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Recife, 2005
© Fundação Gilberto Freyre, 2005
Presidente
Fernando de Mello Freyre
Vice-presidente
Sonia Maria Freyre Pimentel
Superintendente Geral
Gilberto Freyre Neto
Superintendente Adjunta de Administração
Patrícia Kneip de Sá
Coordenação Editorial
Ana Cláudia Araújo
Projeto Gráfico e Diagramação
Mônica Lira
O Seminário .......................................................................................................... 7
· Apresentação ................................................................................................ 7
· Programação ................................................................................................. 7
· Comissão Organizadora ................................................................................. 8
COMUNICADOS LIVRES
· Acarajé 10: sucesso em Salvador - Bahia (Celso Duarte Carvalho Filho) ............ 44
· O Chouriço: uma doce dádiva (Antonio de Pádua dos Santos, Julie Antoinette
Cavignac e Maria Isabel Dantas) ..................................................................... 46
· É Assim que se Faz: etnografia sobre a farinhada no Pêga (Glória Cristiana de
Oliveira Morais) ............................................................................................. 53
· A Culinária de Papel (Laura Graziela Gomes e Lívia Barbosa) ........................... 60
· Gilberto Freyre: a representação social da culinária (Rodrigo Alves Ribeiro) ...... 66
APRESENTAÇÃO
PROGRAMAÇÃO
Dia 15/out/2003
15h MESA-REDONDA: Casa-grande & Senzala: cozinha, gênero e relações sociais
Coordenadora: Profa. Dra. Maria Eunice de Souza Maciel (UFRGS)
Dra. Fátima Quintas – A Culinária e a Negra
Dra. Cláudia Maria de Assim Rocha Lima – Para uma Antropologia da
Alimentação Brasileira
Sra. Eliane Asfora da Cunha Cavalcanti – Doutor Gilberto Freyre e o
Reconhecimento da Culinária como Fenômeno Cultural
16h45 SESSÃO DE VÍDEO: série Mesa Brasileira de Ricardo Miranda
O pão nosso de cada dia
Dia 16/out/2003
16h30 Instalação Nacional do Grupo de Antropologia da Alimentação
Brasileira (GAAB)
Raul Lody – Em Busca do Ethos da Alimentação
15h MESA-REDONDA: Nordeste: ecologia, alimentação e cultura
Coordenador: Prof. Dr. Manoel Correia de Andrade (FGF)
Profa. Maria Thereza Lemos de Arruda Camargo (USP) – Estudo Etnobotânico
da Mandioca (Manihot esculenta Crantz - Euphorbiaceae) na Diáspora Africana
Profa. Rogéria Campos de Almeida Dutra (UFMG) – Cozinha e Identidade
Nacional: notas sobre a culinária na formação da cultura brasileira segundo
Gilberto Freyre e Luis da Câmara Cascudo
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Sr. Petrucio Nazareno (Restaurante Goya)
16h15 DEMONSTRAÇÃO GASTRONÔMICA : Doce de Gerimum com Coco
Prof. Antonio José de Oliveira Filho e Prof. Antônio José Medeiros Silva
16h45 APRESENTAÇÃO DE COMUNICADOS LIVRES
COMUNICADO 1: Celso Duarte Carvalho Filho – Acarajé 10: sucesso em Salvador -
Bahia
COMUNICADO 2: Antonio de Pádua dos Santos, Julie Antoinette Cavignac, Maria
Isabel Dantas – O Chouriço: uma doce dádiva
COMUNICADO 3: Glória Cristiana de Oliveira Morais – É Assim que se Faz:
etnografia sobre a farinhada no Pêga
17h45 SESSÃO DE VÍDEO: série Mesa Brasileira de Ricardo Miranda
Comedores de Mandioca
Dia 17/out/2003
14h30 MESA-REDONDA: Açúcar: doçaria e civilização
Coordenadora: Sra. Sílvia Pontual (Restaurante Mourisco)
Dr. Roberto Benjamim – Doçaria e Civilização: a preservação do fazer
Dra. Letícia Monteiro Cavalcanti – A Formação da Culinária Brasileira
Dr. Armênio Ferreira Diogo
RELATOS DE EXPERIÊNCIAS
Raul Lody (SENAC) – Série “A Formação da Culinária Brasileira”
Fernando Soares (SESC/PE) – Banco de Alimentos
15h45 APRESENTAÇÃO DE COMUNICADOS LIVRES
COMUNICADO 1: Laura Graziela Gomes e Lívia Barbosa – A Culinária de Papel
COMUNICADO 2: Carlos André de Vasconcelos Cavalcanti – SERTA: a experiência
com produtos orgânicos no campo da sementeira
COMUNICADO 3: Rodrigo Alves Ribeiro – Gilberto Freyre: a representação social
da culinária
17h45 SESSÃO DE VÍDEO: série Mesa Brasileira de Ricardo Miranda
Mar de Açúcar
18h ENCERRAMENTO
Dr. Fernando de Mello Freyre (Presidente da FGF)
Profa. Maria Eunice Maciel (Presidente do ICAF/Brasil)
Prof. Raul Lody (Secretário Geral do ICAF/Brasil)
COMISSÃO ORGANIZADORA
ICAF BRASIL
Maria Eunice Maciel
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A Culinária e a Negra
Fátima Quintas
Graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco. Pós-graduação em Antropologia Cultural pelo
Instituto de Ciências Sociais e Política Ultramarina (Lisboa – Portugal). Pós-graduação em Museologia pelo Museu das
Janelas Verdes (Lisboa – Portugal). Mestrado em Antropologia Cultural pela Universidade Federal de Pernambuco.
Coordenadora do Núcleo de Estudos Freyrianos da Fundação Gilberto Freyre.
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quer hora, a chaminé estimulante. À fumaça do elas próprias elaboravam. Novidades a toda hora.
bueiro, a fruição da comida acalentada pelo “es- Temperos excêntricos vindos de uma África não
tridente” toque africano. Enfatiza Darcy Ribeiro: menos excêntrica. A fortuna aconteceu no brio
Para Gilberto Freyre [o negro ensinou] o brasileiro do paladar e na adequação a um regime tropical-
a explorar todas as possibilidades das papilas da mente sensual. Uma dieta que se adaptava ao calor
língua, bem como os nervos do faro, com a sua excessivo de regiões quentes e úmidas. Ao mes-
magia culinária. ( Ribeiro, 1979, p. 94) mo tempo, refeições buriladas em pimentas e
Quando se pensa numa comida apetitosa, a molhos, o que sugeria aparentes incoerências para
deixar água na boca, tende-se a recordar a ima- um clima de altas temperaturas. As inconexões
gem da preta velha maquinando pratos de requin- demonstraram a versatilidade e a combustão do
tes maquiavélicos. No regime alimentar brasileiro, temperamento africano, intensamente explosivo.
a contribuição africana afirmou-se principalmen- O clima tropical, com certeza, não determinou,
te pela introdução do azeite-de-dendê e da pimen- mas concorreu para a extroversão culinária. O
ta-malagueta, tão característicos da cozinha Nordeste aceitou de muito bom grado as ambrosias
baiana; pela introdução do quiabo; pelo maior uso de uma etnia que soube mimetizar origens e
da banana; pela grande variedade na maneira de atavismos com o erudito modo de ser de um Oci-
preparar a galinha e o peixe. Várias comidas por- dente “civilizado”. A mistura deu certo.
tuguesas ou indígenas foram no Brasil modifica- Criou-se um sincretismo culinário, de saibos
das pela condimentação ou pela técnica culinária vivos e alguns até berrantes. Senhora de densos
do negro, alguns dos pratos mais caracteristica- “refogados”, a negra atraiu para si atenções e se-
mente brasileiros são de técnica africana: a farofa, gredos que se anelavam em “armadilhas” capa-
o quibebe, o vatapá (Freyre, 1966, p. 489). zes de ofuscar o brilho da portuguesa. Exerceu,
Os serviços culinários, no período colonial, com uma certa maledicência, o desafio da mesa.
