A característica mais elementar e fundamental da experiência do
Espírito é a de participação. O Espírito Santo age na pessoa humana a fim de torná-la participante – (a) de Deus (Jo 14,16-31; Rm 8,1ss), ou da natureza divina (II Pedro 1,4); (b) do povo de Deus (Atos capítulos 1-2; cf. I Co 12,12-13); (c) da nova criação, ou do mundo que está sendo renovado por Deus (II Co 5,17; Hb 2,5-18). Como tal, a experiência da participação é experiência da gratuidade divina, da graça (ou amor) de Deus derramada sobre a humanidade pecadora e sobre toda a criação (cf. Rm 5,1-11) – é porque Deus nos ama que, graciosamente, Ele nos concede a bênção de participarmos nEle e em toda a sua criação. No vocabulário neo- testamentário, o termo mais comumente usado para participação é o termo comunhão (koinonia, em grego). Comunhão é “ser como um”. A experiência do Espírito é, assim, experiência de tornar um aqueles que estavam separados, divididos, alienados (cf. João 17; Ef 4,1-6). O Espírito nos torna participantes de Deus porque é Ele quem, como representante da Trindade, concretiza no crente a justificação (Jo 16,7s.; Rm 6,13s.22 ), a regeneração (Jo 3,3-5; Tt 3,5-7; I Pe 1,3), a santificação (Rm 8,30; Gl 5,19-22; I Ts 5,23) e a libertação (II Co 3,17; Rm 5-8). Todos esses termos – justificação, regeneração, santificação, libertação; e mais: salvação, adoção, novo nascimento, redenção, resgate, reconciliação – são metáforas que descrevem, cada um à sua maneira, destacando aspectos diferentes, a multiforme graça de Deus que deseja que toda a sua criação esteja debaixo de seu amor e de sua vontade. Cada uma dessas metáforas possui uma
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ênfase específica mas, no final das contas, todas são descrições parciais de uma mesma e magnífica realidade, que é o agir de Deus que nos coloca de volta na vida plena em comunhão com Ele e com toda a sua criação, que nos torna participantes de Sua própria vida e ação. Se você refletir sobre cada uma delas separadamente, poderá notar o aspecto de participação na divindade que cada uma delas destaca. Por exemplo: a adoção e a regeneração destacam que somos feitos filhos e filhas de Deus; a santificação, que somos feitos santos como Deus é santo; e assim por diante. Nos escritos paulinos, a metáfora mais comum para a participação na divindade, efetuada pelo Espírito em nós, é a do “estar em Cristo”. Mediante a ação do Espírito Santo, toda pessoa que crê e se entrega ao Deus gracioso, é colocada em Cristo, ou seja, se torna participante da vida de Cristo, e o próprio Cristo se torna participante e mesmo a realidade da vida de quem crê, conforme diz Paulo: “Estou crucificado com Cristo; logo já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse viver que agora tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim” (Gl 2,19-20). No Evangelho de João, a noção da participação na divindade é descrita principalmente mediante a afirmação de que Deus Pai e Deus Filho se tornam um naqueles que crêem, e vice-versa. Por exemplo: “Não rogo somente por estes, mas também por aqueles que vierem a crer em mim, por intermédio da sua palavra; a fim de que todos sejam um; e como és tu, ó Pai, em mim e eu em ti, também sejam eles em nós; para que o mundo creia que tu me enviaste” (Jo 17,20-21, grifo meu). Note a dimensão missionária, testemunhal da participação e unidade do povo de Deus em Cristo e no Pai – para que o mundo creia que tu me enviaste. Nas teologias ocidentais (tanto católicas como protestantes), esta ênfase mística não tem sido muito ressaltada, especialmente por causa dos antigos debates sobre a doutrina da justificação pela fé – doutrina que foi interpretada quase que sempre de forma forense, ou seja, entendida a justificação como um ato judicial de Deus que declara justa a pessoa que crê em Cristo. Se, porém, entendemos também a justificação como um ato real e transformador de Deus – tornando justa a pessoa que crê – recuperamos
