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Negro
O
V
O
P

ACIMA,

DETALHE DE

ESTATUETA DE

ANCESTRAL

(ZAIRE); AO

LADO, TAMBOR

COM SUPORTE

DE CAVALO DE

MADEIRA

(GUINÉ); E DE

ADEREÇO

FEMININO EM

ANGOLA —

DESENHO DE

DELACHAUX

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KABENGELE MUNANGA

Origem e
histórico do
quilombo
na África
KABENGELE
MUNANGA é
professor do
Departamento de
Antropologia da
FFLCH-USP.

NOTA LINGÜÍSTICA

Na ortografia das palavras em línguas bantu, dispensamos a re-


presentação da tonalidade, fenômeno característico dessas línguas.
Essa tonalidade é marcada pelos tons baixo (por exemplo /à/), alto
(/á/), montante (/a/), descendente (/â/). Exemplo: kílómbò.
Utilizamos o alfabeto africano para grafar alguns nomes. Por
isso as letras como c e w pronunciam-se, respectivamente, tch e u.
Exemplo: cokwe pronuncia-se tcho-cu-e.
Os nomes de povos ou grupos culturais são precedidos de prefi-
xos classificadores: mu, indicando o singular e ba indicando o plu-
ral. Exemplos: mukongo (mu-kongo), indivíduo que pertence à etnia
kongo; plural bakongo (ba-kongo). Mas, na literatura etnográfica,

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costuma-se dispensar os prefixos classifica- para designar a pessoa, o ser humano. Por
dores, anotando apenas os radicais dos no- isso, essas línguas foram batizadas de bantu
mes dos povos. Por exemplo: os lunda; os pelos lingüistas ocidentais. A mesma palavra
kongo; os mbundu; os jaga, etc. passou a identificar os povos que falam essas
Às vezes faz-se confusão entre o nome línguas enquanto um complexo cultural ou
dos povos e suas respectivas línguas que sem- civilizatório, devido à contigüidade territorial
pre conservam o mesmo radical com prefixo e aos múltiplos contatos, mestiçagens e em-
classificador diferente. Por exemplo: povo préstimos facilitados pela proximidade geo-
bakongo, língua kikongo; povo mbundu, lín- gráfica entre eles. Os mitos de origem nos
gua kimbundu; povo lunda, língua kalunda; ensinam que todos esses povos, hoje com
povo ovimbundu, língua umbundu. identidades diferentes, foram no início gru-
pos criados por irmãos.
NO CAMINHO DAS ORIGENS Segundo os lingüistas comparatistas es-
DO QUILOMBO pecialistas da área bantu (Murdock,
Greenberg, Guthrie, etc.), há cerca de dois
O quilombo é seguramente uma palavra mil anos, houve uma expansão geral dos bantu
originária dos povos de línguas bantu (kilombo, partindo do centro da Nigéria para o sul e
aportuguesado: quilombo). Sua presença e seu sudeste da África. O conhecimento da fundi-
significado no Brasil têm a ver com alguns ção os teria auxiliado em sua deslocação, pois
ramos desses povos bantu cujos membros fo- utilizaram ferramentas de ferro para abrir o
ram trazidos e escravizados nesta terra. Trata- caminho através da floresta equatorial.
se dos grupos lunda, ovimbundu, mbundu, Guthrie, após estudos intensivos das raízes
kongo, imbangala, etc., cujos territórios se de línguas bantu, conclui que povos de língua
dividem entre Angola e Zaire. proto-bantu habitavam a região da floresta
Embora o quilombo (kilombo) seja uma equatorial, a meio caminho entre as costas
palavra de língua umbundu, de acordo com leste e oeste da África. Esses povos teriam
Joseph C. Miller (1), seu conteúdo enquanto uma cultura do trabalho de ferro (2). Por sua
instituição sociopolítica e militar é resultado vez, Greenberg situa a origem dos bantu na
de uma longa história envolvendo regiões e região fronteiriça entre Camarões e Nigéria
povos aos quais já me referi. É uma história (3). Nenhuma prova arqueológica veio em
de conflitos pelo poder, de cisão dos grupos, apoio às teses lingüísticas.
de migrações em busca de novos territórios e A história do quilombo como a dos povos
de alianças políticas entre grupos alheios. bantu é uma história que envolveu povos de
Para entender e captar o sentido da forma- regiões diferentes entre Zaire e Angola. A
ção dos quilombos no Brasil, precisamos tradição oral - com o que tem de lacunas e de
1 Joseph C. Miller, King and
Kinsmen. Early Mbundu conhecer o que aconteceu nessas regiões afri- imprecisões - continua sendo até hoje uma
States in Angola, Oxford,
Crarend Press, 1976, pp. canas de áreas bantu nos séculos XVI e XVII. das grandes fontes de informação da história
151-75.
Por isso, a própria palavra bantu mereceria, da África negra. No âmbito do mito, a histó-
2 M. Guthrie, The Clas-
sification of the Bantu
antes, algumas linhas de explicação. Com ria começa no império Luba (centro e sudeste
Language, London, 1948. efeito, Bantu, que hoje designa uma área ge- do Zaire), provavelmente no fim do século
3 J. Greenberg, “The ográfica contígua e um complexo cultural XVI. Segundo uma das versões do mito, esse
Language of Africa”, in
International Journal of específico dentro da África negra, é uma pa- império era governado por Kalala Ilunga
American Linguistics, XXIX,
I.Bloomington(Ind), 1963.
lavra herdada dos estudos lingüísticos oci- Mbidi, cuja morte criou conflitos de sucessão
dentais. Os estudiosos das línguas faladas no entre filhos herdeiros do trono. Um deles, tido
4 Kabengele Munanga, Os
Basanga de Shaba. Um continente africano (Guthrie, Greenberg, etc.), como perdedor, o príncipe e caçador
Grupo Étnico do Zaire, Col.
Antropologia, FFLCH-USP, ao fazer estudos comparativos dessas línguas, Kimbinda Ilunga, partiu com seus seguidores
1986, pp. 54-5.
a partir do modelo das línguas indo-européi- em busca de novo território. Estavam com
5 J. Vansina, Introduction à
l’Ethnographie du Congo ,
as, chegaram a classificá-las em algumas fa- fome e sem nenhuma provisão quando avis-
Editions Universitaires du mílias principais, entre as quais a família das taram ao longe uma aldeia e se aproximaram
Congo, 1965, pp.145-48.
línguas bantu. O estudo de algumas palavras para pedir bebida e comida. O rei desse grupo
6 Idem, Les Anciens
Royaumes de la Savane, principais revelou a existência das mesmas acabava de morrer e foi substituído por sua
Léopoldville, Institut de raízes com o mesmo conteúdo entre esses
Recherches Economiques
filha, a rainha Rweej. Encantada pela beleza
et Sociales, 1965, pp. 51-3. povos. Todos empregam, entre outras, a pa- e maneiras nobres do príncipe caçador, Rweej
7 Idem, ibidem, p. 52. lavra -ntu (muntu, singular, e bantu, plural) pede Kimbinda Ilunga em casamento. Entre

