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Quem são e como vivem as

pessoas beneficiadas pelo


Programa Bolsa Família
Acesso à alimentação:
ganhos e dilemas
Riscos da crise de
alimentos para o Brasil

DEMOCRACIA VIVA 39
JUNHo 2008
e d i t o r i a l
Dulce Chaves Pandolfi
Diretora do Ibase e pesquisadora do CPDOC/FGV

E m 1993, tomando como referência dados apresentados pelo Instituto


de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), segundo os quais o Brasil possuía cerca de 32 milhões de mi-
seráveis, Betinho, à frente do Ibase e em parceria com outras instituições, lançou a Ação da Cidadania
contra a Fome, a Miséria e pela Vida – um dos mais expressivos movimentos sociais ocorridos no país
e que se tornou conhecido como “Campanha contra a Fome” ou “Campanha do Betinho”.
Ao afirmar que “quem tem fome, tem pressa!”, Betinho, ao mesmo tempo em que tenta-
va mobilizar a sociedade brasileira para amenizar o problema da fome, buscava fazer com que o tema
fosse incorporado na agenda pública do país. De fato, pouco tempo depois do lançamento da Ação da
Cidadania, o então presidente da República, Itamar Franco, criou o Conselho Nacional de Segurança
Alimentar (Consea), um conselho de caráter consultivo formado por representantes do governo e da
sociedade civil, com o objetivo de propor e viabilizar ações para combater a fome.
Em 1995, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, o Consea foi desativado e
o projeto só foi retomado em 2003, com a chegada de Lula na Presidência da República – hoje como
Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Logo em seguida, como parte de uma estraté-
gia de enfrentamento da fome e da pobreza, o governo Lula instituiu o Programa Bolsa Família (PBF).
Considerado pelo Banco Mundial o maior programa de transferência de renda com con-
dicionalidades do mundo, o PBF – que já alcança cerca de 45 milhões de brasileiros(as) – foi objeto de
uma pesquisa recente realizada pelo Ibase, com apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).
Nesta edição da revista Democracia Viva, que trata de temas tão caros ao Ibase como
fome, pobreza e desigualdade social, serão apresentados resultados dessa pesquisa, cujo objetivo maior
foi analisar as repercussões do programa na segurança alimentar e nutricional das famílias beneficiadas.
Para além dos dados da pesquisa e das análises sobre questões como transferência de
renda, direitos e cidadania, clientelismo e assistencialismo, crise mundial de alimentos e segurança
alimentar, o público leitor também terá contato com a crueza e a força dos depoimentos de algumas
pessoas beneficiadas pelo programa que mostram o quanto ainda temos que avançar.
Sem dúvida, o PBF, ao lado de outros fatores, tem contribuído para a recente diminuição
da desigualdade social no país. Aliás, um dos pontos de destaque apontado pela pesquisa do Ibase é que
houve uma significativa ampliação do acesso aos alimentos para uma parcela da população considerada
em estado de pobreza, além da dinamização das economias locais.
Entretanto, quer do ponto de vista mais específico da segurança alimentar e nutricional,
quer do ponto de vista do combate à pobreza e à desigualdade social, ainda temos um longo e árduo
caminho a percorrer. Sabemos que há limites no PBF, mas sabemos, sobretudo, que há um enorme grau
de carência acumulada ao longo da história do nosso país.
1 Trecho de artigo
de Betinho publicado Sobre isso, nunca é demais lembrar o que dizia o indignado cidadão Betinho: “A fome é
no Jornal do Brasil,
12/9/1993.
exclusão. Da terra, da renda, do emprego, do salário, da educação, da economia, da vida, da cidadania.
s u m á r i o
Ibase – Instituto Brasileiro de Análises Sociais
e Econômicas
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20040-916 Rio de Janeiro/RJ
3 ARTIGO Tel.: (21) 2178-9400 Fax: (21) 2178-9402
Leituras sobre exercício do poder <ibase@ibase.br> <www.ibase.br>
para além da política
Paulo M. d’Avila Filho Conselho Curador
Sebastião Soares
João Guerra
8 NACIONAL Carlos Alberto Afonso
Dura realidade brasileira: Nádia Rebouças
famílias vulneráveis a tudo Sonia Carvalho
Luciene Burlandy e Rosana Magalhães Direção Executiva
Cândido Grzybowski
12 DEBATE Dulce Pandolfi
Francisco Menezes
Bolsa Família em questão João Sucupira
Clóvis Roberto Zimmermann
Patrus Ananias de Sousa Coordenadores(as)
Athyade Motta
entrevista
Ciro Torres
Fátima Andréia Nascimento 24 ESPECIAL DEPOIMENTOS Fernanda Carvalho
Histórias de um Brasil desconhecido Itamar Silva
João Roberto Lopes Pinto
32 ENTREVISTA Luzmere Demoner
Moema Miranda
Fátima Andréia Nascimento
DEMO C RA C IA V I V A
40 ARTIGO ISSN: 1415-1499 – Publicação trimestral
Contribuições da produção
Diretora Responsável
para autoconsumo no acesso Dulce Pandolfi
aos alimentos
Conselho Editorial
Edmar Gadelha e Renato S. Maluf Alcione Araújo
Cândido Grzybowski
44 INTERNACIONAL Charles Pessanha
América Latina e Caribe: saídas Cleonice Dias
Jane Souto de Oliveira
contra a insegurança alimentar João Roberto Lopes Pinto
Benjamin Davis Márcia Florêncio
Mário Osava
especial | depoimentos 50 CRÔNICA Moema Miranda
(Antônio de Oliveira) Alcione Araújo Regina Novaes
Rosana Heringer
Sérgio Leite
52 ARTIGO
Você tem fome de quê? Participações nesta edição:
Francisco Menezes
Educação alimentar em foco Mariana Santarelli
Vívian Braga Mielniczuk Rozi Billo
Edição
58 OPINIÃO IBASE Ana Bittencourt
Faces e demandas da pobreza Subedição
no Brasil Jamile Chequer
Francisco Menezes
Revisão
Flávia Leiroz
64 ARTIGO
Crise mundial de alimentos Assistente Editorial
Flávia Mattar
ou crise humanitária?
Para apoiar os projetos Mariana Santarelli Assessoria de imprensa
desenvolvidos pelo Rogério Jordão

Ibase, escreva para 68 INDICADORES Produção


Geni Macedo
amigos@ibase.br Novas possibilidades de
ou telefone para alimentação a caminho? Estagiários
Carlos Daniel da Costa
(21) 2178-9400. Ana Maria Segall-Correa e Rosana Salles-
David da Silva
Doações de pessoas Costa
Distribuição
jurídicas podem ser 74 SUA OPINIÃO Elaine Amaral de Mello
abatidas do Imposto Projeto Gráfico e Diagramação
de Renda. 76 ÚLTIMA PÁGINA Mais Programação Visual
Nani Foto de capa
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Fotos de miolo
Mariana Santarelli
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O Ibase adota a linguagem de gênero em suas publicações por acreditar que essa é uma estratégia
Impressão
para dar visibilidade à luta pela eqüidade entre mulheres e homens. Trata-se de uma política Master Reis Gráfica e Editora
editorial, fruto de um aprendizado e de um acordo entre os(as) funcionários(as) do Ibase. No caso
de artigos redigidos voluntariamente por convidados(as), sugerimos a adoção da mesma política. Tiragem
6 mil exemplares
Os artigos assinados nesta publicação não traduzem, necessariamente, a posição do Ibase. democraciaviva@cidadania.org.br
artigo
Paulo M. d’Avila Filho*

Leituras sobre
exercício do
poder
para
[...] como a desigualdade existe de início, há duas orientações possíveis:
a que tende a apagar a desigualdade pelo esforço social; e a outra que, pelo
contrário, tende a recompensar todos na base de suas qualidades desiguais.
Weber afirmava [...] que entre essas duas tendências antitéticas [...] não há
escolha governada pela ciência, todo homem escolhe seu Deus ou seu demônio
por si mesmo (Raymon Aron).

O clientelismo é um destes termos que, como o populismo, usamos de

forma recorrente para explicar certos males nacionais que seriam prove-

nientes de uma condição inescapável de país atrasado. Diagnóstico que

vem acompanhado de todos os subprodutos que lhe são peculiares. Uma

elite constituída de “raposas velhas” que manipulam um povo ignorante

e indefeso em função da sua miséria e baixa escolaridade.

JUNHO 2008 3
artigo

Assim, populismo e clientelismo são discricionário com que se tem acesso a eles. A
expressões que nos vêm à mente de imediato especificidade do caráter clientelista da troca
quando nos defrontamos com determinada política diz respeito aos termos não regulados
forma de exercício do poder político com a qual pela lei – embora não seja necessariamente
não compartilhamos. São termos “guerreiros”, ilegal –, mas fundados em acordo político ou
freqüentemente utilizados para desqualificar a na expectativa mútua entre patronus e cliente
ação política de um outro. em auferir benefícios com a troca.
Designam certo tipo de exercício do
poder que considera demandas específicas de
Marca do atraso brasileiro
um potencial eleitor em seu cálculo político,
obtendo algum tipo de apoio por parte des- Os problemas de interpretação e aplicação do
ses demandantes. Quando o conceito em nosso dia-a-dia não são aleatórios.
mesmo cálculo preside ações O tema do clientelismo é recorrente na litera-
Populismo que consideramos positivas, tura brasileira. Uma determinada percepção de
chamamo-las de representação que seríamos um país atrasado com relação às
e clientelismo democrática de interesses. conquistas de liberdade e igualdade, alicerces
Clientelismo, no entan- de uma ordem exitosa nos modernos países
são termos to, é um conceito que descreve
uma relação de troca política.
industriais, sugere essa chave de interpretação
das mazelas nacionais.

“guerreiros”, Um tipo de troca distinta das


trocas sociais em geral, mais
Com base nessa perspectiva, ocorre uma
estreita associação entre formas clientelistas de
inespecíficas, pois trocamos dominação e o fenômeno do atraso. Essa iden-
freqüentemente socialmente de tudo: afetos, tificação acaba por desagregar o valor heurístico
redes de contatos, presentes etc. do conceito ao subsumi-lo a um conjunto de
utilizados para Diferente, também, das trocas denominações correlatas, porém não-idênticas
econômicas, regularmente bem ao do domínio tradicional.
desqualificar mais específicas – trocas de bens
envolvendo mercadorias em
De um lado, aqueles que creditam os
males nacionais ao mandonismo privado das

a ação política uma racionalidade monetária.


O que há em comum
oligarquias – cujo corolário do diagnóstico
aponta a captura das estruturas de poder por
entre as trocas sociais e as tro- parte dessas oligarquias. De outro, os que
de um outro cas econômicas é que podem apontam o caráter patrimonialista do Estado
acontecer entre atores sociais brasileiro como grande impedimento à cons-
mais ou menos assimétricos, tituição do que seria a “boa ordem”, em cujo
entre iguais ou entre sujeitos diagnóstico imputa à cooptação pelas estru-
hierarquicamente dispostos. A troca pode, até turas de poder do Estado a responsabilidade
mesmo, servir como meio de definição hierár- sobre a ausência de uma sociedade pujante,
quica dos participantes, como nos sugere Mar- autônoma e empreendedora.
cel Mauss, no qual o mais generoso é também Esses olhares marcam as leituras sobre
o mais poderoso. o clientelismo no Brasil. A confusão que deriva
As trocas políticas, por sua vez, se carac- dessa associação corrobora a dificuldade de
terizam por serem sempre assimétricas, seja do entendimento e de uso do conceito mais re-
ponto de vista do observador ou dos trocadores. centemente. Ainda que sejam, patrimonialismo
Assimétrica porque opera em um eixo vertical e mandonismo, formas de clientelismo, não
no qual um dos participantes da troca, o de- encerram a amplitude do conceito.
mandante – classicamente chamado de cliente O clientelismo acaba sendo encarado de
–, independente de sua posição social ou status, modo estático pelas duas linhas de interpreta-
deseja obter as benesses dos recursos de autori- ção. Isso ocorre quando é explicitamente iden-
dade política que um outro – tradicionalmente tificado com formas tradicionais, pré-modernas
chamado de patronus –, de algum modo, con- de controle político (que tenderiam a desapa-
trola ou influencia. São os chamados recursos recer com a modernização da sociedade), ou
patrimoniais do Estado sob gestão dos poderes como categoria residual, que sobrevive por meio
públicos. Toda a sociedade, como nos sugere dos mecanismos igualmente identificados com
Weber, funda sua estrutura de organização e o atraso ou com formas não-democráticas de
poder com base no maior ou menor controle organização política – que permanecem como
desses recursos e no caráter inexoravelmente terreno fértil para práticas clientelistas em meio

4 Democracia Viva Nº 39
Leituras sobre exercício do poder para além da política

à modernização brasileira, acompanhada pela “radical” – democrática ou moderna –, tanto


instabilidade de suas instituições, pela desigual- nas esferas populares como nas legislativas.
dade social e pela exclusão política. Longe de simplesmente suprimir relações
Desse modo, todo o problema é visto de clientela, o aumento da competição política
como partindo de uma fórmula dicotômica: vem reduzindo a distância ou a desigualdade
clientelismo/atraso – universalismo/moderno. entre patronus e clientes, possibilitando novos
Cidadania e clientelismo são, assim, termos anti- formatos e maior espaço de negociação entre
téticos. O primeiro tende a suplantar o segundo as partes, com incidência direta sobre as pos-
à proporção que a sociedade se moderniza. sibilidades do arranjo.
O clientelismo como forma de entrela- A recente transição para a democracia
çamento entre Estado e setores populares não testemunhou o grande aumento das disputas
pode se modernizar, alterando suas fórmulas, inter e intrapartido pelos votos. Da mesma for-
com as instituições da sociedade. O problema ma, o crescimento das organizações da socieda-
parece ser a insistência em uma distinção infle- de civil vem configurando um cenário pluralista
xível entre a política clientelista ou tradicional cada vez mais poliárquico, que incrementa a
– vista como estática e residual – e a política competição entre lideranças e associações de
Mariana Santarelli

JUNHO 2008 5
artigo

perfil popular. poder legitimada por leis, consensos, costumes.


Se esse diagnóstico é correto, permite- O entendimento central dessas consi-
-nos inferir que a democratização, o aumento derações para a análise seguinte sobre o fenô-
da competição política, a modernização, a uni- meno do clientelismo é de que o que se troca
versalização do voto, o aumento da participação em política não são favores pessoais, como
e a organização da sociedade civil não contradi- acontece entre indivíduos comuns. São favores
tam ou excluem formas de clientelismo político, de autoridade. Em política, são os benefícios do
mas criam novas possibilidades de arranjos exercício da autoridade que entram na troca.
clientelistas, como apontam diversos autores, Os favores de autoridade não se restrin-
entre eles, Eli Diniz (1982); Luiz Henrique N. gem, é verdade, à autoridade pública, no senti-
Bahia (1997); José Murilo de Carvalho (1998); do da burocracia nomeada ou concursada, ou
Robert Gay (1999) e Paulo d’Avila Filho (2000). dos legisladores ou executivos eleitos. Têm a ver,
Tais fatores permitem a configuração de também, com as trocas que envolvem o jogo
um cenário onde, dentro de contextos demo- de poder dos diferentes grupos econômicos.
cráticos competitivos, a alteração na correla- As trocas patrimoniais hierárquicas ou
ção de forças promovida pela necessidade de assimétricas não são prerrogativas apenas do
atendimento à reivindicação de seus “clientes” poder público, tampouco estão circunscritas
por parte dos patronus leva à possibilidade contemporaneamente ao formato do mando-
de pensarmos esses arranjos a partir de uma nismo local. Elas não se limitam ao patrimo-
perspectiva ex parte populis. Ou seja, como nialismo de Estado, tão caro à tradição patri-
instrumento estratégico de política por parte monialista, e assumem formas mais modernas
desses clientes, e não apenas ex parte principis. do que aquelas denunciadas pela literatura que
Altera-se, dessa forma, o tradicional ângulo de opera no eixo do mandonismo.
análise do fenômeno.
A questão central em debate é se,
Raiz da questão
ao falarmos de clientelismo, estamos diante
de uma herança, resíduo de uma sociedade A partir das considerações feitas, é possível
hierarquizada embutida dentro da sociedade analisar que o clientelismo se enraiza intrinse-
moderna. Se assim for, estaremos vivendo em camente na hierarquia inerente a toda organi-
uma sociedade que ainda não se modernizou zação. Não constitui, por isso só, um resíduo
completamente e, ao fazê-lo, destruiria esses da sociedade tradicional, um corpo estranho
resíduos. Ou, de outra forma, estamos diante na sociedade do capitalismo.
de um tipo de relação política que, ao contrário O clientelismo se manifesta em todos os
de definhar, tenderia a assumir formas de ex- modos de poder, concorrendo para sua conser-
pressão que disfarçam o seu conteúdo original e vação e distribuição nos espaços não regidos
frustram as expectativas de superação de traços pela lei. Pode ser, até mesmo, uma forma de
considerados residuais e passageiros. costume. No passado, essencialmente, e em
Na gênese de toda a ordem social, nossa época, o clientelismo aparece como fator
contudo, está presente uma macrotroca polí- endógeno às sociedades estruturadas. Não po-
tica. Da gênese grega aos clássicos modernos dem elas – organização e hierarquia – prescindir
até o debate contemporâneo, estão presentes dele, como nos sugeriu Luiz Henrique Bahia
diferentes teorias acerca dos fundamentos da (2003), em seu livro O poder do clientelismo.
“boa ordem”, da justiça e dos governos. Todas Alguns trabalhos de análise empírica
elas, no entanto, estão se referindo a processos feitos em contextos de alegada expansão dos
de macrotroca política – nos quais os sujeitos direitos de cidadania, como nos Estados Unidos
sociais trocam a obediência por alguma noção da América, reforçam o argumento de que o
de ordem pública, bem coletivo, regras ou clientelismo será uma forma de intermediação
garantias. Esse processo permitirá o funciona- de interesses onde quer que tenhamos assime-
mento das sociedades. trias políticas sobre os benefícios patrimoniais.
A troca econômica não será possível, no Ou seja, tanto em contextos ditos menos de-
sentido macro, sem um mínimo de garantia for- senvolvidos como em países considerados de
necido pela troca política. A característica fun- democracia avançada.
damental a toda organização será a produção Aqui como lá ou alhures, o clientelis-
de hierarquias e assimetrias de poder, presentes mo se apresenta como estratégia moderna de
no seio da troca política. As outras formas de obtenção de benefícios por parte dos atores
troca serão autorizadas por uma hierarquia de sociais minimamente organizados e desejosos

6 Democracia Viva Nº 39
Leituras sobre exercício do poder para além da política

de auferir determinados benefícios, os clientes, Rio de Janeiro. mimeo. * Paulo M.


com os detentores legítimos dos benefícios . O poder do clientelismo. Rio de Janeiro: d’Avila Filho
Renovar, 2003.
patrimoniais, materiais ou simbólicos, seus Doutor em Ciência
CARVALHO, J. M. de. “Mandonismo, coronelismo e clientelismo:
patronus. uma discussão conceitual”. In: . Pontos e Política pelo Iuperj,
Visto por esse ângulo, portanto, o bordados, escritos de história e política. professor e pesquisador
clientelismo não pode mais ser descrito como Belo Horizonte: UFMG, 1999. do Programa de

fenômeno relacionado ao atraso ou à miséria. D´ÁVILA, P. F. Democracia, clientelismo e cidadania: a experiência do Graduação e de
orçamento participativo no modelo de gestão pública da Pós-graduação em
Ocorre nos chamados países avançados tanto cidade de Porto Alegre. 2000.
Ciências Sociais
como no terceiro mundo. É realizado por gran- Tese (Doutorado em Ciência Política e Sociologia) –
do Departamento
des empresas e conglomerados econômicos Sociedade Brasileira de Instrução (SBI/Iuperj),
Rio de Janeiro. mimeo.
de Sociologia e Política
dispostos a auferir benefícios de regulação ou da PUC-Rio
DINIZ, E. Voto e máquina política, patronagem e clientelismo
outros, e também por grupos mais ou menos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. <pdavilaf@puc-rio.br>
organizados em comunidades de baixa renda. GAY, R. Rethinking clientelism: demands, discourses and practices
Não há nenhuma relação entre a prática do in contemporary Brazil. Conecticut: Conecticut College,
clientelismo e o grau de escolaridade. 1998. mimeo.

REFERÊNCIAS
BAHIA, L. H. N. Raízes e fundamentos de uma teoria de troca política
assimétrica/clientelística. 1997. Tese
(Doutorado em Ciência Política) – Iuperj,

Outra perspectiva
É possível, com base na perspectiva aqui ado-
tada, reconsiderar o conceito de clientelismo política assimétrica/clientelista ocupam es-
sustentando dois pontos fundamentais: a) paços vazios, onde não há garantias legais,
chamar a atenção para alguns problemas pro- não constituem direitos, mas também não
venientes da percepção do clientelismo como constituem, necessariamente, ilegalidades.
um resíduo – marca do atraso que tenderia Fazem parte do universo possível das trocas
a ser superado por um processo de moderni- políticas entre atores políticos socialmente
zação democrático –, o que tem dificultado a interessados. Assim, o clientelismo conde-
compreensão do fenômeno como endógeno à nável será freqüentemente o clientelismo
organização do poder político e como fórmula bem-sucedido do outro, não a minha troca
moderna de intermediação de interesses; b) política legítima.
sugerir a possibilidade de se pensar o cliente- A única possibilidade de eliminação das
lismo como estratégia popular de obtenção de trocas políticas assimétrico-clientelistas de um
benefícios – particularmente, em contextos de contexto social qualquer é na imaginação de
baixa institucionalização de canais de acesso uma ordem social que elevasse ao limite a
aos centros de decisão política, canais que máxima próxima da fabulação rousseaunia-
organizam a distribuição patrimonial de bens na – na qual a vontade geral ou a vontade
e serviços e que se constituem em poderoso do demos e a autoridade política são uma
instrumento de aquisição de apoio político por e mesma coisa. Imaginação política na qual
parte do patronus. está eliminado o caráter discricionário do
É possível sustentar, ainda, que o cliente- controle dos recursos materiais ou simbólicos
lismo é um fenômeno relacionado ao acesso da autoridade política inerente à ordem social
e à exclusão de bens e serviços não regulados que conhecemos, visto que todos, como au-
diretamente pela ordem jurídica e pelos valores toridade política, controlam todos os recursos
de mercado. em nome do todo e do bem comum.
Os mecanismos que fazem parte da troca

JUNHO 2008 7
nacio
nacional
Luciene Burlandy*
Rosana Magalhães**

Dura realidade
brasileira:

famílias
Os programas de transferência condicionada de renda (TCR) integram políticas de prote-

ção social e combate à pobreza em diferentes países do mundo (Deveraux; Macauslan,

2006; Harvey; Savage, 2006).1 No Brasil, após a década de 1990, as agendas das políticas

públicas de proteção social, combate à pobreza e promoção da saúde e da segurança

alimentar e nutricional (SAN) também passaram a incorporar o debate sobre os possíveis

impactos e alcances dessas iniciativas.

Diante das transformações nas condições de vida ligadas ao aumento do desem-

prego, à precarização das relações de trabalho e à crise de laços e vínculos sociais, os

programas de transferência de renda, aliados a contrapartidas sociais, emergem como

alternativas às ações tradicionais no campo da assistência social. Assim, para além do

alívio da miséria e da fome, visam garantir impactos positivos no desenvolvimento de

capital humano.
As contrapartidas ou condicionalidades exigidas às famílias ou aos indivíduos podem incluir

8 Democracia Viva Nº 39
onal
a manutenção de filhos(as) na escola, o uso dos
serviços básicos de saúde ou, ainda, a inserção
em ações complementares de capacitação
profissional, educação e geração de emprego e
renda, favorecendo, portanto, efeitos de longo
prazo no perfil de desigualdades sociais.
Esses programas destinam-se às famílias
fatores que as tornam vulneráveis com relação
à pobreza e à SAN.

Elencando prioridades
A maior parte dos fatores que geram condições
adversas para as famílias é pouco afetada pela
pobres que, em geral, enfrentam situações de transferência de renda e, portanto, tende a en-
privação também do ponto de vista da SAN, volver investimentos em equipamentos coletivos
considerando as dificuldades de acesso à terra, e infra-estrutura básica.
à água, a bens e serviços públicos, a condições Para as famílias pesquisadas, o benefício
dignas de moradia e ao consumo de alimentos monetário teria seu impacto potencializado
em quantidade e qualidade adequadas. no perfil de bem-estar caso fosse integrado a
Nesse sentido, o estudo coordenado por outras políticas públicas. Diferente da visão de
Ibase e realizado com o apoio da Financiadora alguns gestores e algumas gestoras entrevista- 1 Ver a respeito artigo
de Estudos e Projetos (Finep), sobre as reper- dos, as famílias reconhecem dimensões mais Internacional, p. 44.

cussões do Programa Bolsa Família (PBF) nas amplas e relativas em torno da pobreza. 2 Ver a respeito artigo
Indicadores, p. 68.
condições de SAN, teve como objetivo analisar Dessa forma, a definição de prioridades
3 Ver a respeito artigo Você
a situação de vida das famílias atendidas e os de consumo tende a ser construída no âmbito tem fome de quê?, p. 52.

Quem são e como vivem?


Os resultados do estudo indicam que as
famílias enfrentam situações de pobreza utilizam lenha ou carvão como principal leve; 34,1% de IA moderada; 20,7% de
extrema, acesso precário a serviços pú- energia para preparar os alimentos. IA grave.
blicos e instabilidade. Além disso, 38,5% das famílias
Sem estudo e emprego possuem, pelo menos, uma pessoa com
Serviços fora de alcance
A inserção no mercado formal de traba- problema crônico de saúde; 16% das
No que se refere à renda monetária e lho é pouco expressiva: 43,7% dos(as) famílias já tiveram diagnosticada entres
ao perfil familiar, 46,1% dos domicílios titulares tiveram trabalho remunerado seus membros desnutrição infantil;
tiveram renda mensal, no mês anterior no mês anterior à pesquisa. Desses, ape- 36,8%, anemia; 31,4%, hipertensão;
à pesquisa, inferior a R$ 380 (valor cor- nas 16% têm carteira assinada e 16,9% 8,4%, deficiência de vitamina A; e 7,4%,
respondente ao salário mínimo durante dos(as) titulares nunca trabalharam. obesidade.3
a coleta de dados), e 26,6% dos(as) Dentre os(as) que não trabalharam no
titulares são mães solteiras – sendo que, mês anterior à pesquisa, 68,1% estão Difíceis de cumprir
dentre os(as) beneficiados(as) da Região desempregados(as) há mais de um ano A assistência à saúde é também mar-
Sudeste, moradores(as) de favelas e áreas e apenas 22,8% buscaram trabalho nesse cada por diferentes tipos de dificul-
urbanas ocupadas, o percentual sobe mesmo mês. dades, como distância dos locais de
para 52,9%. A baixa escolaridade é outro fator moradia, filas, tempo de espera, falta
Quanto às barreiras no acesso a que torna as famílias vulneráveis, uma vez de medicamentos e violência. Tais difi-
bens e serviços públicos, destacam-se, que 55,8% das pessoas que compõem as culdades afetam, conseqüentemente,
principalmente, a falta de acesso a sa- famílias beneficiadas pelo PBF estudaram as possibilidades de cumprimento das
neamento (esgoto e lixo), gás encanado só até o ensino fundamental. Tal fato ten- condicionalidades do programa, bem
e água potável – uma vez que apenas de a perpetuar as barreiras para o acesso como o impacto da renda transferida no
42,6% têm acesso a rede de esgotos. a empregos com melhor remuneração. orçamento doméstico.
Alguns problemas se destacam com Os custos do cumprimento das con-
relação às principais formas de energia Saúde em risco dicionalidades exigidas pelo programa
utilizadas pelas famílias para cozinhar. O Utilizando os parâmetros que pautam a são maiores conforme a escassez de
gás de botijão aparece como a principal Escala Brasileira de Insegurança Alimentar serviços em cada localidade e incluem,
opção das famílias (70,3%), e o gás enca- (Ebia) (Universidade Estadual de Campi- também, os gastos com educação. Entre
nado como alternativa praticamente ina- nas, 2004)2, foi possível constatar que as famílias pesquisadas, esse foi o segun-
cessível a esse grupo de pessoas (4,9%). 28,3% dos(as) beneficiados(as) apresen- do principal item nas formas de uso dos
Cabe ressaltar ainda que, sobretudo tam grau de insegurança alimentar (IA) recursos do PBF.
na Região Norte, 33,2% das famílias

JUNHO 2008 9
nacional

* Luciene de circuitos de integração e sociabilidade. Isso outras necessidades e demandas das famílias.
Burlandy se reflete tanto nos usos que fazem dos recursos
Professora da Faculdade do PBF como em suas demandas por outras
Mais alimentos à mesa
de Nutrição da ações governamentais no campo da geração de
Universidade Federal emprego e renda – adequadas a cada contexto O estudo indicou que as principais necessi-
Fluminense (UFF); dades afetadas positivamente pelo programa
e indissociáveis de investimentos em educação,
integrante do Conselho
saúde, oferta de cursos de qualificação profis- são aquelas que emergem como prioritárias
Nacional de Segurança
sional, política habitacional e fortalecimento da na estrutura de gastos das famílias, ou seja,
Alimentar e Nutricional
(Consea) e do Fórum agricultura familiar. alimentação – uma vez que a principal forma
Brasileiro de Segurança Também são questões valorizadas pelas de acesso das famílias aos alimentos é por meio
Alimentar e Nutricional famílias, melhores condições de transporte da compra em estabelecimentos comerciais –,
(FBSAN) público e ampliação de espaços de comercia- material escolar, vestuário e medicamentos.
** Rosana lização de alimentos a preços mais acessíveis. Além disso, para muitas famílias, a
Magalhães Quanto ao possível desestímulo ao possibilidade de compras a crédito a partir do
Doutora em Saúde trabalho – aspecto geralmente associado aos recebimento do benefício de maneira regular
Coletiva, pesquisadora programas de transferência de renda –, o es- abre novas possibilidades de atendimento a
titular do Departamento tudo revelou, em consonância com pesquisa necessidades e acesso a bens.
de Ciências Sociais Portanto, pode-se considerar que o PBF
publicada pelo Ministério do Desenvolvimento
da Escola Nacional
Social (Brasil, 2007), que, em vez disso, o PBF tem um papel importante nos perfis de consu-
de Saúde Pública da
tende a favorecer a reavaliação das condições la- mo dessas famílias, seja pela garantia regular de
Fundação Oswaldo Cruz
(ENSP/Fiocruz) borais as quais essas famílias estão submetidas. uma renda adicional ao orçamento doméstico
Situações de trabalho precárias, insa- – que potencializa o planejamento de gastos
lubres e aviltantes podem ser abandonadas a da família –, seja pela flexibilidade no uso do
partir da inserção no programa. O fato indica recurso – que amplia o poder de escolha.
a importância da fiscalização pública na área No entanto, permanece o desafio de
e da ampliação de alternativas mais dignas de articulação do programa às múltiplas iniciativas
emprego para a população. públicas de bem-estar nas diferentes esferas de
Nesse sentido, o impacto do PBF na governo. Por exemplo, a inclusão das famílias
redução da pobreza e na promoção do ca- atendidas pelo PBF nos programas de farmácia
pital humano depende, em grande medida, popular, assistência técnica e crédito rural, ca-
da integração com o conjunto de políticas de pacitação profissional e no conjunto de ações
proteção social. prioritárias nos campos da saúde e da educação
Outro ponto importante é o baixo aces- é tarefa crucial para a conquista de resultados
so a programas de assistência alimentar pelas efetivos na luta contra a pobreza e ampliação
famílias pesquisadas. No caso da merenda esco- da cidadania.
lar, apesar de avanços obtidos na cobertura da
população-alvo nas últimas décadas, persistem
problemas e dificuldades em várias regiões.4 Referências
Para as famílias entrevistadas, a ali- Devereux, S.; Macauslan, I. Review of social protection
mentação nas escolas é a segunda forma mais instruments in Malawi. Brighton: Institute of Development
Studies, 2006.
importante de acesso alimentar, principalmente
Harvey, P.; Savage, K. No small change: Oxfam BG Malawi and
entre aquelas que apresentaram algum grau de Zambia emergency cash transfer projects humanitarian – a
insegurança alimentar. Isto significa, por um synthesis of key learning. Londres: HPG, 2006.
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.
lado, que se trata de um programa governa- Avaliação de políticas e programas do Ministério do
mental de extrema relevância e que, portanto, Desenvolvimento Social – resultados. Brasília, DF:
os diferentes problemas que ocorrem em sua Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação/MDS,
2007. v. 2.
implementação em determinadas localidades UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS. Acompanhamento e
– tais como descontinuidade na oferta, a não- validação da segurança alimentar de famílias brasileiras:
validação de metodologia e de instrumento de coleta
-oferta no período das férias e a qualidade das
de informação – urbano/rural, 2004. Campinas: Faculdade
refeições oferecidas – afetam diretamente os de Ciências Médicas/Unicamp, mar. 2004. (Relatório
segmentos mais pobres. técnico).

