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Científica
Curso: Administração – 1ª fase-
2011.1
Prof. Gilmar J. Fava
2011.1
GOERGEN, Pedro. Ciência, sociedade e universidade. Educ. Soc., Aug. 1998, vol.19,
no.63, p.53-79. ISSN 0101-7330.
Pedro Goergen (Doutor pela Universidade de Munique e Professor da Faculdade de Educação da Unicamp)
RESUMO: Este trabalho busca repensar a relação entre ciência, sociedade e universidade a
partir das transformações que marcam a contemporaneidade. A hipótese é de que estas
mudanças de níveis econômico, laboral e mesmo epistêmico afetam também o sentido da
prática acadêmica. A partir da reflexão sobre os três conceitos que compõem o título do
artigo - ciência, sociedade e universidade -, conclui-se que a universidade deve iniciar um
processo de auto-avaliação que inclua seus próprios fundamentos, ainda modernos, na
perspectiva do novo cenário. Esta reflexão básica deve constituir o ponto de partida para
uma futura reforma universitária.
"L'objectif d'une societé multiculturelle ne se discute pas et fait à mês yeux partie de ces
grandes causes de l'humanité que les sociétés démocratiques doivent aujourd'hui prendre en
charge. Ce qui en revanche reste soumis à discussion, c'est la question même de savoir quel
rôle l'Université peut et doit jouer, s'il est vrai qu'elle doit en jouer un, dans la réalisation de
cet objectif."
(Alain Renaut)
"A crise de confiança estendeu-se aos próprios cientistas. Eles não só questionam agora a
aplicação em massa da ciência ao mundo, mas postulam também perguntas inquietantes
sobre o próprio status da ciência como método privilegiado de compreensão."
(Krishan Kumar)
Introdução
A partir do início da modernidade, a ciência foi definida como o caminho privilegiado e mais
seguro de acesso à realidade. O proceder científico facultaria ao homem desvendar os
mistérios das incontroláveis forças ocultas que lhe impunham tanto medo. O homem
disporia, afinal, de um instrumento que o tornaria verdadeiro senhor da criação. A ciência
começou a ser vista, desde então, como o motor do desenvolvimento, símbolo do progresso.
Estabeleceu-se uma relação indestrinçável entre ciência e desenvolvimento humano e social.
Em seqüência, uma das principais preocupações do homem passou a ser fazer ciência. Aos
poucos, esta ciência passou a ser avaliada segundo seu maior ou menor sentido
prático. Homens geniais e abnegados fizeram disso o sentido de sua vida.
Instituições foram criadas e organizadas com o objetivo precípuo de produzir ciência e
traduzir seus resultados para a prática. A universidade foi paulatinamente incorporando este
sentido prático do saber. Dela se espera, cada vez mais, que produza conhecimentos úteis e
Hoje nos encontramos num período de enormes mudanças e transformações que, sem
dúvida, afetarão profundamente o nexo ciência e sociedade com conseqüências não só para
a estrutura administrativa, a organização curricular e os procedimentos acadêmicos, mas
para a própria função da universidade no interior da sociedade. O objetivo do presente
trabalho é formular algumas aproximações, muito primeiras e gerais, do que podem
significar as transformações que tanto marcam nosso tempo para a função da universidade.
O tema, assim posto, poderia ser abordado de diferentes ângulos. Optei por um
procedimento que envolve a explicitação dos conceitos envolvidos - sociedade e
universidade - não com a pretensão de fazer uma análise aprofundada de cada um deles,
mas para destacar alguns tópicos que possam eventualmente servir para um posterior
debate com sentido orientador para a prática acadêmica. A expectativa é a de que, assim
procedendo, se alcance maior clareza a respeito do papel da universidade no interior da
sociedade como agente produtor e divulgador de ciência e tecnologia.
Antes porém, é necessário esclarecer que o que aqui se entende por ciência não diz respeito
apenas às ciências exatas, mas também àqueles outros domínios do saber que tratam das
relações humanas, da ética, da cultura, da educação, enfim, todo o saber nascido do exame
sistemático e cuidadoso dos temas referentes ao ser humano. Parece-nos de fundamental
importância fazer esta explicação porque só assim podemos falar de um conceito de
universidade no sentido da universalidade do saber e da relação entre ciência e sociedade.
