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PAULO CARRANO*
*Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF); bolsista produ-
tividade do pesquisador do Cnpq, nível 2; bolsista jovem cientista do nosso estado/Faperj; coordenador do Observa-
tório Jovem do Rio de Janeiro/UFF. E-mail: paulocarrano@yahoo.com.br
RESUMO: CARRANO, P. Jovens pobres: modos de vida, percursos urbanos e transições para a vida adulta.
Ciências Humanas e Sociais em Revista, Seropédica, RJ: EDUR, v. 30 n 2, p. 62-70, jul-dez, 2008. As investigações
sobre as identidades juvenis centradas sobre determinados temas (cultura, trabalho, lazer, escolarização etc) têm, em
grande medida, investido em aspectos parcelares da vida dos jovens e perdido de vista os contextos concretos de
existência dos sujeitos investigados. A investigação sobre os modos de vida dos sujeitos jovens em suas relações com
os espaços-tempos da cidade pode permitir a ampliação da compreensão para além dos estudos recortados por temas,
conferindo maior complexidade de análise dos objetos investigados. O reconhecimento de eventos, disposições
aprendidas e processos de interação nos permitem compreender, principalmente, os sentidos dos percursos dos jovens
nos espaços da cidade. Os percursos e as redes de relacionamentos que se configuram no espaço são significativos
para a compreensão das trajetórias pessoais e o processo de transição para a vida adulta.
ABSTRACT: CARRANO, P. Poor Young people: lifestyle, urbans origens and adult life transitions. Ciências
Humanas e Sociais em Revista, Seropédica, RJ: EDUR, v. 30 n 2, p. 62-70, jul-dez, 2008. The investigations
focused on youth identities based on certain topics (culture, work, recreation, education etc) are invested in partial
aspects of the young peoples lives and lost sight of the existence of specific contexts of the investigated. The research
about the young people ways of life in their relations with the city space-time could allow the expansion of understanding
in addition to studies that are focused on other subject and give greater complexity of analysis of the objects investigated.
The recognition of events, learned rules and procedures of interaction allows us to understand, especially, the meanings
of the routes of young people in the city. The pathways and networks of relationships that are up in space are significant
to understand the personal trajectories and the transitions process to adulthood.
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uma participação diferenciada e desigual dos Ainda segundo Telles (idem), na análi-
processos de produção e reprodução da vida se das desigualdades, as noções de dualização
social. Isso significa dizer que a cidade não é social além de não darem conta da realidade
experimentada e apropriada por todos da mes- teriam o efeito de produzir uma imagem
ma maneira. Esse diferencial de apropriação desfocada do mundo social. Para ela, estaría-
dos recursos materiais e simbólicos da cidade mos frente não a dualizações, mas sim à
pode ser apontado como um dos fatores que disjunção ou dissimetria (esta sim problemáti-
organizam a produção das identidades soci- ca), sobretudo no que diz respeito aos jovens
ais. Para visualizar essa tensão entre sujeitos de bairros empobrecidos da cidade, entre
situados em diferentes lugares sociais de apro- integração econômica, integração política e
priação dos recursos urbanos basta que pen- integração cultural. Nesse quadro de disjunção,
semos nas desiguais condições de vida em tor- ocorrem transformações societárias que com-
no dos espaços de moradia, lazer e trabalho. binam a experiência do desemprego e do tra-
É possível afirmar com Lefebvre (1969) que balho em mercados excludentes, instáveis e
o direito (material e simbólico) à cidade não é precários em conjunto com a integração dos
igual para todos os seus habitantes. indivíduos e suas famílias em circuitos de bens
A organização social das cidades cria culturais e simbólicos da sociedade de consu-
restrições geográficas e simbólicas para a mo. Essa lógica atravessa toda a sociedade atin-
constituição do livre trânsito das identidades. gindo até mesmo os territórios tradicionalmen-
É neste sentido que não é possível falar de te considerados como lugares paradigmáticos
identidades apenas restringindo a análise a da pobreza desvalida (VALLADARES, apud
seus aspectos culturais. Cruz (2000), consi- TELLES, op. cit: 51). A sociedade se vê tam-
derando tanto a inserção dos sujeitos nas es- bém atravessada por processos societários iné-
