Sie sind auf Seite 1von 77

A N A I S

Fundação Gilberto Freyre

Recife, 2005
© Fundação Gilberto Freyre, 2005

Presidente
Fernando de Mello Freyre
Vice-presidente
Sonia Maria Freyre Pimentel
Superintendente Geral
Gilberto Freyre Neto
Superintendente Adjunta de Administração
Patrícia Kneip de Sá

Coordenação Editorial
Ana Cláudia Araújo
Projeto Gráfico e Diagramação
Mônica Lira

Rua Dois Irmãos, 320, Apipucos - 52071-440 - Recife/PE


Telefone (81) 3441.1733 . Fax (81) 3441.2883
http://www.fgf.org.br . fgf@fgf.org.br
Gastronomia em Gilberto Freyre

“Velhos retratos; receitas


De carurus e guisados
As tortas ruas direitas
Os esplendores passados”
Carlos Drummond de Andrade em
poema dedicado a Gilberto Freyre.

Pode-se dizer, sem medo de errar relacionados ao ato de comer, tais


que, no Brasil, é com Gilberto Freyre como as cozinhas, os ingredientes, os
que aspectos vistos como de menor im- rituais, enfim os vários aspectos que en-
portância pela tradição acadêmica, tais volvem o alimentar-se, colocou-o den-
como a alimentação, a arquitetura, o tro de uma perspectiva cultural que
vestuário e as práticas corporais e sexu- ultrapassa em muito o biológico.
ais, ganham valor. De fato, em conso- A alimentação tem também uma
nância com um projeto intelectual onde importância particular no debate em
a cultura é vista a partir das maneiras que Freyre se contrapôs às idéias vigen-
pelas quais é vivenciada, estas dimen- tes entre a intelectualidade de sua épo-
sões corriqueiras do cotidiano são trans- ca (em especial às dos apologistas da
formadas em objetos privilegiados de eugenia racial) revolucionando as idéi-
investigação, tornando-se fundamentais as sobre os brasileiros e marcando de
para o entendimento da vida social. forma indelével o pensamento intelec-
tual no Brasil.
“Através do cotidiano ou quase-
cotidiano é que se fixam, nas culturas, “Muito da inferioridade física do
os seus característicos e se firmam os brasileiro, em geral atribuída toda à
seus valores. É que se consolidam nas raça, ou vaga e muçulmanamente ao
sociedades as suas constantes.” (Gilber- clima, deriva-se do mau aproveitamen-
to Freyre, Açúcar) to dos nossos recursos naturais de nu-
trição. Os quais sem serem dos mais
É este um dos mais importantes ricos, teriam dado para um regime ali-
e inovadores aspectos de sua monu- mentar mais variado e sadio do que o
mental obra de interpretação da cul- seguido pelos primeiros colonos e por
tura brasileira empreendida por Gilber- seus descendentes, dentro da organi-
to Freyre. Enfocando as múltiplas zação latifundiária e escravocrata.”
dimensões do cotidiano, é inegável (Casa-Grande & Senzala)
que a alimentação ocupe um lugar
muito particular, surgindo como um Sobre este assunto, cabe também
dos principais elementos explicativos lembrar esta outra passagem do mes-
e sendo tratada através de diferentes mo livro:
ângulos e perspectivas, desde o que se
refere aos aspectos nutricionais até os “Se a quantidade e a composição
que se referem aos significados do que dos alimentos não determinam sozi-
entendemos por comida. Salientando nhas, como querem os extremistas – os
as relações sociais estabelecidas e va- que tudo crêem poder explicar pela di-
lorizando de maneira inovadora os es- eta – as diferenças de morfologia e de
paços sociais, materiais e simbólicos psicologia, o grau de capacidade eco-
nômica e de resistência às doenças entre as socie- de poder simbólico, marcando identidades indi-
dades humanas, sua importância é entretanto con- viduais e sociais e, mais profundamente, algo que
siderável, como o vão revelando pesquisas e inqu- implica na relação natureza e cultura. Trata-se,
éritos nesse sentido. Já se tenta hoje retificar a assim, de um campo privilegiado para a discussão
antropogeografia dos que, esquecendo os regimes antropológica.
alimentares, tudo atribuem aos fatores raça e cli- A antropologia da alimentação visa o estudo
ma; nesse movimento de retificação deve ser in- de práticas, manifestações e representações rela-
cluída a sociedade brasileira, exemplo de que tan- cionadas com o ato alimentar dos grupos huma-
to se servem os alarmistas da mistura de raças ou nos, abarcando assim tanto os aspectos que tradi-
da malignidade dos trópicos a favor da sua tese de cionalmente são classificados como “materiais”
degeneração do homem por efeito do clima ou da quanto os classificados como “simbólicos” – di-
miscigenação. É uma sociedade, a brasileira, que mensões indissociáveis de um mesmo fenômeno.
a indagação histórica revela ter sido em larga fase Neste sentido, organizou-se, no Brasil, o ICAF
do seu desenvolvimento, mesmo entre as classes (International Commission on the Anthropology of
abastadas, um dos povos modernos mais Food) em janeiro de 2003, possibilitando aos pes-
desprestigiados na sua eugenia e mais comprome- quisadores brasileiros uma inserção e intercâmbio
tidos na sua capacidade econômica pela deficiên- internacional, e o GAAB (Grupo de Antropologia
cia de alimento.” (Casa-Grande & Senzala) da Alimentação Brasileira), ambos dentro de uma
perspectiva de trabalho em conjunto, com o ob-
Pode-se mesmo afirmar que a alimentação jetivo de incentivar os estudos sobre alimentação
constitui-se em um importante ponto focal de sua e promover a articulação de pesquisadores que
obra e seu estudo é um dos mais frutíferos cami- trabalham com este tema.
nhos de acesso ao rico e fecundo universo do Não por acaso, o GAAB recebeu acolhida
pensamento freyriano. na Fundação Gilberto Freyre e seu lançamento
Mas cabe sublinhar que a alimentação, em deu-se, justamente, dentro das comemorações dos
Gilberto Freyre, não é reduzida a inventários de 70 anos de Casa-Grande & Senzala, com o Semi-
receitas ou a uma procura genética de elementos nário Gastronomia em Gilberto Freyre, ocorrido
constitutivos de uma dada cozinha. Ao contrário, de 15 a 17 de outubro de 2003 e que contou
como pode ser observado (muito especialmente com o apoio do Senac, do ICAF/Brasil e da Cáte-
em Casa-Grande & Senzala), os elementos pro- dra Gilberto Freyre da Universidade Federal de
vindos de culturas diferentes e que vão constituir Pernambuco.
o patrimônio alimentar brasileiro estão articula-
dos dentro de uma perspectiva onde escolhas, O Seminário teve como objetivo promover
abandonos, apropriações e transformações fazem a discussão em torno das interpretações freyrianas
parte de um processo histórico-cultural. Assim, a acerca da alimentação e da gastronomia e difun-
alimentação brasileira não é formada por um mero dir o conhecimento sobre a arte-culinária nacio-
somatório de itens de procedência distintas, mas nal. Já em sua primeira edição, o Seminário bus-
é fruto de um processo onde diferentes elemen- cou juntar, em um mesmo evento, pesquisadores
tos com origens em contextos étnicos e culturais tais como antropólogos, historiadores, museólogos,
muito diferentes são articulados resultando em um agrônomos, folcloristas, jornalistas e estudantes, e
sistema alimentar heterogêneo, diverso, variável também profissionais da área de alimentação,
e desigual. como cozinheiros, doceiras, proprietários de res-
Nos últimos anos, a alimentação, estudada taurantes e profissionais do Senac, abrindo-se as-
a partir do ponto de vista social e cultural, tem sim para perspectivas as mais diversificadas.
recebido uma atenção crescente. De fato, na ali- Neste sentido, a presente publicação reflete
mentação o biológico e o cultural se encontram. esta heterogeneidade de olhares e interpretações.
Porém, mais do que responder à uma necessida- Como poderá ser observado, os autores partem
de básica do organismo, o ato de comer é uma de premissas e idéias muito diferentes, demons-
prática cultural que implica em relações sociais, trando o quanto o campo da alimentação pode
crenças, classificações, enfim, formas de conce- ser múltiplo e rico.
ber o mundo. A alimentação tem, então, um gran- O Seminário contou ainda com um momen-
to muito particular: o da apresentação da série
Mesa Brasileira, de Ricardo Miranda. A série pro-
cura registrar e mostrar como se alimenta o brasi-
leiro e assim contar a história a partir da perspec-
tiva da alimentação. Percorrendo o país de norte
a sul, traz a enorme diversidade alimentar do Bra-
sil expressa não apenas em seus pratos típicos, mas
também nas diferentes formas cotidianas do co-
mer no Brasil. Publicamos aqui o pré-roteiro da
série, as sinopses dos documentários assim como
os créditos deste trabalho pioneiro.
Finalizando está o texto de Instalação do
Grupo de Antropologia da Alimentação Brasileira
(GAAB), de autoria de Raul Lody, que marca o
início da caminhada do grupo.
Gilberto Freyre, além de grande intelectu-
al, era também um grande apreciador da boa
mesa. Assim, nada mais justo que trabalhos com
alimentação - estudar ou fazer – sejam reunidos
em sua homenagem. Ao final, restou um gostinho
de “quero mais”, deixando a perspectiva de um
novo encontro onde novamente se reúna sabe-
res e sabores.

Maria Eunice Maciel


Presidente do ICAF/Brasil
Sumário

O Seminário .......................................................................................................... 7
· Apresentação ................................................................................................ 7
· Programação ................................................................................................. 7
· Comissão Organizadora ................................................................................. 8

MESA-REDONDA: CASA-GRANDE & SENZALA : COZINHA, GÊNERO E RELAÇÕES SOCIAIS


· A Culinária e a Negra (Fátima Quintas) ............................................................ 9
· Para uma Antropologia da Alimentação Brasileira (Cláudia Maria de Assis
Rocha Lima) .................................................................................................. 14
· Doutor Gilberto Freyre e o Reconhecimento da Culinária como Fenômeno
Cultural (Eliane Asfora da Cunha Cavalcanti) ................................................... 18

MESA-REDONDA: NORDESTE: ECOLOGIA, ALIMENTAÇÃO E CULTURA


· Nordeste: ecologia, alimentação e cultura (Manoel Correia de Andrade -
Coordenador da Mesa) .................................................................................. 20
· Estudo Etnobotânico da Mandioca (Manihot esculenta Crantz - Euphorbiaceae)
na Diáspora Africana (Maria Thereza Lemos de Arruda Camargo) ..................... 22
· Cozinha e Identidade Nacional: notas sobre a culinária na formação da cultura
brasileira segundo Gilberto Freyre e Luis da Câmara Cascudo (Rogéria Campos
de Almeida Dutra) ......................................................................................... 31

MESA-REDONDA: AÇÚCAR: DOÇARIA E CIVILIZAÇÃO


· Doçaria e Civilização: a preservação do fazer (Roberto Benjamim) ................... 37
· A Formação da Culinária Brasileira (Letícia Monteiro Cavalcanti) ..................... 42

COMUNICADOS LIVRES
· Acarajé 10: sucesso em Salvador - Bahia (Celso Duarte Carvalho Filho) ............ 44
· O Chouriço: uma doce dádiva (Antonio de Pádua dos Santos, Julie Antoinette
Cavignac e Maria Isabel Dantas) ..................................................................... 46
· É Assim que se Faz: etnografia sobre a farinhada no Pêga (Glória Cristiana de
Oliveira Morais) ............................................................................................. 53
· A Culinária de Papel (Laura Graziela Gomes e Lívia Barbosa) ........................... 60
· Gilberto Freyre: a representação social da culinária (Rodrigo Alves Ribeiro) ...... 66

Série Mesa Brasileira, de Ricardo Miranda ............................................................ 70

Instalação Nacional do Grupo de Antropologia da Alimentação Brasileira (GAAB):


em busca do ethos da alimentação, por Raul Lody ........................................... 75
O Seminário

APRESENTAÇÃO

Gilberto Freyre realizou uma vasta obra de interpretação da cultura brasilei-


ra, muito especialmente no entendimento das relações sociais nas regiões agrárias
do Brasil, nos quais o patriarcalismo rural e o paternalismo senhorial são faces
dominantes da realidade.
Sua obra aponta e valoriza de maneira pioneira os cenários sociais das cozi-
nhas, dos alimentos, dos muitos rituais que fazem o fazer comida, desenvolver
sistemas e formas de gastronomia tropical brasileira, trazendo esses patrimônios
em diferentes contextos étnicos e culturais.
Assim, Açúcar, Nordeste, Casa Grande & Senzala, Sobrados e Mucambos,
entre outros, introduzem e trazem o valor dos ingredientes, do gênero, do traba-
lho, da nutrição, dos muitos significados que integram o fazer, o servir e o consu-
mir comida.
O Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre visa promover a discus-
são em torno das interpretações freyrianas acerca da alimentação e da
gastronomia como elemento diferenciador da arte e da cultura dos povos e
também difundir o conhecimento sobre a arte-culinária nacional e suas carac-
terísticas mais marcantes em nossa cultura.

PROGRAMAÇÃO

Dia 15/out/2003
15h MESA-REDONDA: Casa-grande & Senzala: cozinha, gênero e relações sociais
Coordenadora: Profa. Dra. Maria Eunice de Souza Maciel (UFRGS)
Dra. Fátima Quintas – A Culinária e a Negra
Dra. Cláudia Maria de Assim Rocha Lima – Para uma Antropologia da
Alimentação Brasileira
Sra. Eliane Asfora da Cunha Cavalcanti – Doutor Gilberto Freyre e o
Reconhecimento da Culinária como Fenômeno Cultural
16h45 SESSÃO DE VÍDEO: série Mesa Brasileira de Ricardo Miranda
O pão nosso de cada dia

Dia 16/out/2003
16h30 Instalação Nacional do Grupo de Antropologia da Alimentação
Brasileira (GAAB)
Raul Lody – Em Busca do Ethos da Alimentação
15h MESA-REDONDA: Nordeste: ecologia, alimentação e cultura
Coordenador: Prof. Dr. Manoel Correia de Andrade (FGF)
Profa. Maria Thereza Lemos de Arruda Camargo (USP) – Estudo Etnobotânico
da Mandioca (Manihot esculenta Crantz - Euphorbiaceae) na Diáspora Africana
Profa. Rogéria Campos de Almeida Dutra (UFMG) – Cozinha e Identidade
Nacional: notas sobre a culinária na formação da cultura brasileira segundo
Gilberto Freyre e Luis da Câmara Cascudo

7
Sr. Petrucio Nazareno (Restaurante Goya)
16h15 DEMONSTRAÇÃO GASTRONÔMICA : Doce de Gerimum com Coco
Prof. Antonio José de Oliveira Filho e Prof. Antônio José Medeiros Silva
16h45 APRESENTAÇÃO DE COMUNICADOS LIVRES
COMUNICADO 1: Celso Duarte Carvalho Filho – Acarajé 10: sucesso em Salvador -
Bahia
COMUNICADO 2: Antonio de Pádua dos Santos, Julie Antoinette Cavignac, Maria
Isabel Dantas – O Chouriço: uma doce dádiva
COMUNICADO 3: Glória Cristiana de Oliveira Morais – É Assim que se Faz:
etnografia sobre a farinhada no Pêga
17h45 SESSÃO DE VÍDEO: série Mesa Brasileira de Ricardo Miranda
Comedores de Mandioca

Dia 17/out/2003
14h30 MESA-REDONDA: Açúcar: doçaria e civilização
Coordenadora: Sra. Sílvia Pontual (Restaurante Mourisco)
Dr. Roberto Benjamim – Doçaria e Civilização: a preservação do fazer
Dra. Letícia Monteiro Cavalcanti – A Formação da Culinária Brasileira
Dr. Armênio Ferreira Diogo
RELATOS DE EXPERIÊNCIAS
Raul Lody (SENAC) – Série “A Formação da Culinária Brasileira”
Fernando Soares (SESC/PE) – Banco de Alimentos
15h45 APRESENTAÇÃO DE COMUNICADOS LIVRES
COMUNICADO 1: Laura Graziela Gomes e Lívia Barbosa – A Culinária de Papel
COMUNICADO 2: Carlos André de Vasconcelos Cavalcanti – SERTA: a experiência
com produtos orgânicos no campo da sementeira
COMUNICADO 3: Rodrigo Alves Ribeiro – Gilberto Freyre: a representação social
da culinária
17h45 SESSÃO DE VÍDEO: série Mesa Brasileira de Ricardo Miranda
Mar de Açúcar
18h ENCERRAMENTO
Dr. Fernando de Mello Freyre (Presidente da FGF)
Profa. Maria Eunice Maciel (Presidente do ICAF/Brasil)
Prof. Raul Lody (Secretário Geral do ICAF/Brasil)

COMISSÃO ORGANIZADORA

COORDENAÇÃO GERAL: Raul Lody

FUNDAÇÃO GILBERTO FREYRE


Gilberto Freyre Neto
Germana Kaercher
Patrícia Kneip

ICAF BRASIL
Maria Eunice Maciel

8
A Culinária e a Negra

Fátima Quintas
Graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco. Pós-graduação em Antropologia Cultural pelo
Instituto de Ciências Sociais e Política Ultramarina (Lisboa – Portugal). Pós-graduação em Museologia pelo Museu das
Janelas Verdes (Lisboa – Portugal). Mestrado em Antropologia Cultural pela Universidade Federal de Pernambuco.
Coordenadora do Núcleo de Estudos Freyrianos da Fundação Gilberto Freyre.

“No meio dos graves problemas rigosos ou pecaminosos. Com a devida


sociais cuja solução buscam os reserva, a palavra soada e ressoada no
espíritos investigadores no nosso âmbito da cozinha exerceu importante
século, a publicação de um manual de função libertadora. Freyre alerta: Creio
confeitaria, só pode parecer vulgar a que não há um só diário escrito por
espíritos vulgares; na realidade, é um mulher. Nossas avós tantas delas anal-
fenômeno eminentemente fabetas, mesmo quando baronesas e
significativo. Digamos todo o nosso viscondessas, satisfaziam-se em contar
pensamento: é uma restauração, é a os segredos ao padre confessor e à
restauração do nosso princípio social” mucama de estimação; e a sua tagareli-
Machado de Assis ce dissolveu-se quase toda nas conver-
sas com as pretas boceteiras, nas tardes
de chuva ou nos meios dias quentes,
O espaço reservado à cozinha da morosos (Freyre,1966, p.XLIV).
casa-grande patriarcal agrupou o encon- Pretas velhas, mucamas, sinha-
tro de raças, combinando emoções com zinhas, sinhás-donas, nhonhôs coabita-
temperos, sentimentos com receitas ram os momentos de relaxamento que
culinárias, saudades com cheiro e gos- o forno e o fogão possibilitaram. Entre
to de condimentos. Nesse desvão, apa- receitas, o rastro dos apetites – seja qual
rentemente resguardado, desfilaram as for a sua etiologia, sexual ou palatal –
enormes proezas da convivência do- deixou-se verter em discursos reprimi-
méstica. Oráculo de confissões, de dos. Pamonha, milho assado, pão-de-
fuxicos, de troca de sigilos. Zona de ló, arroz-doce, alfenins, alféloa, empa-
confraternização. Locus de intercâmbio relharam-se à table da casa-grande, em
afetivo. Na “sagrada” cozinha, a con- uma demonstração de hibridismo de
versa mole, os mexericos, os segredos, paladares. As negras, exímias cozinhei-
o disse-me-disse ganharam a moldura ras, redondas de tanto comerem, esme-
da intimidade. Entre o preparo de um raram-se no preparo de “acepipes” para
prato e de outro, muitas narrativas fo- o regalo do menino, da sinhá ou do
ram verbalizadas. Tanto quanto o con- patriarca. Imensos panelões compuse-
fessionário, o suposto esconderijo do ram a paisagem da comensalidade pa-
fabrico das guloseimas, simbolizou o triarcal. Passava-se o dia a beliscar e a
canal catártico por onde escoraram con- provar pratos temperados ao saibo pre-
versações em tom pessoal, segredos re- ferido da próxima refeição ou à blandí-
cônditos, mistérios femininos. Debaixo cia da donzela enfraquecida, a neces-
do manto da solidão, a larga e tosca sitar de cuidados especiais. Do café da
mesa retangular agasalhou os dispen- manhã à ceia noturna, o dedo decisivo
sáveis pudores de mulheres acanhadas. da negra. Do simples caldo de pintainho
Lugar de especial atrativo para o trans- à gordurosa feijoada. Da mesa repleta
bordamento de dizeres porventura pe- de convidados ao almoço trivial. A qual-

9
quer hora, a chaminé estimulante. À fumaça do elas próprias elaboravam. Novidades a toda hora.
bueiro, a fruição da comida acalentada pelo “es- Temperos excêntricos vindos de uma África não
tridente” toque africano. Enfatiza Darcy Ribeiro: menos excêntrica. A fortuna aconteceu no brio
Para Gilberto Freyre [o negro ensinou] o brasileiro do paladar e na adequação a um regime tropical-
a explorar todas as possibilidades das papilas da mente sensual. Uma dieta que se adaptava ao calor
língua, bem como os nervos do faro, com a sua excessivo de regiões quentes e úmidas. Ao mes-
magia culinária. ( Ribeiro, 1979, p. 94) mo tempo, refeições buriladas em pimentas e
Quando se pensa numa comida apetitosa, a molhos, o que sugeria aparentes incoerências para
deixar água na boca, tende-se a recordar a ima- um clima de altas temperaturas. As inconexões
gem da preta velha maquinando pratos de requin- demonstraram a versatilidade e a combustão do
tes maquiavélicos. No regime alimentar brasileiro, temperamento africano, intensamente explosivo.
a contribuição africana afirmou-se principalmen- O clima tropical, com certeza, não determinou,
te pela introdução do azeite-de-dendê e da pimen- mas concorreu para a extroversão culinária. O
ta-malagueta, tão característicos da cozinha Nordeste aceitou de muito bom grado as ambrosias
baiana; pela introdução do quiabo; pelo maior uso de uma etnia que soube mimetizar origens e
da banana; pela grande variedade na maneira de atavismos com o erudito modo de ser de um Oci-
preparar a galinha e o peixe. Várias comidas por- dente “civilizado”. A mistura deu certo.
tuguesas ou indígenas foram no Brasil modifica- Criou-se um sincretismo culinário, de saibos
das pela condimentação ou pela técnica culinária vivos e alguns até berrantes. Senhora de densos
do negro, alguns dos pratos mais caracteristica- “refogados”, a negra atraiu para si atenções e se-
mente brasileiros são de técnica africana: a farofa, gredos que se anelavam em “armadilhas” capa-
o quibebe, o vatapá (Freyre, 1966, p. 489). zes de ofuscar o brilho da portuguesa. Exerceu,
Os serviços culinários, no período colonial, com uma certa maledicência, o desafio da mesa.
tiveram um prévio escalonamento. As pretalhonas, Há que se render vênia a essa emulação. Quem
as escolhidas, instigaram o âmbria com mãos de duvidará da competência da negra na arte de co-
tecelã. Mas houve negros incapazes de servir no zinhar? Mocotós, vatapás, mingaus, pamonhas,
eito, com tendências a maricas, que foram canjicas, acaçás, abarás, arroz-de-coco, feijão-de-
inigualáveis no preparo de quitutes. Homens coco, angus, pão-de-ló-de-arroz, pão-de-ló-de-
efeminados a desejarem manifestar os seus pen- milho, rolete de cana, isto é, rebuçados etc (Freyre,
dores no espaço dedicado à mulher, o da cozi- 1966, p.490). Africano também é o acarajé, prato
nha. Talvez até para provar a capacidade de exe- precioso na Bahia: feito com feijão-fradinho rala-
cutar tarefas de tradição não masculina, do na pedra; como tempero leva cebola e sal; a
capricharam em sutilezas, agudamente “satânicas” massa é aquecida em frigideira de barro onde se
no que tange à expressão de uma gastronomia derrama um bocado de azeite-de-cheiro. Além
sofisticada. Freyre realça: Dentro da extrema es- das receitas genuínas, a africana sobressaiu-se na
pecialização de escravos no serviço doméstico das práxis da adaptação e no apuro dos doces lusita-
casas-grandes, reservaram-se sempre dois, às ve- nos à Terra do pau- Brasil. E quebrando arestas,
zes três indivíduos, aos trabalhos de cozinha. De ajeitando ali ou acolá, os ingredientes foram do-
ordinário, grandes pretalhonas; às vezes negros sados com a mestria do amálgama cultural. É nos-
incapazes de serviço bruto, mas sem rival no pre- sa opinião que no preparo do próprio arroz-doce,
paro de quitutes e doces. Negros sempre tradicionalmente português, não há como o de
amaricados; uns até usando por baixo da roupa rua, ralo, vendido pelas negras em tigelas gordas
de homem cabeção picado de renda, enfeitado donde o guloso pode sorvê-lo sem precisar de
de fita cor-de-rosa; e ao pescoço tetéias de mu- colher. Como não há tapioca molhada como a do
lher. Foram estes, os grandes mestres da cozinha tabuleiro, vendida à maneira africana, em folha
colonial (Freyre, 1966, p. 489). de bananeira ( Freyre, 1966, p. 490, 491).
Desse modo, a cozinha brasileira Dentre os pratos africanos que se impuseram
africanizava-se, granjeando a inspiração exótica na mesa patriarcal, e firmaram-se até com uma certa
dos seus acepipes. Exuberante. Indiscreta. arrogância, distinguem-se: o caruru e o vatapá. Os
Histriônica. Com donaires agudíssimos. Gordas e eleitos. Os mais apreciados. Os que se fixaram com
alegres, as pretas orgulhavam-se dos pratos que uma autenticidade quase intocada. Sem retoques

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 10


significativos. Puros e absolutamente distintos. En- “preciosismos” da doçaria. A constância, a resig-
sina Freyre: Prepara-se o caruru com quiabo ou fo- nação, a firmeza da africana acentuaram-se na
lha de capeba, taioba, oió, que se deita ao fogo realização das fórmulas prescritas.
com pouca água. Escoa-se depois a água, espreme- Somente a pasmaceira da casa-grande per-
se a massa que novamente se deita na vasilha com mitia operacionalizar o fabrico de doces compli-
cebola, sal, camarão, pimenta-malagueta seca, tudo cadíssimos. Tempo. Horas. Pacatez. O complexo
ralado na pedra de ralar e lambuzado de azeite-de- da cana, com as suas derivações, jamais teria se
cheiro. Junta-se a isto a garoupa ou outro peixe as- validado com tamanha efervescência, não fora a
sado (Freyre, 1966, p. 492) quantidade de escravas, o tédio das horas mornas
Por muito tempo, a mesa do engenho foi afri- e intermináveis, o pausado badalar do relógio, os
cana. Pelo menos, até meados do século XIX. O minutos por consumir, o longo intervalo do nada...
paladar girou em torno das variações da negra, que, Cedo começava o preparo. Receitas demoradas,
habilmente, articulou doses “marotas” de condi- demoradíssimas, só explicadas pelo excesso de
mentos. Arte, acima de tudo arte, subscreveu a ócio. Sinhás-donas gulosas e adictas de glicídios à
mescla das influências, misturando especiarias e espera da catarse alimentar. Houve, no Brasil, uma
retirando-lhes as possíveis indisposições. Graduan- maçonaria do doce, isto é, um poder coeso de
do o alimento com ternura e ofertando-o ao meni- mulheres sobre o sigilo das receitas de bolo de
no ou à menina com gesto maternal. Freyre asse- família. O caderno de receitas – período em que
vera: A ama negra fez muitas vezes com as palavras as mulheres já escreviam – foi repassado de gera-
o mesmo que com a comida: machucou-as, tirou- ção a geração, através de um inventário sentimen-
lhe as espinhas, os ossos, as durezas, só deixando tal. Não se banalizou o receituário gastronômico
para a boca do menino branco as sílabas moles. em mãos à-toa. Prevaleceu uma intencional e es-
(...) Palavras que só faltam desmanchar-se na boca merada escolha na descendência dos bolos e do-
da gente (Freyre, 2003, p. 387). ces de família. A doçaria patriarcal, recebeu-a a
Não se pode falar em culinária nacional sem filha/sobrinha eleita, aquela que garantisse a dis-
remeter ao mastro balizador da espaventosa crição do claustro da glutonaria. A história do açú-
glicose. A arte do doce espargiu-se do Nordeste car guarda fortes veios de privacidade. De misté-
para o Brasil afora. A sua expressão sociológica, rios de família. De endogamia culinária.
econômica, sentimental advém da família patriar- O doce e a escravidão combinaram-se em
cal, gorda, extensiva, horizontal, a repousar na prolongados passadios de fartíssimos manjares. Um
imensidão de um monopólio canavieiro, orgulhoso e outro estiveram tão juntos que parece difícil elidi-
de exclusivismos. A escravidão propiciou o culto los. O Padre Antônio Vieira identificava o Brasil
da hipérbole da sacarose. A cana ofertava-se com com o Nordeste, e o Nordeste com o açúcar, ou
largueza, e a mão-de-obra escrava concretizava, mais especificamente, com o negro a serviço do
em dispendiosas e complicadas receitas, o telúrico açúcar. A paisagem dulcificou o desenvolvimento
e o bucólico degustar da invejada especiaria. de requintadas guloseimas, em razão da matéria-
Na gangorra do açúcar, não se mediram es- prima abundante. A cana, o massapê, a escravi-
tímulos para açular o paladar – e já asseverava dão. Subtraindo um desses elementos, com cer-
Eduardo Prado que o paladar corresponde à últi- teza, a doçaria não teria alcançado o paroxismo
ma sensação a desnacionalizar-se no homem. A da culinária brasileira dos tempos de outrora.
escrava foi fundamental na produção do doce. As Há de se particularizar a tipologia das frutas,
intermináveis receitas reivindicavam o ofício da essas dulcíssimas, a aliarem-se à cana na conjuga-
persistência, longas tardes à beira do fogão, a vigi- ção do supinamente melífluo. O paladar ajustou-
ar as panelas em que se preparavam caldas em se, pois, ao que vinha de fora – de Portugal e da
ponto de visgo. Porções estrambóticas entornaram África. O endógeno e o exógeno acasalaram-se.
quilos de açúcar, de rapadura, de mel – o mel de Tudo contribuiu para que na Nova Lusitânia as
abelha indígena que, segundo José de Alencar, receitas com base nos glicídios proliferassem. De
morava nos lábios de Iracema. Ovos e mais ovos Portugal, sobretudo dos mouros, chega-nos uma
esbanjavam dos tachos, borbulhando o creme, que herança singularmente açucarada. Freyre elucida:
se transformaria em refinados postres. Exigiu-se o Note-se do açúcar que se tornou abundante na
máximo de perseverança para levar a termo os cozinha e na doçaria européias, a partir do século

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 11


XVI, que grande parte dele era de engenhos do vam-se em detalhes e mais detalhes: ritmos
Brasil. Tanto que a palavra, de uso tão brasileiro, inventivos, inspirações fantásticas, visando a
mascavo tornou-se, desde então, inglesa. E a mar- embelezar a oferenda do produto. E o princípio
melada e a goiabada brasileira ganharam, desde da gula é, antes de mais nada, plástico, com acen-
velhos dias, apreciadores europeus. Inclusive a tos pictóricos. O olhar antecipa o olfato na “fer-
goiabada apreciadíssima pela gente nordestina.. mentação” do apetite. A estética da ornamenta-
(...) O que é doce, afinal? Dizem os dicioná- ção aprimorou o espetáculo “pirotécnico”.
rios que é aquilo que tem um sabor como o de E a arte fez-se no açúcar e por meio do açú-
açúcar ou de mel; e que, assim sacarino, não é car. Os tabuleiros ficaram famosos pela delicade-
amargo, nem salgado, nem picante; e – ainda – a za do rendilhado e pela coreografia poética. Do-
composição que é temperada com açúcar, mel ou ces produzidos por negras e embelezados por
outro ingrediente sacarino (Freyre, 1987, p. 34, negras. Algumas delas forras, que iam vendê-los
44). A representação do doce no Nordeste se dá na rua, exibindo, assim, dotes físicos e culinários.
com tamanha veemência que aponta para a for- Bolos e doces, coisas de doçaria, de pastelaria e
mulação de uma Sociologia do Doce, eivada de de cozinha, estão entre as que o autor vem consi-
traços de confeitaria, pastelaria, e estética de so- derando mais atraentes do ponto de vista pictóri-
bremesa, o que leva a implicações socioculturais co e não apenas gastronômico; do artístico e não
da maior relevância. apenas do sociológico. (...) Mas o legítimo doce
O açúcar venceu. E venceu com a escravi- ou quitute de tabuleiro foi o das negras forras. O
dão. De mãos dadas com o massapê. Na casa- das negras doceiras. Doce feito ou preparado por
grande vicejaram os “torpedos” do doce. E o luxo elas. Por elas próprias enfeitado com flor de papel
da sobremesa, dos doces e das guloseimas de açú- azul ou encarnado. E recortado em forma de co-
car [são] de criação mais pernambucana do que rações, de cavalinhos, de passarinhos, de peixes,
baiana. (Freyre, 2000, p. 508, 509) de galinhas – às vezes com reminiscência de ve-
O regime escravista não só possibilitou a arte lhos cultos fálicos ou totêmicos. Arrumado por
da sobremesa através do exercício da paciência cima de folhinhas secas de banana. E dentro de
bíblica como aprimorou a estética da sua apre- tabuleiros enormes, quase litúrgicos, forrados de
sentação. Os caprichos foram completos. Em tor- toalhas alvas com pano de missa. Ficara, célebres
no do doce brotou uma ritualística quase mitoló- as “Mães Bentas (Freyre, 1966, p. 490)
gica. O doce exigiu finas devoções: homens, Com a desafricanização da mesa nas primei-
mulheres, crianças à sua volta. A liturgia reivindi- ras décadas do século XIX, o brasileiro perdeu o
cou o máximo de reverência. Crianças adultizadas, hábito de verduras, tão do agrado do negro. Tor-
mulheres subjugadas, patriarcas hipnotizados pelo nou-se um abstêmio de vegetais: Ficou tendo ver-
poder econômico. E a escravidão, a selar a vitória gonha de suas mais características sobremesas – o
do imperialismo açucareiro. Gilberto Freyre afi- mel ou melado com farinha, a canjica temperada
ança: Sem a escravidão não se explica o desenvol- com açúcar e manteiga. Só se salvaria o doce com
vimento, no Brasil, de uma arte de doce, de uma queijo (Freyre, 2000, p.510). O pão surgiu como
técnica de confeitaria, de uma estética de mesa, a grande novidade do século XIX. Antes pontifica-
de sobremesa e de tabuleiro tão cheias de compli- ra o complexo da mandioca, tendo sido o trigo
cações e até de sutilezas e exigindo tanto vagar, abandonado, por força das circunstâncias, pelos
tanto lazer, tanta demora, tanto trabalho no pre- nossos colonizadores. Naturalmente uma mudan-
paro e no enfeite dos doces, dos bolos, dos pra- ça de gosto que custou ao lusitano uma boa dose
tos, das toalhas e das mesas. Só o grande lazer das de sacrifício. Foi a época do beiju de tapioca, ao
sinhás ricas e o trabalho fácil das negras e das almoço, e, ao jantar, a farofa. Ainda: o pirão es-
molecas explicam as exigências de certas receitas caldado ou a massa de farinha de mandioca es-
das antigas famílias das casas-grandes e dos so- palhada no caldo do peixe ou de carne. O feijão
brados; receitas quase impossíveis para os dias de representou o prato do quotidiano – feijoada com
hoje (Freyre, 1987, p. 55, 57,58). carne salgada, cabeça de porco, lingüiça, muito
Os pratos ou tabuleiros nos quais se acomo- tempero africano. Após a Independência, a cozi-
davam as guloseimas eram enfeitados de modo a nha brasileira sofreu a influência direta da france-
alucinar os olhos. As negras recortadoras esmera- sa. Na verdade, neste período, o Brasil aderiu a

