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SEXUAL HUMANO
Vanessa R. LEA1
resumo
palavras-chave
terminologia; parentesco; gênero; onomástica; Mẽbêngôkre; Kayapó; etnologia
1
Departamento de Antropologia, IFCH, UNICAMP; vrlea@terra.com.br.
‘Parentesco e Gênero’ texto apresentado na Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais
(ANPOCS), 26/8/01. seminário temático: Sexualidade, Reprodução, Parentesco: Novas Questões, Novos Desafios?
Leituras a partir dos Estudos de Gênero; sessão: Parentesco, filiação, reprodução.
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Collier e Yanagisako (1987: 32) argumentaram, num livro entitulado Gender and Kinship, que parentesco e
gênero se constituem mutuamente. O sucesso de juntar os dois temas foi refletido no livro de Stone (2000) que
simplesmente inverteu a ordem do título deste livro – Kinship and Gender.
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Trata-se das riquezas (por exemplo, cabeças de gado), dada à família da noiva pela família do noivo. Na literatura
mais antiga é denominado ‘preço da noiva’.
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Os primos cruzados são os filhos do irmão da mãe, e os filhos da irmã do pai.
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Inaugurou a transição da antropologia dos estudos de gabinete à imersão numa pesquisa de campo.
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alicerces da natureza e dos fatos de parentesco foram as novas tecnologias reprodutivas, mas são
pouco relevantes ao que está sendo analisado neste artigo.
Héritier, uma dos herdeiros inteletuais de Lévi-Strauss, considera a diferença sexual um
dos fatos irredutíveis de parentesco (1979: 30-31). Conforme o método estruturalista, ela se
interessa não apenas por combinações constatadas empiricamente, mas por aquelas logicamente
possíveis. Ela notou (1979: 32-33) que nunca foi constatada uma sociedade onde o irmão da mãe
fosse colocado na mesma categoria que o pai, com o irmão do pai designada por uma categoria
separada (F=MB≠FB7). Ou seja, é comum colocar o pai e o irmão do pai numa mesma categoria
porque estão no polo do idêntico, sendo do mesmo sexo. O parente de ligação de Ego, ao traçar
sua relação com o MB, é a mãe, ou seja, alguém de sexo oposto da pessoa designada (o tio
materno8). A mesma lógica explica a frequência das terminologias que colocam a mãe e sua irmã
em uma mesma categoria, distinta da categoria para a tia paterna. Ao tentar explicar esse fato
simples, constato que a explanação verbal torna a questão, aparentemente, mais complicada. Pode
ser visualizado com mais facilidade do que explicado com palavras (ver diagramas).
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É usada a notação padrão, proveniente do inglês. Portanto, F = father (pai); M = mother (mãe), B = brother (irmão);
Z = sister (irmã), S = son (filho), e D = daughter (filha). Os demais termos compostos são invertidos devido à
apóstrofe em inglês. Portanto, MB = irmão da mãe (tio materno), e FZ = irmã do pai (tia paterna).
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Em latim, o avunculus se refere ao tio materno. Em português, o substantivo ‘avunculato’ se refere a uma relação
institucionalizada e não ao tio materno enquanto tal, e o adjetivo ‘avuncular’ é definido pelo dicionário Aurélio como
“relativo ao tio materno”. Portanto, falta um substantivo para designar tal tio especificamente.
5
nhênget kwatyj
` nhênget kwatyj
` Termos de parentesco para Ego feminino
nhênget kwatyj
` nã bam nã bam nã bam nhênget kwatyj
`
tabdjwy
` kra kra tabdjwỳ
tabdjwy
` tabdjwỳ
nhênget kwatyj
` nhênget kwatyj
`
nhênget kwatyj
` nã bam nã bam nã bam nhênget kwatyj
`
tabdjwỳ tabdjwỳ
Kroeber (1909) enumerou 8 princípios que podem ser acionados em uma terminologia de
parentesco.9 A distinção sexual integra três princípios, ou seja, referente ao sexo do parente, o
sexo de quem fala, e o sexo do parente de ligação. Ao expor essa questão na ANPOCS, uma
psicoanalista me acusou de estar querendo retroceder à irredutibilidade dos dois sexos, algo que
algumas feministas consideram ultrapassada. De acordo com Piscitelli (1998), a expressão
“identidade de gênero” surgiu inicialmente em 1963,10 e foi no artigo de Rubin (1975) ‘The
traffic in women’, que foi usada pela primeira vez para falar de um sistema de sexo e gênero.
