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INSTITUTO UNIVERSITÁRIO DE PESQUISAS DO RIO DE JANEIRO

LIA DE MATTOS ROCHA

Uma favela “diferente das outras?”:

Rotina, silenciamento e ação coletiva na favela do Pereirão, Rio de Janeiro.

Rio de Janeiro
2009
LIA DE MATTOS ROCHA

Uma favela “diferente das outras?”:


Rotina, silenciamento e ação coletiva na favela do Pereirão, Rio de Janeiro.

Tese apresentada ao Instituto


Universitário de Pesquisas do Rio de
Janeiro como requisito parcial para a
obtenção do título de Doutor (a) em
Ciências Humanas: Sociologia.

Banca Examinadora:

Luiz Antonio Machado da Silva (orientador)

Adalberto Cardoso

Diana Lima

Márcia Leite

Dulce Chaves Pandolfi

Rio de Janeiro
2009

II
AGRADECIMENTOS

Aproveito esses agradecimentos para expressar a minha gratidão àqueles que foram
fundamentais não apenas para a realização desta tese, mas que também tiveram papel na
minha formação profissional, além de terem me dado o apoio pessoal sem o qual essa
tarefa teria sido muito mais inglória e solitária. Muitas vezes me escapou a capacidade e
a oportunidade de agradecer ao vivo e a cores, e por isso o faço agora, no papel, onde as
ironias (ou autoironias) perdem a graça.

A Luiz Antonio Machado da Silva, meu orientador, agradeço imensamente. Pela


orientação dedicada, por tudo que aprendi sobre Sociologia Urbana e outros assuntos
aleatórios, e pelo respeito que sempre demonstrou às minhas idéias, mesmo quando elas
vinham na forma de “bobagens” ditas em sala de aula. Minha gratidão é enorme pelas
lições sociológicas e de vida, pelas pílulas de sabedoria dadas com imensa generosidade
e humildade, por ter sido meu mestre e guru apesar de odiar hierarquias, e por ter me
acolhido quando decidi estudar os “marginais, excluídos e subalternos”. Espero um dia
estar a altura da confiança depositada, dos caminhos abertos e da paciência e amizade
que me dedicou (e haja paciência!).

A Márcia Leite Pereira da Silva, agradeço a orientação informal, por ter sido minha
maior interlocutora e incentivadora, sempre apresentando saídas para dramas teóricos,
metodológicos e, porque não, pessoais. Agradeço também pelas conversas fora das salas
de aula e de reuniões (que foram muitas): pelos chopes, cafés e águas de coco, onde
aprendi a admirar, além de sua inteligência, também seu humor, sua sensibilidade e seu
carinho por todos. Márcia me fez ver as sutilezas do campo, as possibilidades
escondidas, os achados que eu tinha na mão e não percebia, e sempre com graça,
gentileza e respeito pelo meu trabalho. Márcia, sou sua fã!

A Dulce Pandolfi, Diana Lima e Adalberto Cardoso, pelas importantes e sugestivas


considerações feitas durante a defesa da tese. Os questionamentos colocados durante as
arguições não apenas fizeram-me refletir sobre os percursos e pontos de chegada desta
tese, como também inspiraram novos pontos de partida.

Aos colegas da Pesquisa “Rompendo o cerceamento da palavra: a voz dos favelados em


busca de reconhecimento”, pelas discussões e sugestões feitas, sem as quais esse
trabalho não teria rendido uma tese. Agradeço especialmente a Luiz Carlos Fridman,

III
que me fez entender que a “tranquilidade” do Pereirão não era um problema, mas o
problema desta tese, e também a Itamar Silva, a quem devo importantes reflexões sobre
os moradores de favelas cariocas e os dilemas de suas lideranças.

A Marion Aubrée, pelo acolhimento no Centre de Recherche sur le Brésil


Contemporain, na École des Hautes Etudes en Science Sociales, e pela oportunidade de
apresentar meu trabalho aos colegas do CRBC. Agradeço ainda a François Bovin, pela
amizade inestimável e as incríveis aulas de francês e de sociologia, a bordo de um
carrinho vermelho pilotado pelo próprio em alta velocidade.

A Janice Perlman, pela oportunidade de fazer parte do projeto de pesquisa “The


Dynamics of Urban Poverty in Rio de Janeiro”, meu primeiro contato com as favelas
enquanto campo de pesquisa. A ela e a Ignácio Cano agradeço pelo aprendizado e pelas
experiências nos quatro anos em que trabalhamos juntos.

A Lia e Caroline (e também Valéria), que na secretaria do Iuperj zelaram pela minha
figura jurídica com competência, cuidado e zelo, apesar da desorganização que sempre
causei quando confrontada com o labirinto dos formulários e prazos. Agradeço também
a Simone Sampaio pela gentileza e carinho demonstrados todas as vezes que entrei na
biblioteca nesses longos quatro anos. Sereias, gratidão eterna.

Aos professores, diretores e funcionários do Iuperj, pelo apoio institucional, pela


estrutura e tranquilidade que oferecem àqueles que por ali aportam. Agradeço aos
colegas e amigos Doriam, Carolina e Vanessa, e especialmente a Ludmila, pela amizade
e carinho nesses quatro intensos anos.

Ao CNPq e a CAPES, pelas bolsas concedidas no Brasil e no exterior.

A Graziella Moraes, com enorme admiração e gratidão, por ter sido minha amiga tão
querida por todos esses anos, com quem tive a honra de trabalhar, e que me motivou a
ser uma pesquisadora (e uma pessoa) melhor, simplesmente por seu exemplo.

A Christina Vital, companheira de percurso, pela generosidade, trocas intensas de dados


do campo, dicas intelectuais, pela imensa amizade e pela magia. As queridas amigas
Fabiene Gama e Juliana Farias, “favelólogas” como eu, que me levaram pela mão
quando comecei a fazer esta pesquisa, compartilharam comigo suas descobertas e
ouviram as minhas, dando sempre sugestões preciosas, tenham sido elas acatadas ou
não. Estendo os agradecimentos a Palloma Menezes e Raíza Siqueira, pelo carinho e

IV
pela torcida. Também agradeço a Jussara Freire pela amizade tão preciosa e pela
inteligência e generosidade, atendendo sempre a todos os meus pedidos de ajuda.

Aos amigos que fiz há dez anos, na graduação do IFCS, e que ainda são tão importantes
na minha vida e carreira. A confraria de 96.1, meus primeiros interlocutores: João
Marcelo, José Renato, Guilherme, Gustavo, Cláudio, Felipe e Cecília. A Eliska e Bruno
Carvalho, pela amizade e pela confiança, e também por trocarem comigo as delícias e as
dores do parto que é escrever uma tese. A Denise Lopes, amiga de uma década, com
quem comecei a fazer pesquisa e com quem estou sempre aprendendo.

A Emanuelle Araújo, companheira fiel de tantas roubadas, risadas e urgências


sociológicas.

As “amigas de infância” que fiz no estágio em Paris, que foram minha família por seis
meses: Larissa, Isabel, Eliana, Iara, Juliana, Alexandra e Renata.

Agradeço a minha família e amigos de toda a vida, pela torcida e admiração que me
deram uma autoconfiança que beira a megalomania. Wilson, João Vicente, Vó Gumê,
Tias Nelcy e Lurdinha, Bia, Gabriela, Fernanda (a irmã que escolhi), Ingrid, Aninha,
Pedro, Pupi, Tia Verinha – amo vocês. A Lurdes e Euclides, que leram e editaram a
maior parte da tese, muito obrigada pelo carinho e pelas dicas (e pela pegadinha
também). Agradeço especialmente a minha mãe, Léa, que me apresentou a sociologia
(afinal, é a primeira socióloga que conheci) e as favelas cariocas, minha maior
incentivadora e meu maior exemplo. Ao tio Silas, que quando eu era ainda criança me
deu “História do Mundo para crianças”, do Monteiro Lobato, para que eu pudesse
começar a entender algumas das questões que já me tiravam do sério (e a ele também).

A Jarek, pelo amor sem fronteiras e sem tamanho.

V
Resumo

Esta tese investiga as novas configurações do associativismo em favelas do Rio de


Janeiro a partir do estudo de caso de uma pequena favela localizada na Zona Sul da
cidade do Rio de Janeiro, que goza de uma situação particular e quase excepcional: a
ausência de conflitos frequentes entre traficantes de drogas e entre esses e a polícia, sem
ser dominada por grupos para-militares (grupos como é o caso em muitas favelas
cariocas). Para seus moradores, trata-se de uma favela “tranquila” e, por isso, “diferente
das outras”.

A partir deste caso real do possível discuto as implicações dessa “tranquilidade” para a
sociabilidade local, e particularmente para sua associação de moradores e para a
organização não-governamental ali localizada. Argumento que a ausência de conflitos
frequentes é uma importante dimensão na vida local, pois permite aos moradores não
apenas a manutenção de sua “segurança ontológica” (Giddens, 1991), como também
oferece à população local um importante recurso acionado nos processos de limpeza
moral que executam. No entanto, afirmo que tal “tranquilidade” é acompanhada de um
silenciamento por parte dos moradores e de suas organizações sobre suas rotinas e sobre
os riscos por eles vivenciados. No caso de sua associação de moradores, tal
silenciamento tem como consequência, entre outras, uma imobilidade no que diz
respeito à mobilização para ações coletivas que demandem melhorias para a localidade.
No caso da ONG local, o silenciamento se dá de outra forma; o trabalho executado está
relacionado a representações sobre a criminalidade violenta e sobre a “vulnerabilidade”
da juventude local frente a ela. Nesse sentido, os participantes da ONG possuem uma
voz sobre a vida nesses territórios, mas que está “ajustada” ao enquadramento atual do
“problema da favela”. Elevando a discussão a uma dimensão mais geral, analiso o
“ajustamento” (Boltanski e Thévenot, 1991) de associações de moradores e
organizações não-governamentais tanto aos novos parâmetros da atuação estatal nessas
localidades quanto ao discurso mais recente sobre sociedade civil e movimentos sociais
– que modelam esse atual “problema da favela”. Por fim, discuto qual a “voz possível”
para moradores de favelas, dentro das condições dadas pelas representações coletivas
existentes sobre eles e sobre o lugar que ocupam na dinâmica socioespacial da cidade.

Palavras-chave: sociologia urbana, segregação socioespacial, criminalidade violenta,


movimento social, favelas, ONGs, silenciamento.

VI
Summary

This thesis investigates the new configurations of grassroots organizations in slum


quarters (known as favelas) of Rio de Janeiro from the case study of a small slum
quarter located in the South Zone of the city, which enjoys of a particular and almost
exceptional situation: the absence of frequent conflicts between drug dealers and
between these and the Policy Forces, without being dominated by groups of milicianos
(as it is the case in many favelas). For its residents, it’s a “quite” favela and, therefore,
“different from the others”.

From this case I argue the implications of this “tranquillity” for the local sociability, and
particularly for the resident’s association and the non-governmental organization
located there. I argument that the absence of frequent conflicts is an important
dimension of local life, since it allows the maintenance of the residents’ “ontological
security” (Giddens, 1991), as well as it offers them an important resource applied in the
processes of “moral cleanness” executed by them in regular tenses. However, I affirm
that this “tranquillity” goes along with the residents’ (and theirs organizations’) silence
about their routines and the risks they experience. In the case of the resident’s
association, such silence provokes its immobility regarding the improvement of the
locality’s quality of life, among others consequences. The local NGO, on the other
hand, produces representations on violent crime and how the local youth are
“vulnerable” to it. Therefore, its participants have a voice over the life in these
territories, but that voice is “adjusted” to the recent framing on the “favelas’ problem”.
Raising the discussion to a more general level, I analyze the “adjustment” (justesse, as
presented by Boltanski and Thévenot, 1991) of resident’s associations and non-
governmental organizations to the new parameters of the state performance in these
localities, as well as to the most recent speeches on civil society and social movements.
Finally, I discuss the possibility of voice for favelas’s residents, regarding the
conditions given by collective representations about them and about the place they
occupy in the socio-spatial dynamics of the city.

Key words: urban sociology, socio-spatial segregation, violent criminality, social


movement, slum quarters, favelas, NGO, silence.

VII
Résumé

Cette thèse enquête les nouvelles configurations de l'associativisme dans des bidonvilles
de Rio de Janeiro (connue comme favelas) à partir de l'étude de cas d’une favela
localisée dans la Zone Sud de la ville de Rio de Janeiro, qui profite d'une situation
particulière et presque exceptionnelle : l'absence de conflits fréquents parmi des
trafiquants de drogues et entre ceux-là et la police, sans être dominé par des groupes
paramilitaires (comme c'est le cas dans beaucoup d’autres favelas). Pour leurs habitants,
il s'agit d'une favela« tranquille » et, donc, « différente des autres ».

À partir de ce « cas réel du possible » je discute les implications de cette « tranquillité »


pour la sociabilité locale, et particulièrement pour l’association d'habitants et pour
l'organisation non gouvernementale y localisée. J’argumente que l'absence de conflits
fréquents est une importante dimension de la vie locale, donc permet aux habitants la
manutention de sa « sécurité ontologique » (Giddens, 1991), et aussi elle offre à la
population locale une importante ressource actionnée dans les processus de « nettoyage
moral » qu’ils exécutent. Néanmoins, j'affirme que telle « tranquillité » est
accompagnée d'un silence de la part des habitants et de leurs organisations gardé sur
leurs routines et sur les risques intensément vécus par eux. Dans le cas de l’association
d'habitants, tel silence provoque comme conséquence, entre autres, l’immobilité
concernat la mobilisation pour des améliorations de la localité. Dans le cas de l'ONG
locale, leur travail tourne autour de représentations sur la criminalité violente et sur la
« vulnérabilité » de la jeunesse locale face à elle. Dans ce sens, les participants de
l'ONG ne gardent pas le silence sur la vie dans les favelas, mais ils possèdent une parole
« ajustée » au plus récent encadrement du « problèm de la favela ». En élevant la
discussion à une dimension plus générale, j'analyse la « justesse » (Boltanski et
Thévenot, 1991) des associations d'habitants et des ONG par rapport aux nouveaux
paramètres de la performance d'état dans ces localités, ainsi que le discours plus récent
sur la société civile et les mouvements sociaux. Finalement, je discute la possibilité
d’une voix pour les habitants de favela, par rapport à la représentation collective
existante sur eux et sur la place qu’ils occupent dans la dynamique socio-spatiale de la
ville.

Mots-clé : sociologie urbaine, ségrégation socio-spatiale, criminalité violente,


mouvement social, bidonville, favelas, ONG, silence.

VIII
Sumário
Introdução __________________________________________________________________ 1
I. Uma favela onde “reina a paz”. _______________________________________________ 23
1.1. O passado da “comunidade” do Pereirão.____________________________________ 25
1.2 O “Mutirão pela Paz” e vizinhança com o BOPE: de uma favela violenta a uma favela
“tranquila”._______________________________________________________________ 27
1.3 “Em paz”: rotina e tensões. _______________________________________________ 35
1.4. Silêncio e medo em um cotidiano “tranquilo”.________________________________ 43
1.5. Diversas apropriações possíveis da “tranquilidade” do Pereirão.__________________ 50
II. A associação de moradores: “eles lá e nós aqui”. _________________________________ 55
2.1. A associação de moradores. ______________________________________________ 57
2.1.1. A gestão de Antônio. ________________________________________________ 57
2.1.2 A gestão de Jennifer. ________________________________________________ 69
2.2 “Tempos da política” nas favelas cariocas. ___________________________________ 73
2.3. Política e criminalidade violenta nas favelas do Rio de Janeiro. __________________ 78
2.4. Voz e silenciamento da representação de moradores de favelas. __________________ 92
III. A ONG TV Morrinho: “Como na vida real”.____________________________________ 96
3.1. TV Morrinho: a ONG do Pereirão. _________________________________________ 97
3.2 História do Morrinho. ___________________________________________________ 99
3.3. A ONG TV Morrinho. _________________________________________________ 107
3.4 Os múltiplos significados do Morrinho. ____________________________________ 116
3.4.1 Colocando a violência em evidência, mas como problema.__________________ 116
3.4.2 Colocando a violência em evidência, mas como experimentação._____________ 126
3.5. O Morrinho e o “silenciamento da palavra”. ________________________________ 136
IV. Associação de moradores e organizações não-governamentais: rupturas e continuidades. 138
4.1. Da profissionalização da militância a representantes dos favelados: movimentos sociais e
ONGs. _________________________________________________________________ 139
4.2. O “duplo ajustamento” ao “problema das favelas”. ___________________________ 152
Conclusão: Paz sem voz. _____________________________________________________ 165
Referências Bibliográficas. ___________________________________________________ 176
Anexos.___________________________________________________________________ 188
Anexo I: Lista de entrevistados.______________________________________________ 188
Anexo II: Sites, Artigos de jornal e documentos oficiais (impressos ou digitais). _______ 189

IX
Introdução

Eu Sou Favela
(Sergio Mosca - Noca Da Portela)
Em defesa de todas as favelas do meu Brasil,
aqui fala o seu embaixador.

A favela nunca foi reduto de marginal


A favela nunca foi reduto de marginal

Ela só tem gente humilde, marginalizada,


E essa verdade não sai no jornal

A favela é um problema social


A favela é um problema social

Sim, mas eu sou favela


Posso falar de cadeira
Minha gente é trabalhadeira
Nunca teve assistência social
Ela só vive lá
Porque para o pobre não tem outro jeito
Apenas só tem o direito
A um salário de fome e uma vida normal

A favela é um problema social


A favela é um problema social.

Desde seu surgimento, há mais de um século, as favelas são vistas pela maioria
da sociedade brasileira como local “infestado de vagabundos e criminosos que são o
sobressalto das famílias” e “cidadelas da miséria” (Valladares, 2005:26 e 32).
Concomitantemente, foram produzidas também representações “idealizadas” da favela,
como na música apresentada acima e outras que retratavam as favelas como “pertinho
do céu”, um “cenário de beleza”, lugar de “gente boa”1. Porém, nas últimas décadas o
crescimento no número de eventos violentos tem agravado o estigma secular que recai
sobre as favelas. Ao mesmo tempo em que se dá o agravamento deste estigma, as
favelas têm sido palco de intervenções do poder público e de atores da sociedade civil,
através dos quais são executadas ações que tentam dar conta do que seria “o problema
da favela”.

