Sie sind auf Seite 1von 16

PARENTESCO ENQUANTO UMA ELABORAÇÃO SÓCIO-CULTURAL DA PERCEPÇÃO DO DIMORFISMO

SEXUAL HUMANO

Vanessa R. LEA1

resumo

Os lingüistas geralmente delegam aos antropólogos a análise das terminologias de parentesco.


Antes de enfocar a terminologia de parentesco Mẽbêngôkre, o artigo aborda o que os
antropólogos entendem por parentesco e as principais divergências que surgiram no decorrer de
um século de reflexão sobre esse tema. As últimas duas décadas foram marcadas por uma
aproximação entre parentesco e gênero. É sugerida a possibilidade do mapeamento das categorias
de parentesco ter surgido como uma tentativa de interpretar e atribuir significado ao dimorfismo
sexual humano (permeado por diferenças etárias). Em seguida, são apresentados alguns aspectos
da terminologia de parentesco Mẽbêngôkre, tais como as implicações de sua classificação como
sendo do tipo Omaha. É demonstrada a imbricação da terminologia com a onomástica e a
importância da ordem de nascimento. As metáforas são apontadas como um terreno escorregadio
e é problematizada a universalidade de categorias como ‘pai’. O artigo termina argumentando
que o amante Mẽbêngôkre é concebido como uma forma atenuada de marido ou de esposa e não
como uma categoria que se diferencia do cônjuge, tal como ocorre em português.

palavras-chave
terminologia; parentesco; gênero; onomástica; Mẽbêngôkre; Kayapó; etnologia

O V Encontro de Línguas e Culturas Macro-Jê, fomentando um diálogo entre lingüistas e


antropólogos, forneceu a oportunidade para retomar uma questão que sondei pela primeira vez
num encontro da ANPOCS2 em 2001. Naquela ocasião eu havia proposto discutir a questão de
parentesco e gênero, o que acabou me provocando um malestar, porque percebi que talvez seja
inapropriado cotejar parentesco e gênero, na medida em que parentesco poderia ser caracterizado
como uma construção social-cultural de gênero, no sentido de uma elaboração intelectual sobre a
percepção do dimorfismo sexual humano (permeado por diferenças etárias).3

1
Departamento de Antropologia, IFCH, UNICAMP; vrlea@terra.com.br.
‘Parentesco e Gênero’ texto apresentado na Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais
(ANPOCS), 26/8/01. seminário temático: Sexualidade, Reprodução, Parentesco: Novas Questões, Novos Desafios?
Leituras a partir dos Estudos de Gênero; sessão: Parentesco, filiação, reprodução.
3
Collier e Yanagisako (1987: 32) argumentaram, num livro entitulado Gender and Kinship, que parentesco e
gênero se constituem mutuamente. O sucesso de juntar os dois temas foi refletido no livro de Stone (2000) que
simplesmente inverteu a ordem do título deste livro – Kinship and Gender.
2

A tentativa de definir o que é parentesco constitui um dos debates principais


empreendidos por antropólogos sociais no decorrer do século XX, sendo que não se chegou a
nenhum consenso. Houve aqueles como Gellner (apud Dumont 1971: 38), que se rebelaram
contra o consenso antropológico vigente que frisava o aspecto social do parentesco, insistindo no
seu substrato biológico. Anteriormente, Lévi-Strauss, na sua celebre obra As Estruturas
Elementares de Parentesco (1947), havia argumentado que tudo que é universal remete à
biologia, portanto, não se trata de um tema relevante aos antropólogos. Para este autor, sabemos
que estamos no domínio socio-cultural ao lidar com regras, o tabu de incesto sendo justamente a
única regra universal, a excepcionalidade explicada pelo fato de que o conteúdo daquilo
considerado incesto varia de uma sociedade para outra.
Posteriormente, Needham argumentou que parentesco enquanto tal é algo ilusório; o que
está em jogo é “a alocação de direitos e sua transmissão de uma geração a outra” (1971: 3).
Schneider (1984) também criticou o pressuposto de que parentesco seja um domínio universal, e
questionou a universalidade das nossas categorias genealógicas básicas, como ‘mãe’, e ‘pai’.
Notou que a cultura euro-americana associa parentesco à reprodução sexuada, sendo que não são
todas as culturas que atribuem o mesmo valor ao coito no processo de gerar uma pessoa. Por
exemplo, a reincarnação dos espíritos ou a riqueza da noiva (bridewealth4) podem desempenhar
um papel mais importante do que o genitor na definição do pai social - o pater (ver Evans-
Pritchard 1951, e Strathern, 1995). A tendência a esvaziar o parentesco de qualquer essência
poderia ser sintetizada pela perspectiva de considerar as terminologias de parentesco como
sistemas compostos por categorias de socialidade, ou seja, mapeiam uma rede de relações
básicas. Nos últimos anos, vários autores vêm insistindo que parentesco não é algo dado a priori,
mas construído dentro de relacionamentos que nutrem (nurture, em inglês) a pessoa, fazendo-a
desabrochar, tais como os grupos regidos pela comensalidade (cf. Gow, 1991, Overing, 1999).
Kroeber (1909), refletindo sobre o método genealógico desenvolvido por
Rivers, no início do século XX, percebeu que nenhuma sociedade possui termos para designar
cada posição genealógica. Diversas posições são sempre agrupados em uma mesma categoria;
basta exemplificar nossa designação do irmão do pai e do irmão da mãe, ambos classificados
como ‘tio’.