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os lunda, como em todos os povos bantu, a
ANGOLA NO SÉCULO XVIII
tradição proibia a rainha de governar durante
seu ciclo menstrual, pois, simbolicamente
morta como a lua, ela contaminaria negativa-
mente o país e seu povo. Um dia, aproveitan-
do-se dessa tradição quando entrava em perí-
odo de menstruação, a rainha Rweej chamou
seus notáveis e chefes de linhagens e apre-
sentou-lhes seu marido Luba como novo che-
fe dos lunda, colocando-lhe o bracelete
(rukan), símbolo do poder.
O casamento de Rweej, acompanhado da
transferência do poder real ao marido, prínci-
pe estrangeiro, causou descontentamento
entre os parentes da rainha e algumas cama-
das da população, gerando até movimento
migratório. Kinguli, irmão da rainha, foi-se
com seus simpatizantes para oeste, em dire-
ção a Angola (4). J. Vansina situa o episódio

Fonte: J. Vansina, Les Anciens Royaumes de la Savane.


da emigração de Kinguli no século XVII. Diz
ele que a região para onde se dirigiram Kinguli
e seus seguidores lunda já havia sido subme-
tida, no século anterior, às invasões do povo
chamado jaga ou imbangala. Vindo da mar-
gem direita do rio Kwango antes de 1568, os
jaga invadiram o reino do Kongo do qual
foram rechaçados em 1568. Alguns deles se
estabeleceram ao longo do rio Kwango; mis-
turaram-se ao grupo suku e organizaram nu-
merosas chefias (5). Autores antigos, como
Cavazzi e Pigafetta, dizem que os jaga vi-
nham do interior da África, provavelmente
do leste do rio Kwango. O marinheiro inglês
OS POVOS DE ANGOLA ORIENTAL POR VOLTA DE 1850
Battel, que conviveu com eles, disse que vi-
nham das montanhas de Lion em direção à
capital do reino do Kongo. Mais tarde se re-
tiraram em direção ao sudeste, nas regiões
orientais do Ndongo e dirigiram-se à costa de
Angola e Benguele perto do rio Cuvo. Seu
verdadeiro nome era imbangala ou imbangola
(6). Ninguém sabe onde ficavam exatamente
as montanhas de Lion. Muitos etnólogos se
Fonte: J. Vansina, Les Anciens Royaumes de la Savane.

preocuparam com o problema da origem dos


jaga, propondo diversas respostas. Mas pare-
cem, segundo Vansina, ter vínculos culturais
com os povos lunda e luba (7).
Quando os jaga chegaram ao oeste do
Kwango, eles viviam permanentemente em
pé de guerra nos campos fortificados. Diz-se
que matavam seus recém-nascidos para não
ser atrapalhados em suas campanhas milita-
res. Em revanche, eles adotavam os jovens de
ambos os sexos das regiões por eles vencidas
e dominadas e os incorporavam a seus cam-

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pos. Assim, podia o número de suas tropas No moderno umbundu padrão, tem-se a pala-
crescer rapidamente. Alguns milhares de pes- vra ocilombo, que se refere ao fluxo de san-
soas equipadas para a guerra e organizadas de gue de um pênis recém-circuncidado, e
modo a assimilar os vencidos podiam derru- ulombo, que designa um remédio preparado
bar todo o oeste da África central. Isso expli- com o sangue e o prepúcio dos iniciados no
ca a superioridade militar dos jaga, que im- campo de circuncisão e que é usado em certos
primiram sua marca à história da costa ango- ritos não especificados. A raiz -lombo, que
lana durante meio século (8). constitui a base de todas essas palavras, iden-
O que a história dos jaga tem a ver com o tifica a palavra quilombo como sendo unica-
quilombo? O príncipe lunda Kinguli ter-se-ia mente ovimbundu, uma vez que contrasta com
feito aliado dos poderosos bandos jaga que a palavra cokwe e mbundu para as cerimôni-
dominavam a região antes de sua chegada. as de circuncisão: mukanda (11).