1
Nas músicas “Opinião”, de Zé Kéti; “Hino de Exaltação a Mangueira”, de Chico Buarque; e “Favela”,
de Arlindo Cruz, Acyr Marques e Ronaldinho, respectivamente.
Para Valladares (2000), desde seu início as favelas foram “problematizadas” por
jornalistas, médicos e engenheiros – que liam a “favela como doença, moléstia
contagiosa, uma patologia social que precisava ser combatida”. A partir dos anos 1930 a
favela é reconhecida oficialmente e, como tal, “passa gradativamente a ser vista como
um problema a ser administrado”. Quando as ciências sociais estão constituídas no país
as favelas se tornam objeto de suas investigações, pois foi “a necessidade de administrar
a favela e os seus pobres que despertou o interesse em conhecê-la e conhecê-los mais de
perto”. Dessa forma, como Valladares demonstrou neste e em outro importante trabalho
(Valladares, 2005), a história das favelas cariocas está fortemente relacionada com a
identificação delas enquanto um “problema”. Porém a interpretação sobre qual tipo ou
dimensão do problema modifica-se a cada período histórico e contexto político
nacional: problema “sanitário”, habitacional, de “ordem pública”, de segurança ou
problema “social” – dimensões que se sobrepõem na maior parte das vezes, mas que
recebem maior ou menor destaque em contextos diferentes. No entanto, “o problema da
favela” permanece sendo entendido na maioria dessas abordagens como um problema
de (pouca ou nenhuma) integração das classes subalternas à institucionalização
democrático-legal, e poucas vezes enquanto um problema de desigualdade (um abismo
de poder entre “asfalto” e “favela”) e, portanto, um tema que diz respeito à sociabilidade
precária e à alteridade inconsistente que caracterizam as relações entre subalternos e
classes superiores na sociedade brasileira (Machado da Silva, 2002: 235).

Esta tese versa sobre moradores de favelas e suas organizações coletivas locais e
supralocais, e a forma como têm tentado combater a representação corrente que os
estigmatiza e os confundem com os traficantes de drogas que controlam esses territórios
e submetem seus habitantes. Na percepção social dominante, a contigüidade territorial
com criminosos violentos transforma todos os moradores de favela em cúmplices,
coniventes ou eles próprios potenciais criminosos (Zaluar, 1985; Machado da Silva e
Leite, 2004). Dessa forma, o “o problema da favela” atualmente está identificado como
um problema de segurança pública e combate à criminalidade violenta. Esta mutação do
antigo estigma tem profundo impacto sobre as vidas dos moradores, pois, entre outras
conseqüências negativas, serve de justificativa para a violência policial
sistematicamente praticada contra essa população e afeta a capacidade de se fazerem
presente e ouvidos nas arenas públicas, através de suas lideranças. Assim, a presença de
traficantes nas favelas representa impedimento para a ação coletiva por dois lados: os

2
traficantes muitas vezes controlam e cerceiam a ação das associações de moradores; ao
mesmo tempo, os líderes são desqualificados, por serem identificados como porta-vozes
de interesses criminosos2. Essa perda de legitimidade também acontece dentro das
próprias localidades; denúncias de corrupção, de uso dos recursos da associação para
interesses pessoais e até de envolvimento com o tráfico têm afastado os moradores da
participação nos movimentos de base e desacreditado a atuação de seus representantes
(Zaluar, 1985; Leeds, 2003; Machado da Silva e Leite, 2004). Porém, neste contexto
surgem outros atores sociais que apresentam novas credenciais para participar da
discussão pública sobre as favelas, e que entram na disputa sobre a imagem dessas
localidades e também sobre quem pode falar de forma legítima pelos moradores.

Segundo dado anunciado pelo Instituto Pereira Passos (IPP – ligado à Prefeitura
do Rio de Janeiro) no começo de 2009, o Rio de Janeiro possuía 968 favelas3. Em
relação aos dados sobre a população dessas favelas, no entanto, as informações mais
recentes são do último Censo Demográfico, realizado em 2000. Naquele momento,
segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, existiam 513 favelas4 na
cidade, nas quais moravam 1.092.783 habitantes – em torno de 19% da população
carioca. A partir de dados disponibilizados pelo IBGE, o IPP calculou as taxas de
crescimento para a cidade do Rio de Janeiro, os setores considerados subnormais (as
favelas) e os setores normais. Segundo este relatório, a população da cidade cresceu,
entre 1991 e 2000, a taxas anuais de 0,67%, mas enquanto nos setores normais a
população cresceu 0,38% ao ano a população das favelas aumentou a taxa de 2,4% ao
ano, particularmente nas regiões da Barra da Tijuca e Jacarepaguá (IPP, 2002).
Contudo, as favelas têm crescido em ritmo cada vez menor: segundo o IPP (Viana,
2008), entre 1950 e 1960 a população residente em favelas cresceu 98% (enquanto a

2
Em diversos artigos de jornais e revistas de grande circulação os presidentes de associação de moradores
são identificados imediatamente como representantes dos traficantes locais; Cf. “A vida no fio da
navalha. Prisão de líder comunitário revela ligação do tráfico com associações de moradores de favelas”
(VEJA, 2005) e “No curral e com ficha suja. ‘Candidato único’ da Rocinha responde a 14 ações por
roubo, furto e estelionato” (O Globo, 2008).
3
Cf. O Globo, 10 de janeiro de 2009. Expansão Horizontal: Favelas crescem 3 milhões de metros
quadrados no Rio.
4
Há divergências entre a contagem do IBGE e do IPP, pois o primeiro considera favela (aglomerado
subnormal na nomenclatura do Instituto) “conjunto constituído por no mínimo 51 unidades habitacionais;
ocupando ou tendo ocupado até período recente terreno de propriedade alheia (pública ou particular);
dispostas, em geral, de forma desordenada e densa; e carentes, em sua maioria, de serviços públicos
essenciais” (Araújo, 2006: 2). Já o segundo baseia-se em fotos de satélites para determinar o número de
favelas, e não determina a quantidade mínima de unidades habitacionais. Além disso, a contagem do IPP
é feita com maior freqüência que a do IBGE, que acontece, sobretudo, durante a realização do Censo (a
cada 10 anos em média).

3
taxa de crescimento da população carioca como um todo foi de 38%); entre 1980 e 1991
a população de favela cresceu 22% (e 8% para a população como um todo); e entre
1991 e 2000 a população das favelas cresceu 24% (e 7% para a população total da
cidade). Internamente, sabe-se que as favelas possuem grande heterogeneidade interna
(Machado da Silva, 1967; Preteceille e Valladares, 2000; Viana, 2008): as favelas não
são local de moradia da maioria dos pobres da cidade, e nem todos que habitam em
favelas são pobres. Segundo Viana (2008) apenas 1/3 dos pobres cariocas vive em
favelas, e dos habitantes destas apenas 1/3 é considerada pobre, i.e., têm renda
domiciliar per capita mensal inferior a meio salário mínimo.

Apesar de ser local de moradia de quase 1 em cada 5 cariocas (e os próprios


institutos de pesquisa acreditam que esse número tenha aumentado), as favelas são
vistas ainda por boa parte dos cariocas como um espaço que não é a cidade, e seus
habitantes como não-cidadãos. Essa imagem fica evidente a cada vez que as favelas se
tornam tema de debate público, seja através de propostas de remoção, da construção de
muros em seu entorno, entre tantas que tentam resolver o “problema da favela”. Nesses
momentos fica evidente que, apesar da redemocratização do Brasil, as favelas ainda
convivem com uma forte repressão que não é igual para o resto da sociedade “não-
favelada”. Essa repressão vem tanto do Estado – especialmente seu aparelho policial –,
quanto de grupos locais de traficantes de drogas, cuja presença nas favelas modifica as
relações entre os moradores e desses com o resto da cidade. Dentro das favelas, o tráfico
de drogas estabelece uma nova dinâmica ao impor modos de conduta e pela restrição de
direitos básicos como o da inviolabilidade da propriedade e do corpo e o de ir e vir. Para
fora, a existência do tráfico faz com que seus moradores sejam cada vez mais
estigmatizados.

O problema da “criminalidade urbana” tem sido considerado pela sociologia há


bastante tempo, mas os autores, em sua maioria, identificam que nas últimas décadas
houve uma modificação na forma como o crime tem sido praticado e vivenciado nas
cidades brasileiras. ‘A violência aumentou’ é que todos falam e ouvem, e em grande
parte essa mudança está relacionada, no senso comum, ao crescimento do tráfico de
drogas. Ao analisar uma reportagem de revista semanal sobre a chacina de Vigário
Geral, em 1993, Machado da Silva (1995) afirma:

4
De início, vale notar que o termo criminalidade, tal como usado ao longo de toda a
matéria, é uma noção geral que reúne um variado leque de fenômenos distintos.
Entretanto, a simples lembrança de que a reportagem dedica toda uma seção ao
narcotráfico já permite perceber que esta atividade concreta fornece o núcleo central
daquela ideia. De fato, essa associação permeia toda a análise desenvolvida; nela,
‘criminalidade’ e ‘narcotráfico’ como que se definem mutuamente, até porque o
tráfico de drogas é concebido como o responsável pelo caráter orgânico da
criminalidade atual (Machado da Silva, 1995: 499).

O aumento da comercialização da cocaína demandou dos traficantes de drogas


uma reorganização de sua estrutura (Zaluar, 2004). Uma das conseqüências mais
visíveis dessa reorganização é o aumento do controle territorial das favelas por essas
quadrilhas, e da disputa entre quadrilhas por territórios. Além da preocupação com o
aspecto econômico, de garantir os pontos de venda, os traficantes passaram a exercer
um controle sobre a rotina dos moradores, decretando toques de recolher, lei do silêncio,
impedindo a circulação em áreas sob controle de quadrilhas rivais, determinando as
gírias e as marcas de bens que podem ser usadas; ou seja, um conjunto de regras de
comportamento que aumentam a dimensão da submissão imposta aos moradores para
além do âmbito da manutenção do controle territorial. O endurecimento do tráfico, em
termos de controle de território e de armamentos também foi seguido pelo
endurecimento do conflito com outras quadrilhas e com a polícia, o que aumenta a
insegurança e o medo de todos os moradores da cidade, e especialmente dos favelados.

Alba Zaluar (2003a) afirma que o período da redemocratização brasileira


coincidiu com a “dramática transformação na organização transnacional do crime, que
afetou principalmente as regiões metropolitanas, e nelas, os bairros populares e as
favelas” (2003: 210). Em “A Máquina e a Revolta” (1985) a autora já abordava as
conseqüências para os moradores do conjunto habitacional de Cidade de Deus da guerra
travada entre as quadrilhas rivais de traficantes de drogas e entre esses e a polícia, dando
destaque para o que os moradores acreditavam ser uma mudança no perfil dos bandidos
da área, que não seriam mais os “formados” (bandidos mais velhos, conhecidos dos
moradores, muitas vezes oriundo da favela), e sim “jovens descontrolados”. Nesse
trabalho ela afirma que um grande contingente de jovens pobres entrou para essas
quadrilhas no período, movidos por um sentimento de ‘revolta’ contra um sistema que
os humilhava, impedindo que saíssem da posição subalterna que era destinada aos
pobres.

5
O aumento da criminalidade, especialmente ligada ao tráfico de drogas, é
reconhecido pelos dados e sentido pela população em geral, e de acordo com Zaluar
(2004) está diretamente ligada à questão do crescimento e internacionalização do tráfico
de drogas. Para a autora não existe uma mudança qualitativa no perfil dos traficantes de
drogas, comparando os anos 1980 com o momento atual, pois em ambos os momentos
os líderes das quadrilhas eram homens jovens interessados tanto no comércio quanto no
poder que exerciam. O que teria mudado seria a forma como esses líderes seriam
escolhidos, e como o poder seria transferido em caso de prisão ou morte, pois no final
da década de 1980 essa decisão passou a ser tomada de fora da favela, e não mais por
bandidos locais. Assim, os traficantes selecionados para o posto de liderança não seriam
mais ligados à população local, o que para os moradores representou uma mudança de
traficantes criados na favela, e assim conhecidos, para outros que não teriam o mesmo
tipo de relação baseada no respeito pelos moradores (Zaluar, 2004: 358).

Outros autores encontram motivos para a mudança na criminalidade urbana na


questão da exclusão e da falta de cidadania, negada a uma parcela considerável da
população: os jovens pobres das favelas e periferias dos grandes centros urbanos. A
‘juventude excluída’ seria a principal vítima e a principal agente da nova criminalidade.
A análise de Luis Eduardo Soares (1996), por exemplo, afirma que a entrada desses
jovens no crime é uma busca de reconhecimento, uma forma de tornarem-se visíveis
para a sociedade que os ignora, ainda que essa visibilidade se dê através da violência
extrema. Assim, o combate à violência deve passar (junto com o combate ao tráfico de
armas), necessariamente, por políticas públicas voltadas para a integração à sociedade
da juventude pobre (Soares, 1996: 258), proporcionando uma alternativa de
reconhecimento que não seja a vida criminosa. A integração dessa população teria que
ser feita através de atuações mais focais, que garantissem o acesso aos direitos mais
básicos da cidadania, já que o Estado (por sua natureza excludente em relação a essa
população), estaria em crise quanto à sua capacidade de proteger os direitos de seus
cidadãos. A proposta de combater a criminalidade com atuações focadas na juventude
moradora de favelas é implementada em diversos “projetos sociais” existentes hoje no
Rio de Janeiro.

Machado da Silva (1995), por sua vez, afirma que a violência urbana não é
causada por um desvio da ordem institucional vigente – ou seja, em função de uma crise
de legitimidade do Estado –, nem um conflito entre grupos políticos que resultem em

6
uma transformação do sistema social. Para ele, a criminalidade atual tem as
características de uma nova sociabilidade, que não é nem contrária nem alternativa à
sociabilidade convencional, mas paralela. Assim, a criminalidade urbana não é
conseqüência da crise de legitimidade do Estado Brasileiro, e, portanto, deve ser
entendida a partir de outros pressupostos (Machado da Silva, 1995: 507). O autor
defende a separação analítica dessas duas formas paralelas e contíguas de sociabilidade
– a convencional e a que ele denominou ‘sociabilidade violenta’ (Machado da Silva
1995, 2002, 2004, 2008a). Na sociabilidade violenta o que orienta a ação do ator é a
força, e a única resistência do ambiente à ação desse ator é física; o ator sabe a força que
tem e a força que os outros atores envolvidos têm, e somente essa é a sua limitação. Não
existe, assim, “acordo, negociação, contrato ou outra referência comum compartilhada”
(Machado da Silva, 2004: 40). Toda a interação existente se resume à submissão do
mais fraco pelo mais forte, sem que a vontade e a subjetividade dos outros envolvidos
seja considerada5.

Nesse sentido, os moradores de favela estão, como todos os moradores das


cidades, inseridos ao mesmo tempo nas duas sociabilidades, mas estão mais diretamente
submetidos à sociabilidade violenta que o resto da população. No caso da sociabilidade
convencional, apesar da posição subordinada em que se encontram, os favelados
conseguem ter projetos individuais e coletivos, possuem ação coletiva, e estão dessa
forma “ativamente engajados (as) no entendimento de sua própria situação,
independente da direção das praticas que esse entendimento indica” (Machado da Silva,
2004: 42). Porém, sua inserção na sociabilidade violenta é, segundo o autor, sempre
uma submissão, sem a possibilidade de condução autônoma de suas ações. A ‘lei do
silêncio’, que impede que os moradores falem sobre a opressão que sofrem do tráfico,
seria para o autor a conseqüência mais perversa da sociabilidade violenta, pois obriga os
moradores de favela a continuarem a conduzir sua vida sem poderem se comunicar a
respeito de seu cotidiano, por medo e desconfiança, e assim impedidos de “se apropriar
coletivamente da ‘outra parte’ dessa mesma normalidade cindida” (Machado da Silva,
2004: 43).

5
Neste sentido, não se trata de um tipo puro de dominação, como conceituou Weber, pois esta “costuma
apoiar-se internamente em bases jurídicas, nas quais se funda a sua legitimidade” (Weber, ano: 128,
grifos do autor), enquanto a submissão imposta pelos traficantes aos moradores de favela não precisa
basear-se na legitimidade já que está apoiada na força.

7
O conceito de que a violência que experimentamos nos dias atuais é diferente da
conhecida anteriormente encontra respaldo na análise proposta por Michel Wieviorka
(2006). Para esse autor, não é possível abordar a questão da violência hoje da mesma
forma que há vinte ou trinta anos atrás, pois o mundo transformou-se consideravelmente
nesse período de tempo. O fim da Guerra Fria, o declínio do movimento operário (que
nos países capitalistas centrais teve características diferentes das encontradas nos países
de capitalismo tardio), a globalização e o reconhecimento de identidades particulares
(que o autor define como “a era das vítimas”), apresentam novas condições onde a
violência aparece com um repertório diferente do que tinha antes dessas transformações.
Assim, as diferentes abordagens para a questão da violência – seja as que privilegiam
sua função como ‘válvula de escape’, as que consideram sua dimensão instrumental ou
as que valorizam as relações entre cultura e violência – não dão conta de dimensões
importantes da violência. Não explicam, por exemplo, a crueldade, a violência gratuita,
quando o ator não apenas destrói o outro, mas a si próprio também. Para Wieviorka,
essas novas dimensões só poderiam ser captadas por uma abordagem que reconhecesse
a lógica de ‘perda de sentido’ que caracteriza essas ações – que pode ser dar tanto como
déficit quanto como sobrecarga de sentido. Para tanto, o autor propõe o conceito de
Sujeito – enquanto a capacidade de cada ator de se construir, decidir sua vida e fazer
suas escolhas – para compreender esse fenômeno.

