão que a Doutrina mental obra, capaz de trazer orientações para nossas esco-
tanto enfatiza, poderemos incorrer na crença do milagre, lhas. Que cada um se esforce o máximo, consultando o seu
dos dogmas, caindo no lugar-comum, característica de tan- bom senso com a sinceridade e a verdade necessárias para
tas outras religiões, infelizmente... obter a resposta! Infelizmente não posso ir além disso para
Em total acordo com o amigo, Marcos acrescentou: melhor esclarecê-los, meus amigos! Uma coisa é o ideal, ou
— Aliás, foi o critério racional adotado por Kardec na seja, que toda pessoa, espírita ou não, estivesse preparada
pesquisa dos fenômenos das mesas girantes, que se tor- para doar seus órgãos, de perdoar o seu ofensor, de amar
naram célebres na sociedade francesa do seu tempo, que verdadeiramente o semelhante, de renunciar, de amar sem
atraiu a atenção de cientistas destacados, entre eles Charles restrições. Mas esse ideal não é a realidade do momento
Richet, ganhador do Prêmio Nobel. Tem sido comum, em presente de nossa faixa evolutiva.
companheiros do ideal espírita, o comportamento pelo co- Therezinha, a esposa, e o casal ouviam, atentamente.
ração, excluindo a utilização do conhecimento! E Alfredo arrematou:
— Recomendável é que a emoção esteja acompanha- — Evidentemente, estou expressando a minha opi-
da sempre pela razão que nos proporcionará o meio-termo nião sincera sobre o assunto. Tenho a certeza absoluta que
muitos já possuem convicção plena de que a doação é um da doação, mas sim, enfatizar a necessidade do exercício
bem e que devem fazê-la, o que é uma decisão admirá- do raciocínio da nossa fé que é capaz de acompanhar a
vel e abençoada. Rogo a Deus para que todos nós, um dia, evolução da ciência.
possamos também ter essa mesma firmeza e assim benefi- Pensativa, Clara buscava em pensamento a Daniel.
ciar a tantos irmãos enfermos na carne. Retorno ao enfoque Estaria o Espírito ainda vinculado ao corpo? Antes que
de que o ideal que deveremos atingir é um estágio ainda fizesse a pergunta, o dirigente convidou a todos a refletir
distante de cada um de nós. Deveríamos verdadeiramen- mais uma vez.
te amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como — Vejamos mais uma vez O Livro dos Espíritos, na
a nós mesmos. Raríssimos, entretanto, poderão sentir-se questão 156. O Codificador é informado pelas entidades
cumpridores de tal atitude, não é mesmo? De tal forma espirituais de que “algumas vezes, na agonia, a alma já
que temos o direito de questionar, pensar, utilizando-nos deixou o corpo e não há mais que vida orgânica”. Quando
dos conhecimentos espíritas, sem contudo sufocar a razão isso ocorre, todas as repercussões sobre o corpo físico já
com a emoção embotada, vazia do direito de raciocinar. não mais se projetam no ser espiritual. Nesse caso, a doa-
Nossa fé caracteriza-se por ser raciocinada! Consultemos ção poderá ser feita com tranqüilidade.
o Psicólogo Maior de nossas almas em tão precário estágio — Sempre a lei do merecimento estará agindo, dando
evolutivo, e ele nos abrirá o coração e a mente para a deci- a cada um segundo as suas obras – observou Marcos.
são mais acertada. — O que não devemos fazer é nos elegermos juízes de
– Senhor Alfredo – perguntou Clara – a doação de ór- cada caso, porque somente Deus conhece a cota de mereci-
gãos sendo um ato de amor, não confere a proteção sufi- mento de que cada Espírito é portador, mobilizando-a em
ciente para que o doador não se ressinta de maneira ne- favor do seu detentor... – acrescentou Alfredo, de maneira
nhuma dessa atitude? conclusiva.
– É o que podemos concluir no atual estágio de conhe- Eram ponderações que, embora não apontassem um
cimento da Verdade em que estamos. Todas as lembranças caminho de forma direta, levantavam argumentos para
que fiz anteriormente, não foi no sentido de desestimulá- que Clara e Marcos pudessem melhor avaliar a sua decisão.
los em fazer a doação dos órgãos de Daniel, mas lembrar- O casal resolvera que pediria em oração, aos Espíritos
mos das várias citações, ensinamentos, que a Doutrina nos amigos, a intuição para que pudessem fazer o melhor pelo
oferece e do direito de raciocinar. Volto a insistir: o Espi- filho que se encontrava, ao que tudo indicava, para reali-
ritismo não é uma fé cega. Se cairmos nesse erro agindo zar o seu retorno à Pátria espiritual. Também solicitariam,
apenas com a emoção, ele caminhará para o mesmo fim caso surgissem dúvidas, mais esclarecimento ao médico
das outras religiões dogmáticas que conhecemos. Religiões para que a decisão que viessem a tomar beneficiasse ao fi-
essas que não conseguem convencer àqueles que dela se lho amado como Espírito imortal, e em processo de resgate
aproximam. O espírita tem muitas informações que devem como todos que jornadeiam pela Terra mergulhados em
ser lembradas no momento de decisões difíceis como essa suas dores. Não tomariam nenhuma decisão precipitada,
que enfrentam. Não foi nossa intenção demovê-los do ato nem a favor nem contra a doação. Tinham fé robusta, e ha-
veriam de ser intuídos nesse momento difícil pelos amigos

espirituais, com o consentimento da Providência Divina.
Fortalecidos intimamente, Marcos e Clara agradece-
ram a ajuda, e foram convidados pela amiga Therezinha a
fazerem juntos uma prece. Despediram-se, em seguida, de
forma comovida.*
Capítulo 13
Recordando o Evangelho
d
N aquela noite, após a conversa com Alfredo, o ca-

sal decidiu ir ao Centro Espírita para pedir aju-
da aos amigos espirituais quanto à decisão que teriam que
tomar em relação à doação de órgãos. Seguindo-se à prece
de abertura, O Evangelho Segundo o Espiritismo trouxe para
a reflexão de todos o capítulo V, que se refere às bem-aven-
turanças dos aflitos.
Após os comentários do companheiro encarregado
dessa tarefa, abriu-se espaço para alguma mensagem de
consolo por parte dos desencarnados. Uma Entidade ami-
ga, que não se identificou, manifestou-se através da me-
diunidade de um dos trabalhadores.
Queridos companheiros! Bem-aventurados os aflitos, disse

