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ENTREVISTA
O PRESENTE ETNOGRÁFICO:
ADAM KUPER ENTREVISTA ISAAC SCHAPERA
Kuper Schapera
Mas a questão vai além. Desde o início, Não. Meu primeiro trabalho, entre os
seu trabalho é sobre mudança. O pri- Bakgatla, foi feito para o International
meiro livro que você editou trata da “ci- African Institute, durante meu curso na
vilização ocidental” (Western Civiliza- Universidade da Cidade do Cabo. Po-
tion, 1934). Married Life (1940a) é um rém, mais para o final… Veja, eu come-
livro sobre mudança. Portanto, mudan- cei ali em 1929. Em 1934, um dos che-
ça era o seu tema, aquilo que você foca- fes sugeriu que o governo devia regis-
lizava… trar o direito e o costume nativos para
os novos chefes que estavam surgindo,
Schapera e que, devido à mudança, nada sabiam
Mas não tinha escapatória. a respeito, ou sabiam muito pouco. Eles
iam recrutar três funcionários públicos
Kuper para fazer o registro, quando eu disse:
Algumas pessoas escaparam! “Olha, eu sou antropólogo. É o que eu
faço”. E foi quando eu comecei. Então,
Schapera o Handbook of Tswana Law and Custom
Não. Seligman, que foi meu orientador (1938a) foi comissionado pelo governo.
na London School of Economics, costu-
mava falar sobre o Sudão. E no Sudão Kuper
eles marcavam santuários ancestrais A pedido dos chefes?
com potes de cerâmica. Uma vez eu es-
tava caminhando tranqüilamente em Schapera
Mochudi, com minha câmera, quando A pedido dos chefes. E foi nessa época
vi, no fundo de um quintal, um tripé de que eu levei um belo fora. Havia um
madeira, sobre o qual havia um pote de encontro anual dos chefes, no qual dis-
cozinha. Eu disse, “Aha! Eis um santuá- cursaria o comissário residente [resi-
rio ancestral!”, e resolvi perguntar. Ora, dent commissioner]3. Disseram que eu
alguém estava cozinhando miolos de deveria participar. Fui apresentado: es-
carneiro… Era puro nonsense! se é o Dr. Schapera que vai estudar as
leis e costumes de vocês. E eu pensei
Kuper que, sendo judeu, poderia fazer um
Isso foi em 1929? 2 agrado aos anciãos, e me levantei di-
zendo que também havia sido circunci-
Schapera dado com dez dias de idade. Então, um
Sim. dos chefes velhos ergueu-se e falou:
“Está tudo muito bem, mas não quer di-
Kuper zer que você com dez dias de idade te-
Então, seu foco era a mudança, e você nha adquirido o mesmo conhecimento
começou a escrever esses textos sobre que nós obtemos quando somos circun-
mudança. A segunda coisa incomum no cidados”. Que esnobada! Mas depois
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Schapera Schapera
Não é. Bom, Tshekedi era um puritano. Sim, mas todo antropólogo sul-africano
Não achava que isso fosse direito e cos- estava em condições de fazer isso.
tume.
Kuper
Kuper Na verdade, não estavam.
Depois, você escreveu, também para o
governo de Bechuanaland, um livro so- Schapera
bre propriedade de terra (Schapera Se não estavam foi porque ainda ti-
1943a) e outro sobre trabalhadores mi- nham o cérebro lavado pela velha tra-
grantes (Schapera 1947). dição. Aliás, velha tradição que se quer
reavivar hoje – “disappearing cultu-
Schapera res”. Houve um tempo em que a antro-
Sim, eles me pediram. pologia era isso: não queremos saber o
que eles são, mas o que foram.
Kuper
E todos esses trabalhos são o que veio a
se chamar depois estudos de mudança
social ou de antropologia aplicada.
O PRESENTE ETNOGRÁFICO 137
Kuper Kuper
Portanto, havia uma proximidade. A se- A exceção foi Evans-Pritchard (1937).
gunda ocasião, aliás, terminou de modo Por que a tese dele foi baseada em tra-
não muito amigável… balho de campo?