tiveram um prévio escalonamento. As pretalhonas, Há que se render vênia a essa emulação. Quem
as escolhidas, instigaram o âmbria com mãos de duvidará da competência da negra na arte de co-
tecelã. Mas houve negros incapazes de servir no zinhar? Mocotós, vatapás, mingaus, pamonhas,
eito, com tendências a maricas, que foram canjicas, acaçás, abarás, arroz-de-coco, feijão-de-
inigualáveis no preparo de quitutes. Homens coco, angus, pão-de-ló-de-arroz, pão-de-ló-de-
efeminados a desejarem manifestar os seus pen- milho, rolete de cana, isto é, rebuçados etc (Freyre,
dores no espaço dedicado à mulher, o da cozi- 1966, p.490). Africano também é o acarajé, prato
nha. Talvez até para provar a capacidade de exe- precioso na Bahia: feito com feijão-fradinho rala-
cutar tarefas de tradição não masculina, do na pedra; como tempero leva cebola e sal; a
capricharam em sutilezas, agudamente “satânicas” massa é aquecida em frigideira de barro onde se
no que tange à expressão de uma gastronomia derrama um bocado de azeite-de-cheiro. Além
sofisticada. Freyre realça: Dentro da extrema es- das receitas genuínas, a africana sobressaiu-se na
pecialização de escravos no serviço doméstico das práxis da adaptação e no apuro dos doces lusita-
casas-grandes, reservaram-se sempre dois, às ve- nos à Terra do pau- Brasil. E quebrando arestas,
zes três indivíduos, aos trabalhos de cozinha. De ajeitando ali ou acolá, os ingredientes foram do-
ordinário, grandes pretalhonas; às vezes negros sados com a mestria do amálgama cultural. É nos-
incapazes de serviço bruto, mas sem rival no pre- sa opinião que no preparo do próprio arroz-doce,
paro de quitutes e doces. Negros sempre tradicionalmente português, não há como o de
amaricados; uns até usando por baixo da roupa rua, ralo, vendido pelas negras em tigelas gordas
de homem cabeção picado de renda, enfeitado donde o guloso pode sorvê-lo sem precisar de
de fita cor-de-rosa; e ao pescoço tetéias de mu- colher. Como não há tapioca molhada como a do
lher. Foram estes, os grandes mestres da cozinha tabuleiro, vendida à maneira africana, em folha
colonial (Freyre, 1966, p. 489). de bananeira ( Freyre, 1966, p. 490, 491).
Desse modo, a cozinha brasileira Dentre os pratos africanos que se impuseram
africanizava-se, granjeando a inspiração exótica na mesa patriarcal, e firmaram-se até com uma certa
dos seus acepipes. Exuberante. Indiscreta. arrogância, distinguem-se: o caruru e o vatapá. Os
Histriônica. Com donaires agudíssimos. Gordas e eleitos. Os mais apreciados. Os que se fixaram com
alegres, as pretas orgulhavam-se dos pratos que uma autenticidade quase intocada. Sem retoques
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memória. O culto faz do solo o local do sagrado. o desenvolvimento histórico, social e econômico
A cova que receberá o grão que fora transforma- do Brasil.
do em alimento poderá ser, também, a cova que Assim como ensinou ao português o cultivo
receberá os que partiram. Os sepultados, na ver- e o consumo da mandioca, o indígena fez o mes-
dade, são plantados para que renasçam. O solo mo com o milho. Alimento tradicional dos povos
no qual repousam os antepassados é o mesmo do americanos, o milho foi o único cereal encontra-
qual brota, a cada ano, o sustento alimentar do do no Brasil e levado para a Europa. A farinha de
corpo, inferindo aos espíritos dos antepassados a milho foi comida de escravos e de bandeirantes,
cooperação na germinação das plantas cultivadas. não tão consumida quanto à farinha de mandio-
É o ciclo do nascer e do morrer. Do plantar ca, foi difundida por todo o Brasil, através do pre-
e do renascer. Da luta pelos meios da sobrevi- paro do cuscuz, este, por sua vez, transformado
vência e do religar ao passado pelas mediações na cozinha brasileira, da sua origem árabe à base
e pelos laços que irão sustentar a identidade das de arroz, para a reelaboração com farinha de mi-
origens. lho e coco.
A Antropologia da alimentação no Brasil têm A tradição alimentar indígena, com as frutas
como referencial, as obras de Gilberto Freyre. No e os frutos brasileiros, combinados com as especi-
livro “Assucar: algumas receitas de doces e bolos arias, trazidas pelos portugueses, tais como: cra-
dos engenhos do Nordeste” publicado em 1939, vo, canela, gengibre, noz-moscada e erva-doce e,
tendo a segunda edição, aumentada e revisada, mais, o modo tradicional do fazer bolos, doces e
em 1967, com o subtítulo, “em torno da conservas, passados pela alquimia do preparo bra-
etnografia, da História e da Sociologia do doce no sileiro, como parte de um processo intercultural,
Nordeste canavieiro”, ressalta a influência subje- no qual, o milho, nativo do Brasil; o açúcar de
tiva do açúcar no sentido de adoçar maneiras, cana, planta originária da Ásia e o coco, de pro-
gestos e palavras. De forma definitiva, em Casa cedência indiana, resultaram em complexas re-
Grande & Senzala, Freyre, trata da alimentação ceitas, guardadas em segredo, como verdadeiras
como valor essencial para a análise sociológica, maçonarias.
até então, relegada às categorias secundárias da O português foi o principal europeu forma-
investigação científica. dor da nossa árvore genealógica. Mas, é necessá-
No Brasil os elementos trazidos nas bagagens, rio esclarecer que a formação étnica do nosso co-
na memória, intrínsecos nas heranças culturais, lonizador português foi uma decorrência de longos
vivo nos hábitos, fiéis nas tradições, aculturaram- anos de aculturação e assimilação. Desde os tem-
se, reformularam-se, reelaboram-se numa cozinha, pos mais primitivos do continente europeu, fize-
que em um primeiro momento mobiliza a base ram parte da sua história: os celtas e os íberos,
alimentar do índio, nativo brasileiro. tendo, também, em sua estrutura civilizatória, os
Traços marcantes das culturas dos nossos povos mediterrâneo-camitas, originários da África
antepassados indígenas, tais como gêneros alimen- do Norte. As invasões romanas fazem entrar em
tícios, práticas de cultivo e utensílios para fazer a território português povos diversos: sírios,
comida, para guardá-la, para pisar o milho ou o armenóides, itálicos. A influência judia fixou-se,
peixe, moquecar a carne, espremer as raízes, pe- impondo aspectos políticos e sociais na difusão
neirar as farinhas, utilizando os alguidares, as de sua cultura no território português.
urupemas, os tipitis, as cuias, as cabaças, os balaios, Dos romanos, recebeu a formação portu-
foram incorporados à cozinha colonial, e, guesa variada influência, que, de modo geral, tor-
freqüentemente encontrados nos dias de hoje nas nou-se básica, no levantamento do nível intelec-
casas do norte, do centro e do nordeste do Brasil. tual da população, na facilidade da comunicação
Das comidas preparadas pela mulher indí- através da construção de estradas, na edificação
gena brasileira, as principais eram as que faziam de cidades, no sentido municipalista, na organi-
com a massa ou a farinha de mandioca, sendo zação política, bem como o cristianismo, que se
adotada pelos colonos no lugar do pão de trigo, tornou um dos fundamentos de sua formação
tornando-se a base do regime alimentar de todo cultural. Às invasões germânicas, sucederam-se
colonizador. A mandioca como a mais brasileira as romanas, resultando na integração de novos
de todas as plantas, tem uma ligação direta com grupos humanos na população portuguesa, en-
Eliane Asfora
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“pernambucana de coração” transformou o açú-
car em arte e ajudou a divulgar, através do seu
trabalho, o nosso estado, não só no restante do
país, mas, inclusive, fora dele, afinal muitas foram
as encomendas recebidas por ela ( e que continu-
am até hoje através de suas filhas) originadas de
Brasília, do sudeste do Brasil, passando pelos EUA,
Europa e até Japão. Com isso, ela não angariava
prestígio apenas para os seus bolos, mas também
para o nosso querido Leão do Norte.