* Ver considerações sobre Morte Encefálica na Pg 195
o Mestre. Sabedores que somos das inúmeras existências que te-
mos tido no corpo, podemos entender as causas das aflições do rança e dos excessos de todo o gênero! Quantos pais são infelizes
momento presente. Sendo Deus soberanamente justo, há que ha- com seus filhos, porque não lhes combateram desde o princípio as
ver uma causa para tudo, como estabelece o axioma de que a todo más tendências!
efeito corresponde uma causa. Já meditaram em nossos irmãos Queridos companheiros, lembramos a sugestão contida no
de outras religiões que não dispõem de tal conhecimento ou não próprio Evangelho quando ele sugere: “Interroguem friamente
o aceitam? Como devem ser convidados ao desespero e à revolta suas consciências todos os que são feridos no coração pelas vi-
diante da dor sem motivo aparente nessa vida! cissitudes e decepções da vida; remontem passo a passo à origem
Pela abençoada missão de Allan Kardec foi possível à Espi- dos males que os torturam e verifiquem se, as mais das vezes, não
ritualidade superior, sob a supervisão do próprio Cristo, trazer poderão dizer: Se eu houvesse feito, ou deixado de fazer tal coisa,
explicações lógicas, não dogmáticas, para os sofrimentos do mo- não estaria em semelhante condição.”
mento presente e que não encontram causa, motivos, na atual Nada que fere a lei que define os direitos do outro passará
existência, o que levou milhares de pessoas à revolta e ao mate- impune diante do tribunal da própria consciência, muito menos
rialismo. De posse, contudo, das revelações espíritas, podemos nos casos de auto-agressão que resulta de um mecanismo de re-
entender de maneira raciocinada que, se alguém sofre sem rela- volta e falta de fé em Deus. Os tribunais humanos podem falhar
ção com o seu presente, está esse sofrimento vinculado ao acerto como conseqüência natural da própria falibilidade do ser huma-
de débitos passados ou a provas solicitadas pelo próprio sofredor no, mas jamais falharão as Leis de Deus instaladas na consciên-
como mecanismo de crescimento moral. cia de cada criatura!
Entretanto, mesmo o espírita, com todas as explicações de Não sendo dogmática, a Doutrina Espírita abre espaço para
que disponha, não fica isento do risco do momento do desespero, uma terceira explicação para os sofrimentos que nos visitam nos
em que pergunta a si mesmo, no interior de sua alma e no auge dias atuais: trata-se de provas solicitadas pelo próprio interessado
dos sofrimentos: Por quê? Por que, meu Deus? antes de sua reencarnação, como forma de conquistar as qualida-
A dúvida, entretanto, faz supor que o questionador esteja des que ainda lhe faltam. A resignação diante dos problemas, das
interpelando ou contestando a infalibilidade das Leis maiores. dores, caracteriza os Espíritos que se encontram nesse processo.
Se a dúvida ganha proporções e não é debelada com a presteza Na mente de alguns companheiros aqui presentes nesse mo-
necessária, poderá dar campo à revolta, que neutralizará a bem- mento, levanta-se a dúvida do porquê de pessoas, as quais, em-
aventurança anunciada por Jesus. bora levianas e egoístas, passam uma existência toda no mundo
Pedimos licença aos irmãos aqui presentes para lembrar li- sem conhecer grandes padecimentos. Esclarecemos a esses com-
teralmente algumas afirmativas contidas em O Evangelho Se- panheiros que se a colheita da sua semeadura não se der na vida
gundo o Espiritismo: presente, não se furtarão de realizá-la em existências futuras.
“Quantos homens caem por sua própria culpa! Quantos são O confrontamento com os próprios desatinos começa já, na sua
vítimas de sua imprevidência, de seu orgulho e de sua ambição! volta à dimensão dos desencarnados, quando serão direcionadas
Quantas uniões desgraçadas, porque resultaram de um cálculo para os locais que fizeram por merecer e que, posso garantir-lhes,
de interesse ou de vaidade e nas quais o coração não tomou parte não são nada agradáveis. Isto sem considerar a possibilidade do
alguma! Quantas doenças e enfermidades decorrem da intempe- reencontro com suas vítimas do passado e que não conseguiram
perdoá-los e cobrarão sem cessar o mal sofrido. Dessa maneira, citados por Jesus. Compreendo, graças aos abençoados
sentir-se-ão sob o fogo da cobrança interior oriunda da própria ensinamentos da Doutrina Espírita, que, por mais longos
consciência e sob o ataque exterior das antigas vítimas transfor- sejam os dias conturbados da existência física, eles terão
madas em duros verdugos na vida que nunca se encerra. um fim, tornando vencedores todos aqueles que souberam
Despedindo-me, convido a todos à luta e ao trabalho no bem, sofrer sem perder a fé, não se perdendo em atitudes deses-
que não nos permita descrer nunca das soberanas Leis da vida, peradoras como o suicídio.
adquirindo o direito de sermos incluídos nas bem-aventuranças — Na origem do suicídio está sempre a falta de fé, de
anunciadas por Jesus. confiança em Deus? – argumentou Fernando, que passara
a trabalhar no mesmo grupo de socorristas.
Marcos e Clara, dessa vez, não tinham mais dúvidas — Se procurarmos a raiz do problema, acabamos
de que aquelas palavras motivadas pelo trecho do Evan- por concluir que sim. Muitas vezes as aparências podem
gelho da noite tinha o objetivo de fortalecer-lhes o ânimo demonstrar o contrário, mas uma fé robusta sempre traz
diante de tudo que haviam passado e ainda, provavelmen- solução àquele que a possui, sem que essa pessoa sequer
te, haveriam de enfrentar. levante a hipótese do suicídio, por pior que seja a situa-
Enquanto isso, na dimensão espiritual, os alunos de ção. Dessa forma, o suicídio é tentativa vã de solucionar
Justiniano aproveitavam a experiência, com o respeito que os problemas, trazendo sem exceção em vez de solução,
a dor alheia deve receber, para esclarecer dúvidas surgidas agravamento considerável da situação do infeliz que a ele
após os comentários da noite. se entregou.
— Mentor, nosso mensageiro não dirigiu nenhuma pa- — Como é importante, Mentor, que a verdade da re-
lavra sobre a questão que mais aflige o casal no momento e encarnação seja o mais urgentemente possível entendida
que é a doação de órgãos... – observou Jorge, um dos rema- pela humanidade, não é? – aduziu Cíntia, também recém-
nescentes do grupo que participara do resgate de Daniel. admitida na equipe socorrista de Justiniano.
— Não se esqueçam de que o livre-arbítrio das criaturas — Sim! Ao entender em profundidade que somos es-
não é violado pela Providência Divina e muito menos pode- píritos imortais, que ora estagiamos em um corpo de carne
rá ser pelos desencarnados que reconhecem suas imperfei- e ora fora dele, mas sempre comprometidos com a vida e
ções e o quanto ainda têm a percorrer na estrada evolutiva! com o bem, o sofrimento de uma existência na Terra, com-
Nosso irmão dirigiu a atenção dos ouvintes para a necessi- parado à eternidade da qual somos herdeiros, diminuirá
dade da resignação diante dos sofrimentos, para que a rede tal maneira que permitirá aos sofredores adquirir as
volta não gere atitudes infelizes e de difícil resgate futuro! forças de que precisam para, não somente suportar os dias
— Como assim, mentor? – insistiu o caravaneiro. conturbados, mas também para agradecer por encontrá-los
— Aquele que enxerga no sofrimento ocasião para o em seu caminho!
devido acerto de contas com a própria consciência e a liber- — Como assim, agradecer, mentor? Dá a impressão
tação de débitos passados, encontrará resignação suficien- de que a pessoa em sofrimento deveria até mesmo sentir-
te para enfrentar os problemas como os bem-aventurados se feliz por encontrar-se em tal situação!... – argumentou
Cíntia. no banco, a casa luxuosa para a moradia transitória sobre a

— Quando adquirirem a fé suficiente, entenderão que Terra, a enfermidade do corpo e assim por diante. Esse é o
assim realmente se passa, porque, aquele que sofre com conceito de desgraça para os que enxergam apenas a exis-
resignação está quitando uma parcela da conta diante da tência atual como a única na qual buscam com desespero a
própria consciência, e quem pode pagar deve sentir-se feliz felicidade, de acordo com os padrões do mundo.
por aproximar-se da liberdade do Espírito redimido e livre Justiniano pediu ao companheiro que continuasse.
para gozar da felicidade e da paz sem limites. Se não está — Conforme ensina Delfina de Girardin, a verdadei-
pagando nada, com certeza está aprimorando qualidades ra desgraça é aquela que semeia o desastre para futuras
necessárias ao seu crescimento moral. existências onde cada um colherá da semeadura livremen-
— Muitas pessoas se revoltam por ver semelhantes te realizada. A tempestade, diz ela, que agita a atmosfera,
seus em atitudes desonestas por toda uma existência como que destrói, que devasta, é a mesma que purifica o ar que
se o mau comportamento não trouxesse nunca conseqüên- respiramos. Ousamos dizer de nossa parte que o grão de
cias para essas pessoas – comentou Fernando, que estuda- trigo submetido ao esmagamento que o destrói, transfor-
va, com Cíntia, os mecanismos das manifestaçõs mediúni- ma-se no pão que alimenta. O carvão sofrendo a ação pro-
cas no Apóstolos da Caridade. longada do tempo transforma-se no diamante bruto que