Para além da questão da natureza dessa nova criminalidade, a forma como os


moradores de favela são vistos pelo resto da população também se modificou. Apesar
do estigma contra os favelados ter sempre existido, a concepção de que os moradores de
favelas são cúmplices dos traficantes que dominam seus locais de moradia tem se
radicalizado. Os trabalhos de Janice Perlman (1977) e Anthony e Elizabeth Leeds
(1978) demonstram que os favelados, nas décadas de 1960 e 1970, também enfrentavam
um forte sentimento de rejeição por parte da população (não-favelada) em geral e
também de muitos pesquisadores. A preocupação daqueles autores era pensar a forma
como os favelados integravam-se à ordem social vigente, e assim buscaram combater
com suas pesquisas a visão de que os favelados seriam ‘atrasados’ e não possuiriam os
valores capitalistas modernos de trabalho, organização coletiva, moral cristã, etc. Leeds
e Leeds, por exemplo, afirmam que a concepção corrente sobre os favelados estava
condensada em dois mitos: a ruralidade e a marginalidade dos favelados (Leeds e Leeds,
1978: 86), o que reforçava o afastamento dessa população da sociedade mais ampla. Em

8
suas pesquisas, apesar de importantes diferenças no enfoque teórico e nos pressupostos
analíticos, todos os três autores demonstraram que os favelados possuíam os valores
modernos e urbanos que organizavam a sociedade brasileira, e que o estigma que
sofriam impedia que pudessem reivindicar sua participação na vida social do país.

Nos anos 1980, quando a questão da criminalidade passa a ocupar o debate


público a respeito das favelas e áreas populares cariocas, Zaluar (1985) aborda o
problema do estigma que os moradores do conjunto habitacional Cidade de Deus
passaram a sofrer, já que o aumento da violência no local gerou uma cobertura por parte
da mídia que estendeu para todos os moradores a adesão à criminalidade e violência dos
grupos de traficantes locais, aumentando o estigma que essas pessoas já vivenciavam.
Para Leite (2000), que analisou o período dos anos 1990, o aumento da violência
vivenciado nessa ocasião foi interpretado por diversos atores das classes médias,
jornalistas, políticos e acadêmicos como a transformação do Rio de Janeiro de uma
cidade ‘maravilhosa’ em uma cidade ‘partida’ (termo divulgado a partir do livro de
Zuenir Ventura, de 1994). Essa ruptura estaria ligada ao esgarçamento do tecido social,
em função de um modelo econômico e de expansão da cidade excludente para a maioria
da população. Mas a imagem da ‘cidade partida’ também aludia, segundo a autora, a
uma oposição entre morro (e subúrbios) e asfalto, ou seja, entre as classes pobres e ricas
da cidade, e ao sentimento de medo e insegurança que os ricos sentiam em relação aos
pobres. O conceito de ‘cidade partida’ se propunha a ser uma crítica à transformação
das favelas e subúrbios em os bárbaros da cidade, mas de acordo com a autora acabou
por “reforçar os nexos simbólicos que territorializavam a pobreza e a marginalidade nas
favelas cariocas” (Leite, 2000: 74).

A representação coletiva de que existiria uma guerra em curso, entre ‘o mundo


civilizado’ do asfalto e a ‘barbárie’ dos traficantes localizados nas favelas justificaria,
assim, atitudes mais agressivas por parte da polícia, inclusive contra todos os moradores
de favela. Para Leite essa concepção seria cristalizada em uma “Metáfora da guerra”,
relacionada ao surgimento de um “pensamento refratário ao respeito e/ou
reconhecimento de direitos de cidadania de segmentos considerados potencialmente
disruptivos da ordem social” (Leite, 2000: 75). A metáfora da guerra justificaria a
ambigüidade para com os direitos dessa população por considerá-la prejudicial para o
combate à violência, e seria fortalecida cada vez que a percepção do aumento da
violência na cidade se ampliasse, convocando a população a escolher um dos lados

9
dessa guerra. Sua força foi tanta que fez parte da agenda política dos candidatos à
prefeitura e ao governo do estado na época (Leite, 2000: 75).

Comparando os argumentos de Perlman (2002 [1977]) e Leeds & Leeds (1978) à


análise de Alba Zaluar (1985) e Márcia Leite (2000) é possível identificar um trabalho
de diferenciação (ou limpeza moral) por parte dos favelados, buscando reforçar suas
identidades de trabalhadores e, portanto, integrados ao sistema social capitalista da
sociedade brasileira. No entanto, enquanto que nos anos 1960 e 1970 a distinção era
feita em relação aos vagabundos – ladrões, malandros, bêbados, pessoas sem trabalho
fixo ou valores morais –, hoje o esforço é maior, porque a distinção é feita em relação
aos traficantes e assassinos identificados como uma séria ameaça à ordem civilizada,
como inimigos principais da ordem pública. Dentro desse forte contexto de estigma, as
populações faveladas ficaram isoladas do resto da cidade, enfrentado sozinhas tanto a
violência do tráfico de drogas quanto a da polícia. A partir da compreensão de que
estaríamos em “guerra”, os moradores de favela não seriam diferenciados do ‘inimigo
público’ representado pelos traficantes, e por isso são tratados pelos policiais na maioria
das vezes como potenciais alvos. Pesquisas feitas sobre a atuação da polícia mostram
que o número de vítimas em ações realizadas nas favelas é seis vezes maior que no
“asfalto”; além disso, exames dos laudos cadavéricos apontam que os tiros dados pelos
policiais nas vítimas visam partes vitais do corpo, demonstrando uma “intenção
homicida” (Cano, 1997: 65). Tal tratamento diferenciado é aceito por grande parte da
população, que passa a considerar os favelados “matáveis” (Farias, 2008), e resulta em
grande descontentamento e desconfiança dessa população em relação à polícia. Como
afirma Leeds (2003):

O modo pelo qual o Estado reage ao tráfico de drogas nas favelas constitui um
exemplo atual (numa série de paralelos históricos) de repressão do ‘comportamento
aberrante’ da classe inferior e, logo, de repressão de segmentos expressivos de toda
uma classe (Leeds, 2003: 235).

A questão do estigma que envolve todos os moradores de favela torna-se um


obstáculo especialmente para as lideranças comunitárias que pretendem falar pelos
moradores de favela. Para esses, apresentar-se no espaço público, seja frente ao
governo, financiadores de projetos sociais ou à mídia, exige que primeiro eles provem

10
não falar pelos traficantes que habitam suas localidades. A “limpeza moral” torna-se
condição para sua legitimidade enquanto representantes dos moradores ‘de bem’ das
favelas. Todavia, a contigüidade que vivenciam com os traficantes muitas vezes é
acionada por essas organizações supralocais quando sua entrada nas favelas é
necessária, como, por exemplo, nas situações em que a prefeitura confirma com as
associações de moradores a autorização para a realização de obras e serviços, exigindo
que a associação demande aos traficantes de drogas pela ‘autorização’ e eximindo-se
assim do contato com eles (Miranda e Magalhães, 2004). Assim, ao mesmo tempo em
que se exige o afastamento das lideranças em relação às quadrilhas de tráfico de drogas,
essa mediação é requisitada em diversos outros momentos, o que traz grandes
dificuldades para as associações – que são frequentemente identificadas como
coniventes e cúmplices dos traficantes.

Fica claro então o quanto à atuação dessas lideranças é limitada, particularmente


no que diz respeito à denúncia das violências sofridas pela população e a intervenção no
debate a respeito da segurança pública. Em função das limitações de ação impostas pelo
tráfico, somente parte da violência cometida contra os moradores de favela pode ser
denunciada – a violência policial. A atuação da polícia dentro das favelas, ou junto à
população pobre no Rio de Janeiro em geral, tem sido marcada pela violência e injustiça
com que os agentes policiais agem, o que coloca os moradores entre dois opressores
poderosos. Aliada à violência policial está o problema da corrupção, que é parte
fundamental da organização das quadrilhas de tráficos de drogas. Esses dois aspectos da
atuação policial dentro das favelas, ou como opressores externos ou aliados dos
opressores internos, faz com que a população das favelas encare um encontro com a
polícia sempre como uma possível situação de violação dos seus direitos civis ou como
um encontro com ‘protetores’ dos traficantes (Leeds, 2003). Dessa forma, pela relação
com a polícia ser marcada por essa imprevisibilidade, é que os moradores de favela
muitas vezes afirmam preferir os traficantes à polícia.

A crítica à violência policial é constante entre os moradores de favela, mas o


pensamento cristalizado no conceito “Metáfora da Guerra” (Leite, 2000) faz com que
aqueles que não estão do lado da polícia sejam considerados, por contraste, aliados ou
cúmplices dos traficantes de drogas. Da mesma forma, por parte dos traficantes todos
aqueles que se colocarem contra a opressão que exercem são vistos como inimigos e
correm o risco de serem assassinados. Assim como todos os moradores de favela, as

11
lideranças comunitárias enfrentam o estigma de serem tratados como “cúmplices dos
traficantes ou como informantes da polícia” (Leeds 2003: 251). É fato que muitas
lideranças foram assassinadas ou tiveram que fugir de suas localidades por colocarem-
se contra os interesses dos grupos armados. Até as manifestações feitas contra a
violência policial são muitas vezes reprimidas, com o argumento de serem
manifestações de apoio aos traficantes. Como afirma Leeds (2003), o que seria
permitido dentro das regras do processo democrático (opor-se à violência exercida
contra os moradores) é uma dificuldade para as associações de moradores, o que
enfraquece sua atuação e ameaça o senso de coletividade dos moradores.

Nesse contexto – sendo pressionados pelos traficantes, estigmatizados pela


polícia e pela população em geral, e cooptados pelo Estado –, sobra pouco espaço para a
atuação das associações na defesa dos interesses dos moradores. Porém, mesmo dentro
deste contexto de submissão outras formas de organização coletiva têm surgido dentro
dos espaços das favelas. Organizações não-governamentais que executam “projetos
sociais” nas favelas, grupos culturais, reunindo artistas de diversos tipos, associações de
familiares de vítimas de violência em busca de justiça e reparação, etc., representam um
novo espectro de formato associativo que tem atuado com maior intensidade e obtido
maior reconhecimento. Particularmente as ONGs têm sido vistas como “novos sujeitos
na cena política”, não apenas nos espaços da favela, mas em toda “a cena política e
social nacional e internacional” (Cicconello, 2006).

O termo ONG aparece nas pesquisas oficiais englobando diferentes categorias


de instituições, como na pesquisa feita pelo IBGE e divulgada em agosto de 20086. Sob
o termo Fundações Privadas e Associações sem fins lucrativos encontram-se
congregações religiosas, associações patronais e profissionais, organizações de
assistência social, de defesa de direitos (que inclui associações comunitárias, de
moradores e de defesa de minorias)7, entre outras, o dificulta mensurar o real tamanho
das organizações não-governamentais que executam “projetos sociais” como

6
Ver Por dentro do Universo das ONGs. Revista Época, 11 de agosto de 2008.
7
Segundo dados do IBGE, e computados pela Revista Época, a distribuição das ongs é a seguinte: 24,8%
são Congregações Religiosas; 17,8% são entidades de Defesa de direitos (sendo metade associações
comunitárias, um terço são associações de moradores e 10% entidades de defesa de grupos específicos e
minorias); 17,4% são associações patronais e profissionais; 13,9% são entidades de Cultura e recreação;
11,6% são de Assistência Social; 5,9% Educação e pesquisa; 1,3% Saúde; 0,8% Meio ambiente e
proteção animal; 0,1% Habitação e 6,4% outras atividades.

12
mencionado acima. De qualquer forma, a pesquisa citada acima traz informações
importantes para estimar o tamanho deste setor. Segundo o IBGE, em 2005 elas eram
mais de 338 mil, e a cada dia 57 ONGs são criadas no país. De acordo com dados
citados pela Revista, essas organizações receberam em 2007 R$ 1.150 milhões – o que
representa uma duplicação dos investimentos sociais feitos no ano de 2001.

Pelos números fornecidos pelo IBGE não é possível estimar a quantidade de


ongs que atualmente executam “projetos sociais” no Rio de Janeiro, particularmente em
suas favelas e territórios periféricos, mas é possível imaginar que não são poucas,
especialmente porque muitas delas atuam junto ao poder público nas diversas políticas
executadas nos últimos anos nesses espaços8. A elas somam-se os grupos culturais e
associações mencionadas acima, atuando junto à mesma população. Ainda que com
abordagens, pressupostos e intenções variadas, essas novas organizações de moradores
de favela parecem gravitar em torno da temática da juventude moradora de regiões
periféricas e de favelas. São jovens os principais participantes de grupos e movimentos
culturais fortemente identificados com esses territórios (por exemplo, o funk, o hip-hop,
o jongo, etc. 9); e são também jovens o público-alvo principal de ações públicas e
privadas realizadas nesses espaços que visam o “combate à pobreza e à vulnerabilidade
social”. É evidente que tal escolha não é aleatória ou (somente) ideológica: não apenas
os jovens são as maiores vítimas de homicídios dolosos no Rio de Janeiro como são
também os jovens “negros, mulatos, pardos e quase brancos” que se engajam em
“quadrilhas de traficantes, quadrilhas de assaltantes” e iniciam uma “guerra fratricida”
(Zaluar, 2003b). Mas de forma similar à construção do “problema da favela” como um
problema de segurança pública, a questão da juventude pobre hoje (e desde a última
década) é apresentada como a questão da potencial adesão deste grupo etário à
criminalidade violenta (Sposito e Carrano, 2003; Abramo, 1997), e a atuação de muitas
dessas organizações, as não-governamentais particularmente, passou a ser voltada para
“resgatar” a juventude dos riscos dessa adesão. Vale ressaltar, contudo, que muitas
dessas organizações desenvolvem também o papel de mediadoras entre as populações
faveladas e os moradores do “asfalto”, através de suas apresentação artísticas e também
pela participação em palestras, programas de TV e outros espaços disponíveis. Seus

8
Refiro-me aqui ao Projeto Favela-Bairro, ao Plano de Aceleração do Crescimento para as Favelas, o
Programa Nacional de Segurança e Cidadania, entre outros. Tais políticas públicas serão abordadas com
mais profundidade no Capítulo II desta tese.
9
Ver, entre outros, Herschmann (2005), Souto (2003) e Cecchetto (2003).

13
participantes buscam não apenas dar visibilidade ao trabalho que realizam, mas também
comprovar – através da apresentação de si mesmos – que “nem todos os favelados são
bandidos”. Dessa forma, aproximam estratos sociais que se encontram afastados
geográfica e socialmente, e combatem a generalização, “palavra-chave da ‘cultura do
medo’” (Novaes, 2003: 153).

O contexto geral apresentado acima, de forma bastante resumida e sem abordar


diversos outros aspectos da literatura das ciências sociais que colocam sobre as favelas
seu foco de interesse analítico, serve para situar o debate maior em que esta tese está
inserida. Alguns dos temas e das abordagens teóricas que foram anteriormente
mencionados serão recuperados ao longo deste texto. Todavia, esta tese fala sobre um
caso específico, circunscrito a um território da cidade do Rio de Janeiro. A favela do
Pereirão tem uma história particular e, além disso, está localizada em uma região do Rio
de Janeiro que é considerada privilegiada em termos de aparelhos urbanos, transporte,
serviços públicos, etc. Por outro lado, a pesquisa ali realizada permitiu recolher
evidências da proximidade do cotidiano dos moradores do Pereirão com o de outras
favelas cariocas – caracterizadas como mais violentas e com menor acesso a bens
públicos. Dados do Censo 2000 (IBGE) demonstram também que há uma grande
distância entre as condições socioeconômicas do Pereirão e do bairro de classe média no
qual está localizado:

Laranjeiras Pereirão

Moradores alfabetizados 94% 81%

Responsáveis pelos domicílios particulares permanentes


54% 3%
com mais de 15 anos de estudo

Responsáveis pelos domicílios particulares permanentes


61% 2%
com renda de 10 ou mais salários mínimos (de 2000)

Renda média do responsável pelos domicílios


19.6 3
particulares permanentes (em salários mínimos de 2000)

14
No entanto, busquei ao longo do texto construir pontes entre o caso do Pereirão e
o do conjunto de favelas cariocas – ainda que ciente da heterogeneidade intra e entre
favelas característica desse fenômeno. Ainda que a partir de um “caso particular do
possível”, acredito que a reflexão sobre o Pereirão auxilie a refletir sobre as
complexidades que definem a situação das favelas no momento atual da história
brasileira e da relação entre a cidade e seus moradores, especialmente aqueles que
moram em territórios estigmatizados. Assim, esta tese está organizada em quatro
capítulos, além desta introdução e da conclusão.

No primeiro capítulo, apresento o Pereirão e discorro sobre suas especificidades,


especialmente no que diz respeito à sua construção como uma “favela tranquila”.
Abordo também quais os mecanismos acionados pelos moradores para tentar manter
essa representação da “tranquilidade” local, e as tensões resultantes dessas tentativas.
No segundo capítulo analiso o caso da associação de moradores local e as dificuldades e
soluções encontradas para a situação de paralisia em que ela se encontra.
Particularmente, abordo como o risco representado pelos traficantes de drogas limita e
cerceia a atuação da associação de moradores, ainda que sua força não seja reconhecida
pelos dirigentes como um obstáculo à ação coletiva. No terceiro capítulo investigo o
caso da organização não-governamental que atua na localidade, como ela foi formada e
para que fins, e como funciona. Discorro ainda como ela enquadra a temática da
violência e da vulnerabilidade juvenil, dentro do contexto mais amplo de atuação das
ONGs em favelas cariocas. No último capítulo analiso as rupturas e as continuidades
existentes entre associações de moradores e organizações não-governamentais no que
diz respeito ao tratamento dado por elas à questão da violência urbana e dos direitos dos
moradores de favelas, fazendo referência a uma selecionada e parcial bibliografia sobre
movimentos sociais. Por fim, na conclusão discorro sobre o significado da
“tranquilidade” do Pereirão a partir da oposição entre voz e silêncio, sendo voz a
possibilidade de se apresentar no espaço público como um ator portador de direitos e
silêncio a ausência dessa possibilidade.