Além disso, esses obstáculos compro-


metem as formas de utilização dos recursos do
4 Ver a respeito artigo Você
tem fome de quê?, p. 52. PBF, que poderiam ser canalizados para suprir

10 Democracia Viva Nº 39
JUNHO 2008 11
d e b a t e

Nesta edição, trouxemos para o


debate artigos e entrevistas que
têm a ver com acesso à renda,
políticas públicas e cidadania da
população brasileira, com destaque
para a situação das pessoas mais
vulneráveis que não conseguem
sequer se alimentar e manter
suas famílias com dignidade. Para
mostrar esse cenário, estamos
divulgando
os principais resultados da pesquisa
sobre os impactos do Programa

Bolsa
Família Bolsa Família (PBF) no Brasil –
realizada este ano pelo Ibase, com
apoio da Financiadora de Estudos
e Projetos (Finep). Para ampliar
a discussão, publicamos, a seguir,
dois artigos com visões abrangentes
e diferenciadas sobre o PBF: um do
representante da sociedade civil,
relator nacional para o Direito
à Alimentação e à Terra Rural,
Clóvis Zimmermann; o outro
do responsável pela iniciativa,
o ministro do Ministério de
Desenvolvimento Social e Combate à
Fome (MDS), Patrus Ananias.
Que os artigos sirvam de subsídio
para que o público leitor possa
avaliar o que está sendo feito,
ou não, para alcançarmos um
Brasil mais justo e solidário para
Marcus Vini

12 Democracia Viva Nº 39
JUNHO 2008 13
d e b a t e

Desafios à
implantação
do direito à
alimentação
no Brasil
Clóvis Roberto Zimmermann
Doutor em Sociologia pela Universidade de Heidelberg, Alemanha, professor do mestrado em Desenvolvimento Social
da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), membro da Fian-Brasil e relator nacional para
o Direito à Alimentação e Terra Rural
<clovis.zimmermann@gmail.com>

1 O Reino Unido introduziu


programas de transferência de
renda em 1948; a Finlândia, Analistas nacionais e internacionais comungam alimentação mínima a muitas famílias pobres
em 1956; a Suécia, em 1957;
a Alemanha, em 1961;
entre si o pressuposto de que, nas sociedades (Weissheimer, 2006). Na análise de Maria
a Áustria em 1974; a França, modernas, não há razões para questionar a Ozanira Silva e Silva, Maria Carmelita Yazbek e
em 1988. Com relação a
muitos países, o Brasil iniciou existência das políticas públicas sociais e dos Geraldo di Giovanni, o PBF possui um signifi-
tardiamente o processo
de implantação de políticas
programas de transferência de renda.1 Pes- cado real para os(as) beneficiados(as), uma vez
de proteção social quisas empíricas têm comprovado que quanto que, para essas famílias, o programa é a única
não-contributivas.
mais desenvolvidos, industrializados e maior possibilidade de obtenção de uma renda (Silva
2 As críticas aqui
apresentadas visam contribuir a renda per capita dos países, maiores são os e Silva; Yazbec; Giovanni, 2004, p. 212).
para o aperfeiçoamento
do programa, já que as
investimentos em políticas sociais e programas No que tange à quantidade de pessoas
experiências nacionais de transferência de renda e, por conseguinte, beneficiadas e à qualidade do benefício, o PBF
e internacionais mostram
o quão importante são os menores os índices de desigualdade e pobreza constitui-se, de fato, um avanço com relação
programas de transferência
de renda no combate à fome,
(Ullrich, 2005). aos programas que o antecederam. Todavia, ao
pobreza e desigualdade social No Brasil, o Programa Bolsa Família (PBF) analisá-lo sob a perspectiva dos direitos huma-
e na garantia do direito à
alimentação adequada. tornou-se importante instrumento de combate nos, o programa ainda apresenta uma série de
3 A própria denominação à fome, cuja proposta vem sendo amplamente limites. Nesse ensaio, serão enfatizados quatro
bolsa apresenta sérios elogiada por cientistas sociais e por diversos pontos que merecem reflexão crítica.2
problemas sob a ótica dos
direitos humanos, pois uma meios de comunicação em âmbito nacional e
bolsa indica algo temporário,
internacional. Em recente comunicado de abril
passageiro, que possui prazo
Além dos números
para terminar, sem levar de 2008, o Conselho de Direitos Humanos das
em conta a situação de
vulnerabilidade das pessoas. Nações Unidas (ONU) elogiou o PBF por ser A maior debilidade do PBF3 dá-se pelo fato de
Um direito não pode ser
concebido na forma de uma uma proposta que tem conseguido atacar um o programa não ser baseado na concepção de
bolsa, temporariamente, mas problema antigo no Brasil – a fome. Outros direitos, haja vista que o acesso não é garan-
como algo permanente, a ser
auferido enquanto houver um estudos realizados destacam que o programa tido de forma incondicional aos sujeitos de
quadro de vulnerabilidade ou
exclusão social. representa um apoio significativo, garantindo direito. Em outros termos, o PBF não garante

14 Democracia Viva Nº 39
o acesso irrestrito ao benefício, já que existe visa moldar as pessoas para o cumprimento de
uma determinação da quantidade de famílias determinadas virtudes.
(estimativa de pobres) a serem beneficiadas Para Clauss Offe (1995), os defenso-
em cada município. Essa limitação ocorre em res das condicionalidades não são capazes
virtude de o governo federal estabelecer, em de propor a punição do Estado quando do
cada município, um número máximo de famílias não-cumprimento e provimento dos serviços
a serem contempladas.4 públicos aos(às) portadores(as) desses direitos,
A partir do momento em que esse mas enfatizam a “punição” às pessoas pobres.
número é preenchido, fica “impossibilitada” a Assim, na perspectiva dos direitos, a obriga-
inserção de novas famílias, mesmo que sejam ção do cumprimento das condicionalidades
extremamente vulneráveis e, portanto, porta- (garantir escolas, postos de saúde etc.) é de
doras desse direito. Em decorrência disso, as responsabilidade dos poderes públicos, e não
famílias e pessoas pobres acabam não sendo da população.6
incluídas5 no programa, mesmo que tenham Diante disso, o PBF não deveria impor
a necessidade urgente de serem beneficiadas. condicionalidades e obrigações aos(às) bene-
Em virtude do limite, faz-se necessário -ficiados(as), pois a titularidade de um direito
que o PBF supere o estabelecimento de um não deve ser condicionada. O Estado não deve-
número e atenda a todas as pessoas que se ria punir e, em hipótese alguma, excluir titulares
enquadrarem nos critérios de elegibilidade. Sob do programa quando do não-cumprimento das
a ótica dos direitos, essas pessoas deveriam ter a condicionalidades estabelecidas e/ou impostas.
possibilidade de reclamar e requerer o benefício Seguindo as sugestões de Claus Offe (1995),
e serem contempladas pelo programa em um dever-se-ia punir os municípios, estados e
curto período de tempo. Caso o benefício ainda outros organismos governamentais pelo não-
não seja concedido, deve haver a possibilidade -cumprimento de suas obrigações em garantir
de o mesmo ser requerido judicialmente. o acesso aos direitos, atualmente impostos com
condicionalidades.
Se levarmos o princípio da universalida-
Universalização e
de em consideração, isto é, que os programas
condicionalidades
sociais brasileiros sejam desenhados, formula-
O Bolsa Família impõe contrapartidas e con- dos e concebidos de forma universal e irrestrita,
dicionalidades para o recebimento do benefí- nos quais a condição de pessoa seja o requisito
cio: acompanhamento de saúde e do estado único para o aferimento de um direito, há de se
nutricional das famílias, freqüência escolar e pensar na transição do PBF para a Renda Básica
4 Alguns municípios
acesso à educação alimentar. A exigência de de Cidadania, ora aprovada em lei. têm complementado
condicionalidades tem o apoio implícito do A Renda Básica de Cidadania pode ga- esse número com
programas de transferência de
Banco Mundial, que vê nesse tipo de proposta rantir mais facilmente mecanismos de acessibili- renda próprios.
uma inovadora forma de assistência social na dade e justiciabilidade. Estaríamos, dessa forma, 5 Atualmente, 11 milhões
129 mil 327 famílias
América Latina. seguindo as determinações da III Conferência (dezembro de 2007) são
Sob a ótica dos direitos humanos, a de Segurança Alimentar e Nutricional (Consan), beneficiadas pelo PBF.
Por outro lado, segundo
um direito não deve haver a imposição de realizada em julho de 2007, em Fortaleza, que informações do sítio
do Ministério do
contrapartidas, exigências ou condicionalida- aprovou diretriz que estabelece essa transição. Desenvolvimento Social,
des, uma vez que a condição de pessoa deve em dezembro de 2007, havia
15 milhões 159 mil 855
ser o requisito único para tal titularidade. Para
Valor do benefício famílias inscritas no Cadastro
Único com renda per capita
Chantal Euzéby (2004), essa estratégia obedece inferior a R$ 120, ou seja,
à lógica punitiva, incorporando a idéia de que Estudiosos dos programas de transferência de famílias que cumpriam os
requisitos de elegibilidade
o beneficiário público torna-se um devedor da renda no Brasil concordam que o valor repas- do programa. Isso significa
que 4 milhões 30 mil 528
sociedade, pois parte-se do princípio que não sado ao público beneficiado pelo PBF é muito famílias não foram incluídas,
existiria direito sem obrigação (Euzéby, 2004, baixo para atender às necessidades mínimas embora se enquadrem
nos critérios de elegibilidade
p. 37). com alimentação. Diante desse quadro, propõe- do programa.
Claus Offe (1995) compartilha o mes- -se como critério para a avaliação das políticas 6 Há casos em que não
mo argumento, destacando que as políticas públicas de transferência de renda o custo da existem escolas ou postos
de saúde nas proximidades
sociais com condicionalidades e contrapartidas, Cesta Básica Nacional. da moradia. Numa situação
assim, fica impossibilitado
operando a partir de meios educacionais e pu- No caso do Brasil, o Departamento o próprio cumprimento das
nitivos, pretendem moldar cidadãos e cidadãs Intersindical de Estatística e Estudos Socioeco- condicionalidades, pois o
Estado nem mesmo oferece
“competentes” e “operantes”. Esse tipo de nômicos (Dieese) acompanha mensalmente a os serviços aos quais exige
que os(as) beneficiados(as)
proposta é classificada como autoritária, pois evolução de preços de 13 produtos de alimen- tenham acesso.

JUNHO 2008 15
tação, assim como o gasto mensal que uma um(a) trabalhador(a) individual em idade adulta
pessoa teria para comprá-los. As pesquisas do necessitaria do valor equivalente a R$ 223,94,
Dieese avaliam de quanto um(a) trabalhador(a) na cidade de São Paulo, e de R$ 166,13, em
em idade adulta precisa para satisfazer as ne- Recife, para satisfazer as necessidades alimen-
cessidades alimentares mínimas. tares mínimas. O valor da cesta, segundo o
A Cesta Básica Nacional calcula o sus- Dieese, seria suficiente para o sustento de uma
tento e o bem-estar de uma pessoa em idade pessoa em idade adulta nessas cidades. O PBF
adulta, contendo quantidades balanceadas de deveria, no mínimo, conceder um benefício
proteína, caloria, ferro, cálcio e fósforo. De cujos valores fossem equivalentes aos da Cesta
acordo com esse parâmetro, os valores dos Básica Nacional.
programas de transferência de renda, a exem-
plo do PBF, deveriam ter como critério o custo
Exigibilidade administrativa
dessa cesta.
Contudo, o programa não segue o pa- O programa deveria ser provido por órgãos ou
râmetro do Dieese, sendo insuficiente o valor instituições nos municípios com determinações
repassado para garantir uma alimentação ade- de responsabilidades transparentes e bem-
quada para as famílias brasileiras. A pesquisa da -definidas, cuja finalidade é a de facilitar não
Cesta Básica Nacional, realizada em março de somente o acesso das pessoas ao programa,
2008, em 16 capitais do Brasil, considera que mas também a possibilidade de as famílias so-

Mariana Santarelli

16 Democracia Viva Nº 39
licitarem reparação, melhor dizendo, exigirem de acessibilidade com claras referências dos
o mesmo perante órgãos governamentais. órgãos públicos responsáveis pelo seu provi-
Até o presente momento, o PBF não mento. A acessibilidade significa que todos
garante mecanismos de acessibilidade univer- os sujeitos de direito possam ser incluídos no
sal, principalmente para os sujeitos de direito programa quando seus direitos estão sendo
requererem seus direitos quando violados e/ou violados ou não estão sendo garantidos.
não-garantidos. Além disso, devem existir infor- Na concepção dos direitos humanos, os
mações e órgãos públicos a serem recorridos direitos devem ser de fácil acesso, os cidadãos e
em caso de solicitação de violação ao acesso as cidadãs devem ter a possibilidade de requerer
e/ou em caso de interrupção. Essas informa- o benefício e serem contempladas pelo mesmo
ções devem estar disponíveis de forma clara e num curto período de tempo. Caso o direito
acessível aos sujeitos de direito, principalmente não seja concedido, deve haver a possibilidade
às pessoas mais vulneráveis, o que não vem de que o mesmo seja requerido judicialmente.
ocorrendo. Por último, se levarmos o princípio da
Nesse sentido, deveriam ser estudadas universalidade em consideração, isto é, que os
formas de instituição imediata de instrumentos programas sociais brasileiros sejam desenhados,
que garantam a exigibilidade administrativa dos formulados e concebidos de forma universal,
direitos dos(as) titulares do PBF. Caso o bene- irrestrita, em que a condição de pessoa seja o
fício ainda não seja concedido, deve haver a requisito único para o aferimento de um direito,
possibilidade de requisição judicial. Do ponto de há de se pensar na transição do PBF à Renda
vista dos direitos, quanto mais fácil o acesso ao Básica de Cidadania, ora aprovada em lei.
programa, maior será a realização dos direitos. A Renda Básica de Cidadania pode
Em virtude disso, dá-se grande importância aos garantir mais facilmente mecanismos de aces-
mecanismos de exigibilidade e justiciabilidade. sibilidade e justiciabilidade. Estaríamos, dessa
forma, seguindo as determinações da III Con-
ferência de Segurança Alimentar e Nutricional
Entraves e sugestões
(III Consan), realizada em julho de 2007, em
Com relação aos programas sociais anteriores, Fortaleza, que aprovou uma diretriz que esta-
o PBF representa um avanço significativo no belece essa transição.
combate à fome no Brasil, possibilitando uma
melhoria na alimentação de muitas famílias
pobres. Todavia, sob a ótica dos direitos, o
referido programa ainda apresenta uma série
de entraves.
Sob essa perspectiva, deve-se considerar
que a um direito humano não deve haver a im-
posição de contrapartidas, exigências ou condi-
cionalidades. Mais grave do que a exigência de
contrapartidas é a punição de um(a) portador(a)
de direito, sobretudo a exclusão de titulares pelo
REFERÊNCIAS
não-cumprimento das condicionalidades. Isso
ESPING-ANDERSEN, G.. The three worlds of welfare capitalism.
se constitui numa grave violação aos direitos
Cambridge: Polity Press, 1990.
humanos, uma vez que um direito humano EUZÉBY, C.. “A inclusão social: maior desafio para os sistemas de
não pode estar atrelado ao cumprimento de proteção social”. In: SPOSATI, Aldaiza (Org.). Proteção
social de cidadania: inclusão de idosos e pessoas com
exigências e outras formas de conduta.
deficiência no Brasil, França e Portugal. São Paulo: Editora
Além das condicionalidades, o valor do Cortez, 2004. p 33-55.
benefício auferido pelo PBF é insuficiente para OFFE, C.. Capitalismo desorganizado: transformações
contemporâneas do trabalho e da política.
garantir que todas as pessoas beneficiadas
1. reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 1995.
estejam livres da fome. Em outros termos, o SILVA e SILVA, M. O.; YAZBEK, M. C.; GIOVANNI, G. di. A política
montante financeiro transferido pelo programa social brasileira no século XXI: a prevalência dos
programas de transferência de renda. São Paulo:
é insuficiente para garantir o direito a uma
Cortez, 2004.
alimentação adequada, principalmente no ULLRICH, C.. Soziologie des wohlfahrtstaates. Eine einführung.
que tange à provisão da quantidade mínima Frankfurt: Campus, 2005.
WEISSHEIMER, M. A.. Bolsa Família: avanços, limites
de alimentos.
e possibilidades do programa que está transformando
Além de aumentar o valor monetário, o a vida de milhões de famílias no Brasil. São Paulo:
programa deveria procurar garantir mecanismos Fundação Perseu Abramo, 2006.

JUNHO 2008 17
d e b a t e

Um
marco na
consolidação
do estado
de bem-
Patrus Ananias de Sousa
Ministro do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS)

Em seus quatro anos e meio de existência, brasileiro de proteção social, a partir da década
o Programa Bolsa Família (PBF) superou im- de 1930, foi estritamente associado à inserção
portantes desafios de implementação e tem nas categorias profissionais regulamentadas
gerado resultados significativos na melhoria das pelo Estado. Esse modelo reforçou as desi-
condições de vida da população mais carente gualdades oriundas do mercado de trabalho
de nosso país. e aprofundou a estratificação e segmentação
Como um dos principais eixos da rede social numa sociedade já bastante desigual. Essa
de proteção e promoção social brasileira, o discriminação institucional feita pelo Estado
programa vem contribuindo para reduzir a perdurou até a promulgação da Carta Magna
pobreza e as desigualdades sociais que se acu- de 1988.
mularam ao longo de nossa história. Contudo, O atual modelo de seguridade social,
há ainda um longo caminho a trilhar para que definido pela Constituição de 1988, apresenta
os mesmos direitos e as mesmas oportunidades três grandes componentes: Saúde, Previdência
sejam efetivamente garantidos a toda a nossa Social e Assistência Social. A organização desse
população. Para tanto, é necessário consolidar sistema de seguridade social – uma realidade
o novo patamar de desenvolvimento que vem ainda em construção em nosso país e desigual
se delineando em nosso país, mais justo e so- nos estágios de cada componente – deve ga-
lidário, que combina crescimento econômico e rantir a universalidade da cobertura e do atendi-
inclusão na esfera dos direitos de cidadania e mento, a diversidade da base de financiamento
no mercado daqueles segmentos anteriormente e o caráter democrático e descentralizado da
excluídos dos frutos desse crescimento. gestão.
O processo de construção do sistema A Constituição de 1988 promoveu mui-

18 Democracia Viva Nº 39
tos avanços no marco legal das políticas de se- implementação.
guridade social. Esses avanços eram fortemente O Suas integra os programas e as ações
destoantes das práticas até então vigentes das de proteção e promoção social das três esferas
políticas sociais, estruturadas, num extremo, em de governo, efetuando a coordenação de ações
torno do modelo que Wanderley Guilherme dos numa perspectiva hierarquizada e territorializa-
Santos (1987) chamou de “cidadania regulada”, da, de forma a garantir o direito à assistência
no qual somente têm direitos aos benefícios social em todo o território nacional. Já o Sisan,
sociais aqueles em empregos formais, ou ba- descrito pela também recente Lei Nacional de
seadas no outro extremo, em torno de favores Segurança Alimentar e Nutricional (Losan), é
pessoais, num modelo de assistência marcado marcado por uma estratégia intersetorial, ao
pela exigência do apoio político, da desestru- reunir programas e ações centradas na pro-
turação dos serviços locais e da inexistência de moção do direito humano à alimentação ade-
normas e de procedimentos regulares, num quada, executadas por diferentes instituições,
modelo clientelístico tal como mostrado por e fundado sobre a experiência e o aprendizado 1 Em seu formato atual,
o Fome Zero articula
Victor Nunes Leal (1973). da estratégia Fome Zero. 52 ações e programas
Ao longo da década de 1990, as políti- de 12 ministérios. Além
do MDS (coordenação),
cas públicas da seguridade social foram sendo integram a estratégia os
Inovações seguintes órgãos: Ministério
gradualmente regulamentadas. Houve avanços do Desenvolvimento Agrário,
em direção à consolidação do Sistema Único Entre o eixo predominantemente intergoverna- Ministério da Saúde,
Ministério da Educação,
de Saúde (SUS) e à ampliação da abrangência mental do Suas e o eixo predominantemente Ministério da Agricultura,
Pecuária e Abastecimento,
do sistema previdenciário. Contudo, os índices intersetorial do Sisan2, a transferência de renda Ministério do Trabalho
de desigualdade persistiram elevados ao longo com o PBF funciona como ponto de articulação e Emprego, Ministério
da Integração Nacional,
daquela década, e as políticas de proteção e dos sistemas ao fornecer instrumentos para Ministério do Planejamento,
Orçamento e Gestão,
promoção social seguiram como tema secun- a garantia do direito humano à alimentação Ministério da Fazenda,
dário com relação à agenda econômica. adequada – tendo em vista que o benefício Casa Civil da Presidência da
República, Secretaria-Geral
Com a eleição do presidente Lula em financeiro é, em grande parte, empregado na da Presidência da República e
Secretaria de Comunicação da
2002, a agenda social conquistou um papel compra de alimentos. Ao mesmo tempo, põe Presidência da República.
central nas políticas públicas governamentais, em prática o direito à assistência – a transferên- 2 Deve-se ressaltar que
tendo como marco o lançamento da estratégia cia de renda às famílias auxilia na constituição essa distinção entre eixos
predominantemente
de governo Fome Zero já naquele ano, antes e manutenção de ambientes familiares mais intergovernamental
e intersetorial é apenas
mesmo de sua posse, com o objetivo de assegu- estruturados e saudáveis. um modelo para ilustração
rar o direito humano à alimentação adequada, O desenho do PBF apresenta inovações das características principais
dos sistemas. Portanto,
integrando diversos programas e ações. Com e rupturas importantes com as políticas sociais tanto o Suas envolve ações
intersetoriais como o Sisan
o Fome Zero, a transversalidade das políticas praticadas ao longo do século XX no Brasil. envolve ações com diferentes
públicas passou a ocupar um lugar de destaque Em primeiro lugar, trata-se de um programa esferas de governo.

na discussão do desenvolvimento social.1 de transferência de renda com escala – inédita 3 No momento de sua
criação, o PBF abrangeu
Em 2004, a transversalidade e a inte- –, sendo considerado pelo Banco Mundial o a gestão e a execução
de quatro programas de
gração de políticas sociais, com o objetivo de maior programa de transferência de renda com transferência de renda
estruturação de uma rede de proteção e promo- condicionalidades do mundo. Está presente em anteriormente existentes,
chamados de Programas
ção social, deram um passo adiante no que diz todos os 5.563 municípios brasileiros e mais o Remanescentes: Programa
Bolsa Escola, Programa Cartão
respeito ao desenho institucional, com a criação Distrito Federal, atende a cerca de 11,1 milhões Alimentação, Programa Bolsa
do MDS, que reuniu, além da coordenação das de famílias pobres3 e conta com um orçamento Alimentação e Programa
Auxílio Gás.
ações de segurança alimentar e nutricional, os aprovado para 2008 de R$ 10,4 bilhões. A partir da criação do PBF,
não foram mais concedidos
eixos da assistência social e da transferência de Em segundo lugar, o PBF foi instituído benefícios no âmbito desses
renda com condicionalidades. por uma lei federal e está normatizado por um programas, e seus titulares
passaram a ser migrados
Desde então, tanto nas áreas de assis- sólido conjunto de regulamentos composto por para o PBF. Atualmente, para
as 11,1 milhões de famílias
tência social como de segurança alimentar e decretos presidenciais e portarias4 que definem do PBF, há menos de 290
nutricional (SAN), a atuação do MDS vem sendo os objetivos, critérios e procedimentos para mil benefícios de Programas
Remanescentes (dados de
estruturada em dois sistemas integrados de po- os diversos aspectos da operacionalização do maio de 2008).
líticas públicas: o Sistema Único da Assistência programa, incluindo a complexa gestão de 4 O programa foi instituído
Social (Suas), instituído a partir de 2005, e o benefícios e de condicionalidades. Segundo pela Medida Provisória 132,
de 20 de outubro de 2003,
Sistema Nacional de Segurança Alimentar e esses regulamentos, são elegíveis ao programa posteriormente convertida na
Lei 10.836, de 9 de janeiro de
Nutricional (Sisan), criado em 2006. todas as famílias pobres que vivem com renda 2004. A regulamentação atual
Ambos os sistemas resultaram de um mensal per capita inferior a R$ 120 por mês. do programa inclui ainda
cinco decretos presidenciais
amplo e vigoroso processo participativo de O valor do benefício que pode ser recebido e mais de
20 portarias ministeriais
debates e se encontram em fases distintas de por cada família é formado pela soma de três ou interministeriais.

JUNHO 2008 19
componentes: (a) o benefício básico, no valor Gestão compartilhada
de R$58, é pago a famílias com renda mensal
Outro ponto que se destaca no programa é o
por pessoa de até R$ 60, independentemente
respeito ao desenho federativo brasileiro a partir
do número de crianças, adolescentes ou jovens;
de um modelo de gestão compartilhada entre o
(b) o benefício variável, no valor de R$ 18, é
governo federal, por meio do MDS, e as demais
pago a famílias com renda mensal por pessoa
esferas de governo, em particular as prefeituras.
de até R$120 nas quais há crianças ou adoles-
Os gestores municipais têm papel fundamental
centes de até 15 anos; e (c) o benefício variável
na operacionalização do programa, pois são os
vinculado ao adolescente é pago a famílias com
responsáveis pela identificação e pelo cadas-
renda de até R$ 120 nas quais há jovens de 16
tramento das famílias pobres e extremamente
e 17 anos freqüentando a escola.
pobres do município, coletando e inserindo os
Esses três componentes podem ser
dados no Cadúnico, assim como pela oferta de
cumulativos conforme a renda e a composição
serviços e pelo acompanhamento das famílias.
da família, sendo que a família pode receber
Cada prefeitura assinou um termo de
até três benefícios variáveis, totalizando R$
adesão com o MDS, que detalha os requisitos
54, e até dois benefícios variáveis vinculados
técnicos para o funcionamento do programa,
ao adolescente, totalizando R$ 60. Portanto,
incluindo: indicação de pessoa responsável pela
dependendo da situação em que vivem e da
gestão local (o gestor municipal); criação de
composição familiar, o mínimo pago às famílias
instância de controle social e informação de
é de R$ 18, e o máximo, de R$ 172.
sua composição; obrigatoriedade de registro e
Atualmente, o valor médio dos bene-
atualização dos dados das famílias pobres do
fícios transferidos é de aproximadamente R$
município no Cadúnico; disponibilização de
75 por família. A seleção dos titulares é feita
ações e serviços nas áreas de educação, saúde e
exclusivamente com base nos critérios predefini-
assistência social para que as famílias cumpram
dos para recebimento do benefício a partir dos
as condicionalidades exigidas pelo programa;
dados constantes do Cadastro Único para Pro-
acompanhamento das famílias beneficiadas
gramas Sociais do Governo Federal (Cadúnico).
pelo programa, promovendo a melhoria das
Ao entrarem no PBF, as famílias assu-
condições de vida na perspectiva da inclusão
mem compromissos – as condicionalidades
social, dentre outras.
– nas áreas de saúde, educação e assistência
O governo federal apóia financeira-
social. Com relação às condicionalidades de
mente os municípios, para que desempenhem
saúde, as famílias devem: levar as crianças até
suas funções, por meio de repasses calculados
7 anos para vacinação e manter atualizado o
a partir do número de famílias beneficiadas e
calendário de vacinação; levar as crianças para
de um índice do desempenho da gestão mu-
pesar, medir e serem examinadas conforme o
nicipal (IGD), que considera a qualidade das
calendário do Ministério da Saúde; levar as
informações do Cadúnico e o acompanhamento
gestantes a participarem do pré-natal; e garantir
das condicionalidades da saúde e da educação.
o acompanhamento de nutrizes.
Em 2007, foram repassados aos municípios R$
Sobre as condicionalidades de educação,
230 milhões para apoio à gestão local do PBF.
as famílias devem: matricular crianças e ado-
O modo de implementação e de gestão
lescentes de 6 a 17 anos na escola; garantir a
do programa – ao empregar procedimentos
freqüência mínima de 85% das crianças de 6
normatizados e definir as responsabilidades
a 15 anos e de 75% dos adolescentes de 16 e
das diferentes esferas de governo – evita a con-
17 anos a cada mês; informar à escola quando
cessão clientelística dos benefícios e reafirma
o aluno necessitar faltar e explicar o motivo; e
o recebimento como um direito de cidadania
informar ao gestor municipal do PBF sempre
das famílias que atendam aos critérios estabe-
que algum aluno mudar de escola, para que os
lecidos em lei.
técnicos da prefeitura possam continuar acom-
panhando a freqüência escolar desses alunos.
Nas condicionalidades da assistência so- Renda como direito
cial, as famílias devem garantir a freqüência das
Como um ponto de interseção dos eixos da
crianças identificadas em situação de trabalho
assistência social e da segurança alimentar e
infantil nas atividades socioeducativas do Pro-
nutricional, o PBF garante uma renda mínima
grama de Erradicação de Trabalho Infantil (Peti).
como um direito de cidadania, ao mesmo tem-
po que atua como um mecanismo possibilitador
de outros direitos sociais.