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 12


galicismos de toda a ordem. Diz Freyre: Os livros ência destacou-se não somente nos quitutes e nos
franceses de receita e de bom tom começaram o arranjos das travessas, como igualmente na abun-
seu trabalho de sapa.(...) Manteiga francesa, bata- dância e na diversidade da mesa brasileira, cuja
ta-inglesa, chá também à inglesa, gelo – tudo isso variedade de timbres homologa-lhe um caráter
agiu no sentido da desafricanização da mesa bra- peculiar, extralusitano e marcadamente atávico.
sileira, que até os primeiros anos da Independên- Brasil, brasileiro, com gosto e cheiro de
cia estivera sob maior influência da África e dos tropicalidade. Repetindo Carlos Drummond de
frutos indígenas (Freyre, 1966, p. 495). Andrade, no poema A Mesa, concluo: E não gos-
O gelo foi introduzido em 1834, trazido pela tavas de festa.../ Ó velho, que festa grande/ hoje
primeira vez ao Brasil por um navio americano, o te faria a gente./ E teus filhos que não bebem/ e o
Madagascar. A sua chegada avultou em sucesso, que gosta de beber,/ em torno da mesa larga,/ lar-
pois os “novos” brasileiros eram grandes bebedo- gavam as tristes dietas,/ esqueciam seus fricotes,/
res de água em virtude do calor tropical, do ex- e tudo era farra honesta/ acabando em confidên-
cesso da pimenta e da quase libidinal ingestão do cia. (...) Estamos todos vivos./ e mais que vivos,
açúcar. A pimenta, já antiga conhecida dos índios alegres. (Drummond, 2001, p.104)
– foi reforçada pelos negros, apreciadores da
malagueta – a pimenta e o açúcar se dissemina-
ram como produto tanto da gente simples como
da mais sofisticada. BIBLIOGRAFIA
A desafricanização esbarrou diante dos FREYRE, Gilberto. Açúcar – Em torno da Etnografia
purismos da europeização. Mediações foram ne- da História e da Sociologia do Doce no Nordeste
cessárias para que o resultado ocorresse sem con- Canavieiro do Brasil. Recife: Massangana, 1987.
flitos. Os excessos desfilaram entre a cozinha e a FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala – Forma-
sala, ou da cozinha para a sala. Do caruru ao doce, ção da Família patriarcal sob o regime de Economia
Patriarcal. 41ª edição. Rio de Janeiro: São Paulo,
o decálogo gastronômico galgou uma imensa ta-
2000.
bela de variações. Pimentas, em demasia; tempe-
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala – Forma-
ros, em estado quase natural; doces, a lembrar ção da Família Brasileira sob o regime de Economia
rapadura... Em resumo: um banquete escandalo- Patriarcal. 14ª edição. Recife: Imprensa Oficial.
samente agressivo, a carecer reparos e alguns FREYRE, Gilberto. A Presença do Açúcar na Formação
abrandamentos. Brasileira. Rio de Janeiro: Divulgação do Instituto de
A exuberância alimentar da culinária negra Açúcar e do Álcool, 1975.
suscitou naturalmente retoques adaptativos. Uma RIBEIRO, Darcy. Ensaios Insólitos. Porto Alegre:
certa parcimônia não lhe cairia mal, face aos L&PM Editores, 1979.
histrionismos de sabores. É interessante ressaltar DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Antologia
esse aspecto por envolver a emocionalidade de Poética. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2001.
um povo, o africano, e por testemunhar o caráter
explosivo de uma cultura que não receou doar
seus valores como os recebeu: sem polimento. Em
estado puro. Quase natureza primitiva. Os quitutes
se excederam em agudos sabores. Um roteiro, o
afro-brasileiro, com enorme vocação para os trans-
bordamentos. Gilberto Freyre adiciona: Não ne-
gamos que a influência africana sobre a alimenta-
ção do brasileiro necessitasse de restrições ou de
corretivo no seu exagero de adubos e de condi-
mentos. ( Freyre, 1966, p. 495)
Não há cozinha mais explícita que a africa-
na, como não há canção de ninar mais embaladora
que a da mesma africana. A negra dominou e foi
percuciente no passado de nossas tataravôs.
Polifônica, polissêmica, polivalente. A sua influ-

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 13


Para uma Antropologia da Alimentação Brasileira

Claudia Maria de Assis Rocha Lima


Graduada em Comunicação Social e pós-graduada em História do Brasil. Escritora e pesquisadora da cultura negra e
cultura popular. Folclorista, fotógrafa e artista plástica. Mestranda em Gestão de Políticas Públicas do Instituto de Forma-
ção e Desenvolvimento Profissional da Fundação Joaquim Nabuco.

Ao longo da historiografia da ali- Estudar a cultura na mesa brasilei-


mentação pelo mundo, a maneira de ra é ir bem mais além das tradições e
preparar os mesmos alimentos diferem, influências dos nativos indígenas, das
de um povo para outro, ou mesmo di- iguarias africanas e das suculências por-
ferenciam-se em seus próprios ambien- tuguesas. Pois, a cozinha é um reativo
tes, em função da variação tecnológica, de rara sensibilidade para avaliar a cul-
econômica e social. tura de uma população, é um conjunto
Na fixação do homem a terra, tra- de signos e símbolos que ao serem in-
ços formadores de um novo sistema de terpretados dão compreensão a histó-
vida foram identificados em 7000 a.C., ria civilizatória de um povo.
no Neolítico, na Era da Revolução Agrí- A alimentação como objeto de
cola, no continente africano. O inusita- conhecimento é, também, uma ferra-
do desenvolvimento deste complexo menta de educação, pois, as tradições,
cultural, advindo de um sistema de vida as representações, as linguagens, as idéi-
nômade, ou semi-sedentário de produ- as e teorias despertam curiosidades, ve-
zir alimentos e recolher o pescado, es- rificações e comunicações. Quanto mais
tabelecem elementos que justificam as o indivíduo percebe as diferenças, mais
moradias fixas próximas às margens de aumenta as possibilidades da busca do
rios e lagos. saber. A complexidade humana reúne
Plantas e animais disponíveis, e organiza conhecimentos dispersos, o
como material inicial para a ensino através das origens do cultivo,
domesticação, foram pressupostos na do preparo, do servir, do comer, dos
acumulação de alimentos. O grupo que tabus, dos hábitos e comportamentos,
pretendesse crescer, para tanto, basea- das superstições e costumes alimenta-
va-se na produção de alimentos. res, estabelece uma comunicação entre
Da Pré-História e das primeiras disciplinas e a compreensão da trajetó-
civilizações à época contemporânea, ria das sociedades humanas. A cultura
identidades em formas alimentares fo- é construída por fragmentos, separações
ram levadas pelo mundo, os alimen- e distinções que se reúnem e se articu-
tos e as bebidas do Antigo Egito, os pro- lam. A coisa e a causa se confundem.
dutos e recursos alimentares dos Cultura e culto procedem do mes-
Fenícios e Cartaginenses, os modelos mo verbo latino colo, focando o seu sig-
do mundo clássico, os banquetes ro- nificado no cultivo, nos deslocando as
manos, as refeições gregas, os bárba- matizes do passado pela ocupação do
ros e cristãos na aurora da cultura ali- chão, amarrando os signos que apon-
mentar européia, as cozinhas tam o ser humano preso a terra e, nela,
medievais, a alimentação oriental e abrindo covas que lhe fornecem o ali-
africana, a cozinha árabe e suas nor- mento e lhe abriga depois da morte.
mas islâmicas, os costumes alimenta- Cultus é sinal de que a sociedade
res judeus, entre outros tantos. que produziu o seu alimento já tem

14
memória. O culto faz do solo o local do sagrado. o desenvolvimento histórico, social e econômico
A cova que receberá o grão que fora transforma- do Brasil.
do em alimento poderá ser, também, a cova que Assim como ensinou ao português o cultivo
receberá os que partiram. Os sepultados, na ver- e o consumo da mandioca, o indígena fez o mes-
dade, são plantados para que renasçam. O solo mo com o milho. Alimento tradicional dos povos
no qual repousam os antepassados é o mesmo do americanos, o milho foi o único cereal encontra-
qual brota, a cada ano, o sustento alimentar do do no Brasil e levado para a Europa. A farinha de
corpo, inferindo aos espíritos dos antepassados a milho foi comida de escravos e de bandeirantes,
cooperação na germinação das plantas cultivadas. não tão consumida quanto à farinha de mandio-
É o ciclo do nascer e do morrer. Do plantar ca, foi difundida por todo o Brasil, através do pre-
e do renascer. Da luta pelos meios da sobrevi- paro do cuscuz, este, por sua vez, transformado
vência e do religar ao passado pelas mediações na cozinha brasileira, da sua origem árabe à base
e pelos laços que irão sustentar a identidade das de arroz, para a reelaboração com farinha de mi-
origens. lho e coco.
A Antropologia da alimentação no Brasil têm A tradição alimentar indígena, com as frutas
como referencial, as obras de Gilberto Freyre. No e os frutos brasileiros, combinados com as especi-
livro “Assucar: algumas receitas de doces e bolos arias, trazidas pelos portugueses, tais como: cra-
dos engenhos do Nordeste” publicado em 1939, vo, canela, gengibre, noz-moscada e erva-doce e,
tendo a segunda edição, aumentada e revisada, mais, o modo tradicional do fazer bolos, doces e
em 1967, com o subtítulo, “em torno da conservas, passados pela alquimia do preparo bra-
etnografia, da História e da Sociologia do doce no sileiro, como parte de um processo intercultural,
Nordeste canavieiro”, ressalta a influência subje- no qual, o milho, nativo do Brasil; o açúcar de
tiva do açúcar no sentido de adoçar maneiras, cana, planta originária da Ásia e o coco, de pro-
gestos e palavras. De forma definitiva, em Casa cedência indiana, resultaram em complexas re-
Grande & Senzala, Freyre, trata da alimentação ceitas, guardadas em segredo, como verdadeiras
como valor essencial para a análise sociológica, maçonarias.
até então, relegada às categorias secundárias da O português foi o principal europeu forma-
investigação científica. dor da nossa árvore genealógica. Mas, é necessá-
No Brasil os elementos trazidos nas bagagens, rio esclarecer que a formação étnica do nosso co-
na memória, intrínsecos nas heranças culturais, lonizador português foi uma decorrência de longos
vivo nos hábitos, fiéis nas tradições, aculturaram- anos de aculturação e assimilação. Desde os tem-
se, reformularam-se, reelaboram-se numa cozinha, pos mais primitivos do continente europeu, fize-
que em um primeiro momento mobiliza a base ram parte da sua história: os celtas e os íberos,
alimentar do índio, nativo brasileiro. tendo, também, em sua estrutura civilizatória, os
Traços marcantes das culturas dos nossos povos mediterrâneo-camitas, originários da África
antepassados indígenas, tais como gêneros alimen- do Norte. As invasões romanas fazem entrar em
tícios, práticas de cultivo e utensílios para fazer a território português povos diversos: sírios,
comida, para guardá-la, para pisar o milho ou o armenóides, itálicos. A influência judia fixou-se,
peixe, moquecar a carne, espremer as raízes, pe- impondo aspectos políticos e sociais na difusão
neirar as farinhas, utilizando os alguidares, as de sua cultura no território português.
urupemas, os tipitis, as cuias, as cabaças, os balaios, Dos romanos, recebeu a formação portu-
foram incorporados à cozinha colonial, e, guesa variada influência, que, de modo geral, tor-
freqüentemente encontrados nos dias de hoje nas nou-se básica, no levantamento do nível intelec-
casas do norte, do centro e do nordeste do Brasil. tual da população, na facilidade da comunicação
Das comidas preparadas pela mulher indí- através da construção de estradas, na edificação
gena brasileira, as principais eram as que faziam de cidades, no sentido municipalista, na organi-
com a massa ou a farinha de mandioca, sendo zação política, bem como o cristianismo, que se
adotada pelos colonos no lugar do pão de trigo, tornou um dos fundamentos de sua formação
tornando-se a base do regime alimentar de todo cultural. Às invasões germânicas, sucederam-se
colonizador. A mandioca como a mais brasileira as romanas, resultando na integração de novos
de todas as plantas, tem uma ligação direta com grupos humanos na população portuguesa, en-

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 15


tre eles, alanos, vândalos, godos, suevos, culiaridades comuns e valores diversos, contribu-
visigodos, com a predominância do elemento de indo para que a transmissão da cultura africana
procedência nórdica. Com os germanos, intro- não fosse apenas por um, dois ou três elementos,
duziu-se, em Portugal, a aristocracia, que veio mas, de inúmeras nações com culturas variadas e
chocar-se com a democracia romana. impregnadas pela influência européia e islâmica.
Invasões árabes levaram a Portugal novos Os ciclos do açúcar, do ouro e do café, for-
elementos étnicos e novos valores culturais, onde maram o caminho das iguarias africanas pelo Bra-
perduram até hoje, na arquitetura, com os sil. As sociedades secretas e os ritos religiosos, com
arabescos mouriscos; na agricultura, na introdu- suas comidas sagradas, resignificaram as oferendas
ção de técnicas de irrigação; nos minhos de água; dos orixás, em pratos do cotidiano da mesa do
nas indústrias; nos trabalhos em pele; no aperfei- brasileiro.
çoamento de tecidos de lã e linho; nas artes; na A palmeira, de onde se extrai o azeite-de-
língua; nos trajes. A entrada dos mouros, que eram dendê, o óleo de palma ou o azeite-de-cheiro,
escravos trazidos da Mauritânia, país que fica no plantada pela orla ocidental e oriental africana,
norte africano, entre o mundo árabe e a chamada foi trazida para o Brasil nas primeiras décadas do
África Negra, trouxeram características sutis à cul- século XVI, possibilitando o acesso a um dos ele-
tura portuguesa. Dos mouros, sabe-se que muitos mentos primordiais da culinária afro-brasileira.
dos libertos isolaram-se em grupos, formando as A cozinha africana firmou suas característi-
mourarias. Assim, o colonizador português, trou- cas e elaborou suas técnicas, depois do Brasil ter
xe permeando o seu processo histórico a sido povoado, na segunda metade do século XVI.
aculturação, que decorreu durante séculos, até a Foi o período em que as espécies nativas brasilei-
sua formação quinhentista. Neste contexto, sua ras foram transladadas ao continente africano, tais
historiografia justifica a facilidade em Instalar-se como, a mandioca, a macaxeira-aipim, o milho,
em novas terras. o amendoim, o caju, entre outros.
Ao fincar-se em definitivo no Brasil, o por- O vatapá representante oficial da cozinha
tuguês recriou o ambiente familiar, cercando-se afro-brasileira e, principalmente, da baiana, foi
dos recursos de curral, quintal e horta. Trouxe uma concepção nacional, na qual, o leite de coco,
vacas, touros, ovelhas, cabras, carneiros, porcos, junta-se à farinha de milho ou a farinha de man-
galinhas, gansos, pombos e o mais disputado dioca e ao azeite de dendê para compor com o
animal entre os indígenas, o cachorro. Trouxe peixe e os camarões um prato singular agregador
também as festas tradicionais e as devoções aos das culturas indo-íbero-afro. Na África o leite de
santos católicos. Outros verdes vestiam a nova coco não possui o prestígio que usufrui no Brasil,
terra: figo, romã, laranja, limão, lima, cidra, me- ao que se sabe, vatapá não é palavra de nenhum
lão e melancia. Pepino, coentro, alho, cebola, idioma banto. É apenas em Angola, que alguns
hortelã, manjericão, cenoura e bredos. Tornaram- pratos se aproximam do vatapá, o muambo de
se, habituais, também, o uso da manteiga, do galinha e o quitande de peixe. O vatapá foi de-
ovo, do azeite e do vinho. As conexões geográfi- senvolvido nas cozinhas baianas, tomando o rumo
cas realizadas pelos portugueses possibilitaram o das mesas brasileiras e continuando a evoluir e a
desenvolvimento da diversificação na produção complicar-se em sua química, pela adição e subs-
de alimentos no Brasil. tituição dos seus componentes pelas diversas re-
Compondo a tríade formadora do nosso giões brasileiras.
tronco cultural, sobre o qual a sociedade brasilei- No imenso território que é o Brasil, seja na
ra foi modelada, o negro africano, ainda em sua zona rural ou na zona urbana, nossos ancestrais
terra natal, sofreu influências de diversas culturas. africanos, deixaram enraizadas as suas culturas,
O processo de expansão ultramarina, faz com que miscigenadas pela confluência de gostos, aromas
o português chegue ao continente africano no sé- e sabores, além do folclore, da arte, da música,
culo XV, exercendo junto com outros países vizi- da dança e de outras influências encontradas na
nhos, um amalgamento de culturas. Essas influên- cultura brasileira.
cias acrescida da diversidade étnica africana, teve A cozinha nossa nacional com a presença
maior peso na formação do povo brasileiro, o marcante da cultura indígena, negra e portuguesa
patrimônio cultural do africano negro, trouxe pe- desperta o deleite, no prazer da mistura.

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 16


As sabedorias do plantar, a prática do co-
lher, as técnicas de conservar, a arte de preparar,
o ritual do servir, o prazer do comer e degustar,
revelam a marcha da formação do povo brasilei-
ro. O desbravamento do nosso país pode ser lido
através do multiculturalismo alimentar. Grupos
étnicos diversos aqui, fixaram-se, formando um
ladrilho cultural, reelaborados em cada região, nas
combinações das sobrevivências dos hábitos e cos-
tumes, instaurando-se como indicadores das nos-
sas raízes e da nossa identidade.

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 17


Doutor Gilberto Freyre e o Reconhecimento da Culinária
como Fenômeno Cultural

Eliane Asfora

A culinária sempre teve um papel Durante muito tempo, o açúcar


muito importante na formação cultural foi a principal fonte de riqueza de nos-
dos povos. Não se pode negar que a sa região. Mas já houve épocas em que,
importância da culinária vai muito mais curiosamente, quando ainda era tido
além do que um simples interesse de como uma raridade, chegou a fazer
rodas femininas. Isso seria subestimá-la. parte dos bens que a noiva levava
Sabemos que a alimentação de um povo como dote.
reflete o seu próprio modo de vida. Não O açúcar, porém, não gerou ape-
se pode, portanto, desprezar a culinária nas lucros. Inspirou também diversos
como importante fator cultural. artistas. Assim é que vemos muitos es-
Entretanto, nem sempre houve critores, à semelhança do Dr. Gilberto,
esse reconhecimento. Coube ao Dr. retratando a realidade dos engenhos,
Gilberto Freyre, com sua forte veia também inúmeros pintores assim o fi-
regionalista e progressista, chamar a zeram. E, como não poderia deixar de
atenção, em 1926, no seu “Manifesto ser, a culinária. Afinal, como dizia Dr.
Regionalista”, para a importância da Gilberto, o nordestino trata-se de um
culinária na formação da nacionalida- povo que, “depois de salgar o estôma-
de brasileira, o que até então ninguém go”, não dispensa o “adoçar da boca”.
tinha tido coragem de fazer. O açúcar, doce como todos que-
Mais adiante, em 1939, em sua rem que a vida seja, já era usado na
obra “Assucar – Algumas receitas de bo- culinária pernambucana desde a épo-
los e doces do NE do Brasil”, ajudou a ca das casas-grandes, despertando a
quebrar ainda mais essa resistência em gula das pessoas. Os holandeses, por
admitir a culinária como fenômeno cul- sua vez, também eram grandes apre-
tural, pois, pela primeira vez, alguém ciadores dos doces e, podemos ressal-
ousava admitir que as receitas culinárias tar, das frutas cristalizadas, hoje utili-
propulsavam muito mais que simples zadas no tradicional bolo de noiva.
conversas de mulheres. Nessa obra, em Chega a ser engraçado pensarmos que
que ele escreve sobre diversas receitas o Conde Maurício de Nassau, ao
culinárias seculares recolhidas junto a retornar à Holanda, levou em suas
famílias e engenhos da região, Dr. Gil- bagagens, entre inúmeras outras coi-
berto chega a escandalizar alguns con- sas, nada menos que 103 barriletes de
servadores que, indignados por ele per- frutas confeitadas...
der tempo com o que consideravam Hoje, sabemos que o famoso bolo
simples “fricote feminino”, passaram a de noiva virou uma tradição em PE. E,
apelidá-lo, pejorativamente, com vários com muito orgulho, podemos dizer que
nomes atribuídos a quitutes de açúcar. Dona Leonie Asfora teve um papel de-
Falando em açúcar, é importante cisivo para que isto se consolidasse.
ressaltar a sua importância na culinária Com a criatividade, que é característi-
nordestina. ca do povo pernambucano, esta

18
“pernambucana de coração” transformou o açú-
car em arte e ajudou a divulgar, através do seu
trabalho, o nosso estado, não só no restante do
país, mas, inclusive, fora dele, afinal muitas foram
as encomendas recebidas por ela ( e que continu-
am até hoje através de suas filhas) originadas de
Brasília, do sudeste do Brasil, passando pelos EUA,
Europa e até Japão. Com isso, ela não angariava
prestígio apenas para os seus bolos, mas também
para o nosso querido Leão do Norte.
E reforçando a tese do Dr. Gilberto de que a
culinária se revela como importante fenômeno
cultural, diferenciador dos povos, constatamos que
o bolo de noiva, feito à base das frutas cristaliza-
das que tanto atraíram os holandeses, e confeita-
do tal como Dona Leonie Asfora o consagrou,
mostra-se um produto, genuinamente, regional,
especialmente pernambucano, tanto que, se for-
mos em outras regiões do país, percebemos que
ele não é concebido nesses moldes e nos depara-
remos com bolos brancos, de chocolate, de no-
zes etc., a compor as mesas das noivas.
Dr. Gilberto foi testemunha do trabalho de-
senvolvido por Leonie Asfora. Acompanhou a tra-
jetória dessa piauiense, filha de imigrantes árabes,
sempre participando a arte dela nas festas famili-
ares e diversos eventos sociais aos quais se fazia
presente, nunca dispensando o chamado “bolo
de noiva”. Foi assim no casamento de suas filhas,
no aniversário de seus netos, nas festividades da
Fundação Gilberto Freyre etc.
Podemos afirmar, sem medo de errar, que,
pelas mãos de Dona Leonie Asfora, provou-se que
o açúcar, muito mais que insumo para doces,
pode-se revelar verdadeiro instrumento de arte.
E, pela coragem e ousadia de Dr. Gilberto, que a
culinária de nossa região, muito mais que saciar a
fome insaciável dos contumazes devoradores de
doces, revela-se, não só um diferenciador cultu-
ral dos povos, mas, antes, fonte de orgulho para
todos nós, família pernambucana: orgulho de ser
nordestino, orgulho de ser pernambucano, orgu-
lho de ter um Gilberto Freyre que nos ensinasse a
ter orgulho de nós mesmos...

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 19


Nordeste: ecologia, alimentação e cultura

Palavras de abertura da mesa-redonda, proferidas pelo professor Manoel Correia de Andrade,


coordenador da mesa, a que se seguiriam as intervenções dos expositores Maria Thereza Lemos de
Arruda Camargo, da USP, Rogéria Campos de Almeida Dutra, da UFMG, e Petrucio Nazareno, do
Restaurante Goya em Olinda.

O grande interesse neste seminá- delas logo tornadas indispensáveis a ali-


rio é analisar o relacionamento entre ali- mentação como os cajus e o sapoti. Por
mentação, o meio ambiente e a cultura. isto tratado de introduzir no novo pais,
Assim os homens organizam o seu siste- animais domésticos da Europa, da Áfri-
ma alimentar com uma certa dependên- ca e da Índia, para irem substituindo os
cia do meio natural, da disponibilidade animais silvestres, muito abundantes e
de acesso aos produtos que vai utilizar facilmente caçados na época, como
na alimentação e ao preparar estes ali- antas, veados, macacos, tatus, pacas,
mentos eles vão naturalmente sofrer uma cotias e aves de médio porte.
forte influencia cultural. Assim no Nor- Os vegetais europeus tiveram
deste os habitantes vieram de origens di- maior dificuldade de transplante face
ferentes, os portugueses e judeus da Eu- as dificuldades climáticas, mas os eu-
ropa, os negros da África e os indígenas ropeus procuraram se adaptar aos pro-
já se encontravam na terra. dutos da terra e a introduzir espécies
Ao se encontrarem esses três gru- africanas, das Índias e da Oceania,
pos que se hostilizavam na luta pelo como o coqueiro, o fruta-pão, a man-
domínio da terra e pela supremacia do gueira, a jaqueira, etc. que se adapta-
poder, os europeus levaram a vantagem ram de tal forma ao nosso pais que ate
da maior dominação cultural, parecem nativas. Entre estas culturas
tecnológica e econômica e tentaram trazidas ao Brasil, destacou-se pela sua
impor seus hábitos e costumes aos in- maior importância a cana-de-açúcar
dígenas, considerados por eles como que alimentaria inicialmente a nossa
bárbaros e pelos negros escravizados e primeira atividade agro-industrial. De-
trazidos da África. Mas estes europeus moraria muito a ser introduzida no pais
logo viram que se encontravam em uma a cultura da vinha e a produção do vi-
terra diferente da sua, por suas condi- nho que era alimento básico dos colo-
ções naturais e que os produtos de que nos europeus, fazendo-os importar e
dispunham na área de origem não se consumir muitas vezes já deteriorados
encontravam no país, na colônia que pelo efeito do tempo e do clima. O
procuraram construir. mesmo aconteceria durante o domí-
Aqui eles não dispunham dos ali- nio holandês com os queijos importa-
mentos típicos da Europa, como o trigo, dos que eram em geral consumidos
o centeio, as frutas ditas de clima tem- pelos colonos já bichados, em estado
perado, os méis silvestres, os peixes e as de putrefação.
carnes sobretudo bovina e ovina. Tive- Mas estes colonos que logo se
ram assim que ir se adaptando a alimen- miscigenaram tanto sexualmente, como
tação com farinha de mandioca, que culturalmente com negros e índios sou-
chamavam desdenhosamente de farinha beram desenvolver técnicas culinárias
de pau, com o milho, com os tubércu- e associando produtos de origem diver-
los, e com as frutas tropicais, algumas sas, dar uma cor local a alimentação

20
brasileira. Em Pernambuco deve-se destacar-se a
importância do açúcar, que desenvolveu grandes
variedades de doçarias, que deliciavam as classes
melhor aquinhoadas da terra. Assim os
pernambucanos tornavam-se cedo gordos e vo-
luptuosos com o excesso de doces que comiam e
as facilidades de contatos sexuais com negras e
índias. Gilberto Freyre que estudou em profundi-
dade a formação da sociedade patriarcal brasilei-
ra chama a atenção para este fato em senhores de
engenho e autoridades do reino se cercavam de
filhos os mais diversos, mestiços de negros e índi-
as, ao lado dos brancos e seus solares patriarcais.
Na Bahia, embora seja forte a influencia ne-
gra na culinária com o uso da pimenta malagueta,
do azeite de dendê, do cravo e de outros produ-
tos na formação dos chamados pratos baianos,
considerados por muitos como africanos. Daí a
importante influencia e prestigio dentro e fora da
Bahia dos seus acarajés, vatapás e carurus.
E na região semi-árida a importância da fari-
nha de milho e a influencia árabe chegando ate la
com os seus cuscuz e com o uso freqüente do
leite. Conciliação muito feliz do milho com o lei-
te, segundo o geógrafo Josué de Castro, porque
um corrige as deficiências alimentícias do outro.
Mais recentemente se faz sentir a influencia
em expansão da cozinha italiana com o uso in-
tenso das massas e gaúcha, com o uso maximizado
da carne na alimentação nordestina. Finalizando,
aconselhando que leiam sobre o assunto o livro
Açúcar de Gilberto Freyre, passo a palavra aos
expositores que como especialistas melhor
aprofundarão o tema.

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 21


Estudo Etnobotânico da Mandioca (Manihot esculenta
Crantz - Euphorbiaceae) na Diáspora Africana

Maria Thereza Lemos de Arruda Camargo


Centro de Estudos da Religião Duglas Teixeira Monteiro, USP/PUC.

INTRODUÇÃO MATERIAL E MÉTODO

As relações interculturais que se Dado o caráter interdisciplinar


estabeleceram com a diáspora africana que norteia os estudos de Etnobotânica,
depois da chegada das primeiras levas vários autores que trataram da mandi-
de escravos africanos ao Brasil no sécu- oca nas diferentes áreas de suas especi-
lo XVI, são marcantes no tocante às alizações foram consultados, de forma
plantas úteis, tanto medicinais como ali- a permitir um melhor entendimento
mentícias. quanto ao uso da mandioca e seus de-
Os estudos de tais plantas, sob a rivados na alimentação do brasileiro e
ótica da Etnobotânica, permitirão um dos povos africanos das regiões domi-
melhor conhecimento quanto as rela- nadas pelos portugueses, a partir do
ções homem/planta em suas diferen- século XVI.
tes dimensões, visando resgatar dos Torna-se importante destacar as
grupos humanos o saber quanto aos obras deixadas por cronista e cientis-
papéis que as plantas desempenham tas que desde o século XVI até nossos
nos diferentes ambientes culturais e os dias vêm documentando os usos e
significados que os grupos sociais lhes costumes alimentares no Brasil, des-
atribuem. tacando o papel da mandioca, como:
Considerando a dispersão dos es- Pero de Magalhães Gandavo; Fernão
cravos africanos, desde épocas pretéri- Cardim; Gabriel Soares de Sousa;
tas, dentro da própria África e para além Augusto Saint Hilaire, Spix e Martius
mar, muitas espécies botânicas seguiram e, mais modernamente, Giberto
os mesmos caminhos, pois, ao mesmo Freyre, Câmara Cascudo, A. J.
tempo em que se traficava escravos, as Sampaio, entre muitos e muitos ou-
plantas de interesse comercial eram le- tros, cujas obras e seus autores, arro-
vadas de suas regiões de origem, para lados na bibliografia apresentada no
novas terras, para aí serem cultivadas final, foram de suma importância para
com o trabalho escravo. o entendimento dos fatos relaciona-
O processo de dispersão das plan- dos à mandioca na alimentação dos
tas, contando sempre com o trabalho povos brasileiro e africano.
escravo, permitiu que este não só tra- Muitos dados sobre os hábitos ali-
balhasse a terra para seu cultivo, como mentares, em que a mandioca vem
também, passasse a consumi-las como comparecendo com bastante assiduida-
alimento e como remédio. de na culinária do brasileiro e de povos
A mandioca, sob a ótica da africanos em tempos passados e con-
diáspora africana, tendo em vista seu temporâneos, foram coletados na
papel na alimentação dos povos africa- Internet, cujos sites estão identificados
nos receptores e dos brasileiros é o ob- em todas as citações, cujas informações
jeto desta comunicação. foram obtidas por esse meio.