truturas de produção quanto o papel da cultu- ditos e novas formas de sociabilidade, subjeti-
ra na elaboração das subjetividades, concebe vidade e construção de identidades. Há novos
os atores urbanos em três grandes categorias: padrões de mobilidade e acesso aos espaços ur-
a) os integrados à estrutura de produção; b) os banos e seus serviços, ambivalentes redes so-
disponíveis (que mesmo sem estar dentro do ciais são tecidas entre a dinâmica familiar, os
sistema produtivo são suscetíveis de ser re- espaços de lazer e consumo e o crescente mun-
crutados); e c) os circulantes, que gravitam sem do das ilegalidades que articula formas diver-
destino aparente na estrutura de produção. sas de criminalidade e o tráfico de drogas
Telles (2006) em seu estudo sobre as Os fenômenos acima descritos podem
tramas da cidade, as trajetórias urbanas e seus ser enxergados como vetores sociológicos que
territórios, afirma a necessidade de repensar- ainda precisam de esforço investigativo para a
mos crítica e teoricamente a questão urbana e sua melhor compreensão, sobretudo se consi-
a cidade considerando as metamorfoses dos derarmos seu caráter recente e as distintas for-
“problemas urbanos”. Os problemas já não são mas e conteúdos que os mesmos podem assu-
os mesmos analisados em estudos marcantes mir em diferentes contextos urbanos. Em algu-
das décadas de 1970 e 1980 e que criaram re- mas cidades – tais como Niterói e Rio de Ja-
ferências analíticas importantes para compre- neiro – as noções de centro e periferia são pou-
ender as contradições presentes nas relações co elucidativas sobre a história da produção dos
entre capital e trabalho no quadro de expan- espaços urbanos. Se, por um lado, é possível
são da “cidade fordista”. Os anos 1990, que compreender morros e favelas como áreas de
demarcam a consolidação do modelo segregação, por outro, não podemos ignorar a
neoliberal de organização do Estado e da eco- multiplicidade de conexões que os espaços se-
nomia, são também momentos de início das gregados estabelecem em relação aos demais
transformações que incidem sobre a produção territórios da cidade. O acompanhamento dos
do espaço urbano e o tecido social contempo- trajetos e percursos dos jovens pobres pode
râneo. permitir desenhar novos contornos do espaço
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urbano e ajudar na compreensão da cidade que A construção das identidades pelos gru-
a eles se oferece nas tramas de socialização pos supõe práticas de aprendizagem e alguns
que emergem da cidade por eles praticada. jovens instituem lutas simbólicas através dos
compromissos cotidianos que assumem com
determinado processo de identização coletiva
que existe no contexto de práticas permanen-
PRÁTICAS TERRITORIAIS JUVENIS tes e mutantes de definição das identidades.
É possível afirmar que os jovens das clas-
Os jovens recebem espaços da cidade ses populares articulam territórios próprios na
prontos e sobre eles elaboram territórios que ruína dos espaços da cidade que sobraram para
passam a ser a extensão dos próprios corpos: eles. A relativa ignorância dos adultos acerca
uma praça se transforma em campo de fute- da materialidade social e do simbolismo das
bol, sob um vão de viaduto se improvisa uma práticas juvenis é fonte de mal-entendidos,
pista de skate ou um baile de black music (ou incompreensões e intolerâncias acerca das ati-
forró, por exemplo); o corredor da escola – tudes e silêncios dos jovens. A pesquisa social
lugar originalmente de passagem – se torna sobre os grupos juvenis tem contribuído para
ponto de encontro e sociabilidade ou uma rua decifrar sinais e estabelecer pontes para o diá-
se transforma em espaço para o street basket. logo entre os jovens e o mundo adulto que
Os diferentes territórios juvenis são também administra as crises relacionadas ao declínio
lugares simbólicos para o reconhecimento das de realização dos projetos institucionais. No
identidades em comum; é em torno de deter- que pese a importância dos estudos sobre os
minado território que se constitui o grupo de grupos e as identidades coletivas juvenis, ain-
iguais. A identidade do grupo precisa se mos- da há, notadamente no Brasil, largo campo a
trar publicamente para se manter e, assim, cada explorar naquilo que se refere ao estudo das
grupo cria suas próprias políticas de visibili- trajetórias sociais e percursos – usos da cida-
dade pública que podem se expressar pela de – dos jovens dos espaços populares.