Schapera Schapera
Eu tinha essa bolsa da universidade Não estou bem certo. Ele começou fa-
que foi comutada de três para dois zendo trabalho de campo, estava no
anos. Assim, no fim de meu segundo campo quando eu entrei. Ele fez a tese
ano na LSE a bolsa estava acabando. sobre os Azande. Outro dos nossos con-
Eu não tinha dinheiro, de modo que te- temporâneos foi Jack Driberg, que co-
ria de sair sem obter meu Ph.D. Comen- meçou como comissário distrital no Su-
tei com Seligman, que disse: “Se eu ar- dão e em Uganda, e escreveu um livro
ranjar para que você dê um curso na sobre os Lango (1923). Só então foi para
School por quatro meses, você fica e a London School fazer o Ph.D. Eu nun-
completa o Ph.D.?” É claro que eu agar- ca lhe contei essa história?
rei a oportunidade. Aí veio a famosa de-
savença com Malinowski… Tínhamos
discussões ocasionais, e uma vez, du-
rante uma conversa, ele me chamou de * N. T. – No original, ungreatful little bastard.
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Schapera Schapera
Sim. Ele era esse tipo de sujeito. Isso eu não sei. Não… Uma vez, não me
lembro mais em que contexto, Mali-
Kuper nowski me descreveu não como um
Retrocedendo um pouco, você escreveu funcionalista, mas como um eclético. O
o livro sobre os povos de língua Khoi que isto significava, não sei, mas queria
baseado inteiramente em fontes secun- dizer que eu não era um funcionalista
dárias (Schapera 1930). puro.
Schapera Kuper
Bushmen and Hottentots… Não inteira- Mas você não era o único. Havia outros
mente [baseado em fontes secundá- que não eram funcionalistas puros.
rias]. Como eu disse, havia um pouco Evans-Pritchard foi um inimigo dos fun-
de observação original: o jabuti, a flau- cionalistas. Ele não era funcionalista.
ta de bambu, a língua, que aprendi com
minha babá. Mas o resto foi inteiramen- Schapera
te a partir da literatura. Certamente não.
Kuper Kuper
E então houve todo aquele barulho so- Driberg certamente não era funciona-
bre Malinowski estar criando uma nova lista.
O PRESENTE ETNOGRÁFICO 141
Schapera Kuper
Nós não éramos. Seligman também não. Como um daqueles mastros usados no
dia 1o de maio [Maypole]11...
Kuper
Você quer dizer, os africanistas? Schapera
Isso, como um daqueles. Ele perguntou
Schapera sobre os postes e foi informado de que a
Exato. comunidade estava realizando cerimô-
nias de circuncisão. Relatou a história à
Kuper Sra. Hoernlé, pessoa responsável pela
Meyer Fortes também não tinha uma antropologia em Johannesburgo. Lá de-
opinião muito boa a respeito de Mali- cidiram que se eu fosse a campo, deve-
nowski enquanto pensador. ria visitar essa tribo, já que ainda prati-
cavam costumes tradicionais. Quando
Schapera eu estava a caminho, o missionário de
Isso eu não sei. Fortes obteve o Ph.D. Mochudi escreveu um texto para o jor-
em psicologia. nal Star, dizendo: que a investidura do
principal chefe Bakgatla ocorreria no
Kuper local. A tribo que a Sra. Hoernlé queria
Depois veio Nadel, e ele também não que eu visitasse também era Bakgatla,
via Malinowski como um pensador. então sugeriram: já que eu estava indo
a Bakgatla, que aproveitasse e fosse
Schapera primeiro a Mochudi para ver o princi-
Eu creio que eles escolheram antropo- pal chefe tomar posse. Desse modo,
logia porque, na época, havia poucos quando eu fosse ao Transvaal poderia
empregos nas outras disciplinas, e ha- abrir meu caminho, dizendo: “Eu vi a
via dinheiro para fazer trabalho de posse do chefe supremo de vocês”. E
campo na África. Dinheiro da Fundação tudo foi arranjado. Conseguiram uma
Rockefeller americana. permissão do governo para que eu fos-
se a Mochudi junto com o comissário
Kuper residente. Chegamos lá, mas na verda-
Foi esse dinheiro que financiou sua pri- de assistimos apenas à posse oficial do
meira pesquisa entre os Tswana, por in- chefe. A posse tradicional tinha ocorri-
termédio do International African Insti- do bem cedo, no romper da manhã, e
tute? nós chegamos na hora do almoço, a
tempo de assistir apenas à posse oficial
Schapera do governo. Aliás, meu primeiro infor-
Não. Quando eu comecei – e isso era tí- mante naquele dia foi um jovem repór-
pico do perfil antropológico daquele ter do Star, que me descreveu a cerimô-
tempo –, as universidades sul-africanas nia de posse tradicional, que ele havia
recebiam algum dinheiro do governo presenciado. Chamava-se Van der Post.