22
RESULTADOS A CULTURA DA MANDIOCA

Manihot esculenta Crantz - Euphorbiaceae, A primeira descrição da cultura da mandio-


Origem: América do Sul (Brasil) (Joly &Leitão Fi- ca no Brasil foi feita pelo cronista Magalhães
lho, 1979:74) Gandavo em sua História da província de Santa
Spix e Martius no século19, por não terem Cruz, de 1573.
encontrado a mandioca em estado silvestre, che- No século 16, já se falava de diferentes cas-
garam a admitir sua origem africana, com base na tas de mandioca:
lenda de Sumé ou São Tomé divulgada por 1. com hastes avermelhadas;
Anchieta, na qual dizia que o Apóstolo São Tomé 2. com pequenos ramos que se plantam em lu-
a teria trazido consigo para o Brasil (Pereira, gares sujeitos a tempos tormentosos para que
1980:373). Dizia Anchieta que em São Vicente não quebrem ao vento;
estavam as pegadas de çumé que devia ser de São 3. aquelas que se deixam criar, dá raízes de 5 a 6
Tomé.(Rodrigues, s/d:21). Também, disse Manuel palmos e muito grossas. A folha cozida o índio
da Nóbrega em carta: é tradição antiga que veio o come com pimenta, em tempo de escassez de
bem-aventurado apóstolo São Tomé a esta Bahia alimentos. (Sousa, 1974:88).
e lhes deu a mandioca e a banana São Tomé
(Cascudo, 1980: 723). Conforme observado por Gabriel Soares de
Nomes vulgares: aipim, macaxeira, mandi- Sousa (1974) no século 16, os indígenas planta-
oca, mandioca-brava, mandioca-mansa, maniva, vam por estaca, pedaços de mais ou menos um
maniviera, pão-de-pobre, uaipi. Em países de lín- palmo, retirados da rama, chamado-os manaiba
gua inglesa: cassava. Padre Anchieta em 1554 ou maniva, os quais eram enterrados até a meta-
chamou a mandioca de pão dos trópicos e outros de, em número de três a quatro em cada cova.
diziam pão caboclo e pão nosso-de-cada-dia. Cova não era entendida como buraco, mas sim
Princípios ativos: As raízes de mandioca re- como montículos de terra cavada, bem afofada.
presentam importante fonte de energia de onde Esse plantio se fazia em forma ordenada, em filei-
se extrai amido e as folhas são ricas em vitaminas ras, com seis palmos distante uma cova da outra.
A e C, ferro e cálcio, além de serem fonte de pro- Diziam que esta técnica fora ensinada por São
teína. www.abc.com.py:2417/suple/rural/anuários/ Tomé, aos índios.
anuario2001/jun018.html [3/08/2003] Lendo os cronistas que andaram pelo Brasil
A planta toda apresenta o glicosídio por diferentes épocas e regiões, percebe-se que
cianogenético, o princípio tóxico. as técnicas do plantio da mandioca por eles des-
São muitas as variedades de mandioca exis- critas, sofriam pequenas variações, levando-nos a
tentes no Brasil, sendo que as mesmas podem ser crer em uma quase uniformidade em tais costu-
divididas em dois grupos: a mandioca brava, pró- mes de lidar com a terra e manejo com as mudas.
pria para a industrialização e imprópria para ali- A mandioca, depois de conhecida dos por-
mentação, devido ao alto teor de glicosídio tugueses, passou a ser considerada por Portugal
cianogenético, com cerca de 0,02% a 0,03%; um elemento de fundamental importância para o
mandioca mansa com baixo teor do princípio tó- desenvolvimento de suas atividades relacionadas
xico (cerca de 0,005% (FIBGE, 1980). não só às conquistas de novas terras como ao de-
De fácil produção, a mandioca é cultivada senvolvimento do tráfico negreiro. Dessa forma,
em todos os estados brasileiros. Oriunda de re- tal importância recaía no valor nutricional desses
gião tropical, encontra condições favoráveis em tubérculos que permitiam alimentar não só os
todos os climas tropicais e subtropicais. portugueses que iam se fixando nos pontos da
www.obatateiro.hpg.ig.com.br/mandioca.htm [3/ costa africana onde eram instaladas feitorias, como
08/2003] também servia de alimentação dos escravos, tan-
África, Ásia e América representam quase a to- to nos navios com nos diferentes pontos do Brasil,
talidade da produção mundial de mandioca, sendo a onde eram negociados e levados por seus com-
Nigéria o principal produtor do mundo e o Brasil o pradores para diferentes áreas do país.
segundo em produção. www.agrocadenas.gov.co/ O indígena tinha por hábito deixar o solo
inteligencia/int_yuca.htm [3/08/2003] em repouso por um determinado tempo entre os

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 23


plantios para que o solo se recuperasse e esse compressão e expressão. A massa assim obtida (li-
hábito tem sua lógica, pois La mandioca absorve vre do sumo que se aproveita para se preparar o
del suelo más nutrientes que la mayoria de los tucupi, prato típico do norte do país) passará por
cultivos tropicales, y tiene um índice de extración uma peneira, sendo recolhida num cofo (cesto de
K/N (nitrogênio, fósforo e potássio) mui elevado. taguara de boca estreita) e dali levada ao tacho
Aún cuando la información es tan variable en do forno alimentado por fogo vivo. Movimentan-
cuando a la cantidad de nutrientes que absorve, do um rodo e a metade de uma cuia para espa-
puede expresarse en términos medios que para lhar a massa e atirá-la de quando em quando para
cada tonelada de raíces, se necessitan aproxima- evitar que se aglutine em bolões e, ao mesmo tem-
damente 2,4Kg. de nitrógeno, 0,46Kg. de fóforo y po, para arejar, sendo este o mais importante tra-
3,5Kg. de potásio (Cenoz &Lopez & Burgos, 2000) balho das mulheres indígenas nas operações da
farinhada a uy-munhangaua. A casa-de-farinha
produz a farinha-d’água, surui, tapioca e carimã
PRODUTOS INDÍGENAS DERIVADOS D A (Pereira, 1974:163,169)
MANDIOCA Em 1565 os portugueses já se utilizavam da
farinha-de-pau, como suprimento alimentar leva-
Segundo Maestri Filho (1978:85), os primei- da nos navios, provavelmente antes da introdu-
ros portugueses que chegaram ao Brasil já pude- ção da mandioca na África. Farinha-de-pau era a
ram constatar a gama de produtos derivados da designação que os portugueses davam à farinha-
mandioca que o indígena produzia, tais como: de-mandioca. Em 1700 a mandioca era plantada
Mbeu - espécie de bolo de farinha de mandioca na Bahia a fim de se preparar a farinha necessária
cozida sobre pedra quente, o que hoje se co- para a alimentação nos navios durante as viagens
nhece por beiju; (Bueno, 1998: 265,278,290)
Mambeca - ancestral do atual pirão, feita com ras- A farinha-de-guerra como, também, era cha-
pas de mandioca torrada; mada, fazia parte dos suprimentos levados pelos
Poqueca - espécie de bola feita da raspa da man- bandeirantes quando de suas saídas para o ser-
dioca condimentada que é cozida envolta de tão. Rocha Pita, que relatou a Guerra dos
folha de Marantaceae; Emboabas por volta de 1725, citado por (Taunay,
Curuba - raspa de mandioca acrescida de casta- 1954:83) esclarece que era assim chamada por
nha-do-pará (Berthollettia exelsa) ou sapucaia ser a munição de boca dos soldados. Preparavam
cozido em fogo brando; os pães que eram cozidos para torná-los compac-
Cica - mingau condimentado preparado à base tos, para depois envolvê-los em folhas, a fim de
de fécula fina; conservá-los até um ano e sem perder o sabor.
Puba - farinha obtida da raiz macerada e fermenta- Os sertanistas, nos locais de paradas mais
da em água, lavada, espremida e secas ao sol. longas, ou seja, nos acampamentos, onde iam se
formando os arraiais, que criavam pelo caminho
Os indígenas também utilizavam-se das fo- durante as expedições, faziam roças de milho, que
lhas para preparar a maniçoba cuja, técnica de era de produção rápida e roças de mandioca, cuja
preparação exigia vários dias. produção demorava mais tempo, servindo de ali-
No período do Brasil colonial os fornos de mento certo quando do retorno do sertão, onde,
preparar a farinha de mandioca eram feitos de ar- ainda, deixavam novas roças plantadas para ga-
gila e, primitivamente, só utilizavam a superfície rantir seu sustento em novas jornadas.
de larga pedra de quartzo, montada num tripé. A mais importante bandeira, em 1674, foi a
Para o preparo da farinha de mandioca, pri- de Fernão Dias Pais, que ganhou o título de Go-
meiramente se colocavam as raízes de molho em vernador da esmeraldas, que morreu junto ao Rio
áreas alagadas ou em uma depressão à margem das Velhas, no sertão de Minas, pensando ter des-
dos rios e de igarapés, visando tornar mais fácil a coberto as esmeraldas, que na realidade eram
retirada das cascas. Em seguida ralam os tubércu- turmalinas. www.anzwers.org/trade/taxibrasil/
los da planta, em ralos de diversas formas e tama- taxicambandeirantes.html [15/7/2003]
nhos. Em seguida a massa tem que passar pelo Os paulistas dos séculos 16 e 17 respiravam
tipiti (tipi = espremer + ti=sumo, líquido) para a desde sua infância, uma atmosfera saturada de

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 24


sertanismo. Vindos de um mar desconhecido, con- das mãos na presença dos demais. A farinha de
vivendo com os longos dias repletos de imprevis- mandioca com seu efeito aglutinador fazia parte
tos, mistérios e riscos de toda sorte, o sertanista se do preparo da iguaria que se levava a boca. Pega-
comparava aos marinheiros. Diante do oceano, va-se, por exemplo, um pedaço de carne, já pre-
como diante do sertão, é o mesmo assombro. (...) parada em molho, colocava-se na palma da mão,
Homem do mar e homem da floresta têm o mes- acrescentava-se verdura e farinha, formando um
mo temperamento, são igualmente simples e bru- bolo que era levado à boca.
tais, ingênuos e intrépidos. É alguém que vai reso- A influência indígena na alimentação dos
lutamente para o desconhecido. Acompanhavam paulistas é marcante, visto que os índios escravi-
as bandeiras, tanto meninos de pouca idade como zados prestavam serviços aos habitantes do pla-
velhos. Noventa anos, tinha Manuel Preto e ses- nalto. Somente no início dos seiscentos é que co-
senta e seis Fernão Dias Paes Leme ao iniciar a meçam a serem arrolados nos inventários os
jornada das esmeraldas. tapanhunos, nome dado aos africanos, que em
A Capitania de São Paulo era pobre. Até as língua geral tapuyna significa gente preta. A escas-
vizinhanças do século 18 era enorme a escassez sez de africanos devia-se aos altos preços. Foi em
de dinheiro amoedado. Os colonos utilizavam-se 1607 que aparece pela primeira vez um negro de
dos pagamentos em espécies. Até mesmo a Guiné, valendo quarenta mil reais, uma soma
municipalidade recorria a essa forma para pagar exorbitante para a época. Quando era um
quem ali trabalhasse. A farinha-de-guerra entre tapanhuno ladino, este, então, valia 250 mil. Só
outras espécies, tinha valor de dinheiro, confor- no século 18 que aparecem nos inventários, afri-
me relata Alcântara Machado (1978:133-5). canos de nação benguela e mina (Machado,
Na farinha de mandioca fixou-se a base do 1978:173).
nosso sistema alimentar, dizia Gilberto Freyre Percebe-se a influência indígena, principal-
(1987:32) em Casa-Grande & Senzala. Porém, no mente, no uso da farinha de mandioca na mesa
planalto paulista, comenta o autor, que no pri- do paulistas e paulistanos, onde a farinheira, ain-
meiro século da colonização esboçava-se uma da, tem seu lugar reservado, principalmente em
policultura com destaque ao cultivo do trigo. casas do interior do Estado.
Essa policultura era constituída, na verdade, Da farinha de mandioca surgiram as farofas
de alguns gêneros que já era hábito indígena cul- preparadas de diferentes maneiras.
tivar como alguns tubérculos, o milho, o trigo e o Essa influência indígena atingiu os espaços
algodão com o qual produziam tecidos, além das religiosos afro-brasileiros em todo o País, onde as
frutas da terra e de outras introduzidas pelos por- farofas têm seu lugar, também reservado nas cozi-
tugueses. nhas dos orixás, além de outros pratos à base de
Essa policultura, de certa forma, garantia o mandioca, conforme pesquisa realizada por Lody
sustento dos paulistas, que utilizavam esses pro- (1979:51). Cita-se, ainda, do agralá, tipo de faro-
dutos não só na alimentação, como, também nas fa, comida feita com farinha seca, dendê e sal,
transações comerciais e no pagamento de dívidas; preparado na Casa das Minas, em São Luís do
porém, era tudo muito pouco que se produzia e Maranhão, segundo Ferretti (1986:283,287).
o povo era pobre. A distância do litoral era um Em resumo, no século 17 os paulistas eram
dos fatores que dificultavam o progresso no pla- cruéis caçadores de índios, no século 18, caçado-
nalto e, na verdade, o dinheiro amoedado somen- res de ouro e no século 19 agricultores e criado-
te aparece com relativa abundância depois de res de gado.
aberto o ciclo da mineração. Assim, com o término da escravatura indí-
Em São Paulo setecentista, a base da alimen- gena, houve a maciça substituição pelos escravos
tação do paulistano constituía-se de canjica, angu africanos nas fazendas de café entre Rio de Janei-
de fubá e de farinha de mandioca, ensinada pe- ro e São Paulo.
los indígenas. Esses angus e a canjica dispensa- Dessa forma a influência indígena na alimen-
vam o sal, o qual era escasso naquela época (Ma- tação em São Paulo até início do século 18 era
chado, 1978:69), assim como era escasso o talher decisiva.
e o hábito de comer com as mãos era o mais co- Importante foi a obra escrita em versos lati-
mum, fato que exigia dos comensais a lavagem nos, publicada em 1781 sob o título De rusticis

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 25


Brasiliae rebus , descreviam as riquezas do Brasil como mantimento para os tripulantes dos navios
do século XVIII, dentre elas o cultivo da mandio- portugueses.
ca. De autoria dos padres da Companhia de Je- No início do século 18 Sergipe exportava
sus, José Rodrigues de Melo e Prudêncio do Amaral farinha de mandioca para outras Capitanis tais
(1997:113-9), esta, em tradução vernácula em como Bahia e Pernambuco, pois estas Capitanias
prosa recebeu o título: Temas rurais do Brasil. produziam só cana-de-açúcar e fumo.
Tais versos, deixando transparecer o pensa- www.sergipecultura.com.br/modulo13.htm [28/
mento etnocêntrico dos portugueses, descreve a 07/2003]
maneira como se comia a farinha de mandioca. É No entanto, Pernambuco nos primórdios dos
sórdido e rústico pegar a farinha com a mão e a tempos produzia mandioca em quase toda sua
lançar à boca, como faziam os índios e os etíopes extensão como mostram achados arqueológicos.
e a gentalha restante da cidade e o refugo ínfimo Embora a região semi-árida do Pernam-
do povo, Muito embora também eles possuam sua buco não apresentasse compatibilidade
destreza, sua graça. Com efeito, tomam a farinha fisiográfica para a fixação de grupos de tradição
com três dedos e a atiram comprimida nas bocas: tupi-guarani, por serem tradicionalmente ocu-
nem tocam os lábios, e nenhuma migalha se per- pantes da floresta tropical, a ocupação dessa
de da farinha lançada, embora a mão, impetuosa- região por esses grupos indígenas foi de grande
mente movida e com impulso, arremesse-a densidade demográfica, como demonstrou o
velocíssima de longe. refugo arqueológico das aldeias encontradas na
Em outras regiões do País, nos primeiros sé- região semi-árida, semelhante às aldeias tupi-
culos, a pobreza e a escassez de alimentos tam- guarani da mata úmida do Pernambuco. Assim,
bém se faziam notar. a cultura da mandioca devia ocorrer, conforme
Gilberto Freyre (1967:149) em sua obra O constatado pelas cerâmicas compatíveis com a
Nordeste onde destaca a influência da cultura utilização da mandioca, encontradas não só no
da cana-de-açúcar na região do nordeste brasi- mangue, como na restinga, na mata e, também,
leiro onde incrementou-se essa cultura. Sobre a no semi-árido. www.magmarqueologia.pro.br/
monocultura ele diz: causa de tantas fomes numa tupiguarani.htm [28/07/2003]
região agrária onde chegou a se assistir ao absur-
do das senhoras trocarem jóias de ouro por pu-
nhados de farinha.(...) No Nordeste da cana-de- A MANDIOCA NA ÁFRICA
açúcar (...) até farinha de mandioca falta com
freqüência ao trabalhador de engenho, em cer- Na África, a mandioca fora introduzida pe-
tas zonas da região mais atingidas pelos efeitos los portugueses em 1558. Levada para a Bacia do
da monocultura. E, aqui, diz Gilberto Freyre, Congo, rapidamente se espalhou pelos territórios
como noutras áreas, o trabalhador livre vem sen- vizinhos. Dada às qualidades específicas deste
do mais desprestigiado em suas condições de produto, incrementou-se o comércio escravagista
saúde do que outrora o trabalhador escravo, na (Ferrão, 1992:102)
maioria dos engenhos patriarcais, sua alimenta- Há quem diga, segundo o (Ficalho, 1947)
ção já era superior à dos brancos e pardos po- que a mandioca passou primeiro por São Tomé.
bres, sem assistência patriarcal. Admite-se que a primeira referência à pre-
Com a falta de víveres na região onde só se sença da mandioca em terras angolanas estão na
plantava cana e um pouco de mandioca, importa- carta de Paulo Dias de Novaes que, tendo chega-
va-se de Portugal e das Canárias, grande quantida- do às costas angolanas em 1575, diz: (...) A gente
de de alimentos, os quais raramente deixava de que mora na barra não se mantem de outra coisa
chegar deteriorado, como diz, ainda Gilberto Freyre senão de raizes de tabuas de Portugal, o que nun-
(1971:62), em o Novo mundo dos trópicos. ca nestas partes achei cousa que fosse semelhante
a alguma de Portugal como ‘hé esta; comemna
Em Sergipe no século 16, os colonos apren- crua e asada e seca ao sol, depois de pisada a
deram com os índios Tupinambá a cultivar a man- fazem em farinha (...) (Maestri Filho, 1978)
dioca que era exportada para a África a fim de Os portugueses aprenderam com os indíge-
ser trocada por escravos, servindo, também, nas a técnica de plantio da mandioca e, também,

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 26


a técnica para o preparo da farinha, levando tais ioruba com a cozinha baiana. Segundo ele, foram
conhecimentos para a África. recíprocas as influências. Cita-se o caso do caruru
Dentre todos os gêneros do complexo ame- de origem indígena, preparado com bredo, planta
ricano, foi a mandioca o produto agrícola que mais do gênero Amaranthus e que, levado para a África
influenciou e transformou a fisionomia da agricul- incorporou o quiabo, planta africana, tendo, en-
tura da África central. Das costas angolanas vai tão, o caruru retornado modificado, para o Brasil
ela penetrar cada vez mais profundamente o co- (Camargo, 1990:82). Cascudo ((1964), explica
ração da África central, desempenhando assim um detalhadamente, as alterações sofrida pelo caruru.
importante papel na história agrária destas socie- Cita-se o caso do alubó, que, segundo Ma-
dades. Nestes processo de interiorização vão jo- nuel Querino (1988:141), está arrolado entre os
gar um rol importante os grandes eixos do comér- alimentos puramente africanos, preparado com a
cio escravagista e fundamentalmente, as qualidades raiz seca da mandioca, reduzida a pó e acrescida
específicas deste produto (Maestri Filho, 1978:85). de água fervendo, formando um pirão.
Os altos índices de assimilação negra para Porém, deve-se admitir que os índios já pre-
os produtos sul-americanos levados pelos portu- paravam a mambeca , o ancestral do pirão.
gueses para as áreas de sua influência coloniza- Numa visão crítica relativa ao posiciona-
dora, não denunciam carência alimentar nos po- mento de Manuel Querino, é importante lembrar
vos receptores. Mesmo nas terras fieis ao inhame, que, sem dúvida nenhuma, o pirão é de origem
a mandioca impôs presença. indígena, pois os tupi escaldavam a farinha no
No Benin, com o intuito de refletir sobre as caldo de peixe cozido até se transformar numa
forças que a diáspora acarreta no desenvolvimen- massa gelatinosa. www.sergipecultura.com.br/
to da África, em abril deste ano, um grupo de in- modulo13.htm [28/07/2003]
telectuais se reuniu para debater temas como: a O termo pirão vem de pira (peixe), do Tupi
tipologia da diáspora, contribuição da diáspora (Barbosa, 1967:124). Pode-se admitir que o pre-
científica, econômica e financeira, desportiva, paro do pirão de farinha de mandioca já podia
cultural e religiosa, bem como a adaptação das ser de uso na África, pois esta raiz já era cultivada
tecnologias exógenas. na Angola no período da vinda dos primeiros afri-
Com este espírito que o Governo de Benin canos para o Brasil, onde o pirão ou papa grossa
está engajado numa política de produção da man- de farinha de mandioca fervida era conhecida por
dioca, visando elevar o nível de vida das popula- caracata, xima, funji, pelos bantos, enquanto os
ções rurais, visto ser a mandioca junto com milho, sudaneses diziam olubó, elubó, oka, amala, se-
desde tempos antigos, o alimento de base das po- gundo Cascudo (1968:466, 1964:11)
pulações do sul e centro do país. À guisa de comparação com os produtos
www.panapress.com/paysindexlatpor.as?code=por003 derivados da mandioca produzidos pelos indíge-
[3/08/2003] nas quando da chegada dos primeiros africanos
ao Brasil, foram selecionados alguns pratos hoje
comuns em determinadas regiões africanas, os
CULINÁRIA AFRICANA quais apresentam subsídios que permitem apon-
tar as alterações que tais pratos sofreram em suas
A culinária nas regiões da África central, por formas de preparação.
ocasião da introdução da mandioca, no século XVI, Mufete, peixe em molho, acompanhado de
não deixou registros, visto que até o período colo- farofa de farinha-de-pau preparada com cebola,
nial a maioria das línguas faladas não eram escritas. azeite, vinagre e sal, sem ir ao fogo, comum em
As notícias que se tem partem de livros de receitas Angola.
elaborados por senhoras, cuja maioria das receitas Em Moçambique são comuns as papas de
eram derivadas da cozinha européia adaptada para farinha de mandioca cozida em caldo de peixe com
o novo mundo, influenciadas pelos escravos afri- tomates, cebola, alho, salsa até ficar consistente,
canos que trabalhavam em suas cozinhas. que se comem com peixe. www.gastronomias.com/
Admite-se que a cozinha africana tenha in- lusotonia/stm005
fluenciado a culinária brasileira. Bastide (1979), Gari, garri é o pão de mandioca, bastante
comparou a culinária do Daomé nagô e da Nigéria popular no Sul da Nigéria, é preparado com a

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 27


mandioca puba, cuja técnica de preparação pelo panela grande e cobertos de água, onde são pos-
processo de maceração foi levado para a África tos a ferver de 4 a 8 horas.
Ocidental (Lima, 1974:142). O baton de manioc dura vários dias se guar-
Trata-se do amido extraído da mandioca dado em lugar fresco. www.congocookbook.com/
colocada a ferver em água até engrossar bem, que c0223.html
é comido com sopas ou ensopados, sendo prato Saka-Madesu prato popular no baixo Rio
típico da Nigéria. www.rumbo.es/guide/es/africa/ Congo, preparado com folhas de mandioca e fei-
nigeria/gatro.htm jão. www.congocookbook.com/c0223.html
Em Ghana e em países vizinhos da África As folhas verdes da mandioca usadas como
Ocidental, gari é feito com o amido da mandioca, verdura na África central, são acrescentadas em
não necessitando cozer. www.congocookbook.com/ muitos ensopados e molhos. Para o preparo das
c0225.html folhas, toma-se uma porção delas, que são ligei-
Gari é o nome que se dá à farinha de man- ramente prensadas em uma caçarola quente, usan-
dioca na África ocidental. do para isto um instrumento para esmagá-las. É
Floutou banane et manioc mistura da bana- usado às vezes triturar cebolas com as folhas. Em
na com mandioca cozida, temperada a gosto e seguida, em uma caçarola esmaltada ou de terra
assada, servida com molhos variados, é comum cota, coloca-se as folha para ferver em poucas xí-
na Costa do Marfim. www.encodivoire.com/Fr/ caras de água, por uma hora. Depois, acrescenta-
attieke.php se, se desejar, peixe, sal, pimenta, alho, continu-
Fu fu é o nome dado às papas ou mingaus, ando a ferver até a consistência de molho,
tradicionalmente usados nas regiões do sul do acrescentando no final moambé, óleo de palma e
Saara acompanhados de ensopados ou molhos. posta a cozinhar por mais uns minutos. Nesta
São preparados com o amido do milho, da man- mesma região, as folhas da mandioca, quando
dioca ou do inhame. preparadas juntamente com as raízes, é conside-
Banku é um tipo de papa ou mingau servido rado alimento completo.
com ensopados e molhos, alimento básico da África Saka-saka, mpondou, mpondu, pondu são
ocidental e bastante popular em Ghana, o qual é nomes dados às folhas de mandioca. Sak é pro-
feito de milho e da raiz da mandioca fermentados. núncia congolesa de cassava, em inglês.
A fermentação é obtida mantendo a farinha www.congocookbook.com [28/07/2003]
de milho e a mandioca ralada cobertas de água, Ainda na África central, se usa o bicarbona-
em um recipiente, onde deve permanecer por 2 to de sódio ou um pouco de potassa para se obter
ou três dias, em local aquecido. Em seguida, amas- o sabor do sal marinho. Para este mesmo fim, tam-
sar com as mãos até os ingredientes ficarem bem bém usam queimar cascas e folhas de certas plan-
misturados e ligeiramente endurecidos. Depois de tas, além de secar ao sol cascas de banana, as quais
pronta a massa, leva-se ao fogo uma panela com são reduzidas a cinzas, adquirindo, assim, o sabor
uma xícara de água, na qual a massa é colocada e da potassa. As tribos do litoral quando eram leva-
posta a ferver, mexendo sempre e com vigor por das para o interior, levavam o sal da água do mar
cerca de 20 minutos. O banku deve ficar grudento evaporada em panelas de cobre chamadas
e ligeiramente endurecido, com o qual faz-se bo- neptune. Esses recursos eram usados devido à fal-
las do tamanho das de tênis, as quais são servidas ta do sal e de seu alto custo. www.afrol.co/es/ca-
quentes ou frias. tegorias/Cultura/cultura.htm
Baton de manioc se prepara deixando as
raízes de mandioca amarga mergulhadas em água
de 2 a 3 dias. Em seguida descascar as raízes, la- DISCUSSÃO
var bem várias vezes e amassá-las até ficar uma
pasta fina, a qual depois de feitos tipos de bas- Pela amostragem selecionada para este tra-
tões, os mesmos são embrulhados e bem amarados balho, relacionada aos pratos africanos hoje co-
em folha de bananeira ou de uma Marantaceae muns em algumas regiões africanas, pode-se veri-
(Megaphrynium macrostachyum) ou de outras es- ficar que alguns deles apresentam apenas alguma
pécies dessa família botânica, comum na África semelhança com os primitivos produtos deriva-
Ocidental. Esses pacotes são colocados em uma dos da mandioca que os indígenas brasileiros pre-

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 28


paravam. Denota-se de tal fato, que com o passar tares de diferentes influências, próprios das diver-
do tempo, aqueles pratos foram se alterando em sas regiões culturais do País, visto que grande vari-
suas maneiras de preparar, na medida em que as edade de pratos são elaborados a partir de recei-
receitas iam sendo passadas para a África, onde, tas de cunho bastante regionais.
principalmente na África central, a mandioca e A diáspora africana teve seu papel impor-
seus derivados passaram a fazer parte da alimen- tante na dispersão dessa planta pelas regiões afri-
tação local. canas dominadas pelos portugueses desde o sé-
Naquela região africana, o uso das folhas da culo XVI, permitindo que ela constituísse o
mandioca se popularizou. Verifica-se que o pro- alimento empregado para suprir os navios negrei-
cesso de preparação para seu consumo, compa- ros e as regiões sob seu domínio.
rado ao preparo da maniçoba brasileira, tal pro- Foi a mandioca um dos produtos agrícolas
cesso sofreu sensível alteração quanto ao tempo que mais influenciaram e transformaram a
exigido para que elas fiquem em condições de fisionomia da agricultura da África central, o que
serem consumidas, dado o princípio tóxico pre- possibilitou que a Nigéria se tornasse o maior cen-
sente em todas as partes da planta. Enquanto a tro produtor do mundo e que esses tubérculos se
maniçoba, no Brasil, tradicionalmente, exige al- tornassem a base da alimentação em várias re-
guns dias de preparação, nas regiões africanas giões africanas.
onde as folhas são consumidas, o preparo é rápi- Na África, o preparo dos pratos que levam a
do, quase imediato. mandioca obedecem a receitas bastante semelhan-
Cica, o mingau de nossos índios, por eles tes àquelas ensinadas pelos indígenas do Brasil do
preparado com a fécula fina, se assemelha ao fu século XVI, porém, com algumas variações, prin-
fu, comum no sul do Saara, preparado com o cipalmente quanto à maneira como é eliminado
amido da mandioca, que acompanha ensopados o princípio tóxico das folhas, que são muito usa-
e molhos. das como verdura nas regiões da África central.
Poqueca,também de nossos índios, feito de Destaco que, ao lado da influência indígena,
raspas de mandioca, condimentada e cozida em tanto na culinária do Brasil como da África, está a
folha de uma espécie de Marantaceae, se asse- contribuição dos escravos africanos. Favorecida pela
melha ao Baton de manioc, comum na África oci- dispersão deles pelo País em diferentes períodos
dental, que é preparado com as raízes da mandi- de nossa história e da própria África, para onde
oca macerada e feitos bastões que são cozidos muitos retornaram, sua influência é marcante quan-
envoltos em folhas de bananeira ou de uma do se trata da comida votiva dedicada aos deuses
Marantaceae. das religiões de origem e influência africana, que
Puba, é a matéria prima do gari, o pão de adotam em seus cardápios pratos à base de mandi-
mandioca, popular no sul da Nigéria que é pre- oca, pratos estes que, saindo dos espaços religio-
parado com a mandioca puba. sos, alcançam as mesas, não só dos brasileiros de
norte a sul, como na própria África, nas regiões onde
a mandioca marcou presença.
CONCLUSÃO

Como herança indígena, a mandioca, devi-


do aos seus valores nutricionais, vem desempenhan- BIBLIOGRAFIA
do papel importante na alimentação do brasileiro. BARBOSA, Padre A. Lemos. Pequeno Vocabulário
A influência indígena é marcante, tanto nas tupi-português. Rio de Janeiro, Livraria São José,
maneiras de se cultivar essa Euphorbiaceae, como 1967.
nas maneiras de manipular suas raízes e folhas para BUENO, Eduardo. Náufragos, traficantes e degreda-
o preparo de comidas, as quais exigem cuidados dos: as primeiras expedições ao Brasil. Rio de Janeiro,
especiais, devido à presença do glicosídio Objetiva, 1998.
cianogenético, o princípio tóxico presente em to- CAMARGO, Maria Thereza L. de Arruda Camargo.
das as partes da planta. Plantas condimentícias nas comidas rituais de cultos
Na culinária brasileira, as receitas à base de afro-brasileiros. In: Revista do Instituo de Estudos
mandioca se ajustam segundo os hábitos alimen- Brasileiros,USP, São Paulo (31), 1990.

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 29


CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. MAC EVEDY, Colin. Atlas da História Medieval. São
(séc.XVII), Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Ed. Paulo, EDUSP/Verbo, 1979.
Universidade de São Paulo. MACHADO, Alcântara. Vida e morte do bandeirante.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore São Paulo, Governo do Estado, 1978. (Coleção
Brasileiro, 5ª ed. São Paulo, Melhoramentos, 1980. Paulística nº13)
_______ A cozinha africana no Brasil. Luanda, USP – MAESTRI Filho, Mário José. A agricultura africana nos
FFCL – Departamento de História Biblioteca, 1964. séculos XVI e XVII no litoral Angolano. Porto Alegre,
_______História da alimentação no Brasil. São Paulo, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 1978)
Ed. Nacional, 1968. MELO, José Rodrigues de & Amaral, Prudêncio do.
CENOZ, P. J. & López, A. & Burgos, A. Efecto de los Temas rurais do Brasil. (Trad. RaulJosé Sozim e Sérgio
macro nutrientes en el desarrollo y rendimiento de Monteiro Zan), Ponta Grossa Paraná, Ed. Universida-
mandioca (Manihot esculenta, Crantz). de Estadual de Ponta Grossa, 1997.
Comunicaciones Científicas y Tecnológicas 2000, PEIREIRA, Nunes. Moronguetá – Um decameron
Universidad Nacional del Nordeste. indígena, 2ª ed. 2vls., Rio de Janeiro, Civilização
FERRÃO, José E. Mendes. A aventura das plantas e os Brasileira, 1980.
descobrimentos portugueses. Lisboa, Instituto de ________Panorama da alimentação Indígena –
Investigação Científica Tropical, Comissão Nacional Comidas, Bebidas & Tóxicos na Amazônia Brasileira.
para as Comemorações dos Descobrimentos Portu- Rio de Janeiro, Livraria São José, 1974.
gueses, Fundação Berardo, 1992. QUERINO, Manuel. Costumes africanos no Brasil. 2ª
FERRETTI, Sérgio Figueiredo. Querebentan de ed., Recife, Fundação Joaquim Nabuco, 1988.
Zomadonu: etnografia da Casa das Minas. São Luís, RODRIGUES, Lopes. Anchieta e a medicina. 2ª
Maranhão, Edufma, 1986 . (Coleção Ciências Sociais edição, Belo Horizonte, Biblioteca Mineira de
– Série Antropologia I) Cultura, s/d.
FIBGE– Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e SAINT HILAIRE, Augusto. Segunda viagem à São
Estatística, censo de 1980. Paulo e quadro histórico da província de São Paulo.
FICALHO (Conde), Francisco de Melo. Plantas úteis da São Paulo, Comissão do IV Centenário da Cidade de
África Portuguesa. Lisboa, Divisão de Publicações e São Paulo, 1954. (Biblioteca Histórica Paulista 6)
Biblioteca/Agência Geral das Colônias, MCMXLVII, 1947. SAMPAIO, A. J. A alimentação Sertaneja e do Interior
FREYRE, Gilberto. Nordeste. Aspectos da influência da Amazônia. Onomástica da alimentação rural. São
da cana sobre a vida e a paisagem do Nordeste Paulo, Ed. Nacional, 1944.
Brasileiro. 4ª ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1967. SCHIMIDT, Carlos Borges. Técnicas agrícolas primiti-
_______ Novo Mundo dos trópicos. São Paulo, Ed. vas e tradicionais. Conselho Federal de Cultura/
Nacional e Editora da USP. 1971. (Brasiliana, v.348) Departamento de Assuntos Culturais, s/l, 1976.
_______Casa-grande & senzala: formação da família SOUSA, Gabriel Soares de. Notícia do Brasil. São Paulo,
brasileira sob o regime da economia patriarcal. 25ª Departamento de Assuntos Culturais do MEC, 1974.
ed., Rio de Janeiro. José Olympio Editora, 1987. SPIX, J.B. von & MARTIUS, C.F.P. von. Viagem pelo
_______Açúcar (Algumas receitas e doces e bolos dos Brasil. (séc.XIX). 3 vols. Belo Horizonte, Itatiaia; São
engenhos do Nordeste) Rio de Janeiro, Livraria José Paulo Ed. Universidade de São Paulo,1981..
Olympio Editora, 1939. TAUNAY, Afonso de E. Relatos sertanistas. São Paulo,
GANDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da terra do Comissão do IV Centenário da cidade de São Paulo,
Brasil. História da Província Santa Cruz. (séc.XVI), 1954. (Biblioteca Histórica Paulista VII)
Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Ed. Universidade VASCONCELOS, Padre Simão de. Crônicas da
de São Paulo, 1980. Companhia de Jesus, Rio de Janeiro, 1864.
HOEHNE, F.C. Botânica e agricultura no Brasil no
século 16. São Paulo, 1937.
JOLY, Aylthon Brandão & Leitão Filho, Hermógenes.
Botânica econômica: as principais culturas brasileiras.
São Paulo, HUCITEC, Ed. da Universidade de São
Paulo, 1979.
LIMA, Oswaldo Gonçalves de. Pulque, Balchê e
Pajauaru na Etnobiologia das bebidas e dos alimentos
fermentados.Recife, Universidade Federal de
Pernambuco, 1974.
LODY, Raul. Santo também come. Recife, MEC-
Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais. 1979.

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 30


Cozinha e Identidade Nacional: notas sobre a culinária
na formação da cultura brasileira segundo Gilberto
Freyre e Luis da Câmara Cascudo
Rogéria Campos de Almeida Dutra
Professora de Antropologia Cultural no Departamento de Ciências Sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora.
Doutoranda em Antropologia Social no Programa de pós-graduação em Antropologia Social no Museu Nacional, UFRJ.