20 Democracia Viva Nº 39
Cabe ressaltar que, mesmo em contextos acesso regular à alimentação adequada.
institucionais e políticos em que o sistema de
proteção social encontra-se mais consolidado,
o estabelecimento de instrumentos de ga- Vida mais digna
rantia de renda mínima está na fronteira do Para além do benefício financeiro propriamente
aprimoramento dos desenhos de estados de dito, outro aspecto conceitual do PBF refere-se
bem-estar social. à transferência de renda como instrumento
A construção dos sistemas europeus possibilitador de direitos sociais que, embora
contemporâneos de proteção social envolveu sejam requisitos básicos à cidadania, nem
a criação de mecanismos nacionais de renda sempre encontram-se assegurados. Começa
mínima em pelo menos 11 dos 15 primeiros pelo já citado direito elementar à alimentação
países membros da União Européia,5 desde a em quantidade, regularidade e qualidade ade-
Suécia, em 1957, até Portugal, em 1997 (Van- quadas, mas podemos citar ainda o direito à
derborght; Van Parijs, 2006). família, ou seja, o direito à convivência familiar
Progressivamente, esses países incluíram saudável e harmoniosa, o direito à habitação,
a garantia da renda mínima em seu conjunto de ao bem-estar, dentre outros.6
políticas de proteção e promoção social. Mais Por meio das condicionalidades, o de-
recentemente, a legislação brasileira também senho do PBF supera ainda a dicotomia entre
ratificou o entendimento de que a renda míni- focalização e universalização de políticas sociais.
ma é um direito de toda a população brasileira, A transferência de renda é focalizada nos mais
por meio da Lei 10.835, de 8 de janeiro de pobres, mas, ao mesmo tempo, pressupõe a
2004 (Brasil, 2004). responsabilidade do poder público em ofertar
Nesse ponto, é importante rebater algu- serviços universais e gratuitos de saúde e de
mas críticas que consideram o PBF um programa educação para que as famílias possam cumprir
assistencialista. Mesmo que o programa se limi- as condicionalidades.
tasse à transferência de renda, teria um papel Outro ponto fundamental é que, ao
fundamental na promoção do desenvolvimento exigir que as famílias mantenham suas crianças
social em nosso país. Ao ter a garantia de uma na escola e cumpram uma agenda de serviços
renda que assegure as condições elementares de atenção básica à saúde para gestantes e
de vida, as pessoas deixam de depender da in- crianças, o programa busca romper a trans-
serção no mercado de trabalho para assegurar missão intergeracional da pobreza, ampliando
a satisfação dos aspectos mais básicos e se li- o escopo de capacidades das gerações futuras.
bertam da chantagem da fome e da necessidade Por meio de melhor formação e me-
de subsistência a qualquer custo. lhores condições de saúde oferecidas com o
Dessa forma, a pessoa pode relacionar- apoio do PBF, as gerações futuras terão um
-se com o trabalho como um instrumento de conjunto de capacidades mais desenvolvido,
emancipação e de crescimento, em detrimento possibilitando-lhes escolhas melhores e mais
da função de instrumento de mera sobrevi- adequadas aos projetos e às aspirações pesso-
vência, ao ter a possibilidade de escolher não ais, apresentando uma alternativa sustentável
submeter-se a trabalhar em condições degra- de emancipação. Portanto, a transferência de
dantes, aviltantes ou ofensivas à integridade e renda não só se apresenta como um direito em 5 Grupo que inclui Alemanha,
à dignidade humana. si mesmo como também reforça e possibilita Áustria, Bélgica, Dinamarca,
Espanha, Finlândia, França,
As famílias beneficiadas passam a ter o exercício de direitos sociais mais amplos. Grécia, Irlanda, Itália,
Luxemburgo, Holanda,
possibilidades de buscar empregos de melhor Constitui-se, assim, como a porta de entrada Portugal, Reino Unido e
qualidade, com formalização das condições para uma vida cidadã em sua plenitude. Suécia.

empregatícias e respeito aos direitos trabalhis- Outro aspecto a destacar é que, com as 6 Essas dimensões estão
alinhadas ao artigo 35 da
tas, e que propiciem a plena realização como informações socioeconômicas disponibilizadas Declaração Universal dos
sujeitos e como cidadãos e cidadãs. pelo Cadúnico, é possível localizar as famílias e
Direitos Humanos, ao afirmar
que “toda pessoa tem direito
Além disso, o pleno exercício da cida- identificar suas características, seus potenciais, a um padrão de vida capaz
de assegurar a si e a sua
dania pressupõe o atendimento universal de suas carências e, assim, planejar e direcionar a família saúde e bem-estar,
mínimos sociais. Uma vez que a exclusão limita oferta de serviços públicos de acordo com o
inclusive alimentação,
vestuário, habitação, cuidados
fortemente a possibilidade de participação perfil delas. O MDS tem desenvolvido diversas médicos e os serviços
sociais indispensáveis, e
das pessoas nos mecanismos institucionais iniciativas nessa direção, como a parceria com direito à segurança em caso
existentes nas democracias contemporâneas, é o Ministério da Educação (MEC) para a inclusão
de desemprego, doença,
invalidez, viuvez, velhice ou
inconcebível pensar em participação cidadã de no Programa Brasil Alfabetizado, e a parceria outros casos de perda dos
meios de subsistência fora de
pessoas que nem sequer possuem, por exemplo, com a Câmara Brasileira das Indústrias da seu controle”.

JUNHO 2008 21
Construção para inserir os membros das famílias participam do PBF.
beneficiadas pelo PBF nas oportunidades de No ano de 2006, a UFBA em conjunto
emprego geradas pelo Plano de Aceleração do com a UFF realizaram uma pesquisa nacional
Crescimento (PAC). com os titulares do PBF (Silva; Assis; Santana;
Pinheiro; Santos; Brito, 2007). Os resultados
do estudo mostraram que 94,2% das crianças
Impactos
e 85% dos jovens e adultos de famílias bene-
Parte importante do processo de implementa- ficiadas pelo programa já conseguiam realizar,
ção do PBF é um processo rigoroso de avaliação pelo menos, três refeições por dia. Esse estudo
e monitoramento, que serve para orientar cor- mostrou, ainda, que houve expressiva melhora
reções de rumos, quando necessário, auxiliar na na qualidade e na variedade dos alimentos
obtenção de apoio para expansão das atividades disponíveis para as famílias.
e prestar contas à sociedade sobre o retorno dos Outra pesquisa, realizada em 2006,
investimentos sociais. O MDS vem mobilizan- tratou dos impactos do PBF na condição social
do uma série de parceiros institucionais tanto das mulheres (Suarez; Libardoni, 2007). As
para o financiamento como para realização de pesquisadoras identificaram a importância que
pesquisas de impacto e acompanhamento do o programa vem tendo na afirmação da auto-
programa. ridade das mulheres beneficiadas no espaço
Instituições como o Ibase, a Universi- doméstico.
dade Federal da Bahia (UFBA), a Universidade As entrevistadas pelo estudo afirmaram
Federal Fluminense (UFF), a Universidade Federal que passaram a ter mais influência nas decisões
de Minas Gerais (UFMG), o Instituto de Pesquisa domésticas e a ser mais respeitadas pelos de-
Econômica Aplicada (Ipea), o Instituto Brasileiro mais membros da família. Avanços importantes
de Geografia e Estatística (IBGE), entre outras, foram observados, também, na percepção das
vêm coletando dados e produzindo importantes mulheres como cidadãs brasileiras. Ao serem
análises sobre a mudança que o PBF vem pro- instadas a lavrarem documentos – como cer-
duzindo na vida das pessoas e na economia do tidão de nascimento e carteira de identidade
Brasil. Organismos internacionais e instituições para receber o benefício – passaram a perceber
de fomento à pesquisa também vêm colabo- que fazem parte de um espaço social mais
rando com o financiamento dessas atividades. amplo, que vai além da vizinhança e do bairro
O conjunto das pesquisas mostra que onde vivem.
o programa tem produzido efeitos imediatos Os dados das Pesquisas Nacionais
e significativos sobre as condições de vida da por Amostragem de Domicílios (PNAD/IBGE,
população pobre. Os resultados apontam seu 2001-2006) também mostram importantes
importante papel na redução da desnutrição conquistas. Análises do período entre 2001
infantil, na promoção da segurança alimentar e 2006 mostraram que a desigualdade de
e nutricional, na redução das desigualdades, rendimentos, medida pelo índice de Gini, caiu
na dinamização das economias locais, além em média 0,7% ao ano nesse período (Soares,
de possibilitar o acesso a bens básicos de con- 2008). Decompondo-se os fatores responsáveis
sumo que melhoram a qualidade de vida e a pela queda na desigualdade de renda observada
auto-estima. em 2006, observa-se que o PBF foi responsável
Em 2005, uma extensa pesquisa (a por 21% desse resultado.
Chamada Nutricional) foi realizada com mais Os dados da PNAD 2006 mostraram,
de 16 mil crianças menores de 5 anos de idade ainda, outros importantes resultados. Contrário
no semi-árido brasileiro (Pacheco; Paes-Sousa; ao argumento muito freqüentemente citado
Soares; Henrique; Pereira; Batista Filho; Martins; pelos críticos, o PBF não funciona como um
Alcântara; Monteiro; Conde; Konno, 2007). desestímulo ao trabalho: 77% das pessoas
Comparando crianças de famílias beneficiadas que recebem transferência de renda trabalham
menores de 5 anos com aquelas que ainda não enquanto 74% das pessoas que não recebem
haviam sido incluídas no programa, a preva- transferência de renda trabalham.
lência de desnutrição, medida em déficit de Além disso, os dados mostraram que
altura para idade, foi 29,4% menor nas crianças os programas de transferência de renda não
atendidas pelo PBF. Na faixa etária de 6 a 11 aumentam a informalidade no emprego:
meses, o impacto foi ainda maior: a ocorrência comparando-se os números de 2004 e 2006, o
de desnutrição em famílias beneficiadas foi crescimento da proporção de empregados com
62,3% menor do que entre as famílias que não carteira assinada foi maior entre os beneficiados

22 Democracia Viva Nº 39
por programas de transferência de renda do que quanto já fizemos, mas também o quanto ainda
entre os que não participam desses programas. temos que fazer. Como não investimos no pas-
Finalmente, a PNAD 2006 comprovou sado o suficiente para construir uma sociedade
que as famílias mais pobres estão melhorando inclusiva, a fatura de nossa dívida social é alta.
a qualidade de suas vidas, pois estão tendo Não devemos esquecer que a distância que nos
maior acesso a bens de consumo básicos, no separa de padrões de desenvolvimento humano
domicílio, como geladeiras e televisões. No aceitáveis para todos os nossos cidadãos e todas
último ano, o crescimento do acesso a gela- as nossas cidadãs ainda é enorme.
deiras e televisões chegou a ser maior entre os Nesse sentido, consolidar a rede de pro-
beneficiados do que entre os não-beneficiados. teção e promoção social é garantir que todas
O impacto do PBF é sentido para além as pessoas tenham as mesmas oportunidades,
da esfera da cidadania e da concretização dos numa linha de ampliação e universalização dos
direitos sociais básicos. Com a transferência de direitos. Ainda precisamos incluir milhões de
recursos financeiros diretamente às famílias, brasileiros nos direitos mais elementares da ci-
que têm liberdade na aplicação do benefício, dadania e da dignidade humana, como o direito
utilizando-o para aquisição de bens e serviços à alimentação adequada, à educação de quali-
de que têm mais necessidade, as economias dade, a uma boa saúde. Portanto, precisamos
locais vêm conhecendo outra dinâmica econô- seguir com o fortalecimento e aprimoramento
mica. A afirmação é especialmente verdadeira do Suas, do Sisan, do PBF e das demais políti-
para pequenas localidades do semi-árido – fre- cas públicas que visam aos objetivos maiores
qüentemente fora da rota de ciclos econômicos de emancipação das famílias, da redução das
geradores de riqueza. Todos esses importantes desigualdades e da erradicação da fome e da
resultados estão sendo obtidos com investimen- miséria de nosso país.
tos relativamente modestos comparados aos
ganhos alcançados: no ano de 2006, o volume REFERÊNCIAS
total de recursos investidos no PBF foi de apenas BRASIL. Lei n. 10.835, de 8 de janeiro de 2004. Institui a renda
0,35% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. básica de cidadania e dá outras providências. Diário Oficial
[da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo,
Diversas pesquisas estão em andamento Brasília, DF, 9 jan. 2004. n. 6.
e deverão produzir mais insumos para avaliação INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisas
Nacionais por Amostragem de Domicílios (PNAD)
e permanente melhoria do programa, já que 2001-2006. Rio de Janeiro: IBGE, 2001-2006.
sabemos que ainda precisamos avançar mais LEAL, V. N. Coronelismo, enxada e voto. São Paulo: Alfa-Ômega,
1975.
até conseguirmos a plena erradicação da fome Pacheco, L.; Paes-Sousa, R.; Soares, M.; Henrique, F.; Pereira,
e da miséria em nosso país. L.; Batista Filho, M.; Martins, M.; Alcântara, L.;
Monteiro, C.; CONDE, W.; KONNO, S. “Perfil nutricional
Como mostraram os dados preliminares de crianças menores de cinco anos no semi-árido
da pesquisa desenvolvida pelo Ibase, se o PBF, brasileiro”. In: Vaitsman, J.; Paes-Sousa, R. Avaliação
de políticas e programas do MDS – resultados. Brasília, DF:
tomado isoladamente, não é suficiente para MDS/Sagi, 2007. v. I.
garantir a plena segurança alimentar e nutri- (Segurança alimentar e nutricional).
Santos, W. G. Cidadania e justiça: política social na ordem
cional a toda a população brasileira, o mesmo brasileira. Rio de Janeiro: Campus, 1987.
vem produzindo impactos positivos importantes SILVA, M.; ASSIS, A.; SANTANA, M.; PINHEIRO, S.; SANTOS, N.;
BRITO, E..”Programa Bolsa Família e segurança alimentar
nessa direção. das famílias beneficiárias: resultados para o Brasil e
Isso é relevante, até mesmo porque regiões”. In: Vaitsman, J.; Paes-Sousa, R. Avaliação de
políticas e programas do MDS – resultados. Brasília, DF:
o PBF é um dos pilares da rede de proteção MDS/SAGI, 2007. v. II. (Bolsa Família e assistência social).
e promoção social que estamos trabalhando Soares, S. O ritmo de queda na desigualdade no Brasil é adequado?
Evidências no contexto histórico e internacional. Brasília,
para consolidar, como já mencionado, diversas DF: Ipea, 2008. (Texto para Discussão, n. ).
outras ações voltadas mais diretamente para a Suarez, M.; Libardoni, M. “O impacto do Programa Bolsa Família:
mudanças e continuidades na condição social das
questão da segurança alimentar e nutricional mulheres”. In: Vaitsman, J.; Paes-Sousa, R. Avaliação
– tais como o Programa de Aquisição de Ali- de políticas e programas do MDS – resultados. Brasília, DF:
MDS/Sagi, 2007. v. II. (Bolsa Família e assistência social).
mentos da Agricultura Familiar ou o programa Vanderborght, Y.; Van Parijs, P. Renda Básica de Cidadania:
de construção de cisternas no semi-árido – e argumentos éticos e econômicos. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2006.
diversas ações na área da assistência social e
na geração de mais e melhores oportunidades
de inclusão social.

Consolidação da rede
Os resultados obtidos até aqui mostram o

JUNHO 2008 23
especial | depoimentos

Desde sua criação pelo governo federal, em janeiro de 2004, o Programa Bolsa Família (PBF)

pode ser considerado um divisor de águas em termos de políticas de inclusão social – já

foi muito elogiado e criticado. Polêmicas à parte, o fato é que vem aumentando o acesso

aos alimentos de cerca de 45 milhões de pessoas no Brasil. Mas qual o perfil desse(a)

brasileiro(a)? O que o levou a precisar desse benefício? O que pensa sobre o programa?

A pesquisa realizada por Ibase, com apoio da Financiadora de Estudos e Projetos

(Finep), traz as respostas – muitas publicadas nesta edição. Com elas, trazemos alguns

rostos e olhares por trás dos dados e diagnósticos. Para isso, fomos a três comunidades

cariocas conversar com beneficiados(as) do programa que, generosamente, decidiram

partilhar suas histórias.

Nosso acesso às comunidades – Borel e Chácara do Céu, zona norte, e Cidade de

Deus, zona oeste – não teria sido possível sem o apoio das lideranças comunitárias Mônica

Santos, da Agenda Social Rio, e Priscila da Silva Pereira, da Agência de Desenvolvimento

Local da Cidade de Deus, a quem muito agradecemos.

24 Democracia Viva Nº 39
trabalhava tomou meus filhos de mim. Botaram
bandido em cima de mim e tive que sair de
Taubaté escondida. A última notícia que tive
deles faz 12 anos. Hoje, Michel está com 34
anos, André com 32 e Roberta com 31.
Aqui, no Borel, moro há 14 anos. Quan-
do vim de Taubaté, morei em uma pensão na
Praça Mauá. Quando engravidei de Jéssica, mi-
nha filha mais nova, com 16 anos, fui morar em
Santa Rita, em Nova Iguaçu, onde ela nasceu.
Tem dez anos que vivo sozinha com mi-
nha filha, somos nós e Deus. Ela está na sexta
série, estuda perto daqui. Eu cuido de crianças
aqui na minha casa mesmo. No momento,
Fotos: Marcus Vini

só estou com uma. Se falar que tenho acesso


fácil a médico e a remédios, é mentira. Estou
me tratando em um neurologista na Praça da
Bandeira, tenho que ir de três em três meses e
já vai fazer dois meses que estou sem remédio.
Faz uns quatro anos que recebo o di-
nheiro do Bolsa Família, são R$ 88. A mãe do
Maria da Penha menino que cuido está me pagando R$ 70, e

Silva essa é toda a minha renda por mês. Não con-


segui me aposentar porque nunca trabalhei
55 anos, Borel
de carteira assinada. Antes do Bolsa Família,
vivíamos de cesta básica das igrejas. Cheguei
Nasci no Espírito Santo, na Fazenda Dois Co-
a me inscrever no Bolsa Escola, mas nunca
rações. Não tive infância. Comecei a trabalhar
recebi. Tem dois meses que Jéssica começou a
com 8 anos de idade, na roça. Na época da
participar do Projeto Coca-Cola, vai começar a
moagem [entressafra], trabalhava na cidade,
receber uma bolsa este mês, são cerca de R$
em casas de família. A lembrança que tenho
50. Funciona como um estágio, ela cuida de
de trabalho é de toda a minha vida. Nunca
outras crianças na escola, é monitora.
me vi como uma menina que brincasse com
Recebo o Bolsa Família porque preciso,
outra criança.
se conseguisse me aposentar, entregaria logo
Vim para o Rio com 16 anos por causa
meu cartão porque não iria precisar mais,
do meu pai. Ele não se dava comigo, judiava
deixaria pra quem precisa. Enquanto estiver
de mim. O primeiro serviço que fiz aqui foi no
precisando, vou usando.
bairro de Rocha Miranda, em casa de família,
Estava querendo vender esta casa e
por três anos. Depois, trabalhei como arruma-
ir embora pra minha terra. Quero acabar de
deira para uma advogada, em Copacabana,
criar minha filha longe daqui. A sorte é que
por quatro anos.
ela é uma menina muito ajuizada, é da escola
Resolvi sair de lá e virei bailarina de
pra casa e só sai comigo. Este não é um bom
cabaré, comecei a dançar em boates na Praça
lugar pra uma mulher sozinha criar um filho
Mauá. Vinha muito navio aqui pro Rio. Foi
não, ainda mais sendo problemática de saúde.
assim que conheci o pai do meu filho mais
Ela também nasceu com um pequeno desvio
velho, o Michel, um argentino. Quando o bebê
no cérebro, agora está melhor. Meu medo é,
estava com 5 meses, levei pra casa da minha
se eu caio aqui, quem vai cuidar dela?
mãe e continuei trabalhando de dia e à noite,
Antes de cuidar desse garotinho, faz um
dançando.
ano, catava latinha pra vender. Fazia isso três
Conheci um japonês, com quem tive um
vezes por semana. Também ia pra feira “xepar’,
casal de filhos, André e Roberta. Arrumei um
pro mercado pegar sobras. Sábado sim, sábado
serviço de camareira em um hotel em Taubaté,
não, vou pra Casa do Biscoito xepar. Ultima-
pra onde me mudei com meus filhos, e trabalhei
mente, como o feijão está muito caro, estamos
lá durante quatro anos.
comendo lentilha. Também comemos arroz,
Sofri um acidente de carro, fiquei em
canjiquinha, angu. Pra Jéssica, não falta nada,
coma mais de um mês. A mulher pra quem eu
nem roupa, quero ela sempre bem-arrumada.
Deus me ajuda.

JUNHO 2008 25
especial | depoimentos

neto preto. Falo pras crianças que não podem


ter preconceito, que é todo mundo igual. Passa-
mos a morar de aluguel até conseguir comprar a
casa onde moramos hoje. Na nossa casa tem um
fogãozinho e uma TV, tudo de segunda mão.
A casa tem sala, quarto, banheiro e cozinha. A
gente dorme na sala e as crianças no quarto.
Para ajudar no sustento dos meus filhos,
já trabalhei em casa de família, catei papel na
rua, lavei roupa pra fora. Hoje, faço uma faxina
por semana. Meu marido não tem salário fixo,
ganha por comissão. O dinheiro dele é pra tudo,
pagar contas, fazer compras. Só no mercado,
ele gasta R$ 150, R$ 100, e não compramos
tudo porque não dá.
Durante o mês, comemos muito feijão,
arroz, batata e ovo. Carne, ele compra uma
vez ou outra, em geral carne moída, que é
mais barato. Compramos uns quatro litros de
leite por mês, não temos como comprar uma
caixa inteira.
Patrícia Singer Participo do Bolsa Família tem três anos.
40 anos, Borel Antes, tinha o Cheque-cidadão. Pego R$ 54.
Esse dinheiro ajuda, vou no mercado, compro
Nasci no Rio de Janeiro e fui criada na Bahia, coisas que eles gostam. Com o Cheque-cidadão,
perto de Porto Seguro. Minha mãe entregou recebia mais, mas o dinheiro demorava muito
a gente (eu e minha irmã) pra minha avó, pra chegar.
não lembro quantos anos tinha, mas ela nos Meus filhos estudam de manhã num
maltratava muito. Foi quando minha mãe de Ciep aqui pertinho. Almoçam e jantam em
criação, Dulce, me pegou pra criar. Para eu não casa, falam que a comida da escola é horrível.
ficar sem documentos, ela inventou uma idade É porque tem legumes e eles não gostam, só
quando foi tirar minha certidão, disse que eu de batata. Por isso, minha mais velha está
tinha 3 anos. desnutrida. O médico falou que ela vai ter que
Ela era aposentada e tinha uma filha. fazer dieta de engorda.
Estava com 15 anos quando ela morreu. Foi Eu falo pros meus filhos da minha vida,
difícil porque a sua filha me expulsou de casa, da minha história, não quero que eles passem
falou que não me queria mais lá. Fiquei sozinha pelo que passei. Não gosto de morar aqui.
no mundo. Tenho vontade de ir embora, voltar pra Bahia.
Estudei até a quarta série. Minha avó Moro aqui há tantos anos e não acostumo, só
contou que tenho irmãos aqui no Rio, filhos tem tiroteio, passo mal, penso que vou morrer.
da minha mãe biológica, mas não conheço
nenhum. Quando vim, aos 17 anos, passei
a trabalhar em casa de família. Os patrões
tiveram que se mudar e fiquei, de novo, sem
ter pra onde ir. Fui morar com uma moça que
resolveu me ajudar. Eu cuidava dos seus filhos e
ela me dava comida e roupa, não tinha salário.
Mas não fiquei muito tempo, pois foi quando
conheci Janildo, meu marido.
Ele trabalhava como vendedor numa
loja perto do prédio, onde trabalha até hoje.
Fui morar logo na casa dele, apesar do seu pai,
que não gosta de preto. Estava com 19 anos,
ele tinha 17. Temos três filhos, Daniele, de 15
anos; Carine, de 12; Mateus, de 7. Quando
estava grávida, meu sogro falou que não ia ter

26 Democracia Viva Nº 39
Histórias de um Brasil desconhecido

Antônio Maria de nar pra ter alguma ajuda. Fui na colônia [Juliano
Moreira, em Jacarepaguá] pra ver se conseguia
Oliveira (Seu Geo) e uma moça lá falou: “Não se interna não, eu
71 anos, Cidade de Deus vou te ajudar”. Ela me deu um papel e disse pra
eu ir na subprefeitura da Cidade de Deus. Daí
Moro aqui tem seis anos. Nasci no estado do em diante, comecei a ganhar o Bolsa Família.
Rio, em São João de Meriti. Minha infância foi Recebo do Bolsa R$ 58, fora isso, só
mais ou menos. Quase não tive estudo, fui só o que o moço da feira me ajuda, e assim vou
até a quarta série. Minha mãe era muito pobre, vivendo. Não tenho nada, minha cozinha é de
não tinha condição de me manter na escola, fogão de carvão. Com o dinheiro do Bolsa, com-
então, me colocou pra trabalhar com 14 anos. pro carvão e alguma comida. Já ajuda, né? Mas
Trabalhava numa padaria fazendo Biscoito se o governo pudesse dar um aumentozinho
Globo, que existe até hoje. seria bom, a situação está braba.
Tive uma irmã que ficou perturbada Há pouco tempo, tive pneumonia e
da cabeça e passou a vida todinha internada. quase morri porque não tinha dinheiro pra
Também tive um problema de cabeça, mas con- comprar quatro remédios que precisava tomar.
tinuei sobrevivendo. Minha vida sempre foi bem O médico me deu um remédio só. Mas Deus
difícil. Meu pai morreu cedo, quando eu estava é grande, viu?
com 6 meses. Dali em diante, minha mãe me O governo tá fazendo uma obra aqui, da
criou pedindo esmola. Ela ia em tudo que era Caixa Econômica, pra ajudar a gente, está cons-
lugar, São João de Meriti, Pavuna, Belford Roxo. truindo umas casinhas [projeto de urbanização
Quando fiquei mais velho, fui servir o Exército e, da Rocinha II]. Isso vai ajudar o pessoal aí. Mas
depois, voltei a trabalhar na padaria. Trabalhei lá se o governo pudesse aumentar o salário míni-
por 15 anos e nunca assinaram minha carteira. mo, seria muito melhor. E também baixar um
Como sou solteiro e não tenho filhos, pouco os preços dos alimentos. Estou tentando
morei com minha mãe até 1989, quando ela conseguir minha aposentadoria, já dei entrada
morreu. Hoje, ajudo um feirante numa barraca nos documentos. Preciso desse dinheiro porque,
de legumes e verduras. No final, ele me dá uns desde os 65 anos, ninguém me dá mais serviço.
legumes e dinheiro pra passagem. Nem sei o Temos que ter alguma renda, né?
que me ajuda a sobreviver. Quando consegui o
Bolsa Família [há quatro anos], queria me inter-

JUNHO 2008 27
especial | depoimentos

Aqui tem muita gente que merecia re-


ceber o Bolsa Família e não ganha. Quando me
inscrevi, estava no começo, foi rápido. Agora,
várias pessoas não conseguem. Melhoraria se
fosse possível todo mundo ganhar a mesma
quantia. Minha vizinha tem dois filhos e pega
só R$ 30 e ela não tem condições de trabalhar
porque é deficiente física.
O que é mais difícil pra nós, no dia-a-dia,
é mesmo a questão da alimentação, porque
meu marido não tem emprego fixo. Na escola,
eles ganham material, minha mãe ajuda com-
prando uma roupa, um sapato. Mas na escola
não tem mais aquela alimentação. Quando eles
chegam em casa, querem comer novamente.
Agora, não estou trabalhando, voltei a
estudar para terminar o segundo grau. Mas já
trabalhei como doméstica e em uma empresa
de ônibus. Quero um futuro melhor para meus
filhos.
Já me acostumei a morar aqui. Gostar,
Gisele Dias da Silva não gosto. Mas não tenho nada contra. Só
27 anos, Cidade de Deus que aqui é um pouco mais a realidade nua e
crua. Queria prestar faculdade pra ser assistente
Nasci em Duque de Caxias, na Baixada. De- social, mas não queria trabalhar em lugar dife-
pois, nos mudamos para o Retiro dos Artistas rente não. Queria trabalhar aqui mesmo, pra
[Jacarepaguá]. A família é grande, tenho um ver mais o lado do povo, porque quem não
irmão e quatro irmãs. Meu pai, que faleceu convive não tem idéia de como é. Tem muita
há nove anos, era oficial militar, e minha mãe gente trabalhadora que precisa de ajuda, que
chegou a trabalhar como secretária, mas depois o Bolsa Família não ajuda.
parou. Nossa vida ficou mais difícil depois que Gostaria que aqui tivesse mais postos
ele morreu. Resolvi sair de casa, fui morar com de saúde. É uma dificuldade pra conseguir um
uma amiga, e também já estava namorando. dentista pra essas crianças. E escola também,
Fiquei grávida aos 17 anos. aqui tinha que ter “Brizolão”, tinha que ter em
Em 1998, vim pra cá, onde conheci meu todas as comunidades, e não só em algumas,
marido, Paulo Renato. Temos quatro filhos, como acontece hoje. E tinha que funcionar
todos estudando: Iamê, 9 anos; Yasmim, 8; como antes, a criança entrava de manhã e saía
Taiane, 6; e André, que tem 5. às 5 horas. Agora, não é mais assim.
Ele está trabalhando na obra da Caixa
Econômica e recebe um salário, metade numa
quinzena, metade na outra.
Recebo o Bolsa Família vai fazer quatro
anos. Recebia R$ 95, mas agora passou para
R$ 112. Na época, estávamos numa situação
crítica, desempregados, e minha filha, Taiane,
estava desnutrida. Esse dinheiro ajuda, dá pra
comprar gás e alimentos, apesar de estarem
caríssimos. Fazemos compras por semana, cerca
de R$ 50, o resto que precisa, completo com o
dinheiro do Bolsa Família.
Comemos arroz, feijão e legumes. Fruta
é raro porque está um absurdo de caro. Do
início do ano pra cá, os preços dos alimentos
aumentaram muito. Agora, quase não se com-
pra nada. Com o mesmo dinheiro, saio com
bem menos do que costumava comprar.

28 Democracia Viva Nº 39
Histórias de um Brasil desconhecido

mas, graças a Deus, meu filho está aí, cheio


de saúde. Meu filho mais velho tem 15 anos,
Martins; a Gisele tem 12; a Milena tem 8; o
Jackson, 7; e a Júlia, 4.
Hoje, graças a Deus, tenho um marido
ótimo. Conheço ele desde criança. Na verdade,
gostaria que meus filhos fossem todos dele, mas
só os dois mais novos são. Na época, a gente
se encontrava escondido de vez em quando,
namorava e depois se afastava. Minha mãe não
queria que a gente namorasse.
Lá em casa são oito pessoas, além de
meu marido e meus filhos, minha sogra também
mora com a gente. Ela é doente, teve isquemia
cerebral, é como se fosse outra criança para eu
cuidar. Minha casa tem dois quartos pequenos,
ainda no cimento, ainda não tem pintura. Tem
sala, cozinha e banheiro. O quintal é grande,
mas a cerca está destruída. Tenho TV, geladeira
e estamos pagando um fogão à prestação.