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esta dimensão mística da experiência do Espírito, ou da vida cristã. Com isto, damos à palavra mística um novo sentido, não mais uma questão de experiências emocionais e privativas intensas, mas a plena e real participação na obra de Deus – e mesmo na própria divindade – aberta a todo o que crê, pela graça de Deus. Experiência, em vários sentidos, inefável, indizível, inexplicável, mas não menos real! Tendo sido feitos participantes dEle, também somos tornados participantes de um novo povo, de uma nova comunidade – a que costumamos chamar de Igreja, o povo de Deus. Para descrever a participação no povo de Deus, Paulo também prefere usar a expressão em Cristo (um equivalente dessa expressão é encontrado na metáfora da igreja como Corpo de Cristo). A experiência do Espírito é experiência de nos tornar participantes, em Cristo, do povo de Deus – povo composto de pessoas libertadas, santas, eleitas e amadas de Deus, pessoas transformadas e transformadoras, pessoas que são constantemente guiadas pelo Espírito e por Ele transformadas para se tornarem mais semelhantes a Jesus Cristo, mediante a vida comunitária, a adoração e o estudo da Palavra de Deus (cf. Ef 4,1-24; Cl 3,1-17; etc.). A nova comunidade a que pertencemos é comunidade de adoração a Deus – no culto, na vida e na missão (cf. Rm 12,1-2), é comunidade cuja natureza é agir de forma semelhante a Jesus Cristo, seu cabeça e seu rei. Na terminologia paulina, ser batizado no Espírito é ser mergulhado dentro do corpo de Cristo, é ser feito participante do povo de Deus: “Pois em um só Espírito, todos nós fomos batizados em um só corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres. E a todos nós foi dado beber de um só Espírito” (I Co 12,13). Uma nova comunidade, um novo povo que é primícias de uma nova humanidade. Não se pode pensar na participação na igreja de Deus, de forma desvinculada da participação na nova humanidade que Deus está fazendo – Efésios 2,11-22. A igreja é primícias, penhor, e não a realidade toda. A igreja é o povo de Deus que, tendo experimentado a libertação pelo Espírito, se torna mensageira e portadora dessa libertação para toda a humanidade. Um erro, infelizmente muito comum entre cristãos, é deixar de
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perceber que a igreja não é o ponto de chegada do agir de Deus, mas um pit stop (uma parada que carros de corrida fazem para se reabastecer, ou trocar pneus, ou se preparar para continuar a corrida). Participar da natureza divina é participar da ação libertadora de Deus que alcança toda a humanidade (I Tm 2,4). A igreja não é um fim em si mesma, ela é o meio de Deus para a salvação de toda a humanidade (I Pedro 2,9-10). Devemos evitar o orgulhoso e arrogante erro de pensar que a eleição divina nos coloca em uma situação de “privilégio”, que nos faz “melhores” do que as pessoas que estão fora da igreja. Fomos eleitos em Cristo para darmos testemunho da graça de Deus, para abrirmos as portas da família de Deus a toda a humanidade – que é amada intensamente por Deus (cf. Jo 3,16). Se não entendemos bem isto, não entenderemos a natureza missionária da Igreja. A salvação não abrange só a humanidade, mas também de toda a criação: “pois a criação está sujeita à vaidade, não voluntariamente, mas por causa daquele que a sujeitou, na esperança de que a própria criação será redimida do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus. Porque sabemos que toda a criação a um só tempo geme e suporta angústias até agora” (Rm 8,20-22). A experiência do Espírito não nos tira do mundo (cf. Jo 17,15), mas nos torna parceiros de Deus na libertação de toda a criação, nos torna participantes da nova criação de Deus (II Co 5,17), o que podemos chamar de dimensão ecológica da salvação. Durante muito tempo se falou da salvação como ser salvos do mundo – e em um sentido, isto está correto, se entendemos o mundo como a estrutura pecaminosa, o estilo de vida contrário à vontade de Deus. Mas é preciso, também, falar da salvação como ser salvos com o mundo – se entendemos o mundo como a criação divina. A experiência do Espírito nos torna participantes dos novos céus e nova terra que Deus está criando para revelar e concretizar no final dos tempos. A experiência do Espírito nos coloca, enfim, em comunhão com Deus, com o povo de Deus, com a humanidade e com toda a criação que gemem e clamam, ansiando pela salvação ofertada graciosamente por Deus em Cristo Jesus. Tudo isto aponta para um objetivo: participamos de Deus para sermos