Como todo ser vivo, os seres hu- cultural, na medida em que as preferên-
manos também se alimentam. Não obe- cias alimentares figuram entre traços dis-
decem, porém, a um padrão alimentar tintivos e singularizantes. E não só varia
uniforme, demonstrando-nos uma sur- entre sociedades, grupos sociais, como
preendente criatividade na diversidade pode se diferenciar internamente a es-
do ato de se nutrir. A culinária não res- ses grupos, como comida de homem/
ponde exclusivamente às necessidades de mulher, de criança/adulto, de ho-
biológicas de sobrevivência, mas tam- mens/deuses. Sua abordagem nos con-
bém não é resultado somente cultural; duz a questões múltiplas que envolvem
duas dimensões de um mesmo fenô- a ecologia, a técnica utilizada (no pre-
meno, espaço privilegiado da media- paro do alimento e sua conservação), a
ção entre Natureza e Cultura. Um meio vida familiar, as relações sociais, a ordem
pelo qual a natureza é transformada em simbólica. As predileções alimentares se
cultura, como diria Lévi-Strauss (1968). constroem a partir duma complexa tra-
Nossa recusa por certos tipos de alimen- ma entre “norma de uso” e “respeito a
to – que classificaríamos como “não- tradição” (cf. Cascudo, 1983) Porém,
comestíveis” – não está, na maioria das apesar de profundamente arraigadas
vezes, fundada na fisiologia, mas num (não devemos nos esquecer que o
sentimento de ordem, que envolve as paladar é o último a se desnacionalizar)
dimensões ética, estética e dietética. Daí não estão congeladas. Acompanham a
podermos compreender a cultura como própria dinâmica da sociedade na qual
fundadora de um critério de palatabili- se inserem, estabelecendo o diálogo con-
dade. É pela repetição incalculável dos tínuo entre o tempo (o processo histó-
estímulos sápidos que se processa a fi- rico) e o espaço (o espaço geográfico).
xação do paladar. Fruto do hábito, ob- O contato cultural nunca deixou de
jeto da memória, o paladar se constrói, existir, e muito menos de contribuir para
e valorativamente, pela combinação a reconstrução da singularidade. Como
imprevisível do que classificamos como nos lembra R. Bastide (1973), a cultura
salgado, doce, ácido, amargo e pican- se desenvolve muito mais por interfe-
te. Diversas vezes mencionada por via- cundação do que por autofecundação.
jantes que passaram pelo Brasil coloni- Há de se considerar o contato cultural
al, temos como exemplo, a preferência, não só como um processo de acultu-
tanto negra quanto ameríndia, pelo sa- ração (no sentido literal de perda e
bor picante da pimenta. Em nossa pró- anulação, e que de fato ocorreu, e vem
pria cultura observamos como os sabo- ocorrendo, muitas vezes de forma trá-
res amargo e azedo associam-se a algo gica), como também de intercâmbio, res-
difícil, ruim, enquanto que o doce, que- saltando o valor do encontro de dife-
rido representa suavidade. rentes tradições.
Neste sentido, o estudo da alimen- Neste texto, pretendo destacar
tação tem local privilegiado na análise como o processo de formação da socie-

31
dade brasileira pode se narrado pela constituição contraste ao nomadismo exploratório nas primei-
dos hábitos alimentares de sua população, apesar ras décadas do desenvolvimento – atividade mais
de ser um traço peculiar desta nossa sociedade a democrática, por sinal, dando chance aos aven-
coexistência da diversidade regional (os diferentes tureiros, e que de alguma forma permaneceu
sistemas ecológicos que definem o espaço) com o como tendência dominante na atividade dos ban-
descompasso temporal (o processo histórico dife- deirantes na Capitania de São Vicente, – destaca-
renciado). Neste exercício reflexivo, centro-me se a “estabilidade secular” do senhor de engenho.
particularmente em dois autores, Gilberto Freyre e É neste cenário que se assiste o contato de
Luis da Câmara Cascudo. Tal escolha deve-se pelo três culturas diferentes, a ameríndia, a africana e
destaque que ambos dedicam à questão alimentar a européia, interesse especial tanto de Freyre quan-
como fator constitutivo da identidade nacional. to de Câmara Cascudo. Procuram destacar as pos-
Ressalvando-se as diferenças entre os dois autores sibilidades de enriquecimento cultural que se deu
(inclusive por trajetórias distintas), podemos pela via do “empréstimo” e do “acréscimo”. A
considerá-los portadores, dentre outros, do proje- tendência de combinação de traços de culturas
to da inteligentsia brasileira, na primeira metade diferentes que resultariam em uma configuração
do século passado, de construir a identidade naci- única, tornando-se um “complexo de cultura”.1
onal valorizando exatamente o que era considera- Este contato, no entanto, não se restringiu, no
do o grande empecilho para nossa construção como caso brasileiro, “à esfera produtiva”. A composição
nação e para o “progresso” da sociedade brasilei- da sociedade brasileira se dá pela “hibridização”,
ra: a mistura, a mestiçagem que nos distanciava do onde grande número de colonos constituíram famí-
padrão europeu de tradição, cujo prejuízo estaria lias com a ameríndia e a negra. Ambiente de escas-
relacionado a fortes componentes raciais. sez feminina provocando uma certa “confraterniza-
ção” entre “vencedores e vencidos”.
O CONTATO Freyre empenha-se, de forma bem sucedida
por sinal, em inovar a leitura deste passado da so-
Foram necessários mais de 30 anos para que ciedade brasileira pela perspectiva “de dentro”,
Portugal decidisse implementar uma política de através dos “estilos de residência, constantes de
colonização na Terra de Santa Cruz. A falta de existência e normas de coexistência” – definidores
grandes tesouros, e aparentemente, de riquezas estes, do “caráter” do povo brasileiro. Através de
minerais, a coroa portuguesa decidiu-se por po- uma introspecção quase que proustiana, ele se pro-
voar este território a partir de uma estratégia ino- põe a uma “aventura da sensibilidade”, a penetrar
vadora. Ao invés de manter-se no extrativismo na intimidade deste passado. A casa, e o que se
mercantilista, já experimentado tanto na sua pre- passa na casa, como centro mais importante de
sença na Índia quanto na África, instituiu uma nova adaptação e acomodação do português, o negro e
forma de permanência com uma atividade que o ameríndio. Pois que o complexo Casa-Grande
lhe fosse rentável, a “colônia de plantação”, base- &Senzala, autarquia produtiva, dirigida por senho-
ada na agricultura. Esta realidade colonial agrária, res rurais de autoridade inquestionável – “Dono
da monocultura da cana e a produção de açúcar das terras. Dono dos homens. Dono das
para “exportação” fundamentava-se na explora- Mulheres”(cf. Freyre, 1973a:lvii) – gira em torno
ção de mão-de-obra escrava (primeiramente da família como base da colonização. Uma das
ameríndia e depois negra) e na necessidade de grandes forças permanentes, preservando e difun-
fixação do português neste território. Uma outra dindo valores. Vale ressaltar que essas categorias
peculiaridade deste empreendimento da coroa “casa” e “família” não só definem uma qualidade
portuguesa é o fato de que se construiria pela ação do espaço, ou da mistura sangüínea, mas o cenário
e investimento particular, de famílias de nobres de relações interpessoais. Esta dimensão relacional,
ou ricos comerciantes que se desfaziam de seus __________________________

bens no reino para investir, colonizar e proteger 1


Destaca-se nesta forma de abordar a realidade cultural o
esta terra ova. Assim instala-se, principalmente no diálogo de Freyre com o que viria a se chamar de
Nordeste, o complexo Casa-Grande & Senzala, Configuracionismo. Enquanto “traço” se definiria por ele-
mentos culturais, o complexo se caracterizaria como a reu-
definindo-se por características tais como: nião dos vários “usos”, nos quais se faz presente este ele-
autárquica, produtiva, familial, hirárquica. Em mento específico.

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 32


que acontece na esfera doméstica, transborda para pria dureza da coerção: “Muita africana consegui-
outras instâncias. Os personagens se definem e são ra impor-se ao respeito dos brancos; umas, pelo
definidos uns em relação aos outros, numa relação temor inspirado por suas mandingas; outras, como
ao mesmo tempo fortemente hierárquica (envol- as Minas, pelos seus quindins e pela sua finura de
vendo a subordinação e a coerção) e uma convi- mulher” (cf. Freyre, l973a: 427). Já era comum em
vência por demais íntima. Escrava, mas amante. Lisboa no século XVI, como o foi nas principais ci-
Filho, mas bastardo. Católico, mas polígamo. Da dades brasileiras do Brasil colonial, a presença de
família, mas mucama. As composições são intermi- negras na rua vendendo os mais diversos víveres,
náveis, mas sempre paradoxais, inclusiva dos opos- na maioria a serviço de iaiás que preferiram se
tos. A sociedade brasileira se constituindo baseada manter no anonimato. Outras vezes, o valor
no equilíbrio de antagonismos. “quituteira/concubina” se destacava: as negras fre-
É a partir do mergulho nesta “petite histoire”, qüentando os quartos dos mascates portugueses nas
de preocupações aparentemente “femininas em fazendas, por ordem do senhor interessado em
torno de assuntos docemente inofensivos” (cf. aumentar o plantel de mestiços, oferecendo-lhes
Freyre, 1968: LXX) que tocamos nos bastidores do “mingauzinho dourado a ovos” (Freyre, 1968: 630).
processo histórico de transformação de uma socie- Vale ainda destacar o entranhamento da mucama
dade. Fundamental para Freyre é o uso dos senti- na vida familiar, através da criação dos filhos de
dos para a sintonização daquele se cultural com seus senhores: da proximidade sangüínea, pelo se
seu meio e com as pessoas: não só a visão, o diálo- papel de “cabra mulher”, amamentando a nume-
go de imagens, como o olfato, o paladar, o tato, a rosa prole da casa grande, à sua participação nas
audição. A percepção sensorial. Não é por acaso cantigas de ninar, nas histórias que contavam, fe-
que o sexo e a comida permeiam constantemente cundando a imaginação infantil, e na fala dengosa,
as relações, intermediada por um personagem es- resumida, rapidamente assimilada pelos pequenos.
pecialmente valorizado por Freyre, a mulher. Freyre descreve a mulher portuguesa do pa-
“O português encontrou no Brasil a mulher triarcado rural da Casa-Grande como mulheres
fácil, abundante e amorosa” (Cascudo, 1983:172). gordas, com grande conhecimento de cozinha e
Freyre é de opinião de que a cunhã constituiu a higiene da casa, “modos europeus e cristãos de
base física da família brasileira. Através dela, mais tratar menino e gente doente”(op.cit.: 32). Mãe
do que do índio, caçador e devastador de flores- ignorante, cuja repercussão nos filhos não ultra-
tas, o europeu teve acesso à natureza cultivada, passava à esfera sentimental, alheia ao mundo que
domesticada, imprescindível para sua sobrevivên- não fosse o da casa. Dedicava-se à sua adminis-
cia: dos frutos coletados e pequenas lavouras à tração, acompanhando e fiscalizando inúmeros
cerâmica e tecelagem. É da mulher gentia que vi- criados em seus afazeres, seja nas costuras, no
eram remédios caseiros e o asseio pessoal ( o tão preparo de velas, sabão, licores ou geléias. Com
comentado banho freqüente, parte dos processo sua sociabilidade restrita, exercitava o “saneamen-
de higiene tropical desconhecido na época por to mental” nos confessionários. Tanto Freyre quan-
grande parte dos europeus). Não só foi a primeira to Cascudo consideraram-na, a “iaiá”, a grande
cozinheira, como também a primeira concubina: estabilizadora da civilização européia no Brasil,
ela representou com sua nudez e interesse sexual dado o seu papel conservador, estável, ordenador
em agradar o branco, o paraíso tropical para aque- e integralizador.
les que vieram de uma Europa medieval e uma Às mulheres, coube uma posição especial
moral católica excessivamente rígida. neste processo dinâmico de caldeamento cultu-
A desvalorização da cunhã é simultânea ao ral. Foram estrategicamente contemporizadoras,
desenvolvimento da indústria do açúcar, quando mediadoras de conflitos latentes, atuando sem,
surge a figura da mucama, que dominou de forma apesar da forma dissimulada, mas pressente e efe-
mais intensa o ambiente doméstico, “discípula tiva. Algo como o poder dos fracos, ou das águas,
maravilhosa em ambas as fórmulas do sabor culi- que lentamente envolve e domina o ambiente.
nário e sexual solicitadas”(Cascudo, 1983:175). O europeu encontrou aqui o ameríndio com
Apesar de sua posição subjugada frente ao regime uma alimentação baseada na caça, pesca, coleta e
escravocrata, Freyre destaca como esta íntima con- uma lavoura ainda incipiente: mandioca, milho,
vivência da negra contribuiu para relativizar a pró- batata, feijão, pimentão, abóboras, cará, amendo-

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 33


im, palmitos, caju, abacaxi, goiaba, cajá, maracu- ces a transmissão de seu paladar aos habitantes
já, mamão. Peixes e carnes assados no calor do desta terra, pois o que era português tornou-se
borralho, no moquem, enterrados sob a fogueira. brasileiro: toucinho, lingüiça, azeite, hortaliças,
Bebidas elaboradas a partir da fermentação de fru- vinagre. Devemos também à mulher portuguesa
tas, do milho, da mandioca. Não se utilizava o sal, a versatilidade do uso do ovo de galinha, a sua
nem o óleo. Apesar da grande influência sobre a combinação com farinha, leite e açúcar, ignorada
alimentação do brasileiro, este não se utilizou da pelo africano e pelo indígena. Gilberto Freyre ain-
totalidade de espécies vegetais incluídas no cardá- da destaca a influência árabe na culinária portu-
pio ameríndio: bagas, raízes, frutos, o mingau de guesa que aqui também nos tocou: a preferência
caroço de algodão, os içás (fêmea da formiga saúva, por comidas oleosas, cheias de açúcar,
largamente apreciados no Brasil colonial, até mes- “condimentação afrodisíaca, vibração erótica”. Os
mo por europeus) e as “rahu” (larvas de um estágio inumeráveis doces e bolos de conventos, com forte
de desenvolvimento de um certo tipo de maripo- apelo erótico, “...sussurrando nomes que eram
sa, comparadas por alguns viajantes como a mais confissões, apelos, críticas, murmúrios de queixas”
fina iguaria francesa). A vitória do complexo indí- (Cascudo, 1983: 344): Beijos, Suspiros, Abraços,
gena da mandioca sobre o trigo merece ser Saudades, Sonhos, Toucinho do Céu, Cabelos de
relembrada: ela tornou-se base do regime alimen- Virgem, Casadinhos, Barriga-de-Freira, Papo-de-
tar do colonizador, com exceção de alguns repre- Anjo, dentre outros. Nas palavras de Freyre, “a
sentantes da elite portuguesa que insistiam em con- intenção afrodisíaca, o toque fescenino a confun-
sumir a “farinha do reino”. Vem do hábito alimentar dir-se com o místico (...) Levanta-velho, Língua-
indígena a base da nutrição popular: mandioca, de-moça, Baba-de-moça, Mimos de Amor”
milho, batata, decisivos na “predileção cotidiana” (1973a: 250). Deve-se ainda às portuguesas o
do brasileiro. Do indígena herdamos o mingau, o hábito de fritar os alimentos, o arroz doce polvi-
pirão, a paçoca, a pamonha, a canjica, a pipoca. lhado de canela, a arte do papel recortado.
Formas culinárias originais que foram sendo lapi- Neste caldeamento cultural, apesar da rica
dadas pelo tempo, por mãos africanas e portugue- diversidade de ingredientes, observa-se que na so-
sas para se chegar aos dias de hoje. ciedade brasileira em geral, a base técnica mante-
É também na culinária que vemos de forma ve-se portuguesa, pois foram essas mulheres que
evidente a infiltração da cultura negra na nossa ensinaram às cunhãs e mucamas a cozinhar na
cultura: o uso do azeite de dendê, a pimenta casa-grande e no sobrado. Cascudo nos fala da
malagueta, quiabo, gengibre, a variedade de fei- ocorrência de uma “aculturação compulsória”
jões, inhame, coco, das palavras presentes no portuguesa, utilizando as reservas amerabas e os
nosso vocabulário: quitutes, moleque, mocotó, recursos africanos. Ressalta também que o pro-
quindim, mungunzá, farofa, angu, fubá. Vale ain- cesso de integração de raízes alimentares distintas
da destacar a doçaria de rua, das negras com seus teve caráter peculiar no caso brasileiro, compa-
tabuleiros e caldeirões oferecendo mocotó, vatapá, rando-se às colônias portuguesas em território afri-
mingau, canjicas, acaçás, abarás, arroz de coco, cano. Enquanto aqui verificou-se uma técnica
feijão de coco, angu, peixe frito, mungunzá, bolo européia consagrando o produto nativo, no terri-
de milho, milho assado, tapioca molhada, acarajé. tório africano observa-se a pouca influência da
Negra e mulata quente, voluptuosa, que abusava mulher européia, e a predominância da culinária
dos “afrodisíacos do paladar” 2 . nativa com penetração dos pratos estrangeiros. A
De acordo com Câmara Cascudo (1983), a mulher portuguesa fez o beiju ameríndio mais fino
mulher portuguesa prestou duas contribuições e mais seco, molhou o polvilho de mandioca com
básicas à alimentação brasileira no domínio do leite. Inventou comidas, doces, conservas com fru-
paladar: valorizou o sal (praticamente desconhe- tos e raízes da terra, vinho e licor de caju, casta-
cido entre os ameríndios e pouco utilizado por nha de caju no lugar da amêndoa, o cuscuz de
africanos) e introduziu o açúcar. A ciência coloni- mandioca, a carne com cará, a canela e cravo
zadora do português tem como um de seus ápi- conferindo sabores nobres a frutos tropicais. A
__________________________ própria feijoada, prato democraticamente presente
2
É curiosa a associação da situação, ou do objeto sexual-
na mesa dos brasileiros, apesar de associar-se ao
mente excitante, com o sabor picante da pimenta. escravo negro (era comida de senzala), “... é uma

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 34


solução européia elaborada no Brasil” (Cascudo, mas considerando-o numa série de aplicações e
1983: 502), pois utiliza-se a técnica portuguesa repercussões) na vida em grupo. Sem a escravi-
da carne guisada com feijões. Porém, nem na Áfri- dão não se explicaria o desenvolvimento da arte
ca, nem em Portugal (que já conheciam tipos de do doce, pois este tipo de confeitaria, com suas
feijões) ela tem esta popularidade que tem no exigências de mão-de-obra e mesmo de material
Brasil, sendo que aqui ainda associa-se à farofa, à só foi possível pelas horas de ócio e lazer das sinhás
base da mandioca ameríndia. ricas e o trabalho fácil das escravas. As receitas
A doçaria brasileira, dada sua particularida- constituem um capítulo particular na história do
de, foi objeto específico de reflexão de Freyre. É doce na sociedade brasileira. A imprecisão das
no livro “Açúcar” que ele analisa o doce brasileiro medidas numa sociedade ainda pouco envolvida
como parte de um complexo cultural, expressão com a linguagem universal matemática – “um prato
de um processo de interpenetração de culturas3 . fundo”, “uma garrafa”, “três palanganas” – , tanto
Uma arte simbiótica que reúne “gostos tradicio- pode nos revelar a pouca instrução das sinhás,
nais europeus a sabores tropicais”: a combinação como um certo cuidado em se resguardar as re-
de açúcar com frutas nativas como jenipapo, araçá, ceitas. Observa-se freqüentemente a profusão de
mamão, goiaba, maracujá, jabuticaba. No Nor- ingredientes como os ovos (18, 30, até 36 ovos...):
deste, em particular, verificou-se uma íntima cor- origem aristocrática, ou talvez, o contexto rural
respondência entre a sofisticação (no sentido de de abundância de certos víveres. Os nomes das
diversidade) da arte da doçaria e a intensidade receitas também carregam significados que
regional da produção de açúcar. Não só o doce extrapolam o universo da cozinha: intenções ve-
como estética de sobremesa, como forma de ali- ladas (como já mencionei anteriormente), momen-
mentação (a indispensável rapadura do sertanejo tos históricos (Bolo Abolicionista, Bolo Republica-
nordestino é um exemplo), como também de re- no), a realidade colonial (Beijos de Cabocla,
creação. Na arte da doçaria tradicional, verifica- Arrufos de Sinhá).
se com nitidez a relação do produto culinário com As receitas pertenciam ao domínio das mu-
o material técnico que o viabiliza: a colher de pau, lheres. Segredos de família que lhe conferiam dis-
o tacho de cobre, a panela de barro (como as gran- tinção. No Nordeste assumiram forma
des cuscuzeiras baianas vedadas com massa de emblemática como se fossem brasões de grandes
farinha de mandioca), peças regionais que se apre- famílias. Fundavam-lhes a tradição, inacessível a
sentam como indispensáveis ao preparo de “qualquer um”. Bolos e doces que tomaram no-
quitutes. Nesta íntima aliança entre alimento e mes de família, ou de engenho, mantendo-se as
utensílio (ligado a uma técnica cultural, inserido receitas como segredo de família, Freyre nos fala
ecologicamente em seu meio), pode-se incluir tam- de uma “maçonaria” de mulheres guardando re-
bém a arte do papel recortado, herança portu- ceitas e transmitindo-as entre gerações.
guesa largamente utilizada no Brasil ainda agrário Compreender o “complexo do açúcar” im-
e agreste, para enfeitar bolos, cobrir tabuleiros de plica a atenção à suas aplicações. Quais frontei-
doceiras de rua, forrar prateleiras. ras se estabelecem nesta profusão de doces, que
Para Freyre, o doce no Brasil vem adoçar as se tornam repetitivos ao paladar? Freyre nos cha-
bocas e, em certo sentido (que ele chamaria de ma a atenção para este detalhe, relembrando-se
simbólico) adoçar o “coração e os humores”. Ao de F. Boas, ao estudar a variedade de comidas
doce associa-se o chamego e a meiguice, o amo- preparadas com azeite pelos Kwakiutl à base de
lecimento das relações interpessoais. Aliás, ao re- peixe, e que lhe pareciam, ao paladar do euro-
ferir-se ao açúcar como “complexo do açúcar” peu, monótonas: “sempre o mesmo gosto de
como acima mencionamos, ele não está se refe- peixe no azeite”(1997:73). Obviamente, não aos
rindo somente ao produto em si, o ingrediente, olhos do nativo. Assim também são os doces, par-
__________________________ ticularmente os doces nordestinos, cuja diversi-
3
Gilberto Freyre nos fala de um paladar tropicalmente, eco- dade associa-se a uma etiqueta social: doces para
logicamente condicionado a estimar o doce e até de abu- o almoço, outros para o jantar, doces de festa,
sar. Há referências de vários depoimentos de estrangeiros de casamento, de Natal, de São João. “Tudo açú-
sobre o fato de os doces brasileiros serem excessivamente
doces, o qual Freyre associa à influência moura na cultura
car, mas dentro do gosto uma variedade e hie-
portuguesa. rarquia” (op.cit.:74).

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 35


Esta sociabilidade fraterna e popular, numa sociedade. O mulato bacharel que deixa a cacha-
sociedade hierárquica, como a brasileira, é tam- ça pelo vinho, o bredo pela carne. A valorização
bém vivenciada através dos “usos da comida”. social de novos elementos: o chá, a cerveja, o bis-
Estou me referindo particularmente à associação coito de lata, a batata inglesa, o pão, a manteiga.
entre a hospitalidade – arte de receber bem – e Como se fosse vergonhoso o hábito agreste do
refeição, a arte do bem oferecer. Como Freyre pirão, beiju, “os matos”. Desapareceu o sobrado
destaca, fazia parte das “leis de nobreza à brasi- o costume português da horta junto ao jardim,
leira”, na casa grande, receber o viajante a qual- para que este fosse, enfim, ocupado por plantas
quer hora com um lugar à mesa. A mesa sempre finas e européias. Confinadas aos mucambos, as
posta, patriarcal, prontificada a agasalhar paren- plantas nativas, africanas e asiáticas, úteis à casa,
tes, visitantes, afilhados. profiláticas, “plantas de negro”, “de mucambo”.
A vaca lentamente substituindo a cabra para o
A NARRATIVA GASTRONÔMICA D A consumo de leite. A louça indiana e chinesa
MODERNIZAÇÃO D A SOCIEDADE trocada pela francesa e inglesa.
A cidade imperial oferece uma vida social
A ênfase na autenticidade, a busca de raízes, mais ativa, intensificando-se o contato, o lazer na
presentes tanto em Freyre como em Cascudo, faz rua. Estamos numa época em que as cidades mai-
transparecer uma certa nostalgia quanto à origi- ores recebem doceiros e confeiteiros franceses e
nalidade do passado, um tanto quanto agreste e italianos, vindo oferecer ao espaço público novas
tradicional, em processo de descaracterização fren- possibilidades de sociabilidade. O gelado, os sor-
te ao progresso, à urbanização, à sofisticação vetes em particular, marcam esta fase. Uma nova
tecnológica. Os signos da praticidade, da veloci- vida, que aos olhos de Freyre e Cascudo contri-
dade, “desmoralizando” as demoradas prepara- buíram para a descaracterização de seu país e prin-
ções. Para Cascudo, a dita “cozinha internacio- cipalmente, retiravam-lhe as cores, fazendo com
nal” seria principalmente indefinida, sem origem, que, exatamente esta singularidade histórica – fruto
sem uso habitual. Uma estratégia de estímulo à de confluências no processo de formação desta
comercialização da produção enlatada. nação – fosse desprezada, ou até esquecidas.
É em Freyre (1968) que temos uma análise
detalhada dos impactos do processo de industria-
lização no Brasil do século XIX. Após três séculos
de relativa segregação do Brasil do mundo euro- BIBLIOGRAFIA
peu não-ibérico, a sociedade brasileira torna-se BASTIDE, Roger. El projimo y el estraño. El encuentro
mercado atraente para uma Europa em plena in- de las civilizationes. Buenos Aires: Ammnorritu, 1973.
dustrialização: dos tecidos aos alimentos em lata CASCUDO, Luis da Câmara. História da Alimentação
e conservas. O processo de urbanização na socie- no Brasil. São Paulo/Belo Horizonte: Editora USP/
dade brasileira pode ser representado pela passa- Itatiaia, l983.
gem da casa grande do engenho para os sobrados FRYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. Decadência
da cidade. Nestes, vida mais social, mais munda- do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano.
na. O absolutismo do poder patriarcal se diluindo Rio de Janeiro: José Olympio, 1968.
pela presença do médico, do juiz, do chefe de FREYRE, Gilberto. Problemas Brasileiros de Antropo-
polícia. A máquina vai diminuindo a importância logia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973.
do binômio senhor/escravo e valorizando, princi- FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Formação da
palmente, o mulato, capaz dela se ocupar com Família Brasileira sob o Regime da Economia Patriarcal.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1973 a, 16ª ed.
sua técnica. A padronização empalidecendo o
asiático, o africano e o indígena em nossa socie- FREYRE, Gilberto. Açúcar. Uma Sociologia do Doce,
com Receitas de Bolos e Doces do Nordeste do Brasil.
dade: o brasileiro foi abandonado muito de seus
São Paulo, Companhia das Letras, 1997.
hábitos tradicionais, seja nas cores da moradia, na
LÉVI-STRAUSS, Claude. L’Origine des Manières de la
forma de se vestir, no que comer. Franceses, in-
Table. Paris, Plon, 1968.
gleses, italianos, desvelando ao brasileiro novas
zonas de sensibilidade. Modelos cuidadosamente
seguidos, tanto mais alta a posição de prestígio na

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 36


Doçaria e Civilização: a preservação do fazer

Roberto Benjamin

A culinária – e especificamente a fabrico constantemente aperfeiçoado.


doçaria – tem sido focalizada quase Daí foi trazido para o Brasil.
sempre do ponto de vista etnográfico Os escravos africanos já trabalha-
ou como um campo de “artes meno- vam no eito e na moita nas ilhas atlân-
res” no que diz respeito à confeitaria e ticas quando foi oficializado o tráfico
à apresentação estética dos produtos. para o Brasil. Alguns historiadores afir-
Do ponto de vista do trabalho mam que Duarte Coelho, ao chegar à
etnográfico, vale ressaltar a necessida- sua capitania, em 1538, já encontrou a
de de apreciar e registrar não apenas o cana-de-açúcar plantada na vizinha
produto – como resultado material – feitoria de Itamaracá.
mas o contexto de sua produção e con- O uso do açúcar não fazia parte
sumo e, sobretudo, o processo do fa- da culinária africana dos elementos tra-
zer, que integra o campo das atuais pre- zidos para o Brasil, o que explica, por
ocupações do estudo da cultura, a nível exemplo, que Orixalá continue a co-
internacional, sob o patrocínio da mer o seu inhame com mel nos terrei-
UNESCO e da Organização Mundial da ros do Recife. Também os aborígenes
Propriedade Intelectual, que é o da pre- não conheciam o açúcar. Há registros
servação dos bens imateriais. do consumo de mel silvestre referente
No princípio, o doce era o néc- a diversas etnias indígenas e até das fes-
tar, a frutose e o mel. As abelhas e ou- tas de coleta do mel, como entre os
tras melipônias precederam ao homem guajajara, do vale do Mearim, no
na história da criação e estão presentes Maranhão (conforme registro feito por
em todos os continentes. A invasão ára- Charles Wagley, da Universidade de
be trouxe do Levante, como diziam em Colúmbia, entre dezembro de 1941 e
sua imprecisão os historiadores antigos, março de 1942)1 . As entidades cabo-
a cana e o fabrico do açúcar para o clas das religiões afro-indígenas, como
norte da África, situando-os sobretudo a jurema, costumam pedir mel. Foi,
no Marrocos, de onde passaram aos portanto, a tradição portuguesa que
reinos mouros da Península Ibérica e estruturou a cultura culinária do Brasil.
sarracenos da Sicília. O estabelecimen- Vale ressaltar que essa culinária
to de feitorias portuguesas e a conquis- portuguesa estava impregnada da con-
ta de Ceuta tinham, entre outros, inte- tribuição moura, que pode ser
resses no comércio internacional do verificada no próprio vocabulário de
açúcar. Não há informação de que ape- raízes árabes relativo ao açúcar: açú-
sar da invasão marroquina a cana-de- car, álcool, alfenin, alfelô.
açúcar tenha sido levada para o vale Também os judeus estavam pre-
do rio Níger. Assim, a região do Golfo sentes no Marrocos e na Península Ibé-
da Guiné, do Congo e da costa do rica e desde que se tem notícia, inte-
Índico, vieram a conhecer o açúcar atra- ressados na produção e comercialização
vés dos navegadores portugueses. A do açúcar, fossem eles chamados de
cana-de-açúcar foi aclimatada na Ilha __________________________

da Madeira, no Cabo Verde e, especi- 1


Citado por Joaquim Ribeiro (Folclore do açúcar.
almente, na Ilha de São Tomé, sendo o Rio de Janeiro: CDFB, 1977. 227p. il. p. 82).

37
sefaraditas, cristãos-novos, judeus-holandeses, Tal como em outras atividades culturais, a
gente-da-nação etc. idéia da transmissão pela oralidade, que no caso
As navegações portuguesas para as Índias implica em vivência, não dispensa o registro es-
foram responsáveis pela incorporação das especi- crito. Os livros de culinária e etiqueta cortesãs são
arias, então exóticas e hoje presentes no cotidia- muito antigos em Portugal e chegaram ao Brasil,
no da cozinha brasileira: cravo-da-índia, canela- onde circularam, por exemplo, manuais de con-
do-Ceilão, alcaçuz, pimentas, açafrão etc. feiteiro. Por outro lado, enquanto as mucamas e
negras-de-ganho recriavam, de memória, os seus
Como já destacava Gilberto Freyre, as cunhãs quitutes, as sinhás-moças casadoras se preveniam
e as mucamas aprenderam rapidamente a satisfa- construindo/elaborando os seus cadernos manus-
zer o gosto dos senhores na cama e na mesa. Por critos de receitas, alguns dos quais foram resgata-
suas mãos foram introduzidas na doçaria o coco, dos por escritores como GF, Câmara Cascudo,
a mandioca, as frutas, o amendoim e as castanhas. Mário Souto Maior e, mais recentemente, dona
A produção doceira foi uma tradição famili- Nininha Carneiro da Cunha, em seu magnífico li-
ar no espaço rural e urbano, pas- vro Comida & tradição: receitas
sada de geração em geração pela de família. (Recife: edição póstu-
vivência caracterizada pela ma pela família Carneiro da Cunha,
oralidade. Com o processo da ur- 2002, 292 p. il.). Assim, a trans-
banização surgiram as quituteiras missão intergeracional tem sido fei-
e vendedoras ambulantes em ati- ta tanto pela oralidade/vivência
vidade de complementação de como pelo texto escrito, em rodízi-
renda tanto das negras de ganho os permanentes.
libertadas pela Lei dos Tiveram um impacto devas-
Sexagenários ou alforriadas sob tador sobre a prática da culinária
outros pretextos, quanto de famí- e, mais especificamente, da
lias da decadente aristocracia. doçaria, entre nós as grandes mu-
Gilberto Freyre – em várias danças sociais e culturais do sécu-
oportunidades – chama a atenção lo XX, especialmente aquelas rela-
para a continuidade, no Brasil, da tivas ao papel social da mulher na
atividade culinária dos mosteiros, família e na sociedade brasileira,
conventos e casas de recolhimen- que abriram a escolaridade e o
to de Portugal, de que são teste- mercado de trabalho, as profissões
munhas também a nomenclatura liberais e outras de exercício fora
de certos doces (papos-de-anjo, do lar. O impacto ocorreu, tam-
manjar-do-céu, beijos-de-freira, bém, entre as freiras, seja por con-
pão-de-ló-do-céu, bolo-padre- Matéria publicada no Diario de ta da redução da demanda de jo-
Pernambuco, edição de 24 de
joão, sonhos-de-freira e toucinho- junho de 1887. vens vocacionadas para a vida
do-céu), fato registrado pelos via- religiosa, seja em razão da a pas-
jantes estrangeiros como Tollenare, Maria Graham sagem da vida conventual enclausurada para as
e Henry Koster. atividades externas de pastoral e de assistência
No século XIX, com a abertura dos portos e social (a partir do Concílio Vaticano II).
as presenças inglesa, francesa e austríaca nas prin- Vale ressaltar, também, a mudança de há-
cipais cidades brasileiras foram introduzidas a pas- bitos alimentares com as práticas das refeições
telaria e a confeitaria como profissões. Data deste fora de casa, quebrando a continuidade da con-
período uma pouco reconhecida presença ingle- vivência familiar e de produção doméstica de
sa, numericamente escassa, mas com uma contri- alimentos.
buição marcante de sua mal-falada culinária, tan- Não se pode esquecer o processo de reno-
to nas chamadas “comidas-de-panela” em que se vação tecnológica, com a introdução de equipa-
salientam o rosbife e os cozidos e assados de car- mentos inovadores como o já incorporado fogão
neiro, como nos pudins e bolos (de bacia, inglês, de gás (que eliminou a panela de cerâmica utilitá-
de frutas). ria), refrigeradores e congeladores (que dispen-

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 38


sam outros processos de conservação dos alimen- zar a tradição da boa cozinha nordestina,
tos) e os fornos de microondas. O processo de hoje em perigo de vida. A velha cozinha
globalização que vem subsidiar os novos hábitos pernambucana: a do pitu, a do peixe-de-
alimentares com a introdução dos alimentos in- coco, a dos bolos, dos doces de caju, araçá,
dustrializados e das redes de comida-pronta e da goiabada. Não nos envergonhemos deles –
entrega a domicílio (os chamados pedantemente peixes, bolos e doces segundos receitas que
de “delicatessen”, “fast-food” e “delivery”) proce- nossas avós nos deixaram por escrito ou na
dentes de estilos culinários de países hegemônicos tradição oral das famílias ou das negras ve-
nesta área como os Estados Unidos, a China, o lhas cozinheiras. Tampouco nos envergonhe-
Japão e a Itália. mos delas – as negras velhas cozinheiras,
A adesão masculina à prática da culinária, superiores a quanto mestre-cuca estrangei-
que se propala como uma novidade do século ro, a quanto pasteleiro francês ou italiano
XXI, não promete contrabalançar a ausência da apareça nos jornais com anúncio de novida-
mulher. O modismo amador volta-se para a pre- de de mesa e sobremesa.” (Gilberto Freyre.
paração de pratos exóticos que satisfazem aos Região e tradição. Rio de Janeiro, José
delírios da fantasia de quem antes não teve aces- Olympio, 1941. 264p. p. 212).
so às cozinhas e os novos profissionais que recu-
sam o título de “cozinheiros” ou os trocam pela Tem se pensado a preservação da tradição
denominação de “chefs-de-cuisine” “somelier” e da culinária através da publicação dos manuscri-
“garde-manger”, procedentes tanto da classe mé- tos das famílias tradicionais, como fizeram Gilber-
dia formados em escola de gastronomia da Euro- to Freyre (para Pernambuco), Mozart Soriano
pa, como os que se fizeram a partir da lavagem Aderaldo (para o Ceará), Zelinda Lima (para o
de pratos em restaurantes modestos, esnobam a Maranhão), Bariani Ortêncio (para Goiás) e ou-
culinária tradicional ou têm a pretensão de insti- tros. Alguns desses textos manuscritos conservam
tuir uma “nouvelle cuisine” nordestina onde a tra- unidades de medida tais como a libra, a meia, a
dição está completamente ausente. Diante deste quarta, os quartilhos, o celamin, o arrátel e im-
quadro, as palavras de Gilberto Freyre em Região precisões como “uma pitada de sal”, “sal o quan-
& Tradição e no Manifesto regionalista assumem to baste”, “canela ao gosto” etc., para não falar
um tom profético-apocalíptico. do “ponto”: ponto-de-pasta, ponto-de-espelho,
A descontinuidade das tradições culinárias ponto-de-fio, ponto-de-voar, ponto-de-bala que
não quebra apenas o elo da transmissão nenhum inexperiente iniciante da culinária será
gastronômica entre as gerações, rompe também a capaz de acertar.
cadeia de atividades correlacionadas relativas a É preciso, portanto, se queremos levar adi-
técnicas, artes, usos e costumes. Os serviços de ante a preservação, passar da pesquisa etnográfica
porcelana “Companhia das Índias” ou “Limonges” de documento, ou do simples registro etnográfico,
saem das mesas familiares para as paredes dos para a pesquisa-ação, isto é, promover sistemati-
antiquários. Toalhas de banquete não têm mais camente a execução das receitas culinárias tradi-
uso, as rendeiras e bordadeiras ficam sem merca- cionais, incentivando a realização de treinamen-
do, o artesanato da funilaria (que executava os tos para que se possa superar a quebra do modo
criativos projetos das formas) e o artesanato em da transmissão oral/vivencial. Tal atividade não
madeira (que estruturavam a fantasia criativa da dispensa a continuação da coleta de receitas, es-
arquitetura dos bolos confeitados para ocasiões pecialmente de áreas pouco presentes nas publi-
especiais) estão a desaparecer. Não são mais utili- cações já existentes como, por exemplo, das tra-
zados os vazados e rendilhados em papel, que dições sertanejas no preparo tanto das
forravam bandejas a prateleiras. Do alto dos edifí- comidas-de-panela como especialmente, dos do-
cios não se escuta o pregão das quituteiras... ces confeccionados com frutas e outros ingredi-
Haverá no mundo globalizado um nicho de entes que poderiam figurar entre os que Josué de
mercado para a culinária regional brasileira? Castro chamou de alimentos bárbaros (os doces
de babosa, de maracujá silvestre, de mandacaru,
“Procuremos, num esforço que talvez não o capilé de tamarindo, os licores de várias espéci-
resulte inteiramente em inutilidade, valori- es da flora da caatinga).