Embora a palavra quilombo seja de língua Os imbangala ou jaga tiveram um papel
umbundu, de acordo com J. Miller, como já notável na formação do kilombo amadureci-
foi dito, a instituição teria pertencido aos jaga. do. Os seguidores de Kinguli, de origem lunda,
Kinguli e seu exército formado pelos lunda e rejeitaram a sua liderança, considerada muito
aliados jaga adotaram o quilombo e forma- opressiva, e adotaram como novo aliado a
ram um exército mais poderoso constituído sociedade guerreira de iniciação quilombo,
de bandos de guerreiros nômades conhecidos trazida pelos imbangala. No entanto, o termo
como imbangala. Tiveram a capacidade de imbangala deriva da raiz umbundu -vangala,
espalhar-se por toda a região mbundu depois que significa “ser bravo” e/ou “vagar exten-
de 1610 e finalmente se estabeleceram para samente pelo território” (12) .
fundar novos estados mbundu (Kalandula,
Kabuku, Matanda, Holo, Kasanje, Mwa POPULAÇÕES E CULTURAS
Ndonge, etc.) (9). Sociedade guerreira, o
quilombo forneceu ao exército de Kinguli As migrações e mestiçagens tanto bioló-
original duas coisas que lhe faltavam: uma gicas como culturais caracterizam todos os
estrutura firme capaz de reunir grande núme- povos ao sul da floresta equatorial, de onde se
ro de estranhos desvinculados de suas linha- originou o modelo de quilombo. Apesar de
gens vencidas e uma disciplina militar capaz uma certa homogeneidade resultante dessa
de derrotar os grandes reinos que bloquea- mescla de populações, as culturas dessa imen-
vam sua progressão ao norte e ao oeste de sa região são bastante variadas. Descrevê-las
Kwanza. A palavra quilombo tem a conotação aqui seria uma tarefa difícil, senão impossí-
de uma associação de homens, aberta a todos vel. No entanto, podemos, com base nas se-
sem distinção de filiação a qualquer linha- melhanças, esboçar alguns elementos gerais.
gem, na qual os membros eram submetidos a Todos praticam uma agricultura itinerante
dramáticos rituais de iniciação que os retira- sobre queimada a fogo corrente, sem
vam do âmbito protetor de suas linhagens e rotatividade bem definida, e utilizam as cin-
os integravam como co-guerreiros num regi- zas como adubo. O terreno é deixado em al-
mento de super-homens invulneráveis às ar- queive durante muito tempo, às vezes até vin-
mas de inimigos (10). O quilombo amadure- te anos. As espécies mais cultivadas perten-
cido é uma instituição transcultural que rece- cem ao complexo americano: o milho e a
beu contribuições de diversas culturas: lunda, mandioca. Acrescentem-se a batata-doce e o
imbangala, mbundu, kongo, wovimbundu, amendoim, que também têm um papel muito
etc. Os ovimbundu contribuíram com a estru- importante na alimentação. Todas essas es-
8 Idem, ibidem. tura centralizada de seus campos de inicia- pécies são provenientes da América do Sul,
9 Joseph Miller, op.cit., p.151.
ção, campos esses que ainda se encontram provavelmente do Brasil. O milho teria sido
hoje entre os mbundu e cokwe de Angola introduzido na África central entre 1548 e
10 Idem, ibidem, p. 162.
central e ocidental. 1583, provavelmente a partir do reino do
11 Idem, ibidem, p. 167.
Algumas evidências lingüísticas vêm em Kongo. A mandioca foi introduzida mais tar-
12 Idem, ibidem, p. 168.
apoio para esclarecer a origem dos quilombos. de, por volta de 1600 (13). Ao lado dessas
13 J. Vansina, Les Anciens
Royaumes de la Savane,
Entre o povo mundombe de língua umbundu, plantas de origem americana, encontram-se
op. cit., p.20. perto de Benguele, a palavra quilombo signi- em quase todos os lugares as velhas culturas
14 Idem, ibidem, p. 21. ficava campo de iniciação, no século XIX. africanas que, segundo Murdock, vêm do