para financiar pesquisas de campo. Ha- Laurens van der Post, meu primeiro in-
via um geólogo do governo em trabalho formante.
de campo no Transvaal do Norte, e esse
sujeito se deparou, por acaso, com uma
tribo, onde viu no meio do kraal10 um
poste alto, decorado, sabe, como um…
142 ENTREVISTA
Kuper Schapera
Imagino que você teve informantes me- Era 1929. A Sra. Hoernlé saiu de licen-
lhores depois. ça por um ano e me convidou para as-
sumir seu lugar em Wits [Universidade
Schapera de Witwatersrand, em Johannesburgo]
Alguns antropólogos pelo menos acha- nesse intervalo. Isso foi em 1930, e eu
vam que a gente estudava a cultura tra- havia terminado meu primeiro período
dicional. Eles queriam que eu visitasse de campo. Então fui para Johannesbur-
essa tribo por causa disso. Na verdade, go, permanecendo lá por um ano. E isso
o que eles não sabiam é que o grupo de também era típico da época. Eu tinha
Bakgatla era o ramo mais novo da se- uma turma: Max Gluckman, Ellen Hell-
ção do Transvaal, de sorte que se eu ti- manm, Hilda Kuper, Eileen Krige, todos
vesse ido ao Transvaal [para falar da eles posteriormente ficaram famosos,
posse] teria sido um fiasco. Mas eu gos- cada um seguindo o próprio caminho.
tei do que vi em Mochudi… Conheci Um dia eu estava falando a esse grupo
Isang Pilane [regente Kgatla] no dia da de alunos sobre os Bakgatla, quando
posse do jovem chefe Molefi [ver foto Eileen Krige me interrompeu, dizendo:
9]. No mesmo dia, fui a seu encontro e “Nós deveríamos estar aqui fazendo
perguntei se era possível estudar sua antropologia e não sociologia”, e saiu
tribo. “Certamente”, ele respondeu. da sala. Tudo porque eu estava descre-
Dois ou três dias depois eu estava sen- vendo como eram os Bakgatla na reali-
tado na casa dele, e ele fazendo às ve- dade, que eles iam à igreja, usavam
zes de intérprete. Havia duas mulheres roupas, alguns falavam inglês… e isso
velhas que ele convocara para me da- não era antropologia para alguns antro-
rem informações sobre deuses e magia. pólogos naquela época. Agora, pense
Eu estava impregnado de magia na nos trabalhos que Eileen Krige fez de-
época. Malinowski acabara de escrever pois… como a Sra. Thatcher, foi uma
um livro sobre o assunto12. Então, che- guinada de 180 graus13.
gou uma mensagem para o chefe, di-
zendo que o missionário queria vê-lo. Kuper
Ele respondeu: “Mandem o missionário É verdade.
embora, eu estou ocupado escrevendo
um livro com o Dr. Schapera”. Ora, Schapera
quando um homem trata você assim, Mas você tem razão: alguns antropólo-
não dá para sair dizendo “Vou ao Trans- gos ainda não estudam os grupos como
vaal estudar povos atrasados”. Sabe, aí eles são.
está a justificativa para o tipo de antro-
pologia que eu fiz. Isang queria colocar Kuper
sua tribo no mapa. Depois você conseguiu emprego na
Universidade da Cidade do Cabo, onde
Kuper permaneceu por um longo período14.
Você estava então voltando da LSE.
Que emprego conseguiu ao retornar à Schapera
África do Sul? Eu comecei como pesquisador-assisten-
te do professor, que era um homem cha-
mado Barnard15 . Barnard foi no início
naturalista, botânico etc., tendo partici-
O PRESENTE ETNOGRÁFICO 143
Kuper Schapera
É verdade. E você também publicou Eu tinha também um material histórico
aqueles primeiros estudos sobre os ho- bem melhor.
tentotes (Schapera 1933). Estou enfati-
zando este ponto porque você, certa- Kuper
mente, é o único da sua geração de an- Mas há ainda uma outra categoria de
tropólogos, que eu me lembre, a publi- trabalhos seus: os textos que escreveu
car edições acadêmicas das fontes mais em Setsuana, para as escolas (Schapera
antigas sobre a região que estudou. É o 1938b; 1940b).