E reforçando a tese do Dr. Gilberto de que a
culinária se revela como importante fenômeno
cultural, diferenciador dos povos, constatamos que
o bolo de noiva, feito à base das frutas cristaliza-
das que tanto atraíram os holandeses, e confeita-
do tal como Dona Leonie Asfora o consagrou,
mostra-se um produto, genuinamente, regional,
especialmente pernambucano, tanto que, se for-
mos em outras regiões do país, percebemos que
ele não é concebido nesses moldes e nos depara-
remos com bolos brancos, de chocolate, de no-
zes etc., a compor as mesas das noivas.
Dr. Gilberto foi testemunha do trabalho de-
senvolvido por Leonie Asfora. Acompanhou a tra-
jetória dessa piauiense, filha de imigrantes árabes,
sempre participando a arte dela nas festas famili-
ares e diversos eventos sociais aos quais se fazia
presente, nunca dispensando o chamado “bolo
de noiva”. Foi assim no casamento de suas filhas,
no aniversário de seus netos, nas festividades da
Fundação Gilberto Freyre etc.
Podemos afirmar, sem medo de errar, que,
pelas mãos de Dona Leonie Asfora, provou-se que
o açúcar, muito mais que insumo para doces,
pode-se revelar verdadeiro instrumento de arte.
E, pela coragem e ousadia de Dr. Gilberto, que a
culinária de nossa região, muito mais que saciar a
fome insaciável dos contumazes devoradores de
doces, revela-se, não só um diferenciador cultu-
ral dos povos, mas, antes, fonte de orgulho para
todos nós, família pernambucana: orgulho de ser
nordestino, orgulho de ser pernambucano, orgu-
lho de ter um Gilberto Freyre que nos ensinasse a
ter orgulho de nós mesmos...
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brasileira. Em Pernambuco deve-se destacar-se a
importância do açúcar, que desenvolveu grandes
variedades de doçarias, que deliciavam as classes
melhor aquinhoadas da terra. Assim os
pernambucanos tornavam-se cedo gordos e vo-
luptuosos com o excesso de doces que comiam e
as facilidades de contatos sexuais com negras e
índias. Gilberto Freyre que estudou em profundi-
dade a formação da sociedade patriarcal brasilei-
ra chama a atenção para este fato em senhores de
engenho e autoridades do reino se cercavam de
filhos os mais diversos, mestiços de negros e índi-
as, ao lado dos brancos e seus solares patriarcais.
Na Bahia, embora seja forte a influencia ne-
gra na culinária com o uso da pimenta malagueta,
do azeite de dendê, do cravo e de outros produ-
tos na formação dos chamados pratos baianos,
considerados por muitos como africanos. Daí a
importante influencia e prestigio dentro e fora da
Bahia dos seus acarajés, vatapás e carurus.
E na região semi-árida a importância da fari-
nha de milho e a influencia árabe chegando ate la
com os seus cuscuz e com o uso freqüente do
leite. Conciliação muito feliz do milho com o lei-
te, segundo o geógrafo Josué de Castro, porque
um corrige as deficiências alimentícias do outro.
Mais recentemente se faz sentir a influencia
em expansão da cozinha italiana com o uso in-
tenso das massas e gaúcha, com o uso maximizado
da carne na alimentação nordestina. Finalizando,
aconselhando que leiam sobre o assunto o livro
Açúcar de Gilberto Freyre, passo a palavra aos
expositores que como especialistas melhor
aprofundarão o tema.
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RESULTADOS A CULTURA DA MANDIOCA
Como todo ser vivo, os seres hu- cultural, na medida em que as preferên-
manos também se alimentam. Não obe- cias alimentares figuram entre traços dis-
decem, porém, a um padrão alimentar tintivos e singularizantes. E não só varia
uniforme, demonstrando-nos uma sur- entre sociedades, grupos sociais, como
preendente criatividade na diversidade pode se diferenciar internamente a es-
do ato de se nutrir. A culinária não res- ses grupos, como comida de homem/
ponde exclusivamente às necessidades de mulher, de criança/adulto, de ho-
biológicas de sobrevivência, mas tam- mens/deuses. Sua abordagem nos con-
bém não é resultado somente cultural; duz a questões múltiplas que envolvem
duas dimensões de um mesmo fenô- a ecologia, a técnica utilizada (no pre-
meno, espaço privilegiado da media- paro do alimento e sua conservação), a
ção entre Natureza e Cultura. Um meio vida familiar, as relações sociais, a ordem
pelo qual a natureza é transformada em simbólica. As predileções alimentares se
cultura, como diria Lévi-Strauss (1968). constroem a partir duma complexa tra-
Nossa recusa por certos tipos de alimen- ma entre “norma de uso” e “respeito a
to – que classificaríamos como “não- tradição” (cf. Cascudo, 1983) Porém,
comestíveis” – não está, na maioria das apesar de profundamente arraigadas
vezes, fundada na fisiologia, mas num (não devemos nos esquecer que o
sentimento de ordem, que envolve as paladar é o último a se desnacionalizar)
dimensões ética, estética e dietética. Daí não estão congeladas. Acompanham a
podermos compreender a cultura como própria dinâmica da sociedade na qual
fundadora de um critério de palatabili- se inserem, estabelecendo o diálogo con-
dade. É pela repetição incalculável dos tínuo entre o tempo (o processo histó-
estímulos sápidos que se processa a fi- rico) e o espaço (o espaço geográfico).
xação do paladar. Fruto do hábito, ob- O contato cultural nunca deixou de
jeto da memória, o paladar se constrói, existir, e muito menos de contribuir para
e valorativamente, pela combinação a reconstrução da singularidade. Como
imprevisível do que classificamos como nos lembra R. Bastide (1973), a cultura
salgado, doce, ácido, amargo e pican- se desenvolve muito mais por interfe-
te. Diversas vezes mencionada por via- cundação do que por autofecundação.
jantes que passaram pelo Brasil coloni- Há de se considerar o contato cultural
al, temos como exemplo, a preferência, não só como um processo de acultu-
tanto negra quanto ameríndia, pelo sa- ração (no sentido literal de perda e
bor picante da pimenta. Em nossa pró- anulação, e que de fato ocorreu, e vem
pria cultura observamos como os sabo- ocorrendo, muitas vezes de forma trá-
res amargo e azedo associam-se a algo gica), como também de intercâmbio, res-
difícil, ruim, enquanto que o doce, que- saltando o valor do encontro de dife-
rido representa suavidade. rentes tradições.