4
Trata-se das riquezas (por exemplo, cabeças de gado), dada à família da noiva pela família do noivo. Na literatura
mais antiga é denominado ‘preço da noiva’.
3

Autores como Radcliffe-Brown (1950), um dos principais exponentes da teoria de


descendência, contrastou a relação de autoridade da figura materna e da paterna com aquela dos
avós, essa última caracterizada por uma relação mais amena com os filhos de seus próprios filhos.
Em muitas sociedades, os primos cruzados5 são classificados como cônjuges, ou cunhados
potenciais, o que torna inteligível uma ambivalência em relação a eles, caracterizada por relações
jocosas institucionalizadas.
Um dos pioneiros dos estudos de parentesco, o norte-americano Morgan (1871), foi
instigado a elaborar um projeto de pesquisa numa escala mundial depois de constatar o fato,
aparentemente exótico, de que os índios que conheceu no estado de Nova Iorque aplicavam o
mesmo termo ao pai e ao irmão do pai, e à mãe e à irmã da mãe. Tal estudo coincidou com o
auge da influência do evolucionismo e levou a hipóteses mirabolantes, pseudo-históricas e psudo-
científicas, como a idéia de que isso era um resquicio de uma promiscuidade preterita, quando as
pessoas não sabiam quem era seu pai e, portanto, designavam os homens da geração ascendente,
de forma geral, como pais.
Malinowski (1922), o pai fundador do método de participação observante,6 é
frequentemente citado expressando seu desprezo pela alegbra das terminologias de parentesco.
Foi outro norte-americano, Murdock, que elaborou uma das primeiras tipologias sistemáticas das
terminologias de parentesco, na década de 1940. No final do século XX, uma reanálise dessa
tipologia, na França (ver Godelier; Trautman; Tjon Sie Fat orgs., 1998), possibilitada por meio
século de novos dados coletados por várias gerações de antropólogos, resultou num acréssimo de
alguns poucos tipos (e subtipos) suplementares. Sob a influência dos escritos de Lévi-Strauss, as
terminologias de parentesco despertaram o interesse de diversos matemáticos, mas a
formalização em que alguns desembocaram acabaram alienando aqueles de indole não
matemática (me incluindo entre esses últimos).
Na virada do milênio, foi anunciado o advento do pós-parentesco (no rastro da era pós-
industrial e pós-moderna). Sinto que posso questionar a legitimidade desse rótulo, na medida em
que fui autora de um capítulo (ver Lea, 1995), num dos livros atribuidos ao gênero pós-
parentesco. Considero tal rótulo retórica de merchandizing editorial. O que realmente sacudiu os

5
Os primos cruzados são os filhos do irmão da mãe, e os filhos da irmã do pai.
6
Inaugurou a transição da antropologia dos estudos de gabinete à imersão numa pesquisa de campo.
4

alicerces da natureza e dos fatos de parentesco foram as novas tecnologias reprodutivas, mas são
pouco relevantes ao que está sendo analisado neste artigo.
Héritier, uma dos herdeiros inteletuais de Lévi-Strauss, considera a diferença sexual um
dos fatos irredutíveis de parentesco (1979: 30-31). Conforme o método estruturalista, ela se
interessa não apenas por combinações constatadas empiricamente, mas por aquelas logicamente
possíveis. Ela notou (1979: 32-33) que nunca foi constatada uma sociedade onde o irmão da mãe
fosse colocado na mesma categoria que o pai, com o irmão do pai designada por uma categoria
separada (F=MB≠FB7). Ou seja, é comum colocar o pai e o irmão do pai numa mesma categoria
porque estão no polo do idêntico, sendo do mesmo sexo. O parente de ligação de Ego, ao traçar
sua relação com o MB, é a mãe, ou seja, alguém de sexo oposto da pessoa designada (o tio
materno8). A mesma lógica explica a frequência das terminologias que colocam a mãe e sua irmã
em uma mesma categoria, distinta da categoria para a tia paterna. Ao tentar explicar esse fato
simples, constato que a explanação verbal torna a questão, aparentemente, mais complicada. Pode
ser visualizado com mais facilidade do que explicado com palavras (ver diagramas).