Antes de iniciar a tese, contudo, é preciso fazer algumas ressalvas


metodológicas. O trabalho empírico que subsidia a análise aqui apresentada foi
realizado dentro do âmbito do Projeto de Pesquisa “Rompendo o cerceamento da
palavra: a voz dos favelados em busca de reconhecimento”, coordenada pelo Prof. Dr.
Luiz Antonio Machado da Silva e realizada por uma rede de pesquisadores de diferentes

15
universidades e instituições10, e financiada pela Faperj e pela Unesco. A pesquisa foi
feita entre os anos de 2005 e 2007, e recolheu relatos de 150 moradores de 45 favelas
cariocas através da realização de 15 grupos focais. Tais grupos focais foram
organizados de forma a permitir que os moradores de favelas sentissem-se seguros para
relatar os tipos de coerção pelas quais passam diuturnamente. Dessa forma, eles foram
reunidos em ambientes fora das favelas, em salas alugadas que permitem a gravação das
conversas (aceita pelos participantes). Além disso, todos os participantes convidados
possuíam contanto pessoais anteriores com pesquisadores ligados ao grupo, de forma a
construir um ambiente de confiança onde pudessem abordar temas sobre os quais os
moradores de favela se sentem impossibilitados de falar, por medo de retaliações.
Assim, esses grupos focais foram nomeados “coletivos de confiança”. Outra fonte de
material empírico para a pesquisa foi o trabalho de campo realizado em três favelas
cariocas: uma considerada “tranquila” (sem tráfico de drogas ostensivo nem grandes
operações policiais), outra violenta e uma terceira onde há a presença de grupos de
milícia11. O resultado dessa pesquisa foi publicado no livro “Vida sob cerco: violência e
rotina nas favelas do Rio de Janeiro” (Machado da Silva, 2008c).

Dessa forma, a pesquisa de campo aqui apresentada começou dentro da pesquisa


acima mencionada, mas ainda se estendeu durante alguns meses de 2008. Ela se deu na
favela considerada “tranquila” pelo desenho da pesquisa: a Favela Vila Pereira da Silva,
mais conhecida como Pereirão, localizada no bairro de Laranjeiras, Zona Sul do Rio de
Janeiro. Aqui vale uma observação em relação à difícil decisão de tornar público o
nome da localidade onde foi realizada a pesquisa. No momento da publicação dos
resultados da pesquisa, a equipe optou pelo anonimato em relação não apenas aos
entrevistados, mas também ao nome das três localidades pesquisadas. No entanto, a
história recente do Pereirão já foi alvo de trabalhos científicos (Cf. Soares, 2005) e,
portanto, já é de conhecimento público. Além disso, suas especificidades – a vizinhança
com o BOPE, a existência de uma pousada e de um grupo de artistas ligados à produção
audiovisual – tornaram-na facilmente reconhecível. Em função desses aspectos decidi
enunciar seu nome, ainda que mantendo o anonimato dos moradores entrevistados
(através da escolha de nomes fictícios e de biografias modificadas). Durante o trabalho

10
São elas: Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (Iuperj); Instituto Brasileiro de Análises
Sociais e Econômicas (Ibase); Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj); Universidade Federal
Fluminense (UFF); e Universidade do Norte-Fluminense (Uenf).
11
Sobre os campos feitos em outras favelas ver Machado da Silva (org.), 2008; Mesquita, 2008.

16
de campo garanti aos entrevistados o anonimato de seus depoimentos, mas, como
sempre cogitei mencionar o nome da favela, todos os informantes foram informados
dessa possibilidade. Estou ciente que tal escolha pressupõe certos riscos, e informações
foram retiradas do texto para proteger alguns entrevistados. Mas como toda escolha,
esta também oferece perdas e ganhos, e nessa intricada aritmética achei que o trabalho
ganharia mais em densidade e em riqueza de informações com a divulgação do nome.

Assim, entre 2005 e 2008 fiz trabalho de campo no Pereirão (ininterruptamente


durante o ano de 2005, com alguns retornos pontuais em 2006, 2007 e 2008) e
entrevistei 20 moradores (cujos perfis sociodemográficos e curtas biografias estão
disponíveis no anexo I). Mas, acima de tudo, observei como os moradores vivenciam
cotidianamente os efeitos da dinâmica especial de ocupação daquele território pelos
traficantes de drogas. Como dito acima, o Pereirão é considerado uma favela
“tranquila”; em certas situações essa condição local é interpretada e acionada pelos
moradores como um recurso, um capital simbólico (Bourdieu, 2004). Em outros
momentos, ela é apresentada como um problema (especialmente nos momentos de
reivindicar ao poder público investimentos na localidade). Dessa forma, o objeto desta
tese são as interpretações dos moradores do Pereirão (as interpretações “nativas”) sobre
a localidade, sobre a relação que estabelecem com a submissão imposta pelos traficantes
de drogas (que, de acordo com a situação, estão ausentes ou presentes da localidade
segundo as interpretações “nativas”), a forma como grupos organizados de moradores
interpretam e movem-se dentro do território, e como articulam suas ações para fora
dele. Particularmente, interessou-me a questão da ação coletiva e das possibilidades de
apresentação no espaço público para esses moradores, a partir dessa experiência
específica.

É importante sublinhar que, apesar de discutir a forma como os moradores


identificam a presença ou ausência de traficantes de drogas em seu território, e como
essa identificação modifica-se de acordo com a situação em que estão concernidos, não
busquei em nenhum momento investigar e determinar se as declarações dos moradores
sobre o tráfico de drogas local eram falsas ou verdadeiras; se haveria ou não tráfico de
drogas na localidade. Busquei apenas entender o que eles queriam me dizer quando
afirmavam “aqui não tem tráfico” e quando diziam “aqui é uma favela como as outras”.
Apesar de saber as limitações desse tipo de investigação, busquei compreender a

17
representação do tráfico de drogas “a partir do ponto de vista do nativo”, tentando
seguir as recomendações de Geertz (1983):

To grasp concepts that, for another people, are experience-near, and to do so well
enough to place them in illuminating connection with experience-distant concepts
theorists have fashioned to capture the general features of social life, is clearly a task
at least as delicate, if a bit less magical, as putting oneself into someone else's skin.
The trick is not to get yourself into some inner correspondence of spirit with your
informants. Preferring, like the rest of us, to call their souls their own, they are not
going to be altogether keen about such an effort anyhow. The trick is to figure out
what the devil they think they are up to (Geertz, 1983: 58).

Buscando entender “o que diabos eles pensam que estão fazendo”, tentei
contrastar teorias “nativas” com outras explicações – do senso comum e da teoria. Para
tanto, segui as pistas apresentadas por Peirano (1992):

Relembro também que, na antropologia, de Malinowski a Geertz, passando por


Lévi-Strauss, sempre houve lugar para uma consciência crítica das representações
de outros povos e outros lugares. A antropologia tem como projeto formular uma
idéia de humanidade construída pelas diferenças, resultado do contraste dos nossos
conceitos (teóricos ou de senso comum) com outros conceitos nativos (Peirano,
1992: 4).

Ou ainda:

Mas todo bom antropólogo aprende e reconhece que é na sensibilidade para o


confronto ou o diálogo entre ‘teorias’ acadêmicas e nativas que está o potencial de
riqueza da antropologia (Peirano, 1992: 10).

Por fim, vale um último comentário de caráter metodológico. Minha entrada no


campo foi intermediada por uma colega de equipe da Pesquisa “Rompendo o
cerceamento da palavra: moradores em busca de reconhecimento”, que em função de
contatos feitos durante outra investigação conheceu dois diretores da associação de
moradores local. O objetivo inicial da minha investigação era realizar uma observação

18
de inspiração etnográfica como parte do levantamento de dados empíricos para a
pesquisa, que visava descrever e analisar os relatos de moradores de favela sobre
práticas violentas e como eles compreendiam e vivenciam o fenômeno coletivamente
identificado como “violência urbana”. Assim, minha tarefa no Pereirão era observar a
rotina dos moradores e como eles lidavam com as situações de tensão e conflito geradas
pela atuação dos traficantes e/ou da polícia. Porém, em função da peculiaridade do
Pereirão – ser uma favela “tranquila”, sem confrontos entre traficantes e entre esses e os
policiais – meu olhar foi direcionado para compreender a dinâmica dessa
“tranquilidade”, e também seus limites. Pois somente depois de decorrido algum tempo
de minha presença na favela as pessoas passaram a falar a respeito do tráfico de drogas.
Tais relatos se deram em contextos de conversas informais, referida às atividades
rotineiras (conversas de vizinhos nos portões, almoços, passeios etc.) fruto de minha
convivência com aquelas pessoas. Quando a pergunta sobre o tráfico de drogas era feita
de forma direta, mesmo com o gravador desligado, as pessoas não respondiam, ou então
repetiam o mesmo argumento do “lugar tranquilo”12. Por causa disto, o gravador foi
aposentado após a primeira semana de trabalho de campo, só sendo utilizado em
algumas poucas entrevistas (especificamente em quatro delas, com participantes da
associação de moradores e da ONG). Assim, os materiais empíricos sobre os quais se
assenta a minha análise são, sobretudo, anotações de observações feitas em campo e
relatos de conversas informais com os moradores.

Ao longo do trabalho de campo tive contato com inúmeros moradores, tanto em


situações formais de entrevista quanto em momentos informais, mas boa parte dessas se
deu em companhia do presidente da associação de moradores local, Antônio13. Quando
este não me guiava pessoalmente (inclusive ao entrar e sair da favela), outros moradores
se propunham a fazê-lo; mesmo em ocasiões onde marquei encontro com moradores
sem a intermediação do presidente, estes também faziam questão de me acompanhar.
Quando afirmei não precisar de guia justificaram a companhia dizendo que eu me
perderia por não conhecer o local – o que realmente aconteceu no primeiro dia que
consegui me desvencilhar dos meus guias, e em alguns outros depois disso. Apesar do
acompanhamento constante, em nenhum momento me senti escoltada, ao contrário; a

12
Já é possível adiantar, por essa informação, que apesar da “tranquilidade” propagada os moradores do
Pereirão possuem a palavra cerceada (Machado da Silva, 2008) de forma bastante similar aos outros
moradores de favelas; dimensão que será discutida detalhadamente mais à frente.
13
Nome fictício.

19
presença dos moradores ao meu lado parecia uma gentileza, ainda que evidenciasse
minha posição de visitante na favela. Além de guia, Antônio se tornou também meu
principal informante, e um dos poucos moradores a me conceder entrevistas gravadas14.
No começo do trabalho de campo não só ele me escoltava como me ajudou a recrutar os
primeiros entrevistados, me acompanhando nas entrevistas (ainda que em muitas delas
permanecesse fora das casas, “para me dar mais liberdade”, segundo ele). Ainda que a
possibilidade de ter Antônio escolhendo meus entrevistados não fosse muito sedutora,
não recusei sua ajuda, e por causa dele comecei a construir minha rede de informantes.
Como para ele eu deveria estar escrevendo a “história” do morro, no começo conversei
com muitos moradores idosos; mas com o tempo minha rede de contatos passou a
incluir também moradores de outras faixas etárias.

Após um mês de trabalho fui convidada por Antônio para participar de uma
reunião na casa de uma moradora da rua que leva à favela (no “asfalto”), a respeito de
um vídeo que ela gostaria de fazer sobre a história da favela. Nessa reunião fui
convidada (e de certa forma convocada) pelo presidente a ajudar na realização do vídeo
entrevistando os moradores e, apesar da minha recusa inicial por receio de que minha
ligação com um vídeo sobre a história da favela pudesse prejudicar meu trabalho na
localidade, aceitei o convite/convocação. Durante dois meses, junto com uma equipe de
vídeo formada por participantes de uma ONG sediada em outra favela, além de alguns
membros da ONG local15, realizei dezenas de entrevistas com moradores idosos. Essa
experiência foi útil não só para me aproximar do presidente da associação, como para
propiciar meu contato com os jovens moradores participantes da ONG. Em função
dessa dupla entrada – pela pesquisa e pelo vídeo – entrevistei muitos moradores antigos
e suas famílias. As entrevistas seguiam um roteiro parecido: era só perguntar sobre o
passado na favela que as lembranças se repetiam. Árvores cheias de fruta, bosques,
passeios sem preocupação, sem luz nas ruas e nas casas, histórias de fantasmas de
escravos mortos ali na senzala, de lobisomem e mula-sem-cabeça... Diziam-me: “era
como uma fazenda”. As lembranças também se referiam à união entre os moradores, ao
sentimento de comunidade em sua acepção mais clássica16 - local da proximidade e do
afeto. Este sentimento de comunidade era reforçado pelos elogios feitos frequentemente

14
O material sobre Antônio e a associação de moradores foi analisado no capítulo 2 desta tese.
15
A iniciativa foi analisada no capítulo III desta tese.
16
Refiro-me às concepções de Tonnies (1957), onde a comunidade se manifesta através das relações de
afeto, do hábito e da memória.

20
à localidade, ao prazer de habitar ali, aos convites para que eu me mudasse também para
o Pereirão.

Essa foi a tônica do primeiro ano de trabalho de campo realizado na Favela do


Pereirão. Após um afastamento durante as férias, o retorno já se deu em uma nova
dinâmica: algumas vezes em que fui à localidade não encontrei Antônio, que estava fora
da associação resolvendo algum problema, e essa ausência me possibilitou conhecer e
frequentar com mais familiaridade o espaço da ONG TV Morrinho. Assim, pude
entrevistar alguns dos meninos, observar a preparação para as viagens, participar do
momento em que voltavam dessas turnês e, principalmente, acompanhar o lançamento
do documentário sobre o grupo e a repercussão da ida deles à Bienal de Arte de Veneza,
em 2007. A partir da oportunidade de conhecer e investigar a atuação da ONG meus
interesses analíticos passaram a ser não apenas a construção da representação local de
“favela tranquila”, mas também como associação de moradores e ONG atuavam dentro
daquele território, quais as semelhanças e as diferenças no tipo de atuação, e como elas
estavam orientadas para a questão da criminalidade violenta tanto em sua dinâmica local
quanto na discussão mais ampla sobre moradores de favelas, juventude e violência
urbana. No final do trabalho de campo a direção da associação de moradores mudou, e
começou a gestão de Jennifer que, em função da minha necessidade de finalizar o
trabalho de campo para começar a redação, foi entrevistada por mim apenas uma vez.

Inicialmente eu não pretendia realizar a pesquisa para minha tese de doutorado


(sobre associativismo em favelas cariocas) no Pereirão, mas sim em favelas com maior
tradição organizativa. Mas o caso daquela pequena favela, cujos moradores a
apresentavam como “diferente das outras” em alguns momentos, mas que de acordo
com a situação e com os agentes envolvidos reivindicava uma condição de “igual às
outras” passou a ser, para mim, um caso bom para pensar novos formatos associativos
adotados por moradores de favelas, e como eles estão “ajustados17” ou não ao contexto

17
É importante destacar que a construção analítica expressa no conceito de “ajustamento” aqui utilizado
não comporta um julgamento ou avaliação moral: como ressaltam Boltanski e Thevenot (1991: 50 e
seguintes) tal ajustamento pode estar orientado para o sentido de justiça (algo ser justo ou injusto) ou para
o sentido de justesse, que significaria bom (ou mal) funcionamento, seja de coisas ou de pessoas. É neste
segundo sentido que utilizo o termo “ajustamento”, ou seja, a maior ou menor “adequação” dessas
organizações ao enquadramento atual do tema das favelas. O conceito recupera também a idéia weberiana
de ação racional com fins a um objetivo (Weber, 2004): seriam “ajustadas” as ações que conseguem
chegar com maior eficácia aos objetivos determinados, e são “desajustadas” as ações que não alcançam os
fins desejados. A dimensão da justiça, ou seja, se este enquadramento é justo ou injusto, não está contida
na análise aqui feita.

21
mais geral de enquadramento do “problema da favela” e da nova sociabilidade que nelas
aparece. Espero ter feito jus ao Pereirão, a seus moradores e à complexidade de suas
experiências.

22
I. Uma favela onde “reina a paz”.

Fonte: www.favelinha.com

Em janeiro de 1999 uma pequena favela da Zona Sul do Rio de Janeiro foi
visitada pela Vice-Governadora do Estado, pelo subsecretário de Segurança e por
diversos políticos e oficiais da Polícia Militar. Naquele dia era inaugurada uma das
iniciativas-piloto nomeadas “Mutirão Pela Paz”18, projeto da Secretaria Estadual de
Segurança que pretendia fazer uma “ocupação social” da favela, em oposição às
“ocupações” policiais. Da “ocupação social” não participariam apenas policiais, mas

18
O Projeto “Mutirão Pela Paz” será mais bem delineado à frente.

23
também serviços públicos, como acesso à documentação, provisão de carteiras de
trabalho e defensoria pública, além de projetos sociais. A escolha do Morro do Pereirão
como palco dessa intervenção se deu em um contexto particular, onde eventos ligados
ao combate ao tráfico de drogas na cidade tiveram grande repercussão pela proximidade
da favela com importantes vias e prédios públicos, além de sua localização em um
bairro tradicional de classe média. Dessa forma, o local foi escolhido como modelo de
um novo padrão de intervenção preconizado pelo governo do estado. Porém essa não foi
a única ação executada no local; além do “Mutirão pela Paz”, em 2000 a sede do
Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE) da Polícia Militar do Estado do Rio
de Janeiro foi transferida para uma rua perto da entrada da favela19. Em função desses
eventos essa favela tem estado “em paz”, sem conflitos entre grupos de traficantes ou
entre estes e a polícia20. De acordo com os moradores o Pereirão é desde então um lugar
“tranquilo” para se morar. Vale ressaltar que tanto “tranquilo” quanto “em paz” são
termos nativos, i.e., utilizados pelos próprios moradores, fazendo parte do repertório
utilizado por eles para descrever seu local de moradia, seu cotidiano. Por isso elas se
encontram entre aspas, o mesmo valendo para o termo “comunidade”.