— A reencarnação coloca fim nesse sentimento porque deslumbra. A semente, sofrendo o apodrecimento no solo,
proporciona a certeza de que a colheita amarga de uma dá a vida à arvore que proporciona o fruto que alimenta.
vida anterior não deixará de ser realizada em existências A rocha fragmentada sob a ação da dinamite abre estradas
futuras! Quanto mais adiada for a dívida, maiores os juros para o progresso.
cobrados! De tal maneira que os que sofrem não devem Enquanto os encarnados deixavam o recinto, o grupo
se preocupar com aqueles que aparentemente estão sendo de Justiniano continuava os estudos da noite, na dimensão
bem sucedidos, agindo no mal. dos Espíritos. Otávio, um dos Mentores do Centro, conti-
Ao lado de Justiniano, Otávio, que houvera transmi- nuou suas ponderações.
tido mensagem aos encarnados, continuou comentando o — Delfina de Girardin contribuiu de maneira admi-
tema da noite, sobre as bem-aventuranças. rável para a Codificação do Espiritismo. Vejam a nota que
— Devemos nos lembrar da orientação de Delfina de transmitiu, em 1861, em Paris. Diz ela: “Esperai, vós que
Girardin, em O Evangelho Segundo o Espiritismo, do que seja chorais! Tremei, vós que rides, pois que o vosso corpo está
a desgraça real. São ensinamentos que deveríamos recor- satisfeito! A Deus não se engana; não se foge ao destino; e
dar em cada dia que surge em nossas vidas. Adaptando as provações, credoras mais impiedosas do que a matilha
para os nossos dias esses maravilhosos ensinamentos daque a miséria desencadeia, vos espreitam o repouso ilu-
dos por Delfina, podemos dizer que o homem tem como a sório para vos imergir de súbito na agonia da verdadeira
desgraça real a perda do emprego, a má aparência do cor- infelicidade, daquela que surpreende a alma amolentada
po em que está reencarnado, a impossibilidade de ter tudo pela indiferença e pelo egoísmo.”
o que deseja sob o ponto de vista material, o dinheiro farto — Podemos concluir, Otávio, que, para a maioria dos
Espíritos ainda resistentes à lei das vidas sucessivas, a jus- cimento do que fomos, do que fizemos de certo e de erra-
tiça das aflições se faz impossível? – ponderou Jorge. do, podendo assim compreender as razões bastante claras
— Se não admitimos que retornamos em outros corpos e absolutamente justas de nossos sofrimentos. Entretanto,
de matéria densa ao lado daqueles a quem ofendemos e o ser humano, por não reconhecer a própria pequenez e
que se transformaram em nossos credores, como entender a grandeza do Criador, julga-se no direito de exigir uma
a justiça de Deus que nunca falha? As bem-aventuranças prestação de contas da Providência Divina. Esse raciocí-
de Jesus se tornam lógicas e verídicas exatamente basean- nio demonstra a falta enorme de confiança na Justiça do
do-se em múltiplas existências em que aquele que deve, Pai. Se tivéssemos a fé, ainda que do tamanho do grão de
paga; e aquele, que se faz credor diante da Lei, recebe! mostarda, aceitaríamos sem questionamentos as agruras
— Entretanto, muitos argumentam que as bem-aven- da vida, certos de que alguma razão absolutamente justa
turanças de Jesus se referem ao paraíso eterno, para os bons, existe para tudo o que nos atinge! Se assim não fosse, Deus
e ao inferno sem fim, para os maus! – aduziu Fernando. não existiria, como muitos acabaram por concluir. Por falta
— Os irmãos nossos, quer estejam encarnados ou não, de esclarecimentos lógicos trazidos pela Doutrina Espírita,
que acreditam no paraíso como local de eterno repouso e preferiram crer na idéia do nada do que acreditar em um
no inferno como uma situação de sofrimento sem fim, como ser que fosse falível em sua Justiça!
conseguem explicar o céu onde não se faz nada quando o Citando Lacordaire, em O Evangelho Segundo o Espiri-
Mestre afirmou que o Pai trabalha sem cessar e, por isso tismo, continuou Otávio:
mesmo, ele assim procedia? Por que teríamos o direito à — Aqueles que são bem-aventurados pelas suas afli-
preguiça eterna, enquanto Deus e o Senhor Jesus traba- ções, são exatamente os que têm ocasião de provar sua fé,
lham em nosso favor? E tem mais: para aqueles que defen- sua firmeza, sua perseverança e sua submissão à vontade
dem a existência do inferno, onde Deus atiraria os filhos de Deus. Terão centuplicada a alegria que lhes falta na
Seus para todo o sempre, como explicariam o ensinamento Terra, porque depois do labor virá o repouso.
que devemos amar ao semelhante e perdoar sempre? Esta- — Mas, esse repouso não traz a idéia do paraíso sem
ria Deus, a Perfeição sem limites, dizendo aos Seus filhos fim? – argumentou Cíntia.
“façam o que eu digo, mas não façam o que eu faço”? É de — Quanto mais evolui o Espírito, mais atraído ao tra-
espantar um raciocínio desse tipo! balho estará, na Casa do Pai, que trabalha sem cessar, con-
— E a argumentação de que, se sofremos pelo mal forme as palavras do Cristo já citadas! O repouso não se
praticado em outras vidas, deveríamos lembrar-nos do que refere ao eterno nada fazer, mas a pausa necessária para
fizemos para poder aproveitar o sofrimento com toda a cla- o refazimento e reinício do trabalho. Essa pausa, quanto
reza possível? – questionou o mesmo Fernando. mais evoluído o ser espiritual, tanto mais curta, não haven-
— Esses irmãos nossos embutem nesse questionamen- do motivos justos para distorcer a realidade de acordo com
to a vaidade e o orgulho que lhes inundam o ser, julgando- as nossas conveniências.
se na situação de pedirem contas a Deus por antecipação, já — O Espírito desencarnado pode escolher as provas
que, após a morte do corpo, entraremos na posse do conhe- necessárias à sua expiação? – indagou um dos Espíritos
que havia assistido às exposições da noite no Apóstolos da companheiros de Doutrina Espírita, detendo-se para trocar
Caridade. algumas considerações finais com Alfredo, a quem haviam
— Pode participar da escolha, desde que disposto a pedido alguma orientação sobre doação de órgãos.
regenerar-se. Mesmo sendo devedor perante a Lei, o Es- — Pois é, Alfredo. Os Espíritos amigos não nos diri-
pírito poderá ser auxiliado em nossa dimensão na escolha giram nenhuma palavra quanto ao assunto específico da
das provas de que necessita para o seu progresso moral. doação dos órgãos de Daniel...
— E aqueles que teimam no mal, como são encami- — Como vocês bem sabem, os Espíritos, quanto mais
nhados de volta a um novo corpo? – argumentou outro evoluídos, entendem que os encarnados devem exercer o
companheiro, que viera em busca de contato com entes livre-arbítrio. Já pensaram o que seria do aluno que não
queridos. soubesse alguma questão da prova e fosse ensinado pela
— Esses não estão em condições de decidir. Simples- professora? A função do mestre é orientar e esclarecer dú-
mente porque não desejam recuperar-se diante da própria vidas durante as aulas, mas, no momento da prova, ele não
consciência. Dessa forma recebem a reencarnação compul- deve interferir, para apurar adequadamente o que o aluno
sória, malgrado a sua vontade, pelo seu próprio bem. aprendeu realmente.
— Se escolhemos as dificuldades pelas quais deve- Assim também procedem nossos amigos da Espiri-
mos passar para a nossa regeneração, porque não nos re- tualidade: enviam-nos ensinamentos, conselhos, orienta-
signamos diante do sofrimento? – inquiriu Fernando, mais ções durante os tempos de bonança para que, durante a
uma vez. tempestade, coloquemos em prática o que aprendemos.
— Porque, mais próximos do erro do que da virtu- Entretanto, devemos ser agradecidos pelos ensinamentos
de, mais interessados nas recompensas imediatas do que da noite sobre a resignação diante dos sofrimentos emba-
aguardá-las com a devida confiança para a vida espiritual, sados solidamente nos trechos de O Evangelho Segundo o
quando mergulhamos no corpo, queremos ser felizes no Espiritismo, que atendeu a todos os presentes, que, se não
curto espaço que medeia entre o berço e o túmulo, chegan- sofrem hoje, poderão ser os necessitados de amanhã!
do muitos irmãos nossos a afirmar que a vida é uma só e, Qual o encarnado que possui um salvo-conduto con-
por isso, precisa ser aproveitada! Diante desse raciocínio tra o sofrimento, não é mesmo? De tal forma que, se os
materialista, o sofrimento transforma-se em causa de de- amigos espirituais não esclareceram a dúvida específica de
sespero e desatinos sem fim, agendando mais sofrimentos vocês, falaram a todos nós que peregrinamos na escola da
e dificuldades para o reerguimento do ser. Terra. Aqui ressarcimos dívidas assumidas diante da pró-
Aproveitando a pausa, Justiniano interveio no diálogo pria consciência ou aprendemos com provas destinadas a
para agradecer a Otávio a oportunidade de acompanhar as ensinar-nos o muito que ainda precisamos aprender!
atividades no grupo espírita. — Mas, continuaremos a pedir em nossas orações por
Os trabalhos estavam encerrados no Apóstolos da Ca- algum auxílio quanto à questão da doação que reputamos
ridade. Justiniano e os caravaneiros afastaram-se. Enquanto de enorme responsabilidade perante o Espírito de Daniel...
isso, Marcos e Clara recebiam palavras de bom ânimo dos – acrescentou Clara.
— Não só vocês. Podem ter a certeza que todos os ami-