tipo de trabalho de um historiador, e
não de um antropólogo. Schapera
Isso foi, primordialmente, um meio de
Schapera aprender a língua junto com meus as-
Mas, uma razão para eu ter consegui- sistentes. Muitos deles eram professo-
do fazê-lo é que eu já havia realizado res que haviam sido suspensos por um
trabalho de campo. Eu conhecia o po- ano, impedidos de lecionar, por terem
vo, conhecia a língua, de modo que era feito o que aparentemente muitos pro-
capaz de selecionar alguns outros li- fessores fazem: engravidar alunas. Al-
vros sobre a região. Quando se vai fa- guns não tinham o que fazer, e acaba-
zer trabalho de campo, você vai com a ram ficando à toa. Então, eu costumava
cabeça totalmente vazia, tábula rasa? solicitá-los: “Gostaria de saber sobre tal
Vai sem saber nada sobre o povo? No assunto, quando você vier amanhã. Vá
Rhodes-Livingstone Institute, que fica- para casa e escreva um texto para
va na então chamada Federação da mim”. Malinowski fez tamanho alarde
África Central, eu conheci um antro- sobre a coleta de textos em Coral Gar-
146 ENTREVISTA
dens, que nós passamos a acreditar na tos são documentos literários tremenda-
coleta de textos. A grande vantagem é mente importantes em Botsuana.
que você repassava o texto com o pró-
prio sujeito que escreveu, e assim apren- Schapera
dia a língua. Portanto, eu tinha essa co- Sim. Esses textos nunca haviam sido es-
leção de textos, que forneceram mate- critos, até eu os transcrever. Com o pas-
rial para os livros escolares. sar do tempo iam saindo da memória
das pessoas, de sorte que os textos mais
Kuper antigos do livro vêm de duas ou três ge-
E ainda são usados em Botsuana. rações atrás, o resto foi esquecido. Foi
um bom trabalho. Vem sendo feito em
Schapera outras partes da África do Sul também.
Ainda são.
Kuper
Kuper Você tinha a sensação de que seu tra-
Quer dizer que se alguém for a Botsua- balho deveria abranger tudo? Casa-
na hoje e perguntar sobre a história tra- mento, poemas de louvor, direito, pro-
dicional de alguma aldeia, eles vão re- priedade da terra, tudo. Você é o soció-
citar esse maravilhoso discurso a partir logo, você é o historiador da cultura, vo-
de Schapera? cê é o historiador.
Schapera Schapera
Isso mesmo. Apenas uma coisa eu não abarquei, e
nem poderia: a música. Eu sempre tive
Kuper um péssimo ouvido, nunca me interes-
Falando sobre coleta de textos, você sei por música. Uma vez, chegando a
reuniu os Praise-poems of the Tswana Mochudi encontrei o Kirby, que era na
Chiefs (1965). Um dia, nos anos 80, eu época professor de música da Universi-
fui convidado para uma conversa infor- dade de Witwatersrand. Perguntei a ele:
mal com o presidente de Botsuana, “que diabo você está fazendo, invadin-
Quett Masire. Ele me afirmou que, em do meu campo aqui em Mochudi?” Ele
sua opinião, o livro mais importante so- estava fazendo música, é claro18. Aí eu
bre Botsuana é Praise-poems of the vi que ele tinha tanto direito de realizar
Tswana Chiefs, de Schapera, que lia seu trabalho ali quanto eu de realizar o
com freqüência. meu. Mas, novamente, isso era típico da
antropologia daqueles dias. Era o que se
Schapera chama hoje em inglês NIMBY: not in my
É muito gratificante. backyard – no meu quintal, não! Por
exemplo, imagino que Firth pretendia ir
Kuper a Trobriand, mas Malinowski disse não.
E ele citou de cabeça uma passagem de Era intriga entre amigos, no fim das con-
um dos poemas, um texto Ngwaketse tas. Já que eu estive lá, ninguém mais
creio eu, em que apareciam algumas pode ir. Mas aí eu percebi que era pura
palavras arcaicas. Disse que consultou estupidez pensar que o Kirby não podia
alguns velhos e que eles responderam: ir a Mochudi fazer uma coisa que eu ja-
“Sim, a transcrição de Schapera é rigo- mais conseguiria fazer, mesmo que esti-
rosamente correta”. Ou seja, esses tex- vesse lá só para isso.