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 39


Outra preocupação que deve ser levada em tos, cocadas, doce-japonês, raspa-raspa, suspiro,
conta é a da extinção de espécies da flora utili- bolinho-de-goma estão nas ruas. A oferta prosse-
zadas como matéria-prima ou como especiarias gue porque há mercado. Certamente é preciso
na nossa culinária: é recente a reprodução da questionar as condições de higiene da aquisição
mangaba pelos institutos de pesquisa agronômi- da matéria-prima, processamento e comercialização
ca face o seu iminente desaparecimento decor- destes alimentos (o Projeto Acarajé 10 é uma ex-
rente da destruição dos eco-sistemas dos tabu- periência a ser levada adiante).
leiros costeiros do Nordeste; outros vegetais, Em outro contexto, a culinária regional en-
como o araçá, a guabiroba, a ubaia, a contra mercado como indicador de identidade
massaranduba, o murici, o cambará, não têm sido cultural a nível de resistência à invasão globalizante
objeto de preocupação. dos alimentos alienígenas. Registram-se exemplos
A transmissão do conhecimento necessita do nas diversas classes sociais e regiões, tais como o
fomento à produção e de divulgação sistemática. cachorro-quente e o bolo-de-rolo, o acarajé, o
O mercado, por reduzido e invadido, ainda existe. pão-de-queijo e o churrasco. Em alguns casos a
O retorno dos tabuleiros e carrocinhas de vende- permanência dos usos alimentares tem implicado
dores ambulantes de quitutes, provocado pela ne- na conservação dos aspectos correlatos: a cuia do
cessidade de complementar a renda ou como al- chimarrão e do terêrê, a panela-de-barro da
ternativa à economia formal, revela não apenas a moqueca-capixaba e a cuia do tacacá.
retomada de uma prática cultural do passado, tor- O alimento convertido em ícone da região,
nando evidente um saber que parecia esquecido. desperta a curiosidade e o interesse do turista que,
Revela, também, a permanência do sabor da tradi- muita vezes, superando os temores relativos às
ção no desejo do consumidor, que continuou fiel condições de higiene e outros cuidados com a
aos gostos ancestrais – mungunzá, cavaquinho, ca- saúde, acaba incorporando entre os seus, os pala-
chorro-quente (e não hot-dog), nego-bom, piruli- dares exóticos.
A partir da degustação pelo tu-
rista, pode vir a ser despertado um
interesse internacional e o que era
uma característica da cozinha local
é introduzido no mundo globalizado,
na contra-mão da oferta. É preciso,
porém, não ter ilusões de que todo
o patrimônio cultural culinário pos-
sa resistir por si só, sobreviver e, ain-
da, exportar. A fim de levar adiante
a transmissão do conhecimento e o
fomento, é indispensável que a pes-
quisa possa ir além do registro docu-
mental, que é imprescindível, pas-
sando para uma etapa de
sistematização. Para tal propomos a
elaboração de um sistema

1 2

3 4

1. Saboreando o alfenim.
2. Vendedor de cavaquinho.
3. Doce-japonês.
4. Sorvete raspa-raspa.

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 40


classificatório, do tipo usado para outros fatos cul- __________. Presença (A) do açúcar na formação
turais, como a literatura oral, fixando-se os ele- brasileira. Rio de Janeiro: Instituto do Açúcar e do
mentos essenciais à caracterização de cada tipo Álcool, 1969. 212p.:il.
que sejam invariantes e os elementos que vão __________. Região e tradição. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1941. 264p. il. (Documentos brasileiros, 29).
sendo incorporados e variam em cada versão.
Tal sistema permitirá relacionar os fatos culinári- NASCIMENTO, Braulio do. Invariantes, paráfrasis y
variantes en la literatura oral. In: Anales de literatura
os do ponto de vista ecológico, demarcação de
hispanoamericana, Madrid, Universidad
região ou comunidade, sua procedência, época Complutense, 2001, 30: 37-51
do surgimento da variante e, em alguns casos, ORTENCIO, Valdomiro Bariani. A cozinha goiana,
até da autoria. estudo, receituário. Rio de Janeiro : o autor (s.d.),
346 p. il.
QUEIROZ, Rachel de. O não me deixes: suas históri-
as e sua cozinha. São Paulo: Siciliano, 2000, 173p.
RIBEIRO, Joaquim. Folclore do açúcar. Rio de
Janeiro: CDFB, 1977. 227p. il.
SOUSA, Sophia de, pseud. Real confeiteiro portugu-
ês e brasileiro. Lisboa: Livraria Clássica de A. M.
Teixeira, 1904 V, 404 p.
SOUTO MAIOR, Mário. Presença do alfenim no
Acima: o bolo-de-rolo. Nordeste brasileiro. Recife: Museu do Açúcar,
Ao lado: a moqueca capixaba. 1969.p. 59-65:retrs. Separata de: Revista do Museu
do Açúcar, n. 3, 1969.

BIBLIOGRAFIA
ADERALDO, Mozart Soriano. Velhas receitas da
cozinha nordestina. 2. ed. Fortaleza: Universidade
Federal do Ceará, 1982. 99p.
CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimenta-
ção no Brasil. Editor: São Paulo: Ed. Nacional, 1967,
v. 1, 1968. 2v.:il. (Brasiliana; v. 323, 323A).
__________. Sociologia do açúcar pesquisa e
dedução. Rio de Janeiro: Instituto do Açúcar e do
Álcool, 1971, 479p.
CASTRO, Josué de. Geografia da fome, 8. ed. São
Paulo: Brasiliense, 1963, 2 vols. 402 p.
CATHARINA, Jeronyma. O confeiteiro pratico
portuguez. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves;
Paris, Lisboa: Livrarias Aillaud e Bertrand, s.d.
O COZINHEIRO, confeiteiro, e licorista moderno.
Lisboa : Typ. de Mathias Jose Marques da Silva, 1849
328, [30] p.
CUNHA, Nininha Carneiro da. Comida & tradição:
receitas de família. Recife: edição póstuma pela
família Carneiro da Cunha, 2002, 292 p. il.
FREYRE, Gilberto. Açúcar: em torno da etnografia,
da história e da sociologia do doce no Nordeste
canavieiro do Brasil. 2. ed. aum. Rio de Janeiro:
Instituto do Açúcar e do Álcool, 1969. 286p.:il.
(Coleção canavieira; 2).
__________. Manifesto regionalista de 1926.
Recife: Ed. Região, 1952. 78p. / Maceió: Universida-
de Federal de Alagoas; Recife: Instituto Joaquim
Nabuco de Pesquisas Sociais, 1976. xxiii, 73p.

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 41


A Formação da Culinária Brasileira

Leticia Monteiro Cavalcanti

Mestre Gilberto Freyre foi o pri- to de defesa ou no preparo da comida.


meiro pensador a verdadeiramente va- Assavam carnes e peixes no moquém –
lorizar nossa gente, nossos jeitos de ser, espetos paralelos, sobre a brasa, pre-
nossas manifestações culturais – dança, cursores dos churrascos de hoje. Como
canto, musica, pintura, artesanato, reli- tempero usavam pimenta. Às vezes
gião, sonhos, superstições. Culinária pura. Às vezes numa mistura com sal a
também – feita de sabores novos, jun- que chamavam ionquet – colocada di-
tando temperos, ingredientes técnicas retamente na boca, junto às carnes.
e experiências da cultura do índio, do Raramente cozinham os alimentos na
negro e do colonizador português. água. Quando o faziam, era em
Celebrando agora os 70 anos de vasilhames de cerâmica. Não conheci-
Casa-Grande & Senzala. Livro genero- am fritura – técnica aprendida bem
so, tolerante, forte e belo (Darcy Ribei- depois, com os portugueses, que usa-
ro), de forca revolucionaria e impacto vam para isso óleos vegetais (de oliva)
libertador (Antonio Candido). Seguin- e gordura animal. O doce em sua cul-
do o próprio roteiro traçado por Gil- tura vinha do mel de abelha. Consumi-
berto Freyre, referimos a seguir os há- do puro, como simples gulodice. Ou
bitos alimentares de cada uma dessas misturado a raízes e frutas, no preparo
três culturas. de bebidas fermentadas – como alue,
A cozinha de nossos índios era acui e tiquira. Alem do cauim, claro.
composta de carne, peixe, legumes, A cozinha dos escravos não con-
ervas, milho, muita mandioca e alguns seguiu, por aqui, reproduzir inteira-
grãos. Folhas não. A essas folhas cha- mente os sabores da terra distante. Era,
mavam cumbari, comida de brincadei- com todas as limitações da condição
ra – leve sem sabor, sem sustança. As social a que estavam reduzidos, uma
mais de 900 tribos comim o que a terra culinária de senzala. A partir de mea-
lhes podia oferecer. Nas regiões perto dos do século XVI, e por mais dois sé-
do mar e dos rios – peixes, ostras, me- culos, 3 milhões e 700 mil negros che-
xilhões, ameijoas, cernambis. Mais para garam por aqui. Os de Pernambuco
o interior – animais das florestas, frutos vindos, todos, de Angola. Aos poucos
e raízes. Nas sertanejas – mandioca, foi diminuindo a população indígena,
farinhas, milho e fubá. Eram então 5 enquanto aumentava a população ne-
milhões de índios, vivendo em territó- gra. Sobretudo porque o estagio cul-
rio razoavelmente determinado. Não se tural desses negros era superior ao do
deslocavam à procura de alimentos, indígena em quase tudo – agricultura,
salvo raríssimas exceções – como no mineração, criação de animais. No ar-
tempo do caju ou da pesca de alguns tesanato usavam madeira, ferro e ce-
peixes. Colhiam as frutas, mas não as râmica. Na culinária também. Domi-
plantavam. Conheciam o fogo e sabi- navam técnicas de cocção, grelhados,
am acende-lo, pela fricção de varas – assados, evaporados e defumados.
que o choque pelo sílex veio só com os Conservavam as carnes com sal, pi-
portugueses . Esse fogo era usado para menta e ervas aromáticas. Para eles
aquecimento de ocas, como instrumen- caca era oficio, orgulho e divertimen-

42
to. Caçar conferia dignidade ao congo (caçador). da adotando utensílios que os europeus não co-
Faziam pirões e farinhas de sorgo. Da fécula fa- nheciam – panelas de barro, colher-de-pau, pi-
ziam papas. E usavam muito arroz. Preferiam o lões, urupemas, cuias, cabaças, ralador de coco.
alimento dissolvido – ate porque, enquanto na E, sobretudo, tiveram que se adaptar aos ingredi-
casa-grande se esfregava os dentes com tiara entes da terra. Esquecendo maca, pêra, pêssego,
magna, restava aos escravos apenas alho. Era amêndoas, pinhões, cravo, canela e gengibre. E
comum, para esses escravos, chegar aos 40 anos adotando novos produtos como castanha, amen-
sem um dente na boca. Tudo como conta no doim, coco, milho, mandioca. Alem das frutas tro-
Trattado Único da Constituição Pestilencial de picais – caju, goiaba, araçá, banana, mangaba,
Pernambuco do medico Joam Ferreyra da Rosa, cajá. Tudo que a mão da cozinheira portuguesa.
provavelmente a primeira referencia bibliográfi- Nunca se deixou alargar pela banha de tartaruga
ca (1653) da nossa alimentação. Como os índi- nem pelo azeite de dendê , como disse Gilberto
os, também esses escravos não conheciam Freyre. Com características distintas e muito bem
frituras. E bebidas so fermentadas – feitas de pal- definidas – uma no sertão, outra no agreste, mais
meira (dendê), sorgo e mel de abelha.Alambique uma na mata e outra do mar. Mas todas forman-
não, que isso e coisa de europeu. Apesar de to- do, em seu conjunto, o retrato de uma cozinha
das as limitações, uma serie de novas receitas foi que e simples, generosa, autentica, refinada,
nascendo – jacuba, rapadura ou comidas de mi- irredenta, forte e afirmativa como nosso povo.
lho (e coco) – como canjicas, munguzás, angus e
pamonhas. Faltando so dizer que comida de es-
cravo era sobretudo de alegria. Comer acabava
sendo um momento de festa, em meio a tanto
sofrimento. Misturando, na mesa, essa comida a
cantoria, dança, batuque crenças e saudades.
A cozinha portuguesa tentou reproduzir, por
aqui, os ambientes de sua terra distante. Trouxe-
ram curral,quintal e horta. Com tudo que nossos
índios nunca haviam visto. No curral – boi, porco
domesticado, carneiro, bode, pombo, pato, gan-
so. Mais galinha e, com ela, a grande novidade
alimentar que foi o ovo. Cão também – sem duvi-
da o animal domestico mais disputado por nossos
índios. No quintal – cidra, limão, laranja, lima,
melão,melancia, maca, figo. Na horta – acelga,
alface, berinjela, cenoura, coentro, cebolinha, cou-
ve. As senhoras portuguesas trouxeram com elas
suas cozinhas, tal e qual eram em Portugal. Com
chaminés francesas fogões, fumeiros, pesados
tachos de cobre, caldeirões, alguidares, potes. Mas
tiveram aqui que fazer grandes adaptações. Pri-
meiro dividindo a beira do fogão, democratica-
mente com negras e índias. Depois aprendendo
com os índios que, nesse nosso clima tropical, o
melhor lugar para colocar a cozinha era mesmo
fora das casas. Embaixo de puxados. Com o que
acabaram reproduzindo quase integralmente,
meio sem querer, a cozinha indígena – com jirau
(espécie de mesa com varas de madeira que ser-
via para cortar elimpar as carnes e, também, para
guardar alimentos) e trempe (tripé de pedra ou
ferro onde se apoiava os paneloes no fogo). Ain-

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 43


Acarajé 10: sucesso em Salvador – Bahia

Celso Duarte Carvalho Filho


Engenheiro agrônomo (UFBA). Mestrado e doutorado em Ciência e Tecnologia de Alimentos (UNICAMP). Professor da
Faculdade de Farmácia - UFBA (graduação e pós graduação). Professor do curso de pós-graduação do SENAC – BA.
Consultor técnico estadual e multiplicador do programa alimentos seguros (PAS).

O acarajé é um bolinho de ori- Sendo assim, o presente estudo


gem africana feito de feijão fradinho teve como objetivo apresentar os re-
moído, batido posteriormente com ce- sultados obtidos através do trabalho re-
bola ralada, água e sal e frito em azeite alizado pelo “Programa Acarajé 10” na
de dendê. A iguaria é vendida em ta- cidade de Salvador – BA, com 108
buleiros nas ruas de Salvador desde o baianas de acarajé. O Acarajé 10 re-
início do século passado, e vem reche- presenta um dos mais importantes tra-
ado com complementos: vatapá, balhos desenvolvidos pelo Programa
caruru, salada, pimenta e camarão. Alimentos Seguros (PAS) no Estado da
Trata-se de um dos mais impor- Bahia, e tem a coordenação do
tantes símbolos da cultura do Estado da SENAC-Bahia.
Bahia e uma iguaria apreciada por A metodologia utilizada foi a reali-
baianos e turistas que ficam encanta- zação de visitas à área de produção e ao
dos com o sabor, aroma, cor e a forma ponto de venda (tabuleiro), onde foram
descontraída de degustar este bolinho observados os seguintes itens: higiene
que é frito na hora e consumido nas pessoal; higiene do ambiente, equipa-
ruas e parias de capital baiana. O mentos e utensílios; higiene dos alimen-
acarajé também é um dos elementos tos; preparo da solução clorada para
místicos da culinária do candomblé, desinfecção de ambiente,utensílios e ali-
representando uma das principais mentos; uso do álcool gel na desinfec-
oferendas usadas nos rituais para os ção de mãos e utensílios; uso de caixa
orixás, especialmente de Iansã, mulher isotérmica no transporte e manutenção
de Xangô. Este fato é de suma impor- da temperatura dos produtos; uso do
tância para a preservação da forma de termômetro no controle de temperatu-
elaboração e da cultura da comercia- ra; preparo adequado do camarão;
lização deste produto em tabuleiros. porcionamento dos produtos; compra e
A história do acarajé se confunde armazenamento de matéria-prima. As
com a história do Brasil. Foi definido visitas e coleta dos dados foram feitas
como “pão de comer” pelas negras es- após treinamento teórico das baianas em
cravas alforriadas e que passaram a dois módulos: um sobre conceitos ge-
comercializar o produto e outros rais de boas práticas de produção de ali-
quitutes em tabuleiros como forma de mentos (carga horária de 6h) e outro
sobrevivência, logo após a libertação contemplando formas de preparo do
dos escravos. O nome “acarajé” deriva acarajé e seus complementos (carga ho-
do Iorubá, língua de origem africana rária de 8h).
que por sua facilidade era falada por Na observação dos dados, foram
todos no tempo dos escravos, e a com- encontrados altos índices de não con-
posição se dá através das palavras formidades na primeira visita, apesar de
“acará”, que significa pão, e “ajeum” em alguns itens apresentarem confor-
que é o verbo comer. midades acima de 50% (uso do álcool

44
gel com 57% e o preparo correto do camarão com
65%), talvez em função do treinamento teórico, e
na segunda visita todos os índices de conformida-
de melhoraram sensivelmente, apresentando bai-
xos índices de não conformidades (uso do termô-
metro com 17% e uso de caixa isotérmica com
14%), demonstrando assim a importância deste
tipo de trabalho para a produção e
comercialização de alimentos seguros, mesmo
sendo de produção artesanal e comercialização
nas ruas de forma improvisada.
As baianas que cumpriram com as confor-
midades estabelecidas pelo Programa receberam
um selo de qualidade, personalizado e com vali-
dade anual, como forma de identificação e valo-
rização por terem participado do treinamento e
terem assimilado os conceitos técnicos para tor-
narem seu alimento seguro e com qualidade.

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 45


O Chouriço: uma doce dádiva

Antônio de Pádua dos Santos


Professor de Educação Física da rede estadual de ensino do Rio Grande do Norte. Especialista em Educação motora
escolar - UFRN. Mestrando em Ciências Sociais - programa de pós-graduação da UFRN.
Julie Antoinette Cavignac
Graduada em Antropologia na Université de Bordeaux II e na Universidade de Nanterre (Paris – França). Doutora em
Etnologia e Sociologia Comparativa pela Universidade de Paris X – Nanterre (França). Coordena no Rio Grande do Norte
o projeto de extensão “Tapera: em busca dos lugares de memória” e o projeto de pesquisa “Remanescentes indígenas e
afro-descendentes do Rio Grande do Norte”, iniciado em 2001.
Maria Isabel Dantas
Graduada em Educação Artística pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Especialista em Artes Cênicas pela
Universidade Federal de Pernambuco. Mestre em Ciências Sociais pela UFRN. Professora de Arte, Museologia, História da
Arte, Cultura e Sociedade, Fundamentos da Antropologia do CEFET-RN. Diretora do Flas e Pantomimas (grupo de teatro
do CEFET-RN).

“Les présents scellent le mariage, e do sangue, foram levadas para Améri-


forment une parenté entre les deux ca Latina. Em diversas regiões do Brasil,
couples de parents. Ils donnent aux o sangue é associado ao sal, à gordura e
‘deux cotés’ même nature, et cette a outros temperos apimentados para pre-
identité de nature est bien manifestée paração de lingüiças de sangue, morce-
par l’ interdit qui, dorénavant, las ou chouriços. No sertão nordestino,
tabouera, depuis le premier encontramos uma variante: o sangue
engagement de fiançailles, jusqu’à la serve para elaboração de um doce: o
fin de leurs jours, les deux groupes de chouriço. Para nossa descrição, tomare-
parents qui ne se voient plus, ne mos o exemplo de um chouriço feito na
s’adressent plus la parole, mais região do Seridó, no Rio Grande do
échangent de perpétuels cadeaux. En Norte, tradicionalmente realizado duran-
réalité, cet interdit exprime, et l’ te as festividades do fim do ano.1 A pre-
intimité et la peur qui règnent entre ce paração do doce, geralmente supervisi-
genre de créditeurs et ce genre de onada por uma senhora de idade,
débiteurs réciproques. Que tel soit le envolve todo o grupo doméstico – a fa-
príncipe, c’ est ce que prouve ceci: le mília estendida –, os vizinhos e amigos.
même tabou, significatif de l’intimité Realizada durante um dia inteiro, a
et de l’éloignement simultanés, chouriçada é um momento único du-
s’établit encore entre jeunes gens des rante o qual trabalha-se e diverte-se
deux sexes qui ont passé en même muito. A festa revela laços de solidarie-
temps par les cérémonies du ‘manger dade tradicionais que existem numa so-
de la tortue et manger du cochon’, et ciedade organizada em torno da
qui sont pour leur vie également agropecuária.
obligés à l’échange de présents.”
__________________________
Marcel Mauss (1950 : 173)
1
De acordo com o Novo Aurélio – século
XXI (2002) Chouriço [De or. incerta; do lat.
salsiciuru, poss.; cf. esp. chorizo.] S. m. 1.
Práticas recorrentes nas sociedades Enchido de porco, cujo recheio é misturado
camponesas européias, a criação e a com sangue e curado ao fumo. [Sin. lus.:
chouriça. Cf. lingüiça (1).] 2. Saco longo e ci-
matança do porco e, subseqüentemen- líndrico, cheio de areia ou serradura, para ta-
te, a preparação dos derivados da carne par as fendas inferiores das portas e janelas;

46
De fato, além de ser interessante para en- A CRIAÇÃO DO PORCO
tender as práticas alimentares e festivas do sertão
nordestino, o chouriço revela uma organização so- A criação caseira do porco é ainda praticada
cial em torno do parentesco e nos mostra cami- mesmo que a sociedade sertaneja esteja abando-
nhos para entender a dinâmica da sociedade: a nando, cada vez mais, as atividades agrícolas. A
divisão sexual dos papéis sociais, a delimitação comercialização do filhote dá-se através da venda
dos espaços de trabalho e de sociabilidade, a dis- ou do estabelecimento de um contrato oral para cri-
tribuição das tarefas domésticas por faixa etária, a ação de meia. Nesse caso, o dono do animal ofere-
hierarquia e a reafirmação da autoridade no inte- ce um filhote para um parente ou amigo providen-
rior do grupo, etc. Assim, na ocasião da descrição ciar a engorda e, no momento do abate, o animal é
detalhada da matança e da transformação do por- dividido igualitariamente entre ambos, sem que haja
co em alimentos altamente perecíveis e, ao mes- circulação de dinheiro. Este aparece apenas após a
mo tempo, valorizados culturalmente, comprova- partilha e quando a carne for revendida.
mos a atualidade do velho conceito maussiano de A engorda do porco é pouco dispendiosa,
fato social total que nos ajuda a encontrar pistas uma vez que o animal recebe como alimentação
para decifrar a lógica que possibilite a transforma- os restos de comidas dos humanos. A “comida de
ção do sangue em alimento. porco” é composta de cereais, de frutas, de ra-
mas e de restos de alimentos. É costume, na re-
gião, que o criador do porco “pegue” sobras de
ETNOGRAFIA DO CHOURIÇO comida nas casas dos vizinhos e parentes que não
criam animal dessa natureza. Aliás, ao adquirir um
Apesar das mudanças ocorridas nessas últi- filhote para engordar, uma das primeiras provi-
mas décadas com o êxodo rural, quando muitas dências do criador é garantir fornecedores para a
famílias que residiam no campo foram impulsio- “comida de porco”. Esses fornecedores podem
nadas a migraram para os centros urbanos, cau- variar de três a cinco, conforme o número de ani-
sando muitos problemas, em especial a dispersão mais e do tamanho da família. Uma casa com
familiar, ainda se continua a criar porco e a fazer muitos moradores vai produzir mais “comida de
chouriço. Observa-se que essa “tradição da famí- porco” e, certamente, irá dispensar a colabora-
lia” tem sido mantida e/ou reinventada por diver- ção de alguns doadores. Esse ato de solidarieda-
sos grupos familiares em alguns municípios do ser- de cria uma relação de trocas, uma vez que o
tão seridoense, o que nos faz pensar ser esse um criador fica obrigado a retribuir aquele favor no
pretexto de preservação da memória do grupo e momento da matança do porco, seja dando uma
de uma tradição alimentar. lata de chouriço ou um ‘torrado’ da carne do por-
co, conforme veremos a seguir.

__________________________ OS PREPARATIVOS PARA A FESTA DA MATANÇA DE PORCO

chouriça. 3. Bras. Cul. Iguaria feita de sangue de porco,


especiarias e açúcar. 4. Bras. RS Parte acolchoada do No sítio Carnaúba de Baixo, nas proximida-
rabicho que passa por sob a cauda do cavalo. 5. Ant. Rolo des da cidade de Carnaúba dos Dantas, no interi-
de cabelo para altear o penteado. Para a nutricionista Célia
Márcia de Morais (2002a: 4) o chouriço “é um doce exó- or do Rio Grande do Norte, Dona Angelita Maria
tico, pastoso, de cor preta, normalmente apresentado com Dantas, viúva, sessenta e sete anos, mãe de doze
cobertura de castanhas de caju assadas, em metades, como filhos nascidos e criados no sertão, reúne, pelo
enfeite. O sabor lembra o Bolo preto, o pé-de-moleque
típico do Nordeste”. “No Nordeste do Brasil é um doce de
menos uma vez por ano, seus parentes e amigos
sangue de porco com especiarias, conhecido em Portugal para fazerem uma grande chouriçada. Geralmen-
como morcela (...) na acepção popular portuguesa dize- te, a festa acontece num período que antecede o
mos lingüiça de porco” (Cascudo 1962: 21). Os dados fo- Natal ou nas festividades do final do ano, mo-
ram sistematizados após a realização de um chouriço em
dezembro 2002, no Sítio Carnaúba de Baixo (município mento em que toda a família se reúne. Há poucas
de Carnaúba dos Dantas – RN), no domicílio de Dona ocasiões como essa, pois, cada vez mais, as famí-
Angelita Maria Dantas. A festa foi documentada pela TV lias moram em lugares distantes. Outras ocasiões
Cabugi e TV Globo e exibida no dia 22/12/2002 no pro-
grama “Fantástico”, com o título Natal do Sertão, e com para matar o porco e fazer um chouriço são ani-
direção de Geider Henrique Xavier. versários, outras reuniões familiares e festas cele-

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 47


bradas no município (Dantas 2002). Mas a inci- praticamente uma obrigação. Os vizinhos que doa-
dência maior tem sido na segunda metade do ano, ram a “comida de porco” também são chamados,
período da colheita do milho, feijão, batata e ou- assim com outros com quem são mantidos laços de
tros produtos agrícolas que são imprescindíveis, solidariedade ou uma relação de compadrio. Ainda
juntamente com os restos de comida caseira, para pode ser feita, nessa ocasião, a retribuição a algum
a engorda do porco. Segundo Dona Angelita, a convite que a pessoa tenha feito numa matança de
prática de fazer chouriço foi herdada de seus an- porco ou em outra atividade festiva. Em se tratando
tepassados e aperfeiçoada na convivência com dos amigos mais próximos, podemos dizer que o
uma chouriceira famosa da localidade2 . A matan- convite tanto pode vir dos donos da casa, como tam-
ça de porco, acompanhada da feitoria do chouri- bém dos filhos e tanto podem está relacionados a
ço, é uma atividade festiva que precisa ser prepa- laços de amizade como a favores já prestados. É
rada com muita antecedência, mesmo quando notável o caráter de retribuição presente nesse tipo
ainda não se sabe em que dia ela vai acontecer. de relação, o que fica mais explícito quando se trata
Isso porque depende de alguns fatores: do “pon- de outros convidados que não têm vínculos, nem
to” de engorda do porco, da junta das castanhas de parentesco e nem de amizade com os anfitriões.
e das condições econômicas da família para ad- Eles são chamados à festa porque já prestaram al-
quirir os outros ingredientes e os temperos. gum tipo de favor à família ou porque ela os admira.
A castanha de caju é um dos principais in- Geralmente são tratados como “convidados” e não
gredientes do doce. Na região do Seridó sua co- estão obrigados a participar nas tarefas.
lheita se dá entre os meses de setembro e outu- O marchante assume um lugar de destaque
bro. Após ser apanhada, as castanhas devem ser na matança do porco. Geralmente é alguém de
secadas antes de serem assadas, porque, no chou- confiança da família por ser acostumado a matar
riço, elas não podem estar nem verdes, nem mui- esses e outros animais domésticos. Entre todos os
to secas. Além do mais, é necessário a dona de presentes está o mexedor do chouriço que, no
casa pedir aos parentes e amigos para eles irem caso aqui relatado, é o filho mais velho de Dona
juntando latas vazias de leite, doce e margarina, Angelita a quem ela entrega, sem cuidado, o ta-
para colocar o doce. No passado, o chouriço era cho de doce. Para ajudar ao mexedor, são neces-
colocado em panelas de barro ou de alumínio. sários outros homens “dispostos” – isso supõe que
Na semana que antecede a matança de por- sejam homens que não bebam muito -, uma vez
co, a família precisa realizar as seguintes tarefas: que o trabalho de mexer o doce exige cuidado e
comprar os ingredientes e temperos para o chou- atenção e dura em torno de seis horas. No nosso
riço; assar, quebrar e tirar a pele das castanhas; caso, como a família é muito grande, oitenta a
tirar e descascar os cocos; moer e pilar os tempe- cem pessoas participam da festa.
ros e a farinha de mandioca; recolher as latas va-
zias; limpar a casa e os terreiros; juntar e rajar a A FESTA DA MATANÇA DE PORCO
lenha para cozinhar o chouriço; contratar o
marchante; alugar o tacho; e convidar as pessoas Para se fazer uma chouriçada é preciso or-
para a festa. O convite é feito a parentes (pais, ganizar a matança de um porco, na qual os convi-
filhos, irmãos, cunhados, tios, afilhados), vizinhos, dados, além de participar da festa, devem ter tam-
amigos e outros convidados. bém disposição para ajudar nas tarefas de
O convite aos parentes é parte do comprome- organização, que vão desde a preparação das
timento solidário que existe entre eles, tornando-se comidas que serão servidas durante o evento até
a colaboração na preparação do chouriço.
__________________________
Mulheres, crianças e homens têm atribuições
2
No município de Carnaúba dos Dantas existem em média específicas3 . Às mulheres engordar o porco, a pre-
mais de dez senhoras que fazem a matança de porco e o parar as comidas e o chouriço, distribuir carne do
chouriço, sendo a grande maioria ainda uma atividade
realizada na zona rural. No passado era comum a dona da
__________________________
festa contratar uma chouriceira famosa para fazer o doce.
Isso acontecia quando ela não dominava toda a técnica 3
As atividades masculinas são: apanhar e lascar a lenha para
de fabricação do doce ou não tinha condições físicas de o fogo, tirar e descascar os cocos, fazer o fogo para pelar o
dar conta de tantas tarefas, visto que o número de filhos porco e cozinhar o chouriço, matar, sangrar, esquartejar e
era muito grande. cortar em pedaços miúdos (para ser torrado) o porco,

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 48


porco e o doce, servir todos os convidados e outras Após a retirada do sangue, o porco é pela-
atividades. As crianças maiores ajudam, principal- do, cortado ao meio e as vísceras e a banha são
mente, nas tarefas desenvolvidas pelas mulheres. retiradas. Em seguida, é esquartejado. As bandas
Aos homens restam as atividades que exigem mais são penduradas para ser retirado o toucinho e a
força física, tais como: matar, pelar e esquartejar o carne despencada. Depois de despencada, a car-
porco, colher e rachar lenha, mexer o chouriço e ne será cortada em pedaços pequenos para ser
assar carne durante o desenrolar da chouriçada. torrada e assada. As costelas vão ser assadas e ser-
vidas como tira-gosto, a cabeça é doada, geral-
A MATANÇA DO PORCO mente ao marchante que por sua vez doa-a às
tratadeiras de vísceras. Uma grande parte da car-
Ao amanhecer o dia, por volta das quatro ne vai ser consumida durante todo o dia e a outra
horas da manhã, a casa acorda com a chegada do é distribuída com parentes próximos e com os vi-
marchante anunciando que veio matar o porco. zinhos que juntaram as sobras da comida para
Primeiro, é feito um fogo para ferver a água que engordar o porco e que não vão poder ir a festa.
serve para pelar o animal. Depois, os homens Saliente-se que um porco para uma chouriçada
pegam-no –, ele está em jejum desde a noite an- pesa em torno de cem quilos.
terior, no chiqueiro –, e o conduzem até o quintal
da casa. FESTA E REFEIÇÕES
A execução da morte é sumária. O
marchante, de posse de um machado, amarra o Enquanto os homens cuidam da matança do
animal nas patas traseiras para que ele fique imó- porco, as mulheres preparam um café da manhã
vel e deflagra-lhe um golpe certeiro no meio da reforçado: tapioca, pão, queijo, ovos, bolos, bis-
testa. Em seguida, aplica mais umas três macha- coitos, leite, café e frutas. Primeiramente, servem-
dadas para assegurar que o animal está morto. se os homens que cuidaram da matança do porco
Certificada a morte, rapidamente os homens co- e, depois, o restante das pessoas. Antes disso, os
locam o porco num banco para ser sangrado. O homens provam a carne do porco (rins) assado na
sangue é coletado para a feitura do chouriço. As brasa com umas boas “lapadas” de cachaça.
mulheres, geralmente, evitam presenciar a morte Logo após o café, começam os preparativos
e ouvir os uivos do porco, exceto a chouriceira e para o chouriço e para o almoço. Além da carne
dona da casa, que deve estar presente para exigir de porco torrada e do picado 5 , é servido, no almo-
cuidado em relação ao sangue. Este recebe um ço, feijão, arroz, saladas, frutas, farofas, galinha tor-
tratamento especial, uma vez que precisa ser re- rada e, às vezes, carneiro torrado. Essas carnes são
servado cuidadosamente numa vasilha para ser servidas, especialmente para as pessoas que não
utilizado no chouriço4 , não sendo permitido es- podem comer carne de porco, por ser “carrega-
tragos. Por isso, segundo o marchante, muitas ve- da”. Geralmente são pessoas que se submeteram a
zes é preciso espremer o porco para retirar todo o processos cirúrgicos, sofrem de alguma inflamação,
sangue que fica dentro de seu corpo. mulheres que estão menstruadas, idosos, crianças,
__________________________ dentre outros. O almoço é servido entre 12 e 13
mexer o chouriço, tratar com o marchante a matança do
horas. Após o almoço, as mulheres se ocupam da
porco, dentre outras. Enquanto isso, as tarefas das mulheres lavagem das loucas e depois das latas e vasilhas
vão desde cuidar e engordar o porco, colher (apanhar), as- onde será colocado o doce. Esses depósitos de pre-
sar, descascar e tirar a pele das castanhas, preparar (pilar ou
ferência devem secar ao sol para garantir que o
moer) os temperos, procurar latas vazias nos vizinhos, ami-
gos e familiares para colocar o chouriço, organizar a festa da produto não azede. A festa termina com o jantar –
‘matança de porco, moer ou peneirar a farinha de mandio- servido com o restante das comidas do almoço e
ca, raspar os cocos, receber os convidados para a festa, au- como sobremesa, o chouriço.
xiliar a ‘chouriceira’ na preparação do chouriço, preparar e
cozinhar as comidas da festa, preparar e cozinhar o chouri- A música e a dança fazem parte da festa. As
ço, distribuir e enfeitar o chouriço em latas a doar o chouri- mulheres que se envolvem com a preparação das
ço para os participantes. As crianças colaboram principal- comidas e ajudam no chouriço, de vez em quan-
mente nas tarefas que estão reservadas às mulheres.
__________________________
4
Quando não existia energia elétrica no sítio, era colocado
dentro do sangue, ainda morno, chumaços de algodão para 5
É uma preparação a base de fígado, coração, banha e tem-
ele não coagular. Agora o sangue é liquidificado. peros que é servida como tira-gosto.