Neste sentido, o estudo da alimen- Neste texto, pretendo destacar
tação tem local privilegiado na análise como o processo de formação da socie-
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dade brasileira pode se narrado pela constituição contraste ao nomadismo exploratório nas primei-
dos hábitos alimentares de sua população, apesar ras décadas do desenvolvimento – atividade mais
de ser um traço peculiar desta nossa sociedade a democrática, por sinal, dando chance aos aven-
coexistência da diversidade regional (os diferentes tureiros, e que de alguma forma permaneceu
sistemas ecológicos que definem o espaço) com o como tendência dominante na atividade dos ban-
descompasso temporal (o processo histórico dife- deirantes na Capitania de São Vicente, – destaca-
renciado). Neste exercício reflexivo, centro-me se a “estabilidade secular” do senhor de engenho.
particularmente em dois autores, Gilberto Freyre e É neste cenário que se assiste o contato de
Luis da Câmara Cascudo. Tal escolha deve-se pelo três culturas diferentes, a ameríndia, a africana e
destaque que ambos dedicam à questão alimentar a européia, interesse especial tanto de Freyre quan-
como fator constitutivo da identidade nacional. to de Câmara Cascudo. Procuram destacar as pos-
Ressalvando-se as diferenças entre os dois autores sibilidades de enriquecimento cultural que se deu
(inclusive por trajetórias distintas), podemos pela via do “empréstimo” e do “acréscimo”. A
considerá-los portadores, dentre outros, do proje- tendência de combinação de traços de culturas
to da inteligentsia brasileira, na primeira metade diferentes que resultariam em uma configuração
do século passado, de construir a identidade naci- única, tornando-se um “complexo de cultura”.1
onal valorizando exatamente o que era considera- Este contato, no entanto, não se restringiu, no
do o grande empecilho para nossa construção como caso brasileiro, “à esfera produtiva”. A composição
nação e para o “progresso” da sociedade brasilei- da sociedade brasileira se dá pela “hibridização”,
ra: a mistura, a mestiçagem que nos distanciava do onde grande número de colonos constituíram famí-
padrão europeu de tradição, cujo prejuízo estaria lias com a ameríndia e a negra. Ambiente de escas-
relacionado a fortes componentes raciais. sez feminina provocando uma certa “confraterniza-
ção” entre “vencedores e vencidos”.
O CONTATO Freyre empenha-se, de forma bem sucedida
por sinal, em inovar a leitura deste passado da so-
Foram necessários mais de 30 anos para que ciedade brasileira pela perspectiva “de dentro”,
Portugal decidisse implementar uma política de através dos “estilos de residência, constantes de
colonização na Terra de Santa Cruz. A falta de existência e normas de coexistência” – definidores
grandes tesouros, e aparentemente, de riquezas estes, do “caráter” do povo brasileiro. Através de
minerais, a coroa portuguesa decidiu-se por po- uma introspecção quase que proustiana, ele se pro-
voar este território a partir de uma estratégia ino- põe a uma “aventura da sensibilidade”, a penetrar
vadora. Ao invés de manter-se no extrativismo na intimidade deste passado. A casa, e o que se
mercantilista, já experimentado tanto na sua pre- passa na casa, como centro mais importante de
sença na Índia quanto na África, instituiu uma nova adaptação e acomodação do português, o negro e
forma de permanência com uma atividade que o ameríndio. Pois que o complexo Casa-Grande
lhe fosse rentável, a “colônia de plantação”, base- &Senzala, autarquia produtiva, dirigida por senho-
ada na agricultura. Esta realidade colonial agrária, res rurais de autoridade inquestionável – “Dono
da monocultura da cana e a produção de açúcar das terras. Dono dos homens. Dono das
para “exportação” fundamentava-se na explora- Mulheres”(cf. Freyre, 1973a:lvii) – gira em torno
ção de mão-de-obra escrava (primeiramente da família como base da colonização. Uma das
ameríndia e depois negra) e na necessidade de grandes forças permanentes, preservando e difun-
fixação do português neste território. Uma outra dindo valores. Vale ressaltar que essas categorias
peculiaridade deste empreendimento da coroa “casa” e “família” não só definem uma qualidade
portuguesa é o fato de que se construiria pela ação do espaço, ou da mistura sangüínea, mas o cenário
e investimento particular, de famílias de nobres de relações interpessoais. Esta dimensão relacional,
ou ricos comerciantes que se desfaziam de seus __________________________
Roberto Benjamin
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sefaraditas, cristãos-novos, judeus-holandeses, Tal como em outras atividades culturais, a
gente-da-nação etc. idéia da transmissão pela oralidade, que no caso
As navegações portuguesas para as Índias implica em vivência, não dispensa o registro es-
foram responsáveis pela incorporação das especi- crito. Os livros de culinária e etiqueta cortesãs são
arias, então exóticas e hoje presentes no cotidia- muito antigos em Portugal e chegaram ao Brasil,
no da cozinha brasileira: cravo-da-índia, canela- onde circularam, por exemplo, manuais de con-
do-Ceilão, alcaçuz, pimentas, açafrão etc. feiteiro. Por outro lado, enquanto as mucamas e
negras-de-ganho recriavam, de memória, os seus
Como já destacava Gilberto Freyre, as cunhãs quitutes, as sinhás-moças casadoras se preveniam
e as mucamas aprenderam rapidamente a satisfa- construindo/elaborando os seus cadernos manus-
zer o gosto dos senhores na cama e na mesa. Por critos de receitas, alguns dos quais foram resgata-
suas mãos foram introduzidas na doçaria o coco, dos por escritores como GF, Câmara Cascudo,
a mandioca, as frutas, o amendoim e as castanhas. Mário Souto Maior e, mais recentemente, dona
A produção doceira foi uma tradição famili- Nininha Carneiro da Cunha, em seu magnífico li-
ar no espaço rural e urbano, pas- vro Comida & tradição: receitas
sada de geração em geração pela de família. (Recife: edição póstu-
vivência caracterizada pela ma pela família Carneiro da Cunha,
oralidade. Com o processo da ur- 2002, 292 p. il.). Assim, a trans-
banização surgiram as quituteiras missão intergeracional tem sido fei-
e vendedoras ambulantes em ati- ta tanto pela oralidade/vivência
vidade de complementação de como pelo texto escrito, em rodízi-
renda tanto das negras de ganho os permanentes.
libertadas pela Lei dos Tiveram um impacto devas-
Sexagenários ou alforriadas sob tador sobre a prática da culinária
outros pretextos, quanto de famí- e, mais especificamente, da
lias da decadente aristocracia. doçaria, entre nós as grandes mu-
Gilberto Freyre – em várias danças sociais e culturais do sécu-
oportunidades – chama a atenção lo XX, especialmente aquelas rela-
para a continuidade, no Brasil, da tivas ao papel social da mulher na
atividade culinária dos mosteiros, família e na sociedade brasileira,
conventos e casas de recolhimen- que abriram a escolaridade e o
to de Portugal, de que são teste- mercado de trabalho, as profissões
munhas também a nomenclatura liberais e outras de exercício fora
de certos doces (papos-de-anjo, do lar. O impacto ocorreu, tam-
manjar-do-céu, beijos-de-freira, bém, entre as freiras, seja por con-
pão-de-ló-do-céu, bolo-padre- Matéria publicada no Diario de ta da redução da demanda de jo-
Pernambuco, edição de 24 de
joão, sonhos-de-freira e toucinho- junho de 1887. vens vocacionadas para a vida
do-céu), fato registrado pelos via- religiosa, seja em razão da a pas-
jantes estrangeiros como Tollenare, Maria Graham sagem da vida conventual enclausurada para as
e Henry Koster. atividades externas de pastoral e de assistência
No século XIX, com a abertura dos portos e social (a partir do Concílio Vaticano II).
as presenças inglesa, francesa e austríaca nas prin- Vale ressaltar, também, a mudança de há-
cipais cidades brasileiras foram introduzidas a pas- bitos alimentares com as práticas das refeições
telaria e a confeitaria como profissões. Data deste fora de casa, quebrando a continuidade da con-
período uma pouco reconhecida presença ingle- vivência familiar e de produção doméstica de
sa, numericamente escassa, mas com uma contri- alimentos.
buição marcante de sua mal-falada culinária, tan- Não se pode esquecer o processo de reno-
to nas chamadas “comidas-de-panela” em que se vação tecnológica, com a introdução de equipa-
salientam o rosbife e os cozidos e assados de car- mentos inovadores como o já incorporado fogão
neiro, como nos pudins e bolos (de bacia, inglês, de gás (que eliminou a panela de cerâmica utilitá-
de frutas). ria), refrigeradores e congeladores (que dispen-
1 2
3 4
1. Saboreando o alfenim.
2. Vendedor de cavaquinho.
3. Doce-japonês.
4. Sorvete raspa-raspa.
BIBLIOGRAFIA
ADERALDO, Mozart Soriano. Velhas receitas da
cozinha nordestina. 2. ed. Fortaleza: Universidade
Federal do Ceará, 1982. 99p.