Este capítulo descreve e analisa de que forma os moradores vivem essa


“tranquilidade”, e como organizam e vivenciam suas rotinas em uma localidade onde os
riscos representados por encontros indesejados, sejam com traficantes de drogas ou com
policiais, não se apresentam de forma cotidiana. Segundo seus moradores, a diferença
entre essa e as outras favelas do Rio de Janeiro repousa na avaliação de que naquela
localidade ”há tranquilidade, pois não existe tráfico de drogas”. No entanto, quando os
moradores começam a falar sobre seu lugar de moradia e sobre suas vidas, sem a
formalidade das pesquisas e dos testemunhos, diferentes modalidades de presença e
ausência do tráfico de drogas são mobilizadas e apresentadas, dependendo do contexto
discursivo em questão. Busquei, portanto, demonstrar as explicações locais para tal
situação de “tranquilidade”, em que condições ela foi possível, como atualmente ela é
compreendida pelos moradores e quais são as ameaças identificadas por eles à situação
de favela “em paz”.

19
O BOPE é responsável, entre outras ações especiais, pelas operações realizadas em favelas. O tema será
mais aprofundado à frente, neste capítulo.
20
Ao longo do trabalho de campo ocorreu um conflito, que será descrito mais à frente. No entanto,
mesmo após esse evento o Pereirão ainda é considerado uma favela “em paz”.

24
É a partir da memória dessa época, de comunidade pequena e tradicional, que os
moradores entrevistados começam a analisar o presente do Pereirão. A avaliação tem
sempre como contraponto esse passado idílico e bucólico, e a oposição é estabelecida
em relação à situação de incerteza atual sobre o futuro da localidade. Apesar de serem
bastante positivos na avaliação sobre a favela, particularmente no que diz respeito à
“paz” hoje vivenciada, muitos dos moradores entrevistados demonstraram preocupação
com a manutenção dessa situação, ou seja, o possível retrocesso à situação de constante
conflito. Para compreender como a favela chegou à situação de “paz” e quais as
ameaças identificadas pelos moradores, discuto na seção a seguir os discursos dos
moradores sobre sua localidade.

1.1. O passado da “comunidade” do Pereirão.

A favela do Pereirão, ou Vila Pereira da Silva – seu nome oficial – fica


localizada no final da rua de mesmo nome, em Laranjeiras, e ao lado de um túnel
importante que liga essa região ao centro da cidade. Além da entrada por essa rua é
possível entrar na favela por cima, pelo bairro de Santa Teresa. De baixo, olhando para
a favela, vê-se ao lado esquerdo o muro de uma grande propriedade e ao lado direito os
prédios do um luxuoso condomínio e o Batalhão do BOPE, e ao longe a Baía de
Botafogo, coroada pelo Pão de Açúcar. Na favela morariam atualmente 3500 pessoas,
segundo informações da Associação de Moradores, mas nos últimos tempos estaria em
processo de expansão, atraindo novos moradores em função de sua “tranquilidade”, bem
como de sua localização privilegiada, perto do centro da cidade e com acesso a diversos
meios de transporte, inclusive o metrô.

No relato de moradores antigos, entrevistados por mim para um vídeo sobre a


história do local, o território começou a ser ocupado há muitos anos, pois a região em
que se localiza seria parte de uma fazenda produtora de café. Seria possível encontrar
ainda resquícios de uma senzala entre as construções atuais. Pelas informações
recolhidas, a favela existiria há mais de 70 anos, mas nenhum morador soube precisar
exatamente quando ela começou. A uma favela pequena, chamada Pau da Bandeira
(nome muito comum em outras favelas também), foram incorporados dois outros

25
terrenos, um deles doado aos moradores por freiras do colégio católico vizinho à favela.
Um dos moradores entrevistados, de 75 anos, afirmou ter nascido já no Pereirão, mas a
maioria dos moradores mais antigos teria ali chegado na década de 1960. O terreno no
lado esquerdo é ocupado há muitos anos por uma grande casa no estilo palacete, que
pertenceria a um duque. Antigamente era possível entrar no bosque localizado na
propriedade, pois não havia então o muro que separa os dois terrenos, e os moradores
mais antigos ali passeavam, brincavam, colhiam frutas, etc. A favela dessa época foi
descrita por alguns como uma chácara, ou uma fazenda; para outros se assemelhava a
um pomar, pela quantidade de árvores frutíferas. De qualquer forma, as palavras
selecionadas faziam referência a uma vida rural, de cidade pequena ou de roça,
inclusive porque eram poucas as famílias que ocupavam o território, o que permitia um
espaçamento entre as casas, além de fortalecer os laços de vizinhança entre os
moradores. Os moradores mais antigos também fazem referência às condições de vida
nessa época, descrevendo os melhoramentos feitos na localidade desde então:
mencionam que antigamente não havia iluminação nem calçamento, citam uma grande
enchente no ano de 1966 onde muitos ficaram desabrigados, mas alguns lamentam que
as melhores condições de vida atualmente sejam acompanhadas da expansão da favela e
da diminuição da vegetação local. Para os mais jovens, que fazem pouca referência a
esse passado do Pereirão, os laços de vizinhança são frequentemente mencionados
durante a descrição da favela do passado, onde todos se conheciam e as crianças
chamavam os vizinhos de “tio” e “tia”. Também são feitas referências ao fato de muitos
serem “nascidos e criados” na favela. Assim, nas diferentes gerações entrevistadas, o
passado do Pereirão é a sua constituição enquanto “comunidade”, de parentes, de
vizinhos, de conhecidos por muitos anos.

Esse passado quase rural é contrastado com o período mais recente, nos anos
1990, quando a favela era um dos pontos de drogas mais frequentados da Zona Sul do
Rio de Janeiro. Segundo os moradores entrevistados, o chefe do tráfico no local,
conhecido como Português, realizava nos fins de semana bailes funk com três mil
participantes (contingente maior que o de moradores da favela), e as filas para compra
de drogas saíam da quadra de esportes na entrada do morro (onde se localizava a
associação de moradores21) e desciam pela Rua Pereira da Silva. Devido a sua

21
Atualmente o local é ocupado por algumas casas e um bar, onde no final de semana acontecem bailes
de forró e pagode, alternadamente.

26
localização estratégica e à possibilidade de posicionar a boca de fumo tão perto da
entrada da favela e, portanto, do “asfalto”, é possível estimar a importância do Pereirão
na venda de drogas na cidade, naquele momento. Essa época é bastante lembrada
também pelos constantes conflitos entre os traficantes locais e a polícia, que aconteciam
de manhã e no final da tarde, horário de entrada e saída dos moradores e principalmente
de crianças em idade escolar. Foi nessa época, entre 1994 e 1998, que a favela ficou
famosa nos jornais pela violência dos conflitos, que culminaram com o assassinato da
liderança local do tráfico no final de 1998. É a partir desse evento que a história do
Pereirão começa a mudar.

1.2 O “Mutirão pela Paz” e vizinhança com o BOPE: de uma favela violenta a uma
favela “tranquila”.

No final ano de 1998 a favela do Pereirão esteve na capa dos jornais, quando
traficantes do bairro ordenaram o fechamento de estabelecimentos comerciais na rua
principal do bairro, durante um domingo, como represália à execução do chefe do
tráfico local por policiais. De acordo com denúncias de moradores, ele teria sido
assassinado por policiais corruptos, que receberiam subornos mensais para permitirem a
venda de drogas na favela e não achacarem nem agredirem os moradores da favela. Ele
teria acusado os policiais de não cumprirem o acordo, e por causa disso teria sido
executado junto com um comparsa e um morador sem envolvimento com o tráfico, mas
que teria dado carona aos dois bandidos. Tal fato teria acontecido durante o dia, na
esquina de ruas movimentadas do bairro próximas à favela, e na frente de diversos
moradores. Os relatos recolhidos diferem um pouco, mas todos afirmam que o traficante
foi executado pelos policiais num ajuste de contas entre cúmplices. Essa é a versão
apresentada também por Luis Eduardo Soares (2000), um dos principais atores no
enredo que se desenrolou a partir desse evento. Segundo ele, a repercussão nos jornais à
época retratava o clima de conflagração social que permeava a cidade, e evidenciava o
distanciamento entre os moradores do morro e do “asfalto”:

27
No dia 27 de dezembro, domingo, os traficantes que dominavam os morros do
bairro mandaram recados aos comerciantes, donos de restaurantes, padarias e
lanchonetes, para que fechassem as portas. Quem desrespeitasse as ordens arcaria
com as conseqüências. Apesar do prejuízo e da revolta, todos obedeceram,
indignados. O coronel Noaldo desdenhou: “Foram funcionários que avisaram os
patrões sobre tais ameaças. Tem gente que não quer trabalhar, principalmente num
domingo” (O Dia, 29 de Dezembro). Ao JB, declarou: “Foi coisa de empregado
querendo descansar no domingo” (...).(Soares, 2000: 67).

[Sobre as denúncias feitas pela família do morador assassinado, de que ele não teria
envolvimento com o tráfico] De seu gabinete, o coronel secretário prestou a seguinte
declaração à imprensa: “Menos um seqüestrador no Rio. Foi um presente de Natal
para muita gente” (JB, 29 de dezembro, 1998). (Soares, 2000: 68).

Os episódios violentos acima relatados tiveram grande repercussão não apenas


pela gravidade dos fatos, mas também porque aconteceram em um dos bairros nobres da
cidade, próximo da sede do Governo do Estado e da residência oficial do governador.
Dessa forma, escolheu-se aquela favela como um dos locais para o projeto piloto
demonstrativo da nova gestão da secretaria de segurança, modelo a ser reaplicado em
todas as outras favelas do estado — o “Mutirão pela Paz”. No entanto, quando comecei
o trabalho de campo em 2005 – seis anos depois da execução do “Mutirão pela Paz” e
dois mandatos de governador mais tarde – o único resquício dessa ação ainda visível
naquela favela era o trailer da Polícia Militar na entrada principal (retirado em 2006) e a
sede do BOPE vizinha ao morro.

O “Mutirão pela Paz” era um dos pilares da nova política de segurança pública
implementada por Anthony Garotinho e sua equipe, junto com a modernização das
delegacias, treinamento e aumento da força policial e combate à corrupção policial.
Anthony Garotinho foi eleito em 1998, em uma campanha na qual a questão da
segurança pública teve papel muito importante. Sua plataforma para a Segurança
Pública estava fundamentada nas sugestões de um grupo de pesquisadores liderados
pelo antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares22, que posteriormente assumiu
posições executivas na Secretaria de Segurança, especificamente na Subsecretaria de
Pesquisa e Cidadania. As indicações dos pesquisadores, reunidas em livro
(Criminalidade e violência no estado do Rio de Janeiro, publicado pela Editora Hamas

22
Entre 1999 e 2000 Luiz Eduardo Soares foi Sub-Secretário de Pesquisa e Cidadania da Secretaria de
Segurança. Além dele faziam parte da publicação Bárbara Musumeci Soares, João Trajano Sento-Sé,
Leonarda Musumeci, Silvia Ramos e Antonio Carlos Carballo Blanco. Alguns desses pesquisadores o
acompanharam na Subsecretaria. Para maiores informações ver Soares (2000).

28
em 1998), tinham por princípio que era possível e necessário executar uma política de
segurança que conjugasse eficiência policial e respeito aos direitos humanos,
contrapondo-se às políticas anteriores do governo do estado, quando os índices de
criminalidade eram bastante altos e eram acompanhados de muitas denúncias de
violência e corrupção policial.

Dentro dos parâmetros sugeridos pelo grupo e adotados pelo governador, o


“Mutirão pela Paz” assumia um papel muito importante, pois tinha por objetivo:

(...) articular os programas sociais do estado, da prefeitura e de entidades civis,


combinando iniciativas de segurança pública. O objetivo central da proposta era
criar condições de enfrentamento do tráfico a partir de uma lógica diferenciada do
que havia sido a prática até então vigente que, segundo o governo, estimulava a ação
policial violenta (Miranda e Magalhães, 2000).

Além da favela em questão, outras foram foco de atuação similar por parte do
governo. Segundo Luiz Eduardo Soares, seu idealizador:

O programa se caracterizava por uma combinação original: presença de uma polícia


respeitosa da lei e dos direitos humanos e intervenção social, com atendimento de
demandas populares e investimento governamental em infra-estrutura. (Soares,
2000: 36)

Tal concepção expressava as concepções do antropólogo Luiz Eduardo Soares a


respeito da segurança pública. Para ele o combate à violência deve passar
necessariamente (junto com o combate ao tráfico de armas) por políticas públicas
voltadas para a integração da juventude pobre à sociedade, e os projetos sociais
localizados em favelas teriam essa função (Soares, 1996: 258). Assim, o “Mutirão”
deveria ser não só uma “ocupação policial” (ou seja, uma presença policial constante e
não apenas momentânea, como nas “operações” policiais), mas também uma “ocupação
social” das favelas, que buscaria atender “às principais demandas da sociedade local,
através da mobilização de diversas secretarias de estado, além da contribuição de
entidades da sociedade civil” (Soares, 2000).

29
No entanto essa proposta teve vida curta no governo. Em 17 de março de 2000 o
governador demitiu Luiz Eduardo Soares, após este ter denunciado ao Ministério
Público a existência de um grupo de policiais corruptos e criminosos (a ”banda podre”,
como ficaram conhecidos) na cúpula da Secretaria de Segurança. Segundo Luiz
Eduardo Soares (2000), o projeto “Mutirão pela Paz” nunca alcançou a dimensão
esperada, derrotado por dificuldades de diferentes tipos. Por um lado, o programa
enfrentou dificuldades relacionadas à gestão da administração pública, já que sua
execução dependia do trabalho coordenado de diversas secretarias e autarquias
estaduais, como as Secretarias de Trabalho, Educação, Saúde, Justiça, Meio Ambiente,
Ação Social, Esporte e Lazer, além da Defensoria Pública, do Detran – que forneceria
as carteiras de identidade para os atendidos, da FAETEC (Fundação de Amparo às
Escolas Técnicas) e dos CCDCS (Centros Comunitários de Defesa da Cidadania) – que
ofereceriam cursos para os moradores das localidades atendidas. Por outro lado, o
“Mutirão pela Paz” se baseava em propostas que nunca foram consensuais dentro da
Secretaria de Segurança Pública e do próprio governo, e que acabaram sendo
descartadas junto com seu idealizador23.

Hoje, passados dez anos da inauguração do “Mutirão pela Paz” no Morro do


Pereirão, a maioria dos moradores faz pouca menção à iniciativa. Para um dos
presidentes da associação de moradores entrevistados, eles foram enganados pelo
Governador Garotinho e pela Governadora Rosinha (sua esposa, que o sucedeu no
governo do estado), que prometeram que aquela seria uma “favela-modelo” e nada
fizeram. Os moradores fazem referência às obras do Projeto “Bairrinho” 24 e ao Projeto
25
“Jovens pela Paz” , mas nenhuma iniciativa ligada ao “Mutirão pela Paz” foi
mencionada. O que ficou na memória coletiva relacionada ao período foi a ida da sede
do BOPE para um terreno fronteiriço à favela, em 2000; tal evento teve um forte

23
Para maiores informações sobre os bastidores da gestão de Soares na Secretaria de Segurança ver
Soares, 2000.
24
Projeto da Secretaria Municipal de Habitação, era uma versão do Programa Favela-Bairro, de
urbanização de favelas, para favelas de pequeno porte. Política executada durante o governo do Prefeito
César Maia (1993-1997 e 2001-2008).
25
O Programa “Jovens Pela Paz” foi criado em 2000 pelo Governo do Estado como parte das políticas
públicas para combate à violência, e oferecia atividades de cultura e esportes a moradores de “áreas de
risco”. Os jovens participantes eram capacitados como instrutores e agentes sociais, atuavam nas suas
localidades de moradia e recebiam uma bolsa-auxílio. Atendeu até o ano de 2006 cerca de dez mil jovens
de 400 localidades populares no estado do Rio de Janeiro, com idades entre 16 e 24 anos. (FOLHA ON-
LINE, 2006). No começo do governo de Sérgio Cabral (2007) o programa foi cancelado.

30
impacto na vida dos moradores, tanto que eles consideram essa proximidade como um
dos motivos para a “tranquilidade” local.

Criado em 1978 com o nome de Núcleo da Companhia de Operações Especiais,


a missão do BOPE é desenvolver ações de Segurança Pública em situações onde as
demais unidades da Polícia Militar não têm capacidade para intervir26. Dessa forma, o
BOPE não faz o policiamento cotidiano nas favelas. Quando realiza uma “operação” em
alguma favela geralmente trata-se de confronto com traficantes, tão violentos que
muitas vezes resultam em mortes de traficantes e/ou moradores, e em menor escala até
de policiais. Assim, por sua postura de confronto e sua metodologia de ação, o Batalhão
é visto com apreensão pelos moradores das favelas cariocas. Em suas incursões, o
BOPE utiliza um veículo blindado, chamado pelos policiais de “Pacificador” e pelos
moradores de favela de “Caveirão” (referência ao símbolo do Batalhão, uma faca
cravada em uma caveira ladeada por duas pistolas). A justificativa oficial é que ele
permite aos policiais entrarem nas favelas sem serem atingidos pelos tiros dos
traficantes (Justiça Global, 2006). Para algumas organizações de moradores de favela e
de defesa dos direitos humanos, entretanto, o uso do Caveirão possibilita que excessos
na atuação policial sejam cometidos, visto que o blindado não permite a identificação de
fora dos policiais que o ocupam. Existem também denúncias de que seus altofalantes
transmitem ameaças aos moradores e aterrorizam as crianças, como por exemplo: “O
‘Caveirão’ veio buscar sua alma”, “O que Deus constrói o ‘Caveirão’ destrói”, “Não
adianta correr, o ’Caveirão’ vai pegar você” 27.

O tom e a linguagem utilizados pela polícia durante as operações com “Caveirão”


são hostis e autoritários. As ameaças e os insultos têm um efeito traumatizante sobre
as comunidades, sendo as crianças especialmente vulneráveis (Justiça Global, 2006).