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 49


do deixam a cozinha e vão dançar ou olhar os No final da tarde, a dona da casa anuncia que
que dançam. Esse momento de alegria vem sem- o doce está “no ponto”; após as amigas experientes
pre acompanhado do uso de bebidas, afinal é dia confirmarem. As atividades redobram. As crianças
de festa. são afastadas do local para evitar acidentes, sobretu-
A bebida faz parte da festa do chouriço e a do queimaduras com o doce quente. Mesmo assim,
farra é regada geralmente a cachaça, run, e às querem participam da retirada do chouriço. Como
vezes, cerveja e dura até o final do dia, momento o tacho é extremamente pesado, sendo muito com-
em que o chouriço está pronto. Os excessos são plicado sua retirada da trempe, as latas são enchidas
notáveis em alguns participantes, exceto os que com o doce ainda nela. O fogo nesse momento é
estão com a responsabilidade de mexer o doce. retirado para evitar que o chouriço pegue no fundo
do tacho. Isso torna a tarefa muito perigosa. Algu-
A RECEITA DO CHOURIÇO
6
mas mulheres experientes/cuidadosas transportam
as latas cheias em bandejas até uma mesa, enquan-
A preparação do doce requer tempo e sa- to outras vão limpando os excessos das bordas das
bedoria, uma vez que seu cozimento é lento e latas e enfeitando-as com castanhas. As crianças
gradual: chega a durar até seis horas. Trata-se de maiores participam nesse momento.
uma mistura equilibrada de sangue, banha de É chegada a hora de raspar o tacho, mo-
porco, garapa ou mel de rapadura, castanha de mento esperado por todos. Todos os convidados
caju assada e moída, leite de coco, farinha de querem provar o doce ainda quente. As crianças
mandioca e algumas especiarias como cravo, ca- e também os adultos, de colheres na mão, que-
nela, gengibre e erva-doce. rem raspar o tacho. Esse é um momento singular!
O sangue é inicialmente misturado ao leite
de coco num tacho de cobre, a uma parte da A DISTRIBUIÇÃO DO CHOURIÇO
garapa, à farinha de mandioca, à castanha e uma
parte das especiarias. A chouriceira mexe com a No finalzinho da tarde e após ter provado o
mão a mistura de cor avermelhada com cuidado doce, os convidados vão embora. Ficam os fami-
para “desemboloá-la”. Depois é que o resultado liares e alguns amigos para o jantar, momento em
dessa mistura levado ao fogo (trempe) onde será que o chouriço já está quase frio e pode ser mais
cozida e mexida gradativamente até “chegar no bem saboreado. Todos os participantes levam uma
ponto”. A partir do início da fervura, é contado o ‘prova’ do chouriço. No final todos têm a certeza
tempo de cozimento, que pode durar até seis de que uma tradição foi reatualizada.
horas. O chouriço vai ao fogo contendo uma gran- Na partilha, são agraciados todos os convi-
de quantidade de ingredientes, tais como: fari- dados, os parentes e amigos, além das latas que
nha de mandioca, leite de coco, castanha moída, serão mandadas para aqueles que não compare-
sangue, banha e temperos. O restante dos ingre- ceram à “matança do porco”. Entre esses estão os
dientes vai sendo colocado aos poucos, exceto juntadores de “comidas de porco”, de latas e ou-
uma parte das especiarias e das castanhas, que é tros pessoas que contribuíram de alguma forma
acrescida quando o chouriço está quase no “pon- para a realização do chouriço. Recebem também
to”. A tarefa de mexer o chouriço deve ser contí- uma lata do doce alguém que o dono da casa
nua. É árdua e é entregue a um ‘mexedor’ e a deva algum favor. É uma excelente oportunidade
alguns ajudantes responsáveis, dispostos e cuida- para retribuir o serviço prestado! Os parentes que
dosos para não deixarem o doce pegar no fundo residem em outras cidades também recebem o
do tacho, nem “emboloar”. Mesmo assim, a tare- doce. O chouriço restante é consumido pela fa-
fa é dividida entre quase todos os homens que mília durante, pelo menos, uma semana. Aconte-
participam da festa. A chouriceira sempre recebe ce que, levada pela sua generosidade, a organiza-
a ajuda de amigas que também têm experiências dora não guarda nenhuma lata de doce para o
na feitura do doce. seu consumo próprio. O porco, inicialmente ani-
__________________________
mal familiar, é transformado em dádiva e serve de
pretexto para circulação de bens e prestações de
6
Ver, em anexo, a receita do doce cujas medidas equiva-
lem a um chouriço de 50 rapaduras, ou seja, seu rendi-
serviços. Alimento social por excelência, o chou-
mento é de 50 latas de 500 gramas. riço contém também as marcas da cultura.

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 50


L EITURAS DO CHOURIÇO dizem respeito aos animais (Douglas 1992). O
porco é visto como um membro da família. Du-
Os clássicos, como M. Mauss (1950) ou C. rante um ano inteiro, ele convive de perto com os
Lévi-Strauss (1985) nos ajudam a decifrar as práti- humanos, compartilhando o mesmo espaço, re-
cas culinárias e de comensalidade. Momento de cebendo nome, carinho e alimentação por parte
efervescência social, a festa da partilha do porco das crianças e das mulheres – sobretudo a dona
pode ser lida como um grande Potlatch durante o da casa -, pois ele é ‘engordado’ com as sobras
qual os bens materiais e simbólicos são trocados. das refeições da família e dos vizinhos. No dia da
É a ocasião, para os organizadores da chouriçada, matança, é preciso desumanizá-lo, tratando-o
de mostrar a “força da família”, reunindo seus como um animal, entregando-lhe a um desconhe-
membros mais afastados, e de atualizar o seu po- cido para poder ser objeto de consumo. Isso pode
der econômico e sua influência local através dos explicar, em parte, porque a carne de porco e o
gastos alimentares e dos gestos de generosidade. chouriço são considerados como perigosos, pois
É preciso retribuir o esforço de cada um, distribu- são alimentos que devem ser consumidos rapida-
indo com generosidade as partes do animal e o mente e de maneira excepcional.
doce. A excepcional “fartura” presente durante a A família, motor da organização social serta-
festa que se prolonga com a distribuição do doce, neja, reúne-se ocasionalmente em torno de uma
se opõe à economia cotidiana dos recursos natu- atividade altamente perigosa e sexualmente
rais – não se deve esquecer que estamos numa marcada: a transformação do sangue e da carne
zona semi-árida e que existem problemas crôni- de porco em alimentos. Ao sangue, acrescenta-se
cos de abastecimento de água. Na ocasião da fes- o açúcar e muitos temperos; preparação que será
ta, constata-se uma reafirmação da ordem social cozida com bastante cuidados num fogo brando
fundada na ajuda mútua e da existência de uma durante horas, sob o olhar das mulheres que têm
sociabilidade na qual apesar do clima de reunião, uma grande experiência culinária. A preparação,
pode se ler fortes divisões, sobretudo entre ho- a degustação criteriosa do chouriço, acompanha-
mens e mulheres. Marcado pela excepcionalidade, da por comentários, pertence ao domínio femini-
o dia do chouriço destoa dos outros. Efetivamen- no. A cozinha e o interior da casa tornam-se luga-
te notamos a ausência da carne de porco nos car- res reservados às atividades culinárias, adotando
dápios cotidianos dos sertanejos. O perigo envol- um caráter quase íntimo, onde deve reinar a or-
vendo a transformação do animal doméstico em dem e a limpeza. Alimento essencialmente femi-
alimento raramente consumido persiste após o nino, o sangue/doce se opõe, simbolicamente, à
cozimento, pois a carne e o doce continuam sen- carne que deve ser ingerida rapidamente e na sua
do pensados como “carregados” e são proibidos totalidade sobretudo pelos homens. Preferencial-
às mulheres grávidas, aos enfermos e aos anciões. mente “torrada” ou “assada” no fogo alto, na par-
A proibição alimentar marca a entrada do animal te externa da casa, o churrasco acompanha uma
na cultura. bebida “quente” e uma efervescência que se tra-
Assim, podemos entender a chouriçada duz em excesso e desordem (barulho, dança,
como um ato essencialmente cultural, em que a comilança, bebedeira etc.). O chouriço não é sim-
natureza (sangue) é superada e transformada em plesmente um doce, mais um grande aconteci-
alimento (cultura) (Lévi-Strauss 1975). É importante mento festivo, um momento propício ao saboreio
notar que, geralmente, o manejo do sangue e da de uma doce dádiva.
carne de porco requer cuidados especiais devido
ao estatuto específico desse animal doméstico,
apesar dele não deixar de ter um estatuto ambí-
guo, pois sua carne é considerada como impura BIBLIOGRAFIA
(Leach 1989: 83-116; Millet 1995. Fabre-Vassas CASCUDO, Luis da Câmara. 1962. Dicionário do
1994). As marcas naturais – não domesticadas – folclore brasileiro. Rio, Instituto Nacional do Livro,
da feminilidade, como o sangue menstrual, en- Mec, 2 a. ed.
tram em incompatibilidade com a cozinha em Dantas, Maria Isabel. 2002. Do monte à rua: cenas
várias sociedades humanas; aqui encontramos da festa de Nossa Senhora das Vitórias. Dissertação
uma atualização do sistema das proibições que de Mestrado em Ciências Sociais – UFRN, Natal.

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 51


DOUGLAS, Mary. 1992. De la souillure: essai sur lês MILLET, Jacqueline. 1995. Manger du chien? C’ est
notions de pollution et de tabou, Paris, La bon pour les sauvages!, L´Homme, 136: 75-94.
Découverte. MAUSS, Marcel. 1950. Essai sur le don. Forme et
FABRE-VASSAS, Claudine. 1994. La bête singulière. raison de l’échange dans les sociétés archaïques, In:
Les juifs, les chrétiens et le cochon, Paris, Sociologie et Anthropologie. Paris, Puf: 142-279.
Gallimard.
MORAIS, Célia Márcia Medeiros de. 2002a. Fazer
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. 2002. Novo um chouriço é um rebuliço!!!. Natal (mimeo).
Aurélio – século XXI, Rio de Janeiro, Nova Fronteira.
____. 2002b. Chouriço Brasileiro, conforme Câma-
LEACH, Edmund. 1989. A humanidade e a ra Cascudo. Natal. 2002. (mimeo).
animalidade, In: A diversidade da Antropologia,
Lisboa, ed. 70: 83-116. SAUMADE, Fréderick. 1995. Chasseur, torero,
boucher: le triangle sémantique du sang animal,
LÉVI-STRAUSS, Claude.1975. As formas elementa- L´Homme, 136: 113-122.
res do parentesco, São Paulo, EDUSP.
LÉVI-STRAUSS, Claude. 1985. Antropologia estrutu-
ral I, Rio de Janeiro, Tempo brasileiro.

A NEXO

O QUE É NECESSÁRIO PARA FAZER O CHOURIÇO

INGREDIENTES UTENSÍLIOS

Porco Para esquentar a água (pelar o porco) e cozi-


· Sangue de porco - 2 litros ou o sangue de um nhar o doce
porco de 100 kg · 1 trempe (tripé de pedras)
· Banha de porco derretida/líquida - 1 ½ litro · 1 tacho de ferro fundido de 70 a 100 litros.

Especiarias Para matar, sangrar e esquartejar o porco


· Cravo - 400 g · Machado grande e faca
· Canela - 400 g
· Gengibre - 250 g Para cozinhar o chouriço
· Erva-doce - 400 g Para temperos:
· Pimenta do reino - 150 g (opcional) · 1 moinho manual e 1 pilão de mão grande de
madeira
Ingredientes Para preparar os ingredientes:
· Rapadura (garapa ou mel) - 50 rapaduras de · Bacias de alumínio (flandre) ou plástico
500 g · Peneiras de ferro
· Castanha de caju assada e moída - 3 kg · 1 pote de barro para derreter as rapaduras
· Leite de coco - 5 litros (12 cocos)
· Farinha de mandioca fina e peneirada - 50 xí- Para colocar o chouriço depois de pronto
caras de chá (6 kg) · Panelas de barro
· Castanhas para enfeitar as latas com chouriço - · Latas de leite em pó vazias
500 g · Depósitos de plástico ou de alumínio

Lenha
· Lenha seca de jurema preta e/ou catingueira -
½ metro

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 52


É Assim que se Faz: etnografia sobre a farinhada no Pêga
(Portalegre/RN)

Glória Cristiana de Oliveira Morais

No Brasil, a farinha de mandioca em Garanhuns/PE, e que Medeiros


é um alimento indígena que foi incor- (1997) encontrou em Lagoa Nova/RN.
porado à alimentação de brancos e Procuraremos, então, descrever as
negros que aqui vieram morar. Devido farinhadas de que participamos em
a sua durabilidade, ela foi um impor- Portalegre, buscando enfatizar sua lin-
tante e “às vezes único alimento nas guagem, as formas de divisão do traba-
atividades de penetração do sertão bra- lho, as técnicas de produção da farinha
sileiro. A farinha aligeirou a bagagem das e importância na união do grupo.
Bandeiras e excursões caçadoras de
ouro e indiada nos séculos XVII-XVIII” AS CASAS DE FARINHA E SUA
(CASCUDO, s.d., p.387). Há, inclusi- LINGUAGEM
ve, um dito popular em que a farinha
aparece como a solução para o proble- O responsável pela farinhada é
ma da fome, pois ela “aumenta o que denominado “safreiro” e a farinhada
‘tá pouco, engrossa o fino e esfria o que pode ser chamada de “safra”. As mu-
‘tá quente”. Entretanto, segundo Freyre lheres que raspam a mandioca são as
(1999), apesar de alimentar toda a po- “raspadeiras” e os homens que a arran-
pulação no período colonial e de ha- cam podem ser chamados de “homens
ver “no Brasil, uma espécie de exaltação da capoeira” ou “da arranca”.
mística da farinha de mandioca (...), [ela Outros vocábulos imprescindíveis
não passa de um] alimento hidrocar- para entender o funcionamento de uma
bonado, com proteína de segunda clas- casa de farinha:
se e pobre de vitaminas e sais minerais” Caçuá - Depósito de couro colocado
(FREYRE, 1999, p.82). no lombo do burro para carregar
Rica ou não em valor nutritivo, o mercadorias, no caso mandioca.
certo é que a farinha de mandioca faz Carga - Uma carga equivale a dois
parte das refeições cotidianas e as ca- caçuás com mandioca.
sas de farinha se tornaram comuns em Arranca - Uma arranca corresponde a
todo o Brasil. No Rio Grande do Norte, dezesseis caçuás com mandioca ou
ainda é possível encontrá-las em diver- a oito cargas. Esse termo também é
sas cidades1 . As técnicas para sua pro- utilizado para designar a atividade
dução não sofreram grandes alterações de colher a mandioca no roçado.
do período colonial aos dias atuais. Cuia - Caixa de madeira que comporta
Os habitantes de Portalegre utili- cinco litros ou 3,125kg de farinha.
zam técnicas semelhantes as que Quarta - Caixa de madeira que com-
Monteiro (1985) apresenta em seu es- porta oito cuias. Um saco com 50kg
tudo sobre a comunidade de Castainho, de farinha equivale a duas quartas
ou dezesseis cuias.
__________________________

1
Dos 166 municípios do Estado, noventa cul- Atualmente, as casas de farinha em
tivam a mandioca. Os maiores produtores são Portalegre se concentram na sede do
os de Macaíba, Touros, São Miguel de Tou-
ros, Nova Cruz, Lagoa Salgada e Brejinho (Fon- município e a principal delas pertence a
te IBGE, 1999). Raimundo Magno do Rêgo, mais conhe-

53
cido por Palé. Era uma antiga residência, transfor- balho diário de uma arranca. Por esse motivo, a
mada em casa de farinha, há aproximadamente 25 conga corresponde a doze cuias de farinha e a
anos. Outras três pertencem a comerciantes da ci- dezesseis de goma por arranca. A casa de Palé,
dade. O Pêga possui apenas uma casa funcionando, que possui oito tanques. Para ela, a mandioca não
localizada no sítio de Rosário de Freitas. Além desta, é transportada em caçuás, mas em caminhões.
há uma fechada e outra demolida. A escolha sobre Neste caso, a arranca equivale a um caminhão ou
qual delas utilizar depende da ligação do seu dono a uma carrada. E a conga sobe de doze cuias para
com o responsável pela farinhada, o que nos reme- um saco de farinha e um saco de goma, por car-
te às questões hierárquicas entre proprietários, não- rada. O valor exato de quantos caçuás leva uma
proprietários e moradores2. Aqueles que plantam carrada é o grande segredo daqueles que utilizam
mandioca nas terras de Palé fazem sua farinhada na o caminhão, pois esse montante é diretamente
casa de farinha dele, o que se repete com os outros proporcional a quanto se paga a cada um que
proprietários e plantadores. Já aqueles que plantam trabalha na casa de farinha.
em suas próprias terras escolhem a casa devido à A produção da farinha de mandioca requer
proximidade desta em relação ao seu sítio, ou por as seguintes atividades: plantar a mandioca, co-
acordos quanto ao transporte do produto. lher, transportar, raspar, cevar, lavar a massa, pren-
O valor do aluguel da casa de farinha, cha- sar, peneirar e torrar. Para melhor entender essa
mado conga, varia. A casa de farinha de Rosário divisão dessas de etapas segue abaixo uma planta
possui três tanques, número suficiente para o tra- ilustrativa da casa de farinha de Rosário de Freitas 3 :

1.Local onde as mulheres raspam a


mandioca, divide-se em: 1a – espaço
onde a amontoam, quando chega do
roçado; e 1b – espaço onde a jogam,
já raspada.
2.Cevador, máquina que processa a
mandioca, transformando-a numa
massa; somente homens operam.
3.Tanque onde a massa é misturada
com água.
4.Tanque onde duas mulheres lavam a
massa sobre uma rede.
5.Tanque onde o líquido é apurado.
5.1. Tanque onde a goma é secada.
5.2. Forno para a goma.
6.Tanque onde a massa é jogada após a
sua lavagem no tanque 4.
7.Prensa onde a massa do tanque 6 é
colocada sobre os sacos de náilon.
8.Peneira. A massa é retirada da prensa
e colocada em um cocho (8) e aos
poucos é peneirada (8a).
9.Forno para a farinha.
10. Depósito de resfriamento.
11. Cozinha.
12. Sala.
13. Quarto.
__________________________

2
A maioria dos habitantes do Pêga possui casa própria, mas
não são donos de terras cultiváveis. Eles plantam suas ro-
ças em terras alheias, no sistema 4/1. Isto é, a cada quatro
sacos de milho e feijão produzidos, um fica para o propri-
__________________________
etário. Há também o caso dos moradores, aqueles que
habitam e gerenciam o sítio de outros, sendo este um ha- 3
Vale lembrar que as dimensões aqui apresentadas não se-
bitante da cidade. guem as originais.

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 54


A disposição, a quantidade e o tamanho dos jumentos. No caso do uso de caminhões, é arran-
tanques e fornos não são padronizados. A casa de cada e jogada diretamente em sua carroceria.
farinha de Palé, por exemplo, possui oito tanques Na casa de farinha de Rosário, os homens
e dois fornos para a goma. Porém, a forma é sem- da arranca transportam dezesseis caçuás por dia,
pre a mesma: o forno da goma é quadrado; e o sendo que seis são raspados no mesmo dia e dois
da farinha redondo. ficam para o dia seguinte. Esse trabalho se repete
Como já foi dito, para a realização desse tra- de segunda a sexta-feira. No domingo, eles fazem
balho participamos da safra de Seu Cícero, em se- véspera, ou seja, arrancam duas cargas e deixam
tembro de 2001, e da safra de Seu João, em agosto na casa de farinha, para o início da raspagem na
de 2002, cujas descrições faremos a seguir. Seu Cícero segunda-feira.
mora no Pêga, onde possui um sítio, vizinho ao de
Rosário de Freitas. A grande marca da sua farinhada A RASPAGEM: A PRESENÇA FEMININA
é a presença dos familiares4. Seu João é morador e
gerente de um sítio de Palé. Sua farinhada, a maior O primeiro processo ao qual a mandioca é
de Portalegre, funciona com quase o dobro de tra- submetida na casa de farinha é a raspagem. Ela
balhadores da de Seu Cícero, vinte e dois ao todo, influencia o andamento de toda a farinhada. Caso
como mostra o quadro abaixo. as raspadeiras não consigam efetuar a sua tarefa no
tempo determina-
do, todo o trabalho
Homens na Tiradeira Ajudante Cevador/Prenseiro/
Safra Rapadeiras Forneiro atrasa 6 . Por isso,
capoeira de goma da tiradeira Peneirador
entre 23h e 24h
Seu Cícero 3 5 1 1 1 1
elas iniciam as suas
Seu João 6 9 2 1 2 2 atividades, forman-
do um semicírculo,
tendo ao centro a mandioca a ser raspada. Ficam
O PLANTIO D A MANDIOCA E A ARRANCA: sentadas em pedras ou em pequenos tamboretes,
A PRESENÇA MASCULINA ambos forrados e sem apoio para as costas; em
alguns casos, a própria casca da mandioca serve de
Em Portalegre, o plantio da mandioca é rea- forro e assento. Nessa posição, trabalham por apro-
lizado preferencialmente por homens, mas algu- ximadamente, quinze horas. São em número de
mas mulheres também participam. A mandioca é quatro a dez, dependendo da quantidade de man-
plantada entre janeiro e fevereiro, sendo arranca- dioca e do responsável pela farinhada. Com o uso
da no período da farinhada, entre julho e setem- do caminhão para o transporte da mandioca, co-
bro do ano seguinte. Na farinhada de Seu Cícero, meçam a surgir homens que também trabalham
em setembro de 2001, foi utilizada a mandioca nessa atividade. No entanto, estes não possuem uma
plantada entre janeiro e fevereiro de 2000. Na denominação particular: não se usa a palavra
atividade da arranca, os homens são divididos raspador, o que vale é raspadeira – no feminino; os
entre os que arrancam mandioca e aqueles que homens ajudam na raspagem7.
carregam os caçuás ou caminhões. Os primeiros
utilizam uma enxada para retirar um pouco da __________________________
terra e puxam a planta pelo caule; por isso, o nome 6 Na farinhada de Seu João, na casa de farinha de Palé, em
um determinado dia, a raspagem atrasou, ficando bastante
arranca. O terreno vazio, após esta etapa, é cha-
mandioca a ser raspada no dia seguinte. Para terminar de
mado capoeira; daí, a denominação homens da raspar a mandioca atrasada e a do dia, o trabalho iniciou às
capoeira. Logo depois, a colheita é arrumada em 23h da quarta-feira e estendeu-se até às 21h da quinta,
caçuás e transportada para a casa de farinha em
5 quando pararam para tomar banho e descansar, retornando
à meia-noite. Na sexta, o trabalho estava normalizado.
__________________________
7
Em Portalegre, atualmente, as raspadeiras são casadas, com
faixa etária entre 20 e 60 anos. Até 1980 eram as solteiras,
4
Os trabalhadores da farinhada de Seu Paulino, morador que a partir dos 14 anos já raspavam mandioca. Os ho-
do Pêga, também são seus parentes. Optamos pela safra mens da capoeira também eram mais jovens e solteiros.
de Seu Cícero porque essa é realiza no Pêga. Isso permitia o namoro entre eles e elas. Durante o dia,
5
Em Portalegre, o caçuá é um depósito de couro. Em Nísia rivalizavam quem terminava primeiro: a arranca ou a ras-
Floresta e em Canguaretama, ele é feito de palha. pagem. À noite, vigiados pelos mais velhos, conversavam

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 55


As raspadeiras divididem-se em dois grupos: Após ser processada, a massa é colocada em um
as capoteiras e as tiradeiras de capote. As primei- tanque, onde será misturada com água, para uma
ras fazem o capote, ou seja, iniciam a raspagem primeira lavagem. Nas casas de farinha de Rosá-
da mandioca e param na metade, passando-a para rio e de Palé, o motor é elétrico; em outras ele
as segundas que concluem essa tarefa. Na funciona a óleo diesel. Antigamente, o cevador
farinhada de Seu Cícero, são cinco mulheres que era o cangote do boi preso a uma bulandeira.
realizam essa tarefa.
No início dessa atividade, elas brincam, to- LAVAR A MASSA: A PRESENÇA FEMININA
mam café, fumam, bebem e conversam de forma
animada sobre a vida na comunidade: fulana que Como vimos na planta, a casa de farinha de
arrumou um namorado, sicrano que comprou uma Rosário possui quatro tanques. No primeiro, a massa
bicicleta ou uma geladeira... Em alguns momen- é colocada e misturada com água. O segundo pos-
tos, cantarolam músicas conhecidas, geralmente sui fixado ganchos de ferro, que seguram 1m² de
algum forró. Entre duas e três horas da manhã, tecido, conhecido por volta ao mundo, formando
quando o frio da madrugada aparece, lembram uma rede. A massa que estava misturada à água é
da rede e do lençol que deixaram no quarto. A retirada com um balde e colocada sobre o tecido.
conversa diminui o ritmo. Algumas, mesmo sen- Este processo é chamado de lavar a massa e é rea-
tadas, se curvam sobre as pernas e tiram um co- lizado por duas mulheres: a tiradeira de goma e a
chilo de cinco a dez minutos. lavadeira de massa, sua auxiliar. É uma espécie de
Como todos na casa de farinha ainda dor- bailado, em que uma mulher fica de frente para a
mem, o som que prevalece é o tilintar da faca na outra, tendo entre si o tecido. Primeiro, alternam
mandioca. Quando o dia amanhece, a mandioca rapidamente com as duas mãos movimentos que
que estava no centro é dividida em pequenos vão para a direita e para a esquerda, facilitando o
montes, os quais ficam na frente das tiradeiras de escoamento do líquido. Depois, de forma mais len-
capote. Para algumas raspadeiras, após esta divi- ta, comprimem suas mãos sobre o tecido, para o
são, o trabalho anda mais rápido, porque cada líquido escorrer completamente, ficando nos tan-
uma sabe o quanto de mandioca ainda falta ras- ques até assentar. A massa é jogada em um quarto
par. E elas raspam vorazmente. Do seu monte, tanque que fica um pouco afastado; é desta que se
retiram quinze ou vinte mandiocas e colocam so- faz a farinha de mandioca.
bre suas pernas, é o chamado colo. Caso alguma Após doze horas, o líquido já está assenta-
raspadeira termine o seu monte primeiro, geral- do, criando embaixo uma massa homogênea
mente prevalece a ajuda mútua; ou seja, ela não muito branca e um líquido de cor amarronzada
sai da casa e continua raspando a mandioca des- por cima, o qual é retirado com o auxílio de man-
tinada à outra. gueira, balde ou cabaça e jogado fora. A massa é
novamente misturada à água e passa a noite des-
CEVAR: A PRESENÇA MASCULINA cansando. Dela origina-se a goma, cuja brancura
maior será, quanto mais aquela for lavada. Por
O silêncio agradável da casa é cortado apro- volta das 6h do dia seguinte, o líquido é mais uma
ximadamente às 6h, quando o cevador é ligado vez retirado, da mesma forma que antes, e a mas-
para tritura a mandioca, deixando-a como uma sa homogênea é retirada com uma pá e colocada
massa. É um homem quem realiza esta atividade. para secar. Depois deste processo, a goma já pode
__________________________
ser consumida. Neste estágio, ela é chamada de
goma fresca, por não ter ido ao forno.
à luz do lampião ou em volta da fogueira. As pessoas que
não trabalhavam na casa de farinha vinham à tardinha, O forno para a goma é diferente do da fari-
para participar dessas reuniões, verdadeiras festas, em que nha na questão da forma e do aquecimento. O
se bebia e conversava. Era um momento de sociabilidade combustível é o mesmo, mas, para este, a lenha
do grupo, quando namoros e casamentos eram arranja-
dos. Uma raspadeira confessou-nos que, durante uma do cajueiro é rachada em pedaços menores, para
farinhada no sítio Baixa Grande, em Portalegre, fugiu com que o seu fogo não seja tão forte. O aquecimento
o seu atual esposo, oficializando a relação entre os dois. da goma acontece somente pelo calor das brasas,
Hoje, o namoro e o casamento realizam-se de forma mais
aberta, em festas nos sítios ou na cidade, e a farinhada
e a sua função é desembolar a goma, tornando-a
perdeu um pouco de sua função de cupido. uma massa ainda mais fina e seca.