O PRESENTE ETNOGRÁFICO 147
Kuper Schapera
Com exceção da música, você fez de tu- O grande perigo é que hoje as pessoas
do. Tudo o que, hoje em dia, seria obje- – algumas pelo menos – estão tendo a
to do lingüista, do etnógrafo, do histo- opinião de que eu sou a fonte de tudo
riador, do literato, do estatístico. isso. Bathoen, que foi o último chefe dos
Bangwaketse, escreveu-me (certa vez
Schapera dei a carta aos Comaroffs) dizendo que
Era o velho grito de guerra do funcio- havia começado a escrever a história do
nalismo: estudar os povos como eles seu povo e estava emperrado sem saber
são, e estudar tudo. Então a gente ten- quem era o chefe em uma determinada
tava. época, e me perguntava se eu não faria
o favor de informar. Ora, quando o che-
Kuper fe de uma tribo me pergunta uma coisa
Não só você estudou tudo, como não es- dessa, algo vai mal com a tradição que
tudou apenas uma única tribo. Você deveria estar sendo transmitida. Isso é
não estudou apenas os Bakgatla, você perigoso. Eu acho que… Bem, pelo me-
fez trabalho de campo em várias outras nos o que está registrado é bom, mas a
tribos de Botsuana. minha memória… não dá para confiar
cegamente. Portanto, algumas dessas
Schapera histórias que eu conto, tome cum grano
Era o lado governamental da coisa, vo- salis.
cê tinha que ir a campo trabalhar com
as outras tribos. Kuper
Mas certamente você é muito reveren-
Kuper ciado hoje em Botsuana. A Universida-
Os estudos mais gerais, sobre composi- de de Botsuana lhe deu o título de dou-
ção étnica e todos aqueles censos, foram tor honoris causa; você é nome de rua
realizados por requisição do governo em Gaborone; a Sociedade Botsuana
(Schapera 1952). Mas o fato é que ago- publicou um volume dedicado a você;
ra, olhando para trás, eles são as fontes há exposições no Museu Nacional de
dos pesquisadores que hoje trabalham Botsuana com coleções suas.
na África do Sul e em Botsuana. São
fontes históricas. Com eles pode-se ter Schapera
uma noção básica de como era o país, Fico muito feliz com isso, porque houve
em cada um dos seus aspectos, no pe- um tempo em que as pessoas andaram
ríodo entreguerras. Recebi recentemen- dizendo que os antropólogos, em geral,
te um e-mail de uma senhora que ensi- eram contra as populações estudadas.
na antropologia na Universidade de Gordon Brown, por exemplo, meu con-
Botsuana. Ela escreveu o seguinte: “No temporâneo na London School of Eco-
final dos anos 70, o senhor enviou al- nomics, quando foi a campo em Tanga-
guns estudantes a Botsuana para repetir nica teve que se dizer sociólogo, e não
os censos que Schapera fez nas aldeias antropólogo, pois ele estudava o povo
nos anos 30. Agora nós gostaríamos de como era naquele momento e não como
repetir mais uma vez esses estudos”. Ou havia sido tempos atrás. Portanto, quan-
seja, a base para a demografia das al- do o povo de Botsuana batiza uma rua
deias de Botsuana ainda é o censo que com meu nome, ou me confere um títu-
você realizou no começo dos anos 30. lo honorífico, isso mostra que não consi-
148 ENTREVISTA
deram meu trabalho como algo que vro. Queira por favor retornar a fim de
lhes seja prejudicial. contestá-las”. Eu então enviei um tele-
grama a um amigo advogado, Stanley
Kuper Field, e pedi que verificasse o caso, des-
Creio que isso é, em larga medida, a cobrisse o que estava acontecendo.
maior corroboração da sua estratégia. Agora vem o lado da história na Cidade
Prova que funcionou. As próprias pes- do Cabo. Field contatou Buchanan e a
soas olham para trás e dizem: “foi a coi- queixa era a seguinte: a minha descri-
sa certa”. No entanto, não houve um ção do ato sexual entre os Kgatla estava
pequeno problema quando você publi- muito próxima do modo como os civili-
cou Married Life in an African Tribe? zados, europeus, faziam sexo. Não ti-
Pelo fato de o livro tratar não apenas de nha nada de exótico no meu relato. Foi
casamento, mas também de relações isso que aborreceu Buchanan e as “pes-
sexuais, o que acabou por irritar os che- soas sérias” da Cidade do Cabo.
fes mais puritanos.