gos aqui do Centro também rogamos a Deus a orientação
possível por meio dos Espíritos amigos para que possam
tomar a decisão melhor para os três. E temos muita fé que
esse auxílio não faltará dentro do respeito ao livre-arbítrio
de todos.
— Acreditamos também dessa mesma forma, Alfredo
– completou Marcos, despedindo-se. Dali, o casal retorna-
ria ao Hospital, para visitar o filho na Unidade de Terapia Capítulo 14
Intensiva.
O trabalho continua
d
C lara e Marcos fizeram as suas orações antes de en-

tregarem o corpo ao possível repouso. A esposa
beijou afetuosamente o marido, tendo sido correspondida
com igual carinho. Então, falou:
— Como gostaria de sonhar com a tia Dora novamen-
te, Marcos! Como seria bom se ela pudesse dizer-nos algu-
mas palavras de consolo como já aconteceu antes...
— Assim será, meu bem, caso tenhamos os méritos
para isso. Nada podemos exigir, como sabemos, a não ser
aguardar com resignação e confiança na Providência Divi-
na.
Cansados pelos impactos dos últimos acontecimentos,
adormeceram rapidamente. O casal, em espírito, foi afas-
tado do corpo material adormecido pesadamente. Ambos
foram conduzidos para região espiritual adredemente pre-
parada para recebê-los. Marcos mantinha-se com a sensa- — Quando Deus coloca sobre nossos ombros determi-
ção de estar vivenciando um sonho que pouco compreen- nada cruz é por saber-nos capazes de carregá-la! Os Espíri-
dia, enquanto Clara via-se, com relativa consciência, na tos amigos, por mais que amem aqueles que estão na carne,
presença de tia Dora novamente. não podem intervir sobre o livre-arbítrio de ninguém. En-
— Tia! Que bom revê-la! – disse a mãe de Daniel abra- tretanto, a Providência permitiu que me acompanhasse nas
çando-se a Dora e abrindo o coração dolorido pelos últi- visitas que farei a Daniel. Vou levá-la ao Recanto de Jesus,
mos acontecimentos. pronto-socorro desta dimensão, enquanto Daniel ainda se
— Estamos sempre juntas, meu bem, mercê da bon- demora no corpo, assistido em unidade de terapia inten-
dade de Deus! – disse a tia, abraçando a sobrinha como siva. Quero que veja o que se passa nas duas realidades
se um porto seguro se apresentasse ao navegador perdido da vida. Marcos permanecerá aqui, até que recomponha
durante muito tempo. as energias.
— Os que verdadeiramente se amam, jamais são se- Clara foi amparada por duas entidades que integra-
parados, minha filha. Nem a morte constitui barreira ca- vam o grupo à semelhança, na Terra, de dois enfermei-
paz disso. Temos acompanhado muito de perto todos os ros que apoiassem pelos braços um doente do plano físico,
acontecimentos e sentimo-nos felizes com sua atitude e a sendo transportada para um hospital localizado naquele
de Marcos. Quanto mais revigorarmos nossa confiança no plano vibratório. Adentraram o que parecia um Centro de
Pai, mais próximas estaremos auxiliando-nos reciproca- Terapia Intensiva e aproximaram-se de um leito onde um
mente no caminho evolutivo. Espírito adormecido recebia tratamento com recursos ca-
— É isso que temo, tia. Não ter forças para conti- racterísticos daquela dimensão.
nuar confiando, como deveria, na bondade e misericórdia Dora, procurando despertar mais a atenção de Clara,
de Deus – respondeu Clara, com olhos marejados. dirigiu-lhe a palavra:
— Tudo que o Pai espera de nós é que confiemos — Repare no paciente deste leito, minha filha.
n’Ele. E isso vocês têm feito. Momentos de vacilo, quem A moça procurou a face do enfermo e, espantada, bal-
não os terá? Pedro, o apóstolo, não teve o dele? Tomé não buciou amparando-se na entidade amiga daquela que lhe
precisou tocar Jesus? Zaqueu estava desorientado e não se fora tia na última reencarnação:
corrigiu? Maria de Magdala não modificou sua vida por — Mas, tia! Como é possível?! O que está acontecendo
amor ao Mestre? O próprio Judas não se recuperou perante afinal? É... é...
a própria consciência? Paulo de Tarso, de perseguidor não — Sim. É o nosso querido Daniel, que está abrigado
passou a um dos maiores divulgadores do Cristianismo? neste leito de hospital, graças à Misericórdia Divina, já que
Pois então! Que dirá de nós outros? o processo de desencarne no caso dele é inevitável.
— A situação de Daniel complicou-se muito, tia. Se- — Quer dizer, então que...
gundo os médicos, ele não tem mais qualquer chance de — Quer dizer, Clara, que se confiássemos mais em
continuar no corpo. Estamos agora decidindo quanto à re- Deus jamais veríamos a ninguém em desamparo por mais
tirada dos órgãos... Que tem a nos dizer? dolorosa fosse a situação da pessoa. Quando estamos na
carne, raciocinamos que somente naquela dimensão estão provas que enfrentou, submetido ao insulamento mental
sendo tomadas as providências necessárias em cada caso. levado pelo autismo, as preces, representam agora créditos
Desconhecemos ou duvidamos da extensão da Misericór- a seu favor. E tem mais que você não sabe: durante o sono
dia de Deus que, sem ferir o princípio de justiça, trabalha do corpo físico, Daniel foi trazido para local apropriado de
sem cessar. No caso de Daniel, enquanto os recursos da nossa dimensão muitas vezes, para que pudesse conhecer
Terra se encerram, as possibilidades encontradas neste pla- o Evangelho de Jesus, desenvolver noções sobre Deus, a
no da vida continuam a ser utilizadas no bem. vida e tudo quanto temos aprendido nos grupamentos es-
— Mas a senhora não acabou de dizer que o processo píritas na Terra...
de desencarne dele é inevitável? — Quer dizer, então, que todas as vezes que procurei
— Disse. Mas referi-me ao corpo físico e não ao ser levar Daniel à evangelização, as aulas eram complementa-
imortal, que está sempre amparado pelos recursos possí- das neste plano vibratório?
veis e de acordo com o mérito de cada um e auxiliado por — E por que não? Aqui também trabalhamos, pelo
aqueles que por ele rogam! O corpo de Daniel despede-se menos aqueles que assim desejam. Serviço nunca falta, mas
do mundo, o que não significa que o ser espiritual despe- sim trabalhadores. Por isso mesmo, mantemos os evange-
de-se da vida! lizadores com muito trabalho deste lado, dividindo nossas
— Tia, e esse cordão que parte da região do crânio? turmas como fazem na Terra.
Para onde estará se dirigindo e por que o desencarne ainda — Meu Deus! Não sabemos quase nada do que se pas-
não se consumou? Este é o cordão denominado fluídico? sa aqui!
— Os enfermeiros e médicos que você vê movimen- — Quando na carne, esquecemos que a definitiva e
tarem-se neste local fazem parte da equipe encarregada de eterna morada é a espiritual e não o plano físico. Como per-
preparar o retorno de Daniel, desenganado pelos médicos demos o contato com a dimensão dos Espíritos, passamos
da Terra – redargüiu Dora, falando com ternura. – En- a viver segundo os valores e condições do mundo. Ape-
quanto o corpo está na UTI, o envoltório do Espírito, que nas os Espíritos muito evoluídos mantêm, norteando-lhes
chamamos perispírito, está sendo tratado aqui. E não há a vida, os valores da dimensão dos desencarnados. Mas aí
motivo para espanto, se entendemos a amplitude da Mise- está diante dos seus olhos a realidade da Misericórdia de
ricórdia de Deus – ponderou com bondade aquela que, em Deus: enquanto na Terra a medicina encerra os seus recur-
existência anterior, houvera sido mãe de Daniel. sos para o caso Daniel, intensifica-se por aqui o socorro da
— Que coisa maravilhosa! Ah! Como a nossa pouca espiritualidade amiga. Assim que chegar a hora determi-
fé nos faz sofrer tanto no mundo! E sempre se passa assim, nada pela Providência Divina, os amigos encarregados da
tia? operação de desligamento dos últimos laços entre o peris-
— A Lei anunciada por Jesus, pela qual a cada um é pírito e o corpo físico executarão a tarefa que estão prepa-
dado segundo suas obras, não pode ser desrespeitada. No rando desde que Daniel entrou em coma.
caso de Daniel, Espírito extremamente endividado, graças — Nas mortes violentas não há tempo para esse pre-
ao trabalho de pais amorosos não reincidiu no suicídio. As paro...
— Não. A menos que a vítima entre em coma, por al- daram no mesmo momento, entreolhando-se espantados.
guns dias. Daí, os desencarnes súbitos, aos quais costu- Foi Clara quem falou:
mam chamar “morte bonita”, não fornecem tempo a esse — Marcos, sonhei de novo com tia Dora... Vi-me num
preparo de desvinculação, como você está observando local diferente, do qual não consigo lembrar os detalhes.
aqui. Guardei apenas palavras de bom ânimo e coisas que pre-
— Tia, tremo só de pensar o que deverá ocorrer no senciei, as quais muito me consolaram. Como gostaria que
caso do suicídio! estivesse lá comigo!
— Essa atitude lamentável do ser é o desastre total, — Também estou me sentindo fortalecido. Embora
porque, além de ser uma morte repentina, na maioria das não lembre de coisa alguma, guardo a impressão de que
vezes é uma morte que representa um protesto contra os minhas forças foram renovadas. Tentemos descansar um
desígnios de Deus! O suicídio é um grito inútil e injusto de pouco mais. Pela manhã, veremos o neurologista. O dou-
revolta contra a Providência Divina, lançando o ser espiri- tor Fonseca tem sido muito atencioso conosco, desde que
tual em sofrimentos morais e, de certa forma, até mesmo passou a cuidar do nosso Daniel.
físicos, porque impede a atuação da equipe de socorro, que
normalmente se apresenta para romper em definitivo os
laços vibratórios entre o cadáver e o Espírito. Esse impedi-
mento permanece ligando o ser desencarnado aos despojos
materiais, dependendo evidentemente das atenuantes de
cada caso em si e que somente Deus e os Espíritos de ele-
vada evolução conhecem.
— Nas obras espíritas temos estudado casos assim.
— Só não devemos nos esquecer nunca que não cabe
aos encarnados julgar o suicida, exatamente por não co-
nhecer as atenuantes que a Providência utilizará em favor
de cada caso. Devemos, isso sim, orar por eles.
— Tia Dora, quer dizer então que nosso Daniel está
amparado graças à Misericórdia de Deus, não é?
— Sim, minha filha. Embora não venha a se lembrar
muito de tudo quanto viu e ouviu no estado de emancipa-
ção do corpo, guardará com certeza as impressões que hão
de guiá-la às boas resoluções. Deus a abençoe, Clara!
O ser espiritual da jovem mergulhou como num túnel
em que ela descia vertiginosamente em direção ao corpo
adormecido. Em segundos, ambos, marido e mulher, acor-
Capítulo 15
O Regresso de Daniel
d
O casal dirigiu-se para o hospital assim que o dia