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 56


O processo de lavar a massa é o que diferen- lavar a massa. Algumas mulheres sentem náuseas,
cia a goma da farinha. Enquanto a primeira é feita enquanto realizam esta atividade.
a partir do líquido – a mandipuera –, a farinha é Após ser peneirada, a farinha é colocada em
produzida a partir da massa. Todo o processo da pequenas porções no forno, onde será torrada.
goma é realizado por mulheres, da lavagem à Os que trabalham na farinhada comentam que a
torragem. Na safra de Seu João, trabalhavam duas mandioca é muito forte, pois é raspada, cevada,
tiradeiras de goma; entretanto, um homem servia lavada, prensada, e só morre de verdade no for-
de ajudante para carregar a massa de um tanque a no, quando é torrada, matando definitivamente o
outro e misturá-la à água, na primeira lavagem. seu veneno. Esta atividade é realizada exclusiva-
mente por homens, chamados de forneiros. Para
PRENSA, PENEIRA E FORNO: A PRESENÇA alguns, a mulher não deve nem mesmo subir no
MASCULINA forno, porque é preciso saber pisá-lo, já que, com
um passo errado, a pessoa pode derrubar um ti-
A massa originária da lavagem é colocada jolo e cair no fogo. Outros argumentam que o for-
em uma prensa, constituída por quatro tábuas for- no é muito quente e pode trazer sérios problemas
radas com sacos de náilon. Antigamente, não se à mulher, inclusive no sistema reprodutor.
usava este tipo de saco, mas folhas de bananeira. Depois de torrada, a farinha é colocada em
A massa é retirada do tanque com uma pá ou lata um resfriador para ser posteriormente ensacada.
e posta sobre os forros da tábua, até atingir uma Há casas de farinha cujo resfriador é um pequeno
altura de 25 a 30cm, quando coberta pelos sacos. quarto com duas janelas: uma ligando-o ao forno
Uma outra tábua fica por cima, forrada com sa- e outra ao corredor, por onde a farinha é retirada.
cos, para mais uma vez abrigar a massa. Este pro- Em algumas casas, o resfriador é um prolonga-
cesso se repete até formar todas as camadas, que mento do forno. No final da torragem do dia, por
são prensadas durante aproximadamente oito volta das 17h ou 18h, o forno da mandioca é var-
horas, para escorrer todo toda a mandipuera ain- rido. O forneiro ou outro homem, jamais uma
da restante. No final, cada camada atinge uma mulher, sobe no forno e usa uma vassoura de pa-
altura de 10 a 15cm, sendo a massa retirada da lha para retirar qualquer resquício de farinha que
prensa e colocada em um baú de madeira, onde estiver sobre ele. Depois de varrido, ele coloca a
é peneirada. E todo o processo se repete. massa preparada pela cozinheira da casa, fazen-
Uma arranca proporciona a formação de do os beijus e as tapiocas. É este o alimento essen-
duas prensas. Na farinhada de Seu João, como o cial desses estabelecimentos.
volume de mandioca é bem maior, há dois ho-
mens responsáveis pela prensa. Com isso, o tem- COZINHAR E DORMIR NA CASA
po para o líquido escorrer reduz para uma ou duas
horas; o trabalho é bem mais rápido. Hoje, o eixo Durante a farinhada, alguns trabalhadores se
da prensa, chamado de fuso, é de ferro e suporta mudam para a casa de farinha. Nela, o trabalho
uma pressão maior que os de madeira, usados em ocorre de forma quase ininterrupta, fazendo-se
prensas mais antigas. necessária a presença diária de uma cozinheira, uma
Depois de prensada, a massa é colocada em vez que o ato de comer é algo constante no decor-
um baú ou caixa de madeira, chamado de cocho. rer das tarefas. Dependendo do safreiro, há sem-
Ele possui aproximadamente 2m de comprimen- pre café, chá, tapioca e beiju para os trabalhadores
to por 1m de altura, embora o seu tamanho não e visitantes da casa. Às 9h, o lanche é servido; ao
seja padronizado. Na sua extremidade, há uma meio-dia, o almoço; e, entre 17h e 19h, o jantar.
peneira. Na safra de Seu Cícero, não há um horá- As comidas características são: farinha com feijão e
rio certo para esta função: no decorrer das ativi- carne de porco; mungunzá com toucinho e fari-
dades da casa, o cevador ou qualquer trabalha- nha; e, em alguns casos, arroz de leite com carne e
dor da capoeira também se faz responsável por farinha. Come-se no chão, entre as cascas de man-
preparar a prensa e peneirar a massa. Certos ho- dioca ou sentado próximo ao fogão.
mens não conseguem realizar esta tarefa, pois a Os utensílios que compõe a cozinha são uma
massa exala um cheiro muito forte, deixando-os mesa, um pote, quatro tamboretes e um fogão à
embebedados. Isso também acontece no ato de lenha que serve também de armário. A sala, na

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 57


verdade, é um quarto predominantemente mas- “relações interpessoais de ajuda mútua” que carac-
culino na casa, cuja decoração é à base de redes terizam um bairro rural são vividas de forma muito
penduradas em armadores. Não há móveis na intensa, durante a realização da farinhada.
casa. Na hora de dormir, as redes agrupam-se no A mudança dos trabalhadores para a casa de
pequeno quarto, umas sobre as outras. Os filhos farinha faz dela um espaço de sociabilidade, assim
das raspadeiras dormem em redes por cima das como Mccallum (1998) o conceituou: um momento
mães ou na mesma. de relação com o outro e um espaço de circulação
Na safra de Seu Cícero, praticamente toda a de valores. Esses trabalhadores “funcionam como
família passa a morar na casa de farinha de Rosá- parte de uma coletividade para a qual vive, mas da
rio de Freitas, porque quase todos possuem algu- qual retira seus próprios valores e contribuições”
ma função nessa produção. Na safra de Seu João 8, (SIMMEL, 1983, p.178). Do plantio da mandioca
os filhos não participam de forma efetiva, e como à torragem, a conversa sobre suas vidas e a dos
a casa de farinha de Palé se localiza na cidade, outros está presente. Os valores do grupo apare-
muitos dos seus trabalhadores dormem em suas cem, assim como suas perspectivas e crenças.
residências, com exceção do próprio safreiro e Os laços, consangüíneos ou não, são reafir-
algumas raspadeiras. mados na farinhada. A escolha dos trabalhadores
na sua safra dá-se entre os mais próximos, para
O PAGAMENTO usar uma expressão local. Dona Alaíde, morado-
ra do Pêga, quando questionada sobre quem tra-
O pagamento aos trabalhadores muda de balharia em sua farinhada, respondeu-nos: “meu
acordo com o responsável pela farinhada. Há a povo”. Sabemos que, neste povo, estão presentes
questão da amizade, em que se trocam favores e filhos, netos sobrinhos e amigos. Ela ainda acres-
não dinheiro: “eu ajudo na sua farinhada e você centou: “fazer farinhada depende de amizade”.
ajuda na minha”. Existe também o pagamento em Tudo isso explica por que o local onde a farinhada
farinha ou goma. E claro, o uso do dinheiro. Seu se realiza é chamado de casa, pois este espaço,
João, como trabalha com muita mandioca, paga como lembra DaMatta, possui um “código funda-
R$ 6,00 aos homens da arranca, às raspadeiras e do na família, na amizade, na lealdade, na pessoa
aos prenseiros, e R$ 16,00 aos forneiros. Cada e no compadrio” (DAMATTA, 1991, p.26).
uma das suas tiradeiras de goma recebe por pro- A farinhada e a dança de São Gonçalo são
dução, duas cuias de goma para cada saco de espaços de sociabilidade e de troca de conheci-
goma produzido. Seu Cícero, como possui uma mento. Durante essas atividades, as estórias de an-
produção menor e mais familiar, paga R$ 5,00 tigamente e a vida cotidiana se misturam. Há sem-
aos homens da arranca, às raspadeiras e aos pre uma lembrança saudosa do passado: “naquele
prenseiros, R$ 10,00 ao forneiro. Dona tempo era melhor”, “era mais animado”. Mesmo
Gumercina, sua tiradeira de goma, só recebe em assim, hoje, essas manifestações ainda carregam a
dinheiro; no caso, R$ 6,00 por arranca. função de reunir toda a família em torno de uma
atividade única, seja ela reverenciar um santo ou
AS RELAÇÕES INTERPESSOAIS DURANTE A produzir farinha e goma. Os trabalhadores que
FARINHADA dormem na casa trazem seus filhos que brincam
de raspar e de prensar a massa. E assim aprendem
O trabalho na casa de farinha é coletivo e a viver em torno desta grande casa que fabrica ali-
solidário. O forneiro ajuda as raspadeiras a separar mento para o corpo e para a alma.
a mandioca. As raspadeiras conversam e distraem
o forneiro, enquanto tomam um café. O responsá-
vel pela farinhada caminha pela casa e incentiva
cada trabalhador. A cozinheira mantém sempre BIBLIOGRAFIA
cheia a garrafa com café e a bacia com beiju. Essas ANDRADE, Maristela de Paula. Terra de Índio:
__________________________
identidade étnica e conflito em terras de uso comum.
São Luís: UFMA, 1999.
8
Enquanto os outros safreiros levam para a casa de farinha
apenas panela e rede, Seu João e Dona Francisca, sua espo- CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore
sa, chegam com televisão, som, cama, colchão e fogão a gás. Brasileiro. 9ª ed. São Paulo: Ediouro, s.d.

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 58


DAMATTA, Roberto. A casa e a rua. 4ª ed. Rio de
Janeiro: Guanabara Koogan S.A., 1991.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande e Senzala: formação
da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal. 36º ed. Rio de Janeiro: Record, 1999.
GANDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do
Brasil; História da Província Santa Cruz. Belo Hori-
zonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1980.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍS-
TICA. IBGE – Cidades@. Disponível em
<www.ibge.gov.br> Acesso em 18, 19 e 22 de julho
de 2002.
LABURTHE-TOLRA, Philippe; WARNIER, Jean-Pierre.
Etnologia – Antropologia. 2ª ed. Petrópolis: Vozes,
1999.
LANNA, Marcos P. D. A Dívida Divina: troca e
patronagem no Nordeste brasileiro. Campinas:
UNICAMP, 1995. (Coleção Momento)
MCCALLUM, Cecília. Alteridade e Sociabilidade
Kaxinauá: perspectivas de uma antropologia da vida
diária. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São
Paulo, v. 13, n. 38, out. 1998.
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a Dádiva. Lisboa:
Perspectiva do Homem/ Edições 70, 2001.
MEDEIROS, Maria das Dores. (org.). Seridó Antigo:
história e cotidiano. 2ª ed. Natal: EDUFRN, 1997.
MONTEIRO, Anita M. de Queiroz. Castainho:
etnografia de um bairro rural de negros. Recife:
Fundação Joaquim Nabuco, Ed. Massangana, 1985.
MOURA, Maria da Conceição de; TEIXEIRA, Wani
Fernandes P. Lagoa de Piató: fragmentos de uma
história. Natal: CCHLA, 1993. (Coleção Humanas
Letras, n.8).
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O Campesinato
Brasileiro: ensaios sobre civilização e grupos rústicos
no Brasil. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1976.
RIBEIRO, Darcy. Diários Índios: Os Urubus Kaabor.
São Paulo: Cia das Letras, 1996.
SIMMEL, George. Sociabilidade – Um exemplo de
sociologia pura ou formal. In: Sociologia. São Paulo:
Ática, 1983. (Coleção Grandes Cientistas Sociais).

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 59


A Culinária de Papel 1

Laura Graziela Gomes


Professora do Departamento de Antropologia e do PPGACP/UFF.
Lívia Barbosa
Professora do Departamento de Antropologia e do PPGACP/UFF e consultora da ESPM – RJ.

A presente comunicação não gostos, de cozinhas étnicas e de identi-


enfatizará a culinária real, aquela que dades culinárias diversas?
é praticada diariamente nos milhões de Além de Gilberto Freyre, Roland
lares brasileiros, mas as publicações bra- Barthes foi uma importante influência,
sileiras de culinária/cozinha – a culiná- a partir de dois de seus livros: Mitologies
ria de papel. Os motivos dessa escolha (1972) e O sistema da moda (1979), no
são de duas ordens: em primeiro lugar, qual destacou a existência de pelo me-
trata-se de compreender o significado nos “três vestuários”: o vestuário-ima-
para o aumento elevado de publicações gem, o vestuário escrito e o vestuário
variadas e diversas sobre a culinária, es- real. Inspiradas pelos textos de ambos
pecialmente a partir da década de os autores, nosso objetivo na presente
1980. Nesse sentido, tentaremos res- comunicação será primeiramente
ponder em que medida a comparação mapear a nossa culinária escrita. Para
entre livros de culinária antigos e atuais um primeiro recorte desse campo
sinalizam mudanças culturais importan- empírico nossa atenção será dirigida
tes relativas à cozinha enquanto espa- para o “livro de culinária”, entendido
ço da casa e a culinária enquanto ativi- como um objeto que merece ser anali-
dade doméstica tradicionalmente sado separadamente, tendo em vista as
feminina, restrito às mulheres e empre- diferentes re-significações que ele re-
gados na sociedade brasileira. Em se- cebeu ao longo do tempo, com especi-
gundo lugar, trata-se de relativizar a al ênfase para o momento presente.
idéia de uma globalização alimentar A pesquisa compreendeu o
entendida simplesmente como uma mapeamento de livros de culinária pu-
“mcdonaldização”. Em que medida blicados desde a década de 1930 até
essa suposição não conflita com a evi- o início do século XXI (2003). Parte do
dência de uma valorização e re-signifi- mapeamento dos livros foi realizado na
cação da culinária/cozinha, tanto como Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro
espaço (a cozinha) quanto como ativi- (262 títulos). Os demais títulos foram
dade? Como essa suposição de uma coletados na internet em sites de Edi-
homogeneidade alimentar se relaciona toras e Livrarias, perfazendo um total
com a expansão de publicações de li- de 384 títulos. A coleta deu origem a
vros e de revistas de culinária, endere- um banco de dados organizado por
çadas tanto para os segmentos AB como datas, autores, editoras, títulos, sinop-
CDE, que privilegiam a diversidade de ses, sumários e imagem das capas (para
os livros mais recentes). A partir dele,
__________________________
três abordagens distintas, porém inti-
1
As autoras agradecem o apoio recebido da mamente interligadas, apresentaram-
ESPM para o desenvolvimento da pesquisa.
se diante de nós como opções para
Agradecem também à pesquisadora Patricia
Gonçalves pela sua dedicação e colaboração uma pesquisa acadêmica sobre o livro
durante a coleta de dados. de culinária.

60
A primeira delas diz respeito ao livro de cu- no das técnicas culinárias básicas e mais gerais,
linária enquanto um objeto, um item da cultura desde aquelas de seleção/escolha dos ingredien-
material contemporânea. A segunda abordagem tes usados na preparação dos pratos, até as técni-
analisa o livro na sua constituição interna. Seu foco cas de manipulação dos alimentos (lavar, catar,
é a análise dos termos e expressões dos títulos dos escolher, amassar, misturar, ralar, descascar, cor-
livros, o sumário, os prefácios e os tipos de recei- tar, picar, moer, espremer, triturar, liquidificar, tem-
tas. Finalmente, a terceira abordagem diz respei- perar etc), incluindo as técnicas e procedimentos
to aos produtores e consumidores desses livros: de cocção (cozido, refogado, saltado, ensopado,
quem escreve, para quem escreve, bem como as frito, assado, defumado, grelhado, etc); b) Manu-
formas de circulação e apropriação do livro. Na ais e/ou livros culinários que ensinam as técnicas
oportunidade dessa comunicação iremos nos con- e procedimentos que envolvem o uso de utensíli-
centrar unicamente na segunda abordagem. os e tecnologias especiais, tais como as panelas
A análise interna dos livros de culinária per- de pressão (1950), liquidificadores (1950), bate-
mitiu-nos identificar três campos semânticos dis- deiras (1960), congelamento (1980 – 1990,
tintos, a partir dos quais pudemos relacionar o freezer), processadores (1980), fornos microondas
material de diferentes épocas entre si e (1990) , etc; c) Finalmente, temos os livros de cu-
contextualizá-lo em relação à sociedade e ao seu linária propriamente ditos, ou seja, aqueles que
público. Por conta disso, o conceito de campo se apresentam menos como “manuais gerais ou
semântico tornou-se imprescindível para o enten- práticos” e mais como “tratados culinários/
dimento de nossa metodologia de trabalho. Dife- gastronômicos” orientados para as especializações
rentemente dos signos cujos significados só po- culinárias, como resultado de uma divisão do sa-
dem ser apreendidos pelas relações que eles ber culinário, tais como o domínio de técnicas mais
mantém uns com os outros no interior de um sis- elaboradas, desde aquelas relacionadas às formas
tema simbólico, os campos semânticos constro- de preparação de determinadas classes de alimen-
em-se de forma diferente. Eles não se mantém tos (carnes, peixes, aves, frutos do mar, verduras,
em uma relação de oposição uns com os outros, saladas, legumes etc), ou de especializações em
nem derivam suas diferenças por oposição, da classes de pratos, tais como: pães & biscoitos,
mesma forma que não são claramente demarca- bolos, doces, confeitos, pastelaria, quitutes, salga-
dos. Ao contrário, campos semânticos estão per- dinhos, massas, sanduíches, etc.
manentemente misturando-se uns com os outros. É importante ressaltar que no período que
A partir da análise dos livros pesquisados procura- vai de 1930 a 2003, nem todos os itens acima
mos identificar a existência ou não de temas re- estão destacados ou devidamente explicitados no
correntes através das diferentes décadas, identifi- título dos livros e sumários. Mas consultando-se o
cados através dos diferentes objetivos que as corpo das receitas, observa-se que eles estão pre-
receitas enfatizavam. Obtivemos assim três cam- sentes. Nesse sentido, vale ressaltar que o item a,
pos semânticos: 1) Técnicas e preparação dos ali- encontra-se praticamente contemplado em todas
mentos; 2) Universos da culinária; 3) Cozinha, as receitas examinadas, na medida em que ele
cultura e sociedade. pressupõe operações culinárias básicas que ante-
cedem a quaisquer outras. Nesse caso, é a men-
TÉCNICAS E PREPARAÇÃO DOS ALIMENTOS ção aos elementos diacríticos definidos nos itens
b e c que facultam a inclusão dos livros nesses
Trata-se de um campo semântico geral e itens e não no item a. É nesse momento que cons-
estruturante, uma vez que ele está implícito e mis- tatamos algumas mudanças e variações importan-
turado aos demais campos. Assim sendo, ele não tes ocorridas no tempo, como é o caso do uso de
deixa de estar presente em todos os manuais e utensílios como a panela de pressão (1950) e
livros consultados. Entretanto, para que o sistema tecnologias como o liquidificador (1950), o freezer
classificatório proposto pudesse ser eficaz, incluí- (1980), os processadores e o microondas (1990) e
mos nesse campo somente aqueles livros que se para as quais existem livros específicos. Uma ou-
apresentam com as seguintes características: a) tra variação importante ocorre em relação ao au-
Manuais e/ou livros culinários gerais: referem-se mento de livros no item c, a partir da década de
aos livros que têm como objetivo principal o ensi- 1980 e mais fortemente a partir de 1990 em di-

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 61


ante, assinalando um verdadeiro boon culinário e boom dos alimentos industrializados no Brasil e a
gastronômico. O que está em pauta nessa mu- relativa difusão do fast food, a arte culinária está
dança é a passagem da culinária para a novamente em alta, exatamente no que se refere
gastronomia o que implicou uma segmentação aos elementos que compõem o campo semântico
culinária maior. Em vez de termos a predominân- que estamos analisando presentemente.Trata-se de
cia das segmentações elementares, como o doce/ fruir a culinária não somente em relação aos seus
salgado; diário/festa, ou cru/cozido (panela)/assa- resultados finais e quanto à variedade de sabores,
do (forno) mais característica das décadas de 1930 aromas, cores e consistências obtidos, mas sobre-
a 1970, temos agora novas segmentações tudo é preciso fruí-la no seu próprio fazer e modos
gastronômicas oriundas das inúmeras possibilida- & técnicas de preparo. Assim, o que está em jogo
des culinárias que as diferentes classes de alimen- como elemento de distinção é a artesania da pró-
tos ou mesmo as diferentes formas de preparação pria cozinha que inclui o possuir e o saber usar os
dos pratos oferecem. Essa maior segmentação está utensílios certos, bem como o dominar as técnicas
relacionada a mudanças sociais profundas ocorri- adequadas a cada preparo, a cada receita e ali-
das na sociedade/família brasileiras que apontam mento, sabendo retirar de cada um deles o melhor
para uma forma de apropriação mais individuali- proveito nutricional e gastronômico. Nesses termos,
zada da cozinha, tanto no que se refere às técni- os amigos além de convidados e comensais são ao
cas culinárias quanto ao consumo alimentar pro- mesmo tempo cúmplices, platéia e co-participan-
priamente dito. Essa maior segmentação assinala tes de uma performance e de uma nova expressão
também uma elevação do status da cozinha, bem de sociabilidade que não se reduz mais à
como de sua re-significação no âmbito das ativi- comensalidade entendida apenas como “comer
dades domésticas e sociais, associada ao aumen- juntos”. O que deve ser compartilhado, acima de
to do capital simbólico da própria cozinha, agora tudo, é o próprio processo de preparo. Será na
experimentada como um espaço e atividade que condição de um conhecedor do métier da cozinha
confere distinção. Assim sendo, podemos desta- que o anfitrião se revelará como tal, além de
car o concomitante desenvolvimento e maior aces- redefinir também o caráter de sua dádiva.
sibilidade aos equipamentos, utensílios e às
tecnologias associadas à cozinha, mais eficientes O UNIVERSO DA CULINÁRIA:
e práticos sem falar no design atraente que faz A CASA E O CORPO
com que cada um desses utensílios e equipamen-
tos se tornem por si só objetos de desejo. Parale- O segundo campo semântico identificado
lamente, examinando a culinária-imagem, obser- através dos livros é aquele que diz respeito ao
vamos que o próprio espaço da cozinha mudou universo social da culinária, ou seja aos espaços
inteiramente de visual, com os novos revestimen- nos quais imagina-se que ela seja praticada e aos
tos que a indústria tornou acessíveis. O azulejo foi sujeitos a que ela se dirige. Identificamos dois es-
substituído por cerâmicas decoradas de aparên- paços e dois sujeitos que se combinam de forma
cia artesanal que criam um ambiente de forma a diferenciada do início do século aos dias atuais.
mudar inteiramente o significado anterior da co- São eles a casa (no sentido de lar) e a família como
zinha como um espaço pouco nobre, “poluído” e o sujeito principal deste espaço, ambos predomi-
reservado aos empregados. A cozinha agora é to- nantes até o final da década de 1970, e o corpo e
talmente enobrecida, sendo o lugar onde se rece- o indivíduo, que prevalecem a partir desta déca-
bem os amigos. da até os dias atuais.
Essa tendência pode ser constatada através
do número igualmente elevado de revistas de de- C ASA E FAMÍLIA: DO INÍCIO DO SÉCULO À DÉCADA
coração e de publicidade dedicadas às transforma- DE 1970
ções da/na cozinha e está presente também nos
livros de culinária publicados a partir da década de O universo social referido nos livros de culi-
1980 em diante. Após um processo de nária é a casa brasileira, o lar tradicional de pai,
comoditização iniciado na década de 1950, com a mulher e filhos, no qual o homem se ocupa do
implantação no Brasil da “indústria branca” e cujo sustento da família e a mulher do funcionamento
ponto culminante foi a década de 1970, com o da casa. “O meu lar”, termo que aparece implíci-

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 62


ta ou explicitamente em vários títulos é menos um los e os prefácios de muitos dos livros, desapare-
espaço físico e mais uma província de significado, ce. O “lar” é substituído pela casa e a família é
no qual predomina, por excelência, as relações segmentada em categorias etárias diversas, tais
familiares, de amor e afeto e no qual as relações como “casal”, “crianças” e “jovens”.
sociais são marcadas pela comensalidade. Em segundo lugar, os títulos e receitas su-
(DaMatta, 1980). Esse lar é um espaço represen- gerem a existência de uma exo cozinha. Grande
tado como alegre, íntimo, fraterno e a responsa- parte da matéria prima para a confecção de
bilidade pela manutenção desse ambiente é a fi- muitos alimentos e pratos já é comprada pronta
gura feminina, muito mais na condição de esposa bem como grande número de alimentos. A
e mãe, do que como mulher. comensalidade inclui outras pessoas que não
O tipo de culinária inferida a partir das re- apenas o grupo doméstico. A casa está mais per-
ceitas, nos remete a uma endo cozinha em três meável à rua e a culinária não se restringe mais à
sentidos distintos. Primeiramente, faz-se tudo e de tradicional cozinha brasileira. Os livros de culi-
tudo em casa. A matéria prima utilizada no pre- nária apresentam receitas que introduzem sabo-
paro dos alimentos é também feita em casa e o res, cheiros e texturas de diferentes países, con-
uso de comida industrializada é muito reduzido. quistando o paladar e trazendo o mundo para
Em segundo lugar, a comensalidade inclui um dentro da casa através da comida.
número pequeno de pessoas, pois o “lar” é muito Apesar dessas mudanças, a culinária de pa-
mais fechado ao contato exterior quando compa- pel continua abarcando espaços e práticas perso-
rado ao de hoje. Em terceiro lugar, a cozinha é nalizadas, nas quais os territórios são demarcados
um espaço personalizado, tanto para homens pela indicação do “seu dono”. Receitas e/ou de-
quanto para mulheres. As receitas não são anôni- terminadas técnicas são denominadas a partir de
mas. Elas são originárias dos antigos cadernos de seus autores. Por conseguinte, além das cozinhei-
avós, mães e parentes femininos. A reprodução ras tradicionais das décadas anteriores, novas ca-
social familiar é feita através da reprodução de tegorias de pessoas, como os chefs, e
uma tradição culinária familiar singularizada atra- restauranteurs famosos e populares entram nessa
vés de segredos e toques especiais que passam de competição e demarcação do espaço culinário.
mães para filhas.
De 1950 a 1970 algumas mudanças come- C ORPOS E INDIVÍDUOS
çam a aparecer, mas elas se consolidam somente
a partir da década de 1980. Inicialmente, trata-se O corpo é o segundo grande universo para
da modernização da cozinha, do ponto de vista o qual a culinária se dirige. De 1930 até os dias
tecnológico, como foi visto anteriormente. As do- atuais ele adquiriu uma polissemia que parece
nas de casa, anteriormente verdadeiras heroínas inesgotável, principalmente a partir da década de
e rainhas do lar, agora “libertam-se” e são “substi- 1970. De fato, até 1970 o corpo era predomi-
tuídas” por panelas de pressão, liquidificadores, nantemente concebido como um corpo físico, um
etc. Em seguida, o grupo doméstico se abre mais organismo. Saúde, portanto, era entendida, prin-
para o exterior, de forma a incluir outras formas cipalmente, como a manutenção desse organis-
de sociabilidade que não exclusivamente aquelas mo. A comida era a responsável pela sua manu-
que envolvem o grupo familiar stricto sensu e o tenção. “Comer bem” significava comer com
circulo íntimo e reduzido de amigos. Finalmente, sustância e esta tinha relação com uma comida
os títulos dos livros registram o aparecimento de de “peso”, de panela e menos com uma concep-
uma relação que hoje é básica entre dieta, culiná- ção de nutrição balanceada.
ria, corpo, saúde e sentidos. A partir década de 1970 em diante a rela-
A partir da década de 1980 o livro de culi- ção entre culinária e corpo se altera na medida
nária passa a ter ênfases bastante distintas em re- em que uma multiplicidade de outros corpos são
lação aos das décadas anteriores. Em primeiro lu- concebidos. Na década de 1970 introduz-se a
gar, ele se dirige mais ao indivíduo do que à família, idéia de dieta, não mais com o sentido médico
ao mesmo tempo que o foco passa a ser muito prevalecente nas décadas anteriores, quando a
mais o corpo desse indivíduo do que o lar. O tom dieta visava basicamente a privação e substituição
intimista, alegre e cúmplice que permeava os títu- de certos alimentos e comidas para o restabe-

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 63


lecimento da saúde. A dieta que surge na década novo milênio redescobre o corpo hedonístico
de 1970 já insinua a idéia de construção de um como um centro do prazer culinário, entre ou-
outro corpo. Essa noção de dieta desdobra-se em tros. Esse corpo que é parte integrante da trans-
duas: a primeira é a noção da dieta estética, que formação da culinária em gastronomia é
tem como objetivo um corpo com um novo ta- objetificado no gourmet, esse novo sujeito para
manho e densidade que irá desembocar no cor- quem a “arte de comer” foi substituída pela “arte
po esculpido, trabalhado pela ginástica e pelos de degustar”. Nesse contexto do corpo
alimentos das décadas de 1980 e 90. A segunda hedonístico, a saúde e a estética são pouco referi-
noção diz respeito à combinação balanceada dos das. Os prazeres do corpo se sobrepõem ao
alimentos de forma a tirar o melhor deles e assim ascetismo do belo contemporâneo.
substituir aqueles que são considerados pernicio-
sos. É o início da relação íntima entre ciência e CULINÁRIA, CULTURA E SOCIEDADE
alimentação que permanece até hoje. A ciência
se torna o árbitro daquilo que pode ou não ser Até 1968 a Biblioteca Nacional registra 6 li-
ingerido para mantermos um corpo saudável e ao vros que falam da cozinha brasileira no título e da
mesmo tempo belo. Nesse contexto, o corpo é cozinha regional, nortista, baiana e paulista. De
um objeto medicalizado, construído cientificamen- 1970 em diante temos 13 livros, enquanto no
te. A relação entre alimentação, sabor e prazer, material mais recente recolhido na internet há uma
entre vida saudável e vida feliz é neutralizada. O verdadeira explosão a partir da década de 1990
objetivo é a longevidade da existência física. em diante de títulos relativos à cozinha internaci-
Há ainda um outro tipo de corpo compre- onal (francesa, italiana, portuguesa, espanhola,
endido: é aquele que identificamos provisoriamen- grega, etc), cozinha oriental (com grande desta-
te como uma espécie de “cabide” de identidades que para a cozinha japonesa), à história da
e estilos de vida. A dieta aqui surge como uma gastronomia e de títulos dedicados às cozinhas
marca individual ou de grupos de indivíduos. Ela regionais brasileiras. As razões para tanto, como
está mais ligada a uma postura filosófica, identitária já dissemos, é a re-significação e a revalorização
e política do que em uma postura científica. Des- da culinária e da cozinha (espaço), marcando uma
sa forma, ela se legitima mais através de tradições transição da culinária para a gastronomia, na qual
alimentares que não a ocidental, em concepções se busca conhecer e praticar o cosmopolitismo dos
filosóficas e na defesa do meio ambiente. sabores, odores e texturas das diferentes cozinhas
No que concerne ao corpo, os livros de cu- étnicas e nacionais. Se nas décadas de 1950 a
linária da década de 1990 vão indicar o acirra- 1980, a ênfase foi a praticidade e a tecnologia na
mento de todas essas tendências indicadas anteri- culinária, a partir de então observamos um retor-
ormente e a inclusão da relação entre comida/ no às práticas culinárias artesanais e personaliza-
dieta/espiritualidade. Dessa forma, incluímos o das, com a diferença de que, desta feita, o retor-
rótulo de culinária Nova Era, ou seja aquela culi- no à arte culinária não é mais para marcar a
nária que mistura do esoterismo até técnicas ori- comensalidade e coesão familiares, mas o indiví-
entais como o feng shui, passando pela magia. O duo solto no mundo, cosmopolita, cujo desejo é
resultado é não apenas um corpo saudável, mas experimentar todas as sensações e prazeres possí-
um corpo energizado. O que se busca agora é veis, inclusive os gustativos. A passagem da culi-
uma harmonia entre o chamado corpo físico e o nária para a gastronomia marca também a ênfase
cosmos de forma que corpo e mente entrem em numa nova relação: viagem & culinária; turismo
perfeita sintonia. Finalmente, esse corpo & gastronomia. Dessa forma, viajar é também co-
energizado por técnicas culinárias orientais, por nhecer pelo paladar e vice-versa a gastronomia
forças esotéricas e pela magia termina por estabe- equivale a uma viagem, ou então, vale dizer que
lecer não uma oposição mas um continuum com esta última só se justifica se acompanhada das
o último dos corpos identificados através dessa devidas experiências gastronômicas: como dizer
bibliografia – o corpo sentido. Ao invés do corpo que se conhece Paris se não se foi a um bistrô
saudável, medicalizado, espiritualizado, parisiense com seus cardápios característicos? En-
energeticamente harmonizado, magro e esculpi- fim e, antes de tudo, a culinária passou a ser uma
dos, a culinária do final dos anos 90 e início do forma de relação com o outro. O interessante é

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 64


que à medida que os livros exploram explicita- DA MATTA, R. A casa e a rua: espaço, cidadania,
mente a relação entre viagem & culinária ou mulher e morte no Brasil. São Paulo: Editora
gastronomia & turismo verifica-se uma re-signifi- Brasiliense, 1988.
cação do espaço da cozinha nas casas brasileiras FREYRE, G. Casa grande & senzala. Rio de Janeiro:
Editora Record, 1987.
(camadas médias) além de um retorno à cozinha
brasileira da mesma forma que um
redescobrimento das cozinhas regionais. Assim,
temos um eixo quanto ao status alcançado pela
cozinha brasileira na culinária de papel: de obje-
to histórico e sociológico, matéria prima de cria-
ção do mito das três raças, ou da construção de
uma história íntima brasileira (Gilberto Freyre) ou
de uma sociologia alimentar brasileira (Câmara
Cascudo), ela passa a referir-se às cozinhas regio-
nais, étnicas e exóticas enquanto resultantes de
escolhas, gostos e adesões que podem ser difun-
didos e compartilhados através do consumo por
todos aqueles interessados na experiência
gastronômica. Cozinha étnica, regional ou exóti-
ca não é mais uma fatalidade cultural, “cozinha
típica”. Acompanhando o processo de globali-
zação em curso, no qual os mercados se abrem
para todo o tipo de produto exótico, especialmen-
te o alimentar, a culinária de papel explora exata-
mente o melhor lado dessa globalização, qual seja,
a difusão e a internacionalização de inúmeros ali-
mentos, ao mesmo tempo em que difunde suas
técnicas e formas de preparo. Dessa forma, a
globalização não significa apenas mcdonaldização
alimentar, mas também o seu contrário: diversi-
dade alimentar; diversidade de técnicas e prepa-
ros; interesse pelas diferenças culinárias de povos
e grupos. É nesse contexto que podemos entrever
um sentido completamente diferente para o anti-
go livro de cozinha, que de registro, guia, manu-
al, documento, foi se transformando pouco a pou-
co em um gênero literário próprio já que misturado
às memórias biográficas de personagens impor-
tantes, memórias de viagem, romances, foi tor-
nando-se também um objeto em si mesmo como
os livros de arte e de literatura.

BIBLIOGRAFIA
BARTHES, R. Mitologies. São Paulo: Editora Cultrix,
1972.
_________. O sistema da moda. São Paulo: Cia
Editora Nacional/Edusp, 1979.

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 65


Gilberto Freyre: a representação social da culinária

Rodrigo Alves Ribeiro


Graduado em História pela Universidade de Pernambuco – UPE. Aluno do curso de Especialização em História Regional
do Brasil: Nordeste, pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP.

“O cotidiano produz as personagens al humana, desperta no historiador a


principais e não a personagem capacidade de relativizar, de conhecer
principal. Cria cheiros, suores, desejos o outro. Buscando, portanto, alijar-se
e frustrações. Afinal, tudo aquilo que de posições evolucionistas.
social ou psicologicamente se O campo etnológico revela-nos
manifesta no interior da realidade outras formas de mundo que o
humana passa a ter sentido e voz em eurocentrismo exacerbado ofuscava.
virtude daquilo que nos reprime: o Sobre essa perspectiva, sublinha
controlo social. Que se torna François Dosse: “o Ocidente fica com
impotente quando nos confinamos no a impressão [, desde então,] de que não
âmbito privado do cotidiano”. faz mais a história humana, mas a his-
(Rodrigo Alves Ribeiro) tória [de uma parcela] da humanida-
de” 1 . Questão que permite aos histo-
“O açúcar (...) adoçou tantos aspectos riadores reverem conceitos e valores
da vida brasileira que não se pode acadêmicos os quais acreditavam que
separar dele a civilização nacional. fossem supremos e absolutos. Pois, den-
Deu-nos as sinhás de engenho. As tro dessa perspectiva, Gilberto busca
mulatas dengosas. Os diplomatas relativizar a partir de um olhar sobre o
maneirosos”. mundo tropical, por muitos marginali-
(Gilberto Freyre) zado, mais pelo prisma espacial (o do
homem situado) do que temporal (o do
“(...) o domínio cultural, criador do homem cronológico). Lançando-se ao
social, torna-se o lugar central dos local, ao regional pela ótica sincrônica
conflitos, lugar das contradições, para ressaltar as especificidades de uma
núcleo de inteligibilidade de uma região tropicalizada: a nordestina. Con-
sociedade”. tudo, o autor de Casa-Grande & Senza-
(François Dosse) la entende que “tudo se torna objeto
de curiosidade para [o cientista huma-
É no interior da antropologia his- no e social], que [deve enfocar] seu
tórica que podemos visualizar os novos, olhar para as margens, para o avesso
e muitas vezes curiosos, objetos de es- dos valores estabelecidos, para os lou-
tudo da ciência histórica. Logo, a histó- cos [como o fez Michel Foucault], para
ria, baseada nos estudos etnológicos as feiticeiras, para os transgressores” 2 ,
consegue perceber as permanências do para a cultura material.
tempo social/mental e os valores
__________________________
irredutíveis que norteiam uma dada
sociedade.
1
C.f. DOSSE, François. A História em Migalhas:
dos Annales à Nova História. Trad.: Dulce A.
O fazer etnológico, ou melhor, o Silva Ramos. São Paulo: Ensaio; Campinas: Ed.
etnográfico, segundo a visão freyriana da Universidade Estadual de Campinas, 1992.
de compreender a realidade existenci- 2
Op. Cit. (1992), p.168.