Kuper
Schapera E como terminou a história em Bechua-
Não. Tshekedi era o chefe dos Bangwa- naland?
to e tinha um consultor jurídico na Ci-
dade do Cabo, chamado Buchanan. Schapera
Tshekedi uma vez me perguntou se a Como eu disse, ficamos sabendo de tu-
universidade tinha um curso de direito do pelo rádio, a história das graves acu-
por correspondência. “Não, por quê?”, sações etc. Buchanan comunicou o fato
eu falei. Ele respondeu: “É que o Bu- a Tshekedi, e o comissário residente de
chanan está nos custando 300 libras/ Bechuanaland, Arden-Clarke, fez sua
ano de honorários”. Foi por isso que ele visita de rotina a Ngamiland, avisando-
enviou Seretse19 à Inglaterra, para fazer me de que se Tshekedi reclamasse do
o curso de direito. O fato é que Bucha- meu livro, eu teria que me retirar de Be-
nan era um KC20 e consultor de Tsheke- chuanaland, pois me tornaria persona
di. Em 1940, sai o Married Life in an non grata aos olhos dos chefes. Na rea-
African Tribe. Buchanan, como consul- lidade, a história foi esfriando. Não sei
tor jurídico, lia tudo que aparecia sobre se o Tshekedi chegou a reclamar. Mas,
Botsuana, e leu o livro. Ficou horroriza- como você disse, havia a possibilidade
do. Então, chamou o arcebispo da Cida- de acontecer.
de do Cabo e mostrou-lhe alguns tre-
chos. O arcebispo ficou horrorizado. Os Kuper
dois foram ao diretor da universidade, Que outros problemas desse tipo, ou de
que acabou por me mandar um telegra- outro tipo, você teve com os chefes ou
ma. Eu estava em Maun, Ngamiland. com a administração enquanto fazia
Naquela época, aos sábados, escutáva- sua pesquisa?
mos as mensagens do rádio vindas de
Mafikeng. Todos nós escutávamos o rá- Schapera
dio, é claro. Era uma hora por semana. Novamente essa questão de estudar os
[Veio a mensagem] Para o professor grupos como são no presente e não co-
Schapera, do diretor da Universidade mo foram no passado. Houve uma con-
da Cidade do Cabo: “Graves queixas ferência em Serowe, “quartel-general”
foram levantadas em relação a seu li- dos Bamangwato, reunindo professores
O PRESENTE ETNOGRÁFICO 149
nativos vindos de fora. Entre outras coi- esta série de fotos de uma mulher fa-
sas, os professores estavam apresentan- zendo potes de cerâmica [ver foto 4].
do um concerto para o público. Achei Naquela época não tínhamos filmes, is-
que seria interessante se houvesse uma to é, não havia câmeras de filmagem
apresentação de dança tradicional, e que se pudesse levar a campo. Mas se
perguntei ao encarregado da conferên- podia tirar instantâneos. Uma série de
cia se não se poderia arranjar que al- dez fotos do fabrico de um vaso de ce-
guns professores, ou até mesmo alguns râmica, mostrando os estágios, é sem
dos Bamangwato, mostrassem à au- dúvida muito mais realista do que al-
diência danças tradicionais. E eles o fi- guém narrando como se faz um vaso.
zeram. Depois Tshekedi veio me dizer
que aquilo não tinha sido correto de mi- Kuper
nha parte. Eles queriam mostrar que Essa é uma das minhas preferidas [ver
eram capazes de executar danças mo- foto 1]. É uma fotografia que você nos
dernas, dança de salão, e não dança deu, eu tenho na parede até hoje.
tradicional. Eis-nos de volta à questão
de estudar os povos como são ou como Schapera
foram. Era a reclamação de Macmillan O que eu gosto nessa foto é que mostra
e de outros: achava que os antropólo- a diferença entre os trajes típicos dos
gos só estavam querendo estudar os po- rapazes e das moças, bem como entre
vos como haviam sido, e não como são. os trajes da mãe e dos dois filhos.
E eu caí nesse erro, pedindo que voltas-
sem a ser do jeito tradicional. Foi um Kuper
dos meus poucos erros ali, creio eu, e as E aqui é Mochudi. Em 1930?
pessoas se ressentiram.
Schapera
Kuper 1929. Mostra o Kgotla21 tribal, e adiante
Você também fez todas essas fotogra- o kraal, onde tradicionalmente era se-
fias. Hoje entendemos que elas são, em pultado o chefe da tribo [ver foto 5].
si, documentos etnográficos valiosos. E Aliás, ele foi mesmo enterrado aí.
elas vão ser publicadas em livro. Você
se considera um fotógrafo? Tem interes- Kuper
se na fotografia como arte? Se houvesse equipamentos modernos à
disposição, você teria feito filmes etno-
Schapera gráficos também?
Não. Vejo a fotografia como parte do re-
gistro documental: notas de campo e fo- Schapera
tografias, as duas coisas juntas. Mas, Certamente. Exceto que… não sei… Dá
certamente… para colocar filmes em um livro? Eu não
sei muito bem o que fazer com filmes
Kupe etnográficos.