Seja como for, essa distinção entre sexo e gênero permitiu uma mutação cognitiva, ou revolução
epistemológica, ao possibilitar cindir a percepção da diferença sexual da sua elaboração socio-
cultural. Teoricamente, pelo menos, é possível perceber a distinção entre alguém de sexo
masculino e alguém de sexo feminino sem isso acarretar julgamentos valorativos. A percepção
está no polo do biológico, possibilitada pela visão. As representações projetadas a partir dessa
percepção são inteiramente socio-culturais.
Lévi-Strauss (1956: 114-116) enfatisa que a divisão sexual de trabalho é um artifício
inteiramente socio-cultural (sem qualquer fundamento natural - no sentido de biológico) que cria
uma dependência mútua entre os dois sexos ou, na paráfrase de Héritier (1979), um contrato de
sustento mútuo. Héritier (1979) afirma que acabar com a divisão sexual de trabalho ameaçaria a
existência da família nuclear. A subversividade dessa possibilidade é evidenciada pela resistência
a mudanças por parte das igrejas católicos e protestantes (entre outras). Para Lévi-Strauss (1956:
114), é essa divisão sexual de trabalho, encontranda na maioria das sociedades, que torna o
casamento heterossexual fundamental, dando origem à família. E a permuta de cônjuges entre as
famílias cria alianças, gerando sociedades.
Rubin (1975) ganhou renome ao acusar Lévi-Strauss de tratar as mulheres como objetos
que circulam entre os homens. Porém, na teoria da aliança matrimonial desse autor é indiferente
quem circula - as mulheres ou os homens. A leitura que Rubin (1975) e Butler (2003) fazem de
Lévi-Strauss é problemática no que diz respeito à exposição das idéias desse autor. No entanto,
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A diversidade de sistemas existentes pode ser reduzida a 8 princípios subjacentes: 1) a diferença entre pessoas da
minha/outras gerações; 2) a diferença entre parentes lineares/colaterais, por exemplo, o pai versus o irmão do pai; 3)
a diferença de idade numa mesma geração; 4) o sexo do parente; 5) o sexo de quem fala, algo não representado na
maioria das línguas européias; 6) o sexo do parente de ligação; 7) a distinção entre consangüíneos/afins; 8) a
condição de vida do parente de ligação - vivo/morto; consangüíneo/afim; casado/separado.
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Foi introduzido pelo psicoanalista Robert Stoller, mas seu uso deslanchou após a publicação do artigo de Rubin,
apud Piscitelli, 1998: 308, nota 8. O dicionário Oxford cita a primeira referência ao gênero masculino e feminino, em
inglês, no século XIV, mas foi apenas no século XX que adquiriu o sentido atual, contrastando com o sexo biológico.
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um homem refere aos filhos das irmãs da esposa como ‘filhos’, e os filhos dos irmãos da esposa
como tabdjwỳ (glosável como ‘netos’). Uma esposa adota o procedimento equivalente.
Nosso entendimento das terminologias do tipo Crow-Omaha exige uma boa dose de
relativismo cognitivo porque, ao contrário dos nossos sistemas (em português ou inglês), não
recorrem ao princípio geracional. Ou seja, fazem equações oblíquas, do tipo, o irmão da mãe é
classificado na mesma categoria que o avô materno e o paterno (nhênget). É difícil dizer qual
posição genealógica seria primária – aquela do tio materno ou do avô; são eqüidistantes de Ego.