amanheceu para obter notícias sobre Daniel e to-
mar a decisão. Estavam os cônjuges mais calmos e resigna-
dos do que nos dias anteriores, com uma sensação, que não
sabiam de onde vinha, de missão cumprida perante o filho
desenganado pela medicina da Terra.
Tanto sofrimento, tantos momentos de dores inten-
sas haviam aproximado o casal. Abraçados no salão de
espera, Marcos e Clara aguardavam o chamado do doutor
Fonseca, que acompanhava a evolução do quadro de Da-
niel. Eram 8 horas da manhã quando o médico atravessou
a porta de entrada da UTI.
Marcos e a esposa, desde o diálogo que haviam tido
na madrugada, após despertarem sob o impacto das emo-
ções vividas no mundo dos Espíritos, guardavam consigo
um sentimento de serenidade. Diante do médico, que es- Marcos permanecia ao lado, tomado de emoção. Perce-
perava a decisão do casal, Clara, após dirigir um olhar ao beu quando a esposa delicadamente retirou da bolsa um
esposo, respondeu: exemplar de O Evangelho Segundo o Espiritismo. Abriu-o em
— Concordamos, doutor. Assinaremos os papéis ne- determinada página, já demarcada, e iniciou a leitura da
cessários à doação dos órgãos que puderem ser aproveita- mensagem ditada em 1863, pelo Espírito Sanson, antigo
dos para salvar outras vidas através do nosso filho. membro da Sociedade Espírita de Paris.
Havia muita paz na resposta, muita resignação, fru-
to da confiança na Providência Divina que aquela decisão “Quando a morte vem ceifar em vossas famílias, levando
haveria de redundar em benefícios na dimensão espiri- sem distinção jovens antes de velhos, muitas vezes dizeis: Deus
tual para o filho que partia. Ao dar o consentimento, Clara não é justo, já que sacrifica o que é forte e pleno de futuro pra
sentiu-se mais fortemente abraçada pelo marido que, nesse conservar os que viveram longos anos cheios de decepções; já que
gesto, dava-lhe segurança e apoio. leva os que são úteis, e deixa os que não servem mais para nada; já
— Agradeço em nome dos futuros beneficiados. Pos- que parte o coração de uma mãe, privando-a da inocente criatura
so imaginar como deve ter sido difícil chegarem a essa de- que fazia toda sua alegria.
cisão, mas, se isso pode dar algum consolo a vocês, que- Regozijai-vos, em lugar de vos lamentar, quando apraz a
ro dizer que alguns pacientes, que aguardam cirurgia de Deus retirar um de Seus filhos deste vale de misérias. Não há
transplante de órgãos, terão qualidade de vida superior à egoísmo em querer que ele aí restasse, para sofrer convosco? Ah!
que têm agora, graças à atitude altruísta que acabam de essa dor se concebe naquele que não tem fé, e que vê na morte uma
tomar. Aliás, diga-se de passagem, são poucos os que se separação eterna. Mas vós, espíritas, vós sabeis que a alma vive
dispõem a tomar uma resolução como esta. Por falta de mais bem desembaraçada de seu envoltório corporal.
doadores, muitos acabam perecendo... Mães, sabeis que vossos filhos bem-amados estão perto de
O facultativo abraçou o casal, em sinal de agradeci- vós. Sim, estão todos perto. Seus corpos fluídicos cercam-vos,
mento e solidariedade. seus pensamentos protegem-vos, vossa lembrança embriaga-os
— Iremos iniciar as providências para que a doação de alegria; mas também vossas dores despropositadas os afligem,
seja efetivada, após a autorização por escrito dos senho- porque denotam uma falta de fé, e são uma revolta contra a von-
res. Agradeço mais uma vez – falou o médico, enternecido, tade de Deus.
com um sorriso contido. Vós que compreendeis a vida espiritual, escutai as pulsa-
— Doutor – disse Clara. – Podemos fazer uma prece ções de vosso coração chamando esses entes bem-amados. E se
junto ao leito de nosso filho? rogardes a Deus para abençoá-los, sentireis em vós essa poderosa
— Estarei autorizando agora mesmo, senhora! consolação que seca as lágrimas; essas aspirações maravilhosas
Adentrando a sala, Clara contemplou a imagem de que vos mostrarão o futuro prometido pelo soberano Senhor.”
Daniel ligado a aparelhos e soro. A cena parecia-lhe fami-
liar. Mas não conseguia lembrar-se onde a teria presencia- Clara fechou o livro e contemplou a face do marido.
do. Num lance, recordou o sonho daquela noite. Era isso! Com os olhos marejados, mas de coração confiante na Pro-
vidência Divina, ambos curvaram-se sobre o filho, beijan- leito da Terra, ela funciona como um médium que fornece
do-o na região frontal e afagando sua cabeça e os cabelos recursos, os quais somados aos da espiritualidade, traba-
em desalinho. lham no sentido de restaurar o corpo físico associados às
Como todas as vibrações de amor são aproveitadas medicações da medicina dos homens. A Lei de amor fun-
pelos Espíritos amigos, Clara e o marido não podiam ver ciona sempre utilizando as vibrações positivas para resul-
com os olhos materiais o socorro dispensado pela equipe tados construtivos.
que trabalhava no processo de desencarne de Daniel. Os Gildo, interessado no fenômeno presenciado, fez
médicos do Espaço usavam a energia liberada pelos pais, curiosa observação:
que oravam junto ao leito, resignados. O amor paternal era — Verificamos que, enquanto os pais oravam e acari-
convertido em luz, de que se utilizavam os socorristas para ciavam a fronte do filho, com profunda ternura, despren-
desatar em definitivo os laços que ainda se ligavam ao pediam-se de seus corpos determinadas substâncias que ti-
rispírito. nham o efeito de um rastelo a recolher folhas em um certo
Com efeito, parte dessa energia, provinda do amor as- gramado. E esse efeito, que lembra o ato de rastelar, co-
sociado com a resignação, era transportada a outro leito de meçou pelos pés e percorreu todo o corpo de Daniel, até a
hospital, na esfera espiritual. Ali o corpo perispiritual de região frontal. Por que esse caminho, essa rota?
Daniel era beneficiado por essa energia, que, modificada, — Os irmãos encarregados do processo do desencarne
era aproveitada como medicação tranqüilizante, como se recolhem as últimas energias localizadas nos membros in-
Daniel estivesse sendo preparado para uma cirurgia. Ou- feriores, parte inferior do abdômen e tórax, acumulando-as
tra porção era utilizada para fortalecer os procedimentos na região frontal, para concentrá-las na epífise ou glândula
de rompimento do cordão fluídico, atuando sobre o corpo pineal, que seria a ponte entre o mundo espiritual e o plano
espiritual. físico. Dessa forma, nos instantes da ruptura final do elo
Justiniano, presente junto a Clara e Marcos, acompa- ainda existente entre o perispírito e o corpo carnal, agem
nhava em silêncio todo o processo, fazendo breves comen- somente nessa região, concentrando aí os esforços e ener-
tários para esclarecimento do grupo de caravaneiros. As gias para romper o vínculo que prende o desencarnante à
perguntas não tardaram em surgir. Jorge foi o primeiro: matéria.
— Mentor, na medida em que os pais confiantes na — Por isso é que se costuma dizer, na Terra, que o
misericórdia de Deus fazem suas orações ao lado do corpo moribundo começa a esfriar dos pés para a cabeça no pro-
condenado de Daniel, vemos as vibrações serem aplicadas cesso de morte? – observou Gildo, em tom bem-humorado.
no sentido de romper os laços que o prendem à matéria. — Na medida em que se recolhe a energia restante
Em situações em que o desencarne não está previsto, essas dessa região para o cérebro, como explicamos, é natural
energias oriundas do amor e da resignação atuam no senti- que haja esse processo de esfriamento do corpo, que já não
do de auxiliar na restauração do corpo também? tem condições de sobreviver – respondeu Justiniano.
— Sem nenhuma dúvida. Quando a mãe vela à ca- O mesmo Gildo comentou, intrigado:
beceira do filho que se agita com febre ou com dores no — Se esse procedimento todo é necessário, fico a pen-
sar no que deve ocorrer nos casos de morte violenta ou nunca do socorro celestial, porque não podemos avaliar
súbita. Imagino a complexidade do trabalho dos Espíritos ainda a extensão da bondade de Deus.
para que esse processo seja desencadeado! – quis saber Al- No Recanto de Jesus onde Daniel em Espírito estava
berto, pouco experiente. sendo socorrido, Dora acompanhava todo o processo de
— Nessas situações entra em cena o processo de mere- desligamento. Confiante na Providência, via com alegria
cimento de cada um que passa a permitir ou não o trabalho o triunfo relativo de Daniel, já que, dessa vez, não se con-
mais ou menos rápido das equipes espirituais de socorro! sumara o suicídio. Tinha no coração uma gratidão muito
Se a vida do desencarnado repentinamente ou violenta- grande por Clara e Marcos que haviam acolhido aquele
mente, foi uma vida espiritualizada, os laços que o pren- Espírito em prova e o ajudado a dar um passo adiante no
dem à vida física são menos fortes e mais facilmente serão caminho evolutivo.
rompidos. Mais importante do que a rapidez ou a violência Daniel quebrara as seqüências de desencarne pela via
da morte é o mérito angariado durante toda uma existên- do suicídio, abrindo maiores possibilidades de ser auxilia-
cia. Se irmãos nossos na carne sofrem um desencarne atra- do e corresponder positivamente a esse auxílio tanto no
vés de um infarto ou acidente, que são processos agudos seu retorno ao mundo espiritual como em novas reencar-