Reginalda Mattos A base de nossa alimentação é arroz, fei-


jão e fubá, isso não pode faltar. Quando temos
Pereira condições, compramos alguns legumes; carne
30 anos, Chácara do Céu é mais difícil. Por mês, compramos cerca de 2
potinhos de carne e 1 quilo de lingüiça. Acabou,
Nasci no Rio de Janeiro, no Alto da Boa Vista. é só ovo, até acabar também. Aí, ficamos só
Minha infância não foi nada boa. Agora é que no arroz, feijão e fubá mesmo. Comprar fruta é
estou tendo infância, se for numa festa, viro muito raro. Essa história do Bolsa Família ajudou
criança. Sou filha do meio, somos 12 irmãos, muito, mas acho que, em vez de eles darem
seis meninas e seis meninos, uma infância as- comida, tinham que ensinar a pessoa a chegar
1 Grupo de geração
sim não pode ser boa. Moro na comunidade lá, fazer com suas próprias mãos. de trabalho e renda para
Chácara do Céu desde que nasci. mulheres da Grande Tijuca,
uma iniciativa da Agenda
Passamos muita necessidade, comíamos Social Rio/Ibase.
resto de feira, lavagem, restos de pão, que se
comprava para dar a porcos e distribuíam pra
gente. Meu pai bebia muito naquela época,
batia muito na gente, na minha mãe, foi muito
difícil. Estudei só até a 5ª série. Comecei a tra-
balhar com 16 anos em casa de família. Hoje,
estou no Grupo das Arteiras.1
Faço de tudo no grupo, mas estou
mais ligada à parte de culinária. Lá, já aprendi
muito: a fazer pão, a lidar com outros tipos
de pessoas, a falar em público, a me arrumar.
Por isso, hoje, minha auto-estima está legal.
Antes, mesmo que estivesse bem-arrumada,
sempre me sentia um lixo, não conseguia nem
abrir um sorriso perto de outras pessoas. Hoje,
estou indo a um médico para tentar emagrecer,
tudo graças às Arteiras.
Tive meu primeiro filho só pra provar
pra minha mãe que eu era mulher. Ela não
deixava que me vestisse de mulher, não deixava
ter cabelo grande. Quis provar pra ela que era
mulher, então, engravidei. Estava com 15 anos,
não dei meu filho, ela tentou tirá-lo de mim,

JUNHO 2008 29
especial | depoimentos

Participaram de carne vermelha, e eu também não. O Lucas,


das entrevistas se der ovo todo dia, come! Mas, às vezes,
Do Ibase compro também carne moída, aí eles comem.
Ana Bittencourt Quando dá, compro um biscoito. O que recebo,
Flávia Mattar
deixo tudo no supermercado.
Jamile Chequer
Mariana Santarelli Comecei a receber o Bolsa Família em
Convidadas 2004. Fui no Palácio Guanabara [sede do
Mônica Santos governo do estado do Rio] reivindicar alguns
Priscila da Silva Pereira direitos dela como portadora de câncer. Aí, me
cadastraram para receber o Cheque-cidadão,
Realização que era de R$ 100. Achamos melhor cadastrar
meu nome porque ela estava com dificuldade
Decupagem
de se locomover sozinha. Hoje, recebo R$ 94.
Carlos Daniel da Costa
Com esse dinheiro, a gente faz o mercado,
Edição deixa todo lá.
Ana Bittencourt Acho vergonhoso um chefe de família
Fotos receber R$ 94. Não dá para sustentar uma
Marcus Vini família com isso. Tenho um constrangimento
com isso, acho que, recebendo esse dinheiro,
Produção
as pessoas podem me tachar de vagabundo,
Geni Macedo
Rozi Billo Aloísio Gomes achar que só vivo disso. Sou uma pessoa bem-
-relacionada, procuro andar bem-vestido, por
da Silva isso, quando vou buscar o dinheiro, dou meu
46 anos, Cidade de Deus cartão escondido. O que vão pensar de mim?
Com esse dinheiro, dá para matar a
Nasci no Rio de Janeiro. Morava na Ilha do fome de uma família de seis pessoas durante
Governador, e quando minha mãe soube que uma semana. Agora, se o governo tirasse isso
estavam começando a construir casas na Cidade e investisse em educação, em cultura, em di-
de Deus, viemos. Estava com 6 anos. Meu pai reitos, seria melhor. Em compensação, matava
era mecânico e minha mãe, cozinheira. Éramos esse povo aqui em um mês. O valor dado não
cinco filhos, dois já faleceram, ainda tenho é quase nada, mas ajuda naquele momento, é
duas irmãs. mais uma semana em que se tem o que comer.
Minha família está passando por um Seria melhor se o governo desse educa-
momento difícil, fiquei viúvo no dia 3 de abril, ção adequada, emprego. Aqui, tem 13 escolas
depois de 18 anos de convivência. Tenho dois de ensino fundamental e apenas uma de ensino
filhos: Lucas, com 7 anos, e Paola, com 13. médio. Parece até maldade, para que aqui seja
Estudei só até o ensino fundamental, um local de formação de mão-de-obra barata.
sou músico, toco instrumentos de percussão e Sonho para meus filhos o que todo pai
sou intérprete da escola de samba daqui, Moci- sonha: formação adequada e futuro próspero.
dade Unida de Jacarepaguá, onde, desde o ano Agora, conseguir isso é uma luta! É claro que
passado, sou também diretor-social. Não voltei isso tem que partir de mim. Conquistando essa
a estudar, mas já fiz curso de desenvolvimento condição, a primeira coisa que quero fazer é
local e economia solidária. devolver esse benefício. Não vai resolver mais o
Minha esposa tinha um bazar aqui em meu problema, mas pode resolver o problema
casa que ajudava muito. Tinha uma renda em
torno de R$ 600. Vivo sem renda fixa desde a
época em que ela operou, em 2003. Trabalhava
como motorista e acabei deixando por causa
dela. Foram cinco anos de luta. Faço um tra-
balho aqui, outro ali. Às vezes, vendo antenas
e, próximo do carnaval, aparecem os shows.
Mas não é grande coisa, rende em torno de
R$ 50, R$ 80 cada.
Quando saio de casa, deixo a comida
deles pronta, é só esquentar. O básico da nossa
comida é arroz, feijão e frango. Eles não gostam

30 Democracia Viva Nº 39
JUNHO 2008 31
ENTRE Entrevista

V Fátima
ISTA
Andréia
A agente comunitária de saúde
Fátima Andréia Monteiro do
Nascimento, moradora de Jardim
Gramacho, na Baixada Fluminense,
é titular do Programa Bolsa
Família há quatro anos.
Separada, mãe de três filhos,
Fátima Andréia costuma fazer
Fotos: Marcus Vini

palestras que vão além da


questão da saúde: “A gente
trabalha pra construir um
país que não nos reconhece
como filhos verdadeiros.
Não nos dão as mesmas
oportunidades, as escolas
públicas não preparam
nossas crianças para
serem, de fato, cidadãs.
Queria um país mais justo,
que as pessoas pudessem
sonhar e que, se fossem
ousadas, trabalhadoras,
tivessem como alcançar
os seus sonhos”. Confira
a entrevista concedida
ao Ibase.-

32 Democracia Viva Nº 39
Democracia Viva (DV) – Onde você DV – Como foi a vida no
nasceu e quando? colégio interno?
Fátima Andréia Nascimento – Tenho Fátima Andréia Nascimento – Muito
37 anos, nasci no Rio de Janeiro, na Rocinha. boa, foi a melhor época da minha vida. Era um
Minha mãe é mineira, meu pai era alagoano. colégio de freiras, podia brincar, me alimentar,
Eles vieram pra cá numa época em que o Rio tinha roupa lavada, escola, brinquedo, uma
estava crescendo. Meu pai, pra trabalhar na cama só pra mim. Não precisava disputar para
construção civil, e minha mãe veio com minha ter as coisas, como acontece na vida aqui fora.
avó pra trabalhar em casa de família, onde ela Minha vida era tranqüila, não tinha nenhum
ficou morando depois que minha avó voltou. tipo de necessidade.
Meu pai trabalhava numa obra perto da casa DV – E como você lidou com
onde minha mãe morava, e eles acabaram na- a ausência da família?
morando. Casaram quando ela ficou grávida. Fátima Andréia Nascimento – Meu pai
Os patrões costumavam se responsabilizar pelas foi uma pessoa muito ausente na minha vida.
meninas que vinham do interior e arranjaram o Meus filhos puderam contar com ele como avô.
casamento. Minha avó, que voltou para o Rio O que ele não fez por mim e pelo meu irmão,
pra ajudar, comprou uma casa na Rocinha, onde fez pelos meus filhos. Tudo o que não me deu,
eles foram morar depois de casados. como atenção e dinheiro, enquanto pôde, fez
DV – Como foi sua infância? por meus filhos. Quanto a sentir a ausência
Sua família é grande? da minha mãe e de meu irmão, não tínhamos
Fátima Andréia Nascimento – Meu pai essa noção de família, a gente sempre viveu
era mulherengo e tinha problemas com álcool. separado. Quando saí do colégio interno, foi pra
Minha mãe trabalhava como doméstica e só trabalhar em casa de família. As pessoas sempre
vinha pra casa de 15 em 15 dias. Nós éramos diziam pra minha mãe que eu ia estudar, que
quatro filhos, mas duas irmãs morreram ainda iam me dar roupas, mas nada disso aconteceu.
pequenas, só ficamos eu e meu irmão. Eu sou a DV – Nessa época, você ganhava
mais nova. Enquanto minha mãe estava traba- salário para trabalhar?
lhando, ficávamos na casa de uma conhecida, Fátima Andréia Nascimento – Não, eles
que ela pagava pra tomar conta da gente. Um não usavam a palavra “trabalho”, chamavam
dia, quando ela chegou do trabalho, meu pai de “ajuda” em troca de casa. Diziam que iam
tinha vendido a nossa casa, tinha ido embora. fazer um monte de coisas, mas nunca ganhei
Minha mãe ficou muito sem apoio. Eu era nada nessas casas onde trabalhei. Tinha no
bem pequena, mas lembro que passamos uma pensamento aquela idéia de ajudar minha mãe,
temporada na casa de uma amiga dela. Depois, porque ela não tinha como pagar uma casa pra
minha mãe passou a morar definitivamente no gente morar nem tinha um lugar pra onde me
trabalho e fui morar na casa de outra família. mandar. Eu encarava como uma missão, uma
DV – Você e seu irmão foram para obrigação, ter que ficar em determinados locais
a mesma casa? pra ajudar minha mãe.
Fátima Andréia Nascimento – Só até DV – Você saiu do colégio interno
um certo período, depois fui pra um colégio porque tinha limite de idade?
interno e ele foi pra outro. Nesse período, Fátima Andréia Nascimento – Não, a
minha mãe teve pneumonia e precisou ficar administração da escola mudou toda, até as
internada em um hospital em Jacarepaguá. freiras foram embora. Lá era muito bom, não
O colégio pra onde fui, em Paquetá, era um via aquele lugar como um colégio interno, ali
preventório, um local para tratar crianças com era a minha referência de família. As irmãs
tuberculose. Eu estava com uns 7 anos. E meu eram carinhosas, e olha que eu era uma das
irmão ficou em um colégio em São Cristóvão, mais bagunceiras. Quando fazia alguma coisa
só para meninos. Antigamente era assim, cada errada, minha penitência era ajudar na lavan-
um ficou num canto. deria ou engraxar sapatos. E como gostava de
DV – Mas você também estava cumprir penitência! As funcionárias da escola
doente? faziam todo o serviço e me deixavam brincar à
Fátima Andréia Nascimento – Não, era vontade, era muito legal.
uma forma de profilaxia, mas fiquei recebendo DV – E depois, foi passando
tratamento como se estivesse, e olha que nem de casa em casa? 1 Assista também ao vídeo
tinha assim tanto contato com minha mãe, Fátima Andréia Nascimento – No início, com a entrevistada, disponível
no Portal do Ibase <www.
mas foi o que fizeram. Fiquei lá até os 12 anos. sim. Fiquei na primeira casa por uns seis meses, ibase.br>.

JUNHO 2008 33
entrevista

na. Quando recebi pela primeira vez, fui com


umas colegas do trabalho, todas adolescentes,
pra Duque de Caxias. Comprei uma calça qua-
driculada verde e preta, um tamanco laranja,
nada combinava, foi muito engraçado. Depois,
lanchamos, comemos hambúrguer. Minha mãe
não tinha como me levar pra comer essas coisas.
Gastei todo o dinheiro naquele dia. Nas outras
semanas, já gastava o dinheiro antes mesmo de
receber, já fazia conta.
DV – Você ficou quanto tempo
nesse emprego?
Fátima Andréia Nascimento – Uns sete
meses, trabalhava o dia inteiro, das 7h às 5h
da tarde. Nunca mais voltei a estudar, fui só
até a 3ª série. Depois, fui pra outro depósito,
de plástico, de uns japoneses. Lá, pegava às 6h
da manhã e largava às 8h da noite e, quando
acabava, ainda tinha que lavar o galpão. Tam-
bém trabalhava aos sábados, mas aí largava
uma hora antes. Nesse dia, saía do trabalho, ia
fui pra outras. Mas, depois, meu pai e minha fazer o cabelo pra ir ao baile, mas ficava pouco
mãe voltaram a morar juntos e alugaram uma tempo, às 10 horas, já estava em casa.
casinha em Jardim Gramacho, onde moro até DV – Seus pais determinavam hora
hoje. Antes disso, costumávamos passar uns para você voltar?
fins de semana lá, na casa de umas amigas Fátima Andréia Nascimento – Não, eles
da minha mãe. Até que nos mudamos de vez. trabalhavam muito, eu era uma pessoa livre.
Estava com uns 13 anos. Minha mãe sempre Mas, às vezes, ficava na casa de uma prima, e
foi uma pessoa muito sozinha, fora os filhos, aí, tinha que respeitar o sistema da casa dela,
não tinha mais ninguém aqui no Rio. senão minha tia não deixaria mais a gente sair.
DV – Como ficou sua vida com essa Eu podia ir pra onde quisesse, passar dias fora
mudança? de casa, sem problemas.
Fátima Andréia Nascimento – Quando DV –Seu pai ficava violento quando
vi meu pai e minha mãe morando juntos, bebia?
numa casinha legal, comecei a ter sonhos. Mas Fátima Andréia Nascimento – Eu preferia
meu pai tinha uma visão de que os filhos não ficar fora de casa quando minha mãe não es-
precisavam estudar, que pra ser empregada tava. Eu e meu pai tivemos muitos problemas,
doméstica ou trabalhar em obra não precisava nossa relação se tornou muito difícil, era mais
disso. Lá, em Caxias, tinha um curso de inglês seguro ficar na rua mesmo. Quando a minha
e eu sonhava em aprender. Também queria mãe vinha, eu ficava em casa.
muito ter uma guitarra. Assim, resolvi trabalhar DV – Qual a idade de seus
num depósito de alumínio. Naquela área, havia pais hoje?
vários depósitos de latinhas, de plástico, ficava Fátima Andréia Nascimento – Minha mãe
um do lado do outro. Meus pais trabalhavam e tem 62 anos. Meu pai morreu faz cinco anos de
eu ficava em casa sozinha. Meu irmão morava problemas respiratórios, porque fumava muito,
com uma família em Padre Miguel, um lugar bebia, trabalhava demais e se alimentava mal.
onde cheguei a morar também antes de ir para Era uma mistura de tudo o que não devia fazer.
o colégio interno. Ele morreu jovem.
DV – Nesse trabalho, você ganhava DV – Sua mãe ainda trabalha?
salário? Mora com você?
Fátima Andréia Nascimento – Ganhava Fátima Andréia Nascimento – Não, ela
por semana. Não ganhava como as pessoas agora está aposentada. Não mora comigo, tem
mais velhas que faziam o mesmo trabalho que outro companheiro. Quando morávamos com
eu, de separar latinhas, alumínio. Mas ganhava meu pai, um dia, quando voltei do trabalho,
um dinheirinho. Não dava pra me sustentar, minha mãe não estava mais, tinha arrumado
mas pra quem não tinha nada, era uma fortu- as coisas dela pra morar com esse homem. Eu

34 Democracia Viva Nº 39
Fátima Andréia Monteiro do Nascimento

tinha16 anos, fiquei muito abalada, me senti es- um tempo, por causa da vergonha, fiquei cala-
quecida por ela. Ela não deixou nem endereço. da, não queria que todo mundo soubesse. Mas,
Mesmo nunca tendo essa referência de família, um dia, participei de uma palestra sobre violên-
minha mãe era a minha referência, era o que eu cia doméstica e não quis mais aceitar aquilo,
tinha, ou que eu achava que tinha. Embora eu fiquei revoltada. Dei parte dele na delegacia,
já vivesse independente, já trabalhasse, achava ele ficou quieto por um tempo. Depois, numa
que minha mãe era uma santa, que não podia outra vez que me agrediu, pegou uma faca e
dar nenhum tipo de aborrecimento a ela e que cortou o fio do telefone pra eu não chamar a
ela nunca seria capaz de ter outro namorado. E, polícia. Tive que ficar quieta, porque com faca
de repente, ela foi embora. Naquela época, não não se brinca. Ele fazia isso tudo, mas na frente
a via como mulher, hoje entendo isso. das pessoas, se fazia de calmo. Aí eu reverti a
DV – Como ficou sua vida situação, aprendi a fazer escândalo. Até ameça
depois disso? de morte, ele fez. Agora, estou na justiça pra
Fátima Andréia Nascimento – Ficou bem receber pensão para meus filhos.
mais difícil, resolvi sair de casa e fui morar com DV – Com a saída dele, ficou
um rapaz, durou uns seis meses. Meu pai sofreu complicado manter a casa?
muito, fiquei até com pena dele. Embora ele Fátima Andréia Nascimento – Quando
fizesse um monte de coisa errada, depois disso, ele foi embora, as poucas coisas de valor que
ficou claro que ele gostava da minha mãe. Mais tínhamos, ele levou. Quando meu pai morreu,
tarde, conheci o pai dos meus filhos, eu estava ficamos com a TV dele, uma pequena, senão
com 17 anos. as crianças iam ficar sem. Nessa época, estava
DV – Como vocês se conheceram? começando a trabalhar como agente comunitá-
Fátima Andréia Nascimento – Nos en- ria e a situação ficou muito difícil. Ele ganhava
contramos numa festa dos Alcoólatras Anôni- mais e pagava as contas, eu só comprava
mos. Temos três filhos. Felipe tem 16 anos, é algumas coisas e tinha feito contas, que não
superestudioso, nunca repetiu de ano, está no deu mais pra pagar. Larguei todas as contas,
segundo ano do ensino médio, é esforçado. até luz. O dinheiro que ganhava só dava pra
Agora, está fazendo um curso de mecânica, fez fazer o mercado. Agora, ainda estou tentando
prova e conseguiu a vaga. Alan tem 14 anos, é resolver isso tudo. Quando ele foi embora, não
um pouco mais lento, é muito sonhador, vive deu mais nada para as crianças.
um pouco além da realidade e isso me preocupa DV – Continuou morando no
porque é fácil convencê-lo com qualquer histó- mesmo lugar? Como é a sua
ria, acho perigoso. Está na 5ª série, já repetiu de comunidade?
ano. E tem o Patrick, com 12 anos. Ele é muito Fátima Andréia Nascimento – Sim, moro
carinhoso, amigo, gosta de conversar, de fazer na Rua Remanso, no Jardim Gramacho. Lá tem
amizade. Na rua onde moramos, todo mundo três escolas boas, mas as municipais são me-
gosta dele. Esta semana, ele estava vendendo lhores porque dão uniforme, calçado, material
bombinhas de festa junina com um vizinho, didático, mochila e alimentação também é boa.
ganhou R$ 2 e me ofereceu pra eu comprar pão. Agora, todos os três estão na escola estadual.
Disse a ele que não está no momento de ele se DV – A saúde de seus filhos é boa?
preocupar com pão e, sim, com estudo, mas ele Fátima Andréia Nascimento – Todos ti-
é muito preocupado com as questões da casa. veram problemas alérgicos. Quase todo mundo
DV – Quantas pessoas moram que mora em Jardim Gramacho tem esse pro-
na sua casa hoje? blema, principalmente de manhã. A garganta e
Fátima Andréia Nascimento – Só eu e os ouvidos ressecam e coçam muito. É por causa
meus filhos. Não moro mais com meu marido, da poluição ambiental, é muita queimação de
nos separamos em 2001. Tenho um namorado cobre, de noite fica só fumaça ali. Mas temos
que, de vez em quando, fica lá em casa. O pai tratado isso no posto.
dos meus filhos é muito mais velho que eu, DV – Como é a alimentação
quando nos conhecemos, ele já tinha 35 anos. de vocês?
Depois que tive as crianças, ele começou a me Fátima Andréia Nascimento – Não gosto
tratar como se eu fosse mais uma filha. Aí, muito de carne vermelha, acho que faz mal pra
entrou a questão da violência e não deu mais saúde, é algo pra comer só no fim de semana.
pra segurar. Mas eles comem de tudo, gostam muito de café
DV – Ele batia em você? com leite, achocolatado, pão, iogurte, porque
Fátima Andréia Nascimento – Sim, por não compro com freqüência. Eles gostam muito

JUNHO 2008 35
entrevista

de maçã, beterraba, cenoura, batata-doce que você administra esse orçamento?


faço com carne moída. Comem também arroz, Fátima Andréia Nascimento – Compro
feijão, frango, legumes. Um de meu filhos come roupas pra eles só em promoção mesmo. O
na escola e em casa, os outros não gostam da mais velho tem mais cuidado com as roupas,
comida da escola, só servem angu com salsicha. os menores ainda gostam de tomar banho de
Eles gostam também de besteiras, como bolo, mangue e a roupa fica encardida, manchada.
biscoito recheado, mas não gosto de comprar Eu brigo, mas entendo, porque também gostava
essas coisas, é uma briga danada. Lá em casa, de tomar banho de mangue. Eles acabam com
não sobra muita comida, acaba tudo rapidinho. a roupa muito rápido. Cada mês, compro uma
Tudo o que coloco na geladeira, eles comem. coisa, cuecas, camisetas, shorts. Já o sapato,
Só as coisa cruas, como abóbora, couve, que que é mais caro, costumo comprar quando
eles não sabem fazer ainda, ficam na geladeira recebo o décimo-terceiro, no fim do ano, ou
até eu fazer. quando recebo o PIS.
DV – Quanto você gasta DV – Como se tornou agente
com compras? comunitária de saúde?
Fátima Andréia Nascimento – Hoje, Fátima Andréia Nascimento – No Jardim
ganho R$ 450 trabalhando como agente co- Gramacho, já existia há 12 anos o programa
munitária de saúde. Trabalho com isso há sete Saúde na Família, só que não era profissão,
anos. Gasto uns R$ 350 só com comida, faço as era um trabalho voluntário. Em 2002, foi feita
compras de mês e, quando vai acabando, vou uma chamada. Bastava fazer a provinha, que
comprando aos poucos. As compras agora es- foi bem básica, ser moradora, ter boa conduta
tão mais caras, os preços subiram muito. Antes, e um bom relacionamento no bairro. Com o
comprava uma quantidade maior, agora não dá tempo, começaram as reivindicações, porque
mais pra fazer isso. Por exemplo, se comprar nós trabalhávamos e não tínhamos direito a
muito ovo, toda hora é um ovo mexidinho; se férias, 13º, a nada. As mulheres mais velhas
comprar muito hambúrguer, é a mesma coisa. não ligavam muito pra isso, mas quando co-
Então, compro menos agora. Compro uns dez meçou a entrar mulheres mais novas, passamos
quilos de arroz por mês porque, além de comer a brigar por nossos direitos. É claro que, ao
na comida, eles pedem para eu fazer arroz doce. lado das reivindicações, vem outro lado, o das
Mas estou tentando diminuir o açúcar por uma exigências. Tivemos que estudar, nos capacitar,
questão de saúde mesmo. Já a carne, compro todas nós voltamos pra escola para fazer o Cur-
cerca de dois quilos por semana e divido cada so Técnico de Agente Comunitário de Saúde.
quilo para dois, três dias. Costumo comprar É isso que estou fazendo agora. Existe uma
hambúrguer, carne moída, frango, salsicha e discussão se esse trabalho vai ficar vinculado a
aproveito as promoções do mercado. qual governo, federal ou municipal, se seremos
DV – E os outros gastos com efetivadas pela CLT. Não pode ser concurso
vestuário, material escolar? Como público, porque, para ser agente comunitário,
tem que morar, necessariamente, no bairro, e
um concurso público teria que abrir para mais
pessoas. Enfim, enquanto isso tudo se resolve,
estamos nos capacitando.
DV – O que mudou na sua vida
a partir desse trabalho?
Fátima Andréia Nascimento – Mudou
muito. Não tinha noção de muita coisa que
agora estou aprendendo, principalmente sobre
saúde e higiene. A gente aprende a conviver
com as pessoas, a passar informações pra elas, o
nosso trabalho tem um lado meio de psicologia.
Nas visitas domiciliares, a idéia é verificar car-
tão de vacina, fazer palestras, às vezes só para
aquela família, às vezes, em escolas. E também
procurar descobrir problemas de saúde antes
que eles se agravem, como nos casos de hiper-
tensão. Mas a cada conversa, as pessoas não
falam só sobre a saúde, falam das dificuldades,

36 Democracia Viva Nº 39
Fátima Andréia Monteiro do Nascimento

das mágoas. A gente vai fazer determinado pessoas sempre olham por eles, o bairro todo
levantamento e acaba descobrindo muito mais. me conhece. Às vezes, Alan fica na casa de uma
Presenciamos muitos conflitos também, e não irmã da igreja.
podemos interferir. No caso da juventude, é DV – A família é evangélica?
mais complicado. Às vezes, eles confidenciam Fátima Andréia Nascimento – Todos,
pra nós situações que não contam para os menos Felipe. Mas não somos da mesma igreja.
próprios pais. Acho que, com esse trabalho, A minha é a Boas Novas, a do Patrick é a Pen-
aprendo a entender melhor o ser humano e a tecostal Restituição, às vezes, Alan vai também.
julgar menos, é muito legal. Patrick começou primeiro, foi ele que me levou
DV – Como é a sua casa? quando eu estava com problemas. Mas ali era
Fátima Andréia Nascimento – Quando mais um ponto de pregação e queria aprender a
o pai das crianças foi embora, a casa já estava doutrina mesmo, por isso procurei outra igreja.
muito velha. Agora, meu namorado está fazen- DV – O que fazem para
do um muro, não há como pagar pedreiro. Para
fazer obra em casa, tenho que cercar o quintal
se divertir?
Fátima Andréia Nascimento
A cada conversa,
primeiro. Moro em casa de fundos e o esgoto – A gente costumava ir ao cinema,
da casa da frente cai no meu quintal. A casa só que fica muito caro. Consegui as pessoas não
do lado colocou uma bica e agora está caindo comprar um DVD e a gente aluga
água por trás da minha casa. Não quero discutir filmes. Meus filhos gostam de de- falam só sobre
com os vizinhos, então vou delimitar o que é senhos japoneses e de revistinhas,
meu a partir do muro. Aí chegaremos a uma os mangás. Acho muito chato. saúde, falam
solução e poderei melhorar a casa. O banheiro Alan gosta de ir pro shopping,
está quase caindo, tive que tirar a caixa d´água. adora a escada rolante. Patrick das dificuldades,
DV – E o cotidiano da sua família? gosta de sair pra comer fora, ir ao
Fátima Andréia Nascimento – Costumo parque de diversão. das mágoas.
acordar às 6 horas da manhã para fazer várias DV – Quando começou
tarefas em casa antes de sair pra trabalhar. Fe-
lipe acorda às 5 horas pra ir pra escola, deixo o
a participar do Programa
Bolsa Família? Como usa
Com esse
café pronto à noite ou faço cedinho. Costumo esse dinheiro?
também fazer a comida de manhã, compro pão, Fátima Andréia Nascimento trabalho, aprendo
lavo roupa, passo minha roupa pra ir trabalhar. – Há uns quatro anos, me inscrevi
Os outros dois estudam à tarde. Como meu tra- na escola das crianças. No mês pas- a entender
balho é de casa em casa, lá na comunidade, às sado, recebi R$ 97. Esse dinheiro
12 horas, volto pra dar almoço pra eles. Patrick serve pra muitas coisas, depende melhor o ser
tem a tarefa de esquentar a comida. Alan enche do momento em que chega. Certa
os barris de água. vez, chegou um dia depois que humano e
DV – Não tem água encanada? acabou o gás, é claro, comprei
Fátima Andréia Nascimento – Tem, mas, outro botijão. Da outra vez, veio
de quarta a domingo, não entra água da rua. um dia antes do aniversário do Patrick, comprei
Felipe fica com a tarefa de lavar o banheiro. um sapato pra ele. Às vezes, compro alguma
Ele chega, almoça e depois vai pro curso, só coisa no mercado, às vezes, são meias pra escola
volta quase 6 horas da tarde. Ele não ganha ou a gente sai, lancha, vai ao parquinho. Não
dinheiro, mas está aprendendo mecânica, é acho que esse dinheiro tenha que ser só pra
um treinamento de um ano, tem também um alimentação. O governo não pode achar que
seguro de vida. A maioria dos meninos que faz nossa necessidade está só na alimentação. O
esse curso consegue emprego. É uma oportu- que não faço é comprar a crédito contando
nidade para o futuro. com esse dinheiro, porque esses programas de
DV – E os outros, ficam em governo de repente acabam, sem aviso.
casa sozinhos? DV – Conhece alguma história
Fátima Andréia Nascimento – Os outros desse tipo?
não estão fazendo nenhum curso no momento, Fátima Andréia Nascimento – Sim, algu-
mas estão precisando de explicadora. Eles ficam mas pessoas falam que perderam; outras que
em casa de manhã e estudam à tarde. A minha o valor mudou de repente. Prefiro não fazer
rua é como se fosse um grande quintal, todo dívida contando com esse dinheiro. Mas ajuda
mundo se conhece desde pequeno. É difícil muito. Por exemplo, quando comprei a bicama
fazerem alguma coisa que eu não saiba, as dos meus filhos, isso só foi possível porque