Isto vale igualmente para a tia paterna e avó (kwatỳj). Simetricamente com o termo nhênget, a
irmã do pai é designada do mesmo jeito que a avó materna e a paterna.
Héritier (1979) notou que o próprio Lévi-Strauss (1947) supunha, erroneamente, que Ego
masculino dá conta do recado, no mesmo sentido que o uso gramatical do masculino em
português, onde posso me referir a um grupo composto por pessoas de ambos os sexos como
“eles”, com a forma masculina englobando a feminina. No que diz respeito à terminologia de
parentesco Mẽbêngôkre, há uma distinção importante na classificação feminina e masculina que é
imprescindível para a lógica do sistema. Ego feminino e masculino designam seus primos
cruzados matrilaterias da mesma forma, colocando-os, respectivamente, na categoria de ‘mãe’ e
de ‘irmão da mãe’. No que diz respeito aos primos cruzados patrilaterais, Ego feminino os
classifica como filhos e, concomitantemente, Ego masculino os classifica como ‘filhos da irmã’
(a mesma categoria que ‘netos’).
Parece evidente que a terminologia de parentesco deve preceder, em termos temporais, o
sistema onomástica. Sem saber explicar o fenômeno, pode ser constatada que a terminologia de
parentesco Mẽbêngôkre é congruente com o sistema onomástico. Ego masculino e feminino
chamam a prima cruzada matrilateral de mãe, porque a mãe dos Egos é a nominadora ideal dessa
prima deles. Da perspectiva da mãe dos Egos, ela transmite seus nomes à filha de seu próprio
irmão. Logicamente, então, o primo cruzado matrilateral é uma espécie de ‘irmão da mãe’.
A forma ideal da transmissão de nomes, para Ego masculino e feminino, é simétrica
apenas superficialmente. Um homem sai de sua casa natal ao casar, de acordo com a norma de
uxorilocalidade, e devolve seus nomes à sua casa natal, para os filhos das irmãs. As mulheres, por
sua vez, emprestam seus nomes às filhas dos irmãos. Tais sobrinhas detêm ususfruto vitalício dos
nomes, mas devem devolvê-los, ou delegar sua re-transmissão (procedimentos equivalentes), às
herdeiras uterinas da nominadora (ou seja, as primas cruzadas patrilaterais). Nem pai nem mãe
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podem transmitir seus nomes a seus filhos, apenas às pessoas da categoria tabdjwỳ. Portanto, Ego
feminina e sua nominadora ideal (a FZ), pertencem à mesma categoria em relação à menina que
recupera os nomes pertencentes à sua casa natal (a FZDD de Ego, ver diagrama novamente). Para
a menina em questão, ambas as mulheres são kwatèj.
Minha pesquisa sobre os Mẽbêngôkre foi a primeira a enfatisar a importância da
incorporação da ordem de nascimento na terminologia de parentesco (Lea, 1986). É algo ligada à
autoridade, e não constitutei uma ordem de precedência matrimonial, tal como ocorre em
algumas sociedades. Há claramente uma desvalorização dos caçulas de ambos os sexos.
Representam uma espécie de fim de linha de produção, quando seus pais já esgotaram seu
estoque de nomes e de prerrogativas transmissíveis, além da energia necessária para angariar
forças para produzir uma grande cerimônia de nominação.
Um caminho que falta explorar na análise da terminologia de parentesco Mẽbêngôkre
seria a comparação das distinções que se mantêm estáveis (e quais são mutáveis) ao cotejar as
diversas formas terminológicas. Há contrastes nas distinções realizadas, respectivamente, nos
termos de referência e vocativos básicos, na terminologia empregada no choro, nos cântigos dos
chefes, e na terminologia triádica (ver Lea, 2004). Ainda não pude aprofundar essa questão.
Conclusão
Dumont (1971), inspirado pela lingüística, resumiu o que é parentesco pela oposição entre
consanguinidade e afinidade, o conteúdo de cada categoria variando de uma sociedade a outra.