no fenômeno físico, entrará em jogo a vida que tiveram nações, onde as conseqüências negativas persistiriam, em-
no sentido espiritual da jornada na Terra. Poderão ter o bora de forma mais atenuada. Rogaria ao Pai o seu próprio
mérito necessário de serem desligados rapidamente pelos retorno à carne para amparar em sua volta o Espírito de
Espíritos socorristas. Daniel.
Justiniano, observando o interesse do aprendiz, conti- Marcos e a esposa retiraram-se abraçados da unidade
nuou, exemplificando: de tratamento intensivo, agradecendo todo o esforço reali-
— O contrário também é verdadeiro. Quando ocorre zado pelas equipes de enfermagem e médica, que, até en-
o processo de desvinculação em encarnados que tiveram tão, haviam lutado com todas as armas possíveis. Dali para
uma vida profundamente dedicada aos valores do mun- frente, o ser espiritual que receberam como filho iniciava
do, o trabalho de liberação é mais lento. A Lei, que rege a seu processo de retorno ao mundo espiritual entregue ao
tudo, não pode e não é violentada jamais, dando a cada um socorro das entidades amigas.
segundo os seus méritos! Existe coisa mais justa e mais de O casal deixou o hospital para as providências neces-
acordo com a justiça de Deus? sárias ao sepultamento do corpo de Daniel. Resolveram
— Diante da sua justiça, que é perfeita, como fica a passar, antes, na casa de Alfredo, para que soubesse da re-
Misericórdia do Pai? Ela não é prejudicada ou anulada? solução tomada. Foram recebidos com o abraço e o sorriso
– questionou Jorge, que acompanhava o caso Daniel desde costumeiros, ao mesmo tempo em que se acomodavam na
o resgate no Vale dos Suicidas. sala do visitado.
— A justiça divina respeita o espaço da misericórdia — Decidimos pela doação dos órgãos de Daniel, con-
num processo que não temos ainda o conhecimento sufi- fiando que esse ato final poderá beneficiar outros pacientes
ciente da Divindade para compreender. Não duvidemos como também ao nosso filho em espírito, senhor Alfredo.
– disse Clara. vosso aprimoramento moral. Pensai n’Aquela que teve sua alma
— Se isso foi ditado pelo coração de vocês, após o recortada de martírios, lacerada de sofrimentos, atormentada de
exame da razão, tenho a certeza de que tal atitude só trará angústias. Ela se desvela do céu por todas aquelas almas que
benefícios a todos. E, se me permitem, queria lembrá-los de escolheram suas pegadas de Mãe amorosa e compassiva.
uma mensagem enviada pelo Espírito Maria João de Deus, Foi ela que, escutando a oração de vossa fé, me enviou para
aquela que foi mãe do missionário Chico Xavier, dirigida a que eu vos desse as flores de seu amor sacrossanto, portadoras da
todos os que estão envolvidos pelo sofrimento. Essa men- paz, da humildade e, sobretudo, da paciência; porque acaso não
sagem, no caso do nosso Daniel, adquire um caráter espe- existe e tudo na vida obedece a uma lei inteligente de causalidade
cial, porque sabemos que Maria, mãe de Jesus, dirige um que foge aos vossos olhos, que se sentem impossibilitados de ver
grupo destinado ao socorro aos desencarnados através do toda a verdade:
suicídio, auxiliada pela figura honorável de Celina. Tomai minhas mãos! Cumpri austeramente todos os vossos
Dirigindo-se à estante abarrotada com centenas de deveres, fechai os vossos olhos àquilo que pode obstar vossos pas-
obras espíritas, Alfredo localizou, sem dificuldade, o livro sos para a luz e caminhai comigo. Os anos são minúsculas frações
referido. de tempo e, um dia, sem vos deterdes com o cansaço, chegareis ao
— Essa mensagem nos toca porque o próprio Chico pé d’Aquela que é vossa Mãe desvelada de todos os instantes!...
a psicografou. Vamos lê-la na íntegra em forma de nossa E todas aquelas que a ouvem, sentem-se sustentadas por
prece pelo Espírito de Daniel, para que seja auxiliado pelo braços tutelares, na noite escura das dores, e, vertendo lágrimas
Amor e pela Misericórdia Divina através dos mensageiros amargosas, preparam-se e se iluminam na pedregosa senda da
que, em nome d’Ele, nos socorrem de forma incansável virtude para respirar os ares felizes do encantado país onde desa-
– falou Alfredo, iniciando a leitura: brocham os lírios maravilhosos da esperança!”
“Quando elevamos ao céu nosso olhar suplicante, há para Enquanto lia contritamente a mensagem de consolo
todos nós, os que se afligem na provação, uma carinhosa e compara qualquer sofredor, Alfredo mentalizava, sem nada
passiva Mãe que nos ampara e consola. Compadece-se de nossa dizer a Clara e Marcos, a figura de Daniel, cujo corpo era
dor, contempla-nos com misericórdia e manda-nos então o anjo conduzido para a retirada dos órgãos. Na sala cirúrgica em
da sua bondade, para balsamizar nossos padecimentos... É Celi- que o fato ocorria, na medida em que a prece era proferi-
na, a suave mensageira da Virgem, a Mãe de todas as Mães, o da com intensa emoção, uma luminosidade cada vez mais
gênio tutelar da humanidade sofredora... intensa, invisível aos encarnados, se fazia presente, derra-
Quando o pranto aflora nos olhos das que são filhas e irmãs, mando-se no ambiente como microscópicas flores intensa-
das que são esposas e mães na Terra, no coração das quais, mui- mente perfumadas.
tas vezes, se concentra a amargura, vem Celina e toma-as nos A energia canalizada facilitava o trabalho da equi-
seus braços de névoa resplandecente e, através dos ouvidos da pe espiritual que atuava no desligamento do Espírito de
consciência, lhes diz com brandura: Veio a dor bater à vossa por- Daniel. Os órgãos eram extraídos – fígado, coração, rins,
ta? Coragem... Não desanimeis nas ásperas lutas que objetivam córneas... – sem impor ao corpo perispiritual qualquer re-
percussão. Aos ouvidos sintonizados com as esferas mais permitirem serão revertidas em favor do doador. Entretan-
elevadas, era possível escutar música divina que inundava to, criar regras diante do tão pouco que sabemos caindo
de paz todo o ambiente. num raciocínio meramente emocional que exclui o uso
Nesse instante, Daniel, Espírito, esboçou ligeiro movi- da razão, não devemos. Foi isso que o irmão Alfredo quis
mento no leito de recuperação, e suas feições, envolvidas lembrar quando citou aos pais de Daniel as várias opiniões
no sono reparador, começaram a demonstrar sinais de alí- que os Espíritos Superiores deixaram aos encarnados nas
vio e paz. O desencarne estava consumado, mercê da mise- diversas páginas psicografadas. A fé, principalmente a do
ricórdia da Providência Divina! espírita, deve ser raciocinada. Para que assim seja, ele pre-
Marcos e Clara tinham os olhos marejados. Alfredo cisa recordar, nos momentos das decisões graves, de todo
abraçou aos dois, beijando-os paternalmente na fronte, e os ensinamentos de que dispõe. Se a fé for exercida ape-
aquele ato de amor desinteressado permitiu que fossem nas com a emoção, sem o uso da razão, corre o risco de se
injetadas no casal energias revigorantes de que necessita- impregnar de dogmas que representarão a morte dessa fé.
riam para o encerramento das tarefas junto a Daniel. Breve Enquanto isso, Dora acolhia de maneira definitiva o
estariam tomando as providências necessárias ao sepulta- Espírito daquele que lhe fora filho, em existência anterior,
mento do corpo físico do filho. desligado completamente dos laços físicos. Ao mesmo
Os pupilos de Justiniano presentes na sala de cirurgia tempo, esse último podia aninhar-se no imenso carinho
onde se verificava a retirada dos órgãos, aproveitaram a daquela que lhe fora mãe na Terra, como a ave que retorna
oportunidade para esclarecer dúvidas que o momento pro- ao ninho acolhedor após penosa e exaustiva viagem.
porcionava. Os caravaneiros abraçaram-se, juntamente com Justi-
— Mentor, essa maravilha nascida de regiões espiri- niano, e elevaram suas preces em agradecimento ao Pai.
tuais mais elevadas que estamos presenciando como mi- Mariana, Alcindo, Gildo e Júlia tinham uma razão a mais
croscópica chuva de flores e a música longínqua, são pos- para agradecer. Deveriam participar juntos de mais uma
sibilitadas por quais motivos? – interrogou Júlia, que fora missão de resgate. Jorge também estava ansioso para trans-
chamada, assim como Mariana e Alcindo, para acompa- mitir aos encarnados a experiência que acompanhara ao
nhar o desencarne de Daniel. lado de Justiniano.
— Nesse momento, preces ardentes oriundas de al- — Gostaria de submeter estes escritos à apreciação
gum local abrem campo para que o Amor trabalhe sem as dos nossos Maiores – falou Jorge, esperançoso. – Creio que
barreiras do orgulho, da vaidade e do egoísmo, três grandes serão de utilidade aos irmãos na Terra, como subsídios nos
obstáculos para o serviço do bem – esclareceu o benfeitor. estudos doutrinários...
— E sempre se passa assim na doação de órgãos? – — Consultemos o irmão Otávio. Talvez ele possa aju-
continuou Júlia. dá-lo a ditar essas páginas à Terra por meio de um dos
– Como fixar regras se mal compreendemos as Leis médiuns do Apóstolos da Caridade – sugeriu o instrutor,
Maiores que regem a vida? Podemos raciocinar que todo enchendo de entusiasmo o coração do servidor.
recurso que o mérito de cada um e a misericórdia de Deus — Deus permita, caro Justiniano. Afinal, tudo o que
mais desejamos é que o suicídio seja banido da humanida-