Assim, a tática de intimidação utilizada pelo BOPE não se restringe ao uso do


“Caveirão”. Toda a simbologia ligada ao Batalhão remete à morte. Por exemplo, o site
do BOPE menciona a localização exata da sede como sendo “Palácio da Caveira, Vale
26
A missão do BOPE é desenvolver ações que exijam uma capacidade técnica e bélica de que os outros
batalhões da polícia militar não dispõem, como o combate ao crime organizado, o enfrentamento de
bandidos fortemente armados, o resgate de reféns, rebeliões de presos, “execução de missões no campo
da contraguerrilha urbana e/ou rural” e o “apoio às operações policiais militares em favelas em que
quadrilhas organizadas estão posicionadas e fortemente armadas”. Fonte: www.boperj.org.
27
. Denúncias ouvidas pela autora em oficina organizada por ONG internacional em favela da zona norte.

31
dos Ossos Secos, na Rua Campo Belo, Laranjeiras”28. A origem dos nomes Palácio da
Caveira e Vale dos Ossos Secos não está explicada no site, mas o nome do palácio faz
menção ao símbolo do Batalhão que, de acordo com o site, representa a vitória sobre a
morte. “Vale dos Ossos Secos” é uma referência bíblica. Em uma de suas passagens,
Ezequiel é levado pelo Senhor para pregar em um vale repleto de ossos ressequidos, e
durante a pregação os ossos se transformam em um exército numeroso de homens. Em
seguida, Ezequiel os enche com o sopro do Espírito Santo, dando-lhes vida29. A
passagem representaria a capacidade de superação pela fé de todas as dificuldades, até
mesmo da morte.

Apesar das duas imagens pretenderem remeter à representação de sacrifício e


superação da morte, os símbolos e os nomes adotados são ameaçadores e intimidadores,
e cumprem uma função de aterrorizar a população mais do que tranquilizar. Quando,
após mobilização popular, organizações de moradores e ONGs de direitos humanos
foram convidadas pelo BOPE a discutir o uso do “Caveirão” nas operações em favelas,
a reunião realizou-se no Palácio da Caveira, e a sala de reuniões tinha nas paredes
desenhos e imagens de caveiras. Para completar a intimidação, a reunião foi assistida
por policiais vestidos de preto e armados de fuzis30.

A imagem acima descrita do BOPE, ligada à violência policial, não é


compartilhada por todos, vide a repercussão, positiva para a corporação, do filme
“Tropa de Elite”, de José Padilha, em que policiais do BOPE são retratados como heróis
incorruptíveis que precisam enfrentar traficantes de drogas, policiais corruptos e a
sociedade conivente e cúmplice do comércio de drogas. Há alguns anos atrás a
corporação também era bem avaliada por intelectuais ligados ao combate à violência

28
Fonte: http://www.boperj.org/
29
“Veio sobre mim a mão do Senhor; ele me levou pelo Espírito do Senhor e me deixou no meio de um
vale que estava cheio de ossos e me fez andar ao redor deles; eram mui numerosos na superfície do vale e
estavam sequíssimos. Então, me perguntou: Filho do homem, acaso, poderão reviver estes ossos?
Respondi: Senhor Deus, tu o sabes. Disse-me ele: Profetiza a estes ossos e dize-lhes: Ossos secos, ouvi a
palavra do Senhor. Assim diz o Senhor Deus a estes ossos: Eis que farei entrar o espírito em vós, e
vivereis. Porei tendões sobre vós, farei crescer carne sobre vós, sobre vós estenderei pele e porei em vós o
espírito, e vivereis. E sabereis que eu sou o Senhor. Então, profetizei segundo me fora ordenado;
enquanto eu profetizava, houve um ruído, um barulho de ossos que batiam contra ossos e se ajuntavam,
cada osso ao seu osso. Olhei, e eis que havia tendões sobre eles, e cresceram as carnes, e se estendeu a
pele sobre eles; mas não havia neles o espírito. Então, ele me disse: Profetiza ao espírito, profetiza, ó filho
do homem, e dize-lhe: Assim diz o Senhor Deus: Vem dos quatro ventos, ó espírito, e assopra sobre estes
mortos, para que vivam. Profetizei como ele me ordenara, e o espírito entrou neles, e viveram e se
puseram em pé, um exército sobremodo numeroso” (Ezequiel 37:1-10).
30
Relato da reunião à autora por uma militante de organização em prol dos Direitos Humanos.

32
policial31, como o já citado antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares. Ele
propôs acionar o BOPE em momentos de crise em questões de Segurança Pública por
confiar em sua formação técnica de elite:

Por que não concentramos as operações mais exigentes, difíceis e arriscadas no


batalhão especialmente capacitado para esses confrontos, mais bem treinado, mais
bem equipado, em melhores condições psicológicas, menos sujeito à corrupção e à
indisciplina, contra o qual há menos denúncias, que infunde mais respeito e reduz as
reações? Referia-me ao BOPE (Soares, 2000: 107).

Também para os moradores do Pereirão o BOPE é avaliado positivamente:


segundo os relatos recolhidos, os policiais do BOPE são mais educados e tratam a
população com mais respeito do que os policiais militares dos outros batalhões. No
entanto, nem todos os moradores compartilham dessa opinião. Um jovem morador
afirmou: “(...) o BOPE entra na casa de todo mundo, bebe refrigerante na sua casa,
revira a geladeira, abre armário, arrebenta tudo”.Vale ressaltar, porém, que o BOPE não
realiza nessa favela as mesmas atividades (as “operações”) que marcam sua atuação em
outras. Isto se deve em parte ao fato de que já não há mais a presença ostensiva de
traficantes armados a justificar um confronto com a polícia, além de tratar-se de um
morro extremamente íngreme, o que impediria o uso do carro blindado. Assim, o perigo
de confrontos entre policiais e traficantes ficaria diminuído, ainda que não cancelado
(um incidente deste tipo aconteceu durante o período do trabalho de campo, e será
descrito mais à frente). De acordo com os entrevistados, é a presença do BOPE nas
proximidades da favela que afasta o perigo do controle do território pelos traficantes, e
por isso o Batalhão e, principalmente, sua localização são bem avaliados pelos
moradores.

Dessa forma, no caso do Pereirão a ausência de traficantes de drogas armados


controlando o território e submetendo seus moradores a um poder arbitrário se deveu a
uma ação externa organizada pelo estado, o que faz deste caso distinto do de outras
favelas do Rio de Janeiro também consideradas livres do tráfico, que chegaram a tal
situação através da atuação de “milícias” compostas por policiais ou ex-policiais,

31
Ainda que a opinião sobre a atuação do BOPE possa ter mudado durante a última década,
especialmente após denúncias de excesso no uso da força em diversos casos, não encontrei análises
recentes de pesquisadores na área que identifiquem tal processo de transformação.

33
também chamadas de “polícia mineira” ou “mão-branca”32, que cobrariam
‘mensalidades’ pelo ‘serviço de segurança’ prestados, mas que no último ano foram
denunciados como controlando através da força todos os serviços e comércio existente
nas favelas que controlam33. Nesses casos, os agentes da segurança são identificados
como moradores da localidade e como agentes estatais, que atuariam à margem da lei
por considerarem os aparatos estatais de segurança limitados, ou pouco eficazes.

Apesar das diferenças, o caso do Pereirão tem semelhanças com os das favelas
controladas por milícias no que diz respeito à ausência de conflitos armados e ao
enfraquecimento do tráfico de drogas local. Nesse sentido, ao afirmar que a favela é
“tranquila” os moradores entrevistados fazem referência a esses aspectos da vida
cotidiana na localidade. A rotina do Pereirão e as estratégias dos moradores para a
manutenção dessa “tranquilidade” são descritas e analisadas na próxima seção.

Antes, contudo, vale ressaltar que compreendo a construção da categoria de


“tranquilidade” presente na favela do Pereirão como resultado de diferentes eventos
encadeados: inicialmente, o assassinato do principal traficante local enfraqueceu a
organização do tráfico no local; além disso, a vizinhança com o BOPE dificultaria a re-
organização e fortalecimento novamente do tráfico de drogas. A partir dessa conjunção
de fatores um ambiente propício para a inexistência do tráfico de drogas ter-se-ia
estabelecido, ou pelos menos para uma composição mais subterrânea e intersticial deste,
e assim menos ameaçadora da vida cotidiana dos moradores. No entanto, eles afirmam
também que é fundamental para a manutenção dessa “tranquilidade” a coesão interna
dos moradores, impedindo que o Pereirão volte a ser como “as outras favelas”;
mantendo sua excepcionalidade. Assim, o suposto crescimento da favela e a entrada no
território de novos moradores são encarados pelos antigos como uma ameaça a seu
estilo de vida; ainda que os “recém-chegados” não sejam identificados como potenciais
traficantes, eles representam um risco para a coesão daquela “comunidade”, como
veremos a seguir.

32
Referência ao apelido de um “justiceiro” ligado a grupos de extermínio localizados na Baixada
Fluminense, periferia do Estado do Rio de Janeiro. Sua existência é até hoje objeto de discussão entre
pesquisadores.
33
De acordo com o Gabinete Militar da Prefeitura do Rio de Janeiro existiriam 92 favelas “dominadas”
pelas milícias no Rio de Janeiro (O Globo, 10/12/2006), número que pode ter aumentado desde então.
Estes grupos têm ocupado diversas favelas cariocas, entrando em confronto com traficantes e instalando
uma nova forma de submissão para os moradores dessas localidades. Para maiores informações sobre essa
modalidade ilegal de controle territorial, cfr. Mesquita, 2008; Cano e Ioot, 2008.

34
1.3 “Em paz”: rotina e tensões.

Desde o começo do trabalho de campo a “tranquilidade” local foi mencionada e


reforçada nos discursos dos moradores, e por eles contrastada com a situação de outras
favelas. Nas conversas com os moradores antigos e suas famílias estes ressaltavam a
alegria de morar em um lugar onde, além da vista privilegiada da Baía da Guanabara,
estavam a salvo dos riscos implicados na proximidade com traficantes e nos conflitos
destes com a polícia. Reiteravam o fato da localidade não ser palco de incursões
policiais, e sim lugar de treinamento do BOPE34. Em relato recolhido durante um
“coletivo de confiança35” realizado com participantes de diversos projetos sociais
localizados em favelas cariocas, Anderson, morador da favela de 22 anos, afirmou:

Na nossa comunidade tem paz, não tem traficante dando tiro, como antigamente.

Mas hoje a minha comunidade não tem tráfico, só tem usuário. E os moradores saem
de lá para usar droga em outra. Então lá a paz reinou. Então os evangélicos falam:
Graças a Deus, Ele olhou para cá. Mas olhou para tirar as armas, tirou o traficante
(...). O BOPE é do lado. Então ele tirou o traficante.

A excepcionalidade dessa favela é mencionada repetidamente pelos moradores.


Uma vez, esperando pelo micro-ônibus que leva até metrô em um ponto que fica na
entrada da favela, observei que um policial militar de moto se aproximava. Ele chegou
até a entrada da favela, onde ainda era possível chegar de automóvel, fez o retorno e
desceu a rua. A moradora que estava ao meu lado, com um bebê no colo, comentou:
“Veja só isso! É porque aqui é muito tranquilo mesmo, se fosse em outro lugar já tinha
tomado bala!”. Desde o primeiro dia os moradores não só elogiavam a favela como me
convidavam para ir morar lá, onde eu teria “a vista mais bonita do Rio de Janeiro!”. Os
elogios à beleza eram seguidos pelos elogios à “tranquilidade”, e culminavam com a

34
Segundo os moradores, a favela é utilizada como campo de treinamento pelos policiais do BOPE, o que
foi apresentado como motivo de orgulho pelos moradores, como uma distinção em relação às outras
favelas, que são alvos de ações policiais. Apesar de esses treinamentos serem descritos como algo
rotineiro, durante a realização do trabalho de campo eles não aconteceram.
35
A metodologia e o uso do material recolhido estão apresentadas na Introdução desta tese.

35
constatação: “não é igual às outras favelas não, Graças a Deus!”. No entanto, os
moradores sempre alertavam que a situação de excepcionalidade podia estar sendo
ameaçada, e a maior ameaça seria o crescimento da favela e a chegada de novos
moradores.

Atualmente, apesar de pequena, a favela do Pereirão encontra-se em expansão


segundo seus moradores – o que pode ser observado pelas diversas construções e
reformas existentes no local. Ainda que a maioria das construções se localize no centro
da favela, em suas extremidades existiria também expansão, ainda que em menor escala.
Segundo dados do Censo 2000 do IBGE, e tabulados pelo Instituto Pereira Passos
(ligado à Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro), na época morariam 1011 pessoas na
localidade. A população atual varia, na avaliação dos moradores, entre 3.500 a 4.000
pessoas, mas os dados oficiais só serão levantados no próximo Censo, em 2010. Se for
confirmada tal população o Pereirão terá uma das maiores taxas de crescimento entre as
favelas cariocas. Segundo o IPP (2002), novamente usando dados do IBGE, entre 1991
e 2000 o número de pessoas morando em ‘setores subnormais’ – que é a classificação
utilizada pelo IBGE para as áreas de favela – cresceu 2,4% ao ano, enquanto que no
total a cidade cresceu 0,73%. Esse crescimento não foi distribuído de forma homogênea
pela cidade, no entanto: enquanto a taxa de crescimento populacional dos setores
‘subnormais’ da Zona Sul foi de 2% ao ano, na região da Barra da Tijuca esses setores
cresceram no período 10%/ano. Se o Pereirão tivesse crescido na mesma proporção, sua
população atual seria de 2.150 pessoas. Por outro lado, em relação à área ocupada das
favelas, outro estudo do IPP feito em 2006 – utilizando fotografias aéreas das áreas
faveladas – verificou que os territórios das favelas cresceram 3,5% entre 1999 e 2004.
Novamente o crescimento foi diferenciado: enquanto a região da Barra da Tijuca e
Jacarepaguá cresceu 6,4% no período, a Zona Sul encolheu 0,2%. Este segundo estudo
permitiu calcular o crescimento de cada favela na cidade, e o Pereirão não teve variação
em relação à sua área ocupada. No entanto, medir a área ocupada não permite inferir o
aumento da população.

A ocupação recente e o consequente crescimento da favela foram identificados


pelos moradores entrevistados como ameaças à manutenção da situação atual de
“tranquilidade conquistada”. Os novos moradores são descritos como aqueles que não
conheceriam as regras de comportamento locais, não teriam os mesmos laços de
amizade, respeito e solidariedade com seus vizinhos, estando apenas preocupados com

36
eles mesmos e com os seus (parentes, conterrâneos, os que professam a mesma religião,
etc.). As explicações apresentadas para tal comportamento dos novos moradores,
considerado como anticomunitário, vão desde acusações sobre origem e religião dos
recém-chegados (que em geral são identificados como “paraíbas36“ e/ou “crentes37”) a
que eles possuiriam um código de conduta diferente da experimentada no Pereirão em
função de suas vivências anteriores em outras favelas. Ainda que as acusações feitas
sejam de dimensões diferentes, o que está sendo questionado é o não pertencimento
prévio àquela “comunidade”. Nesse sentido, entendo que a categoria acionada nesse
momento pelos moradores antigos faz referência ao conceito de Park sobre “regiões
morais”, proposto para se aplicar a locais “onde prevaleça um código moral divergente,
por uma região em que as pessoas que a habitam são dominadas, de uma maneira que as
pessoas normalmente não o são, por um gosto, por uma paixão, ou por algum interesse
que tem suas raízes diretamente na natureza original do indivíduo” (Park, 1987: 66).
Dessa forma, os moradores antigos afirmam compartilhar, todos eles, de uma mesma
moral que não é a mesma dos moradores de outras localidades, particularmente de
outras favelas, ou de outras origens sociais. Ainda que o conceito proposto por Park
possa ser usado como uma reafirmação do estigma recorrente sobre os favelados (que
escolheriam uma moral divergente e oposta àquela da institucionalidade legal
burguesa), no caso do Pereirão ele permite articular o conceito de “região moral” com o
de comunidade, para falar de um coletivo reunido em um território específico e que
possui uma moralidade própria.

Vale ressaltar que as categorias de acusação “paraíba” e “crente” poderiam levar


a crer que os moradores mais antigos do Pereirão seriam, pelo menos em sua maioria,
naturais do Rio de Janeiro e católicos. No entanto, tal perfil não pode ser confirmado.
Posso apenas afirmar que, entre meus entrevistados, a maioria se apresentou como
católico, os mais velhos inclusive com funções leigas na hierarquia da Igreja. Além
disso, durante as entrevistas com os moradores mais idosos a maioria era de migrantes,
como muitos dos moradores de favela que começaram a ocupar os morros durante a

36
Paraíba é uma categoria de acusação muito utilizada no Rio de Janeiro para identificar e estigmatizar
migrantes do Nordeste.
37
Termo utilizado para fazer referência aos protestantes pentecostais e neopentecostais, que também são
conhecidos como evangélicos.

37
década de 196038. Ainda que os perfis utilizados na diferenciação entre moradores
antigos e recém-chegados não sejam comprováveis censitariamente, as categorias de
acusação são eficientes porque ressaltam o que seria a grande diferença entre os dois
grupos: enquanto os moradores antigos pertencem à “comunidade” do Pereirão, os
recém-chegados pertencem a outras “comunidades” – seja a comunidade de fiéis
evangélicos, seja a comunidade de conterrâneos da mesma cidade ou região – e assim
devotam sua fidelidade não a seus vizinhos, mas a outros pertencimentos.

Não foi possível explorar com maior profundidade a oposição estabelecida entre
os moradores “antigos” e os “recém-chegados”, mesmo porque o objetivo da pesquisa
não era investigar configurações de relação entre moradores, no estilo “estabelecidos e
outsiders” (Elias e Scotson, [1994] 2000). Além disso, a rede de contatos e informantes
que construí era formada privilegiadamente por moradores considerados “antigos”, ou
então “recém-chegados” aceitos pelos antigos. Foram essas as pessoas apresentadas a
mim por Antônio e Cristina, que por seu pertencimento anterior à favela seriam
representantes do grupo dos moradores antigos. Enquanto o primeiro nasceu no
Pereirão, a segunda teria se mudado para lá há muito tempo, “há apenas 24 anos”, como
ela me disse, e ali criou todos os seus quatro filhos. No entanto, apesar de não dispor de
informações mais detalhadas sobre essa configuração social, acredito ter recolhido
diversos depoimentos onde a identificação dos “recém-chegados” como ameaçadores à
“tranquilidade” local é bem clara, como veremos a seguir.