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co-missionários com Ele na salvação de todo o cosmos, de toda a criação: “mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém, como em toda a Judéia e Samaria, e até aos confins da terra” (At 1,8); “Jesus, aproximando-se, falou-lhes, dizendo: Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as cousas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século” (Mt 28,18-20). Participamos de Deus para sermos co-enviados com o Filho de Deus para a libertação de toda a criação: “Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os envio ao mundo. E a favor deles me santifico a mim mesmo, para que eles também sejam santificados na verdade” (Jo 17,18-19), e mais: “Disse-lhes, pois, Jesus outra vez: Paz seja convosco! Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio. E, havendo dito isto, soprou sobre eles, e disse-lhes: Recebei o Espírito Santo” (Jo 20,21- 22). Participamos de Deus para que Cristo reine sobre toda a criação: “E pôs todas as cousas debaixo dos seus pés e, para ser o cabeça sobre todas as coisas, o deu à igreja, a qual é o seu corpo, a plenitude daquele que a tudo enche em todas as cousas” (Ef 1,22-23)
2. Experiência de liberdade
A noção de libertação, na Bíblia, tem sua origem no êxodo dos hebreus
do Egito (especialmente Êxodo cap. 3). A noção teológica de libertação possui duas dimensões principais: (a) a dimensão política – libertar é livrar alguém do domínio injusto de outra pessoa, livrar um grupo de pessoas da dominação por uma estrutura política, ou libertar uma nação da dominação por outra; e (b) a dimensão pessoal – libertar é livrar uma pessoa do sofrimento pessoal e da falta de dignidade humana causadas pela opressão/escravidão. A mais bela e mais ampla descrição teológica da libertação está em Êxodo 3,7-10: “Disse ainda o Senhor: certamente vi a
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aflição do meu povo, que está no Egito, e ouvi o seu clamor por causa dos seus exatores. Conheço-lhe o sofrimento, por isso desci a fim de livrá-lo da mão dos egípcios e para fazê-lo subir daquela terra a uma terra boa e ampla, terra que mana leite e mel; o lugar do cananeu, do heteu, do amorreu, do ferezeu, do heveu e do jebuseu. Pois o clamor dos filhos de Israel chegou até mim, e também vejo a opressão com que os egípcios os estão oprimindo. Vem, agora, e eu te enviarei a Faraó, para que tires o meu povo, os filhos de Israel, do Egito”. Repare nos verbos que descrevem a ação de Deus: Ele vê, ouve, conhece, desce para fazer subir, e envia Moisés para libertar o povo do Egito. Libertar é uma ação pessoal de Deus, que se torna solidário com o povo e com a pessoa oprimida/escravizada, e modifica essa situação – em parceria com o próprio ser humano. Deus mesmo desce para fazer parte da situação, experimenta (conhece) a situação de dor, sofrimento e opressão, e não se resigna com ele – mas, ouvindo o clamor das pessoas escravizadas, liberta- as e faz aliança com elas. Compare esta descrição da ação de Deus na libertação dos hebreus com a ação de Deus na libertação de toda a criação, conforme descrita em o Novo Testamento. Na pessoa de Jesus, Deus mesmo assume plenamente a condição humana – envia o Filho (Deus-homem), que desce para fazer toda a criação subir à presença de Deus; vê e ouve o sofrimento das pessoas, e o conhece em sua própria carne – e se torna o “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”. A experiência da libertação, concretizada pelo Espírito em nós, é a experiência de nos unirmos a Cristo, de participarmos com Ele na ação libertadora do Deus Triúno. Segundo “o testemunho do Novo Testamento as experiências de Deus feitas pelos homens que se encontram próximos de, ou em comunhão com Jesus, são experiências de libertação: Libertação das doenças e possessões demoníacas, libertação das humilhações e das ofensas sociais, libertação dos 'ímpios poderes deste mundo' e, como o apóstolo Paulo o realça de uma maneira especial, libertação da força do pecado e do poder da morte (Rm 7 e 8).”1
1 MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da Vida. Uma pneumatologia integral. Petrópolis:
