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Congresso
Adriano Codato
Curitiba – PR
Novembro 2009
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Antes mesmo de apresentar o texto que eu preparei para este Congresso, penso que
seja necessário, a fim de explicitar todos ou quase todos os meus pressupostos intelectuais,
fazer algumas declarações de princípio.
poder, da dominação social, então é preciso, antes mesmo de avaliar se isso foi cumprido
como planejado e se efetivamente deu certo, tentar entender se a maneira de fazer isso foi a
mais adequada ou não. Só procedendo assim, julgo eu, é possível fazer valer, na prática,
alguns slogans publicitários que os marxistas anunciam a respeito de sua própria tradição, do
tipo: „só a teoria marxista é uma teoria que pode criticar-se a si mesma‟, etc.
O ponto aqui é antes sugerir que demonstrar que a forma de redação dos textos de
Poulantzas é menos uma questão do “estilo” do autor (o vocabulário incomum, a fraseologia
arrevesada, a falta de clareza de certos conceitos e a desorganização dos argumentos); ou
mesmo uma questão do “nível” do discurso (um discurso necessariamente abstrato para
tratar de problemas abstratos); e sim uma questão do “tipo” de “ciência social” defendida e
praticada pelo estrutural-funcionalismo francês como um todo (Althusser, Balibar, Badiou,
etc.).
Meu argumento central é o seguinte: esse gênero de “ciência social” que Poulantzas
exemplifica tira proveito da fusão do discurso político com o discurso científico sob a
proteção e a garantia do discurso filosófico. Essa é a razão do alegado teoricismo de Nicos
Poulantzas, cujo efeito (e não a causa) é um dialeto abstrato. A causa fundamental dessa
forma de conceber o trabalho teórico e a prática científica está, antes de qualquer coisa, na
recusa dos procedimentos convencionais da ciência convencional. E isso por sua vez deriva
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do entendimento do que o marxismo deveria ser: nem uma “ciência da História” nem uma
forma de sociologia empírica, mas uma cosmogonia.
Essa tirada é bastante espirituosa, toca em dois problemas reais – o gênero do discurso e
o nível do discurso – mas comete dois deslizes. Primeiro, mistura a (má) qualidade da prosa
poulantziana com o plano (teórico) onde o autor situa seu trabalho. O próprio Poulantzas
nunca negou que mesmo suas “análises concretas” estavam voltadas principalmente para a
elaboração de conceitos. Fascisme et dictature é uma prova disso. Poulantzas sempre pretendeu
que para elaborar o conceito de Estado fascista, a “generalidade da abstração” deveria
suplantar a realidade empírica – isto é, as formas concretas de Estados capitalistas de exceção
(Estado italiano, Estado alemão, etc.)2.
O segundo deslize, e esse é meu argumento principal, é que esse tipo de crítica aos
textos de Poulantzas, muito comum e muito obstinada até hoje, erra o alvo. Há uma questão
mais importante e que deriva não do gênero (literário) ou do nível (abstrato) do discurso,
mas do tipo de discurso adotado – e não somente por Poulantzas, mas por boa parte do
marxismo “continental”.
Para além dos problemas estilísticos evidentes (períodos muito longos, construções
elípticas, interpolações constantes, formulações de duplo sentido, definições pouco claras,
distinções em poucas palavras, explicações idem), a confluência, nesse discurso teórico, de
três modos distintos de conhecimento – i) o filosófico, amparado na excelência e ampliado
graças à grandiloquência do comentário de texto (dos textos clássicos dos clássicos do
Times Litterary Supplement (16 Jan. 1976). Apud Jean-René Tréanton, Réflexions sur Fascisme et dictature. Revue
française de sociologie, vol. 17, n. 3, 1976, p. 533, nota 1.
2 Ver Fascisme et dictature : la Trosième Internationale face au fascisme. Paris : Maspero, p. 325-
338.
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3 Cf. Nicos Poulantzas, Pouvoir politique et classes sociales. Paris: Maspero, 1971, vol. I, p. x e p. x;
vol. II, p. 167.
4 Nicos Poulantzas, “The Capitalist State: A Reply to Miliband and Laclau”. New Left Review,
Voltando ao ponto central da crítica convencional: o que está de fato em jogo e vem
encoberto por “problemas de estilo”?
Tal qual Louis Althusser (ou em razão da influência deste), os textos dos marxistas
estruturalistas – Poulantzas aí incluído – possuem uma dicção toda própria, marcada pelo
impulso polêmico, pelo vezo contundente e pelas fórmulas definitivas, como observou
Jacques Rancière, produto dessa “ambição totalizante” autorizada e imposta pelo culto da
“grande teoria”5.
Para a constatação a respeito do tom que Althusser imprimia a sua escrita, ver Jacques
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Rancière, “La scène du texte”. In: Sylvain Lazarus (dir.), Politique et philosophie dans l’oeuvre de Louis Althusser. Paris:
PUF, 1993. Para as expressões “ambição totalizante” e “grande teoria”, ver Pierre Bourdieu, “Fieldwork in
Philosophy”. In: _____. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 32.
6 Para o “neopositivismo” da crítica endereçada a ele, ver Nicos Poulantzas, “The Capitalist
State: A Reply to Miliband and Laclau”. New Left Review, London, n. 95 (Jan.-Feb.), 1976, p. 67.
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arbitrário das alegações; e segundo, transfere, para o domínio do comentário dos textos canônicos, o
que deveria ser resultado da explicação das coisas. Daí a impressionante frequência nessa
sociologia do recurso (retórico ou não, pouco importa) à formula Marx dixit.
Mas de onde vem isso? Minha hipótese é que esse tipo de discurso pode ser
explicado em razão de dois determinantes: i) a heteronomia dessa teoria da política em relação
às lutas teóricas e às dissensões políticas no campo político comunista; e ii) a autonomia pretendida
dessa teoria em relação à Sociologia e à Ciência Política “burguesas” como práticas científicas
“puras”.
VI. Conclusão
Vou então recapitular o que disse até aqui e esquematizar ao máximo meu
argumento.
Sustentei que a teoria política poulantziana – construída como uma crítica direta à
ciência política convencional (“burguesa”) – pode ser definida como uma teoria que é, antes
de qualquer coisa, um produto da luta teórica do marxismo teórico no domínio da Filosofia.
Isso não tem nada a ver com Ciência Social (descrição, análise e interpretação; testes de
hipóteses, explicitação de mecanismos, estabelecimento de relações, proposição de
explicações) e não teria nenhum problema se não fosse pensada – essa teoria política – como
uma crítica e uma correção à ciência social convencional.
8 Para a sugestão original dessa ideia, ver Pierre Bourdieu, “O discurso de importância. Algumas
reflexões sociológicas sobre o texto „Algumas observações críticas a respeito de Ler O Capital‟”. In: _____. A
economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer. São Paulo: Edusp, 1996, p. 168.
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Ficamos então com um discurso que defende a atualidade e o poder explicativo dos
conceitos abstratos produzidos pelo processo de elaboração teórica; isto é, um discurso que
depende da capacidade de análise do que “Marx realmente disse” e não do procedimento
mais usual: reunião de dados, elaboração de hipóteses, formulação de proposições científicas
provisórias para serem depois testadas à luz de novas evidências etc. Tudo isso conduz à
subordinação da Ciência Social à teoria teórica e tudo depende então de ser ou não ser
marxista, o que repõe constantemente a tensão entre a heteronomia dessa teoria social em
relação à política; e a sua pretendida autonomia em relação à ciência “pura”.
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