Se falássemos da relação entre ciência e sociedade, reduzindo o conceito de ciência à visão
das ciências naturais e exatas, estaríamos, no mínimo, praticando um erro de origem, pois
ciência, a nosso ver, é um conceito muito mais amplo do que aquele restrito às ciências
exatas e naturais. Este ponto de vista, a respeito do qual, aliás, há uma vasta bibliografia que
cresce dia-a-dia, parece firmar-se cada vez mais. A partir deste entendimento amplo de
ciência, parece-nos possível comentar alguns pontos específicos da relação ciência e
sociedade.
A sociedade em transformação
É claro que não posso fazer aqui uma tipologia ampla da sociedade contemporânea.
Pretendo apenas destacar alguns pontos que interessam mais de perto ao nosso tema. Todos
concordam que a sociedade se encontra atualmente num profundo e célere processo de
transformação. Instalou-se um grande debate entre modernos e pós-modernos a respeito da
O que não se sabe é para onde estas mudanças levarão. Mas o que afinal está ocorrendo?
Além desse desequilíbrio global do poder, que tem sua origem não mais no uso da força e
das armas, mas no domínio do conhecimento, os avanços científico-tecnológicos envolvem
outros importantes desafios. Leopoldo de Meis menciona alguns deles: o primeiro é a
assimetria entre jovens e adultos. Os países com maior desenvolvimento científico-
tecnológico aprenderam a controlar o crescimento de suas populações. Isto traz um grande
problema para a educação nos países em desenvolvimento. É consensual que a educação é
um dos elementos essenciais para o desenvolvimento no mundo contemporâneo. Ora, "os
países que têm o menor desenvolvimento científico são os responsáveis pela educação da
maior parcela dos jovens do planeta." (Meis 1996, p. 28). Numa era em que se exige um
nível cada vez maior de conhecimentos dos jovens que entram no mercado de trabalho, o
qual só cresce nas áreas ligadas à ciência, o equilíbrio apontado representa uma
desvantagem muito grande para os países em desenvolvimento.
O papel de decodificador torna-se tanto mais importante quanto mais os resultados das
pesquisas vão sendo publicados em revistas internacionais, geralmente em inglês. Estes
procedimentos, muitas vezes condenados como elitistas, são na verdade inevitáveis por
causa da construção do conhecimento nos fluxos internacionais. A conquista de saber novo
depende sempre mais da capacidade de interagir com laboratórios e centros internacionais
de pesquisa cujos meios de comunicação sempre se servem do inglês.
Nesse contexto, deve ser lembrado também que um dos eixos importantes da problemática
"ciência e sociedade" encontra-se no ensino das ciências. Entre as diferentes áreas do saber,
uma das que menos se desenvolveu ao longo dos últimos séculos foi a da arte de ensinar.
Enquanto a busca do saber avança a passos largos, o ensino de ciências é hoje ainda muito
semelhante àquele usado há dois séculos.
Para os países subdesenvolvidos ainda existe um outro tipo de saber oculto, além daquele
mantido em sigilo por entidades governamentais ou industriais. Conforme já mencionamos,
trata-se daquele saber, disponível em princípio, mas inacessível por causa da falta de
especialistas para decodificá-lo, confirmando a importância do novo
especialista/decodificador, como já mencionei anteriormente. Vejamos o que diz a respeito
disso Meis: "Muitos dos novos conceitos descobertos nos laboratórios de pesquisa somente
são apercebidos pela maior parte da população do planeta depois que os produtos dela
derivados tenham se inserido na sociedade, gerando novos costumes e hábitos" (Meis 1996,
p. 36). Exemplos disso são a pesquisa nuclear, as técnicas anticoncepcionais, a inseminação
artificial, a manipulação genética. Lixo atômico, novos comportamentos sexuais, mudança de
concepção de paternidade e maternidade, mutações genéticas aplicadas em seres humanos
Outro tema da mais alta relevância é a questão da ética. Antes da revolução científica, os
conceitos de bem e de mal eram definidos a partir de princípios metafísicos ou teológicos.
Com o avanço da ciência, estes tradicionais conceitos de fundamentação transcendental
foram sendo substituídos pelos de útil ou inútil bem presos à sua serventia empírica. O uso
dos conceitos funciona ou não funciona como paradigmas orientadores da ação humana e
implica profundas mudanças éticas e sociais, sem que sejam discutidos seus fundamentos e
suas conseqüências. A revolução industrial, além de "estabelecer um nova relação entre
cidade e campo, lar e trabalho, homens e mulheres, pais e filhos, gerou uma nova ética e
novas filosofias sociais". Agora, a época da globalização e da informática "sugere
possibilidades de uma nova estrutura de cidadania e democracia nas quais até agora mal se
pensou" (Kumar 1997, p. 172).