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v. 1, 1968. 2v.:il. (Brasiliana; v. 323, 323A).
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dedução. Rio de Janeiro: Instituto do Açúcar e do
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portuguez. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves;
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família Carneiro da Cunha, 2002, 292 p. il.
FREYRE, Gilberto. Açúcar: em torno da etnografia,
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Recife: Ed. Região, 1952. 78p. / Maceió: Universida-
de Federal de Alagoas; Recife: Instituto Joaquim
Nabuco de Pesquisas Sociais, 1976. xxiii, 73p.
42
to. Caçar conferia dignidade ao congo (caçador). da adotando utensílios que os europeus não co-
Faziam pirões e farinhas de sorgo. Da fécula fa- nheciam – panelas de barro, colher-de-pau, pi-
ziam papas. E usavam muito arroz. Preferiam o lões, urupemas, cuias, cabaças, ralador de coco.
alimento dissolvido – ate porque, enquanto na E, sobretudo, tiveram que se adaptar aos ingredi-
casa-grande se esfregava os dentes com tiara entes da terra. Esquecendo maca, pêra, pêssego,
magna, restava aos escravos apenas alho. Era amêndoas, pinhões, cravo, canela e gengibre. E
comum, para esses escravos, chegar aos 40 anos adotando novos produtos como castanha, amen-
sem um dente na boca. Tudo como conta no doim, coco, milho, mandioca. Alem das frutas tro-
Trattado Único da Constituição Pestilencial de picais – caju, goiaba, araçá, banana, mangaba,
Pernambuco do medico Joam Ferreyra da Rosa, cajá. Tudo que a mão da cozinheira portuguesa.
provavelmente a primeira referencia bibliográfi- Nunca se deixou alargar pela banha de tartaruga
ca (1653) da nossa alimentação. Como os índi- nem pelo azeite de dendê , como disse Gilberto
os, também esses escravos não conheciam Freyre. Com características distintas e muito bem
frituras. E bebidas so fermentadas – feitas de pal- definidas – uma no sertão, outra no agreste, mais
meira (dendê), sorgo e mel de abelha.Alambique uma na mata e outra do mar. Mas todas forman-
não, que isso e coisa de europeu. Apesar de to- do, em seu conjunto, o retrato de uma cozinha
das as limitações, uma serie de novas receitas foi que e simples, generosa, autentica, refinada,
nascendo – jacuba, rapadura ou comidas de mi- irredenta, forte e afirmativa como nosso povo.
lho (e coco) – como canjicas, munguzás, angus e
pamonhas. Faltando so dizer que comida de es-
cravo era sobretudo de alegria. Comer acabava
sendo um momento de festa, em meio a tanto
sofrimento. Misturando, na mesa, essa comida a
cantoria, dança, batuque crenças e saudades.
A cozinha portuguesa tentou reproduzir, por
aqui, os ambientes de sua terra distante. Trouxe-
ram curral,quintal e horta. Com tudo que nossos
índios nunca haviam visto. No curral – boi, porco
domesticado, carneiro, bode, pombo, pato, gan-
so. Mais galinha e, com ela, a grande novidade
alimentar que foi o ovo. Cão também – sem duvi-
da o animal domestico mais disputado por nossos
índios. No quintal – cidra, limão, laranja, lima,
melão,melancia, maca, figo. Na horta – acelga,
alface, berinjela, cenoura, coentro, cebolinha, cou-
ve. As senhoras portuguesas trouxeram com elas
suas cozinhas, tal e qual eram em Portugal. Com
chaminés francesas fogões, fumeiros, pesados
tachos de cobre, caldeirões, alguidares, potes. Mas
tiveram aqui que fazer grandes adaptações. Pri-
meiro dividindo a beira do fogão, democratica-
mente com negras e índias. Depois aprendendo
com os índios que, nesse nosso clima tropical, o
melhor lugar para colocar a cozinha era mesmo
fora das casas. Embaixo de puxados. Com o que
acabaram reproduzindo quase integralmente,
meio sem querer, a cozinha indígena – com jirau
(espécie de mesa com varas de madeira que ser-
via para cortar elimpar as carnes e, também, para
guardar alimentos) e trempe (tripé de pedra ou
ferro onde se apoiava os paneloes no fogo). Ain-
44
gel com 57% e o preparo correto do camarão com
65%), talvez em função do treinamento teórico, e
na segunda visita todos os índices de conformida-
de melhoraram sensivelmente, apresentando bai-
xos índices de não conformidades (uso do termô-
metro com 17% e uso de caixa isotérmica com
14%), demonstrando assim a importância deste
tipo de trabalho para a produção e
comercialização de alimentos seguros, mesmo
sendo de produção artesanal e comercialização
nas ruas de forma improvisada.
As baianas que cumpriram com as confor-
midades estabelecidas pelo Programa receberam
um selo de qualidade, personalizado e com vali-
dade anual, como forma de identificação e valo-
rização por terem participado do treinamento e
terem assimilado os conceitos técnicos para tor-
narem seu alimento seguro e com qualidade.
46
De fato, além de ser interessante para en- A CRIAÇÃO DO PORCO
tender as práticas alimentares e festivas do sertão
nordestino, o chouriço revela uma organização so- A criação caseira do porco é ainda praticada
cial em torno do parentesco e nos mostra cami- mesmo que a sociedade sertaneja esteja abando-
nhos para entender a dinâmica da sociedade: a nando, cada vez mais, as atividades agrícolas. A
divisão sexual dos papéis sociais, a delimitação comercialização do filhote dá-se através da venda
dos espaços de trabalho e de sociabilidade, a dis- ou do estabelecimento de um contrato oral para cri-
tribuição das tarefas domésticas por faixa etária, a ação de meia. Nesse caso, o dono do animal ofere-
hierarquia e a reafirmação da autoridade no inte- ce um filhote para um parente ou amigo providen-
rior do grupo, etc. Assim, na ocasião da descrição ciar a engorda e, no momento do abate, o animal é
detalhada da matança e da transformação do por- dividido igualitariamente entre ambos, sem que haja
co em alimentos altamente perecíveis e, ao mes- circulação de dinheiro. Este aparece apenas após a
mo tempo, valorizados culturalmente, comprova- partilha e quando a carne for revendida.
mos a atualidade do velho conceito maussiano de A engorda do porco é pouco dispendiosa,
fato social total que nos ajuda a encontrar pistas uma vez que o animal recebe como alimentação
para decifrar a lógica que possibilite a transforma- os restos de comidas dos humanos. A “comida de
ção do sangue em alimento. porco” é composta de cereais, de frutas, de ra-
mas e de restos de alimentos. É costume, na re-
gião, que o criador do porco “pegue” sobras de
ETNOGRAFIA DO CHOURIÇO comida nas casas dos vizinhos e parentes que não
criam animal dessa natureza. Aliás, ao adquirir um
Apesar das mudanças ocorridas nessas últi- filhote para engordar, uma das primeiras provi-
mas décadas com o êxodo rural, quando muitas dências do criador é garantir fornecedores para a
famílias que residiam no campo foram impulsio- “comida de porco”. Esses fornecedores podem
nadas a migraram para os centros urbanos, cau- variar de três a cinco, conforme o número de ani-
sando muitos problemas, em especial a dispersão mais e do tamanho da família. Uma casa com
familiar, ainda se continua a criar porco e a fazer muitos moradores vai produzir mais “comida de
chouriço. Observa-se que essa “tradição da famí- porco” e, certamente, irá dispensar a colabora-
lia” tem sido mantida e/ou reinventada por diver- ção de alguns doadores. Esse ato de solidarieda-
sos grupos familiares em alguns municípios do ser- de cria uma relação de trocas, uma vez que o
tão seridoense, o que nos faz pensar ser esse um criador fica obrigado a retribuir aquele favor no
pretexto de preservação da memória do grupo e momento da matança do porco, seja dando uma
de uma tradição alimentar. lata de chouriço ou um ‘torrado’ da carne do por-
co, conforme veremos a seguir.