roupa, pela mímica corporal, em vocabulári- Há, por exemplo, um cenário de novos vín-
os e gramáticas exclusivos ou num novo esti- culos de sociabilidade juvenil com a partici-
lo musical. pação de jovens em projetos e programas so-
A cidade é transformada de espaço anôni- ciais – de ongs e governos – focados em co-
mo a território pelos jovens atores urbanos que munidades populares. A análise do fenômeno
constroem laços objetiváveis, comemoram-se, da geração dos jovens de projeto (social) en-
celebram-se, inscrevem marcas exteriores em contra-se na agenda de aprofundamento das
seus corpos que servem para fixar e recordar investigações sobre os vínculos entre a juven-
quem eles e elas são. Essas marcas se relacio- tude popular e as novas mediações sociais. Me-
nam com processos de representação, verda- diações estas que tanto são capazes de alargar
deiras objetivações simbólicas que permitem campos de possibilidade e de articulação de
distinguir os membros dos grupos no tempo e alternativas de futuro quanto organizar proces-
no espaço. As marcas podem ser objetivadas sos de tutela e controle do tempo livre da ju-
no próprio corpo (uma tatuagem) ou mesmo ventude pobre que se associam ao conjunto
habitar o corpo como adereço de identidade, das práticas de gestão e controle da pobreza
tal como acontece com os bonés que se trans- urbana.1
formaram em fonte de tensão permanente em
algumas escolas que não toleram seu uso, tal-
vez por não enxergarem que esses são signos
que representam a extensão da própria subje-
tividade dos jovens alunos que reagem ao te-
rem de deixar “parte de si” fora do espaço-
tempo da escola. A “QUESTÃO” JUVENIL
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Uma das características de nossas so- Um dos princípios organizadores dos pro-
ciedades contemporâneas está relacionada cessos produtores das identidades contempo-
com a velocidade das mudanças que ocorrem râneas diz respeito ao fato dos sujeitos seleci-
nas esferas da produção e reprodução da vida onarem as diferenças com as quais querem ser
social. Sem dúvida, os jovens são atores-cha- reconhecidos socialmente. Isso faz com que a
ve desses processos e interagem com eles al- identidade seja muito mais uma escolha do que
gumas vezes como protagonistas e uma imposição. É neste sentido que se com-
beneficiários das mudanças e por outras so- preende que uma das mais importantes tare-
frem os prejuízos de processos de “moderni- fas das instituições, hoje, é contribuir para que
zação”, produtores de novas contradições e os jovens possam realizar escolhas conscien-
desigualdades sociais. tes sobre suas próprias trajetórias pessoais. É
As preocupações com a juventude se nesse contexto de intensas transformações nas
orientam em grande medida pela percepção formas e conteúdos das instituições sociais que
de que as próprias sociedades se inviabilizam interferem em suas condições e capacidades
com a interdição do futuro das gerações mais de promoverem processos de socialização que
jovens. Sobre esta juventude ameaçada se gestores de políticas públicas, em diferentes
depositam também as esperanças da renova- níveis de governo, são desafiados a formular,
ção, muitas vezes se idealizando uma natural executar e avaliar políticas públicas dirigidas
capacidade dos jovens para a transformação e aos diferentes públicos jovens.