Como se fora profeta, Habermas já alertava num de seus primeiros trabalhos acadêmicos dos
anos 60 sobre os riscos da diluição da esfera pública. Hoje realmente constatamos que a
privatização e a individuação, possibilitadas pela tecnologia da informação, conduzem ao
esvaziamento e à diminuição da esfera pública nas sociedades atuais. Um dos campos da
atividade humana onde se sente isso de forma mais clara é o da economia. Medidas
econômicas são boas quando funcionam em termos de manutenção e sustentação do
sistema econômico vigente e dos interesses a ele atinentes, sejam eles ou não escusos
desde um ponto de vista de valores éticos mais gerais. A ação política ou econômica justifica-
se a partir de objetivos fixados por interesses sem fundamentação em princípios universais e
que não foram tematizados socialmente. No dizer de Habermas, o que determina a ação são
regras técnicas que se justificam por si mesmas e não por normas e valores, submetidos ao
debate público. Nisto, ou seja, na não-tematização das regras técnicas, consiste um dos
principais aspectos ideológicos da ciência e tecnologia (cf. Habermas 1982). O que isto
representa em termos práticos nos mostra com clareza Viviane Forester ao analisar a
situação do desemprego que aflige os trabalhadores. Sua exposição desenha um quadro
dramático dos sacrifícios que os seres humanos têm de suportar em termos de desemprego
para que o sistema possa ser mantido. E agora podemos formular a pergunta: como se há de
comportar a universidade profissionalizante no limiar de uma era que está em vias de
suprimir aquilo que se chama trabalho? A universidade é solicitada a formar indivíduos
"úteis" à sociedade, o que, no dizer de Forester (1997, p. 13), "significa quase sempre
rentável". Nisto encontra-se também o risco de uma avaliação que se propõe simplesmente
verificar em que medida a universidade está respondendo a este mandado de formar
indivíduos úteis. É urgente superar este "abreviamento" do papel da universidade que
reduziu sua função a formar indivíduos para atender "necessidades sociais", sejam elas quais
forem e recuperar seu papel de instância crítica da sociedade a partir de interesses humanos
mais amplos democraticamente discutidos. Porque a falta de trabalho se tornou uma norma
pela qual o excluído se torna dono falido de seu próprio destino que não passa de um
número colocado pelo acaso numa estatística (Forester 1997, pp. 10-11), a universidade,
Para estas, a vida torna-se uma insídia que não vale a pena ser vivida porque portada por
seres que não dão lucro. E não dão lucro não porque não queiram ou não possam, mas
simplesmente porque são deserdados do sistema. A sociedade cada vez menos divide-se em
classes, em partidos, em favoráveis ou desfavoráveis, mas em excluídos ou incluídos, úteis
ou supérfluos. A própria vida, como dizíamos, torna-se supérflua, inútil quando não dá lucro.
O pior de tudo é que de tanta discussão, o tema do desemprego e da exclusão torna-se
familiar, assumindo um certo ar de inocência como a pobreza que vemos todos os dias
diante da porta, na esquina, nas ruas e em belas cores, na televisão. Tudo assume um ar
teatral de espetáculo e, como tal, os crimes, as mortes, a violência, os estupros, tudo se
torna, de certa forma, inocente. Pelo menos enquanto não nos atinge pessoalmente. Por
detrás disso, como bem lembra Forester, está a matriz de tudo que jamais é mencionado: o
lucro. "Tudo é organizado, previsto, proibido e suscitado em razão dele, que dessa maneira
parece inevitável, como que fundido à própria semente da vida, a ponto de não se distinguir
dela" (Forester 1997, p. 19).