JUNHO 2008 37
entrevista

tinha mais esse dinheiro pra receber. Antes, esse dinheiro, não necessariamente com co-
dormíamos todos no chão. mida. Os programas anteriores eram assim.
DV – É fácil ou difícil cumprir as Participei do Cheque-Cidadão, e o governo
condicionalidades do programa? queria dizer o que deveríamos comprar. Claro
Fátima Andréia Nascimento – Não acho que ninguém deve comprar cigarro e bebida
difícil, não. Como agente comunitária de saúde, com um benefício do governo, mas há outros
tenho obrigação de avisar para as pessoas do itens necessários que, às vezes, não são pen-
bairro que elas têm que ir ao posto para ver sados. Acho que os critérios deveriam mudar
como está a saúde da criança, senão podem nesse sentido. Por exemplo, se a criança está
perder o benefício. A escola também avisa, mal na escola, a mãe não pode responder uma
coloca cartaz. Não há como ir de casa em casa pesquisa dizendo que gasta aquele benefício
avisar. No Jardim Gramacho, não acho que as com uma explicadora para o filho. É como se
pessoas tenham dificuldade para obter essas o governo estivesse pagando a população para
informações. E quando a gente fala em perder continuar tudo do mesmo jeito.
benefício, as pessoas se interessam, ficam mais DV – Como encara o recebimento
espertas porque ninguém quer perder. desse benefício?
DV – Você conhece alguém Fátima Andréia Nascimento – Acho que,
que tentou entrar no programa nessa história, não tem ninguém bonzinho. Não
e não conseguiu? sei exatamente como isso funciona, mas acho
Fátima Andréia Nascimento – Já soube que o dinheiro que vem pra cá também é meu,
de alguns casos. Nessas situações, quando é da população que paga seus impostos e, de
falam comigo, digo pra elas irem na Secretaria alguma forma, volta pra nós.
de Ação Social pra saber qual é a dificuldade. DV – Se a sua vida mudasse, abriria
Agora, nesse período, por conta das eleições, mão do Bolsa Família?
não há como se inscrever mesmo, só depois Fátima Andréia Nascimento – Sim, isso
das eleições é que vai reabrir. aconteceu quando recebia o Cheque-Cidadão.
DV –Tem alguma crítica Arrumei um emprego, fui lá e devolvi, ninguém
ao programa? precisou falar nada pra mim. Na época em que
Fátima Andréia Nascimento – Não tenho comecei a receber, precisava muito mesmo,
críticas, mas sugestões. Claro que gostaria que estava desempregada e o pai dos meninos
o benefício fosse maior. Outro ponto é que as também. Depois de um tempo, ele arrumou
crianças que recebem o Bolsa precisam estar emprego e eu também, aí não precisávamos
em escola estadual ou municipal. Gostaria de mais. Como fui abençoada, queria que outra
poder mudá-las de escola, para uma escola em pessoa fosse também, por isso, interrompi.
que realmente a gente sentisse segurança e, DV – Como seria o Brasil ideal?
nesses casos, geralmente, é preciso pagar. Esse Fátima Andréia Nascimento – O Brasil
dinheiro poderia ser pra isso também. que eu sonho ainda não existe. Precisaria ter
As pessoas, quando pensam no Bolsa Fa- oportunidades iguais pra todos, em todos os
mília, associam isso à alimentação, em adquirir sentidos, na saúde, na educação, no trabalho.
alimentos. Mas, como diz a música: ‘A gente Quando saio de onde moro e venho para o
não quer só comida, a gente quer bebida, di- centro do Rio, percebo que o Brasil não é igual,
versão e arte’. É por aí. O governo poderia ter e isso é assim desde sempre, desde antes de
pensado em outras formas, em vez de apenas eu nascer. Não entendo isso. Por exemplo,
dar um benefício, porque algumas famílias se chego em um lugar e digo que moro em
realmente se acostumam a isso, se acomodam, Caxias, agora isso diminuiu, mas as pessoas
ficam na ‘profissão beneficiário’. As pessoas agem como se esse fosse o pior lugar, como se
que estão desempregadas deveriam receber lá não tivesse também muitas pessoas bacanas,
um formulário de preenchimento de vagas de trabalhadoras.
emprego, entrar para um cadastro de empre- A gente trabalha pra construir um país que
gos. Não que fosse tirar o benefício, a não ser não nos reconhece como filhos verdadeiros.
quando necessário. Não nos dão as mesmas oportunidades, as
DV – Acha que, com o dinheiro, escolas públicas não preparam nossas crianças
o governo deveria dar um incentivo para serem, de fato, cidadãs. Preparam para
à empregabilidade? servir somente em subempregos. As crianças,
Fátima Andréia Nascimento – Sim. Da hoje, têm muita dificuldade de aprendizagem
mesma forma, tem várias maneiras de gastar e, mesmo cometendo erros, passam de ano,

38 Democracia Viva Nº 39
Fátima Andréia Monteiro do Nascimento

Participaram
desta entrevista
Ana Bittencourt
Carlos Daniel da Costa
Geni Macedo
Jamile Chequer
Mariana Santarelli
Rita Brandão

Realização
Decupagem e edição
Ana Bittencourt

Fotos
Marcus Vini

Produção
Geni Macedo
Rozi Billo

parece que saber o português correto já não tem pré-vestibulares comunitários, isso pode
conta mais. Acho que cidadania é poder entrar ajudar. Gostaria que eles pudessem estar em pé
em qualquer lugar de cabeça erguida, não é em de igualdade, fazer as provas, tirar boas notas,
todo lugar que somos bem-vistos. conseguir estar em lugares que, hoje, ainda não
DV – Já passou por situações conseguem chegar.
de preconceito? É muito difícil conquistar alguns espaços,
Fátima Andréia Nascimento – Sim, uma tem pessoas que já nasceram pra ocupar esses
vez participei de um concurso de frases e ga- espaços, estão predestinadas a isso. Gostaria
nhei um fim de semana em Porto Seguro, na que esse fosse o desejo da juventude de todos
Bahia. Estava muito feliz, fui com uma colega. os bairros mais pobres, que os pais também
Lembro que fui entregar a chave do quarto na fomentassem esse desejo nos filhos. Os pais,
recepção do hotel onde estávamos e tinha ali muitas vezes, não têm esse desejo, porque
uma mulher bonita, bem-vestida. Quando ela isso também não foi passado pra eles quando
me olhou, segurou a bolsa como se eu fosse eram crianças, como aconteceu com meus
roubá-la. Voltei para o quarto muito chateada. próprios pais.
Acontece também de estar em shopping e per- Eles acham que não vale a pena, que é mui-
ceber o segurança olhando. Este país é muito to difícil tomar decisão, que não vai contribuir
desigual nesse sentido. Às vezes, as pessoas pra nada, que não vale a pena participar, que
reclamam das cotas. Eu não aprovo as cotas a palavra deles, a participação deles, não têm
a longo prazo, mas nesse início, é superim- peso nenhum. Percebo isso onde moro, quando
portante. Ninguém vai dar oportunidade pra vamos fazer alguma ação, alguma mobilização.
ninguém de graça, então, o negócio é invadir A maioria não participa porque não acredita,
esses espaços, sim. Eles sempre falam da situa- acha que não vale a pena, está tudo muito
ção como se estivessem nos fazendo um favor, desacreditado. Queria um país mais justo nesse
dizem que os cotistas ficam abaixo da média, sentido, que as pessoas pudessem sonhar e que,
eu não aceito isso. se fossem ousadas, trabalhadoras, tivessem
DV – Que futuro sonha para como alcançar os seus sonhos.
seus filhos?
Fátima Andréia Nascimento – Sonho que
eles possam estudar, entrar para uma faculda-
de, é o que meu filho mais velho quer, os mais
novos ainda não pensam nisso. Sei que agora

JUNHO 2008 39
artigo
Edmar Gadelha*
Renato S. Maluf**

Contribuições
da produção
para

Estudos demonstram que as causas da insegurança alimentar de parte significativa da

população brasileira estão relacionadas, diretamente, às dificuldades de acesso aos ali-

mentos, seja pelo não-acesso aos meios produtivos, seja por falta de trabalho e renda

necessária para aquisição nos mercados. Nesse contexto mais geral é que devem ser

abordados os significados da produção de autoconsumo para a segurança alimentar e

nutricional das famílias. Vale ressaltar que essa produção é praticada não apenas pelas

famílias moradoras em áreas rurais, mas também por um grande número daquelas situ-

adas em áreas urbanas e periurbanas.

Antes considerada sinal de atraso, antítese da modernização da agricultura, a

produção de alimentos para autoconsumo constitui elemento-chave para o acesso a uma

alimentação segura – em face das flutuações da renda monetária própria da atividade

agrícola – e, também, a alimentos saudáveis oriundos de cultivos onde, raramente, são

aplicados agrotóxicos.
Revela-se ainda mais fundamental diante da concentração fundiária, das restrições ao acesso

40 Democracia Viva Nº 39
aos recursos naturais e dos baixos preços que Sem financiamento
recebem pelos produtos – fatores que compro- ou assistência técnica
metem o resultado econômico das atividades
Em primeiro lugar, é importante destacar que as
das unidades familiares rurais no Brasil (Maluf,
famílias beneficiadas pelo programa indicaram
2007). A produção para autoconsumo permite
que os gastos com alimentação constituem
às famílias rurais atender a uma necessidade
a maior despesa da família – 24,5% do total
constante, apesar da variação sazonal de sua
declararam ter gasto, nesse item, até R$ 100
renda monetária, e dispor de um padrão ali-
nos últimos 30 dias. Para 40,4% das famílias,
mentar superior quando comparado às famílias
os gastos com alimentação se situaram entre
urbanas com renda semelhante (Leite, 2004).
R$ 101 e R$ 200. Como mostra o Gráfico, os
Em 2003, a Fundação Instituto de Terras
dados indicam que quanto menor a renda da
do Estado de São Paulo José Gomes da Silva
família, maior, proporcionalmente, é o gasto
(Itesp) realizou pesquisa sobre a produção de
com a alimentação.
alimentos para consumo familiar em assen-
Entre as principais formas de se obter
tamentos da reforma agrária no estado. De
alimentação para as famílias identificadas na
acordo com o estudo, a produção para auto-
pesquisa, a compra de alimentos no mercado
consumo se faz presente na quase totalidade
foi apontada por 96,3% das famílias, seguida
dos lotes. Há desde famílias que dispõem de
pela alimentação escolar (33,4% das indicações)
apenas alguns produtos até aquelas que, com
e pela ajuda de parentes e amigos (19,8% das
elevada e diversificada produção, só compram
citações).
o que não podem produzir em seu próprio lote
A produção de alimentos para consu-
(Santos; Ferrante, 2003).
mo próprio foi citada por 16,6% das famílias
Embora não existam dados específicos
entrevistadas, percentual que corresponde a
a respeito, é possível supor que o plantio e
1.833.889 famílias do total beneficiado pelo
a criação de animais para o autoconsumo
programa. O cultivo de algum alimento ou a
representam, para milhares de famílias rurais
criação de animais para consumo próprio ad-
no Brasil, duas das principais formas de obter
quire maior importância como forma de acesso
alimentação. Além disso, tal produção ajuda a
à alimentação na Região Nordeste (21,3% das
construir a segurança econômica que a família
famílias), e é menos significativo na Região
necessita para se lançar em novos projetos
(pág. 42).
Em boa parte das famílias rurais, o
cultivo e a criação de animais para consumo
GRÁFICO
próprio devem ser cotejados à situação de
vulnerabilidade em que as famílias se encon- Relação entre renda familiar mensal e percentual
tram. Tal situação é própria da exclusão social de gastos com a alimentação das famílias
engendrada pelo modelo de desenvolvimento beneficiadas pelo PBF
predominante na agricultura brasileira, centra-
do na grande produção para exportação – que
resulta em restrições severas no acesso à terra,
à água e aos instrumentos da política agrícola.
A carência de instrumentos de política
(agrícola e não-agrícola) adequados a esses seg-
mentos, aliada aos riscos produtivos próprios da
atividade agrícola, aumenta as dificuldades das
famílias no rompimento do ciclo de pobreza e
insegurança alimentar a que se vêem submeti-
das por gerações.
Nesse contexto, adquire relevância
observar como o fenômeno da produção para
autoconsumo se manifesta entre famílias aten-
didas pelo Programa Bolsa Família (PBF), com
base em pesquisa recente desenvolvida por
Ibase, com apoio da Financiadora de Estudos
e Projetos (Finep).
Fonte: Pesquisa Repercussões do Programa Bolsa Família na Segurança Alimentar
e Nutricional das Famílias Beneficiadas, Ibase, 2007.

JUNHO 2008 41
artigo

Centro-Oeste (7,0%). técnica é realidade para 95,5% dessas famílias –


Mais da metade (56,6%) das famílias na Região Norte, o percentual sobe para 98,6%.
que plantam e/ou criam animais para a própria
alimentação é proprietária da terra onde traba-
Terra para quem vive dela
lha – no Norte, o percentual chega a 70,9%.
Na Região Sul, 8,8% das famílias que produ- As condições adversas em que se encontram
zem para consumo próprio são assentadas por as famílias atendidas pelo PBF, mas que con-
programas de reforma agrária; no Nordeste, tam com a produção para autoconsumo entre
o índice cai para 1,6%. O tamanho das áreas as formas de acesso à alimentação, indicam
pertencentes às famílias que se dedicam ao ser necessário ampliar e integrar programas
cultivo e à criação de animais para o consumo e ações públicas na busca pela superação da
alimentar é de até 2 hectares para 61,5%. Na insegurança alimentar constatada na maioria
Região Sudeste, as famílias com áreas de até 2 dessas famílias.
hectares representam 75,9% do total da região. A percepção dos(as) titulares do bene-
As famílias que têm na produção de fício do programa sobre a sua repercussão na
alimentos para consumo próprio uma das alimentação da família é de que o incremento
principais formas de acesso à alimentação, ge- de renda proporcionado favorece o aumento da
ralmente, não acessam os programas de crédito quantidade e da variedade de alimentos con-
para custeio de suas plantações ou criações. sumidos. Com mais recursos financeiros, os(as)
Tampouco recorrem a financiamentos e emprés- beneficiados(as) ficam em melhores condições
timos para as atividades produtivas. A pesquisa de satisfazer necessidades principais, entre as
constatou que das famílias beneficiadas pelo quais se destaca o acesso aos alimentos.
programa que produzem para o autoconsu- A produção de alimentos para o auto-
mo, 83,1% não firmaram nenhum contrato consumo faz parte da estratégia de reprodução
de financiamento. Na Região Centro-Oeste, das famílias, particularmente entre as famílias
91,5% não acessaram nenhuma modalidade de rurais. Sua importância é maior nas situações
financiamento agrícola nos últimos três anos. onde a escassez de recursos monetários se agra-
Por fim, as famílias produtoras de ali- va. Podendo dispor de alguns alimentos pro-
mentos para subsistência que participam do duzidos pela família, a renda conseguida com
programa alegam não receber nenhum tipo de a venda de pequenos excedentes, do trabalho
assistência técnica para a prática da agricultura assalariado ou de benefícios de programas pú-
e/ou criação de animais. A falta de assistência blicos pode fazer frente a outras necessidades,

Como funciona essa produção?

Os espaços da produção para o autoconsumo comidas fornece a carne, assim como a criação
variam em função do planejamento de cada de galinhas, patos e codornas. A produção
família, que leva em conta disponibilidade de oriunda de lavouras, como arroz, feijão, milho
terras, mão-de-obra, insumos e água. Em geral, e mandioca, possui área própria e também se
as hortas, os pomares e a criação de pequenos destina ao consumo da família, sendo o exce-
animais, soltos ou abrigados em pequenas dente geralmente vendido, trocado ou doado.
construções de madeira, localizam-se ao redor Nas áreas urbanas, famílias que dispõem
da casa para facilitar o trabalho. As famílias que de pequenos lotes ou têm acesso a terrenos
dispõem de área para pastagem, com criação públicos utilizam esses espaços para a pro-
de algumas vacas leiteiras, podem melhorar o dução de alimentos para o autoconsumo
padrão da alimentação. como forma de garantir o acesso familiar
A produção proveniente das hortas fami- à alimentação. Essa prática – conhecida
liares garante grande variedade de verduras como agricultura urbana e periurbana – vem
e legumes, permitindo o acesso rápido e crescendo nos últimos anos e já é objeto de
facilitando o preparo dos alimentos. O pomar ações e programas públicos específicos em
doméstico possibilita o acesso a frutas que diversos municípios brasileiros, bem como no
são utilizadas tanto para consumo in natura âmbito dos planos-diretores das cidades e das
como no preparo de sucos e doces. A criação políticas municipais de segurança alimentar e
de porcos, confinados em baias ou piquetes e nutricional.
alimentados com milho, mandioca e sobras de

42 Democracia Viva Nº 39
Contribuições da produção para autoconsumo no acesso aos alimentos

como gastos com saúde, educação, vestuário a uma alimentação saudável e adequada. Nesse * Edmar Gadelha
e habitação. aspecto, a integração de ações nos territórios e Sociólogo, consultor
A pesquisa do Itesp (Santos; Ferrante, sua interação intersetorial poderão ser capazes do Ibase e membro da
2003) em assentamentos concluiu que parte de contribuir para o fortalecimento das famílias coordenação nacional
significativa da alimentação é retirada ou em um processo de construção de cidadania do Fórum Brasileiro
depende diretamente da produção comercial ativa. de Segurança Alimentar

do lote, e esse consumo é tanto maior quan- Algumas iniciativas tornam-se funda- e Nutricional (FBSAN)

to melhor o desempenho econômico do(a) mentais no sentido de valorizar, promover e


** Renato
assentado(a). A pesquisa do Ibase, por sua apoiar as famílias que recorrem à produção de
S. Maluf
vez, revelou outro aspecto importante. Para as alimentos para o próprio consumo, principal-
Professor do Centro
famílias rurais beneficiadas pelo programa que mente nas áreas de maior ocorrência. Para isso,
de Pós-graduação
plantam e criam animais para autoconsumo, a o PBF deve se articular às ações nas seguintes
em Desenvolvimento
relação com a propriedade da terra torna-se áreas: fortalecimento da agricultura familiar de
Agrícola da Universidade
significativa para a segurança alimentar. baixa renda, com linhas de crédito e assistência Federal Rural do Rio de
Entre as famílias rurais que detêm a pro- técnica; agricultura urbana e periurbana no Janeiro (CPDA/UFRRJ)
priedade das áreas onde desenvolvem atividades contexto da reforma urbana; acesso à terra e presidente do
agrícolas e de criação, 19,5% encontram-se em mediante ações de distribuição e regularização Conselho Nacional
situação de segurança alimentar. Esse percen- fundiária; implementação de programas de de Segurança Alimentar
tual, já reduzido, é ainda inferior (6,9%) para fundos solidários; comercialização do excedente e Nutricional (Consea)
aquelas que afirmaram não serem proprietárias da produção no mercado institucional, por
da terra (posseiras, arrendatárias, comodatárias, exemplo, na alimentação escolar.
agregadas e outros). Já para as famílias assen-
tadas em projetos de reforma agrária, aquelas
em situação de segurança alimentar atingem o
percentual de 26,5% – dado bastante signifi-
cativo se comparado com as famílias que não
detêm o controle da terra onde trabalham – mas
ainda revelando uma grande fragilidade na sua
capacidade de provir alimentos. Referências
As famílias que se utilizam da produção Conferência Nacional de Segurança Alimentar e
para autoconsumo apontaram a dificuldade de Nutricional, 2., 2004, Olinda. Relatório final.
Brasília, DF: Consea, 2004.
acesso à terra como principal problema – 20,9% INSTITUTO BRASILEIRO DE ANÁLISES SOCIAIS E ECONÔMICAS.
do total. Na Região Sul, a pouca disponibilidade Repercussões do Programa Bolsa Família na segurança
de terra para trabalho é indicada por 23,5% das alimentar e nutricional das famílias beneficiadas. Relatório
final de pesquisa. Rio de Janeiro: Ibase; Redes; Brasília, DF:
famílias. No Nordeste, a pouca disponibilidade Finep, 2008.
de água (19,0%) e os altos custos dos insumos SANTOS, I. P.; FERRANTE, V. L. B. Da terra nua ao prato cheio:
agrícolas (20,1%) foram também citados como produção para consumo familiar nos assentamentos rurais
do Estado de São Paulo. Araraquara, SP: Itesp; Uniara,
dificuldades enfrentadas para realização das 2003.
atividades agrícolas. Além disso, as pequenas LEITE, S. “Autoconsumo y sustentabilidad en la agricultura familiar:
áreas disponíveis para a produção, quase sem- una aproximación a la experiencia brasileña”. In: BELIK,
W. (Org.). Políticas de seguridad alimentaria y nutricion en
pre, encontram-se degradadas ou com baixa América Latina. São Paulo: Ed. Hucitec, 2004.
fertilidade. Outros problemas mencionados p. 123-181.
dizem respeito a perdas da lavoura diante de MALUF, R. S. Segurança alimentar e nutricional. Petrópolis:
Vozes, 2007.
adversidades climáticas e ataques de pragas, ROMEIRO, A.; GUANZIROLI, C.; PALMEIRA, Moacir; LEITE, Sérgio
influenciando na produtividade. (Orgs.) Reforma agrária, produção, emprego e renda.
A falta de programas públicos específi- Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: Ibase; FAO, 1994.
VIEIRA, M. A. C. “A venda de terras do ponto de vista dos lavradores:
cos voltados para essas famílias compromete a venda como estratégia”. In: Terra de trabalho e terra de
ainda mais a já frágil situação de vulnerabili- negócio – estratégia de reprodução camponesa. Rio de
dade social em que vivem. Embora programas Janeiro: Cedi, 1990.

públicos de transferência de renda, como o


PBF, venham aportando recursos monetários
significativos, são necessárias ações que possam
valorizar, promover e apoiar a produção de ali-
mentos para o consumo próprio no âmbito de
uma política nacional de segurança alimentar e
nutricional e na perspectiva do direito humano

JUNHO 2008 43
intern
internacional
Benjamin Davis*1

América Latina e
Caribe:

saídas
contra a
Os programas de Transferência Condicionada de Renda (TCR) passaram a dominar o setor

de proteção social na América Latina e no Caribe durante a última década. A maioria dos

países da região ou está implementando programas dessa natureza ou está discutindo

sobre os méritos relativos à sua implementação. A popularidade desse tipo de programa

pode ser atribuída ao êxito dos programas Bolsa Escola, incorporado, em 2003, ao Bolsa

Família, e Progresa, rebatizado como Oportunidades em 2003, adotados, respectivamente,


1 Reprodução editada
e revisada de partes do no Brasil e no México, no fim da década de 1990.
documento produzido para
apresentação no Seminario
Internacional Transferencia
de Ingresos y Seguridad
A TCR está sendo, cada vez mais, considerada como a melhor prática no setor
Alimentar, realizado em
Santiago, Chile, em 4 e 5
de dezembro de 2006. social também nos países em desenvolvimento de outras regiões do planeta. E, graças ao
[Traduzido do inglês
por Patrick Wuillaume / principal componente de transferência de renda, sua popularidade suscitou discussões
Revisão de tradução por
Lêda Gonçalves Maia] sobre o mérito relativo das transferências monetárias em oposição às de alimentos, e as trans-

44 Democracia Viva Nº 39
acional
ferências condicionadas em oposição às não-
-condicionadas.2
Além disso, os pesos fiscal e político
atribuídos a esses programas podem exercer
impacto significativo sobre a composição e a
impacto sobre o consumo de alimentos ultra-
passa o simples efeito da renda. Envolve uma
mudança de comportamento resultante da par-
ticipação em palestras sobre saúde e nutrição.
Os programas de TCR ainda exerceram
dotação de fundos das políticas de desenvol- impacto importante na redução da pobreza,
vimento rural, em geral, e sobre os ministérios embora nem sempre essa constatação fique
das áreas da saúde, educação e agricultura, clara nos dados nacionais por conta de fa-
em particular. tores conflitantes. Kathy Lindert, Emmanuel
Sem dúvida, a predominância crescente Skoufias e Joseph Shapiro (2006), em análise
da TCR na América Latina e no Caribe, assim sobre dispêndio social na América Latina e no
como em outras partes do mundo, representa Caribe, acham que os programas de TCR estão
excelente oportunidade, mas também um desa- corretamente direcionados e desempenham
fio, no que diz respeito aos esforços em favor da papel importante na redistribuição de renda na
erradicação da insegurança alimentar da região. região, embora os pequenos valores unitários
Os programas de combate à insegurança das transferências limitem a extensão da redis-
alimentar constituem uma categoria muito mais tribuição. John Maluccio e Rafael Flores (2005)
ampla que a TCR. Geralmente, encaixam-se em acham que o piloto RPS, na Nicarágua, reduziu
dois tipos de grupos, seguindo o que a Orga- em mais de 16 pontos percentuais a parcela de
nização das Nações Unidas para a Agricultura famílias beneficiadas vivendo em condições de
e Alimentação (FAO) chama de abordagem em pobreza extrema.
duas vias.
A primeira via concentra-se no aumento
Nutrição e saúde
da produtividade agrícola e nos lucros com as
atividades geradoras de receita em geral. Envol- As avaliações realizadas sobre os programas de
ve apoio aos pequenos agricultores e criadores, TCR contêm ampla gama de informações sobre
infra-estrutura rural e acesso facilitado às estru- o impacto desses programas em uma série de
turas e instituições financeiras e de mercado. indicadores e resultados relativos à nutrição e à
A segunda via está voltada para a assis- saúde. Com exceção do Praf II, todos os demais
tência direta às pessoas e aos domicílios. Essa estão associados à redução da debilidade física
abordagem envolve as transferências de renda em crianças de famílias beneficiadas.
e de alimentos condicionadas e não-condicio- Jere Behrman e John Hoddinot (2005)
nadas, programas de merenda escolar, cozinhas constataram impacto significativo e positivo
comunitárias, nutrição materno-infantil, progra- das ações nutricionais do Oportunidades no
mas de alimentação e saúde. desenvolvimento infantil e menor probabilidade
Até agora, os resultados obtidos com a de debilidade física nos participantes do pro-
experiência dos programas de transferência de grama, principalmente entre crianças de 12 a
renda têm tido impactos importantes e positi- 36 meses de comunidades mais pobres, filhas
vos no acesso aos alimentos. Os resultados das de mães alfabetizadas. Eles calculam que o im-
avaliações do Programa de Auxílio à Família II pacto do programa, funcionando apenas até a
(Praf), em Honduras, do Rede de Proteção Social idade adulta, poderia resultar em um aumento
(RPS), na Nicarágua, do Familias en Acción, na de 2,9 pontos percentuais de benefícios pelo
Colômbia, e do Programa de Educação, Saúde resto da vida.
e Alimentação (Oportunidades), no México, Jere Behrman, Susan Parker e Petra Todd
mostraram amplo e significativo aumento na (2004), considerando os impactos em médio 2 Essas discussões são
particularmente acaloradas na
compra de alimentos, na dieta diversificada e/ prazo, constataram que as ações nutricionais África, principalmente
em termos da aplicabilidade
ou na disponibilidade calórica e, na maioria do Oportunidades voltadas para recém-nascidos da transferência de fundos –
dos casos, nos resultados sobre consumo de tiveram impacto positivo tanto no ingresso na em particular, dos programas
de transferência de renda –
alimentos.3 escola com idades mais adiantadas quanto na na região.
Orazio Attanasio, Luiz Gómez, Patrícia quantidade de matrículas. Juan Rivera, Danie- 3 Ver John Hoddinott e
Heredia e Marcos Vera-Hernandez (2005) la Stores-Alvares, Jean-Pierre Habicht, Teresa Emmanuel Skoufias (2004)
sobre Oportunidades;
constataram, na Colômbia, que as crianças, em Shamah e Salvador Villalpando (2004) acham John Maluccio e Rafael Flores
(2005) sobre RPS; e Orazio
particular, apresentaram aumento considerável que esse programa estava associado ao melhor Attanasio e Alice Mesnard
na qualidade da ingestão de alimentos como desenvolvimento entre as crianças mais pobres (2005) e Orazio Attanasio,
Luiz Gómez, Patrícia Herrera
resultado do Familias en Acción. John Hoddinot e de menor idade e às taxas menores de anemia e Marcos Vera-Hernandez
(2005) sobre Familias
e Emmanuel Skoufias (2004) apontaram que o (embora não tanto quanto o esperado, talvez in Acción.

JUNHO 2008 45
internacional

por causa de problemas com o tipo de ferro (de 15 a 20 pontos percentuais na incidência
usado como complemento). de doenças reportadas pelas próprias crianças
Na Nicarágua, John Maluccio e Rafael e pelos adultos, maior utilização dos postos de
Flores (2005) constataram que a participação no saúde pública e postos de acompanhamento
RPS trouxe redução de 5,5 pontos percentuais nutricional) na cobertura reportada de assistên-
na incidência de crianças com debilidade física. cia pré-natal, exames e acompanhamento do
Essa redução foi 1,7 vezes mais rápida que a crescimento na área da puericultura.
taxa de melhoria anual verificada em âmbito John Maluccio e Rafael Flores (2005)
nacional entre 1998 e 2001. O RPS, contudo, também encontraram amplos efeitos na utiliza-
não conseguiu elevar as taxas de hemoglobina ção dos serviços de saúde com o RPS, incluindo
nem diminuir os índices de anemia. Orazio acompanhamento do crescimento infantil, de
Attanasio, Luiz Gómez, Patrícia Herrera e Mar- visitas e vacinações na área da puericultura. Tâ-
cos Vera-Hernandez (2005) constataram que nia Barham (2006) constatou impacto positivo,
o Famílias en Acción, da Colômbia, reduziu a embora modesto, do Oportunidades nas imu-
incidência de debilidade física em crianças com nizações, em parte por conta do inicialmente
menos de 24 meses de idade. elevado patamar de imunização na zona rural
Paul Gertler e Simone Boyce (2001) do México.
acham que o Oportunidades resultou em menor Também foi constatado que a TCR exerce
incidência de doenças reportadas pelas próprias importante impacto na mortalidade infantil.
crianças e pelos adultos e na maior procura Tania Barham (2006) constata amplo efeito do
4 Ver uma avaliação mais
detalhada do processo de
pelos postos de saúde pública e pelo acom- programa mexicano na redução da mortalidade
direcionamento em Emmanuel panhamento nutricional. Em Honduras, Saul infantil nas localidades onde o plano estava em
Skoufias, Benjamin Davis e
Sergio de la Vega (2001), Morris, Rafael Flores, Pedro Olinto e Juan Me- execução. Esse impacto foi maior nas localida-
no México, e John Maluccio
e Rafael Flores (2005), na
dina (2004) acham que as ações em benefício des com maior incidência de água encanada
Nicarágua. das famílias no Praf II tiveram grande impacto e esgoto, e onde a população era constituída
principalmente de não-indígenas. Significa que
o efeito foi maior onde a população vivia em
Mariana Santarelli

condições relativamente melhores, ao passo


que os pobres em pior situação e mais margi-
nalizados, pelo menos no que se refere a esse
resultado, foram menos afetados.