Segundo um dos entrevistados, morador nascido na favela e com 55 anos, os


moradores recém-chegados não zelam pela “tranquilidade” da localidade, e acham que
lá é como “Rocinha ou Santa Marta, de onde vieram”. Uma jovem entrevistada, de 18
anos e neta de uma das moradoras mais antigas, afirmou que não compartilha da
avaliação positiva da avó sobre a favela, pois os moradores não seriam mais unidos
“como antigamente”. Outro morador antigo, de 80 anos, afirmou que hoje os moradores
só pensam em si, inclusive aumentando e reformando suas casas sem considerar o
fechamento da ventilação e da vista na casa vizinha, e que “antigamente é que era bom,
comunidade mesmo... hoje em dia não é mais. E a culpa é de quem vem de fora”. Sua
filha, de 53 anos, concordou.

38
Em seu clássico estudo sobre moradores de favelas nesse período, Perlman relata que, entre seus 600
entrevistados, mais de 80% eram migrantes, mas vinham em igual proporção dos estados do Nordeste,
Minas Gerais, Espírito Santo e do interior do Estado do Rio de Janeiro (Perlman, [1977] 2002: 94).

38
Em outro momento, quando da organização de uma festa junina, Antônio e
Cristina estavam bastante descrentes da possibilidade de organizar um evento que
contasse com a participação dos moradores. Segundo eles, tal iniciativa causaria muitos
problemas, visto que nem todos estavam imbuídos do espírito de cooperação. Para
Cristina, a possibilidade de fazer a festa era “uma dor de cabeça”, e até o sorteio dos
moradores que poderiam montar barracas na festa para vender comida e bebida seria
motivo para discussão. Ela me explicou que durante muitos anos tinha organizado festas
coletivas na localidade, como churrascos e almoços, mas que tinha desistido nos últimos
anos porque muitos moradores não queriam ajudar, mas simplesmente aproveitar a festa
organizada e financiada por alguns. Por isso, recentemente, só organizava festas com
duas vizinhas com quem tinha maiores laços de amizade, e fazia festas privativas para
afastar os vizinhos “bicões”. Em função do clima pouco favorável a festa junina acabou
não acontecendo, como já não tinha sido feita no ano anterior.

Por fim, presenciei um caso que pode não ser ordinário, mas ilustra bem o meu
argumento: como acontece em outras favelas, o Pereirão foi usado como cenário para
uma pequena filmagem que pretendia utilizar a imagem da favela, que ali ainda conta
com a bela paisagem de fundo da Baía da Guanabara e do Pão de Açúcar. Além disso, a
ONG localizada na favela (Cf. Capítulo III) é também uma produtora de vídeo onde,
junto com os diretores, os jovens moradores trabalham na equipe técnica e fazem a
produção e direção dos filmes. Nesse dia a gravação era para um vídeo institucional de
uma empresa de lâmpadas, e fazia parte de um projeto de “responsabilidade social39” da
mesma – por isso a imagem retratada da favela era positiva, e alguns moradores
estavam bastante animados com a iniciativa, particularmente os participantes do projeto
e Antônio. O vídeo estava sendo gravado na laje de uma casa, onde estava localizada
toda a equipe. Alguns moradores assistiam à movimentação de um caminho superior,
inclusive eu e Antônio, protegidos por um corrimão gradeado que dava ao local “ares”
de camarote. Dessa gravação participavam jovens de outros projetos sociais, como
jovens negras que desfilavam roupas confeccionadas por de cooperativas de costura,
jovens músicos tocando instrumentos de música clássica, etc. Uma das partes mais

39
Responsabilidade Social é um termo utilizado pelas empresas e por ONGs para denominar a
preocupação de empresários com questões coletivas, como o meio-ambiente e a pobreza, e identificar
campos de atuação para as organizações ligadas ao desenvolvimento social e ambiental. Assim, empresas
que possuem “responsabilidade social” investem em ONGs, para que essas desenvolvam ações junto às
áreas consideradas importantes pelas empresas. No entanto, o conceito é polissêmico, como
demonstraram Cappellin et alli (2001).

39
complexas do vídeo era a mensagem da empresa para seus funcionários, dita por um dos
jovens integrantes do projeto localizado no Pereirão, em cima de uma grua e com a
cidade ao fundo, já com as luzes sendo acesas por causa do pôr-do-sol. A gravação não
podia atrasar porque os produtores desejavam realçar o cenário iluminado, para fazer
referência às lâmpadas produzidas na empresa.

fonte: www.favelinha.com

Assim, quando o sol começou a se pôr, todos estavam ansiosos e concentrados


na gravação. Mas como é típico do horário, nesse momento a maioria dos moradores
que trabalha fora estava chegando a suas casas, e um deles, que morava próximo do
local da gravação, decidiu ligar seu rádio – o que seria corriqueiro, não fosse o volume
alto o suficiente para atrapalhar a gravação. Após algumas visitas de moradores,
inclusive do presidente da associação, pedindo inutilmente para que o rádio fosse
abaixado, alguns moradores decidiram desligar o relógio de luz da casa, localizada fora
dos muros da residência e perto de onde eu estava. A iniciativa foi aplaudida pelos
presentes, ainda que um deles tenha chamado a atenção para o fato de que o corte
abrupto do fluxo de energia poderia danificar alguns equipamentos domésticos. O

40
morador resistente não saiu de casa para religar seu relógio, e a gravação continuou sem
maiores percalços. Ao comentar comigo o episódio Antônio deu o diagnóstico completo
do morador “inconveniente”: era um recém-chegado evangélico – “deu para perceber
pela música de crente que ele estava escutando, né?” – e não percebia como, com sua
ação, estava prejudicando “a comunidade” como um todo, em um momento importante
em que era preciso apoiar a iniciativa dos jovens moradores. Ou seja, que não
compartilhava dos laços de solidariedade e vizinhança que faziam daquele local uma
“comunidade”.

Entre os novos moradores, um caso se destaca por articular a condição de recém-


chegado com a idéia de “exploração” da “tranquilidade” local: o da proprietária da
pousada localizada dentro do Pereirão. Flávia tem 35 anos, e passou boa parte da sua
vida na Alemanha. Recentemente voltou ao Brasil e, junto com seu ex-marido alemão,
resolveu abrir um empreendimento turístico na favela do Pereirão, onde residia sua tia.
Segundo os entrevistados, Flávia se apresenta como uma moradora do local, mas que
nunca frequentou a “comunidade”, vindo ali se instalar apenas para montar a pousada.
Além disso, ela seria apenas um “testa-de-ferro”, pois o financiador seria o ex-marido,
que não mora no local – os moradores especulam que teriam sido investidos na
construção da pousada em torno de cem mil euros. Flavia se defende das acusações de
“estrangeira” – que no seu caso estão relacionadas a duas dimensões, tanto por ser de
fora da favela quanto por estar “representando” interesses estrangeiros, de investidores
alemães – afirmando que sempre visitou a tia durante a infância e que, portanto, tem
uma forte relação afetiva com o lugar. Nesse caso, o fato de Flavia não ter freqüentado a
favela anteriormente é acionado para justificar a rejeição a sua presença na localidade.
Para se defender das acusações, ela afirma que tem planos de construir um centro
comunitário na favela, onde os jovens possam ter acesso a cursos e atividades culturais.
Segundo ela, é importante trabalhar com os jovens para manter a favela como ela é
atualmente, porque ela pretende “criar seus filhos ali um dia”. Sua maior preocupação é
com a auto-estima dos jovens, porque muitos seriam estigmatizados por jovens de
outras favelas, seriam acusados de “vendidos” por morarem em uma favela “tranquila”
e vizinha do Quartel do BOPE. Flávia também se defende das acusações de
“representante do capital estrangeiro” reforçando sua trajetória de luta para levantar o
dinheiro necessário para o empreendimento, além de se apresentar como alguém que
defende e divulga a favela em seus aspectos mais positivos. Mencionou que alguns

41
turistas estrangeiros tentaram pagar a hospedagem com remédios e roupas usadas, como
se os moradores da favela fossem sujeito de caridade, no que foram devidamente
repreendidos por ela, mas afirmou também que a maioria dos hóspedes se “apaixona”
pelo local, chegando até a dormir na varanda da pousada por acreditarem estar “em
segurança”. Relatou suas dificuldades para legalizar o empreendimento, normalizar a
conta de luz junto à companhia de eletricidade, entre outros. Por fim, se colocou como
objeto do estigma dos não-moradores de favela, ao relatar o interesse de jornalistas em
fazer matérias que privilegiavam o aspecto espetacular da pousada, e que tentavam
40
representá-la como localizada em um lugar “cercado por traficantes” . Apesar de
existirem outras favelas com pousadas no Rio de Janeiro, segundo a proprietária a sua é
mais visada para essas matérias sensacionalistas porque “ninguém” (i.e., traficantes)
impede a entrada de jornalistas, como em outras localidades.

Mas nem todos os novos moradores são vistos da mesma forma. Existem aqueles
que chegaram recentemente e que foram aceitos pelos de dentro, como o casal que me
foi apresentado como “moradores recém-chegados”, mas que sabiam reconhecer o
privilégio de morar em uma favela “diferente das outras”. Habitando há sete anos o
Pereirão, o casal era formado por dois senhores, ela migrante do Nordeste (descrita pelo
marido como “paraíba”) e ele de Minas Gerais. Eles moravam anteriormente em Rocha
Miranda, bairro do subúrbio carioca, mas se mudaram para lá porque o terreno onde
moravam estava sendo cogitado para desapropriação pelo governo, em função da
construção de equipamentos esportivos para os Jogos Pan-Americanos de 2007.
Segundo o casal, eles já moraram em vários lugares, mas ficaram seduzidos pela
combinação entre montanha e mar existente no local. Além disso, a irmã da esposa já
morava no local, o que facilitou a compra da casa (onde investiram R$ 10 mil, além do
mesmo valor para reformá-la). Após a conversa os dois me mostraram a casa, reformada
de forma a permitir que do segundo andar se abrisse um terraço para aproveitar melhor
a vista da Baía da Guanabara. É possível imaginar que o fato de serem parentes de uma
moradora da favela pode ter facilitado sua aceitação pela “comunidade”, assim como o
fato de terem vindo de um bairro pobre do Rio de Janeiro, e não de outra favela.

Assim, o Morro do Pereirão é apresentado por seus moradores como uma favela
“diferente das outras” e “em paz”. Observa-se também o trabalho cotidiano dos

40
Suas experiências com os jornalistas foram tão negativas que Flavia somente aceitou conversar comigo
e minha colega de pesquisa quando provamos ser estudantes.

42
moradores para reforçar essa construção simbólica, inclusive desenhando diferenças e
proximidades com moradores que acreditam pertencerem à mesma “comunidade”, com
quem compartilham os mesmos códigos de conduta que permitem a manutenção dessa
favela como um local “pacificado”. No entanto, alguns episódios que serão discutidos
em seguida permitem visualizar as tensões na construção da “tranquilidade” existente
no Pereirão.

1.4. Silêncio e medo em um cotidiano “tranquilo”.

Apesar do cotidiano da favela ser apontado pelos moradores como “tranquilo”,


foram recolhidas no trabalho de campo evidências que apontam para a existência de um
controle maior sobre os moradores por parte dos traficantes de drogas do que o
reconhecido na fala dos entrevistados. Além disso, após dois anos de trabalho de
campo, um conflito armado entre policiais e bandidos localizados dentro da favela
abalou, ainda que momentaneamente, a “paz” no Pereirão. Nesta seção apresento os
relatos recolhidos e descrevo o evento violento, buscando compreender os limites da
construção de “tranquilidade” local e como os moradores lidam com o risco que
permanece em seus cotidianos, ainda que intersticialmente.

Embora as referências iniciais dos moradores para descrever sua localidade de


moradia remetessem sempre a “tranquilidade” ali experimentada, em diversos
momentos os próprios moradores relataram limitações ou conflitos com a força
representada pelos traficantes de drogas, seja na forma de uma presença no espaço, seja
enquanto potencial risco. Por exemplo, quando funcionários de empresas prestadoras de
serviços públicos, como a Light ou a Cedae, perguntaram ao presidente da associação
de moradores se era “seguro” entrar na favela aquele dia, este ficou zangado e ofendido
com a pergunta, e respondeu que ali é como qualquer outra favela, mas que os
funcionários poderiam entrar sem problemas, porque ele garantia que nada aconteceria.
Assim como outros moradores, ele quis ressaltar que, diferentemente de outras favelas,
o tráfico ali não representa um perigo cotidiano, uma ameaça aos moradores ou aos que
vêem de fora. No entanto, ao mesmo tempo afirmou que a preocupação era necessária,
por ali “ser uma favela como as outras”. Nesse caso, a declaração foi ambígua por

43
ressaltar a semelhança e a diferença entre o Pereirão e outras favelas, onde as
prestadoras de serviço público não entram nas localidades sem avisar à associação de
moradores. Esse procedimento visa, na maioria dos casos, requisitar à associação uma
intermediação junto às quadrilhas de traficantes locais, para garantir a segurança de seus
trabalhadores quando realizando reparos ou obras em favelas. Tal prática é reconhecida
tanto pelo poder público quanto pelos dirigentes de organizações de moradores
(Miranda e Magalhães, 2002; Silva e Rocha, 2008)41. A fala do presidente pode ter tido
a intenção de marcar sua posição como mediador necessário, ao dizer que garantia a
segurança dos trabalhadores, ainda que com a preocupação de confirmar seu
distanciamento em relação aos traficantes de drogas. Porém, confirma que a precaução
dos funcionários é necessária.

Em outro momento, após alguns meses de trabalho de campo, quando minha


presença na sede da associação de moradores não era mais uma novidade, assisti à
conversa entre uma moradora e Cristina, dirigente da associação. A moradora afirmava
ter sido ameaçada por traficantes de uma favela vizinha, pois seu irmão, integrante deste
bando, teria dormido “em serviço”, e após ter sido espancado pelos outros traficantes
teria sido expulso daquela favela. Assim, a moradora também estaria com medo de
retaliações, inclusive dentro da localidade. Ela buscava apoio junto ao presidente e à
dirigente da associação de moradores, de quem sua mãe seria muito amiga, para que
esses auxiliassem na busca por um terreno dentro da favela onde ela pudesse construir
uma casa para seu marido e o filho que estavam esperando, visto que o plano de alugar
uma casa na favela vizinha teria que ser cancelado. Além disso, desejava explicar aos
vizinhos que não tinha relação nenhuma com os atos do irmão, numa possível tentativa
de se proteger de qualquer agressão interna.

Ainda em outro momento presenciado na sede da associação, uma moradora


contou ao presidente e à secretária da associação que, durante uma crise de embriaguez,
seu marido teria gritado que ela estava em casa com um amante que seria traficante. Em
função disso, os “meninos”42 teriam batido em sua porta e pedido, “muito gentilmente”
segundo ela, para revistar a casa, por medida de segurança. A mulher argumentava com
41
A relação entre associações de moradores, traficantes de drogas e poder público foi aprofundada no
capítulo 3 desta tese.
42
É comum que moradores de favela refiram-se aos traficantes de suas localidades como “meninos”,
fazendo alusão a sua pouca idade, mas também, como forma de remeter a um passado comum e assim
reduzir o perigo que sua presença representa. Seria mais um elemento do dispositivo acionado na limpeza
moral realizada pelos moradores de favela. Cfr. Leite, 2008

44
os dois que seria impossível receber o marido de volta – no momento ele estava
internado em um hospital psiquiátrico – já que ele estaria colocando a sua vida, bem
como de sua família, em risco. Segundo ela, foi por sorte que nada aconteceu, se
referindo aos jovens que entraram em sua casa.

Da mesma forma, quando um morador antigo estava sendo entrevistado para o


vídeo a respeito da memória da favela mencionado anteriormente, um dos membros da
equipe de gravação perguntou sobre a violência na cidade, sem fazer referência
específica ao local. Imediatamente o entrevistado disse que não queria falar sobre esse
assunto, embora continuasse disposto a ser entrevistado. E ainda aconselhou a equipe de
gravação a não tocar mais no tema, pois dificultaria a continuidade do trabalho dentro
de qualquer outra favela. Quando as câmeras foram desligadas e a equipe foi almoçar
com sua família, o entrevistado falou do medo que sentia de estar sendo vigiado, já que
para ele os policiais localizados no quartel do BOPE teriam lentes de aumento
poderosas que veriam tudo o que acontece na favela. Ao ser questionado sobre a
veracidade da informação por uma pessoa presente respondeu que, se existiam satélites
que eram capazes de ver e fotografar casas, ruas e pessoas, seria possível que o BOPE
tivesse acesso a um equipamento parecido43. E se os policiais podiam ter acesso a esses
equipamentos, os traficantes também, o que impossibilitaria qualquer menção ao
assunto. Tal argumentação foi apresentada em um momento informal, um almoço,
quando as câmeras já estavam desligadas, tanto como uma explicação para seu ato
quanto como um conselho importante para nos protegermos no futuro.

A partir desses casos é possível identificar a existência na localidade de formas


de coerção que se assemelham às vividas pela maioria dos moradores de favelas
cariocas, mesmo quando há ausência de bandidos armados em seu território. No caso
citado identifica-se como funciona nesse contexto a “lei do silêncio”, já que os
moradores se sentem impedidos de falar, até entre si, sobre a ordem a que estão
submetidos. Segundo Machado da Silva, a proibição aos moradores de favela de falarem
sobre o tráfico de drogas também entre si, e não apenas para fora, seria a “conseqüência
mais perversa da implantação da sociabilidade violenta como ordem instituída. As
populações que ela submete continuam, de certa maneira, a viver sua vida ‘normal’,

43
O morador fazia referência ao programa de internet Google Terra (ou Google Earth), que reproduz em
três dimensões imensas partes do planeta, com bastante capacidade de aproximação, através de
fotografias feitas por satélites espaciais.