A sociedade humana ainda faz de conta que o futuro do ser humano é o trabalho, quando, na
realidade, este diminui a cada dia que passa. E, apesar das promessas de políticos e
empresários, não há nenhuma perspectiva de mudança. É hora de a sociedade tomar
consciência de que é preciso procurar novos caminhos. Inclusive, os ricos sistemas dos
Estados de Bem-Estar-Social começam a sentir dificuldades em sustentar a imensa legião de
desempregados que abrange grande parcela da população. Os salários começam a ser
A universidade despende um enorme esforço para formar empregáveis que jamais serão
empregados. O emprego que a universidade ajuda alguém a conquistar representa
necessariamente o sacrifício de outro empregado. Já não se gera nem se cria empregos,
apenas os empregos são disputados. A universidade forma pessoas para que elas vençam
esta disputa. Por isso há que ter cuidado quando se imagina, nas condições atuais, que a
formação profissional é o pleno exercício da função social da universidade. O auxílio é
prestado àqueles que conseguem vencer as barreiras de acesso dos famigerados exames de
ingresso, o que geralmente está reservado aos filhos já privilegiados da sociedade. Estes
então terão, ao final de sua formação, mais condições de vencer a luta. Mas esta luta não é a
luta por mais um lugar de trabalho, mas pelo lugar de trabalho de um outro. Se me perdoam
a imagem um pouco grotesca, a sociedade de hoje se assemelha a um animal que, tendo
passado por um genial processo de evolução, resolvesse usar seus mais avançados
conhecimentos e técnicas para racionalizar e otimizar seu sistema de amamentação,
reduzindo o número de mamas. Tem sentido: reduzir-se-ia a quantidade de leite despendido,
ao mesmo tempo em que aqueles filhotes que conseguissem seu lugar teriam leite de melhor
qualidade e em maior profusão. Os outros, incompetentes, é claro, sofreriam,
lamentavelmente, a conseqüência: deveriam morrer.
A universidade continua formando para uma sociedade industrial ou, na melhor da hipóteses,
pós-industrial que, conforme mostra Castells, já foi ou pelo menos vem sendo substituída
pela sociedade informacional, na qual
a materialidade das redes e fluxos cria uma nova estrutura social em todos
os níveis da sociedade. Tal estrutura é o que atualmente constitui a nova
sociedade da informação, uma sociedade que poderia ser chamada
sociedade dos fluxos, já que os fluxos não são feitos somente de informação,
mas de todo o material da atividade humana (capital, trabalho, mercadorias,
imagens, viagens, papéis mutáveis em interação pessoal etc.). (Castells
1996, p. 29)
A linguagem, por exemplo, é um dos elementos centrais a partir do qual se deve repensar
significados, identidades e políticas. A universidade continua assumindo a posição positivista
de linguagem, sem atentar para o fato de que a linguagem é construída a partir do jogo de
condicionamentos históricos. Questiona-se hoje radicalmente a visão hegemônica de
representação segundo a qual o conhecimento, a verdade e a razão são governados por
códigos lingüísticos essencialmente neutros e apolíticos. Verdade e ciência deixam de ser,
neste contexto, noções fixas e incontestáveis para tornarem-se representações submetidas à
constante problematização e crítica.
esta divisão do ensino superior em dois setores paralelos traz, seja dito, uma
conseqüência mais profunda que reside na indiferença, desde então
possível, de ver como socialmente legítimo o destino das universidades. Pois
se a produção de elites das quais uma nação moderna precisa se efetua em
formas mais especializadas de ensino que se encontram nas Grandes Écoles,
por que então se preocupar com as universidades? (Renaut 1995, p. 33)
Hoje se costuma dar grande destaque à relação entre a universidade e o setor produtivo.
Trata-se, sem dúvida, de um aspecto importante do desempenho acadêmico, mas o discurso
incisivo e, em certos setores fora e dentro da universidade, quase consensual de que a
articulação entre a universidade e o setor produtivo é essencial e de que é a partir dele que
se mede a "utilidade" da academia é, no mínimo, simplificado para não dizer que se encontra
carregado de interesses ideológicos. É claro que a cooperação entre universidade e empresa
é importante e deve ser estimulada ao máximo, mas é igualmente importante deixar claro
que se trata de uma relação complexa que além das vantagens que ambos os lados dela
esperam também envolve riscos, sobretudo para a universidade. Também não tem lugar um
otimismo exagerado uma vez que, em muitos casos, o próprio sistema produtivo descarta a
produção das universidades em termos de cultura, ciência e tecnologia (Cunha 1997, p. 24).
Em muitos casos, a universidade é lenta demais para o ritmo do mundo empresarial que
prefere optar pela compra de pacotes tecnológicos prontos que têm aplicações imediatas. O
produto das pesquisas acadêmicas, oferecido de forma bruta desde o ponto de vista de sua
aplicação prática, não tem condições de ser absorvido pelo sistema produtivo. Isto gera uma
grande frustração, sobretudo naqueles setores acadêmicos que alimentam a esperança da
produção de ciência e tecnologia nacionais. Reclama-se do desinteresse das empresas pelo
investimento na área de ciência e tecnologia, mas se ignora os fatores custo (importar
tecnologia pronta é muitas vezes mais barato) e tempo. Na realidade, trata-se de uma
situação perversa uma vez que a mesma sociedade, a maior interessada na produção de
E não há como evitar isso uma vez que os desejos e as necessidades dos consumidores são
gerados pela mídia a partir de produtos dos países mais desenvolvidos que por condições
que não interessa discutir aqui estão sempre muitos anos à frente dos países em
desenvolvimento.