de, assim como toda forma de violência – agradeceu Jorge,
contente.
Capítulo 16
A vida que não cessa

d
O s fatos que se seguiram ao desencarne de Daniel

comprovaram a resignação e a fé de Clara e Mar-
cos nos desígnios maiores da Vida.
A ausência daquele ser problemático, devido às con-
seqüências da Lei de semeadura e colheita, deixava sauda-
de e a confiança no fato de que a vida não cessa, estando
Daniel a viver na dimensão dos Espíritos amparado pelas
entidades amigas, entre as quais, tia Dora.
Após uma semana dos fatos consumados, a jovem so-
nhava novamente com o Espírito daquela que fora a sua tia
e que vinha consolá-la.
— Clara, minha filha, venho agradecer-lhe por tudo o
que fizeram por Daniel nessa sua última existência terre-
na. Nosso querido amigo está amparado dentro dos limites
dos princípios da justiça e da misericórdia de nosso Pai, em
situação sensivelmente melhor do que das outras vezes em A moça despertou no corpo físico em plena madru-
que conseguiu consumar o ato do suicídio. Espíritos dedi- gada com uma imensa sensação de bem-estar, embora de
cados trabalham sobre seu perispírito, inclusive com repa- olhos marejados. Julgou tratar-se de alguma lembrança
rações cirúrgicas características desta dimensão da vida. durante o sono do filho que desencarnara.
— Operação? Deste lado também, tia?! O tempo, indiferente às preocupações e anseios do ser
— Por que não, meu bem? Não há saltos na Natureza, humano, seguiu sua marcha matematicamente calculada. O
como bem nos ensina a Doutrina Espírita. Tudo segue uma desgaste do corpo físico de Clara e Marcos, paulatinamen-
seqüência para melhor. Se no mundo físico o corpo neces- te, foi se instalando, levando-os à faixa dos sexagenários.
sita da cirurgia da Terra em determinados casos, por que O casal de filhos deram-lhes quatro netos, todos do sexo
aqui o corpo do Espírito, que é o perispírito, se furtaria a masculino, que, se por um lado realizava plenamente o de-
tal recurso? Enquanto tivermos necessidade, pelas reper- sejo dos pais de terem filhos varões, por outro frustrava as
cussões negativas de nossos atos sobre nós mesmos den- mulheres, na esperança de terem, entre seus descendentes,
tro ou fora do corpo, poderemos necessitar dos recursos a figura graciosa de uma menina que viesse quebrar a roti-
cirúrgicos dos médicos da espiritualidade. Mas não procu- na das brincadeiras e comportamentos masculinos.
re entender e muito menos se preocupar, porque, embora A filha mais nova de Clara, Luciana, agora com 30
não compreendamos a maioria das coisas, Deus sempre anos de idade, sonhava receber uma menina que desse se-
determina a intervenção visando a nossa melhoria. Quero qüência à graciosidade das mulheres da família. De cabe-
dizer-lhe que estarei me dedicando a Daniel e a outros ir- los encanecidos pelo tempo, Clara ainda ostentava traços
mãos necessitados deste lado, por um ato da misericórdia da mulher formosa que fora. Sua fé na Providência Divi-
do Pai, que me deu esse trabalho abençoado, embora não na não fora abalada pelos acontecimentos do passado. Ao
tenha méritos para tanto! Dessa maneira vou quitando-me observar os netos à sua volta com os folguedos e atritos
também perante a própria consciência. próprios da idade, relembrava a figura de Daniel, que não
— Quer dizer, tia – disse Clara, entristecida –, que não pudera gozar desses momentos da vida. Por onde andaria
nos veremos mais? A senhora está se despedindo? esse Espírito que lhe fora tão querido? Já estaria freqüen-
— Jamais! Os que se amam verdadeiramente não se tando alguma escola no mundo dos Espíritos para fortale-
despedem, mas dizem um até-breve! Estaremos juntas em cer-se para novos entendimentos sobre a vida?
nossas intenções de promover o bem, em nossas orações, Confiava Clara que assim se passava. O relógio mar-
em nossos pensamentos. Talvez essa aparente separação cava uma hora após a refeição do almoço. Esse período da
seja mais breve do que esperamos, para a minha felicidade, tarde, desde o seu tempo de moça, trazia-lhe uma sensação
que tenho você e Marcos como filhos queridos da alma. de modorra, que a obrigava tirar um pequeno cochilo. Os
Que Jesus os ampare sempre em sua jornada evolutiva. meninos brincavam a uma pequena distância e apresenta-
Dito isso, a nobre senhora abraçou Clara ternamente, vam-se calmos em seus folguedos.
depositando-lhe na fronte um beijo impregnado das mais Clara lembrou-se, então, de tia Dora. Há quanto tem-
fortes vibrações de amor! po não sonhara mais com aquela figura adorável que tanto
a auxiliara nos momentos difíceis da existência, principal- amor demoradamente, sussurrando-lhe aos ouvidos:
mente durante os problemas vividos junto a Daniel. Era — Sempre estivemos e estaremos juntas, meu bem.
uma tarde de primavera e uma brisa discreta e delicada Mais do que você possa imaginar. Graças à bondade de
trazia a frágil fragrância das flores cultivadas naquele re- Deus. Responderei aquilo que posso, para aplacar a curio-
canto da casa, próximo da varanda onde ela estava recos- sidade natural porque são fruto do seu amor por mim e
tada comodamente numa cadeira confortável. Daniel.
Marcos adentrou o local e visualizou a esposa querida — Deixe-me ver! A senhora parece que remoçou tan-
de olhos fechados e com um discreto sorriso nos lábios. to! Está quase com ares de uma adolescente! Como a reco-
Sabedor que era das suas cochiladas após o almoço, apro- nheci?
ximou-se cuidadosamente e depositou-lhe um beijo sobre — Minha filha, o nosso corpo espiritual, o perispíri-
a fronte. Clara não percebeu, porque, adormecida, em Es- to, quando estamos desencarnadas, é de uma plasticidade
pírito contemplava os quatro meninos brincando tranqüi- que responde ao nosso comando mental. Posso imprimir
lamente. nele as diversas aparências que tive durante a última reen-
De repente, no meio deles, sem que ela soubesse ex- carnação na Terra.
plicar, visualizou a figura de uma menina mais nova de — Mas era uma menina linda que estava entre os me-
cabelos encaracolados, cujo tom castanho sob a luz do sol ninos que vi primeiro. Onde está ela? Fugiu quando a se-
dava-lhes o aspecto de uma cascata de luz. Virou-se para nhora chegou? Não consigo entender o que se passa!
ela e deixou perceber dois lindos olhos azuis. Ao sorrir, — Quando para um fim útil, a Providência Divina
seus lábios rosados abriam na face doce duas covinhas que permite essa ação sobre o ser perispiritual, modificando-o
a embelezavam ainda mais. na medida das necessidades.
Quem seria, de onde teria surgido? O corpo físico de — Mas modificação de onde? Como? No meio dos
Clara mexia-se discretamente na poltrona da varanda como meus netos estava uma linda menina, tia! Que significado
que sacudido pelas emoções do ser espiritual desdobrado isso poderia ter? O que está acontecendo? O que a senhora
e a contemplar aquelas cenas para as quais buscava expli- está tentando me explicar? Estou confusa, meu Deus!
cações. A menina começou a caminhar em direção a ela e, E como sobressaltada por não compreender o que pre-
na medida em que se aproximava, uma transformação nas senciava, Clara abalou-se em Espírito, fazendo com que
feições e na estatura foram dando a ela a aparência adulta seu corpo físico adormecido na modorra pós-prandial*
que finalmente levaram Clara a exclamar: sofresse uma agitação maior.
— Tia Dora! Que saudades da senhora! Meu Deus, há — Tia Dora, está ficando difícil, para mim, entender o
quanto tempo! Por onde andou? E Daniel, como está? que a senhora está querendo dizer-me, se é que está tentan-
Como se quisesse engolir o tempo, retroagindo nos do dizer alguma coisa.
dias e anos em busca das respostas que a acompanhavam — Estou demonstrando a você, meu bem, a vida que
durante todos aqueles anos após o desencarne do filho,
Clara correu em direção da tia. Dora abraçou-a com muito * modorra: sonolência que atinge muitas pessoas após as refeições.
nunca cessa e sempre nos proporciona o trabalho no cam- um mecanismo que não sabia explicar, possuía ao mesmo
po do bem, quando a isso estamos dispostas. Preste aten- tempo a sabedoria da tia que conhecera na Terra, e, depois,
ção sem afligir-se. nos sonhos que tivera durante os sofrimentos mais inten-
Dizendo isso, Dora foi recuando novamente e, na me- sos com Daniel. Timidamente, balbuciou:
dida em que se afastava, voltou a adquirir a fisionomia mais — Tia, quer dizer, nem sei se posso continuar a cha-
idosa por modificação do seu corpo perispiritual. Depois, má-la assim, diante de tanta jovialidade que a senhora ago-
na proporção em que se aproximava dos quatro meninos, ra apresenta! Velha aqui sou eu!
netos de Clara e Marcos, que brincavam, ela adquiriu as — Clara, meu bem! Não se impressione com o aspecto
feições de uma menina, da mesma menina linda que embe- exterior! Somos Espíritos milenares criados por Deus para
veceu as emoções de Clara enquanto contemplava os netos a eternidade da vida, a nossa mais rica herança! Possuímos
em suas brincadeiras infantis. o viver para sempre! Por isso é profundamente lamentável
Novas lufadas de aroma carreado pela brisa que se fi- quando irmãos nossos, no auge do desespero e do abalo da
zera mais presente impregnavam o local, e os raios de sol fé, suicidam-se! Constitui para eles a continuação da vida
como em uma festa de luz brilhavam de maneira mais in- a mais amarga das decepções! Saem do corpo, mas conti-
tensa. As plantas participavam, joviais, como testemunhas nuam na vida com seus problemas agravados diante da
mudas da maravilha do existir, do eterno viver. Os pássa- própria consciência! Como a Lei determina o existir sem-
ros silenciaram seus chilreios, acomodando-se no arvoredo pre, essa mesma Lei, em nome da misericórdia, determina
próximo. que regressemos todos para as múltiplas jornadas da exis-
Clara observou toda a movimentação da tia, afastan- tência no corpo. Consegui um adiantamento da bondade
do-se dela e aproximando-se dos netos, onde adquiriu a de Deus permitindo-me retornar para amparar novamente
feição de criança novamente. Não conseguia entender cor- Daniel em sua necessidade de recuperação em novas exis-
retamente o que aquilo poderia significar. Seus pensamen- tências no corpo material!
tos moviam-se com velocidade ainda não compreendida — A senhora está querendo dizer que...
pelo homem encarnado, procurando concatenar e interpre- — E por que não?! Sabemos que a reencarnação é uma
tar os fatos presenciados. realidade que independe da crença ou do desdém dos ho-
— Seria verdade, meu Deus, o que os meus pensa- mens! É isso mesmo, meu amor! Recebi a bênção da reen-
mentos estão a sugerir?! Não. Não poderia ser. – Ela não carnação!
se julgava merecedora de tamanha bondade! Louvava in- — Mas não consigo entender o que a senhora está
comensuravelmente a bondade de Deus e o fenômeno des- querendo dizer-me, quando a vejo na modificação do seu
lumbrante da vida. perispírito, transformando-se na criança linda que vejo en-
Novamente viu o fenômeno se repetir e a tia surgir- tre meus netos!
lhe à frente como uma jovem muito bela, que se aproxima- — Não está entendendo, minha filha?
va, sorrindo, de braços abertos. Era jovem, muito jovem — Sim. Entendo que está a dizer-me com as mudan-
em relação à idade apresentada agora por Clara, mas, por ças, que a senhora irá reencarnar e está feliz por isso cons-
tituir-se em oportunidade de amparar Daniel, mais uma os meninos que estão ali brincando, aliás estranhamente
vez, em seu retorno. Mas por que a vejo entre os meninos, quietos. Não consegui entender essa parte da minha visão.
meus netos? O que você acha disso, amor?
— Saberá em breve, muito breve, quão grande é a Antes que o marido manifestasse sua opinião, Lucia-
misericórdia e a bondade de Deus! Venho abraçá-la pela na entrou exultante na varanda, sorriso aberto na face, que
última vez nesses nossos encontros na dimensão dos Espí- era a própria máscara da mais perfeita alegria possível na
ritos, rogando para o seu lar as bênçãos de nosso Pai e de Terra, abraçando os pais, enquanto dizia quase gritando:
Jesus, Mestre e Senhor! — Acabei de voltar da consulta com o dr. Celso. Estou
— Mas, tia! Não pode adiantar-me mais nada? Volta- grávida novamente! Ah! Que felicidade, Meu Deus! Mais
rei a vê-la quando estiver no corpo novamente? Não pode um netinho para vocês, meus amores. Já pensaram se, des-
adiantar-me mais nada sobre sua reencarnação? ta vez, for uma menina no meio desses quatro meninos,
A resposta foi um sorriso de imensa paz e um beijo mamãe?!
impregnado de amor na fronte de Clara. Dora foi se afas- Clara nada respondeu quanto ao último comentário
tando, repetindo-se o fenômeno das modificações plásticas da filha! Olhando a linha do horizonte, seus olhos enche-
sobre o seu perispírito, retornando na forma de criança ao ram-se de lágrimas enquanto balbuciava baixinho:
meio dos meninos, onde foi reduzindo de tamanho mais — E será mesmo, minha filha! Será uma menina com
ainda até transformar-se num pequeno foco de luz que foi toda a certeza!
recolhido por mãos invisíveis aos olhos de Clara, mesmo — Como sabe, mamãe? Como pode saber?
desdobrada do corpo material. — Ah! foi um “sonho” que me contou... – respondeu-
Marcos, que retornara ao lado da esposa, ao vê-la lhe a mãe, enquanto olhava meigamente para o marido. E
apresentar pequenos tremores no corpo físico e uma lágri- abraçou-se a ele, que finalmente entendera a última men-
ma furtiva a deslizar-lhe pela face, decidiu acordá-la de- sagem de tia Dora à sua esposa fora do corpo material!
licadamente, enquanto ouviu seus lábios do corpo físico As crianças, vendo a chegada da jovem e os avós abra-
balbuciar por duas vezes: çados e felizes, quiseram saber o motivo do acontecimento,
— Tia Dora, tia Dora! perguntando:
— Meu bem – disse o marido tocando levemente em — Vovó, o que está acontecendo com vocês? Parecem
seus ombros. – Você está sonhando novamente? Está tudo que vão dar uma festa!
bem com ela, com certeza, porque é um Espírito dedicado — Nossa família vai receber mais um anjo do céu,
ao bem. meus amores!
— Oi, Marcos. Desculpe-me pelo cochilo de sempre. — Que anjo é esse, vovó?
Estava sonhando com a tia Dora, mas de uma maneira — Mais uma neta que será muito querida e bem-vinda
muito real! Mantive com ela uma conversa tão agradável em nossa família!
que posso quase garantir que ela veio anunciar sua próxi- Um dos meninos fez uma careta e disse no seu
ma reencarnação! A única coisa estranha é que a vi entre raciocínio infantil:
— Uma menina?! Credo, vó! Não dá para trocar por

mais um menino, não?
— Desta vez não, amores da minha alma. Desta vez,
não!...
Morte encefálica -
Considerações simples
A medicina atual, cada vez mais, possui meios de