A NEXO
INGREDIENTES UTENSÍLIOS
Lenha
· Lenha seca de jurema preta e/ou catingueira -
½ metro
1
Dos 166 municípios do Estado, noventa cul- Atualmente, as casas de farinha em
tivam a mandioca. Os maiores produtores são Portalegre se concentram na sede do
os de Macaíba, Touros, São Miguel de Tou-
ros, Nova Cruz, Lagoa Salgada e Brejinho (Fon- município e a principal delas pertence a
te IBGE, 1999). Raimundo Magno do Rêgo, mais conhe-
53
cido por Palé. Era uma antiga residência, transfor- balho diário de uma arranca. Por esse motivo, a
mada em casa de farinha, há aproximadamente 25 conga corresponde a doze cuias de farinha e a
anos. Outras três pertencem a comerciantes da ci- dezesseis de goma por arranca. A casa de Palé,
dade. O Pêga possui apenas uma casa funcionando, que possui oito tanques. Para ela, a mandioca não
localizada no sítio de Rosário de Freitas. Além desta, é transportada em caçuás, mas em caminhões.
há uma fechada e outra demolida. A escolha sobre Neste caso, a arranca equivale a um caminhão ou
qual delas utilizar depende da ligação do seu dono a uma carrada. E a conga sobe de doze cuias para
com o responsável pela farinhada, o que nos reme- um saco de farinha e um saco de goma, por car-
te às questões hierárquicas entre proprietários, não- rada. O valor exato de quantos caçuás leva uma
proprietários e moradores2. Aqueles que plantam carrada é o grande segredo daqueles que utilizam
mandioca nas terras de Palé fazem sua farinhada na o caminhão, pois esse montante é diretamente
casa de farinha dele, o que se repete com os outros proporcional a quanto se paga a cada um que
proprietários e plantadores. Já aqueles que plantam trabalha na casa de farinha.
em suas próprias terras escolhem a casa devido à A produção da farinha de mandioca requer
proximidade desta em relação ao seu sítio, ou por as seguintes atividades: plantar a mandioca, co-
acordos quanto ao transporte do produto. lher, transportar, raspar, cevar, lavar a massa, pren-
O valor do aluguel da casa de farinha, cha- sar, peneirar e torrar. Para melhor entender essa
mado conga, varia. A casa de farinha de Rosário divisão dessas de etapas segue abaixo uma planta
possui três tanques, número suficiente para o tra- ilustrativa da casa de farinha de Rosário de Freitas 3 :
2
A maioria dos habitantes do Pêga possui casa própria, mas
não são donos de terras cultiváveis. Eles plantam suas ro-
ças em terras alheias, no sistema 4/1. Isto é, a cada quatro
sacos de milho e feijão produzidos, um fica para o propri-
__________________________
etário. Há também o caso dos moradores, aqueles que
habitam e gerenciam o sítio de outros, sendo este um ha- 3
Vale lembrar que as dimensões aqui apresentadas não se-
bitante da cidade. guem as originais.
60
A primeira delas diz respeito ao livro de cu- no das técnicas culinárias básicas e mais gerais,
linária enquanto um objeto, um item da cultura desde aquelas de seleção/escolha dos ingredien-
material contemporânea. A segunda abordagem tes usados na preparação dos pratos, até as técni-
analisa o livro na sua constituição interna. Seu foco cas de manipulação dos alimentos (lavar, catar,
é a análise dos termos e expressões dos títulos dos escolher, amassar, misturar, ralar, descascar, cor-
livros, o sumário, os prefácios e os tipos de recei- tar, picar, moer, espremer, triturar, liquidificar, tem-
tas. Finalmente, a terceira abordagem diz respei- perar etc), incluindo as técnicas e procedimentos
to aos produtores e consumidores desses livros: de cocção (cozido, refogado, saltado, ensopado,
quem escreve, para quem escreve, bem como as frito, assado, defumado, grelhado, etc); b) Manu-
formas de circulação e apropriação do livro. Na ais e/ou livros culinários que ensinam as técnicas
oportunidade dessa comunicação iremos nos con- e procedimentos que envolvem o uso de utensíli-
centrar unicamente na segunda abordagem. os e tecnologias especiais, tais como as panelas
A análise interna dos livros de culinária per- de pressão (1950), liquidificadores (1950), bate-
mitiu-nos identificar três campos semânticos dis- deiras (1960), congelamento (1980 – 1990,
tintos, a partir dos quais pudemos relacionar o freezer), processadores (1980), fornos microondas
material de diferentes épocas entre si e (1990) , etc; c) Finalmente, temos os livros de cu-
contextualizá-lo em relação à sociedade e ao seu linária propriamente ditos, ou seja, aqueles que
público. Por conta disso, o conceito de campo se apresentam menos como “manuais gerais ou
semântico tornou-se imprescindível para o enten- práticos” e mais como “tratados culinários/
dimento de nossa metodologia de trabalho. Dife- gastronômicos” orientados para as especializações
rentemente dos signos cujos significados só po- culinárias, como resultado de uma divisão do sa-
dem ser apreendidos pelas relações que eles ber culinário, tais como o domínio de técnicas mais
mantém uns com os outros no interior de um sis- elaboradas, desde aquelas relacionadas às formas
tema simbólico, os campos semânticos constro- de preparação de determinadas classes de alimen-
em-se de forma diferente. Eles não se mantém tos (carnes, peixes, aves, frutos do mar, verduras,
em uma relação de oposição uns com os outros, saladas, legumes etc), ou de especializações em
nem derivam suas diferenças por oposição, da classes de pratos, tais como: pães & biscoitos,
mesma forma que não são claramente demarca- bolos, doces, confeitos, pastelaria, quitutes, salga-
dos. Ao contrário, campos semânticos estão per- dinhos, massas, sanduíches, etc.
manentemente misturando-se uns com os outros. É importante ressaltar que no período que
A partir da análise dos livros pesquisados procura- vai de 1930 a 2003, nem todos os itens acima
mos identificar a existência ou não de temas re- estão destacados ou devidamente explicitados no
correntes através das diferentes décadas, identifi- título dos livros e sumários. Mas consultando-se o
cados através dos diferentes objetivos que as corpo das receitas, observa-se que eles estão pre-
receitas enfatizavam. Obtivemos assim três cam- sentes. Nesse sentido, vale ressaltar que o item a,
pos semânticos: 1) Técnicas e preparação dos ali- encontra-se praticamente contemplado em todas
mentos; 2) Universos da culinária; 3) Cozinha, as receitas examinadas, na medida em que ele
cultura e sociedade. pressupõe operações culinárias básicas que ante-
cedem a quaisquer outras. Nesse caso, é a men-
TÉCNICAS E PREPARAÇÃO DOS ALIMENTOS ção aos elementos diacríticos definidos nos itens
b e c que facultam a inclusão dos livros nesses
Trata-se de um campo semântico geral e itens e não no item a. É nesse momento que cons-
estruturante, uma vez que ele está implícito e mis- tatamos algumas mudanças e variações importan-
turado aos demais campos. Assim sendo, ele não tes ocorridas no tempo, como é o caso do uso de
deixa de estar presente em todos os manuais e utensílios como a panela de pressão (1950) e
livros consultados. Entretanto, para que o sistema tecnologias como o liquidificador (1950), o freezer
classificatório proposto pudesse ser eficaz, incluí- (1980), os processadores e o microondas (1990) e
mos nesse campo somente aqueles livros que se para as quais existem livros específicos. Uma ou-
apresentam com as seguintes características: a) tra variação importante ocorre em relação ao au-
Manuais e/ou livros culinários gerais: referem-se mento de livros no item c, a partir da década de
aos livros que têm como objetivo principal o ensi- 1980 e mais fortemente a partir de 1990 em di-
BIBLIOGRAFIA
BARTHES, R. Mitologies. São Paulo: Editora Cultrix,
1972.