Muitas vezes, ao estabelecer laços de cooperação com a empresa, a universidade teme pela
perda de sua autonomia de pesquisa. As empresas estão interessadas em pesquisas que
podem rapidamente ser vertidas em produtos e que venham a gerar lucros. A universidade,
por seu turno, tem interesse na pesquisa básica e quer preservar seu posicionamento crítico.
Segundo Cunha,
Bem se sabe que a universidade não pode simplesmente ser "inquilina da utopia", negando-
se a prestar serviços à comunidade ou desenvolver projetos conjuntos com empresas, mas,
em contrapartida, não pode abrir mão de sua tarefa crítica, abandonando-se à subserviência
de reclamos econômicos numa sociedade comandada por grupos de interesse em que
amplas margens da população são condenadas à miséria.
É preciso ter em conta ainda um outro aspecto que muitas vezes passa despercebido neste
debate sobre a relação entre universidade e empresa. Trata-se da tendência de a
universidade submeter-se à lógica do lucro na medida em que privilegia, no seu
relacionamento com as empresas, as áreas de maior retorno econômico as quais, por isso,
tornam-se focos de atração para boa parte dos alunos e pesquisadores, aliás, pelo poder de
atração do retorno econômico, geralmente os melhores. O conhecimento a ser adquirido ou
produzido na universidade passa a ser interessante apenas na medida em que for possível
transformá-lo em dinheiro. A formação científica ou profissional é mais ou menos valorizada
segundo seu potencial de lucro. O poder de compra que este garante é a carteira de
identidade do homem contemporâneo. Muda-se a máxima cartesiana "penso, logo existo"
para "compro, logo existo", ou seja, quem não é capaz de comprar não existe. Mesmo sem
dispor de dados empíricos, nossa experiência nos permite afirmar sem risco que grande
Com isso, as universidades são obrigadas a competir num mercado acadêmico cada vez mais
dominado pela mesma lei da produtividade e do lucro que rege o mercado em geral. As
perguntas fundamentais a respeito do ser humano, da formação, da cultura e da ética são
ridicularizadas no interior da academia como "coisas que não servem para nada". O lucro, diz
Forrester, torna-se "a única lógica, como a própria substância da existência, o pilar da
civilização, a garantia de toda a democracia, o móvel (fixo) de toda a mobilidade, o centro
nervoso de toda a circulação, o motor invisível e inaudível, intocável de nossas animações"
(1997, p. 19). E, referindo isto à universidade, Renaut não entende por que "a gente não se
pergunta jamais se a incapacidade de tantos universitários de participarem, com suas
competências, dos debates atuais não seria um dos mais cruéis indícios do rebaixamento
contemporâneo da universidade" (1995, p. 23). É claro que este não é um problema
exclusivo da universidade e talvez nem nasça em seu seio, mas é sem dúvida parte de sua
missão contribuir para superá-lo. Trata-se, no fundo, de salvar a dimensão mais profunda do
homem preservando-o de sua exteriorização total no material. Para a universidade trata-se
de uma questão ética que afeta a essência de sua atividade e de seu sentido social. O que
queremos dizer é que o sentido social da universidade está sendo abreviado e reduzido à
função de prestar serviços e cooperar com empresas. Sem negar que isto possa também ser
socialmente relevante, acreditamos que o sentido social da universidade vai muito além
disso.