Precisa ser enfatisado que qualquer referência a ‘sangue’ ou ‘genes’ é apenas uma metáfora que
exprime uma sensação intuitiva de metonímia. E poderia ser argumentado que, em vez de
biologia, parentesco consangüíneo evoca uma relação metonímica, ou sintagmática.11
Lévi-Strauss (1947) estava à procura de mecanismos de aliança matrimonial que geram
integração social. Estava pouco interessado pela questão da sexualidade, algo que poderia ser
resolvida das mais diversas formas na opinião dele. É significativo que, na língua mẽbêngôkre, a
mesma palavra é usada para designar cônjuges e amantes. Para explicar isso, já recorri à
expressão ‘shadow minister’, em inglês. Trata-se do ministro da oposição que assumiria o cargo
de primeiro ministro caso esse fosse destituído. A importância do parâmentro de distância já se
tornou um tema clássico na etnologia das terras baixas, distinguindo, por exemplo, os sistemas
dravidianos da India do dravidianato amazônico. Por analogia, os amantes12 parecem ser
concebidos como uma espécie de cônjuge de intensidade atenuada para os Mẽbêngôkre (com
quem não se mora debaixo do mesmo teto), sendo a fonte de novos cônjuges em casos de
separação ou falecimento.
Algumas tentativas foram feitas para demonstrar que há sociedades onde inexistem
determinadas figuras clássicas do panteão de parentesco (Cai, 1997, e Geffray, 2000).13 No que
diz respeito aos Mẽbêngôkre, é significativo que posso perguntar para alguém “quem é teu pai?”,
e obter uma resposta inteligível, embora haja a possibilidade de alguém ter dois pais, um
principal e outro que ajudou, um fenômeno amplamente difundido nas terras baixas (ver
Beckerman, e Valentine orgs., 2002). Os Mẽbêngôkre negam veementemente que uma mulher
pode engravidar através de uma única relação sexual. Perguntei para uma mulher se era verdade
que Fulano fez o filho dela. Me respondeu que não, foi “amante só um pouquinho”, em outras
palavras, não tinha intercurso suficiente com ele para poder engravidar. Isto significa que, ao
conversar com um Mẽbêngôkre sobre a figura do pai, nossas perspectivas se sobrepõem até um
determinado grau (como num diagrama Venn), mas não coincidem inteiramente. As novas
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Leach (1976) associa uma corrente sintagmática e metonimia.
12
O amante é krôaj mied (masculino) ou krôaj prõ (feminina), ou ainda mied/prõ kaàk. Os termos krôaj e kaàk são
sinônimos que geralmente são traduzidos como ‘pseudo’. Já que isso tem a conotação de ‘falso’ (algo que soa
pejorativo), o adjetivo ‘atenuado’ é uma glosa mais apropriada.
13
Ao questionar a universalidade da noção de genealogias, foi introduzido o termo pedigree, que seria o equivalente
‘nativo’ da genealogia construida pelo antropólogo. Do meu ponto de vista, a palavra pedigree evoca cães e cavalos.
Portanto, não considero tal distinção particularmente útil.
11
abstract
keywords
terminology; kinship; gender; onomastics; Mẽbêngôkre; Kayapó; anthropology
REFERÊNCIAS
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CAI, Hua. Une société sans père ni mari. Les Na de Chine. Paris: Presses Universitaires de
France, 1997.
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Sugeri para meus alunos, num curso de parentesco, que num mundo de recursos sobrecarregados, poderia,
futuramente, se tornar politicamente e ecologicamente correto ser gay e adotar crianças (em vez de recorrer às novas
tecnologias reprodutivas), para diminuir a pressão humana sobre o globo. Os índios, por sua vez, poderiam ser
beneficiados por políticas demográficas compensatórias em relação ao genocídio que sofreram, assegurnado mais
terra para sua expansão.
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