a mudança. Um importante campo de pesquisa
Melucci (1997) questiona a existência pode se constituir em torno das reflexões so-
de uma “questão juvenil”, no plano da abstra- bre o lugar e a efetividade das instituições
ção que a categoria juventude é normalmente socializadoras que possuem influência e res-
situada. Em geral, a juventude só aparece como ponsabilidades sobre a vida juvenil. Em gran-
problema pelo diagnóstico de que ela enquan- de medida, fala-se em crise ou declínio das
to categoria que incorpora um grupo etário é instituições. Até que ponto este, que já é con-
potencialmente conflitiva. Entretanto, a juven- siderado um fenômeno de âmbito mundial, se
tude só é conflitiva em conjuntura social es- realiza plena ou parcialmente nas instituições
pecífica. Os jovens tanto podem ser fatores de com as quais as jovens gerações interagem no
integração no mercado cultural de massas, Brasil? No lugar de se falar em crise ou fim
como podem se constituir como atores do con- das instituições (tais como a família, a escola
flito social numa mobilização antagonista. O e o trabalho) não seria mais adequado buscar
conflito e a possibilidade de transformação que identificar e compreender as mutações
ele instaura só se explicitam, portanto, no tem- societárias que promovem a perda da unidade
po e no espaço. Para Melucci, ser jovem não é do mundo social e suas consequentes trans-
tanto um destino, mas implica na escolha de formações no plano institucional? Assim, tor-
transformar e dirigir a existência. na-se importante a realização de estudos que
Nesta perspectiva, os jovens são a pon- aprofundem conhecimentos e inventariem a
ta de um iceberg que, se compreendida, pode multiplicidade de situações que configuram as
explicar as linhas de força que alicerçarão as diferentes e desiguais formas de se experimen-
sociedades no futuro (MELUCCI, 2001 e tar tempos e espaços da vivência da juventu-
2004). Hoje, eles possuem um campo maior de.
de autonomia frente às instituições do deno-
minado “mundo adulto” para construir seus
próprios acervos e identidades culturais. Há
uma rua de mão dupla entre aquilo que os jo-
vens herdam e a capacidade de cada um cons-
truir seus próprios repertórios culturais.
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LEFEBVRE, Henri. Estrutura social: a repro- SPÓSITO, Marilia. Espaços públicos e tem-
dução das relações sociais. In: Sociologia e pos juvenis: um estudo de ações do poder pú-
sociedade: leituras de introdução à sociolo- blico em cidades de regiões metropolitanas
gia. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Cientí- brasileiras /Marilia Pontes Sposito (coord.) –
ficos, 1981, 291-252. São Paulo: Global, 2007.
(Footnotes)
1
O caráter normativo das ações públicas para
________. Juventude, tempo e movimentos
os jovens pressupõe o que seria desejável para
sociais. In: Juventude e contemporaneidade.
estes a partir de determinadas concepções
São Paulo: Ação Educativa, Revista Brasilei-
(adultas) sobre suas necessidades. Alguns pro-
ra de Educação, n. 5 e 6, 1997, 5-14.
jetos e programas sociais parecem possuir de
antemão as respostas sobre aquilo que os jo-
vens precisam (e desejam?). Em geral as ofer-
tas de atividades possuem caráter pedagógi-
PAIS, José Machado. Ganchos, tachos e bis-
co-formativo, ainda que muitas vezes sejam
cates: jovens, trabalho e futuro. 2ªed. Porto:
ofertas esvaziadas de sentido e de incipiente
Ambar, 2003.
qualidade, e estabelecem controles tutelares
sobre o uso do tempo. Algo diferente e pouco
praticado nas referidas iniciativas é a indaga-
ção sobre o que os jovens são capazes de de-
SANTOS, Boaventura Souza. Pela mão de
sejar e fazer pessoal e coletivamente, entre
Alice. São Paulo: Cortez, 1995.
pares de idades ou em colaboração com adul-
tos. Sobre as representações e práticas domi-
nantes que organizam ações públicas para os
jovens. Sobre isso ver: Spósito, 2007.
SOTO, Ghiardo Felipe; LEÓN, Oscar Dávila. 2
Dubet (2006:32) assinala que as instituições
Trayectorias socialies juvenilis:
da modernidade têm encontrado dificuldade
ambivalências y discursos sobre el trabajo.
de fazer valer seus programas institucionais.
Santiago de Chile: INJUV/CIDPA, 2008.
Por programa institucional defini-se o proces-
so social que transforma valores e princípios
em ação e em subjetividade por intermédio de
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