atrasar a morte, o que não significa que conse-
guirá trazer de volta à vida normal um ser humano que
tenha desenvolvido, em nível de determinadas regiões do
cérebro, lesões irreversíveis incompatíveis até mesmo com
o estado vegetativo do paciente, que é aquele em que a pes-
soa não morre, mas não alcança mais nível de consciência
perante a vida.
Ou seja, continua a viver, mas sem contato com os
seus familiares, sem consciência de quem seja, de como
esteja, com quem convive e assim por diante. Esse é um
estado vegetativo falando o mais simplesmente possível.
Parece até mesmo um termo grosseiro ao significar que a
pessoa, antes ativa, participativa, consciente de si mesmo e
da sua vida de relação com as demais pessoas, perdeu essa
capacidade e, embora não morra fisicamente, apenas vege-
ta, totalmente alheia ao que se passa ao seu redor.
São esses casos que levam à confusão de que a cha-
mada incorretamente “morte cerebral” pode proporcionar
a idéia de que houve erro médico ao decretar-se a morte
encefálica. Esse último termo significa que ocorreu uma
lesão, dentro do cérebro, de regiões que não permitirão o Em virtude dessa possibilidade, muitos trabalhos no
retorno sequer a uma vida vegetativa. campo da medicina têm sido desenvolvidos para diagnos-
O local comprometido na morte encefálica impede de ticar com clareza e segurança a chamada morte encefálica,
maneira definitiva, diante dos recursos da medicina atual, sinônimo de morte clínica. Em boa parte do continente eu-
que a pessoa retorne a essa vida vegetativa, mesmo sem ropeu e na maioria dos estados norte-americanos, o critério
discutir se esse tipo de existência é compensador ou não, já de morte encefálica é puramente clínico, ou seja, não se exi-
que o paciente não morre fisicamente, mas morre emocio- ge nenhum exame no paciente, apenas a constatação de al-
nalmente e em termos de sua consciência. guns sinais que assinalam a irreversibilidade da vida orgâ-
O ser em vida vegetativa pode ser comparado a uma nica. No Brasil, além da análise desses sinais, exige-se pelo
fotografia que é retirada da gaveta e contemplada sem que menos um dos exames que descreveremos mais adiante.
possa com ela fazer algum tipo de contato, não entrando Para se decretar a morte encefálica, é exigido um pe-
nessa colocação a análise de onde e como estaria o Espírito ríodo mínimo de seis horas, podendo chegar até 24 horas
vinculado a um corpo em tal situação. Na morte encefálica, de observação, antes de ser certificada a lesão cerebral ir-
a possibilidade desse tipo de vida não existe. A morte física reversível, por dois médicos diferentes, e que não tenham
ocorrerá mais dia, menos dia. nenhum vínculo de ligação com equipes de transplantes
O estado denominado em medicina de coma dépassé, de órgãos.
representa a realidade de “um cérebro morto em um corpo Para essa análise, o paciente em estudo não pode es-
vivo”! Nessa condição, segundo muitos autores, a morte tar tomando nenhuma medicação que interfira no exame
já ocorreu, embora na aparência a vida física pareça ainda atividade cerebral no sentido de mascarar o resultado
da estar presente, o que fez com que a medicina cada vez da equipe médica, como também não pode estar o paciente
mais buscasse critérios seguros para constatar tal situação. submetido a hipotermia, ou seja, a temperatura corporal
A chamada morte encefálica é o divisor de águas: constata- baixa, o que irá alterar os resultados dos exames.
da através dos diversos recursos disponíveis na medicina Diante do exposto, vejamos de forma simples e mais
atual. Toda a luta que, porventura, continue sendo desen- fácil de ser compreendida como seria esse exame clínico
volvida a partir desse ponto, cai naquela situação de “um que constataria a morte encefálica .Quando as pupilas, ou
cérebro morto em um corpo vivo”. seja, as popularmente chamadas “meninas dos olhos”, esti-
Esse diagnóstico definitivo abre campo para aquelas verem dilatadas e não se fecharem, não contraírem quando
pessoas que desejarem inscrever-se como doadores de sobre elas se jogue um foco de luz, constitui esse fato um
órgãos. Um ato que permitirá a sobrevida naqueles que dado a favor da morte encefálica, sempre lembrando que
forem beneficiados com a doação. A forma como o fizer não pode esse paciente estar no uso de drogas que simu-
será determinante do sucesso do transplante naquele que o lem essa situação.
receber. Pode-se dizer mesmo que o funcionamento desse Outro dado utilizado é a falta de resposta do paciente
órgão no outro corpo depende da generosidade de quem o a um estímulo doloroso profundo. Utiliza-se ainda da au-
doou, bem como da qualidade de vida daquele que o recebe. sência de reflexo quando se estimula determinada região
do olho do paciente e que numa pessoa que não esteja em sangue indispensável à sua sobrevivência. Pode-se ainda
morte encefálica produz alguma reação. O ouvido, na sua pequisar se esse cérebro está ou não vivo, monitorando
porção interna, é capaz de responder a determinados tipos com métodos próprios para esse fim, se ele utiliza ou não o
de estímulos, que já não mais existem no paciente no esta- oxigênio do sangue para sustentar as suas células.
do de morte encefálica. Da mesma forma que no exame clínico, é descartado
O outro meio clínico utilizado é desligar-se o aparelho o uso de qualquer substância ou doenças anteriores que
que faz a respiração artificial do paciente durante um pe- possam interferir nos resultados obtidos, porque o diag-
ríodo previamente estudado para ver se há algum sinal de nóstico de morte encefálica não pode padecer de nenhuma
que ele procure respirar. dúvida.
Quando se desliga temporariamente esse aparelho, há Na posse do exame clínico que descrevemos anterior-
acúmulo de gás carbônico no sangue, que funciona como mente mais os exames que acabamos de citar de maneira
um potente estimulador da respiração em pessoas nas bastante simples, os médicos encarregados de diagnosticar
quais não haja ocorrido a morte encefálica. Estamos nos a morte encefálica terão material seguro para que não ocor-
referindo de maneira simples a esse teste, mas ele possui ra nenhum tipo de erro. Algumas vezes jornais do mun-
toda uma programação que é seguida ao ser realizado para do inteiro estampam casos de pacientes, considerados em
não se expor a nenhum risco o paciente. Voltamos a escla- morte cerebral, que retornaram à vida, causando isso até
recer que todo esse exame clínico somente é válido quando mesmo pavor na população leiga em relação à doação de
se tiver a certeza de ter sido eliminado qualquer tipo de órgãos.
medicação ou doenças pré-existentes que possam masca- Queremos explicar, abreviada e simplesmente, que o
rar os resultados. cérebro, falando de maneira simples, possui determinadas
Como no Brasil são exigidos exames que endossem os áreas que podem sofrer danos irreversíveis sem causar a
dados obtidos na análise clínica do paciente, vamos procu- morte encefálica, que é irreversível. Esse último termo se
rar explicá-los da maneira mais simples possível: emprega quando não há nenhuma possibilidade de retor-
O eletroencefalograma registra, através de aparelho no à vida física, referindo-se à morte de uma região cha-
apropriado, as ondas elétricas que o cérebro considerado mada tronco encefálico, quando então o paciente não tem
vivo emite e podem ser registradas. De maneira bastante mais, em nenhum local do mundo, nos recursos da medici-
simples, podemos dizer que seria um processo parecido na atual, qualquer chance de continuar a viver.
ao eletrocardiograma utilizado para examinar o coração. De tal maneira que, quando esses raros casos de pa-
Quando um cérebro não emite nenhuma onda elétrica, cientes que retornam para um estado vegetativo de vida
constitui mais um fato que fala a favor de sua morte. ocorre, é porque não havia o comprometimento do tronco
Outro exame utilizado é a arteriografia cerebral, em encefálico e, portanto, não havia ocorrido a morte encefáli-
que substâncias injetadas no paciente se dirigem para o cé- ca. Para esclarecer, a doação de órgãos, em uma pessoa com
rebro, sendo detectadas através de métodos à disposição da a morte encefálica decretada pela maneira que vimos, esta
medicina, revelando se este cérebro está ou não recebendo somente poderá ser feita se o paciente em questão deixou,
em vida, um desejo expresso através de documento oficial.

Na ausência desse documento, a retirada de qualquer ór-
gão somente poderá ser feita mediante consentimento do-
cumentado de familiares, ascendente ou descendente do
paciente, constituindo crime a violação de qualquer corpo
de identidade conhecida e representada.
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202 Ricardo Orestes Forni
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A Vida Sempre Floresce 1

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Ricardo Orestes Forni

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A Vida Sempre Floresce

Revisão gramatical e doutrinária: A Vida Sempre Floresce! ....................................................... 7

contabilidade da vida, à conta individual daquele que o perpetra.

contabilidade da própria consciência. balha em nosso favor.

O venerável benfeitor conduziu o grupo a determi-

de de ser modiﬁcado, e a ocorrência de um milagre, caso

N uma clareira, em meio a um bosque repleto de

roguemos para que a Providência Divina o ampare, como

N ão foram poucas as vezes em que a ﬁgura espiri-

Preparação para a volta

C lara tinha um casal de ﬁlhos – Luciana e Gustavo –,

los não deixará de beneﬁciar-lhe o corpo físico e, princi-

C hegara, enﬁm, o dia da volta de Daniel ao mun-

Novas expiações e provas

A o anoitecer, Clara recebeu medicações destina-

agradeçamos a Deus tamanha bênção! Um dia, se assim

No Bosque das Acácias

O local era muito agradável. Um bosque onde di-

riores que admitiam a reencarnação como um mecanismo

D aniel estava com 15 anos de idade. Apesar das

e Marcos sentaram-se, como se um peso muito grande pai-

veriam de ser intuídos nesse momento difícil pelos amigos

N aquela noite, após a conversa com Alfredo, o ca-

Queridos companheiros! Bem-aventurados os aﬂitos, disse

Cíntia. no banco, a casa luxuosa para a moradia transitória sobre a

— Não só vocês. Podem ter a certeza que todos os ami-

C lara e Marcos ﬁzeram as suas orações antes de en-

O casal dirigiu-se para o hospital assim que o dia

mais desejamos é que o suicídio seja banido da humanida-

A vida que não cessa

O s fatos que se seguiram ao desencarne de Daniel

— Uma menina?! Credo, vó! Não dá para trocar por

A medicina atual, cada vez mais, possui meios de

em vida, um desejo expresso através de documento oﬁcial.

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