A universidade deve retomar seriamente a questão de sua função social na tensão da cultura
e da profissionalização. É preciso encontrar um novo equilíbrio entre a formação
técnico/profissional e a formação humanista/cultural. Para isso, é necessário que a
universidade leve a sério, em todas as áreas de atuação, sua função cultural. Não se trata
apenas de abrir pequenos espaços no currículo para a abordagem de temas humanísticos ou
Para tanto, não se deve partir de idéias gerais a respeito da identidade ideal da universidade
para, em seguida, tentar aplicá-las normativamente, como se fazia tradicionalmente, mas
construir um novo modelo universitário com base na realidade concreta da sociedade e do
homem de hoje. Para isso, nem o local nem o global devem ser considerados isoladamente,
mas ambos como fatores inter-relacionados que determinam a sociedade e o homem. É,
portanto, mister que a universidade desenvolva a necessária sensibilidade social para que,
reconhecendo seus problemas e suas necessidades, possa instituir sua nova identidade e
desenvolver estratégias de atuação. O debate sobre as funções da universidade deve, por
conseguinte, ser posto desde uma perspectiva contemporânea, preservando proximidade
com as questões mais relevantes da sociedade, tal como elas se apresentam na realidade.
Esta aproximação com o local e o regional representa, de certa forma, um nadar contra a
corrente, pois são hegemônicos aqueles interesses que correspondem à racionalidade
científico-tecnológica, marcada por uma lógica universalizante que estandartiza formas de
ser, de pensar e de agir, próprias do homem concreto, inserido em sua comunidade e
cultura. Com relação a este surto homogeneizador, as características e os modos de ser
locais são curiosamente considerados alienados. Na sociedade contemporânea, o homem
está ameaçado por um processo de desenraizamento quanto à sua cultura e à perda de sua
identidade. Mais sério é este risco para as gerações mais jovens que se formam num
ambiente de fratura e sem pertença no qual a mídia exerce uma influência avassaladora e
sem precedentes na desconstrução da identidade cultural e na elaboração de identidades
fluidas e fragmentárias. Neste meio, conforme diz Henry Giroux, "os valores já não nascem a
partir de uma pedagogia modernista de fundamentalismo e verdades universais, nem de
discursos tradicionais baseados em identidades fixas e com uma estrutura final" (1996, p.
73). Esta realidade constitui talvez o maior desafio para a educação nos dias de hoje, pelo
menos se acreditamos que o homem é algo mais que mero objeto de mercado e que a
educação deve contribuir para formar este algo mais no homem. Uma das principais tarefas
será a de recuperar o espaço humano que já foi perdido. Refiro-me em especial à deplorável
situação em que se encontra considerável parcela dos jovens da nova geração. É uma
geração que já não aspira a coisa alguma, desnorteada e fragmentada, que espera passar o
tempo, que vê a morte e a vida como um espetáculo, que não sente responsabilidade social,
que cultua a imediatez do momento, da experiência e do prazer. A droga é um prazer assim
imediato e representa a fuga de um mundo sem sentimento e sem esperança. Tudo é fluido,
precário, relativo. Nada mais abriga nem obriga; nada mais entusiasma, desafia ou
compromete. O homem, a sociedade e a própria vida sofrem de um profunda carência de
sentido. Este mal, talvez o mais terrível dos nossos tempos, deverá um dia ser enfrentado,
quem sabe quando o refúgio da atividade frenética, que a todos agita, ocupa e aliena, não
oferecer mais proteção suficiente.
Talvez as universidades regionais, por vocação mais próximas do homem do interior, possam
poupar-lhe esta dolorosa travessia pelo caminhos errantes da razão moderna, desviada de
seus objetivos de raiz, isto é, da construção de uma sociedade melhor e de um homem mais
feliz. Kant queria que a razão conduzisse o homem à sua maioridade, dominador de seu
entorno e dono de seus atos. O que aconteceu foi este mundo científico-tecnológico cujas
regras, em muitos sentidos, são a gaiola de ouro do homem contemporâneo, como já
insinuava Weber. Esta sociedade tecnológica tem, de fato, necessidade não apenas de
técnicos seguros de suas competências especializadas, mas também de líderes capazes de
tomar decisões e de fazer opções de maior amplitude, de desenvolver uma visão mais ampla
da área à qual seus saberes e suas habilidades técnicas se aplicam (cf. Renaut 1995, p. 226).
Conclusão
Nesse sentido, a nova realidade que se delineia para as próximas décadas não é apenas um
dado que deve ser incorporado pela universidade, mas representa, na atualidade, seu maior
desafio. Tanto ela deve pensar criticamente esta realidade e contribuir para seu
dimensionamento humano, quanto deve repensar sua própria função e identidade na
perspectiva das mudanças que ocorrem.
Acreditamos que os fundamentos, assim colocados, podem servir como subsídio para o
estabelecimento de uma política universitária no campo da ciência e tecnologia e, também,
para dar início a uma reflexão mais ampla sobre os fundamentos da universidade na
sociedade de hoje.
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