7
É usada a notação padrão, proveniente do inglês. Portanto, F = father (pai); M = mother (mãe), B = brother (irmão);
Z = sister (irmã), S = son (filho), e D = daughter (filha). Os demais termos compostos são invertidos devido à
apóstrofe em inglês. Portanto, MB = irmão da mãe (tio materno), e FZ = irmã do pai (tia paterna).
8
Em latim, o avunculus se refere ao tio materno. Em português, o substantivo ‘avunculato’ se refere a uma relação
institucionalizada e não ao tio materno enquanto tal, e o adjetivo ‘avuncular’ é definido pelo dicionário Aurélio como
“relativo ao tio materno”. Portanto, falta um substantivo para designar tal tio especificamente.
5

nhênget kwatyj
` nhênget kwatyj
` Termos de parentesco para Ego feminino

nhênget kwatyj
` nã bam nã bam nã bam nhênget kwatyj
`

nhênget nã kamy kanikwoyj


` kamy Ego `
kanikwoyj kamy kanikwoj kra

tabdjwy
` kra kra tabdjwỳ

tabdjwy
` tabdjwỳ

Glosa dos termos nã = mãe, filha do irmão da mãe...


bam = pai...
nhênget = irmão da mãe, pai do pai, pai da mãe, filho do irmão da mãe... kamy = irmão...
kwatyj
` = irmã do pai, mãe do pai e mãe da mãe... kanikwoyj` = irmã...
tabdjwy
` = filhos do irmão, netos, filhos da irmã do pai... kra = filho/a, filhos da irmã,filhos da irmã do pai

A linha pontilhada indica a transmissão de nomes

Termos de parentesco para Ego masculino

nhênget kwatyj
` nhênget kwatyj
`

nhênget kwatyj
` nã bam nã bam nã bam nhênget kwatyj
`

nhênget nã kamy kanikwoyj


` kamy Ego `
kanikwoyj kamy kanikwoyj
` tabdjwỳ

kra kra tabdjwỳ

tabdjwỳ tabdjwỳ

Glosa dos termos nã = mãe


bam = pai
nhênget = irmão da mãe, pai do pai e pai da mãe kamy = irmão
kwatyj
` = irmã do pai, mãe do pai e mãe da mãe kanikwoyj` = irmã
tabdjwy` = netos, filhos da irmã, filhos da irmã do pai kra = filho/a, filhos do irmão

A linha pontilhada indica a transmissão de nomes


6

Kroeber (1909) enumerou 8 princípios que podem ser acionados em uma terminologia de
parentesco.9 A distinção sexual integra três princípios, ou seja, referente ao sexo do parente, o
sexo de quem fala, e o sexo do parente de ligação. Ao expor essa questão na ANPOCS, uma
psicoanalista me acusou de estar querendo retroceder à irredutibilidade dos dois sexos, algo que
algumas feministas consideram ultrapassada. De acordo com Piscitelli (1998), a expressão
“identidade de gênero” surgiu inicialmente em 1963,10 e foi no artigo de Rubin (1975) ‘The
traffic in women’, que foi usada pela primeira vez para falar de um sistema de sexo e gênero.
Seja como for, essa distinção entre sexo e gênero permitiu uma mutação cognitiva, ou revolução
epistemológica, ao possibilitar cindir a percepção da diferença sexual da sua elaboração socio-
cultural. Teoricamente, pelo menos, é possível perceber a distinção entre alguém de sexo
masculino e alguém de sexo feminino sem isso acarretar julgamentos valorativos. A percepção
está no polo do biológico, possibilitada pela visão. As representações projetadas a partir dessa
percepção são inteiramente socio-culturais.
Lévi-Strauss (1956: 114-116) enfatisa que a divisão sexual de trabalho é um artifício
inteiramente socio-cultural (sem qualquer fundamento natural - no sentido de biológico) que cria
uma dependência mútua entre os dois sexos ou, na paráfrase de Héritier (1979), um contrato de
sustento mútuo. Héritier (1979) afirma que acabar com a divisão sexual de trabalho ameaçaria a
existência da família nuclear. A subversividade dessa possibilidade é evidenciada pela resistência
a mudanças por parte das igrejas católicos e protestantes (entre outras). Para Lévi-Strauss (1956:
114), é essa divisão sexual de trabalho, encontranda na maioria das sociedades, que torna o
casamento heterossexual fundamental, dando origem à família. E a permuta de cônjuges entre as
famílias cria alianças, gerando sociedades.
Rubin (1975) ganhou renome ao acusar Lévi-Strauss de tratar as mulheres como objetos
que circulam entre os homens. Porém, na teoria da aliança matrimonial desse autor é indiferente
quem circula - as mulheres ou os homens. A leitura que Rubin (1975) e Butler (2003) fazem de
Lévi-Strauss é problemática no que diz respeito à exposição das idéias desse autor. No entanto,