Certamente?
Kuper
Schapera O fato é que você estava documentan-
Penso que, olhando as fotografias, se do tudo, com todos os meios disponíveis
extrai muito mais de mim do que atra- à época. Mostrando como as coisas são,
vés apenas das minhas palavras. Veja e de que modo se tornaram o que são.
150 ENTREVISTA
Kuper Kuper
Ele ficou alarmado porque o bogwera Mas quando fomos juntos, por volta de
era secreto? 1985, você visitou o Bathoen, ex-chefe
dos Ngwaketse, com quem havia traba-
Schapera lhado nos anos 30. Ele ainda vivia na
Era secreto e havia sido abolido naque- mesma casa onde você o encontrou cin-
la tribo. Em 1901 houve o último. Essa qüenta anos atrás. E foi muito interes-
sante ver dois velhos amigos se reen-
contrando daquele jeito. Ele estava hos-
* N. T. – “Animal que, em um carro de bois, faz
parte da dupla que se acha diretamente ligada ao pedando uma jovem aluna minha –
veículo” (Novo Aurélio – O Dicionário da Língua uma das alunas que levaram adiante a
Portuguesa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999) sua pesquisa. E o Bathoen, ele e a espo-
152 ENTREVISTA
Kuper Schapera
O importante, então, o que fica é… Não.
Schapera Kuper
A etnografia. Nunca? Ateu a vida toda?
Kuper Schapera
As descrições de como as coisas são, e Olha, uma coisa boa é que fui educado
de como elas eram. em uma família que se poderia chamar
de moderadamente ortodoxa. E eu era
Schapera o que se poderia chamar de um bom
E é por isso, sem dúvida, que eu voltei a menino judeu. Quando minha mãe fa-
Livingstone e aos outros. Eles descreve- leceu naquela época, eu passei por to-
ram aquilo que viram na época. do o ritual de luto – nove meses, creio
eu. E não era nada bom. No final, disse
Kuper a meu pai que não acreditava naquele
Então, você é o Livingstone do século tipo de coisa, e perguntei se ele se im-
XX, só que sem a religião. portaria se eu não fosse mais à sinago-
ga. Ele disse: “Eu mesmo também não
Schapera acredito, mas achei que você deveria
Na verdade, eu acho que o mais próxi- ter uma educação ortodoxa”. Então, es-
mo seria um historiador econômico, al- tava tudo bem. Ele concordou comigo,
guém que tenta reconstituir a socieda- e eu lhe sou agradecido por ter me da-
de inglesa na era elisabetana, e assim do esse background.
por diante.
Kuper
Kuper Sem religião, sem engajamento políti-
Embora não tivesse religião, você se in- co, sem teorias antropológicas.
teressou pela Bíblia (Schapera 1955).
Você leu a Bíblia em hebraico ou em in- Schapera
glês? Nada. Não, eu prefiro voltar ao que Ma-
linowski disse sobre mim: eclético – de
Schapera tudo um pouquinho.
Eu lia em hebraico, quando era garoto.
Eu tirava boas notas em hebraico, he- Kuper
braico clássico e latim. Hoje não consi- Você disse que não gostava de ensinar,
go nem ler em hebraico, e o latim já foi mas, o fato é que você orientou, inspi-
para os quintos. A memória vai embora. rou, ou estimulou, muitas pessoas a dar
Mas lendo a Bíblia, e depois me tornan- prosseguimento às suas pesquisas na
do antropólogo… você acaba interessa- África do Sul.
do nos temas bíblicos, e passa a estu-
dá-los. Schapera
De que modo?
Kuper
Mas você nunca teve um interesse reli- Kuper
gioso? Eu apareci dizendo que gostaria de fa-
zer trabalho de campo na África do Sul,
O PRESENTE ETNOGRÁFICO 155
Schapera
E, sem dúvida, você roubou essa pági-
na do meu roteiro, quando enviou os
seus alunos de Leiden a Botsuana, não
foi?
Kuper
De fato. Mas, novamente aqui, você
apareceu, visitou-os em Leiden, con-
versou com eles, encorajou-os, e conse-
guiu que eles fossem. E até hoje em dia,
as pessoas que estão escrevendo sobre
Botsuana procuram você, vêm fazer
perguntas a você. Neil Parsons acabou
de publicar esse livro (Parsons 1998),
que vem recebendo críticas muito posi-
tivas, esse livro histórico. Você sugeriu
o tema, incentivou-o a escrevê-lo e ofe-
receu-lhe seus recursos.