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complexo sudanês, como o sorgo, o milho
miúdo e a palmeira. As culturas de origem ESTADOS ONDE OS JAGA TIVERAM INFLUÊNCIA

asiática (Malásia), como a banana, o inhame


e o taro, ocupam uma posição secundária. A
bebida alcoolizada mais difundida vem da
palmeira, a ráfia (o vinho de palmeira), além
da cerveja de milho e de sorgo.
Os animais domésticos em toda a região
são galinhas, cabras, carneiros e cachorros.
Os porcos e os patos foram introduzidos nos
séculos XVIII e XIX (14). O gado é uma ra-
ridade, pois o complexo do gado, salvo entre
os ovimbundu e os lozi, não pertence a esse
povo. Na margem dos grandes lagos e dos
rios vivem comunidades de pescadores
especializados. A caça é também muito apre-
ciada, embora seja uma atividade secundária
à agricultura.

ORGANIZAÇÃO SOCIAL

Fonte: J. Vansina, Les Anciens Royaumes de la Savane.


A maioria dos povos da África central
pratica o sistema de parentesco matrilinear,
em relação à descendência, estrato social, I: YAA OU YAKA DO MYARI
sucessão e herança. O casamento com paren- II: YAKA DO KWANGO
III: IMBANGALA
tes consangüíneos é proibido, salvo entre IV: YAKA D’AMBAKA
parceiros obrigatórios ou preferenciais, ge- V: YAKA DOS OVIMBUNDU
VI: YAKA DE HUMBE
ralmente primos cruzados. O casamento im-
plica sempre transferência de bens matrimo-
niais (dote) e prestações de serviços em bene-
fício da família da noiva. A residência do casal
é geralmente virilocal, até nas sociedades
matrilineares. Embora a descendência e as
linhagens constituídas fossem matrilineares,
a autoridade ficava sempre nas mãos dos ho-
REGIÕES CULTURAIS NA ÁFRICA CENTRAL
mens e não das mulheres.
A aldeia constitui a menor unidade
territorial e, portanto, é a pedra angular da
estrutura política. Ela pode ser composta de
uma linhagem ou de mais linhagens. O con-
junto de aldeias forma a chefia, encabeçada
por um rei pertencendo à linhagen chefal,
Fonte: J. Vansina, Les Anciens Royaumes de la Savane.

geralmente a mais velha de todas. O rei sim-


boliza a chefia e tem obrigações religiosas.
Seu poder não é absoluto, pois contrabalan-
çado pelo conselho composto dos chefes de
aldeias, chefes de linhagens e outros notáveis
da corte.