9
A diversidade de sistemas existentes pode ser reduzida a 8 princípios subjacentes: 1) a diferença entre pessoas da
minha/outras gerações; 2) a diferença entre parentes lineares/colaterais, por exemplo, o pai versus o irmão do pai; 3)
a diferença de idade numa mesma geração; 4) o sexo do parente; 5) o sexo de quem fala, algo não representado na
maioria das línguas européias; 6) o sexo do parente de ligação; 7) a distinção entre consangüíneos/afins; 8) a
condição de vida do parente de ligação - vivo/morto; consangüíneo/afim; casado/separado.
10
Foi introduzido pelo psicoanalista Robert Stoller, mas seu uso deslanchou após a publicação do artigo de Rubin,
apud Piscitelli, 1998: 308, nota 8. O dicionário Oxford cita a primeira referência ao gênero masculino e feminino, em
inglês, no século XIV, mas foi apenas no século XX que adquiriu o sentido atual, contrastando com o sexo biológico.
7

ao insistirem que heterossexualidade é compulsória na teoria lévi-straussiana, elas apontam,


implicitamente, para o elo entre gênero e parentesco.
Não considero que o parentesco possa ser comparado com o político, o econômico e a
religião, outros pilares clássicos da disciplina antropológica. Nunca fui convencida de que
religião é uma categoria universal, e se Dumont (1985) argumentou pela autonomização
gradativa da esfera política e da econômia, no decorrer da história do Ocidente, o quê fazer com o
parentesco? Lévi-Strauss descartou qualquer noção de natureza humana, enfocando, em vez
disso, a natureza da mente. A linguistica estrutural, e mais especificamente a fonologia
(elaborando sistemas a partir de oposições distintivas – como o surdo e o sonoro), é
provavlemente responsável pelo fascínio de Lévi-Strauss com a extensão do leque da
racionalidade humana que caracteriza o projeto inteletual dele. Numa via paralela, Radcliffe-
Brown (1952), no ensaio entitulado ‘o método comparativo’, argumentou que a associação de
contrários constitui uma das formas mais elementares e universais do pensamento humano. Para
comprová-lo, comparou mitos provenientes da Austrália e da América do Norte, quase idênticos
em seus conteúdos, sendo que a distância que separa os dois continentes torna a questão de
difusão fora de cogitação.

Um exame da terminologia de parentesco Mẽbêngôkre

A terminologia de parentesco Mẽbêngôkre é classificada como sendo do tipo Omaha. Na


tipologia Crow-Omaha, a variante Crow é geralmente associada como matrilinearidade, enquanto
terminologias Omaha são associadas com patrilinearidade, como aquela dos Samo da Alto Volta
da África, estudada por Héritier (1979, 1981). Essa autora argumenta que as terminologias Crow-
Omaha implicam uma valorização diferencial dos dois sexos. Ego masculino classifica os filhos
de seus irmãos como filhos classificatórios, enquanto classifica os filhos de suas irmãs da mesma
maneira que seus netos. Isso demonstraria a minorização do sexo feminino.
O problema com a análise de Héritier e que, na terminologia Mẽbêngôkre, as mulheres
classificam os filhos de suas irmãs como filhos classificatórios, e os filhos de seus irmãos são
classificados pela mesma categoria que os netos (ver diagramas acima). Há, portanto, simetria
perfeita entre a lógica masculina e feminina. É interessante que, no que diz respeito aos filhos dos
germanos dos cônjuges, de ambos os sexos, Ego tende a adotar a perspectiva do cônjuge. Ou seja,
8