Focalização
Focalizar o programa para as camadas mais po-
bres da população é a principal característica da
TCR, representando, assim, uma ruptura positi-
va com antigas práticas na América Latina e no
Caribe, e possibilitando mecanismos verificáveis
e transparentes de distribuição de assistência
social (Lindert; Skoufias; Shapiro, 2006).
Os principais métodos de focalização
empregados por esses programas incluem
testes de elegibilidade multidimensional e tes-
tes de elegibilidade e focalização geográfica,
muitas vezes combinados. O Oportunidades,
por exemplo, aplicou uma rodada inicial de
focalização geográfica, seguida por um teste de
elegibilidade multidimensional. Na Nicarágua,
foi empregada a focalização geográfica, segui-
da pela exclusão de pequena porcentagem de
famílias não-pobres com base em características
facilmente observáveis.4
O grau de descentralização, de forma
direta, no processo de focalização – em termos
de participação dos governos federal e muni-

46 Democracia Viva Nº 39
América Latina e Caribe: saídas contra a insegurança alimentar

cipal e da comunidade –, varia de acordo com rurais, no caso do Oportunidades, a própria


cada programa. Pode ser centralizado mesmo focalização geográfica está perdendo robustez,
quando a administração efetiva do programa é visto que as comunidades se tornam menos
altamente descentralizada, e vice-versa. marginais.
Na focalização geográfica do Praf II, do Um ponto fraco até agora observado
RPS e do Oportunidades, a seleção da comuni- nos mecanismos de focalização é o papel da
dade é feita de forma centralizada, utilizando- participação da comunidade. Alguns progra-
-se dados federais baseados em um mapa da mas, tais como o Oportunidades, buscaram
pobreza. A seleção das famílias é feita pelas isolar o processo de seleção das pessoas mexi-
autoridades centrais. canas beneficiadas do processo político local (e
David Coady, Margaret Grosh e John nacional), reduzindo o mecanismo de seleção
Hoddinott (2004) analisaram as experiências domiciliar a um algoritmo – processo conduzido
de focalização de diversos programas sociais a partir da Cidade do México, com verificações
no mundo inteiro. Eles constataram que os rápidas na comunidade.
programas de transferência de renda exami- A descentralização do processo de foca-
nados apresentam vários casos que vão de lização tem sido defendida com o argumento de
desempenhos excelentes a sofríveis. que o conhecimento local pode ser utilizado de
Os melhores resultados são encontrados forma mais eficiente na identificação das pes-
nos que usam testes individuais de elegibilida- soas pobres. As instituições locais dispõem de
de, seguidos pelo método de direcionamento melhores condições para executar esse direcio-
característico (ou por categoria) e, finalmente, namento, dada a existência de poucas camadas
pela auto-seleção. Todavia, em razão da extre- burocráticas e de maior responsabilidade entre
ma variação de desempenho entre os diversos os cidadãos (de Janvry; Finan; Sadoulet; Nelson;
tipos de direcionamentos – até mesmo os Lindert; de la Brière; Lanjouw, 2005).
testes de elegibilidade multidimensional (pro- Os que defendem estruturas mais cen-
xy means test), muito populares na América tralizadas de focalização argumentam que a
Latina –, o determinante mais significativo do participação da comunidade pode muito facil-
sucesso do direcionamento é, com freqüência, mente desembocar na captura dos programas
a capacidade de implementação específica de pela elite. Estudo de Ghazala Mansuri e Vijayen-
cada programa. dra Rao (2004) afirma que não há evidências
Kathy Lindert, Emmanuel Skoufias e claras de que a participação da comunidade
Joseph Shapiro (2006) constataram que os na focalização traga melhores resultados em
programas de TCR, quando comparados a termos de direcionamento.
outros tipos de assistência social e de gasto De qualquer forma, a questão da escolha
social na América Latina, são, de modo geral, entre os métodos de focalização centralizada
relativamente bem direcionados e bastante e descentralizada pode estar sujeita à mesma
redistributivos. observação, citada anteriormente, feita por
A focalização geográfica, utilizada David Coady, Margaret Grosh e John Hoddinott
sozinha, é mais viável quando a população (2004). Há boas razões teóricas para o emprego
pobre está geograficamente concentrada e de cada uma dessas abordagens, mas o sucesso
os índices globais de pobreza são altos, como final dependerá da realidade da implementação
constataram em muitas áreas rurais da América (Handa; Davis, 2006).
Latina e do Caribe. Por exemplo, os índices de
pobreza das comunidades-alvo na Nicarágua
Prós e contras
e nas áreas rurais do México eram de cerca de
70%. Assim, a focalização geográfica utilizada Embora orientados para a redução da pobreza,
sozinha, mas acoplada a pequenos ajustes a TCR tem impacto considerável sobre várias
baseados em características óbvias, funcionou dimensões da segurança alimentar. Facilita o
bem na Nicarágua. acesso cada vez maior aos alimentos, tanto em
Mas à proporção que os programas de termos de quantidade quanto de qualidade – e
TCR se expandem para áreas menos marginais, isso em curto prazo, por meio da transferência
a focalização geográfica poderá não ser mais direta de dinheiro –, além de, no futuro, pro-
viável e o beneficio relativo do emprego da piciar maior acesso aos alimentos pela acumu-
focalização domiciliar crescerá.5 Além disso, lação de capital humano. 5 Ver International Food
Policy Research Institute
Emmanuel Skoufias, Benjamin Davis e Sergio Os programas de transferência de renda (2002) sobre a discussão
dessa questão com relação ao
de La Vega (2001) constataram que nas áreas aprimoram a utilização dos alimentos incenti- RPS e ao Oportunidades.

JUNHO 2008 47
internacional

vando uma demanda cada vez maior por nutri- to positivo. A TCR não constitui, entretanto,
ção e serviços de saúde. Finalmente, reduzem a melhor política se a compararmos à trans-
a vulnerabilidade à insegurança alimentar dos ferência direta incondicional às mães ou ao
domicílios das pessoas beneficiadas. aprimoramento da qualidade dos serviços e à
Será, entretanto, que constituem a promoção de seu uso.
melhor política de segurança alimentar? De- Além disso, os programas de transferên-
pende da natureza da insegurança alimentar cia condicionada de renda levantam problemas
em determinado contexto: quem sofre de inse- para as iniciativas existentes ou planejadas de
gurança alimentar, o que é e qual é a natureza segurança alimentar. Comandam recursos fi-
da insegurança alimentar. nanceiros e institucionais cada vez maiores – o
Se a insegurança alimentar for uma que poderá vir a asfixiar os programas especi-
questão de falta de acesso em áreas onde ficamente voltados para a segurança alimentar.
existem mercados em funcionamento, a TCR Pior, a orientação quase exclusiva para
poderia, certamente, constituir uma parte da acumulação de capital humano, como solu-
solução. Se for uma questão de desnutrição ção para o desenvolvimento rural, minimiza a
infantil, então a TCR terá, certamente, impac-

Propostas para aproximar TCR da SAN

Em primeiro lugar, os programas de TCR os meios de existência dos pequenos uma função na redução da vulnerabilida-
não levam em conta os diferentes proces- produtores agrícolas e a segurança de aos choques, poderiam também servir
sos que ocorrem dentro do domicílio, em alimentar é grande. potencialmente de instrumentos formais
especial a “outra metade” dos domicílios • Com exceção do fator saúde, a TCR do gerenciamento do risco. Isso é parti-
rurais – as pessoas adultas e suas ativi- tende a ignorar a acumulação de ca- cularmente importante para as pessoas
dades geradoras de renda. A TCR deveria pital humano dos pais e das mães em submetidas à insegurança alimentar na
considerar tanto impactos potenciais em termos de alfabetização e treinamento, área rural, tipicamente autônomas, que
outras áreas da atividade domiciliar – que como também a acumulação de bens raramente têm resguardo, dependem
poderiam ampliar o impacto global e a em suas atividades econômicas. Com freqüentemente da própria produção
sustentabilidade do programa – quanto o tempo, isso pode enfraquecer a como parte significativa da alimentação
as limitações potenciais trazidas por essas sustentabilidade no âmbito domiciliar e são, quase sempre, vulneráveis aos
atividades. Esse é um ponto-chave de quando as transferências cessarem e/ caprichos do clima, dos preços e outras
interseção com a ênfase tradicional dada ou quando os filhos tiverem deixado o fontes de incerteza.
pela FAO à dimensão “pequeno agricul- lar. Em quarto lugar, em razão do peso
tor” na segurança alimentar da região. • A demanda de trabalho domiciliar por fiscal, institucional e político dos progra-
Isso afeta, pelo menos, três dimensões, parte de certos tipos de atividades mas de TCR sobre a política de gastos dos
no que tange à segurança alimentar. econômicas, tais como a produção governos da região, os resultados das
agrícola ou a criação, pode atenuar o avaliações existentes, e ainda por fazer,
• Os programas de TCR, de forma geral, impacto da TCR em razão de conflitos devem ser usados para extrair estimativas
não se valem de uma oportunidade com as exigências de condicionalidade. do custo-eficácia da TCR. Essas estimati-
de ouro para maximizar sinergias com Por outro lado, requisitos onerosos de vas necessitam ser comparadas a similares
as atividades produtivas agrícolas e condicionalidade podem inibir certos de outros programas para poder julgar a
não-agrícolas no âmbito domiciliar, tipos de atividade de trabalho, parti- utilidade da TCR a partir da perspectiva da
o que, finalmente, poderia fazer com cularmente no caso das mulheres. redução da segurança alimentar.
que o alívio à insegurança alimentar e De forma geral, os vultosos recursos
à pobreza se sustentassem no tempo. Em segundo lugar, os programas de financeiros e institucionais dedicados à
Esse fator é particularmente relevante TCR representam, em muitos casos, um implementação dos programas de TCR
quando a produção caseira constitui influxo substancial de recursos financeiros na América Latina, muito especialmente
parcela significativa do consumo total em comunidades marginalizadas e, mui- nas áreas rurais, têm inevitavelmente
de alimentos, quando os mercados de tas vezes, isoladas. Pouca atenção tem excluído as iniciativas de alternativas ao
alimentos não funcionam de modo sido dada à questão de como maximizar desenvolvimento rural, mesmo os vincu-
adequado, quando os alimentos o impacto desses recursos no desenvol- lados à segurança alimentar. E poucas
produzidos em casa são de melhor vimento econômico local. pesquisas foram feitas com o objetivo de
qualidade ou, simplesmente, quando Em terceiro lugar, enquanto os pro- documentar possíveis implicações.
o vínculo entre a produção caseira, gramas de TCR demonstraram que têm

48 Democracia Viva Nº 39
América Latina e Caribe: saídas contra a insegurança alimentar

importância estratégica do setor de pequenos Oxford, Oxford, v. 67, n. 4, p. 547-569, ago. 2005. * Benjamin Davis
Behrman, J.; PARKER, S. W.; TODD, P. E. Medium-term effects
produtores na agricultura, em termos de alivio Divisão de Economia
of the Oportunidades program package, including
à pobreza e redução da insegurança alimentar. nutrition, on education of rural children age 0-8 in
Agrícola e de
Dessa forma, drena o apoio político para pro- 1997. México: Institut Nacional de Salud Publica, Desenvolvimento
gramas voltados a esses setores. 2004. (Documento técnico, n. 9, na Avaliação do da Organização das
Por outro lado, tais programas represen- Oportunidades). Disponível em: <http://www.sarpn. Nações Unidas para

tam uma formidável oportunidade de combate org.za/documents/d0001264/P1499-9_Behrman_ed_ a Agricultura e


rural_23nov04.pdf>. Acesso em: 2 jun. 2008. Alimentação (FAO)
à fome. Primeiramente, porque se traduzem em
Coady, D.; GrosH, M.; Hoddinott, J. Targeting outcomes redux.
um fluxo de recursos financeiros em direção World Bank Research Observer, Washington, DC, v. 19, n.
aos domicílios mais pobres e que sofrem de 1, p. 61-85, 2004.
maior insegurança alimentar nas áreas rurais de Janvry, A.; Finan, F.; Sadoulet, E.; Vakis, R. Can conditional
mais marginais. Em segundo lugar, pelo fato cash transfer programmes serve as safety-nets in keeping
children at school and from working when exposed to
da ênfase no crescimento da demanda tanto
shocks? Journal of Development Economics, Amsterdã, v.
de serviços de saúde quanto de serviços de
79, n. 2, p. 349-373, 2006.
nutrição, ser componente crucial para assegurar de Janvry, A.; Finan, F.; Sadoulet, E.; Nelson, D.; Lindert,
a segurança alimentar. K.; de la Brière, B.; Lanjouw, P. Brazil’s Bolsa Escola
De qualquer forma, os programas estão Programme: the role of local governance in decentralized

em movimento e nada, em um futuro previsível, implementation. Washington, DC: World Bank, dec. 2005.
(Documento de discussão sobre proteção social, n. 542).
sinaliza a desaceleração de sua expansão e seu
Gertler, P; Boyce, S. An experiment in incentive-based welfare:
aprofundamento. A questão de maior relevância the impact of Progresa on health in Mexico. Berkeley:
seria saber como introduzir a TCR com maior University of California, 2001. (working paper).
impacto e conteúdo possível na segurança HANDA, S.; DAVIS, B. The experience of conditional cash transfers
alimentar sem asfixiar outros programas neces- in Latin America and the Caribbean. Development Policy

sários. As partes envolvidas na segurança ali- Review, Londres, v. 24, n. 5, p. 513-536, set. 2006.
Hoddinott, J.; Skoufias, E. The impact of Progresa on food
mentar, incluindo a FAO e o Programa Especial
consumption. Economic Development and Cultural
para a Segurança Alimentar, precisam formular Change, Chicago, v. 53, n. 1, p. 37-61, oct. 2004.
estratégia coerente a esse respeito. International Food Policy Research Institute. Sistema de
evaluación de la fase piloto de la red de protección social
de Nicaragua: evaluación de focalización. Washington,
DC: IFPRI, 2002.
Lindert, K., Skoufias, E.; Shapiro, J. Redistributing income to the
poor and the rich: public transfers in Latin America and
the Caribbean. Washington, DC: The World Bank, 2006.
Maluccio, J.; FLORES, R. Impact evaluation of a conditional cash
transfer programme: the Nicaraguan red de protección
Referências social. Washington, DC: IFPRI, 2004. (FCND Discussion

ADATO, M.; COADY, D.; RUEL, M. An operations evaluation Paper, n. 184).

of Progresa from the perspective of beneficiaries, Mansuri, G.; RAO, V. Community-based and driven development:

promotoras, school directors, and health staff. a critical review. World Bank Research Observer,

Washington, DC: International Food Policy Research Washington, v. 19, n. 1, p.1-39, 2004.

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Attanasio, O.; Gómez, L.; Heredia, P.; Vera-Hernandez, M. The in primary health care and effects on use and coverage

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de trabalho, n. 06-02). Disponível em: <http://www. Mexico: an evaluation of the selection of households into

stanford.edu/group/SITE/archive/SITE_2006/Web%20 Progresa. World Development, Montreal, v. 29, n. 10, p.

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Behrman, J.; Hoddinott, J. Programme evaluation with


unobserved heterogeneity and selective implementation:
the mexican Progresa impact on child nutrition.
Oxford Bulletin of Economics and Statistics – Jornal
do Departamento de Economia da Universdiade de

JUNHO 2008 49
c r ô n i c a

O divórcio
das
Se o cérebro está numa das siamesas, e o Reunidas como irmãs siamesas, a
coração na outra, o corpo compartilhado só educação e a cultura se completam. Uma –
se manterá saudável se elas permanecerem racional e objetiva – entende a ordem oculta
unidas – assim sobrevivem as siamesas: da natureza, a lógica da ciência, do metabo-
salvas pelo fraterno abraço de náufragos. Se lismo humano, dos meios de produção e do
uma desfalecer, a outra carregará o vazio da poder. Outra – sensível e subjetiva – acumula
perda, sentindo as comichões que sentem os vivências do que não viveu com as prefigu-
amputados no vazio do membro extirpado. rações das artes – do cinema, do teatro e do
Separá-las, deixará uma exangue, outra as- romance –, sente a solidão silenciosa num
fixiada, e o corpo único em agonia. olhar pintado na tela, devaneia induzida pela
O projeto humano original foi dimen- música ou por um poema, e transcende a si
sionado para viver e agir no mundo com dois própria na leitura de um livro. Viver a pleni-
braços, duas pernas, dois olhos, duas narinas tude humana no atual estágio da civilização
e sete sentidos – o que não significa que requer vivenciar a educação e a cultura.
eventuais lacunas inviabilizem o protótipo Siamesas precisam ter peso e volume
–, mas apreendemos o mundo com um único compatíveis – a grotesca assimetria de Davi
cérebro e o sentimos com um só coração. A atado a Golias romperia o elo e o elã vitais.
percepção do mundo – objetiva e subjetiva – Recomendável é que o crescimento de uma
é resultado da ação simultânea – subjetiva e seja pari passu o crescimento da outra:
objetiva – da educação e da cultura. cérebro e coração, razão e emoção, corpo

50 Democracia Viva Nº 39
e espírito, objetivo e subjetivo, educação cultura como uma siamesa da outra, tornou- Alcione Araújo
e cultura – além de inseparáveis, avançam -se mera trajetória de adestramento para a alcionearaujo@uol.
ombro a ombro e de mãos dadas, como produção, de onde vêm os engenheiros que
dualidades constitutivas de cada ser único e nunca foram ao teatro, médicos que jamais
singular. Nesse sentido, somos metaforica- leram um romance, economistas que não
mente siameses. Circulam em nós, digeridos se comovem com a música, políticos que
e metabolizados em indiscernível química, desdenham a educação e tratam a cultura
os sumos – summus e sucus – da educação como cosmético. Uma siamesa está exangue.
e da cultura, síntese que nos permite sentir e A educação não pode prescindir da
pensar o ser humano, a sociedade e o mundo. cultura, que é dependente da educação. À
Porém, são várias as formas de pen- falta do público induzida pela educação, a
sar e sentir o ser humano. No confronto produção artística sai em busca de um merca-
entre duas delas, duas bombas atômicas do que não a reconhece: se autodesqualifica,
explodiram em duas cidades japonesas, inibe o impulso criador do artista e perde sua
espalhando radiação e estilhaços que, no platéia cativa remanescente. Sem espectado-
Brasil, romperam a união das duas siamesas res, leitores e ouvintes, artista e arte perdem
– num divórcio sigiloso que, no entanto, vem sua função, o público empobrece e estreita o
repercutindo e disseminando conseqüências horizonte da sociedade. A perda da autono-
em silêncio. Explico. mia econômica torna a cultura dependente do
De origem européia – portuguesa e, Estado, suscetível à discriminação política,
depois, francesa – a orientação da educação seduzida pela acomodação estética.
brasileira cruzou o Atlântico para abraçar o A história reconhece, na aliança en-
modelo americano, cuja ênfase tecnológica tre educação e cultura, a primazia de criar
garantira a vitória aliada. A redução dos sonhos e inventar meios para realizá-los. O
currículos ao fio d’água da especialização eli- valor simbólico da cultura fecunda o pro-
minou as disciplinas chamadas de Humani- cesso civilizatório – dos valores às leis, da
dades, voltadas ao sentir – artes e cultura – e política à vida. Como ocorre com as siame-
ao pensar – filosofia, antropologia, sociologia sas, divorciar a educação da cultura deixará
–, logo consideradas supérfluas. O modelo uma exangue, a outra asfixiada, e o corpo,
recuou aos níveis médio e fundamental, re- que as acolhe, em agonia.
nunciando ao tripé universal: formação do
profissional, do cidadão e do ser humano.
Hoje, a educação brasileira, apartada da

JUNHO 2008 51
52 Democracia Viva Nº 39
artigo
Vívian Braga Mielniczuk*

Você tem
fome de
quê?
A pesquisa Repercussões do Programa Bolsa Família (PBF) na Segu-

rança Alimentar e Nutricional das Famílias Beneficiadas constatou

que 87% dos(as) beneficiados(as) citam a compra de alimentos como

uma das principais formas de utilização do recurso; que o programa

proporcionou, para 73,7% do total desse público, o aumento na

quantidade de alimentos consumidos; e que houve aumento na

variedade dos alimentos consumidos para outros 69,8%.

Como os números indicam, é notável a ampliação do acesso

aos alimentos via transferência de renda para uma parcela da popu-

lação considerada em estado de pobreza. Outro fato a ser conside-

rado é que os programas de transferência de renda direta permitem

liberdade de escolha sobre quais produtos comprar. A liberdade de

escolha é desejável, e sua regulação é feita, principalmente, pela

disponibilidade e pelos preços.


Todavia, a decisão sobre o que consumir ou o que comer é, sobretu-
Mariana Santarelli

JUNHO 2008 53
artigo

do, condicionada por valores que, estabelecidos (p. 57). Por exemplo, Jaime Rodrigues (2007)
culturalmente, refletem os hábitos alimentares. enfatiza as ações para extinguir a prática de
Nesse sentido, dentre os alimentos relacionados pessoas adultas oferecerem bebidas alcoólicas
ao aumento de consumo, os mais citados são: a crianças.
açúcares1 (64,2%), arroz e cereais (61,5%), leite Desde então, muito se avançou. Hoje,
(55,6%), biscoitos (49,7%), industrializados temos uma população considerada bem-infor-
(47,5%) e óleos2 (39,5%). Isso indica a presença mada com relação ao que é uma alimentação
significativa de alimentos ricos em açúcares e saudável, principalmente no que diz respeito
gordura, freqüentemente classificados como ao consumo de frutas e verduras no lugar de
“não-saudáveis”. Cabe acrescentar que 7,4% açúcares e gorduras. No entanto, existem mui-
dos(as) beneficiados(as) apontam haver em tos entraves econômicos e sociais que precisam
suas famílias pessoas obesas. Tal situação ser superados para que, de fato, a população,
expressa insegurança alimentar, assim como com ênfase nas pessoas mais vulneráveis, tenha
desnutrição, fome e outras doenças associadas acesso a alimentos com mais qualidade nutritiva
à má-alimentação e ao consumo de alimentos e gustativa.
de qualidade duvidosa ou prejudicial à saúde. Algumas propostas sobre a ampliação
O consumo de alimentos “não-saudá- do acesso a esse tipo de alimento, com base
veis” está presente em todas as camadas sociais, em políticas de abastecimento e preços, estão
demonstrando que a escolha do que comer é sendo elaboradas e debatidas no Congresso
permeada por aspectos sociais e culturais. Além Nacional ao lado de políticas para regular a
do mais, o aumento do consumo de biscoitos, publicidade sobre produtos alimentares.4 Con-
óleos e gorduras, açúcares e alimentos indus- tudo, uma política de educação que opere com
trializados pode ser observado como tendência as políticas de segurança alimentar e nutricional
nacional. Da mesma forma, seus efeitos nocivos precisa ser discutida até que se alcance um
(doenças cardiovasculares, diabetes, alguns ponto de equilíbrio entre as diversas iniciativas
tipos de câncer e a obesidade,3 conforme in- e concepções existentes sobre o tema no Brasil.
dicados pela Organização Mundial da Saúde) Com os avanços conceituais e políticos
também afetam a todas as pessoas. obtidos no campo da segurança alimentar e
nutricional, o entendimento de que a alimenta-
ção adequada é um direito de todas as pessoas
Questionar é preciso
sustenta uma política de educação alimentar
1 Na pesquisa, açúcares Diante desse quadro, qual a alternativa viável e nutricional que considera a importância das
correspondem a mel, melado
de cana, rapadura, doces, para que a ampliação do acesso aos alimentos dimensões sociais e econômicas, além dos
geléias, sorvetes, gelatina, possa ser, também, meio de promover saúde e aspectos nutricionais e sanitários.
balas, bombons, açúcar
e refrigerante. qualidade de vida? Como abordar as práticas Aponta-se, sobretudo, para a necessida-
2 Óleos correspondem alimentares de pessoas socialmente mais vulne- de de ações e políticas que tornem acessíveis
a margarina, manteiga
e óleo de soja.
ráveis sem correr o risco de assumir uma postura os alimentos de qualidade, bem como que
3 Dados do IBGE,
moralizante – argumentando que a finalidade compartilhem com os(as) beneficiários(as)
disponibilizados na Pesquisa da política pública não é a compra de doces os conhecimentos sobre a alimentação e a
Nacional por Amostra
de Domicílio (PNAD) 2004, e biscoitos, associados ao prazer, mas sim de comida que comemos e queremos comer, do
publicada em 2006, mostram
a incidência da obesidade
feijão e arroz, associados à necessidade? Como ponto de vista do que consideramos “saudável
infanto-juvenil: entre implementar ações que visem a mudar hábitos e adequado”.
adolescentes de 10 a
19 anos, 16,7% sofrem alimentares de outras pessoas sem partir de A qualificação do conceito “alimentação
de excesso de peso.
Essa situação atinge não
nossas concepções? São apenas algumas das saudável” é necessária para avançarmos na
apenas as famílias mais questões emblemáticas do debate no contexto construção de uma política de educação alimen-
ricas, mas vem crescendo
significativamente nas famílias da formulação e implementação de políticas tar. Cabe mencionar a proposta apresentada
mais pobres que moram
em áreas urbanizadas. Na
públicas voltadas para intervenções alimentares, pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar
população geral, 38,5% está especificamente as educacionais. e Nutricional (Consea) em 2007:
acima
do peso – o que representa Uma alternativa possível a ser apresen-
40,6% da população de
pessoas adultas, sendo que,
tada seria a consolidação de uma política de A alimentação adequada e saudável é
dessas, 11% são obesas. educação alimentar com ações que promovam a realização do direito humano básico,
4 A Agência Nacional de hábitos alimentares saudáveis e adequados com garantia ao acesso permanente
Vigilância Sanitária (Anvisa)
apresentou proposta de cultural e ambientalmente. No Brasil, desde a e regular, de forma socialmente justa,
resolução no Congresso década de 1920, são feitas intervenções públi- a um modo alimentar adequado aos
Nacional que limita as regras
de publicidade de alimentos, cas com esse intuito, principalmente para erra- aspectos biológicos e sociais dos indiví-
com foco especial em
anúncios para crianças. dicar hábitos alimentares considerados nocivos duos, de acordo com o ciclo de vida e

54 Democracia Viva Nº 39
Você tem fome de quê? Educação alimentar em foco

as necessidades alimentares especiais, alimentação de forma mais abrangente com a


pautado no referenciamento cultural. valorização e ampliação das políticas já exis-
Deve atender aos princípios da varieda- tentes, sem necessidade de criação de novas.
de, do equilíbrio, da moderação e do
prazer, às dimensões de gênero e etnia e
Ênfase no PNAE
às formas de produção ambientalmente
sustentáveis, livres de contaminantes Neste ano, será apresentado, no Congresso
físicos, químicos, biológicos e de or- Nacional, o Projeto de Lei da Alimentação Es-
ganismos geneticamente modificados colar, que converte em programa de governo
(Consea, 2007). uma ação desenvolvida há mais de 50 anos
– considerada, hoje, uma das políticas mais
Com relação ao que é “adequado”, o abrangentes e eficazes no mundo para garan-
conceito do Consea oferece um norte para o tir alimentação às crianças: são 36 milhões de
debate que ainda se encontra restrito ao campo alunos(as) beneficiados(as), e os investimentos
médico-nutricional. No entanto, o tema gera chegam a R$ 1,6 bilhão.5
conflitos de interesses, o que torna difícil o acor- A lei incorpora ações amplamente de-
do. Atualmente, não há convergência necessária batidas com a sociedade por intermédio das
para garantir a formulação e a implementação conferências municipais, estaduais e nacional
de uma política rica em especificidades e con- de segurança alimentar e nutricional e de saú-
cepções. O resultado são ações de educação de e nutrição realizadas nos últimos anos. O
alimentar pouco abrangentes, espalhadas e principal resultado do debate é a identificação
desarticuladas. do PNAE como política de segurança alimentar
Desde 1998, o movimento de segurança e nutricional exemplar e estratégica para ações
alimentar e nutricional dissemina a concepção de desenvolvimento local.
de que é necessário operar com as políticas Dentre os objetivos do PNAE está a
públicas de alimentação de forma intersetorial. formação de hábitos alimentares saudáveis.
Além disso, há a percepção de que nenhuma Todavia, deve-se reconhecer que a educação
política pública, sozinha, conseguirá romper o alimentar envolve mais que isso. Deve exprimir
dramático quadro de vulnerabilidade social no as condições para a construção de um projeto
qual se encontram as populações mais pobres voltado para uma aproximação maior e mais
do país. Assim, aceita-se que o PBF não será abrangente dos sujeitos com o alimento. Nesse
plenamente capaz de reduzir qualitativamente sentido, seu conteúdo precisa voltar-se para as
a pobreza se não estiver articulado a outras dimensões sociais, econômicas e culturais do
ações e complementado por outras políticas e alimento quando convertido em comida.
outros programas. Tal compreensão poderá ampliar o en-
Sobre esse aspecto, a pesquisa permitiu tendimento sobre nossas escolhas alimentares
observar a importância de outros programas, ao longo dos anos, suas conseqüências positivas
como o Programa Nacional de Alimentação Es- e negativas, de modo que tenhamos mais dis-
colar (PNAE), na vida das famílias beneficiadas. cernimento a respeito dos caminhos alimentares
Verificou-se que, dentre as principais formas de que queremos seguir no futuro.
acesso à alimentação, a alimentação escolar foi Uma sociedade que conhece sua história
a segunda mais citada (33,4%); a primeira foi o alimentar adquire melhores condições de fazer
mercado (96,3%). Além disso, observou-se que escolhas alimentares. Por isso, o PNAE pode ser
83,4% dos(as) beneficiados(as) que freqüentam mais que uma política pública voltada para o
creche e escola recebem gratuitamente a ali- atendimento da demanda de alimentos pela
mentação escolar, e que 32,9% dos(as) titulares população. Pode ser convertido em instrumento
declararam que a alimentação da família piora de produção de informação e conhecimento
durante as férias escolares. sobre a alimentação e a comida, expressão do
Os números indicam que há possibili- biológico e do cultural, no próprio ambiente
dade concreta para a implementação de uma escolar no qual o programa é executado.
política de educação alimentar que se articule Inúmeras contribuições podem ser
com o PNAE. Reconhece-se, aqui, o potencial citadas para ilustrar a viabilidade dessa trans-
do PNAE para atingir áreas não trabalhadas formação. O conhecimento nos aproxima de
pelo PBF. Sinaliza-se a oportunidade de refor- nossa cultura, e somente ela é capaz de so-
çar, em seu contexto, ações de promoção de lucionar o paradoxo da escolha embutido em
alimentação saudável e outras relacionadas à nossa condição biológica de onívoro, que nos 5 Ver <www.fnde.gov.br>.