A RELIGIÃO

As religiões de todos os povos bantu são


semelhantes. Todos acreditam num criador
único ou divindade suprema: Zambi, Kalunga,

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Lessa, Mvidie, etc. É uma divindade longín- vida, da doença e da morte, do sofrimento, da
qua, que criou o mundo e distanciou-se dele, depressão ou fadiga, de qualquer injustiça ou
deixando a administração a seus filhos fracasso, da felicidade, da riqueza, da pobre-
divinizados que são ancestrais fundadores de za, da miséria, etc. Tudo que é positivo à vida
linhagens. Por isso, essa divindade ou deus e à felicidade humana é interpretado como
único é raramente objeto de culto coletivo, aumento e crescimento da força vital; tudo
geralmente reservado às divindades secun- que é considerado como privação, sofrimen-
dárias (espíritos ancestrais). São estes que to e até a perda da própria vida é interpretado
fazem o elo entre os homens e o deus único, como diminuição da força vital. Os outros
criador de tudo que existe no mundo bantu. seres da natureza criados por deus e coloca-
Por isso, costuma-se reduzir e simplificar as dos ao serviço do homem possuem também,
religiões bantu pelo culto dos ancestrais, em um grau menor, essa energia ou força vital.
embora exista um panteão religioso Entre os baluba, um dos ramos importantes
estruturado como mostra o conteúdo do livro das civilizações bantu, a palavra “morrer”,
La Philosophie Bantoue, de Placide Tempels que é uma privação ao extremo da força vital,
(15). Segundo essa filosofia, o mundo é um é aplicada a tudo que existe na natureza. Se
conjunto de forças hierarquizadas por uma quebrar um copo, um vidro, um carro, uma
relação de energia ou força vital. Essa ener- pedra, se cair uma árvore, etc., eles dizem que
gia ou força vital, cuja fonte é o próprio deus “morreu”, mesma palavra utilizada para os
criador, é distribuída em ordem decrescente homens e os animais.
aos ancestrais e defuntos que fazem parte do Nessa visão de mundo, as noções de “Ser”
mundo divino; em seguida ao mundo dos e de “Força” são inseparáveis e interligadas.
vivos, numa relação hierárquica, começando Um ser é por definição uma força, daí o cará-
pelos reis, chefes de aldeias, de linhagens, ter dinâmico do ser e da pessoa humana. Toda
pais e filhos; e finalmente ao mundo animal, força pode crescer ou decrescer, tornar-se mais
vegetal e mineral. Trata-se de uma visão forte ou mais fraca. O crescimento e a dimi-
antropocêntrica, na qual o homem constitui o nuição da força vital explicam-se pela lei da
centro e o interesse maior de toda a obra de interação das forças. Um ser influencia outro,
deus. A força vital explica a existência da ou seja, uma força reforça ou enfraquece outra