um homem refere aos filhos das irmãs da esposa como ‘filhos’, e os filhos dos irmãos da esposa
como tabdjwỳ (glosável como ‘netos’). Uma esposa adota o procedimento equivalente.
Nosso entendimento das terminologias do tipo Crow-Omaha exige uma boa dose de
relativismo cognitivo porque, ao contrário dos nossos sistemas (em português ou inglês), não
recorrem ao princípio geracional. Ou seja, fazem equações oblíquas, do tipo, o irmão da mãe é
classificado na mesma categoria que o avô materno e o paterno (nhênget). É difícil dizer qual
posição genealógica seria primária – aquela do tio materno ou do avô; são eqüidistantes de Ego.
Isto vale igualmente para a tia paterna e avó (kwatỳj). Simetricamente com o termo nhênget, a
irmã do pai é designada do mesmo jeito que a avó materna e a paterna.
Héritier (1979) notou que o próprio Lévi-Strauss (1947) supunha, erroneamente, que Ego
masculino dá conta do recado, no mesmo sentido que o uso gramatical do masculino em
português, onde posso me referir a um grupo composto por pessoas de ambos os sexos como
“eles”, com a forma masculina englobando a feminina. No que diz respeito à terminologia de
parentesco Mẽbêngôkre, há uma distinção importante na classificação feminina e masculina que é
imprescindível para a lógica do sistema. Ego feminino e masculino designam seus primos
cruzados matrilaterias da mesma forma, colocando-os, respectivamente, na categoria de ‘mãe’ e
de ‘irmão da mãe’. No que diz respeito aos primos cruzados patrilaterais, Ego feminino os
classifica como filhos e, concomitantemente, Ego masculino os classifica como ‘filhos da irmã’
(a mesma categoria que ‘netos’).
Parece evidente que a terminologia de parentesco deve preceder, em termos temporais, o
sistema onomástica. Sem saber explicar o fenômeno, pode ser constatada que a terminologia de
parentesco Mẽbêngôkre é congruente com o sistema onomástico. Ego masculino e feminino
chamam a prima cruzada matrilateral de mãe, porque a mãe dos Egos é a nominadora ideal dessa
prima deles. Da perspectiva da mãe dos Egos, ela transmite seus nomes à filha de seu próprio
irmão. Logicamente, então, o primo cruzado matrilateral é uma espécie de ‘irmão da mãe’.
A forma ideal da transmissão de nomes, para Ego masculino e feminino, é simétrica
apenas superficialmente. Um homem sai de sua casa natal ao casar, de acordo com a norma de
uxorilocalidade, e devolve seus nomes à sua casa natal, para os filhos das irmãs. As mulheres, por
sua vez, emprestam seus nomes às filhas dos irmãos. Tais sobrinhas detêm ususfruto vitalício dos
nomes, mas devem devolvê-los, ou delegar sua re-transmissão (procedimentos equivalentes), às
herdeiras uterinas da nominadora (ou seja, as primas cruzadas patrilaterais). Nem pai nem mãe
9

podem transmitir seus nomes a seus filhos, apenas às pessoas da categoria tabdjwỳ. Portanto, Ego
feminina e sua nominadora ideal (a FZ), pertencem à mesma categoria em relação à menina que
recupera os nomes pertencentes à sua casa natal (a FZDD de Ego, ver diagrama novamente). Para
a menina em questão, ambas as mulheres são kwatèj.
Minha pesquisa sobre os Mẽbêngôkre foi a primeira a enfatisar a importância da
incorporação da ordem de nascimento na terminologia de parentesco (Lea, 1986). É algo ligada à
autoridade, e não constitutei uma ordem de precedência matrimonial, tal como ocorre em
algumas sociedades. Há claramente uma desvalorização dos caçulas de ambos os sexos.
Representam uma espécie de fim de linha de produção, quando seus pais já esgotaram seu
estoque de nomes e de prerrogativas transmissíveis, além da energia necessária para angariar
forças para produzir uma grande cerimônia de nominação.
Um caminho que falta explorar na análise da terminologia de parentesco Mẽbêngôkre
seria a comparação das distinções que se mantêm estáveis (e quais são mutáveis) ao cotejar as
diversas formas terminológicas. Há contrastes nas distinções realizadas, respectivamente, nos
termos de referência e vocativos básicos, na terminologia empregada no choro, nos cântigos dos
chefes, e na terminologia triádica (ver Lea, 2004). Ainda não pude aprofundar essa questão.

Conclusão

Alguns antropólogos já discutiram a questão do emprego de metáforas e o que constitui


uma metáfora (Turner, 1985, J.C. Crocker, 1977, entre outros). DaMatta (1976) alegou que os
Apinayé chamam o tio materno e os avós de ‘cabeça velha’ (krã tum), a mesma expressão usada
pelos Mẽbêngôkre. No entanto, krã designa diversas formas redondas e não apenas a cabeça
humana. É usada para descrever o túmulo, a flor da bananeira, e a glande do pênis. Portanto, não
é necessariamente mais elucidativo comparar o tio materno e os avós à cabeça do que explicar
algo pelo fato dos ingleses medir distância e peso em termos de pés e pedras (feet and stone). A
palavra para mão e para filho são homônimos, distinguidos pelo prefixo possessivo empregado.
Tais usos, por sua vez, evocam o sib anglo-saxão (descrito por Radcliffe-Brown, 1950), uma
forma de organização social na qual o grau de distância dos primos era medida em termos das
juntas do corpo. Enfim, as metáforas apontam para outro caminho que poderia ser explorado, mas
esse tema não pode ser elaborado nessa ocasião.
10