JUNHO 2008 55
artigo

permite comer todas as variedades alimentares de Educação.7 Destacam-se as iniciativas que


dispostas na natureza, buscar sempre o novo e valorizam o comer e o cozinhar como práticas
recear pelo novo (Fischler, 2001). sociais ricas em significados, identidades e his-
Para a formação de hábitos alimentares tórias. Por exemplo, algumas escolas oferecem
saudáveis, a alimentação oferecida na escola, oficinas de culinária, com práticas de preparo
além de nutricionalmente adequada, precisa e degustação feitas por alunos(as), familiares
ser culturalmente adequada. Não somente e pela comunidade em geral.
com relação aos gêneros alimentícios, como Existem, também, experiências com
a correta predominância de arroz e feijão nos hortas escolares, cada vez mais difundidas, o
cardápios. O alimento precisa estar em dia que abre a possibilidade para intervenções de
com as qualidades sensoriais definidas cultu- agricultura urbana. Tanto a gastronomia como
ralmente (sabor, cheiro, textura e aparência), as hortas possibilitam intercâmbio de práticas e
e que, por seu turno, são determinantes do conhecimentos alimentares, metodologicamen-
comportamento alimentar. As propriedades te mais adequados para se alcançar os objetivos
sensoriais dos alimentos desempenham papel de formação de hábitos saudáveis que o simples
não somente na determinação do consumo, repasse de informações sobre nutrição.
mas também na determinação da saciedade, Além disso, essas ações potencializam
ingestão e seleção do alimento em uma refeição novas relações com o alimento, visto que o
(Mattes; Kare, 1994). alunado e suas famílias encontram-se normal-
Observa-se, ainda, que o ambiente mente afastados dos meios de produção ou de
escolar permite alguma autonomia da criança cozimento por conta do modelo de produção
quanto à sua alimentação. Nesse período, os de alimentos e das difíceis condições de vida,
hábitos alimentares se consolidam. O processo principalmente nos grandes centros urbanos.
tem importância fundamental nos fatores edu- Outro benefício dessa mudança diz
cativos. O prazer deve ser permanente no ato de respeito ao potencial que uma eficaz política
se alimentar, e a política pública de alimentação de educação alimentar desempenharia para
precisa atender às necessidades que não estão dar visibilidade ao debate. À proporção que
apenas no campo fisiológico. O prazer no ato a sociedade se envolve nas discussões sobre
de comer na escola deve trazer consigo, prin- segurança alimentar, democratiza a discussão
cipalmente, referências de casa, pois essas são sobre políticas públicas na área – ainda restritas
associadas à segurança, ao afeto e ao carinho ao poder público, a especialistas, profissionais
no preparo e no servir. Esses elementos são da área da saúde e de grandes corporações
essenciais para a aceitação infantil do alimento agroalimentares.
(Mielniczuk, 2005). Caso contrário, não resta
dúvida de que o programa fracassará em formar
Projeto político
bons hábitos alimentares.
Em outro contexto, a alimentação con- Há a necessidade de investimento em um
sumida na escola, seja do PNAE ou da cantina, projeto político de educação alimentar que
deverá ser orientada, sobretudo, para a pro- abranja a perspectiva da segurança alimentar e
moção do desenvolvimento local. Significa que nutricional e do direito humano à alimentação.
o alimento preparado e consumido na escola Esse projeto deve ser pautado na formação
deve estar baseado em práticas de produção permanente, continuada e integrada voltada
e processamento adequados social e ambien- para questões que envolvam aspectos nutri-
talmente. Ressalta-se que o Projeto de Lei da cionais, culturais, sociais e de direitos ligados,
Alimentação Escolar vincula a alimentação es- sobretudo, à produção, ao abastecimento e ao
colar à agricultura familiar, indicando que um consumo de alimentos.
6 O PAA adquire alimentos,
com isenção de licitação,
percentual das compras do PNAE (30%) deve ser De certo modo, a demanda por um
por preços de referência que oriundo desse tipo de agricultura. Trata-se de projeto dessa natureza vem sendo reafirmada
não podem ser superiores
nem inferiores aos praticados mais um exemplo das possibilidades de o PNAE constantemente pelos atores que trabalham
nos mercados regionais.
Os alimentos adquiridos
se articular com outras políticas, nesse caso, o com segurança alimentar e nutricional – algo
são destinados às pessoas Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).6 que fica claro na análise das propostas apre-
em situação de insegurança
alimentar atendidas por Ações de educação alimentar podem sentadas nas duas conferências nacionais de
programas sociais locais,
e demais pessoas em situação
ser desenvolvidas nas escolas, e muitas já estão segurança alimentar e nutricional (CNSAN), com
de risco alimentar sendo realizadas – seja por iniciativa do próprio ênfase na segunda, realizada em 2004, quando
(ver <www.mds.gov.br>).
Ministério da Educação, de professores(as) o tema passou a ser prioritário.
7 Ver site
<www.premiomerenda.org. e diretores(as) das escolas ou das secretarias Para tanto, deve-se enfrentar o desafio

56 Democracia Viva Nº 39
Você tem fome de quê? Educação alimentar em foco

de construir uma proposta metodológica que p.524-536. * Vívian Braga


Mielniczuk, V. B. Gosto ou necessidade: os significados da
traduza os avanços dos últimos anos com o alimentação escolar no Rio de Janeiro. 2005. Dissertação Mielniczuk
objetivo de articular a diversidade dos atores (Mestrado em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade) Antropóloga, mestra
– Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade
sociais, valorizando seus saberes de forma Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). em Desenvolvimento,
democrática e participativa. A articulação de MIRANDA, R. Alimentação e saúde: uma breve história. Brasília, DF: Agricultura e Sociedade
Consea, 2007. Disponível em: <http://dtr2004.saude.gov.
professores(as), alunos(as), gestores(as), me- (CPDA/UFRRJ),
br/nutricao/documentos/alimentacao_e_saude_regina_
rendeiras e organizações da sociedade civil é miranda. pdf>. Acesso em: 17 mai. 2008. pesquisadora do Ibase
Rodrigues, J. Alimentação popular em São Paulo (1920 à
fundamental para que um projeto de educação 1950): políticas públicas, discursos técnicos e práticas
alimentar realista seja implementado em todo profissionais. Anais do Museu Paulista – história e cultura
material – Revista da USP, São Paulo, v. 15, n. 2, p. 221-
o território nacional, respeitando as especifici- 255, jul./dez. 2007.
dades de cada região. Silva Santos, L. A. Educação alimentar e nutricional no contexto
da promoção de práticas alimentares saudáveis. Revista de
8 A alimentação racional
Nutrição – Revista da PUCCAMP, Campinas, v. 18, n. 5, p.
diz respeito à ingestão
681-692, set./out. 2005.
de alimentos suficientes
Referências em quantidade de energia
Fischler, C. L’homnivore. Paris: Poche Odile Jacob, 2001. para que cada biotipo
preencha sua plena atividade
LIMA, E. da S. Gênese e constituição da educação alimentar:
social, e que esses alimentos
a instauração da norma. História, Ciências, Saúde – contenham todas as
Manguinhos – Revista da Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz, substâncias necessárias
Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 57-83, mar./jun. 1998. para a própria vida
MATTES, R. D.; KARE, M. R. “Nutrition and the chemical senses”. (Botelho apud Lima, 1998).
In: SHILS, Maurice E.; OLSON, James A.; SHIKE, Moshe;
ROSS, A. Catherine. (Eds). Modern nutrition in health 9 Ver site <www.fnde.gov.
and disease. 8 ed. Pensylvania: Lea & Febiger, 1994. v.1.

Breve histórico
A gênese das ações de educação alimentar,
segundo Jaime Rodrigues (2007), datam da nutrição. Atualmente, o Programa Nacional de
década de 1920 e se intensificam, segundo Ero- Alimentação Escolar aponta entre um de seus
nildes da Silva Lima (1998), na década seguinte, objetivos “atender às necessidades nutricionais
quando um grupo de intelectuais brasileiros se dos alunos durante a permanência em sala de
volta para a configuração das bases científicas aula, contribuindo para o crescimento, o de-
da alimentação racional.8 Os intelectuais em senvolvimento, a aprendizagem e o rendimento
questão, entre eles Josué de Castro, elegem a escolar dos estudantes, bem como para a for-
fome, por um lado, e a subalimentação, por mação de hábitos alimentares saudáveis”.9 Na
outro, como problemas sociais significativos e época, além do salário e das práticas alimentares
objetos de estudo científico. relacionadas ao período colonial, não foram
Nesse período, a tese de Joseph de Gou-bi- considerados outros determinantes, como o
neau sobre a inferioridade biológica de pessoas modelo de desenvolvimento adotado e seu
mestiças foi substituída pelas teorias de cunho impacto na produção de alimentos.
social que atribuíam nossa suposta “inferiori- A partir de meados da década de 1970, a
dade” à má-alimentação e à subalimentação. noção de que a renda seria o principal problema
Para Eronildes da Silva Lima (1998), no conjunto relacionado à alimentação ganha espaço. Nesse
produzido naquele período, constatou-se que sentido, segundo Lígia Amparo da Silva Santos
os pobres comiam mal por falta de dinheiro e (2005), ocorre um redirecionamento das políti-
por ignorância. Os ricos comiam mal por igno- cas de alimentação e nutrição, que deixam de ser
rância do que seria “comer bem”. Cabe dizer de educação alimentar e passam a ser norteadas
que comer bem nem sempre significa comer por estratégias de suplementação alimentar.
adequadamente do ponto de vista nutricional. Nas décadas de 1980 e 1990, avançamos,
Desde então, ações informativas e forma- principalmente, na identificação de que as ações
tivas de hábitos alimentares saudáveis foram de educação nutricional isoladas não seriam
realizadas. As concepções desenvolvimentistas suficientes para promover mudanças de práti-
e higienistas, que norteavam as políticas do cas alimentares. Essas ações, e suas produções
Estado Novo, associavam a alimentação ao técnica e científica, passam a assumir um caráter
combustível necessário para a produção e o de- político orientado para o fortalecimento das
senvolvimento econômico da sociedade. Como classes populares na luta contra a exploração,
problema eugênico, a fome e a subalimentação que gera fome e desnutrição. A conseqüência
traziam perigosas conseqüências sociais porque foi a ampliação do debate sobre direitos de
depauperavam o ser humano, reduzindo sua cidadania para além das práticas alimentares.
capacidade de trabalho.
Curiosamente, essa concepção ainda
norteia as políticas públicas de alimentação e

JUNHO 2008 57
Ib a s e
opinião
Francisco Menezes*

Faces e demandas
da

No segundo semestre de 2006, o Programa Bolsa Família (PBF) atingiu a meta de transfe-

rência de renda para 11 milhões de famílias, contemplando algo estimado em 45 milhões

de pessoas. Presente em todos os municípios brasileiros, o programa tem como marcas a

regularidade e a pontualidade do depósito na conta de cada um(a) de seus(suas) titulares.

Com dotação orçamentária, em 2008, de R$ 10,5 bilhões, teve ampliada a faixa etária de

15 para 17 anos relacionada ao benefício adicional repassado às famílias com filhos(as)

que freqüentam a escola, o que estende o pagamento a outros 1,75 milhão de jovens.

Em que pese ter sofrido uma acirrada crítica desde que surgiu, o fato é que a

unificação de quatro programas de transferência de renda, em outubro de 2003 – que

resultou no Bolsa Família –, e a sucessão de medidas de ajuste e aperfeiçoamento


dessa política consolidaram aquele que hoje é considerado um dos mais importantes programas
do gênero em todo o mundo.
Além disso, a redução mais recente da desigualdade, em patamares que ainda não tinham

58 Democracia Viva Nº 39
sido experimentados no Brasil, tem como um que cresce a aquisição de eletrodomésticos por
dos fatores explicativos a renda transferida algumas pessoas portadoras do cartão do PBF.
para as pessoas mais pobres. Segundo Ricardo Ao lado de todas as críticas, uma
Barros, Miguel Foguel e Gabriel Ulyssea, “os adjetivação permanente: o programa é assis-
fatores responsáveis por tal redução acentuada tencialista. E se condena o uso de recursos
na desigualdade são múltiplos, o que deve fa- volumosos com transferência de renda, em vez
vorecer sua continuidade”. Os mesmos autores de despendê-los na educação das camadas mais
concluem que a queda recente na desigualdade pobres da população – viabilizando, assim, a
deve ser atribuída fundamentalmente a: capacidade de disputa por postos de trabalho
em um mercado cada vez mais exigente. Sobre
(a) redução da heterogeneidade edu- isso, vale uma pronta-resposta, pois a visão
cacional da força de trabalho e dos revela profundo desconhecimento da realidade
correspondentes diferencias de remune- brasileira.
ração; (b) reduções nas imperfeições no Para quem trabalha com os temas da
funcionamento do mercado de trabalho; pobreza e da desigualdade, não há nenhuma
e (c) expansão e melhor focalização das dúvida sobre a importância da educação para
transferências públicas de renda (Barros; transformações mais profundas e duradouras.
Foguel; Ulyssea, 2006). A questão é que a carência da educação não é
a única barreira para o acesso aos direitos que
Outro estudo, de Fábio Veras, Serguei toda a população deve ter. Aliás, no quadro de
Soares, Marcelo Medeiros e Rafael Osório grande vulnerabilidade que ainda predomina no
(2006), revela que a transferência de renda com Brasil, para poderem estudar, os(as) alunos(as)
o PBF, a partir de sua criação, foi responsável precisam se alimentar, se vestir, morar em
por 21% da queda da desigualdade em 2004, condições dignas, ter assistência de saúde e
atrás apenas da renda proveniente do salário transporte para chegar à escola. E parte con-
e das aposentadorias e pensões de até um siderável desse contingente apresenta grandes
salário mínimo. dificuldades perante essas condições
A educação é um entre muitos direitos
negados à população mais pobre. É indispen-
Críticas e denúncias
sável que se garantam todos os direitos. Porém,
Em contraposição, se forem observadas as críti- para os críticos, garantir um só direito para
cas mais enfáticas dirigidas ao programa – que a população mais pobre já é muito. Garantir
encontram em alguns órgãos da grande impren- todos os direitos, nem pensar.
sa seus principais porta-vozes –, constata-se O exame sobre essas críticas pode ser
que seguiram uma ordem temporal, cada uma feito com base na discussão de parte dos re-
substituindo a anterior ao fim de um período, sultados do programa. Importa, também, des-
mas sempre negando o programa como parte vendar algumas questões ainda não presentes
de uma política social adequada para o Brasil. no debate. Utiliza-se, para isso, o referencial
Primeiro, foi a denúncia de que entre da pesquisa realizada pelo Ibase, Repercussões
os(as) beneficiados(as) não estavam as pessoas do Programa Bolsa Família sobre a Segurança
mais pobres. Com o aperfeiçoamento do Ca- Alimentar das Famílias Beneficiadas.
dastro Único, o encaminhamento do processo
de recadastramento e a formação de uma rede
Vulnerabilidades sociais
pública de fiscalização do programa, ao lado
da incorporação acelerada de novas famílias, o O PBF faz parte de uma política social voltada
problema perdeu força jornalística. para o enfrentamento da pobreza no país. O
Algum tempo depois, apareceu a se- artigo nacional desta edição trata da questão
gunda crítica, na qual as condicionalidades da (p. 8), demonstrando os limites da identificação
saúde e da educação não eram acompanhadas das pessoas mais vulneráveis apenas pela renda.
suficientemente. Com essa crítica, a afirmação O fato é que a pobreza no Brasil é
de que o programa gera acomodação, com titu- complexa, com muitas caras e diferentes de-
lares não querendo mais trabalhar. Essa fase das mandas. Existem as diferenças ditadas pelas
críticas também foi se atenuando. Mas, agora, especificidades regionais e, mesmo em alguns
em seu terceiro momento, desponta a conde- casos, locais. Além disso, a pobreza urbana é
nação ao tipo de uso do recurso repassado feito diferente da vivida na área rural.
pelas famílias, com base na constatação de Outro aspecto é que, na percepção que

JUNHO 2008 59
opinião

as próprias pessoas pobres têm de si, a pobreza pacidade de aferir a renda declarada pelos(as)
se identifica e se mede pelas vulnerabilidades, beneficiados(as) com o maior grau de acerto
que podem ser muitas. Família monoparental, possível e, também, informar, de maneira clara,
doença crônica e outras limitações físicas per- os critérios adotados para a inclusão e a fixação
manentes, analfabetismo, residência distante de do valor a ser recebido.
serviços, estado precário da habitação e muitos
outros determinantes que, combinados com a
Direito?
baixa renda, caracterizam o risco permanente
de estar em uma situação de carências de São muitas as dificuldades para acompanhar
necessidades essenciais. Adotam, assim, con- o cumprimento das condicionalidades, e é ne-
cepção ampliada de pobreza, ao mesmo tempo cessário manter, e mesmo intensificar, o esforço
que assumem um significado para que se disponha das informações acerca da
Na percepção relativo dessa mesma pobreza,
comparando as capacidades
freqüência escolar e do comparecimento perió-
dico nas unidades de saúde pelas famílias que
que as próprias de satisfação das necessidades
determinadas socialmente no
fazem parte do programa. Mas não para punir
aquelas que não cumprem os compromissos.

pessoas pobres espaço de convívio.


Na interpretação do
Aliás, apesar das normas do PBF se
anunciarem duras perante inadimplências, na

têm de si, a Ibase, esse é um desafio para


o programa, visto que os(as)
prática, a exigência do governo tem sido bem
mais branda. Os acompanhamentos sobre

pobreza se próprios(as) beneficiados(as)


encontram dificuldades em com-
dados que sejam fidedignos desses compro-
missos podem permitir verificar dificuldades
preender os critérios de inclusão das famílias no cumprimento, com possibili-
identifica e se e de definição do valor a ser dade de ser dado o devido apoio por órgãos
repassado, restrito à renda per governamentais habilitados para a superação
mede pelas capita familiar e à presença de dos problemas. Ou, não menos importante,
filhos na escola. Uma situação quando identificada a falta da oferta do serviço
vulnerabilidades, que se agrava com o fato de de saúde ou educação, o poder público oferecer
essas famílias, em sua maioria, a possibilidade de correção da carência.
que podem não possuírem uma renda está- Consideramos, ainda, que a classificação
vel, com parte significativa tendo dos compromissos como “condicionalidades”
ser muitas seus ganhos obtidos em biscates. é inadequada. Como uma das conseqüências,
O que fazer diante disso? estimula a burla das informações acerca de
Criar um indicador de vulnerabilidade que per- seu cumprimento pela justa preocupação das
mita às famílias, com diferentes fragilidades, pessoas responsáveis pela informação em não
estarem incluídas? Haveria muita dificuldade prejudicar as famílias que não conseguem
quanto à disponibilidade dos dados para a cumprir as obrigações. Melhor será criar in-
medição do grau de vulnerabilidade dessas centivos para que os serviços sejam utilizados
famílias. Porém, mais difícil e dispendioso seria e garantir as possibilidades de apoio quando
verificar a veracidade das informações, fazendo surgem dificuldades.
retornar os questionamentos quanto à justiça
de algumas pessoas estarem incluídas e outras
Trabalho e emancipação
não. Entretanto, em nosso ponto de vista, não
deve ser repassada ao PBF a responsabilidade O que foi observado na pesquisa do Ibase des-
de correção das inúmeras vulnerabilidades que, mentiu, cabalmente, a hipótese de que parte
historicamente, atingem os grupos socialmente dos(as) titulares se acomodam com o recurso
mais frágeis. recebido, deixando de trabalhar ou buscar
O Bolsa Família é um programa de emprego. Ao contrário, na etapa qualitativa
transferência de renda para as famílias cujas da pesquisa, a quase totalidade das pessoas
rendas estão abaixo de determinado patamar. participantes declarava o desejo de um empre-
Dentro da política social atualmente emprega- go, preferencialmente com carteira assinada,
da, possui grande importância, mas não pode quando era perguntada sobre as principais
assumir responsabilidades de enfrentamento aspirações.
de problemas que outros programas e outras Na etapa quantitativa, o pequeno
ações, alguns de alcance universal, devem número que declarou ter deixado o emprego
responder. É necessário, sim, aprimorar a ca- após o ingresso no programa afirmou tê-lo

60 Democracia Viva Nº 39
Faces e demandas da pobreza no Brasil

feito pelas condições degradantes em que tra- feijões, carnes, leite, ovos e, em menor pro-
balhava ou pelo baixíssimo salário que recebia. porção, frutas verduras e legumes – embora
O fato, também, é que o valor repassado pelo também tenha crescido o consumo de biscoitos,
programa é insuficiente para o suprimento açúcares, doces e refrigerantes.
das necessidades básicas, obrigando a que se Igualmente, aumentou a compra de
busque outros meios para garanti-lo. Segundo alimentos para crianças e o número de refeições
apurado na pesquisa, o valor médio mensal por dia. Outros gastos, como os realizados
repassado aos(às) beneficiados(as) é de R$ 73. com material escolar, vestuário e remédios,
Na etapa qualitativa, as titulares que destacam-se na utilização dos recursos do PBF.
participaram de grupos focais classificavam Embora não apareça com peso significativo,
freqüentemente o repasse como ajuda, uma ocorre também o uso do dinheiro mensal re-
complementação da renda que as famílias pre- passado para a aquisição de eletrodomésticos,
cisavam dispor. Na pesquisa, constatou-se que geralmente em prestações mensais. Parece
46% dos domicílios com famílias contempladas absurdo o questionamento feito a essa escolha,
pelo programa tiveram renda mensal inferior sendo revelador da não-aceitação, por parte dos
a R$ 380 (salário mínimo durante a coleta de próceres da crítica, do acesso pelas pessoas mais
dados), e 32,5% tiveram renda entre R$ 381 pobres ao mercado desses bens.
e R$ 570. Não menos importante tem sido o
Ainda assim, a incorporação no progra- significado da garantia regular de uma renda
ma tem adquirido grande significado para essas adicional ao orçamento doméstico. Dada a
famílias, particularmente no acesso à alimen- pontualidade com que essa renda é repassada,
tação, cuja repercussão é notória. Observou-se viabiliza-se o planejamento dos gastos familia-
o aumento na quantidade e na variedade dos res, o que significa um avanço importante para
alimentos consumidos, especialmente cereais, o melhor uso dos escassos recursos.
Mariana Santarelli

JUNHO 2008 61
opinião

*Francisco Na pesquisa do Ibase, ainda foi cons- Referências


Menezes tatado, na aquisição de alimentos, o uso do BARROS, R. P.; FOGUEL, M. N.; ULYSSEA, G. (Orgs.). Desigualdade de
Diretor do Ibase, fiado como meio de realizar as compras com renda no Brasil: uma análise da queda recente. Brasília,
DF: Ipea, 2006. v.1.
ex-presidente do a garantia do cartão. Mas o predomínio das
VERAS, F.; SOARES, S.; MEDEIROS, M.; OSÓRIO, R. Programas
Conselho Nacional compras em supermercados e sacolões con- de transferência de renda no Brasil: impactos sobre
de Segurança Alimentar firmou a tendência à busca por preços mais a desigualdade e a pobreza. Brasília, DF: Centro
e Nutricional (Consea) baixos, dentro de um planejamento que visa Internacional de Pobreza, Pnud/Ipea, 2006.
e coordenador da
ao menor dispêndio.
pesquisa Repercussões
Por outro lado, a certeza do dinheiro
do Programa Bolsa
depositado em data certa a cada mês vem
Família na Segurança
Alimentar e Nutricional
transformando o cartão de saque do PBF no
das Famílias equivalente a um cartão de crédito, que abre
a possibilidade para crediários e aquisição de
bens duráveis – incluindo eletrodomésticos, ma-
teriais para reforma nas habitações e, mesmo,
compras de instrumentos de trabalhos, tanto na
área urbana como rural. Vale ressaltar, também,
o significado da mulher ser a titular preferencial
do cartão. Isso traz expressivo reflexo sobre a
importância da figura feminina no domicílio e
no meio em que vive.

Desafios a enfrentar
Na análise sobre os efeitos do PBF, é necessário
considerar seus limites e, como já foi assina- recomenda soluções únicas. O que pode fazer
lado, não fazer dele uma pantomima capaz a diferença, no salto a ser dado para quebrar
de responder por todos os papéis que devem o ciclo vicioso de geração de pobreza e de-
ser desempenhados por outros programas e sigualdade, é a capacidade de execução de
outras ações da política social. A perspectiva múltiplas iniciativas, ajustadas à realidade das
que não pode ser abandonada é a construção várias “caras” da pobreza e com um sentido
de um conjunto de iniciativas articuladas com o sistêmico, ou seja, com uma gerência capaz de
programa, fazendo uso dos dados do Cadúnico articulá-las de forma a extrair dali resultados
(cadastro que origina a seleção das famílias com o maior potencial possível.
a serem incorporadas), que apontem para a Há que se fazer um esforço para o funcio-
promoção de direitos desse grupo social e que namento efetivo de órgãos interministeriais
construam as condições para sua emancipação. já existentes, como as câmaras social e de
Nesse sentido, a criação da Secretaria de segurança alimentar, que poderão garantir a
Oportunidades, no Ministério do Desenvolvi- articulação entre os diferentes programas e as
mento Social e Combate à Fome (MDS), sugere diversas ações. Desafio maior ainda será fazer
a disposição do governo em tomar esse rumo. valer a capacidade de trabalho articulado das
Claro está que essa disposição não pode ficar diferentes esferas federativas (federal, estaduais
restrita a um ministério, e que os resultados e municipais), desarmando as disputas político-
dependerão muito da geração de condições -eleitorais que, geralmente, criam dificuldades
econômicas e sociais, como aquelas que se dão intransponíveis para o funcionamento desse
no âmbito do trabalho, com crescimento do trabalho.
emprego formal; do desenvolvimento agrário, Por fim, não é menos decisiva a partici-
com soluções para o problema fundiário e o pação social na construção do processo de
fortalecimento da agricultura familiar; da saúde, emancipação. Seja a partir de conselhos ou
com acesso crescente das pessoas mais pobres de outras instâncias com participação de re-
aos serviços nessa área, na redução dos grandes presentações da sociedade, há que se realizar
déficits ainda existentes nas condições sanitárias uma transição do papel a elas hoje delegado,
e de moradia; da educação, com a consolidação que deve passar a ser muito mais de formulação
das medidas que seguem a aprovação do Fundo de demandas e propostas para essa política do
de Manutenção e Desenvolvimento da Educação que o exercício de fiscalização, sem dispor das
Básica (Fundeb). condições para exercê-la.
A diversidade de situações que está por
trás das vulnerabilidades sociais no Brasil não

62 Democracia Viva Nº 39
JUNHO 2008 63
artigo
Mariana Santarelli *

Crise
mundial
de
alimentos A crise mundial de alimentos vem sendo sentida em todas as partes do mundo e por

todos os segmentos da sociedade. Porém, são as famílias mais pobres dos países menos

desenvolvidos que sofrem, de forma mais drástica e imediata, com o aumento nos pre-

ços. Previsões da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO)

sugerem que os preços permanecerão altos por, pelo menos, mais dez anos – um risco

para a vida de 1 bilhão de indivíduos pobres em todo o mundo.

O debate nacional sobre as formas de enfrentamento da crise estão na ordem do

dia e apontam, sobretudo, para o importante papel que o Brasil poderia desempenhar

diante desse cenário global – dada a sua capacidade de produção e exportação de pro-

dutos alimentares.
Pouco se tem falado, porém, sobre os impactos da crise sobre a parcela mais pobre da

64 Democracia Viva Nº 39
população brasileira. Também poucas das na qualidade e diversidade da alimentação,
diversas estratégias propagadas apresentam segundo as pessoas entrevistadas, o preço
soluções capazes de minimizar os efeitos da elevado dos alimentos permaneceu como prin-
recente disparada dos preços dos alimentos cipal limitador do consumo alimentar de todos
sobre famílias que, mesmo antes da crise, já os tipos. Fica claro que a possibilidade de as
se encontravam em situação de insegurança famílias acessarem uma alimentação adequada
alimentar (IA). depende, sobretudo, de seu poder aquisitivo e
É necessário refletir sobre em que medi- desses preços.
da muitos dos ganhos alimentares obtidos por
meio do Programa Bolsa Família (PBF) – formu-
Repercussões da crise
lado, entre outros objetivos, para lidar com o
problema da fome –, podem se perder se não Segundo dados do Departamento Intersindi-
forem pensadas ações estratégicas de médio cal de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos
e longo prazo diante de tal crise. E, também, (Dieese), o preço da cesta básica acumulou,
ações mais imediatas capazes de minimizar seus nos últimos 12 meses, aumentos nas capitais
efeitos sobre a população mais pobre. que chegaram a 46,5%, sendo que a Região
Como base para tal reflexão, os dados da Nordeste – onde há maior concentração de
pesquisa realizada pelo Ibase1 permitem maior famílias vulneráveis à fome – é a mais sensível
conhecimento sobre as condições de segurança à mudança.
alimentar dessas famílias, medidas pela Escala Nesse período, as elevações no preço
Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia), o do arroz nas diferentes capitais variaram entre
perfil de acesso à alimentação e as repercussões 13,0% e 47,5%, e do feijão entre 94,9% e
do programa no acesso e consumo alimentar 171,6%, causando um impacto significativo
das pessoas beneficiadas. no orçamento doméstico das famílias mais
Segundo a pesquisa, 6 milhões 100 mil pobres – cuja base de alimentação está nessa
famílias beneficiadas pelo PBF estão em situação combinação. O aumento no preço de alimentos
de IA moderada ou grave – passaram, nos três como carnes e tomate, que chegaram, respec-
meses anteriores à pesquisa, por restrição na tivamente, a 39,0% e 217,8%, vai significar
quantidade de alimentos e até mesmo fome. As mais dificuldades para que as famílias possam
famílias beneficiadas, de forma geral, gastam diversificar sua alimentação – tendência que
em média R$ 200 mensais com alimentação, o vinha sendo reforçada a partir do incremento
que representa 56% da renda domiciliar. Para de renda propiciado pelo PBF.
as famílias em situação de IA grave, o percen- Se as famílias beneficiadas pelo pro-
tual chega a 70%. Os dados mostram que são grama gastavam, em setembro de 2007 (data
justamente as famílias mais vulneráveis à fome da coleta dos dados), em média, 56% de seu
aquelas que comprometem a maior parte de seu orçamento em alimentação, é de se esperar
orçamento doméstico com alimentação e que, que, mediante o aumento dos últimos meses, o
portanto, mais sentem o impacto de aumentos percentual tenha se elevado, de forma a acom-
no preço dos alimentos. panhar o aumento nos preços dos alimentos.
De acordo com a pesquisa, as principais É de se esperar, também, que a renda dessas
repercussões do PBF na alimentação da família famílias não tenha acompanhado na mesma
referem-se à maior estabilidade no acesso e proporção – agravando, necessariamente, as
ao aumento na quantidade e na variedade de condições de segurança alimentar a que estão
alimentos. A garantia de uma renda regular submetidas.
adicional ao orçamento doméstico traz maior Diante desse cenário, a diminuição na
segurança para as famílias e potencializa o pla- quantidade de alimentos consumidos e a drás-
1 A pesquisa Repercussões
nejamento de gastos e modificações no padrão tica queda na qualidade e diversidade torna-se do Programa Bolsa Família na
de consumo alimentar. É no Nordeste, e entre as inevitável como estratégia de sobrevivência, Segurança Alimentar
e Nutricional das Famílias
famílias que apresentam as formas mais graves comprometendo, certamente, ainda mais a Beneficiadas foi realizada
em 2007 e financiada pela
de IA (moderada e grave), onde ocorrem as saúde das famílias. Financiadora de Estudos
maiores modificações, o que é especialmente O impacto da crise na estrutura or- e Projetos (Finep). Seus
principais resultados estão
relevante considerando que são justamente as çamentária das famílias reflete-se, ainda, em sendo apresentados em
vários artigos nesta edição
famílias com alimentação mais insuficiente e outros itens prioritários de consumo doméstico da revista.
pouco variada.2 para o desenvolvimento humano, tais como
2 Sobre repercussões do
Ainda que o aumento da renda propi- material escolar, vestuário e medicamentos. PBF no consumo alimentar,
ver artigo na seção
ciado pelo PBF tenha se convertido em ganhos Além disso, corre-se o risco de as famílias que Indicadores, pág. 68.