66
Gilberto Freyre ao apropriar-se do o poder simbólico é, com efeito, esse poder invi-
etnológico, do etnográfico, pretende revelar o tra- sível o qual só pode ser exercido com a cumplici-
dicional, o popular, o miscigenado do Brasil nor- dade daqueles que não querem saber que lhe
tista. Retratando exaustivamente uma das maio- estão sujeitos ou mesmo o exercem” 5 . Seja esse
res expressões do complexo civilizatório: a poder executado na esfera das ações da vida pú-
culinária. Culinária esta, que emerge, para ele, da blica ou privada, que se materializa nas superes-
“açucarocracia”. truturas de um Estado e nas convenções sociais.
Para Freyre, o açúcar marca o desenvolvimen- O poder, que num passado recente acredi-
to da complexidade da sociedade nordestina, em távamos que partia de uma “elite” à uma deter-
geral, e pernambucana, em particular. Uma vez que minada “ralé”, transita no campo das relações so-
a complexidade não é apenas uma característica ciais de forma indiscriminada entre os indivíduos.
dos povos de clima temperado, mas dos de clima Um poder que se revela naquilo que a antropolo-
tropical também; fator que leva-nos à civilização gia social denomina de representação material;
cultural. Quase que predominantemente, ou pre- ou seja, na mobília, na arquitetura, na vestimenta
dominantemente, assente nos voláteis cheiros do e na culinária. Antropologia social que objetiva
açúcar derretido aliado ao sabor cítrico de nossos apreender e compreender a coesão das institui-
frutos tropicais nativos e exóticos. Uma civilização ções sociais: a realidade integrativa da religião, da
“açucarocratizada”, pois, dotada “de um paladar família e da moral a partir da representação só-
brasileiro histórico e (...) também (...) ecologicamen- cio-simbólica atuante no bojo da cultura materi-
te condicionado, e como tal, (...) predisposto a es- al. Fator que autoriza Gilberto Freyre a afirmar o
timar o doce e até o abuso do doce. Esse (...) gosto seguinte, por exemplo: “os homens e os livros
de doce é, para outros paladares europeus – nór- muitas vezes mentem. A arquitetura quase sem-
dicos, boreais, mediterrâneos, greco-romanos, pre diz a verdade através de seus sinais de dedos
calvinistas, clássicos –, excessivamente doce. Um de pedra.” 6
doce – o da preferência brasileira – como que bar- É demasiado sabido que o cotidiano em Gil-
roco e até rococó em termos que se transferissem berto Freyre passa a ser o enfoque norteador às
das artes e da música à arte talvez mais sensual da suas teses. Cotidiano que revela o jogo de rela-
sobremesa. Aliás, das gentes situadas em terras ções entre indivíduos de uma sociedade de tem-
quentes ou em espaços tropicais, várias se apre- pos idos (o de seus avós) e demonstrativa de suas
sentam com predisposições semelhantes à brasilei- origens, de sua memória.
ra: árabes e mouros são famosos pelo seu gosto A história do cotidiano7 era considerada exó-
pelos alimentos ou regalos doces e até extrema- tica e apenas destinada à distração de leitores. Era
mente doces.” 3 . uma história que buscava dá espaço aos “homens
Gilberto ao ecologizar o doce, “manufatura” sem qualidade;” haja vista que esse cotidiano é cons-
do açúcar, está revelando a sua análise etno- tituído de fragmentos materiais e imateriais. Permi-
botânica, ou etnobiológica4 , como preferiria, por tindo-se a ressurreição de alguns cacos de passados
considerar com propriedade o empírico e o intrínsecos nas permanências da “longa duração.”
semiótico da sociedade açucarocratizada do mais O que para o sociólogo e historiador alemão Norbert
tropical dos Brasis: o Nordeste. Sendo assim, Freyre Elias, tem elevada importância porque os “fenôme-
passa a destacar as atitudes mais simples impressas nos à primeira vista [são] carentes de sentido, se exa-
no cotidiano, como a ação culinária, que expressa minados a olho nu ou na escala do tempo imediato,
além da satisfação degustativa, o status do poder.
__________________________
Para que o poder seja identificado nas en-
tranhas das mais distintas expressões e manifesta-
5
BORDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Trad.: Fernando
Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. Fragmento
ções humanas, “é necessário saber descobri-lo das pp.07/08.
onde ele se deixa ver menos, onde ele é mais com- 6
FREYRE Apud BURKE, Peter. ‘A Cultura Material em Gilberto
pletamente ignorado [e], portanto, reconhecido: Freyre.’ In.: O Imperador das Idéias: Gilberto Freyre em Ques-
tão. Rio de Janeiro: TOPBOOKS/UNIVERCIDADE, 2001.
__________________________
7
DUBY, Georges. et alii. História e Nova História. Lisboa:
3
FREYRE, Gilberto. Açúcar... São Paulo: Companhia das Le- Teorema, 1989. Esta obra é uma coletânea de entrevistas
tras, 1997. de renomados historiadores franceses. Ver sobretudo: LE
4
Ver FREYRE, Gilberto. Problemas Brasileiros de Antropologia. GOFF, Jacques. ‘A História do Quotidiano.’

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 67


[mas que] revelam, porém, seu nexo[,] quando pos- a tradição não é uma categoria de um tempo advindo
tos contra uma medida de longo prazo.” 8 de nossos antepassados que nos empurra ao retro-
Por conseguinte, afirma Michel de Certeau: “o cesso, mas é um princípio, um referencial em favor
que interessa [, e não só,] ao historiador do cotidia- de nossa caminhada em direção à criação de nossa
no é o invisível...” 9 Categoria que Gilberto identifi- época; que num dado dia tornar-se-á num tempo,
cava nos cheiros, nos suores e na culinária vernácula numa tradição. Diferentemente do conservadorismo
pernambucana. Afinal, “(...) as virtuosidades culiná- que apenas nos limita ao campo estético dos con-
rias instauram a linguagem plural de histórias ceitos e dos preconceitos absolutizantes. Todavia, a
estratificadas, de relações múltiplas entre [o] desfru- culinária é um fragmento cultural capaz de criar, re-
tar e [o] manipular (...) de linguagens fundamentais novar e conservar muitos de nossos mais arraigados
soletradas em detalhes cotidianos.” 10 valores. Que são criados, por seu turno, sob a égide
O estudo da culinária em Gilberto trata-se, da moral. Tudo porque a moral “não é um traço
indubitavelmente, de uma referência “cultural ati- natural, nem legado da graça de Deus – ela foi ad-
va e criadora,”diluída nas combinações de ele- quirida por um processo de [condicionamento, con-
mentos comestíveis à base dos ditames da escra- venções e imposições] que terminou fazendo do
vidão. À sombra das casas-grandes. Sob o trocar homem (...) um ‘animal interessante’ (...)13 [no ato
de dedos e mãos das negras quituteiras ao prepa- de falar, de caminhar, de vestir e de comer].
rar os alimentos das cozinhas patriarcais e dos ta- A culinária, ou melhor, a comida que vai à
buleiros de rua. mesa de uma família ou dos grupos humanos de um
Negras dos tabuleiros, como anunciavam os modo geral, demonstra o seu caráter socializador.
jornais do Brasil da era imperial das principais Constituindo-se até mesmo no elo favorável às arti-
capitais de províncias. Mulheres como “a crioula culações políticas e ideológicas. O que remete Gil-
de nome Simoa, vendedeira de bolinhos, negra berto à seguinte idéia: “(...) uma cozinha em crise
fula, bem-falante, estatura regular, que um belo significa uma civilização em perigo.” 14
dia do ano de 1837 fugiu dos Aflitos, no Recife, A antropologia histórica nasce em meio às
da casa de um Sr. Pimentel.” 11 desilusões econômicas e sociais da década de
Gilberto lança-se ao estudo sistemático em tor- 1970. Possibilitando a redescoberta do passado,
no da cultura material quando ainda era colaborador dos valores perdidos que no desenrolar das crises
do “Diário de Pernambuco” nos anos de 1920.12 puderam ser retomados e reinterpretados; geran-
Período contemporâneo ao “Movimento Regionalista” do no historiador a oportunidade de solapar a idéia
o qual encabeçara. Deixando imprimir em seus tex- a qual rezava que a real e verdadeira história era
tos e artigos as representações de nossa cultura regio- progressiva e teleológica; para melhor considerar
nal, nas quais encontrava os elementos em favor de o “presente imóvel.” 15 Como o fez, por exem-
suas justificativas acerca da conservação de nossas __________________________

referências, de nossa tradição. Fazendo registrar a sua 13


RIBEIRO, Renato Janine. ‘Apresentação... .’
noção de “sociologia genética”. 14
LODY, Raul. Temperos e Temperamentos em Gilberto
Ser tradicional para Freyre não significava ser Freyre. In.: Suplemento Cultural: Coletânea 2000. Recife:
conservador. Tudo porque a tradição é algo dinâmi- CEPE, a. 2, n. 2, 2001. Anual. Março/2000
co por sempre se encontrar em consonância com os
15
Presente Imóvel: é o instante no qual surge a memória.
Memória que se constitui de alegrias e frustrações, sauda-
novos elementos culturais que constantemente in- des e repugnâncias advindas do passado; além das
surgem no decorrer das interações sociais. Contudo, espectativas e angústias geradas da idéia prospectiva de tem-
__________________________
po: o futuro. O presente imóvel é captado pela ótica
sincrônica: fatos, ações comportamentais e gestos de uma
8
RIBEIRO, Renato Janine. ‘Apresentação a Norbert Elias.’ dada realidade existencial humana que ocorrem de forma
In.: ELIAS, NORBERT. O Processo Civilizador: uma Histó- interligada no mesmo espaço de tempo. Presente imóvel
ria dos Costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994 que passou a ser objeto de estudo do historiador que o de-
9
CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano. Trad.: Ephraim nomina de história imóvel. Ou seja, a história imóvel não
F. Alves e Lúcia Endlich Orth. Petrópolis: Vozes, 2002 significa uma história desprovida de mudanças, mas trata-
se de uma história muito lenta. Sendo assim, reitera Philippe
10
Op. Cit., (2002)
Ariès: “O historiador cedo se apercebe de que existem dois
11
Cf. FREYRE (1997). Op. Cit. tipos de aparências, as que são manifestas e estão à vista de
12
Ver FREYRE, Gilberto. Tempo de Aprendiz. Organizado por todos, e as ocultas, subterrâneas, apenas notadas pelos seus
José Antônio Gonsalves de Mello. Rio de Janeiro: IBRASA/ contemporâneos.” (ARIÈS, Philippe. ‘Uma Educação do
MEC, 1979 Olhar.’In.: História e Nova História. p. 24)

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 68


plo, Philippe Ariès ao publicar em 1973 a sua “A mentares negra e indígena, passam a compor a ela-
História da Morte no Ocidente” posição que boração dos pratos de ostentação da sociedade
reintroduz no processo de construção da ciência patriarcal. Pratos barrocamente açucarados.
histórica o estudo acerca “das culturas anteriores Dosse, em “A História em Migalhas”, de-
à industrialização.” 16 monstra-nos, com destaque, “como a arte culiná-
A terceira geração dos Annales, a da Nova ria, a consumação ostentatória nos restaurantes,
História de Jacques Le Goff, vê na oralidade, no se torna lugar privilegiado de investimentos para
artesanato e na língua, elementos capazes de re- a burguesia, que nisso imita a aristocracia e, pelo
velar o íntimo de um povo. Entendendo que a refinamento dos pratos, quer mostrar sua diferen-
História deveria lançar-se aos novos documentos, ça em relação ao povo. O burguês se afirma pela
como a cultura material (aqui representada pela acumulação do perecível.” 18
culinária), para entendermos mais o funcionamen- Há, ainda, nos centros acadêmicos uma leve
to das instituições sociais que regem e culturalizam e incômoda resistência acerca do estudo em tor-
um povo, do que as suas factuais e imediatistas no da cultura material. Comportamento que não
mudanças; antes tão valorizadas pela historiografia deve limitar os novos investimentos em tal em-
ocidental. Uma vez que tanto as sociedades con- preendimento por entendermos que a dinâmica
sideradas civilizadas quanto as taxadas de tradici- social cria valores e linguagens que denunciam ou
onais, são dirigidas pela força das permanências, camuflam desejos e intenções intrínsecos na eter-
das continuidades. Daí sublinha François Dosse: na insatisfação humana. Uma insatisfação que
“Àqueles que relegam a história à simples descri- ambiciona a estabilidade, o status social e o exer-
ção dos fenômenos conscientes, os Annales res- cício do poder no decurso das relações humanas.
pondem como constituição [da] (...) história das Portanto, a culinária não é apenas a constatação
mentalidades, que tem por fundamento o nível do imediatismo material ou orgânico-funcional
inconsciente das práticas sociais, o pensamento humano, mas é a constatação do mediatismo sub-
coletivo e automático de uma época ou de um jetivo. Pois, o homem não é só a racionalidade
grupo social.” 17 como tanto pregou a “Era Moderna.” Isto porque
Gilberto Freyre, por seu turno, destaca em a culinária não é uma simples produção material,
sua produção “acadêmica” o ressurgimento do mas uma representação social. Que possibilita-nos
descritivo, do narrativo a partir da ótica da micro- ter, através dos cheiros dos pratos, assaltos de
história e da lógica própria do mundo informal memórias. Memórias que se tornam muitas vezes
que tão fortemente norteia uma sociedade. inexistentes graças aos “fast foods” e aos “self-
Informalidade que se vale do “ethos” coletivo para services” de nossa contemporaneidade.19
fazer surgir do anonimato os indivíduos dos ges-
tos bruscos e dos pensamentos rotulados de re-
trógrados. Indivíduos que falam “suvaco”, “pru
mode”, “catinga”, “zuada”... sem pudor nem res-
trições em virtude do poder de representação so-
cial que tais expressões exercem no interior da
cultura popular. Expressões que tanto quanto a
culinária tradicional são continuamente agregadas
a novos elementos materiais ou imateriais (psico-
lógicos) que lhes consolidam e petrificam.
O estudo da culinária leva-nos, sem sombra
de dúvidas, a compreender os vários códigos, as in-
tenções e os significados do comportamento social.
Freyre, ao publicar em 1939 o livro “Açúcar...”
expõe direta ou indiretamente como os ingredien-
__________________________
tes de um modo geral, tipicamente das bases ali- 18
Ibidem, p.175.
__________________________
19
Ver Pessoas, Coisas & Animais de Gilberto Freyre. Há um
16
C.f. DOSSE (1992). Op. Cit. breve ensaio do autor de três páginas sobre Diários e Me-
17
Idem, p.173. mórias.

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 69


Série “Mesa Brasileira”

APRESENTAÇÃO

“O papagaio não comeu?


Morreu.” dito popular

A série “Mesa Brasileira” nasceu da idéia de contar a nossa história de


maneira diferente.
Percorrendo o país, de norte a sul, registrando como se alimenta o brasilei-
ro, o que come e os processos que usa para preparar e temperar os seus pratos,
pretendemos traçar um painel extremamente revelador das nossas origens, e da
nossa cultura.
Realizando uma arqueologia da cozinha brasileira, radicalmente diferente
de estado para estado, de região para região, gostaríamos de captar uma faceta
originalíssima de um país de síntese impossível.
Do vatapá ao churrasco, do pato no tucupi ao feijão tropeiro, o Brasil possui
uma comida muito rica, que reflete nos seus pratos típicos a contribuição dos povos
que participaram da sua formação e os ciclos econômicos que o plasmaram. Partin-
do deste dado de cultura, projetamos a história social da nação brasileira.
O projeto inspirou-se especialmente na obra de Luís da Câmara Cascudo, “A
história da alimentação no Brasil”, e em diversos autores como: Gilberto Freyre,
Sérgio Buarque de Hollanda, Edson Carneiro, Arthur Ramos, Nina Rodrigues, Nunes
Pereira, Antonio Olinto, Mário de Andrade, Roger Bastide, Caio Prado Jr., Darcy
Ribeiro, Silva Melo, Josué de Castro, Fidelino Figueiredo, e tantos outros.

Ricardo Miranda

DIGA-ME O QUE COMES QUE TE DIREI QUEM ÉS

Certamente, depois do idioma, a comida é o mais importante elo entre o


homem e a cultura. Comer serve para nutrir o corpo, nutrir o espírito e estabelecer
contatos com os antepassados, com os deuses. No caso brasileiro, vêem-se mesas
identificadoras de diferentes matrizes étnicas, reunindo Ocidente e Oriente.
O português navegador aproximou o mundo, estreitando contatos entre os
povos. Buscou especiarias, temperos exóticos, frutas estranhas e, assim, incluiu
na civilização lusitana presenças da Índia, da Indonésia, da China, da África, da
América. Procedentes do reino, Portugal, chegaram queijos, doces de ovos, açú-
car, leite, bolos, manjares e outras iguarias originais dos conventos medievais.
No Brasil, os índios com alimentação à base de farinha de mandioca, pei-
xes, caças, mostram uma culinária ecológica. Na costa, África, impera o dendê
juntamente com inhames, bananas, pimentas, feijões entre outras delícias, como
quiabos e camarões. Como se o Brasil fosse um enorme caldeirão, convivem e
misturam-se diferentes e saborosas contribuições gastronômicas.
Comer é antes de tudo uma forma de prazer, até pelo olhar estético sobre
o alimento, que pode informar o significado do que se come e de como se
come. Comidas do cotidiano, da festa de rua, da festa religiosa. Comidas do

70
mundo dos homens e do mundo dos orixás, ca- A idéia central deste primeiro capitulo é a
boclos e de tantos outros deuses que fazem mi- de introduzir o espectador em conceitos e idéias
tologias nacionais. e para isso o documentário barrocamente embrica
Quando visito uma cidade, vou logo ao pensamentos, imagens e história.
mercado e a feira para conhecer os alimentos.
Depois busco uma banca, um restaurante para “O FARNEL LUSITANO ”
comer e beber, tentando entender e elaborar chei-
ros, cores e gostos. Somente depois dessa viagem “O homem lusitano usou e se reportou ao
pela boca vou ao encontro dos monumentos de Sal como elemento identificador das chegadas.
pedra e cal, acreditando que, pela comida, sen- Chegadas pelo mar, pela água salgada, marcando
te-se e sabe-se a alma de um lugar. territórios políticos, econômicos, religiosos que
A tradição convive com a mudança. Acarajés resultaram virtualmente na mudança de hábitos
pequenos e iguais aos encontrados na costa oci- alimentares” – Raul Lody.
dental africana estão lado a lado, na Bahia, com O mar português. Sempre o mar. Uma lua é
os grandes acarajés que lembram pães de ham- transpassada por nuvens. Um farol anuncia a pre-
búrguer, recebendo recheios de vatapá, caruru, sença do ponto mais ocidental da Europa. Mar-
salada, pimenta – verdadeiros sanduíches nagôs. gens de Portugal. Cenas emblemáticas introduzem
Assim, vivem as muitas mesas brasileiras, a magia da presença portuguesa. Os descobrimen-
e pluralizar, creio, é a melhor receita para co- tos, os heróis do mar, as rotas marítimas.
mer o Brasil. Apoiado em extensa entrevista de Maria de
Raul Lody Lourdes Modesto, uma das mais importantes co-
nhecedoras da comida regional portuguesa, o ca-
SINOPSES DOS DOCUMENTÁRIOS pítulo em questão será rico em imagens sobre os
nossos antepassados. A doçaria portuguesa, com
“O PÃO NOSSO DE CADA DIA ” os Pastéis de Belém (Lisboa), receita secreta dos
monges do Mosteiro dos Jerônimos e a doçaria
Ao arrebatar o fogo a Zeus, e oferecê-lo aos conventual do mosteiro da Conceição, destacan-
mortais, Prometeu inaugura um novo capítulo da do-se as várias regiões e alguns dos pratos típicos
história do homem. A fagulha do raio precede o dessas regiões: “Os portugueses foram grandes
pequeno fogo doméstico, fonte do calor, da luz e revolucionários da estética do paladar”. – Fidelino
do bem estar. Inventa-se a cozinha. de Figueiredo.
Do fogo doméstico, ressaltamos suas funções
de preservação e de conservação. O cru e o cozi- “OS COMEDORES DE MANDIOCA ”
do. Se realizarmos uma viagem ao redor do mun-
do, o mercado, essas “cidades de um dia” no dizer “Tal como o índio Uirá, que saiu a procura
de Lévi-Strauss, sempre chamaram atenção espe- de Deus, para identificar-se ante a divindade de-
cial dos viajantes e cronistas. Lugar primordial de clara ‘eu sou de seu povo, o que come farinha’,
encontros, trocas, novidades, compras.... lugar todos nós, brasileiros, podemos dizer o mesmo:
“onde são intercambiadas mais saudações, infor- ‘Nós somos o povo que come farinha de pau”. O
mações e estórias do que mercadorias e dinheiros” Povo Brasileiro – Darcy Ribeiro.
Mercados e feiras. Vamos viajar por vários Tudo começou com os nossos índios. Antes
deles no Brasil e em Portugal. Vamos falar e mos- de virem para cá os portugueses e os negros, inú-
trar este mundo particular e complexo. O Merca- meras tribos habitavam as terras que viriam a ser
do que no mundo português origina o nome dos denominadas de brasileiras. A sua caça, a sua pes-
dias da semana: os dias de mercado, de feira. Ima- ca, a sua agricultura. O homem do norte do Brasil
gens e entrevistas vão desvendando os Mercados. e os habitantes do litoral que mantém até hoje
O que é alimento? O que é comida? O que um modo de viver dos que aqui moravam.
é cozinha? E o Brasil? E a alimentação? Os nossos A mandioca é analisada pela câmera: histó-
hábitos alimentares. Em casa e nas ruas. Bares, ria e manejo. A farinha, o tucupi, sumo que resul-
restaurantes, fast-foods... Qual a origem dos nos- ta da mandioca descascada e ralada, a goma. O
sos hábitos alimentares? Tacacá, composto de tucupi, camarão, jambú,

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 71


goma, e pimenta onde se destaca a presença da mento de mão de obra escrava, era necessário bus-
mandioca, o principal e primitivo alimento de car os animais para o transporte a tração, e para o
nossos índios. próprio alimento. Além disso, a carne de bode,
O Ver-o-Peso, em Belém. Nos mercados, um carneiro, porco e galinha. Muitos preparos serão
destaque para a presença do açaí, fruto de uma gravados, tais como: Paçoca (farofa de carne seca),
das mais elegantes palmeiras da Amazônia. Esse Buchada de Bode e queijos do sertão.
fruto, macerado por uma “amassadeira”, e mistu- No dizer de Capistrano de Abreu a “civiliza-
rado em água. Depois é juntado ao açúcar, farinha ção do couro”. A imagem do vaqueiro representa
d’água ou de tapioca. Embricado com as comidas, esta civilização, onde praticamente tudo do gado
o povo do norte e sua fala, sua cara, sua cultura. era aproveitado.

“M AR DE AÇÚCAR ” “C OMIDA DE SANTO ”

O nordeste brasileiro é por excelência a ter- A cozinha africana na Bahia está intimamente
ra do açúcar, a terra do bolo fidalgo, no dizer de ligada ao candomblé. Talvez tenha sido a força
Gilberto Freyre. Texto, entrevistas e imagem a ser- religiosa a razão de sua sobrevivência. O texto
viço de referências às origem da cana de açúcar e deverá salientar que não é por acaso que se come
a sua vinda para o Brasil. nos terreiros a melhor comida de azeite, o dendê.
Fabrica-se açúcar, e em pequenos engenhos, Como também não é por acaso que a grande de-
rapadura e aguardente para o mercado interno. É monstração da cozinha africana está nas festas
com o açúcar que se vai notar a grande influência populares da Bahia.
da cozinha portuguesa na formação da culinária A influência da cozinha negra africana não
brasileira. Essa herança recolhida de Portugal, e está presente no dia a dia da comida dos baianos,
sobretudo dos mouros, pela doçaria dos engenhos, como normalmente se pensa. Mas encontra-se
não foi pequena. mais restrita a área de Salvador e alguns municípi-
Os frutos tropicais juntaram-se ao açúcar os vizinhos – o Recôncavo Baiano. A comida afri-
num dos casamentos mais felizes da nossa culiná- cana é de complicada realização, exigindo muita
ria, superando em alguns casos a repetitiva mistu- técnica. Por isso se come muito bem nos candom-
ra dos ovos com o açúcar, que fazem a base da blés em dias de festas, onde a comida é prepara-
doçaria portuguesa conventual. da amorosamente.
A cultura da cana de açúcar no Brasil Colô- Uma das comidas mais típicas da culinária
nia, no entanto, não implica somente no seu uso brasileira, a cozinha baiana, só irá encontrar algu-
culinário. Ela está ligada também à vinda dos ne- ma semelhança em alguns pratos africanos que
gros trazidos da África, da Guiné e ao trabalho lhe deram origem, como a Moamba
escravo. Daqui se origina o terceiro elemento de Angolana.Entrevistas deverão fazer a ligação en-
formação do povo brasileiro. Para Gilberto Freyre, tre a África, o comer e a religião.
sem a escravidão não se explica o desenvolvimento A figura da cozinheira negra, a fada do
no Brasil de uma arte de doces, de uma técnica dendê, aquela que o baiano diz “que é preciso
de confeitaria e de uma estética de mesa e de ter o dedo para fazer um bom efó ou um caruru
tabuleiro... Além da raça, o negro traz novos cos- na medida”, e que se transforma, após a liberta-
tumes e novos hábitos alimentares. ção, nas mulheres dos tabuleiros de rua, antes tam-
bém chamadas de escravas de ganho.
“C IVILIZAÇÃO DO COURO ”
“TROPAS E BOIADAS ”
A geografia do sertão, a caatinga, a terra seca
e árida. O sol escaldante. Homens trabalham. As Foi durante o século XVII que diversos
imagens mostram o trato do vaqueiro com o gado, sertanistas de S. Paulo percorreram o sertão mi-
o seu cotidiano. neiro, goiano e mato-grossense. As expedições
O texto irá destacar a particularidade da cria- avançaram pelo interior, desbravando trilhas, pre-
ção de uma infra-estrutura do ciclo do açúcar onde, parando a descoberta do ouro no século XVIII,
para além do cultivo dos canaviais e do reabasteci- expandindo as terras da América lusitana.

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 72


Ponto de pecuária vamos encontrar na vida Campos. Pradarias. Estâncias. Mestiço de
do peão da fazenda e no seu almoço diário a índio, português e espanhol, o gaúcho tem na es-
fartura e a variedade de sua alimentação: a tância o núcleo das suas atividades. A carne verde
galinhada, o peixe na telha, o empadão goiano é o alimento básico do gaúcho, sendo a carne de
e o arroz de pequi. charque também muito apreciada e exportada
Repositária, como Minas Gerais, de alguns para outras regiões do país.
benefícios do ciclo do ouro, essa região – no en- O churrasco e o seu preparo adquirem pre-
tanto – talvez pela sua distante localização e pelo dominância na culinária da região gaúcha, sen-
difícil acesso no passado, teve até pouco tempo a do substituído por outros hábitos culinários quan-
sua cultura pouco difundida. Suas grandes exten- do se passa para os Estados de Santa Catarina e
sões de terra, seus rios caudalosos e piscosos, aca- do Paraná.
bam por determinar um tipo de alimentação pe- Em Santa Catarina, Laguna com sua coloni-
culiar e de aspectos singulares. zação açoriana, sua dança do Boi Mamão e São
Joaquim, trilha de tropeiros e a Paçoca de Pinhão.
“QUITANDAS E QUITUTES ” No Paraná, o preparo do Barreado.
A se considerar ainda o uso do mate, chi-
Depois da cana-de-açúcar e a entrada para marrão, “...infusão fervente e amarga da erva que-
o sertão o Brasil conheceu durante o século XVIII rida dos índios...” e do vinho produzido pelos
um outro ciclo, o do Ouro. “A cana foi o funda- colonos.
mento de toda uma civilização, com os engenhos, Uma região que recebe italianos, alemães,
conventos, candomblés de negros, o ouro será a misturam hábitos, costumes e que cooperam no
base de outra, diferente da primeira, mas, como mesmo trabalho. Nos arredores de Caxias do Sul,
aquela, também construída com os pés e as mãos algumas vindimas, onde os costumes italianos do
dos africanos” – Roger Bastide. paio, do salame, do queijo e do vinho mostrarão
Esta civilização se instala em uma província como se alimentam muitos descendentes de itali-
central e montanhosa, chamada mais tarde de anos ali residentes.
Província de Minas Gerais. O ouro fez Minas, seus
costumes, sua gente, sua comida. “CALDEIRÃO ANTROPOFÁGICO ”
O mineiro criou as cinco refeições do dia,
com três cafés, almoço e jantar. Na busca do ouro Passamos pelas civilizações do açúcar e do
e dos diamantes, no garimpo dos rios, na constru- ouro e agora entramos na terceira grande civiliza-
ção de suas históricas cidades, foram em paralelo ção que se desenvolveu no Brasil: o café.
construindo uma cozinha especial, talvez uma das O café que partiu do Rio de Janeiro, pas-
mais fartas no quadro da nossa culinária. Do Tutu sando pelo Vale do Paraíba chegando a S. Pau-
de Feijão com Torresmo ao Leitão à Pururuca, pas- lo, Minas Gerais e Paraná. O café que atraves-
sando pelas Compotas de Frutas e o Doce de Leite sou a época dos barões do Império, a passagem
com Queijo Branco, ou o Pão de Queijo, o comer do trabalho servil para o assalariado, as imigra-
mineiro é saboroso e requintado até no uso de in- ções, e por último, da grande para média e pe-
gredientes inusitados como ora-pro-nóbis, planta quena propriedade. O café que cria uma aris-
considerada daninha que foi usada para matar a tocracia e a destrói.
fome dos escravos e pobres durante o ciclo do ouro. Imagens das duas cidades. O contraste e a
Entrevistas que traçam um paralelo entre antropofagia alimentar.
cozinha, comida e a imagem do mineiro, per- São Paulo é o símbolo deste Brasil Moder-
mearão aqui e ali o capítulo, quer do ponto de no, e junto com o Rio de Janeiro configura uma
vista histórico, antropológico ou receitual. riqueza de culinária, que sintetiza toda a série,
não só por serem duas das mais antigas cidades
“GAÚCHOS E COLONOS ” brasileiras, mas por caracterizarem nos dias de hoje
uma idéia do cosmopolitismo da nossa alimenta-
Para Roger Bastide “a civilização do sul é a ção. A euforia do comer, bem ou mal.
civilização do cavalo”. O gaúcho identifica-se com
o seu cavalo.

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 73


EQUIPE DE REALIZAÇÃO

Direção
Ricardo Miranda

Roteiro
Izaias Almada

Produção Executiva
Silvia Wolfenson

Consultoria Antropológica
Raul Lody

Edição
Luciano Martins
Samantha Ribeiro
Ricardo Miranda

Texto
Aline Sasahara

Direção de Fotografia
Andreas Palluch

Narração
Maria Alice Vergueiro

Música
Cid Campos
Marcelo Brissac

Co-produção
Anders Produções, Ministério da Cultura,
Radiotelevisão Portuguesa e Tv Cultura

Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 74


Instalação Nacional do Grupo de Antropologia da
Alimentação Brasileira (GAAB): em busca do ethos da
alimentação

Raul Lody
Antropólogo e museólogo. Professor, autor e coordenador de diversos trabalhos de etnologia aplicada aos temas de arte
popular tradicional, religiosa e gastronomia – destacando-se nesta área os livros Culinária Bahiana, Culinária do Nordeste do
Litoral ao Sertão, Culinária da Amazônia, Axé da Boca, Santo Também Come, Doçaria de Pelotas. É curador da Fundação
Gilberto Freyre (Recife/PE) e da Fundação Pierre Verger (Salvador/BA). Representa como secretário geral o ICAF no Brasil.

A humanidade vive uma constante busca pelos alimentos e o Brasil promo-


ve agora uma grande mobilização da sociedade civil organizada com o projeto
Fome Zero. É sem dúvida, uma ação global de todos os segmentos da vida brasi-
leiro em um país que é superprodutor de grão, de cítricos, detentor de um dos
maiores rebanhos de gado bovino do mundo, entre tantas e tantas outras mani-
festações de fartura de alimentos.

O mundo produz todos os dias quantidade capaz de alimentar toda a po-


pulação do planeta. Contudo cerca de 24 mil pessoas morre todos os dias por
não ter o que comer.

O caso brasileiro aponta para um país que produz 25,7% de alimentos a


mais do que necessita para alimentar todo o seu povo.

No Brasil são 44 milhões que passam fome, enquanto 70 milhões estão


acima do peso, o que Não significa que comam bem.

Certamente, comer é um ato que vai muito além do biológico, pois comer
é antes de tudo uma interação com a natureza e a cultura. Assim, vive-se na
comida memórias ancestrais, patrimônio cada vez mais valorizado por represen-
tarem as mais contundentes formas de identificar e manifestar pertencimentos a
uma cultura, a um povo. Enfim, pela comida vê-se sinais de diferenças em con-
textos de semelhanças, contudo marcando territórios que auferem e determinam
ter uma identidade ou identidades.

A obra de Gilberto Freyre destaca a casa, a rua, a igreja, o terreiro, a feira, o


mercado, o restaurante entre outros locais de viver sociabilidades, de viver tam-
bém socializações tendo sempre à mesa, no prato, no copo e culminando na
boca, a mais plena celebração de uma cultura, de um momento histórico, social,
ecológico, econômico, enfim, no exercício e na plenitude da humanidade.

Lançar o Grupo de Antropologia da Alimentação Brasileira (GAAB) na Fun-


dação Gilberto Freyre é antes de tudo ser coerente com essa Casa e com o Patrono,
ungidos de açúcar, de cozinhas de casas grandes de mocambos, do melhor
sarapatel que é comido com farinha no mercado, do conhaque de pitanga, do
caju, dos bolos de família, tão assinados e pessoais, assumindo verdadeiras mar-
cas de memória e de criação brasileira.

75
O Grupo de Antropologia da Alimentação Brasileira ( GAAB) foca seus
objetivos sobre o homem, busca compreender o brasileiro, sua multicul-
turalidade, sua diversidade, seus repertórios de ingredientes, receitas, rituais do
fazer e do servir.

Hoje, 16 de outubro, dia mundialmente consagrado como o Dia Internaci-


onal da Alimentação, FAO/ONU, cria o cenário ideal para começar essa cami-
nhada de ações e projetos plantados nessa casa e em rede com outras casas,
fundações, universidades, doceiras, iabassês dos Xangôs e dos Candomblés, mer-
cadores, restaurantes e bares, reunindo mais de trinta milhões de brasileiros dire-
tamente envolvidos com o pão nosso de cada dia, merece receber olhares sensí-
veis, acadêmicos, emocionados sobre tão dignos e notáveis patrimônios do país.

Por tudo isso, instalasse nesse momento, vivendo esse ritual o Grupo de
Antropologia da Alimentação Brasileira (GAAB) na cidade do Recife.

76
Realização

Patrocínio

Apoio

Das könnte Ihnen auch gefallen