Dumont (1971), inspirado pela lingüística, resumiu o que é parentesco pela oposição entre
consanguinidade e afinidade, o conteúdo de cada categoria variando de uma sociedade a outra.
Precisa ser enfatisado que qualquer referência a ‘sangue’ ou ‘genes’ é apenas uma metáfora que
exprime uma sensação intuitiva de metonímia. E poderia ser argumentado que, em vez de
biologia, parentesco consangüíneo evoca uma relação metonímica, ou sintagmática.11
Lévi-Strauss (1947) estava à procura de mecanismos de aliança matrimonial que geram
integração social. Estava pouco interessado pela questão da sexualidade, algo que poderia ser
resolvida das mais diversas formas na opinião dele. É significativo que, na língua mẽbêngôkre, a
mesma palavra é usada para designar cônjuges e amantes. Para explicar isso, já recorri à
expressão ‘shadow minister’, em inglês. Trata-se do ministro da oposição que assumiria o cargo
de primeiro ministro caso esse fosse destituído. A importância do parâmentro de distância já se
tornou um tema clássico na etnologia das terras baixas, distinguindo, por exemplo, os sistemas
dravidianos da India do dravidianato amazônico. Por analogia, os amantes12 parecem ser
concebidos como uma espécie de cônjuge de intensidade atenuada para os Mẽbêngôkre (com
quem não se mora debaixo do mesmo teto), sendo a fonte de novos cônjuges em casos de
separação ou falecimento.
Algumas tentativas foram feitas para demonstrar que há sociedades onde inexistem
determinadas figuras clássicas do panteão de parentesco (Cai, 1997, e Geffray, 2000).13 No que
diz respeito aos Mẽbêngôkre, é significativo que posso perguntar para alguém “quem é teu pai?”,
e obter uma resposta inteligível, embora haja a possibilidade de alguém ter dois pais, um
principal e outro que ajudou, um fenômeno amplamente difundido nas terras baixas (ver
Beckerman, e Valentine orgs., 2002). Os Mẽbêngôkre negam veementemente que uma mulher
pode engravidar através de uma única relação sexual. Perguntei para uma mulher se era verdade
que Fulano fez o filho dela. Me respondeu que não, foi “amante só um pouquinho”, em outras
palavras, não tinha intercurso suficiente com ele para poder engravidar. Isto significa que, ao
conversar com um Mẽbêngôkre sobre a figura do pai, nossas perspectivas se sobrepõem até um
determinado grau (como num diagrama Venn), mas não coincidem inteiramente. As novas

11
Leach (1976) associa uma corrente sintagmática e metonimia.
12
O amante é krôaj mied (masculino) ou krôaj prõ (feminina), ou ainda mied/prõ kaàk. Os termos krôaj e kaàk são
sinônimos que geralmente são traduzidos como ‘pseudo’. Já que isso tem a conotação de ‘falso’ (algo que soa
pejorativo), o adjetivo ‘atenuado’ é uma glosa mais apropriada.
13
Ao questionar a universalidade da noção de genealogias, foi introduzido o termo pedigree, que seria o equivalente
‘nativo’ da genealogia construida pelo antropólogo. Do meu ponto de vista, a palavra pedigree evoca cães e cavalos.
Portanto, não considero tal distinção particularmente útil.
11

tecnologias estão conduzindo a uma biologização exacerbada de parentesco na nossa sociedade,


com homens renegado filhos após um exame de DNA, enquanto os Mẽbêngôkre eliminam uma
porcentagem de homens que nos reconheceremos como genitores devido a outra teoria de
concepção humana.
Ao construir diagramas, os antropólogos usam um círculo para representar as mulheres,
um triângulo para os homens, e foi introduzido o quadrado para representar alguém cujo sexo é
irrelevante ou desconhecido (um feto abortado por exemplo). A língua inglesa tem o neutro (it,
além do masculino e do feminino), algo inconcebível em português, ou francês. Há muito tempo
me pergunto se é uma questão puramente lingüística, ou se acarreta implicações socio-culturais
no que diz respeito às representações sobre gênero. Delego a resposta aos lingüistas.
No programa de Pós-Graduação em Antropologia da UNICAMP, Dorotea Grijalva, a
primeira mestre indígena, da etnia quiché guatemalteca, ficou indignada ao ser informada por
mim que os Mẽbêngôkre nem cogitavam ter uma professora. Nos cursos dos quais participei,
para a formação de professores bilingues, inicialmente havia mulheres para cozinhar e lavar louça
durante os cursos. Posteriormente os cursos foram realizados fora das aldeias devido ao sono dos
alunos que aproveitavam a viagem a outras aldeais para namorar. A escola lida com o mundo dos
brancos, um assunto de homens. Conforme dizem os Mẽbêngôkre, antes brigavam com bordunas,
mas hoje aprenderam a brigar com a boca (argumentando). Trocando em miudos, nós caraiba
pudemos chegar à noção do cidadão, munido de direitos, independentemente de seu sexo, mas
não se trata de uma perspectiva compartilhada universalmente. Isso demonstra que as questões
abordadas neste paper não são apenas abstrações inteletuais. São relevantes aos projetos de
desenvolvimento e à discussão sobre a universalidade dos direitos humanos. É politicamente
correto insistir na universalização da educação feminina, mas isso implica conceder espaço
mental para o quadrado, o neutro. É algo que precisa vir de baixo e não pode ser imposto de
cima.
Enfim, é convincente que parentesco não se reduz a alguma essência do tipo ‘blood is
thicker than water’ (o sangue é mais grosso do que água), e nem é uma mera grade que mapeia
categorias de socialidade. A alternativa colocada aqui é que seja algo construído para tentar fazer
sentido do dimorfismo sexual. Ao desembocar na irrelevância disso, após milênios de história,
12