Schapera
Você tem que passar o bastão adiante.
Kuper
E você vem passando coisas adiante há
setenta anos.
Schapera
Assim, no final, elas não morrem. Espe-
ro que você lembre disso.
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10 Schapera no campo
11 Schapera no campo
12 Schapera em sua última visita a Botsuana (1985)
13 Schapera e Raymond Firth em 1996 (na casa de Adam Kuper),
por ocasião da celebração de seu primeiro encontro,
na London School of Economics, em 1906
162 ENTREVISTA
Notas
1 A transcrição inicial foi feita por Ellen 10 Kraal é uma palavra africâner muito uti-
Prove. [As notas a esta entrevista foram escri- lizada na África do Sul, e adotada por antro-
tas por Adam Kuper.] pólogos. Seu significado é ambíguo. Pode
2 Durante os anos 1929-34, Schapera fez designar tanto um local de residência tradi-
várias visitas aos Kgatla no Protetorado de cional, quanto o curral onde o gado é reunido.
Bechuanaland, permanecendo, no total, mais 11 Um maypole é um poste alto, decorado,
de quatorze meses entre eles. Em 1934 foi em torno do qual se realizam danças tradi-
convidado pela Administração de Bechuana- cionais no dia 1o de maio na Inglaterra.
land a realizar pesquisas sobre direito tradi- 12 Na realidade, Coral Gardens and their
cional, que resultaram no livro Tswana Law Magic, principal livro de Malinowski sobre
and Custom, além de permanecer quatro magia em Trobriand, foi publicado em 1935.
meses entre os Ngwato. Entre 1938 e 1943, Porém, antes, ele dava cursos sobre o tema
fez intensa pesquisa de campo junto aos na LSE.
Ngwaketse, Kwena e Tawana. Fez também 13 Eileen Krige ficou conhecida por sua
visitas mais curtas aos Tlokwa, Malete e Ro- etnografia dos Levedu do Transvaal, mas
long. publicou também trabalhos pioneiros de
3 No caso dos protetorados, o comissário etnografia urbana (ver, p. ex., Krige 1936).
residente tinha função equivalente à do 14 Como professor, Schapera ingressou
governador das colônias regulares. nessa universidade em 1931. Em 1935 obte-
4 Tshekedi Khama (1905-1959) foi o regente ve a cátedra de antropologia social. Per-
dos Ngwato de 1926 a 1949. Os Ngwato er- maneceu na Cidade do Cabo até 1950, ano
am a maior tribo do então chamado Prote- em que aceitou uma cátedra na London
torado de Bechuanaland, e Tshekedi foi o School of Economics.
líder Tswana de maior influência política de 15 T. T. Barnard foi estudante de pós-gra-
sua geração. duação em antropologia social na Universi-
5 A. R. Radcliffe-Brown foi o primeiro pro- dade de Cambridge, sob orientação de
fessor de antropologia social da Universi- Rivers. Realizou trabalho de campo nas ilhas
dade da Cidade do Cabo (1921-1925). Novas Hébridas em 1922 (ver Barnard 1924).
6 W. M. Macmillan (1885-1974) foi profes- 16 Max Gluckman foi proibido de continuar
sor de história na Universidade de Witwater- seu trabalho de campo na Zululândia em
srand, de 1917 a 1934. Foi o fundador da 1939.
escola liberal de historiografia na África do 17 A. J. B. Hughes (ver Hughes 1956).
Sul. 18 P. R. Kirby (1934).
7 Aula inaugural da cátedra de antropolo- 19 Sir Seretse Khama (1921-1980) era sobri-
gia social na Universidade da Cidade do nho de Tshekedi Khama, e foi o primeiro pre-
Cabo, publicada em Cape Times, 25 de agos- sidente de Botsuana.
to de 1921, reimpressa como apêndice em 20 Abreviatura de King’s Counsel, que cor-
Gordon (1990). responde ao nível mais alto de um advogado
8 Primitive Society em 1920; Argonauts of no sistema jurídico britânico. Tal pessoa pode
the Western Pacific em 1922. fazer seguir seu nome pelas iniciais KC e
9 C. G. Seligman, psiquiatra e etnólogo. pode ser referido como um “KC”.
Um dos veteranos da Expedição ao Estreito 21 Kgotla ou Kxotla é a assembléia pública
de Torres, ocupou uma cátedra em etnologia de uma aldeia ou tribo Tswana.
na London School of Economics de 1913 a 22 Fred Eggan (1906-1991), professor de
1934. antropologia da Universidade de Chicago.
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