JUNHO 2008 65
artigo

hoje se encontram sob condições de IA leve e coexiste com o fato de que pelo menos um
moderada migrarem para a IA grave – configu- terço de sua população convive cotidianamente
rando uma conjuntura que se aproxima, cada com o fantasma da fome.
vez mais, de uma crise humanitária. Essa contradição, com a qual nos habi-
tuamos a conviver, tende a se acentuar com a
atual crise mundial de alimentos. Principalmen-
Estratégias de enfrentamento
te, se continuarmos seguindo as tendências de
A situação a que estão submetidas as famílias liberalização do comércio e desregulamentação
beneficiadas pelo PBF evidencia um quadro da de mercado e apostas na capacidade de o mer-
realidade brasileira que, muitas vezes, não con- cado livre solucionar mais esta crise.
seguimos, ou preferimos, não enxergar. A idéia Não há condições de, neste texto,
de um país em pleno desenvolvimento, que tem discutir a fundo a crise, tão pouco apontar
na exportação de comodities alimentares um saídas. Mas, a título de reflexão, vale partir do
dos motores de seu crescimento econômico, pressuposto de que as causas são múltiplas em
um contexto de mercado globalizado que tende
a reduzir os alimentos à condição exclusiva de
mercadoria.
Mais do que aprofundar a necessária
discussão sobre alternativas de médio e longo
prazos – que passam, necessariamente, por
uma revisão do modelo global de produção e
consumo de alimentos –, as recomendações a
seguir pretendem dar respostas mais imediatas
às famílias que não podem esperar.
São ações diretas e de simples imple-
mentação, em sua maioria políticas públicas já
em andamento que podem ser aperfeiçoadas
ou ampliadas, para minimizar os efeitos da
crise e manter parte das importantes conquistas
obtidas em termos de SAN.
A compreensão sobre as formas pelas
quais as famílias beneficiadas pelo PBF acessam
a alimentação, também levantadas na pesqui-
sa, trazem elementos para uma reflexão sobre
possíveis estratégias de enfrentamento da crise,
mais alinhadas com a realidade das famílias
pobres brasileiras.
Vale enfatizar que 96,3% das famílias
beneficiadas pelo programa têm na compra de
alimentos uma das principais formas de acessar
a alimentação, seguida pela alimentação escolar
(33,4%). Aparecem ainda como relevantes a
ajuda de parentes e amigos (19,8%) e a pro-
dução de alimentos para o consumo próprio
(16,6%). As doações de alimentos (9,7%),
a caça, pesca e/ou extrativismo (8,5%) e os
programas públicos de assistência alimentar
(4,7%) são as formas de acessar a alimentação
que aparecem como menos relevantes.
Os dados levantados pela pesquisa não
deixam dúvidas quanto à centralidade da aquisi-
ção no mercado como principal forma de acesso
à alimentação. Isso faz da renda monetária
Mariana Santarelli

condição primordial, e do recurso transferido


pelo programa um complemento fundamental
ao orçamento familiar, principalmente para a

66 Democracia Viva Nº 39
Crise mundial de alimentos ou crise humanitária?

maioria das famílias que estão no mercado in- Agricultura Familiar (Pronaf B). * Mariana
formal e que têm no PBF a única renda mensal Na região do semi-árido brasileiro, que Santarelli
garantida e regular. concentra o maior percentual de famílias em Mestra em Políticas
Diante da disparada dos preços dos situação de insegurança alimentar grave, cabe de Desenvolvimento
alimentos – considerando-se a perda de poder reforçar a importância do programa “Um mi- Alternativo pelo Institute
aquisitivo que a crise representa especificamen- lhão de cisternas + 2”, que visa suprir a neces- of Social Studies

te para esse segmento da população – e visando sidade de água para a produção de alimentos. (ISS), Haia, Holanda,
pesquisadora do Ibase
evitar uma reversão dos ganhos obtidos até Vale lembrar que as famílias beneficiadas
então pelo programa, o reajuste no valor do pelo PBF que se dedicam à agricultura de sub-
benefício, com base na inflação referente aos sistência combinam a condição de produtoras e
aumentos do custo da cesta básica, apresenta- consumidoras de alimentos. Portanto, ao apoiar
-se como uma estratégia imediata de impacto sua produção, há uma melhora simultânea
direto sobre as famílias mais pobres e que pode tanto no consumo alimentar da família quanto
ser implementada com agilidade. na oferta local de alimentos.
O Brasil não seria o primeiro país a acio- Nesse sentido, recomenda-se o reforço
nar uma política de transferência de renda já de políticas que aumentem a demanda por
estabelecida como um eficiente instrumento a produtos da agricultura familiar, por meio
ser ativado em momento de crise. O governo do da articulação da produção local com gastos
México anunciou aumento no valor repassado públicos em alimentação (escolas, hospitais,
às 26 milhões de pessoas beneficiadas pelo presídios, abrigos, creches) – aos moldes do
programa de transferência “Oportunidades”. que já vem sendo implementado por meio do
A alimentação escolar é outra via de Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) do
acesso direto às famílias mais pobres que pode Ministério do Desenvolvimento Social e Com-
ser acionada. Destacada como o segundo mais bate à Fome (MDS), porém muito aquém da
importante meio de alimentação, é acessada demanda apresentada.
por 83,4% de todos os membros das famílias Existe, ainda, uma série de programas
beneficiadas que estão estudando. Nesse sen- de assistência alimentar, como restaurantes po-
tido, propõem-se como estratégia de enfren- pulares, bancos de alimentos, cozinhas comu-
tamento da crise aumentar o valor per capita nitárias e varejões populares, que possibilitam
da alimentação escolar e sua ampliação para a oferta de produtos alimentares adequados e
o ensino médio, conforme o projeto de lei que pouco consumidos, como legumes, verduras,
já se encontra em tramitação no Congresso frutas e carnes, a preços mais baratos.
Nacional. Tais ações vêm sendo implementadas,
Para as famílias rurais, a produção de principalmente, nos grandes centros urbanos.
alimentos para o autoconsumo permite o Porém, ainda de forma bastante tímida. Na atu-
atendimento de suas necessidades alimentares, al conjuntura de uma crise mundial de alimen-
apesar da instabilidade de sua renda. E, em tos que não tem previsão de acabar tão cedo,
muitos casos, possibilita uma alimentação mais essas estratégias podem ser mais apropriadas
adequada, livre de agrotóxicos e mais próxima pelos governos locais – que precisam também
de seus hábitos alimentares. reconhecer sua parcela de responsabilidade
Segundo dados da pesquisa, 60,4% das na garantia do direito humano à alimentação.
famílias rurais beneficiadas pelo programa plan- Enfrentar a crise na perspectiva do
tam algum tipo de alimento ou criam animais direito humano à alimentação, sobretudo em
para o próprio consumo, o que demonstra o defesa das pessoas mais pobres, confirma e
potencial dessa forma de acesso na garantia aprofunda a direção que o PBF tomou e que
de uma alimentação adequada, principalmen- propiciou ganhos de grande valor no campo
te porque as áreas rurais apresentam índices dos direitos sociais. Para que esses ganhos
significativos de insegurança alimentar grave. não sejam perdidos em um contexto de crise
A promoção de ações que possam mundial de alimentos, a sociedade precisa
valorizar, promover e apoiar a produção de perceber a gravidade dela sobre a parcela mais
alimentos especificamente para esse segmento pobre da população, e os governos devem ter a
mais vulnerável da agricultura familiar passam, coragem de chamar para si a responsabilidade
necessariamente, pela expansão de instrumen- de assegurar esse direito.
tos de apoio à agricultura de base familiar,
como a ampliação do crédito agrícola, mais
especificamente do Programa Nacional de

JUNHO 2008 67
Indicadores
Ana Maria Segall-Correa*
Rosana Salles-Costa**

Novas

A pobreza é fortemente associada à fome e, conseqüentemente, à segurança alimentar e

nutricional (SAN) de tal forma que são consideradas indigentes as pessoas que não têm

renda para se alimentar (Rocha; Albuquerque, 2003). Entretanto, o conceito ampliado

de SAN contempla várias outras condições como igualmente inseguras (Burlandy; Salles-

-Costa, 2007), impedindo a superposição entre indigência, fome e insegurança alimentar.

A capacidade de troca dos indivíduos e grupos possibilita o acesso à alimentação e

inclui diferentes tipos de recurso, não só monetários, como a produção para autoconsumo,

as doações, as redes sociais de apoio, os programas públicos, dentre outros (Sen, 2001).

Mesmo sem “passar fome”, as famílias vivenciam situações de insegurança alimentar (IA),

pois a alimentação pode não ser adequada do ponto de vista sanitário, nutricional ou

cultural (como programas que distribuem alimentos não-adequados à cultura alimentar)

ou, então, acontecem gastos com alimentos que comprometem o atendimento de outras

necessidades essenciais (Burlandy, 2007).


No Brasil e em vários países do mundo, após a década de 1990, a agenda das políticas pú-

68 Democracia Viva Nº 39
blicas de proteção social, combate à pobreza e das Transferências do Programa Bolsa Família
promoção da saúde e da SAN tem incorporado relativo ao mês de março de 2007.1
o debate sobre os programas de transferência O consumo alimentar foi avaliado
condicionada de renda (TCR). Esses programas considerando a percepção das famílias sobre
destinam-se às famílias que vivem em contextos possíveis modificações a partir do PBF com re-
adversos e cuja condição nutricional é impacta- lação à quantidade e à variedade dos alimentos
1 A configuração da amostra
da por múltiplos constrangimentos, tais como consumidos.2 Avaliou-se, também, o consumo foi elaborada pelo Ibase
com base no cadastro
as dificuldades de acesso a alimentos e con- de 28 alimentos no cardápio familiar, agrupados dos(as) beneficiários(as)
sumo em quantidade e qualidade adequadas, em 12 grupos baseados em estudos nacionais, disponibilizado pela Secretaria
Nacional de
conforme destacado recentemente por Luciene considerando se o consumo de cada alimento Renda e Cidadania
(Senarc) do Ministério de
Burlandy (2007). No Brasil, o governo federal aumentou, reduziu ou não se modificou a partir Desenvolvimento e
optou pelo investimento em programas de TCR do PBF. A Tabela 1 apresenta a composição de Combate à Fome (MDS).

e unificou outros tipos de intervenções em um todos os grupos de alimentos avaliados. 2 A pergunta formulada
considerou as modificações
único programa – o Programa Bolsa Família A situação familiar de segurança ou quanto ao número de
(PBF) – destinado às famílias em situações de insegurança alimentar foi avaliada por meio refeições em casa, fora
de casa e nos fins de semana,
pobreza e pobreza extrema. do uso da Escala Brasileira de Medida da In- na compra de alimentos que
as crianças gostavam, na
Entretanto, as escolhas alimentares não segurança Alimentar (Ebia), composta por 15 quantidade
são condicionadas apenas por decisões base- perguntas com resposta sim ou não, e cuja e na variedade de alimentos.

adas em uma racionalidade econômica ou em síntese encontra-se na Tabela 2. Todas as 3 Todas as tabelas e todos os
gráficos deste artigo possuem
torno da saúde. Os dilemas enfrentados pelas perguntas referem-se aos três meses que ante- a mesma fonte.
famílias são vários, considerando: a ampla
disponibilidade de produtos concentrados em
energia e de baixo valor nutricional a preços Tabela 1
relativamente acessíveis, a ampla disseminação Composição dos grupos de alimentos avaliados entre
de propagandas em torno desses alimentos, os as famílias beneficiadas pelo Programa Bolsa Família –
valores simbólicos da alimentação que estão PBF – Brasil, 2007
em pauta e seus efeitos, particularmente com
relação ao público infantil, o reforço a deter- Grupos de Variedade de alimentos
alimentos
minadas demandas de consumo que decorrem
desse processo e os conflitos que se impõem Grupo 1 Arroz, farinha de mandioca, farinha de milho (fubá
ou farinha de pipoca), creme de arroz (amido de
para pais e mães diante das demandas das
milho e outros), pão (ou farinha de trigo), cuscuz
crianças, entre outros. (pão de milho), tapioca e macarrão
Dessa forma, são diversas as situações de
Grupo 2 Biscoitos, bolachas ou bolos
insegurança alimentar vivenciadas por famílias
de baixa renda, cabendo pensar em que medida Grupo 3 Leite e derivados do leite (queijos, iogurte, coalhada)
o acesso aos recursos financeiros por intermédio e achocolatados preparados com leite
da TCR amplia as possibilidades da SAN das fa- Grupo 4 Ovos
mílias que vivem em condição de pobreza. Este Grupo 5 Frutas e sucos naturais
artigo apresenta resultados parciais da pesquisa Grupo 6 Verduras e legumes
Repercussões do Programa Bolsa Família na
Grupo 7 Feijão, outras leguminosas e milho
Segurança Alimentar e Nutricional das Famílias
Beneficiadas – realizada pelo Ibase e financiada Grupo 8 Carne vermelha, frango, pescados, carne de porco,
pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) cabrito, carne de bode, carne de caça
–, destacando os resultados sobre a percepção Grupo 9 Margarina, manteiga e óleos
das famílias com relação às modificações na Grupo 10 Embutidos, bebidas alcoólicas, café (chimarrão, chá),
alimentação a partir do recebimento do PBF, produtos enlatados e prontos para o consumo
analisados com base no grau de insegurança (sucos industrializados, macarrão instantâneo etc.)
alimentar dos domicílios. e salgadinhos (coxinha de galinha, quibe, pastel etc.)
Grupo 11 Tubérculos e raízes (mandioca/macaxeira, batata,
batata-doce, cará, inhame)
População de estudo
Grupo 12 Açúcar, mel, melado de cana, rapadura, doces,
Trata-se de um estudo de base populacional geléias,
realizado em uma amostra probabilística de 5 sorvetes, gelatina, balas, bombons e refrigerantes
mil famílias selecionadas em todo o território Fonte:3 Pesquisa Repercussões do Programa Bolsa Família na Segurança Alimentar
e Nutricional das Famílias Beneficiadas, Ibase, 2007.
nacional, com base no cadastro de titulares
derivado do Demonstrativo Físico/Financeiro

JUNHO 2008 69
indicadores

cederam às entrevistas. Cada item respondido Nord; Price; Hamilton; Cook, 2000), com amplo
afirmativamente é seguido por alternativas de uso, a partir de então, em países desenvolvidos
freqüências: “em quase todos os dias”, “em e em vias de desenvolvimento (Radimer, 2002;
alguns dias”, “em apenas 1 ou 2 dias” e “não Derrickson; Fisher; Anderson, 2000).
sabe” ou “se recusa a responder”, exceto o No Brasil, essa escala foi adaptada e
item 10, que apresenta as alternativas “pouca”, validada para a realidade brasileira, entre 2003
“média”, “muita” e “não sabe ou se recusa a e 2004, e utilizada para classificar a população
responder”. residente em áreas rurais e urbanas, a partir de
A Ebia é um instrumento de alta validade pesquisas de natureza qualitativa e quantitativa,
4 Em 2006, foi realizada interna e externa (Segall-Correa, 2007; Perez- em cidades de quatro macrorregiões do Brasil –
a última pesquisa da PNAD,
aplicando, mais uma vez, -Escamilla; Segall-Correa; Maranha; Sampaio; Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste – e em
a Ebia entre as famílias
entrevistadas para estimar
Marin-Leon; Panigassi, 2004), tendo sua origem áreas rurais das cinco macrorregiões brasileiras.
o grau de SAN na população em uma escala de medida desenvolvida, no A Ebia permite a classificação das fa-
brasileira. Entretanto, até
a publicação deste estudo, os início da década de 1990, nos Estados Unidos mílias ou dos domicílios em quatro categorias:
dados da PNAD 2006
não estavam disponibilizados
(Radimer; Olsen; Greene; Campbell; Habitch, segurança alimentar – quando não há restrição
para consulta pública. 1992; Wehler; Scott; Andreson, 1992; Bickel; alimentar de qualquer natureza, nem mesmo
a preocupação com a falta de alimentos no
futuro; insegurança alimentar leve – quando há
Tabela 2 preocupação ou incerteza quanto ao acesso aos
Perguntas utilizadas para avaliar insegurança alimentos, portanto, risco para a sustentabili-
alimentar a partir da Ebia dade e, ainda, comprometimento da qualidade
da dieta; insegurança alimentar moderada –
1. Preocupação que a comida acabasse antes que tivesse condição quando aparecem restrições quantitativas es-
de comprar mais.
pecialmente relevantes entre pessoas adultas; e
2. A comida acabou antes que tivesse dinheiro para comprar mais? insegurança grave – quando há redução impor-
3. Ficou sem dinheiro para ter uma alimentação saudável e variada? tante da quantidade de alimentos disponíveis,
4. Dispõe de apenas alguns tipos de alimentos para alimentar os(as) tanto para a alimentação de adultos(as) como
moradores(as) com menos de 18 anos porque o dinheiro acabou? para a de crianças que residem no domicílio.
5. Adulto(a) diminuiu a quantidade de alimentos ou pulou refeições Nesta última situação, há evidente quebra nos
porque não havia dinheiro para comprar comida? padrões usuais de alimentação das famílias,
com alta possibilidade de ocorrência de fome.
6. Comeu menos do que achou que devia porque não havia dinheiro
suficiente para comprar comida? Como mostra a Tabela 3, para a classi-
ficação da segurança ou insegurança alimentar
7. Entrevistado(a) sentiu fome, mas não comeu porque não podia
das famílias incluídas neste estudo, foram es-
comprar comida?
tabelecidas pontuações com a soma de valor
8. Entrevistado(a) perdeu peso porque não tinha dinheiro suficiente 1 (um) para cada resposta positiva e, a seguir,
para comprar comida?
os pontos de corte que definem os diferentes
9. Adulto(a) ficou um dia inteiro sem comer ou teve apenas uma estratos.
refeição ao dia porque não havia dinheiro para comprar comida?
10. Não pôde oferecer a algum(a) morador(a) com menos de 18 anos
alimentação saudável e variada porque não tinha dinheiro? Insegurança alimentar e PBF
11. Algum(a) morador(a) com menos de 18 anos não comeu Cerca de 80% das famílias beneficiadas com
em quantidade suficiente porque não havia dinheiro para comprar transferência de renda do PBF – o corresponden-
comida? te a 9 milhões e 200 mil famílias – se referiram
12. Diminuiu a quantidade de alimentos das refeições de algum(a) a algum grau de insuficiência alimentar nos três
morador(a) com menos de 18 anos porque não havia dinheiro meses anteriores às entrevistas, como mostra o
suficiente para comprar comida? Gráfico 1. Dessas, 20,7% foram classificados
13. Algum(a) morador(a) com menos de 18 anos deixou de fazer com IA grave. Significa que aproximadamente
alguma refeição porque não havia dinheiro para comprar comida? 3 milhões e 300 mil domicílios conviviam, em
14. Algum(a) morador(a) com menos de 18 anos teve fome, mas você 2007, com a experiência de passar fome em,
simplesmente não podia comprar mais comida? pelo menos, um dia nesse período. As famílias
15. Algum(a) morador(a) com menos de 18 anos ficou sem comer por residentes na Região Nordeste foram as que
um dia inteiro porque não havia dinheiro para comprar comida? apresentaram maior prevalência de IA, princi-
palmente as formas mais graves (38,7% de IA
moderada e 26,2% de IA grave), enquanto a
Região Centro-Oeste (23,1%) apresentou pro-

70 Democracia Viva Nº 39
Novas possibilidades de alimentação a caminho?

porção maior de famílias com SAN. Tabela 3


A Pesquisa Nacional por Amostragem de Classificação de insegurança alimentar dos domicílios
Domicílios (PNAD) realizada em 2004 (Instituto com base na Ebia
Brasileiro de Geografia e Estatística, 2006) é
a única base de dados disponível com infor- Classificação No de respostas positivas
mações sobre o perfil de IA avaliada pela Ebia (Famílias com (Famílias sem
menores de 18 anos) menores de 18 anos)
no país.4 O estudo da PNAD 2004 (Instituto
Segurança alimentar 0 0
Brasileiro de Geografia e Estatística, 2006) re-
velou que em 65,2% dos cerca de 52 milhões Insegurança leve 1 a 5 1a3
de domicílios particulares estimados residiam Insegurança moderada 6 a 10 4a6
pessoas em situação de SAN. Por outro lado, Insegurança grave 11 a 15 7a9
nos outros 34,8% dos domicílios em situação
de IA, seja leve, moderada ou grave, residiam,
aproximadamente, 72 milhões de pessoas
(39,8% dos moradores e das moradoras em
domicílios particulares). Aproximadamente 12% Gráfico 1
e 7% correspondem aos percentuais de domi- Inseguranca alimentar avaliada pela Ebia
cílios onde residiam pessoas com IA moderada – PBF – Brasil, 2007
e grave, respectivamente.
Em estudo recente realizado por amos-
tra representativa de uma população de baixa
renda situada em Duque de Caxias, na região
metropolitana do Rio de Janeiro (Salles-Costa;
Pereira; Vasconcellos; Veiga; Marins; Jardim;
Gomes; Sichieri, 2007) observa-se a prevalência
de 53,8% de famílias em situação de IA, sendo
6,3% com IA grave. No levantamento sobre o
PBF, a proporção de domicílios com algum grau
de IA foi superior aos dados da PNAD 2004
(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística,
2006), como também os do estudo citado,
pelas condições de vulnerabilidade das famílias
beneficiadas pelo programa.

Consumo alimentar diferente


Avaliando as repercussões do PBF no consumo Gráfico 2
alimentar, um percentual importante de famílias Modificações na alimentação da família a partir
se referiu a aumento significativo na quantidade do Programa Bolsa Família – PBF – Brasil, 2007
e na variedade de alimentos, como também na
compra de alimentos para as crianças, como
mostra o Gráfico 2.
O Gráfico 3 representa o percentual de
famílias que se referiram ao aumento no con-
sumo dos grupos de alimento, de acordo com
a Ebia, a partir do recebimento do PBF. Nesse
gráfico, foi possível observar que, independente
do grau de IA, a inclusão no PBF possibilitou o
maior consumo de todos os grupos de alimen-
tos, ressaltando que as famílias com as formas
mais graves de IA foram as que se referiram às
maiores modificações no consumo alimentar.
O aumento no consumo dos alimentos a
partir do PBF deve ser avaliado com cautela. De
um lado, o PBF possibilitou a maior inclusão no
cardápio das famílias de importantes fontes de

JUNHO 2008 71
indicadores

Gráfico 3
Aumento no consumo dos grupos de alimentos das famílias de acordo com o grau
de inseguranca alimentar (IA) – PBF – Brasil, 2007

proteína, como o leite e seus derivados (Grupo maior proporção de consumo de verduras,
3) e as carnes (Grupo 8), além do maior con- carnes e frutas quando comparadas a famílias
sumo de cereais (Grupo 1) e de feijões (Grupo com IA moderada e grave.
7). Por outro lado, possibilitou, também, o As escolhas da inclusão de alimentos
aumento no consumo de alimentos com alta no cardápio das famílias beneficiadas pelo PBF
densidade de energia e baixo valor nutritivo, são consistentes com a evolução dos padrões
como os biscoitos (Grupo 2), as gorduras (Gru- de consumo alimentar nas últimas três décadas
po 9) e os açúcares (Grupo 12). Esse aumento no país, mesmo considerando a população
foi proporcionalmente maior, principalmente urbana e a rural, pois os últimos estudos rea-
quando comparado ao consumo de frutas lizados avaliaram apenas áreas metropolitanas
(Grupo 4) e vegetais (Grupos 5 e 6). (Levy-Costa; Sichieri; Pontes; Monteiro, 2005).
Esses autores ressaltam diversos estudos que
revelaram o aumento de até 400% no consumo
Comparação com estudos
de produtos industrializados, como biscoitos e
nacionais
refrigerantes, persistência do consumo excessivo
Até o momento, não se encontram disponíveis de açúcar e insuficiente de frutas e hortaliças
publicações avaliando a associação entre o e aumento sistemático no teor da dieta em
consumo alimentar da população brasileira e a gorduras em geral e em gorduras saturadas.
IA estimada pela Ebia. Estudos com populações O aumento no consumo dos biscoitos
específicas, como o de Tatiana Favaro, Dulce também deve ser ressaltado, pois são uma
Ribas, Jorge Roberto Zorzatto, Ana Maria Segall- das principais fontes de ácidos graxos trans
-Correa e Gisele Panigassi (2007), revelaram que da dieta, ao lado de margarinas e produtos
entre famílias indígenas de Mato Grosso do Sul fritos, principalmente aqueles comercializados
a proporção de crianças que consumiram frutas em cadeias de fast-food.
foi significativamente maior nas famílias em si-
tuação de SAN quando comparadas às famílias
Situação de alerta
com algum grau de IA (55,5% vs. 16,6%), o
mesmo ocorrendo com o consumo de carnes Observou-se relato de aumento de consumo de
(72,2%; vs. 38,8%). alimentos em quantidade e variedade a partir
Resultado semelhante foi observado por do recebimento do benefício de transferência
Letícia Marín-Leon, Ana Maria Segall-Correa, Gi- de renda pelo PBF. Independentemente do grau
sele Panigassi, Lúcia Maranha, Maria de Fátima de IA, a dieta das famílias revela que os alimen-
Sampaio e Rafael Perez-Escamilla (2005) entre tos de maior densidade calórica e menor valor
pessoas idosas da cidade de Campinas, visto nutritivo prevalecem na decisão de consumo. O
que famílias em situação de SAN apresentaram aumento no consumo de biscoitos, justificado

72 Democracia Viva Nº 39
Novas possibilidades de alimentação a caminho?

pela maior possibilidade de “oferecer mais produção da agricultura familiar ao público de Ana Maria
alimentos do gosto das crianças” e possibili- baixa renda, no sentido de facilitar o consumo Segall-Correa*
tado pelo ingresso no PBF, tende a representar de alimentos saudáveis. Com isto, será pos- Departamento
importante fator de risco por contribuir para sível contribuir para a prevenção de doenças de Medicina Preventiva
o excesso de peso e para dislipidemia, mesmo crônicas, principalmente a obesidade nessa e Social, Faculdade
em idades precoces. população. de Ciências Médicas

Essa situação aumenta ainda mais o da Unicamp

risco de jovens atingirem a vida adulta com Rosana


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100 (3,2% de arroz e 2,2% de feijão), como Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro,
v. 23, n. 4, p. 785-793, 2007.
observado no Gráfico 3. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa
Os resultados observados sugerem que o Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2004 –
segurança alimentar. Rio de Janeiro: IBGE, 2006.
PBF aumentou o poder de escolha e de compra
LEVY-COSTA, R.; SICHIERI, R.; PONTES, N. S.; MONTEIRO, C. A.:
dos alimentos que fazem parte da dieta das Disponibilidade domiciliar de alimentos no Brasil:
famílias beneficiadas. Observou-se também distribuição e evolução (1974-2003). Revista de Saúde
Pública – Revista da Faculdade de Saúde Pública da USP,
elevada proporção de famílias em situação de São Paulo, v. 39, n. 4., p. 530-540, 2005.
insegurança alimentar moderada ou grave. A MARÍN-LEÓN, L.; SEGALL-CORREA, A. M.; PANIGASSI, G.;
MARANHA, L. K.; SAMPAIO, M. F. A.; PÉREZ-ESCAMILLA,
inclusão na dieta de alimentos de alto teor
R. A percepção de insegurança alimentar em famílias com
energético e baixo valor nutritivo, que acrescen- idosos em Campinas, São Paulo, Brasil. Caderno
tam riscos à saúde de um grupo populacional de Saúde Pública – Revista da Escola Nacional de Saúde
Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz,
já muito vulnerável, revela que a possibilidade Rio de Janeiro, v. 21, n. 5, p.1.433-1.440, 2006.
de um consumo dietético mais variado nem PEREZ-ESCAMILLA, R.; SEGALL-CORREA, A. M.; MARANHA, L. K.;
SAMPAIO, M. F. A.; MARIN-LEON, L., PANIGASSI, G..
sempre irá contribuir para um padrão saudável An adapted version of the U.S. Department of Agriculture
de acordo com as recomendações do Ministério Food Insecurity module is a valid tool for assessing
da Saúde. household food insecurity in Campinas, Brazil. Journal
of Nutrition, Bethesda, US, v. 134, n. 8, p.1.923-1.928,
Dessa forma, partindo-se de uma 2004.
concepção intersetorial envolvendo a saúde, RADIMER, K. L.; OLSEN, C. M.; GREENE, J. C.; CAMPBELL, C. C.;
HABITCH, J. P. Understanding hunger and developing
a educação e a assistência social, programas indicators to asses it in women and children. Journal
direcionados para a educação alimentar devem of Nutrition Education, Bethesda, US, v. 24, 1supll,
p. 36S-45S, 1992.
ser incentivados, além das atividades que já
RADIMER, K. Measurement of household food security in the
fazem parte da rotina do PBF, ressaltando a USA and other industrialized countries. Public Health
importância do consumo de frutas e vegetais Nutrition, Cambridge, v. 5, p. 859-864, 2002.
ROCHA, S.; ALBUQUERQUE, R. C. “Geografia da pobreza extrema
adicionados à mistura do arroz e feijão, e re- e vulnerabilidade à fome”. In: REIS VELLOSO, J. P.;
dução do consumo de açúcares no momento ALBUQUERQUE, R. C. (Orgs.). A nova geografia da fome
e da pobreza. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 2003,
da compra dos alimentos que farão parte do
p.19-77.
cardápio diário das famílias. SALLES-COSTA, R; PEREIRA, R. A.; VASCONCELLOS, M. T. L.; VEIGA,
Finalizando, recomenda-se o desenvol- G. V.; MARINS, V. M. R.; JARDIM, B. C.; GOMES, F. S.;
SICHIERI, R. Associação entre fatores socioeconômicos
vimento de ações educativas na ótica da SAN, e insegurança alimentar: estudo de base populacional
para além das estratégias já existentes, de na região metropolitana do Rio de Janeiro, Brasil. Revista
de Nutrição – Revista da PUCCAMP, Campinas, 2008 (no
disseminação de informações sobre os riscos prelo).
associados a determinadas práticas alimenta- SEGALL-CORREA, A. M. Insegurança alimentar medida a partir da
res, incorporando políticas de aproximação da percepção das pessoas. Estudos Avançados – Revista do
Instituto de Estudos Avançados da USP, São Paulo, v. 21,

JUNHO 2008 73
s u a o p i n i ã o

Mudança cadastral Celebração


Sou responsável pelo Centro de Documentação É muito importante participar da história dos
(Cedoc) do Instituto de Defesa do Consumi- dez anos desta revista, com a certeza do cami-
dor (Idec). Estou entrando em contato para nho eticamente percorrido por vocês em defesa
agradecer a assinatura de cortesia da revista da inclusão social dos que ainda não tiveram
Democracia Viva e solicitar a alteração do nome essa possibilidade concreta. Falo da inclusão no
para envio da publicação. campo da educação, da segurança pública, do
Rosileide, Cedoc/Idec lazer, da moradia. O trabalho e as atividades
São Paulo/SP desenvolvidas pelo Ibase, a partir da Democracia
Viva, têm-se reverberado pelos vários cantos do
Brasil. Aqui, na Bahia, não se faz diferente. Vida
longa a todos vocês!
Solicitação de exemplar Prof. Joilson Bergher
Agradecemos a doação da revista nº 35 e soli- Vitória da Conquista/BA

citamos a gentileza de avaliarem a possibilida-


de de envio de mais um exemplar para nossa
biblioteca setorial. Sobre a Re.Fem
Vanda Lucia
Centro Universitário Geraldo di Biase Gostaria de agradecer o envio da revista e
Volta Redonda/RJ parabenizá-las pela mesma. Adorei a entrevista
de Janaína Oliveira (a Re.Fem). Maravilhosa!!
Jana Guinond
ONG Estimativas/RJ
Colaboração
Apresento-lhes os meus mais sinceros agradeci-
mentos pelo envio da revista Democracia Viva,
constantemente utilizada nas minhas aulas de
Sociologia Geral e Jurídica no âmbito do curso
de Direito da Universidade Católica de Brasília. Nota da redação
Sou doutora em Sociologia do Desenvolvimen-
Agradecemos por todas as mensagens e
to, com especialização em Direitos Humanos
todos os artigos recebidos no endereço
das Mulheres, e trabalho com cidadania. Acabo eletrônico da revista e no Portal do Ibase.
de retornar de um período como pesquisadora- Informamos que os textos serão avaliados
-visitante na Universidade de Tsukuba, Japão, e, se possível, publicados.
onde desenvolvi uma pesquisa sobre as dificul- Agradecemos, também, por todas as
cartas enviadas, informando que, de acordo
dades encontradas pelos dekasseguis brasileiros
com a necessidade editorial, essas serão
no país. Muito apreciaria a análise do texto publicadas com cortes.
(resumido), que lhes envio, para publicação na Esperamos que o público leitor continue
revista Democracia Viva. colaborando com a revista Democracia Viva.
Profª. Leila Bijos
Pontifícia Universidade Católica (PUC) /DF

74 Democracia Viva Nº 39
última página
Nani

Vinte milhões
entraram na Classe C
39
A agenda da revista Democracia Viva é ampla

VIVA
e aberta, parte do compromisso radical com

DEMOCRACIA
a cidadania e com a democracia.

Democracia Viva não se alinha com partidos

nem religiões, mas toma partido desde que

esteja em jogo a possibilidade de aprofundar

a democracia. Não disputa poder, mas quer

exercer um papel de vigilância, monitoramento

e avaliação; com toda autonomia e independência,

das políticas públicas e das ações governamentais,

bem como das práticas empresariais e das

relações econômico-financeiras. Quer ser ativa

como interpeladora de consciências e vontades,

questionando práticas e valores que limitam

a democracia, estimulando a participação cidadã.

Sua qualidade é a força das reflexões, análises,

propostas e dos argumentos. JUNHO 2008

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