Vozes, 1999, p. 102s. 6 Unida Teologia da Espiritualidade Repare na integralidade da ação libertadora na vida do ser humano – ela inclui a dimensão físico-corpórea, a dimensão corpóreo-espiritual, a dimensão psíquica, a dimensão social, a política e a dimensão cósmica (a pertença do ser humano ao mundo criado). Quero destacar dois aspectos da liberdade, que é o efeito concreto da ação libertadora do Espírito: (1) somos libertados para sermos livres Pode parecer estranho afirmar que somos libertados para sermos livres, mas esta é uma redundância necessária. Após a saída do Egito, os hebreus, no deserto, se assustaram com a liberdade e a responsabilidade que ela traz consigo, e se tornaram murmuradores contra Deus e quiseram voltar às panelas do Egito (Êx 16,1-3). Não é fácil viver em liberdade, pois as pessoas acabam se acostumando a viver na opressão, ou na escravidão, que é mais simples, aparentemente mais confortável e menos desafiadora do que viver em liberdade. É mais fácil nos conformarmos com o mundo do que sermos transformados por Deus para transformar o mundo (Rm 12,1-2). O cristão, não mais escravizado ao pecado, ao mundo, ao diabo e à carne, nem sempre sabe viver em liberdade, e por isso é exortado a viver efetivamente a liberdade no Espírito: “Para a liberdade foi que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes e não vos submetais de novo a jugo de escravidão” (Gl 5,1). Normalmente, pensamos na liberdade apenas como liberdade de, e não também como liberdade para. Somos livres do pecado para o amor – quem foi libertado do pecado se transformou em escravo de Cristo, escravo da liberdade, escravidão que é, paradoxalmente, liberdade – pois livres do pecado, estamos sujeitos a Deus, em Cristo Jesus (cf. Romanos 6). Diuturnamente a vida cristã é uma luta contra os apelos da escravidão – o mundo nos chama a sermos seus escravos: para viver de forma individualista e consumista; a carne nos chama a sermos seus escravos: para viver de forma ímpia e egocêntrica; o diabo nos tenta a sermos seus escravos: para viver de forma mentirosa e violenta; o pecado nos chama a sermos seus escravos: para não vivermos em santidade e justiça. Por isso, a liberdade cristã no Espírito é processo contínuo de conflito e de resistência contra todos os apelos da falsa liberdade sem Deus – apelos atraentes,
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hipnotizadores, mas mentirosos e escravizadores. Viver no Espírito é resistir contra toda dominação e escravidão, é lutar – com a energia de Deus – para viver em liberdade, a liberdade de filhas e filhos de Deus, livres para amar, livres para participar de Deus em sua ação missionária no mundo. (2) somos libertados para sermos santos Pecado e carne são termos técnicos de Paulo para descrever a condição humana (e de toda a criação) de escravos da morte, do Reino das trevas, do pecado, ou da carne. A libertação (ou redenção, resgate, salvação, justificação, reconciliação, regeneração), por sua vez, é o mais poderoso ato de Deus em relação à sua criação escravizada. O Espírito concretiza em nós a libertação de Deus em Cristo, ou seja, nos livra de um reino de pecado, morte, opressão e dor; para um reino de justiça, santidade, vida, liberdade e comunhão (cf. Rm 6,1-23; Cl 1,13-14; etc.). A forma mais plena da escravidão humana é a impiedade (ímpia é a pessoa que não se parece com Deus, que não age como Deus). Pecado não pode ser entendido apenas como os atos pecaminosos que cometemos, mas como uma estrutura de vida a que estamos submetidos. O pecado nos escraviza na medida em que nós, humanos, preferimos viver desfrutando dos prazeres enganosos do mundo e da falsa liberdade do conformismo aos nossos limites. É mais fácil viver praticando pecados, do que viver em santidade. É mais fácil viver na carne, do que viver em santidade. Santidade é uma expressão da liberdade em Cristo, mas quantas vezes o povo de Deus confundiu santidade com escravidão – com legalismo! “Ó gálatas insensatos! Quem vos fascinou a vós outros, ante cujos olhos foi Jesus Cristo exposto como crucificado? Quero apenas saber isto de vós: recebestes o Espírito pelas obras da lei, ou pela pregação da fé? Sois assim insensatos que, tendo começado no Espírito, estejais agora vos aperfeiçoando na carne? (Gl 3,1-3). Toda a carta aos gálatas é um apelo de Paulo aos cristãos gálatas para não se deixarem escravizar pela Lei, mesmo pela Lei de Deus que é santa, justa e boa. Aos colossenses, Paulo adverte contra o mesmo perigo, enfatizando que a prática das obras da lei, que uma vida religiosa e moralista, sem Cristo, não tem valor algum contra a carne,
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pelo contrário, é uma expressão da carne (Cl 2,16-23). Até hoje há cristãos que confundem santidade com moralismo; santidade com religiosidade; santidade com obediência às regras da instituição eclesiástica. Santidade é a manifestação da liberdade de vivermos de forma semelhante a Jesus Cristo. Santidade é a expressão da liberdade de andarmos no Espírito, frutificando nEle, com Ele e por meio dEle (Gl 5,13-26).