marcados por inúmeras tentativas de interpretação, a desconstrução do parentesco finalmente


chegou ao nosso alcance, graças em grande medida às feministas e ao movimento gay.14

abstract

Linguists generally delegate the analysis of kinship terminologies to anthropologists. Before


focusing on the Mẽbêngôkre kinship terminology, this article looks at what anthropologists
understand by kinship and the main disagreements that have emerged over the course of a century
of reflection on this theme. The last two decades have witnessed an approximation between
kinship and gender. The possibility is suggested of the mapping out of kinship categories having
arisen in the attempt to interpret and attribute meaning to human sexual dimorphism (permeated
by age differences). This discussion is followed by the presentation of some aspects of the
Mẽbêngôkre kinship terminology, such as the implications of being classified as Omaha. It is
shown how the terminology is interwoven with the onomastic system, besides the importance of
birth order. Metaphors lead us into slippery terrain and the universality of categories such as
‘father’ prove to be problematic. The paper ends showing that Mẽbêngôkre lovers are conceived
as attenuated forms of husband or wife, rather than as a category differentiated from the spouse,
as is the case in Portuguese.

keywords
terminology; kinship; gender; onomastics; Mẽbêngôkre; Kayapó; anthropology

REFERÊNCIAS

BECKERMAN, Stephen, e Paul VALENTINE (orgs.). Cultures of Multiple Fathers: the


theory and practice of partible paternity in Lowland South America. Gainesville: editora da
Universidade de Florida, 2002.

BUTLER, Judith. ‘O parentesco é sempre tido como heterossexual?’ Cadernos Pagu (21), 2003,
p. 219-260.

CAI, Hua. Une société sans père ni mari. Les Na de Chine. Paris: Presses Universitaires de
France, 1997.

14
Sugeri para meus alunos, num curso de parentesco, que num mundo de recursos sobrecarregados, poderia,
futuramente, se tornar politicamente e ecologicamente correto ser gay e adotar crianças (em vez de recorrer às novas
tecnologias reprodutivas), para diminuir a pressão humana sobre o globo. Os índios, por sua vez, poderiam ser
beneficiados por políticas demográficas compensatórias em relação ao genocídio que sofreram, assegurnado mais
terra para sua expansão.
13

COLLIER, Jane F. e YANAGISAKO, S.J. (orgs.). Gender and Kinship: Essays Towards a
Unified Analysis. Stanford: Stanford University Press, 1987.

CROCKER, J. C. ‘My brother the parrot’. In: The Social Use of Metaphor, SAPIR, J.D., e
CROCKER J.C. (orgs.). Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1977.

DA MATTA, R. Um Mundo Dividido: A Estrutura Social dos índios Apinayé. Petrópolis:


Editora Vozes Ltda, 1976.

DUMONT, Louis. Introduction à deux théories d'anthropologie. Paris: Mouton, 1971.


_____ O Individualismo: Perspectiva Antropológica da Ideologia Moderna. Rio de Janeiro:
Rocco, 1985.

EVANS-PRITCHARD, E.E. Kinship and Marriage among the Nuer.


Oxford: Clarendon Press,1951 (1992).

GEFFRAY, Christian. Nem pai, nem mãe: crítica do parentesco: o caso macua. Lisboa:
Editorial Ndjira, 2000.

GODELIER, M., TRAUTMAN, T.R. e TJON SIE FAT, F. (orgs.). Transformations of Kinship.
Washington: Smithsonian Institution Press, 1998.

GOW, P. Of Mixed Blood: kinship and History in Peruvian Amazonia. Oxford: Clarendon
Press, 1991.