_________. O sistema da moda. São Paulo: Cia
Editora Nacional/Edusp, 1979.
66
Gilberto Freyre ao apropriar-se do o poder simbólico é, com efeito, esse poder invi-
etnológico, do etnográfico, pretende revelar o tra- sível o qual só pode ser exercido com a cumplici-
dicional, o popular, o miscigenado do Brasil nor- dade daqueles que não querem saber que lhe
tista. Retratando exaustivamente uma das maio- estão sujeitos ou mesmo o exercem” 5 . Seja esse
res expressões do complexo civilizatório: a poder executado na esfera das ações da vida pú-
culinária. Culinária esta, que emerge, para ele, da blica ou privada, que se materializa nas superes-
“açucarocracia”. truturas de um Estado e nas convenções sociais.
Para Freyre, o açúcar marca o desenvolvimen- O poder, que num passado recente acredi-
to da complexidade da sociedade nordestina, em távamos que partia de uma “elite” à uma deter-
geral, e pernambucana, em particular. Uma vez que minada “ralé”, transita no campo das relações so-
a complexidade não é apenas uma característica ciais de forma indiscriminada entre os indivíduos.
dos povos de clima temperado, mas dos de clima Um poder que se revela naquilo que a antropolo-
tropical também; fator que leva-nos à civilização gia social denomina de representação material;
cultural. Quase que predominantemente, ou pre- ou seja, na mobília, na arquitetura, na vestimenta
dominantemente, assente nos voláteis cheiros do e na culinária. Antropologia social que objetiva
açúcar derretido aliado ao sabor cítrico de nossos apreender e compreender a coesão das institui-
frutos tropicais nativos e exóticos. Uma civilização ções sociais: a realidade integrativa da religião, da
“açucarocratizada”, pois, dotada “de um paladar família e da moral a partir da representação só-
brasileiro histórico e (...) também (...) ecologicamen- cio-simbólica atuante no bojo da cultura materi-
te condicionado, e como tal, (...) predisposto a es- al. Fator que autoriza Gilberto Freyre a afirmar o
timar o doce e até o abuso do doce. Esse (...) gosto seguinte, por exemplo: “os homens e os livros
de doce é, para outros paladares europeus – nór- muitas vezes mentem. A arquitetura quase sem-
dicos, boreais, mediterrâneos, greco-romanos, pre diz a verdade através de seus sinais de dedos
calvinistas, clássicos –, excessivamente doce. Um de pedra.” 6
doce – o da preferência brasileira – como que bar- É demasiado sabido que o cotidiano em Gil-
roco e até rococó em termos que se transferissem berto Freyre passa a ser o enfoque norteador às
das artes e da música à arte talvez mais sensual da suas teses. Cotidiano que revela o jogo de rela-
sobremesa. Aliás, das gentes situadas em terras ções entre indivíduos de uma sociedade de tem-
quentes ou em espaços tropicais, várias se apre- pos idos (o de seus avós) e demonstrativa de suas
sentam com predisposições semelhantes à brasilei- origens, de sua memória.
ra: árabes e mouros são famosos pelo seu gosto A história do cotidiano7 era considerada exó-
pelos alimentos ou regalos doces e até extrema- tica e apenas destinada à distração de leitores. Era
mente doces.” 3 . uma história que buscava dá espaço aos “homens
Gilberto ao ecologizar o doce, “manufatura” sem qualidade;” haja vista que esse cotidiano é cons-
do açúcar, está revelando a sua análise etno- tituído de fragmentos materiais e imateriais. Permi-
botânica, ou etnobiológica4 , como preferiria, por tindo-se a ressurreição de alguns cacos de passados
considerar com propriedade o empírico e o intrínsecos nas permanências da “longa duração.”
semiótico da sociedade açucarocratizada do mais O que para o sociólogo e historiador alemão Norbert
tropical dos Brasis: o Nordeste. Sendo assim, Freyre Elias, tem elevada importância porque os “fenôme-
passa a destacar as atitudes mais simples impressas nos à primeira vista [são] carentes de sentido, se exa-
no cotidiano, como a ação culinária, que expressa minados a olho nu ou na escala do tempo imediato,
além da satisfação degustativa, o status do poder.
__________________________
Para que o poder seja identificado nas en-
tranhas das mais distintas expressões e manifesta-
5
BORDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Trad.: Fernando
Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. Fragmento
ções humanas, “é necessário saber descobri-lo das pp.07/08.
onde ele se deixa ver menos, onde ele é mais com- 6
FREYRE Apud BURKE, Peter. ‘A Cultura Material em Gilberto
pletamente ignorado [e], portanto, reconhecido: Freyre.’ In.: O Imperador das Idéias: Gilberto Freyre em Ques-
tão. Rio de Janeiro: TOPBOOKS/UNIVERCIDADE, 2001.
__________________________
7
DUBY, Georges. et alii. História e Nova História. Lisboa:
3
FREYRE, Gilberto. Açúcar... São Paulo: Companhia das Le- Teorema, 1989. Esta obra é uma coletânea de entrevistas
tras, 1997. de renomados historiadores franceses. Ver sobretudo: LE
4
Ver FREYRE, Gilberto. Problemas Brasileiros de Antropologia. GOFF, Jacques. ‘A História do Quotidiano.’
APRESENTAÇÃO
Ricardo Miranda
70
mundo dos homens e do mundo dos orixás, ca- A idéia central deste primeiro capitulo é a
boclos e de tantos outros deuses que fazem mi- de introduzir o espectador em conceitos e idéias
tologias nacionais. e para isso o documentário barrocamente embrica
Quando visito uma cidade, vou logo ao pensamentos, imagens e história.
mercado e a feira para conhecer os alimentos.
Depois busco uma banca, um restaurante para “O FARNEL LUSITANO ”
comer e beber, tentando entender e elaborar chei-
ros, cores e gostos. Somente depois dessa viagem “O homem lusitano usou e se reportou ao
pela boca vou ao encontro dos monumentos de Sal como elemento identificador das chegadas.
pedra e cal, acreditando que, pela comida, sen- Chegadas pelo mar, pela água salgada, marcando
te-se e sabe-se a alma de um lugar. territórios políticos, econômicos, religiosos que
A tradição convive com a mudança. Acarajés resultaram virtualmente na mudança de hábitos
pequenos e iguais aos encontrados na costa oci- alimentares” – Raul Lody.
dental africana estão lado a lado, na Bahia, com O mar português. Sempre o mar. Uma lua é
os grandes acarajés que lembram pães de ham- transpassada por nuvens. Um farol anuncia a pre-
búrguer, recebendo recheios de vatapá, caruru, sença do ponto mais ocidental da Europa. Mar-
salada, pimenta – verdadeiros sanduíches nagôs. gens de Portugal. Cenas emblemáticas introduzem
Assim, vivem as muitas mesas brasileiras, a magia da presença portuguesa. Os descobrimen-
e pluralizar, creio, é a melhor receita para co- tos, os heróis do mar, as rotas marítimas.
mer o Brasil. Apoiado em extensa entrevista de Maria de
Raul Lody Lourdes Modesto, uma das mais importantes co-
nhecedoras da comida regional portuguesa, o ca-
SINOPSES DOS DOCUMENTÁRIOS pítulo em questão será rico em imagens sobre os
nossos antepassados. A doçaria portuguesa, com
“O PÃO NOSSO DE CADA DIA ” os Pastéis de Belém (Lisboa), receita secreta dos
monges do Mosteiro dos Jerônimos e a doçaria
Ao arrebatar o fogo a Zeus, e oferecê-lo aos conventual do mosteiro da Conceição, destacan-
mortais, Prometeu inaugura um novo capítulo da do-se as várias regiões e alguns dos pratos típicos
história do homem. A fagulha do raio precede o dessas regiões: “Os portugueses foram grandes
pequeno fogo doméstico, fonte do calor, da luz e revolucionários da estética do paladar”. – Fidelino
do bem estar. Inventa-se a cozinha. de Figueiredo.