3. Experiência de conflitividade escatológica
A experiência do Espírito, que é de participação e liberdade, também é
de conflitividade escatológica. Segundo o Novo Testamento, nós já vivemos no fim dos tempos (Mc 1,14-15; Mt 4,12-17; Hb 1,1-2). Este tempo entre a vinda e a volta de Jesus é o tempo escatológico, o período da missão da Igreja, da esperança do povo de Deus e da criação (Rm 8,23-25). Neste tempo escatológico, a experiência do Espírito é experiência de primícias e de penhor (cf. Ef 1,13-14; I Co 15,23) – o penhor é o sinal de que o pagamento pleno ainda será realizado, e as primícias são a gratidão pela colheita que ainda não está concluída. Como experiência escatológica, a nossa participação em Deus e a nossa liberdade no Espírito ainda não são vivenciadas em sua plenitude – por isso, ainda pecamos, ainda sofremos, ainda gememos, ainda duvidamos, ainda lutamos. Por isso, a experiência do Espírito é experiência de conflitividade (Gl 5,16-23; Rm 8,1-17). O grande inimigo da experiência do Espírito em nós é a carne. Carne, na teologia paulina, não é o corpo humano, mas a disposição humana de viver longe da comunhão com Deus, fora do reino de Deus, distante do amor divino. Viver na carne significa viver exclusivamente com a energia humana, exclusivamente com objetivos humanos, exclusivamente com valores e conhecimentos deste mundo. Todo ser humano sem Cristo, vive na carne, dela é escravo, a ela serve e dela recebe a morte como recompensa – pois “toda a carne é erva, e toda a sua glória como a flor da erva; seca-se a erva, e caem as flores, soprando nelas o hálito do Senhor” (Is
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40,6-7). A espiritualidade cristã é, primordialmente, uma vida cotidiana de conflito entre o Espírito de Deus e a carne. Nesse conflito, cada cristã e cristão é chamado a escolher, constantemente, seguir o Espírito e não a carne - “porque a carne milita contra o Espírito, e o Espírito contra a carne, porque são opostos entre si; para que não façais o que porventura seja do vosso querer” (Gl 5,17). Esta é a mística cristã, a mística da entrega total, da plena rendição da pessoa à direção do Espírito, porque o querer humano, mesmo o do crente, é impotente contra o pecado e a carne (Rm 7,14-24). Não é mística de resignação, mas de resistência. Ser espiritual não é ser fraco, resignado, entregue aos desejos carnais do pecado. Ser espiritual é ser uma pessoa firme, resistente; pessoa que, na força do Espírito Santo, resiste a todos os apelos de volta à escravidão da vida sem Deus. Resistir, mediante a submissão (o colocar-se debaixo da missão de Deus), mediante a entrega ativa, mediante a fé corajosa que atua pelo amor, mediante o permitir que o Espírito faça em nós o querer de Deus. Essa conflitividade é pessoal (cada um de nós a experimenta), é comunitária (o povo de Deus a experimenta) e cósmica (o mundo todo a experimenta): “O conflito entre 'espírito' e 'carne' no homem é nada mais nada menos do que a ponta antropológica da apocalíptica universal, segundo a qual 'este mundo passa', porque a nova criação de todas as coisas já teve início com a ressurreição de Cristo dentre os mortos. Por isso nós não somos remidos do mundo, mas, sim, com o mundo. A experiência cristã do Espírito não nos separa do mundo. Quanto maiores as nossas esperanças para o mundo, tanto mais profunda passa a ser nossa solidariedade com seus sofrimentos e seus gemidos”2. A carnalidade é o constante chamado para o ser humano viver conforme os valores do mundo, conforme os padrões do século, conforme os prazeres carnais, conforme a mentira e a violência satânicas. Um cristão carnal é uma pessoa que, tendo conhecido a Cristo, anula e apaga o Espírito de Deus em sua vida, e se entrega à carne para viver o estilo de vida deste mundo. Um cristão espiritual é, ao contrário, uma
2 MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da Vida. Uma pneumatologia integral. Petrópolis:
Vozes, 1999, p. 92 10 Unida Teologia da Espiritualidade pessoa que se entrega ao Espírito, dá liberdade ao Espírito, em sua vida, para agir e transformá-la em conformidade com o caráter de Cristo (Ef 4,17ss; etc.). Por isso, um cristão espiritual é sempre uma pessoa missionária, que constantemente ora, estuda a Palavra, adora a Deus e, na comunhão do povo de Deus, sob a força do Espírito Santo, luta o bom combate, vivendo de forma santa, justa e piedosa no mundo, dando sempre testemunho de Jesus Cristo em tudo que faz neste tempo escatológico, de primícias e penhor, ainda não de realização, mas de resistência, e de esperança segura e certa.