GRIJALVA, Dorotea Gómez. ‘Ri b´anikil tinamit, ri b´anikil winaq rech usuk´maxik rij ri
saqamaq´-tinamitil pa we Paxil Kayalá. A etnia e o gênero na construção do Estado-Nação
guatemalteco’. Dissertação de mestrado, IFCH, UNICAMP, 2007.

HERITIER, Françoise. L'exercise de la parenté. Paris: Gallimard, 1981.


14

_____ Casamento; Família; Parentesco. In: ENCICLOPÉDIA EINAUDI 20. Parentesco. Lisboa:
Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1979 (1989).

KROEBER, A.L. Sistemas classificatórios de parentesco. In: Organização Social. R. LARAIA


org.. Rio de Janeiro: Zahar, 1909 (1969).

LEA, V. Nomes e nekrets Kayapó: uma concepção de riqueza. Tese de Doutorado, Museu
Nacional, Universidade Federal de Rio de Janeiro, 1986.
_____ The houses of the Mẽbengokre (Kayapó) of Central Brazil - a new door to their social
organization. In: CARSTEN, J e HUGH-JONES, S. (orgs.) About the house: Lévi-Strauss and
Beyond. Cambridge University Press (CUP), 1995, p. 206-225.
_____ Parentesco e Gênero, texto apresentado na Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), no seminário temático: Sexualidade, Reprodução,
Parentesco: Novas Questões, Novos Desafios? Leituras a partir dos Estudos de Gênero; sessão:
Parentesco, filiação, reprodução, 26/8/01.
_____ Aguçando o entendimento dos termos triádicos Mẽbêngôkre via os aborígenes
australianos: dialogando com Merlan e outros. Liames, IEL, UNICAMP, Campinas, 2004. p. 29-
42.

LEACH, E. Culture and Communication: the Logic by which Symbols are Connected. An
introduction to the use of structural analysis in Social Anthropology. Cambridge: Cambridge
University Press, 1976.

LEVI-STRAUSS, Claude. Les Structures Elementaires de la Parenté. Paris: Mouton, 1947


(1981).
_____ La Famille. In : Claude Lévi-Strauss: Textes de et sur Claude Lévi-Strauss réunis par
Raymond Bellour et Catherine Clément. Paris : Gallimard, 1956 (1979).

MALINOWSKI, Bronislaw. Argonauts of the Western Pacific. New York: Dutton, 1922
(1961).
15

MORGAN, Lewis, H. Systems of Consanguinity and Affinity of the Human Family.


Anthropological Publications: Oosterhout, Holanda, 1871 (1970)

MURDOCK, G.P. Social Structure. New York: Macmillan, 1949.

NEEDHAM, R. Remarks on the analysis of kinship and marriage. In: Rethinking Kinship and
Marriage. NEEDHAM, R. (org.). London: Tavistock, 1967 (1971).

NOVO DICIONÁRIO AURÉLIO SÉCULO XXI. CD-Rom versão 3.0.

OVERING, J. ‘Elógio do cotidiano: a confiança e a arte da vida social em uma comunidade


amazônica’. In: Mana 5/1. p. 81-107, 1999.

Oxford English Dictionary (Second Edition). CD-ROM Version 3.01. Oxford: Oxford
University Press, 2002.

PISCITELI, Adriana. Nas fronteiras do natural: gênero e parentesco. Revista de Estudos


Feministas, n0 2, 1998.

RADCLIFFE-BROWN, A.R. Introdução. In: Sistemas políticos africanos de parentesco e


casamento. RADCLIFFE-BROWN e FORDE D. (orgs.) Lisboa: F. Calouste Gulbenkian, 1950
(1982).
_____ The comparative method in Social Anthropology. In: KUPER, A. (org.). The Social
Anthropology of Radcliffe-Brown, London: Routledge, 1952 (1977), p. 53-69.

RUBIN, G. The traffic in women: notes on the ‘political economy’ of sex. In: REITER R. (org.).
Toward an Anthropology of Women. New York: Monthly Review Press, 1975.

SCHNEIDER, D. A critique of the study of kinship. Ann Arbor: Univ. of Michigan Press,
1984.

STONE, Linda. Kinship and Gender. Westview Press, 2000.


16

STRATHERN, M. Necessidade de pais, necessidade de mães. Estudos Feministas. Ano 3 n0 2,


p. 303-329, 1995.

TURNER, T. Animal symbolism, totemism and the structure of myth. In: URTON, Gary (org.)
Natural Mythologies: Animal symbols and Metaphors in South America. University of Utah
Press. 1985. p. 49-106.

URTON, G. (org.) Animal myths and metaphors in South America. Salt Lake City: University
of Utah Press, 1985.

Das könnte Ihnen auch gefallen