Do fogo doméstico, ressaltamos suas funções
de preservação e de conservação. O cru e o cozi- “OS COMEDORES DE MANDIOCA ”
do. Se realizarmos uma viagem ao redor do mun-
do, o mercado, essas “cidades de um dia” no dizer “Tal como o índio Uirá, que saiu a procura
de Lévi-Strauss, sempre chamaram atenção espe- de Deus, para identificar-se ante a divindade de-
cial dos viajantes e cronistas. Lugar primordial de clara ‘eu sou de seu povo, o que come farinha’,
encontros, trocas, novidades, compras.... lugar todos nós, brasileiros, podemos dizer o mesmo:
“onde são intercambiadas mais saudações, infor- ‘Nós somos o povo que come farinha de pau”. O
mações e estórias do que mercadorias e dinheiros” Povo Brasileiro – Darcy Ribeiro.
Mercados e feiras. Vamos viajar por vários Tudo começou com os nossos índios. Antes
deles no Brasil e em Portugal. Vamos falar e mos- de virem para cá os portugueses e os negros, inú-
trar este mundo particular e complexo. O Merca- meras tribos habitavam as terras que viriam a ser
do que no mundo português origina o nome dos denominadas de brasileiras. A sua caça, a sua pes-
dias da semana: os dias de mercado, de feira. Ima- ca, a sua agricultura. O homem do norte do Brasil
gens e entrevistas vão desvendando os Mercados. e os habitantes do litoral que mantém até hoje
O que é alimento? O que é comida? O que um modo de viver dos que aqui moravam.
é cozinha? E o Brasil? E a alimentação? Os nossos A mandioca é analisada pela câmera: histó-
hábitos alimentares. Em casa e nas ruas. Bares, ria e manejo. A farinha, o tucupi, sumo que resul-
restaurantes, fast-foods... Qual a origem dos nos- ta da mandioca descascada e ralada, a goma. O
sos hábitos alimentares? Tacacá, composto de tucupi, camarão, jambú,
O nordeste brasileiro é por excelência a ter- A cozinha africana na Bahia está intimamente
ra do açúcar, a terra do bolo fidalgo, no dizer de ligada ao candomblé. Talvez tenha sido a força
Gilberto Freyre. Texto, entrevistas e imagem a ser- religiosa a razão de sua sobrevivência. O texto
viço de referências às origem da cana de açúcar e deverá salientar que não é por acaso que se come
a sua vinda para o Brasil. nos terreiros a melhor comida de azeite, o dendê.
Fabrica-se açúcar, e em pequenos engenhos, Como também não é por acaso que a grande de-
rapadura e aguardente para o mercado interno. É monstração da cozinha africana está nas festas
com o açúcar que se vai notar a grande influência populares da Bahia.
da cozinha portuguesa na formação da culinária A influência da cozinha negra africana não
brasileira. Essa herança recolhida de Portugal, e está presente no dia a dia da comida dos baianos,
sobretudo dos mouros, pela doçaria dos engenhos, como normalmente se pensa. Mas encontra-se
não foi pequena. mais restrita a área de Salvador e alguns municípi-
Os frutos tropicais juntaram-se ao açúcar os vizinhos – o Recôncavo Baiano. A comida afri-
num dos casamentos mais felizes da nossa culiná- cana é de complicada realização, exigindo muita
ria, superando em alguns casos a repetitiva mistu- técnica. Por isso se come muito bem nos candom-
ra dos ovos com o açúcar, que fazem a base da blés em dias de festas, onde a comida é prepara-
doçaria portuguesa conventual. da amorosamente.
A cultura da cana de açúcar no Brasil Colô- Uma das comidas mais típicas da culinária
nia, no entanto, não implica somente no seu uso brasileira, a cozinha baiana, só irá encontrar algu-
culinário. Ela está ligada também à vinda dos ne- ma semelhança em alguns pratos africanos que
gros trazidos da África, da Guiné e ao trabalho lhe deram origem, como a Moamba
escravo. Daqui se origina o terceiro elemento de Angolana.Entrevistas deverão fazer a ligação en-
formação do povo brasileiro. Para Gilberto Freyre, tre a África, o comer e a religião.
sem a escravidão não se explica o desenvolvimento A figura da cozinheira negra, a fada do
no Brasil de uma arte de doces, de uma técnica dendê, aquela que o baiano diz “que é preciso
de confeitaria e de uma estética de mesa e de ter o dedo para fazer um bom efó ou um caruru
tabuleiro... Além da raça, o negro traz novos cos- na medida”, e que se transforma, após a liberta-
tumes e novos hábitos alimentares. ção, nas mulheres dos tabuleiros de rua, antes tam-
bém chamadas de escravas de ganho.
“C IVILIZAÇÃO DO COURO ”
“TROPAS E BOIADAS ”
A geografia do sertão, a caatinga, a terra seca
e árida. O sol escaldante. Homens trabalham. As Foi durante o século XVII que diversos
imagens mostram o trato do vaqueiro com o gado, sertanistas de S. Paulo percorreram o sertão mi-
o seu cotidiano. neiro, goiano e mato-grossense. As expedições
O texto irá destacar a particularidade da cria- avançaram pelo interior, desbravando trilhas, pre-
ção de uma infra-estrutura do ciclo do açúcar onde, parando a descoberta do ouro no século XVIII,
para além do cultivo dos canaviais e do reabasteci- expandindo as terras da América lusitana.
Direção
Ricardo Miranda
Roteiro
Izaias Almada
Produção Executiva
Silvia Wolfenson
Consultoria Antropológica
Raul Lody
Edição
Luciano Martins
Samantha Ribeiro
Ricardo Miranda
Texto
Aline Sasahara
Direção de Fotografia
Andreas Palluch
Narração
Maria Alice Vergueiro
Música
Cid Campos
Marcelo Brissac
Co-produção
Anders Produções, Ministério da Cultura,
Radiotelevisão Portuguesa e Tv Cultura
Raul Lody
Antropólogo e museólogo. Professor, autor e coordenador de diversos trabalhos de etnologia aplicada aos temas de arte
popular tradicional, religiosa e gastronomia – destacando-se nesta área os livros Culinária Bahiana, Culinária do Nordeste do
Litoral ao Sertão, Culinária da Amazônia, Axé da Boca, Santo Também Come, Doçaria de Pelotas. É curador da Fundação
Gilberto Freyre (Recife/PE) e da Fundação Pierre Verger (Salvador/BA). Representa como secretário geral o ICAF no Brasil.
Certamente, comer é um ato que vai muito além do biológico, pois comer
é antes de tudo uma interação com a natureza e a cultura. Assim, vive-se na
comida memórias ancestrais, patrimônio cada vez mais valorizado por represen-
tarem as mais contundentes formas de identificar e manifestar pertencimentos a
uma cultura, a um povo. Enfim, pela comida vê-se sinais de diferenças em con-
textos de semelhanças, contudo marcando territórios que auferem e determinam
ter uma identidade ou identidades.
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O Grupo de Antropologia da Alimentação Brasileira ( GAAB) foca seus
objetivos sobre o homem, busca compreender o brasileiro, sua multicul-
turalidade, sua diversidade, seus repertórios de ingredientes, receitas, rituais do
fazer e do servir.
Por tudo isso, instalasse nesse momento, vivendo esse ritual o Grupo de
Antropologia da Alimentação Brasileira (GAAB) na cidade do Recife.
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Realização
Patrocínio
Apoio