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força. Existe uma causalidade metafísica en- guerreiros, um chefe intransigente dentro da
tre o criador e a criatura. Em outras palavras, rigidez da disciplina militar.
a relação entre o criador e a criatura é uma Pelo conteúdo, o quilombo brasileiro é,
constante, porque o primeiro é por sua natu- sem dúvida, uma cópia do quilombo africano
reza dependente do segundo quanto a sua reconstruído pelos escravizados para se opor
existência e sua substância. Uma criança, a uma estrutura escravocrata, pela implanta-
mesmo tornada adulta, permanece sempre em ção de uma outra estrutura política na qual se
uma dependência causal, em uma subordina- encontraram todos os oprimidos. Escraviza-
ção ontológica às forças do pai e da mãe. A dos, revoltados, organizaram-se para fugir das
força primogênita domina sempre a força senzalas e das plantações e ocuparam partes
ultimogênita e continua a exercer sua influ- de territórios brasileiros não-povoados, ge-
ência vital sobre ela. O mundo das forças ralmente de acesso difícil. Imitando o mode-
mantém-se como uma teia de aranha, da qual lo africano, eles transformaram esses territó-
não se pode fazer vibrar um único fio sem rios em espécie de campos de iniciação à re-
sacudir todas as malhas. sistência, campos esses abertos a todos os
Qualquer ser humano é colocado numa oprimidos da sociedade (negros, índios e bran-
relação de forças vitais, algumas mais desen- cos), prefigurando um modelo de democra-
volvidas do que a sua própria força. Essas cia plurirracial que o Brasil ainda está a bus-
forças mais desenvolvidas são o próprio deus, car. Não há como negar a presença, na lide-
os antepassados, os defuntos da linhagem, da rança desses movimentos de fuga organiza-
família; são os pais, feiticeiros, bruxos, etc. dos, de indivíduos escravizados oriundos da
Elas podem influenciar a sua vida no bom região bantu, em especial de Angola, onde foi
sentido (saúde, riqueza, poder, promoção na desenvolvido o quilombo. Apesar de o
profissão, etc.), aumentando a sua força vital, quilombo ser um modelo bantu, creio eu que,
ou no mau sentido (doença, morte, pobreza, ao unir africanos de outras áreas culturais e
insucesso na profissão, etc.), diminuindo a outros descontentes não-africanos, ele teria
sua força vital. Por isso, o culto aos ances- recebido influências diversas, daí seu caráter
trais, num mundo criado por um deus que transcultural. Com efeito, a transculturação
dele se distanciou, constitui o aspecto mais parece-me um dado fundamental da cultura
observável da cosmovisão bantu sem se re- afro-brasileira. A “pureza” das culturas nagô
duzir a ele. O que está por trás do culto aos e bantu é uma preocupação de alguns pesqui-
ancestrais, senão a busca da conservação e do sadores e nada tem a ver com as práticas e
crescimento constantes da força vital, fonte estratégias dos que nos legaram a chamada
inesgotável da vida e de todas as felicidades? cultura negra no Brasil. Com efeito, os escra-
vizados africanos e seus descendentes nunca
CONCLUINDO ficaram presos aos modelos ideológicos
excludentes. Suas práticas e estratégias de-
Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, senvolveram-se dentro do modelo
foi morto em 1695, quase no fim do século transcultural, com o objetivo de formar iden-
XVII. Coincidentemente, a formação da insti- tidades pessoais ricas e estáveis que não po-
tuição kilombo no continente africano, especi- diam estruturar-se unicamente dentro dos li-
ficamente na área cultural bantu, aconteceu mites de sua cultura. Tiveram uma abertura
também nos séculos XVI e XVII. O quilombo externa em duplo sentido para dar e receber 15. Placide Tempels, La
africano, no seu processo de amadurecimento, influências culturais de outras comunidades, Philosophie Bantoue , 2ª
ed., Paris, Présence
tornou-se uma instituição política e militar sem abrir mão de sua existência enquanto Africaine, 1961.

transétnica, centralizada, formada por sujeitos cultura distinta e sem desrespeitar o que ha- 16. Kabengele Munanga, “As
Facetas de uma Identida-
masculinos submetidos a um ritual de inicia- via de comum entre seres humanos. Visavam de Endeusada”. (manuscri-
to inédito), São Paulo,
ção. A iniciação, além de conferir-lhes forças a formação de identidades abertas, produzi- 1955, pp. 10-1.Ver tam-
específicas e qualidades de grandes guerrei- das pela comunicação incessante com o ou- bém: Sergio Paulo
R o u a n e t ,
ros, tinha a função de unificá-los e integrá-los tro, e não de identidades fechadas, geradas “Transculturalismo ou Re-
torno à Etnicidade”, comu-
ritualmente, tendo em vista que foram recruta- por barricadas culturais que excluem o outro nicação apresentada no
seminário “Mestiçagem e
dos das linhagens estrangeiras ao grupo de (16). Precisamos desse exemplo de união le- Experiências Interculturais
origem. Como instituição centralizada, o no Brasil”, Berlin, Haus Der
gado pela República de Palmares para supe- Kulturen Der Welt, 27 de
quilombo era liderado por um guerreiro entre rar e radicar o racismo e seus duplos. outubro de 1994, p. 4.

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