45
organizadas como subalternas que são à ordem estatal, mas sob a condição de serem
impedidas de se apropriar coletivamente da ‘outra parte’ dessa mesma normalidade
cindida” (Machado da Silva, 2004: 314). O autor refere-se ao direito garantido pela
ordem estatal de livre expressão, que como vimos não se estende aos moradores de
favela. No caso pesquisado, no entanto, tal controle sobre o que pode ou não ser falado
publicamente é particularmente perverso, por contrastar com a aparente liberdade de
que desfrutam os moradores do Pereirão. Ao mesmo tempo em que afirmam seu
afastamento das limitações impostas pela opressão realizada pelos traficantes de drogas,
reconhecem o cerceamento das suas liberdades individuais.

Outra coerção identificada foi o controle do ir e vir, tanto de pessoas que não
residem na localidade (como já disse, fui sempre acompanhada por moradores nas
minhas visitas – e essa precaução não parecia se restringir à minha pessoa), quanto dos
moradores, quando saem do território. No relato abaixo, recolhido “coletivo de
confiança” mencionado, o jovem morador afirmou:

Então eu nunca entrei no [nome da favela]. E eu sinto vontade de ir lá para ver como
é. (...) Eu me sinto livre para ir, mas depois você fica naquela assim. Se eu for,
neguinho vai dizer que eu estou me aliando à facção rival. ‘Olha lá, ele está
deixando de fechar com o Comando para fechar com a ADA’ [facção criminosa que
controla uma localidade vizinha]. Então você fica...

No fragmento reproduzido acima novamente chama a atenção a convivência de


sentimentos aparentemente contraditórios: a alegria por morar em uma favela “onde a
paz reinou” (Cfr. pág. 17) e o medo de circular fora dela em função das limitações
impostas pelas dinâmicas territoriais do tráfico de drogas na cidade. Porém, as
declarações podem ser vistas como não-contraditórias quando entendidas enquanto
explicitação dos limites que a situação excepcional do Pereirão apresenta, pois confirma
a importância da ausência de conflitos para a rotina dos moradores ao mesmo tempo em
que reconhece que tal situação não suspende as imposições que os traficantes impõem
diuturnamente aos favelados.

Como no fragmento reproduzido acima, outros moradores afirmaram que a


favela “pertence” ao Comando Vermelho (uma das facções de traficantes de drogas

46
existentes no Rio de Janeiro), uma vez que essa é a facção que domina o conjunto de
favelas (denominados de complexos) no qual o Pereirão se localiza. Dessa forma, apesar
da presença de traficantes ser pouco visível na localidade, o controle que exercem sobre
o que os moradores falam e como vivem é semelhante em alguns aspectos àquelas onde
a força do tráfico de drogas é mais explícita.

No entanto, em um momento durante o trabalho de campo na localidade, a


presença de traficantes de drogas na localidade não foi subterrânea. No dia 31 de Março
de 2007 policiais e traficantes trocaram tiros durante mais de 30 minutos dentro da
favela do Pereirão. O confronto aconteceu durante um evento realizado na quadra
localizada na entrada da favela, deixando na linha de tiros crianças e jovens que
participavam da festa. Segundo o jornal O Globo (1º de abril de 2007), este foi o
primeiro confronto “depois de anos de relativa trégua”. De acordo com a polícia, os
traficantes atiraram contra um carro policial que escoltava uma equipe de TV (não
identificada pelo jornal), que cobriria o evento, até a entrada da favela. Após esse
incidente não foram registrados no local quaisquer outros confrontos entre policiais e
bandidos.

Na primeira visita que fiz ao local depois desse acontecimento (eu não estava lá
no momento e só pude retornar a campo duas semanas depois) um dos moradores ligado
à organização do evento relatou que na semana anterior a polícia teria recebido
reclamações dos moradores dos prédios localizados perto da favela a respeito de um
baile funk – festas realizadas por equipes de som que reúnem jovens em localidades
periféricas do Rio de Janeiro, às vezes milhares – que estaria acontecendo na quadra da
favela. Ainda segundo ele, tratava-se apenas de uma festa de aniversário, mas tal fato
teria despertado a desconfiança da polícia para a possível presença de traficantes na
favela44. No dia do tiroteio a polícia teria subido até a entrada da favela para fazer um
patrulhamento de rotina, e teria sido recebida a tiros pelos traficantes que estariam na
favela – mas sem deixar claro em que condições, se participando da festa ou escondidos,
seja na mata, seja nas casas. Vale ressaltar que no período de trabalho de campo
realizado para esta pesquisa, em momento algum vi ou fui informada sobre

44
Investigações policiais e reportagens investigativas denunciaram que muitos desses eventos são
patrocinados por traficantes de drogas. Entre as matérias jornalísticas, o caso de Tim Lopes – jornalista
torturado e assassinado por traficantes quando realizava uma reportagem investigativa sobre tráfico de
drogas e prostituição infantil realizados em bailes funk na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro – foi o que
alcançou mais repercussão. Cfr. Arquivo G1: Tim Lopes é assassinado.

47
patrulhamentos policiais na entrada da favela. Aparentemente este patrulhamento foi
uma exceção, em função do evento que estava sendo realizado na entrada da localidade.

Pelo relato do jovem, os policiais teriam pedido reforço dos policiais do BOPE,
e até helicópteros teriam sido acionados para o confronto. Os policiais teriam entrado na
favela e atirado contra os moradores. Quando cheguei ao local vi que o trailer da PM
que ficava localizado na entrada da favela não estava mais lá. Ao ser perguntado sobre
isso, o jovem disse que há seis meses o trailer tinha sido retirado, e que durante esse
período o tráfico estaria tentando voltar a atuar na favela, ainda que de forma
embrionária – mas em seu relato não ficou claro qual dos eventos aconteceu primeiro.
Ele ressaltou a importância da polícia impedir o tráfico de se reorganizar naquele
território – mas sem colocar a vida dos moradores em risco, e que os moradores, a
“comunidade”, não poderiam deixar o tráfico voltar a controlar o Pereirão. Observa-se
que os moradores estão insatisfeitos com a possível volta do tráfico, pois é a ausência de
conflitos entre policiais e traficantes que garante a “tranquilidade” local – que é sempre
relacionada à ausência de conflitos entre traficantes e policiais, e nunca diretamente
relacionada com a ausência do comércio de drogas em si. O que era comentado sempre
que essa questão surgia nas conversas com os moradores era a diferença entre aquele
momento e o vivido até 1998, época dos grandes conflitos.

O evento acima mencionado, ainda que episódico, confirmou que traficantes de


drogas estão presentes na favela, ainda que não cotidianamente. Em outro momento,
algum tempo depois desse evento, ao realizar mais uma visita à localidade vi um
traficante na entrada da favela, sentado em uma cadeira e com uma arma no colo. Ao
encontrar alguns moradores e exprimir meu espanto (e medo) com o que tinha visto,
esses tentaram me tranquilizar, explicando que esse traficante não era morador do local,
mas alguém de fora. E que a arma era apenas para fazer um tipo, uma forma de
apresentação de si enquanto traficante, e que não representava risco. Continuando o
discurso que identificava aquela favela como diferente, afirmaram que ali não havia
tráfico de drogas armado, mas apenas “meninos” que não representavam risco. Dessa
forma, a construção dos moradores sobre a “tranquilidade local”, ou a explicação
nativa, modifica-se de acordo com as novas dinâmicas que se estabelecem ali.

Percebe-se então que a “tranquilidade” experimentada no Morro do Pereirão é


resultado de uma conjuntura específica, onde diversos fatores são responsáveis ao

48
mesmo tempo pela atual configuração local. Em um dado momento esses fatores – a
visibilidade política que a favela recebeu; a colocação do trailer na entrada da favela
inibindo a compra de drogas; a proximidade com a sede do BOPE; o desinteresse do
tráfico pela localidade, etc. – fez com que a “paz” fosse possível. No entanto, esse
contexto pode estar se modificando: o interesse do tráfico no local pode ter mudado,
talvez em função das disputas territoriais nas favelas vizinhas; o interesse do governo
também pode ter mudado45, o que explicaria a retirada do trailer. Assim, as variáveis
que permitem a “tranquilidade” podem mudar, como aparentemente mudaram haja vista
a pequena boca-de-fumo instalada. Considero, portanto, importante frisar que o
contexto de “tranquilidade” é passível de mudanças, pois nenhum dos fatores que
garantiram sua manutenção é permanente.

É importante reforçar que meu objetivo enquanto pesquisadora realizando


trabalho de campo no local não era de comprovar ou não a presença de traficantes no
Pereirão, se esses são comuns ou extraordinários. Para mim o objetivo é investigar e
compreender a construção nativa sobre a rotina e a sociabilidade dos moradores, como
eles compreendem tal situação e o que consideram “tranquilidade”, “paz” e conflito, e
como as explicações nativas apresentadas modificam-se quando o contexto vivenciado
passa por transformações. Apesar das mudanças, a apresentação do local como
“tranquilo” permanece, pois os conflitos não fazem parte da vida cotidiana. A
importância da ausência de conflitos é ressaltada por moradores de favelas também em
outras localidades, como discutido em outras investigações (Cfr. Machado da Silva,
2008c). Assim, a existência ou ausência de traficantes de drogas parece ser menos
importante para a análise aqui pretendida que a comprovação do controle arbitrário
exercido pela “sociabilidade violenta” sobre os moradores do Pereirão, pois o que
desejo discutir é a construção de uma “tranquilidade” cotidiana que existe lado a lado do
medo e do silêncio dos moradores. É interessante avaliar, portanto, porque permanece –
como verdadeiro espectro – o controle exercido pelos traficantes sobre os moradores,
apesar dos impedimentos materiais já indicados. De fato, os moradores vivem como se a
favela fosse um território diretamente dominado, pois se orientam pelas mesmas regras
impostas em outras favelas onde os traficantes têm presença ostensiva.

45
É importante ressaltar o dado de que tal evento ocorreu menos de quatro meses depois da posse do
novo governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, e de toda a cúpula da Secretaria de Segurança Pública.

49
Dessa forma, se tomarmos como premissa que naquela localidade o tráfico de
drogas, se existe, atua de forma subterrânea (e, portanto, descartamos a possibilidade de
uma grande encenação para enganar a pesquisadora), a obediência às ‘regras do tráfico’
seria motivada pela antecipação à possibilidade de retaliação dos traficantes em caso de
desobediência. E os moradores se antecipariam por compreender que a situação de
“tranquilidade” local é provisória. Pensar que, em um momento futuro, existirá
retaliação para o que foi feito ou dito hoje remete à noção de que o tráfico tem uma
capacidade de controlar e vigiar as pessoas maior do que as evidências apontadas por
diversas pesquisas. No entanto, muitos moradores de favela, inclusive os do Pereirão,
acreditam que estão sendo vigiados constantemente por traficantes ou por policiais. E
neste caso estar sendo ou pensar que está sendo vigiado tem o mesmo efeito46.

Para além das explicações apresentadas acima, acredito ser importante


compreender porque a construção coletiva da favela do Pereirão como uma favela “em
paz” tem tanta força no imaginário da população local, apesar das coações mencionadas.
Na seção seguinte discuto os diferentes usos feitos pelos moradores da representação de
sua localidade como uma favela “tranquila”.

1.5. Diversas apropriações possíveis da “tranquilidade” do Pereirão.

“Paz” e silêncio encontram-se entrelaçados no Morro do Pereirão. Nessa


localidade, a paz é constantemente anunciada, mas o assunto ”tráfico de drogas” é
tratado com o mesmo silêncio que se encontra em lugares violentos. Somando-se à
dimensão do medo e da “lei do silêncio”, a construção discursiva dos moradores sobre a
“paz” e a “tranquilidade” do local cumpre outros papéis. Um deles é transmitir aos
moradores um sentimento de segurança, reforçando a confiança na continuidade das
rotinas cotidianas que muitas outras favelas não têm. Outro é funcionar como
instrumento de controle social, abafando comportamentos considerados desviantes. E
por fim, é a forma dos moradores do local afirmarem seu afastamento moral em relação
aos traficantes. Por outro lado, a linguagem da “tranquilidade” se constitui na versão
local da “lei do silêncio” que os bandos armados impõem às populações das periferias

46
Cfr. Farias, 2008.

50
urbanas; e nesse caso os bandos poderiam estar ligados tanto ao tráfico de drogas
quanto às milícias, pois essas últimas também impõem aos moradores dos locais onde
atuam sua versão da “lei do silêncio” (Mesquita, 2008 e Cano e Ioot, 2008).

A sensação de segurança que a crença de morar em um lugar “tranquilo” traz é


fundamental para a manutenção dessa confiança na continuidade da rotina, denominada
por Giddens (1991) de segurança ontológica. Como se sabe, morar em favelas no Rio de
Janeiro hoje é estar exposto a diversos riscos: submissão aos traficantes, arbitrariedade
policial, exposição a conflitos armados, insegurança frente a uma política de segurança
que os vê como potenciais criminosos. No entanto, estar seguro de quem somos (“auto-
identidade”) e da continuidade da nossa rotina (“constância dos ambientes de ação
social e material circundantes”) é uma necessidade psíquica essencial, segundo Giddens
(1990:95). A crença nesses elementos formaria nossa “segurança ontológica”, que está
enraizada no inconsciente, não sendo fruto de nossa racionalização. Via de regra,
sabemos que o risco existe, mas o colocamos em suspenso:

Imagine alguém que se aflige profunda e constantemente, pensando se os outros


nutrem intenções maliciosas entre si. Ou imagine uma pessoa que se preocupa
constantemente com a possibilidade de uma guerra nuclear e não põe de lado o
pensamento deste risco. Embora os indivíduos ‘normais’ possam considerar estas
ansiedades, quando são profundas e crônicas, como irracionais, estes sentimentos
são mais o resultado de supersensibilidade emocional do que de irracionalidade.
Pois o risco de guerra nuclear está sempre aí, como uma possibilidade imanente do
mundo atual; e, como nenhum indivíduo jamais tem acesso direto aos pensamentos
de um outro, ninguém pode estar absolutamente seguro, num sentido mais lógico
que emocional, de que ideias maliciosas não estejam constantemente na mente de
outros com quem se interage (Giddens, 1990: 96).

Pode-se fazer um paralelo entre a malícia alheia ou a guerra nuclear e a situação


atual dos moradores de favela do Rio de Janeiro, que na maioria dos casos
simplesmente não podem ignorar os riscos à continuidade de suas rotinas presentes em
suas localidades. Imaginar-se morador de uma favela “tranquila” transforma-se em
fonte de segurança ontológica na medida em que permite reduzir a ansiedade provocada
pela impossibilidade de suspender a atenção aos riscos. O temor da opressão do tráfico e
dos aparatos de segurança, em suas manifestações mais imediatas, está afastado naquele
contexto, apesar de algumas reverberações permanecerem, como as observações deste
capítulo deixam claro.

51
Outro aspecto que pode ser associado à linguagem da “tranquilidade” é sua
função de controle social. Quando os moradores repetem entre si e para os visitantes
que aquele é um lugar “tranquilo”, ao mesmo tempo em que se referem ao fato de não
mais conviverem com traficantes armados e “operações” policiais, eles também
silenciam os possíveis casos “desviantes” (que, como foi mencionado, reaparecem nas
entrelinhas). Os desvios, quando reconhecidos, são apresentados como exceções e como
reprováveis moralmente, e que não comprometem a totalidade da “comunidade” –
mesmo aqueles que dizem respeito ao espaço doméstico e particular dos moradores,
mas que são freqüentemente mencionados na caracterização do modo de vida dos
favelados. O fragmento abaixo, de entrevista realizada com uma moradora de 35 anos e
nascida no local, é bastante representativo:

[E porque aqui é uma comunidade modelo?] Porque não temos tráfico armado, não
temos problemas de gravidez na adolescência, de meninas de 10, 11 anos tendo
relações, com filho no braço sem nem saber de quem, como eu vejo em outras
favelas. Não temos casos de violência doméstica, três ou quatro no máximo, não
temos casos de alcoolismo, graças a Deus, cinco ou seis no máximo. (...) Tem
viciados aqui? Tem, mas os nossos meninos não entram para o tráfico, senão alguns
casos isolados. E aqui não tem arma. Fora o BOPE, ou quando a polícia vem
passear. Mas fora isso a gente não tem arma.

Tal modalidade de controle social poderia ter paralelo, ainda que guardadas
grandes diferenças, com o caso de localidades dominadas por milícias, onde também se
reitera de forma categórica que não existem traficantes ou consumidores de drogas na
favela (Mesquita, 2008). A afirmação, quando repetida e confirmada por todos, pode ter
a força de inibir os efeitos desses atos sobre a sociabilidade local. Por exemplo, usar
certas drogas ilícitas é tido como algo moralmente condenável por todos (dentro ou fora
de favelas), e os moradores negam que elas sejam consumidas em sua favela,
reforçando a representação de “lugar tranquilo” e coibindo o possível uso pelos
moradores. Sem publicidade, o consumo de drogas se mantém, no máximo, como
conduta clandestina, de modo que a negação discursiva funciona como um dispositivo
de controle. A pretensão implícita – cuja possibilidade de sucesso é obviamente limitada
– é impedir a objetivação institucionalizada daquelas condutas que, uma vez saídas da
obscuridade das atividades privadas, poderiam se articular como uma forma de poder
vista como deletério para a vida social local.

52
É no aspecto do controle social, e de seu acionamento como meio para garantir a
manutenção da situação de “tranquilidade”, que fica mais evidente a importância da
construção de “comunidade” ali existente, pois é através dela que se forma a coesão
necessária para impedir e controlar comportamentos desviantes. Ainda que os
moradores recém-chegados não sejam todos identificados como potenciais
consumidores ou traficantes de drogas, a dúvida sobre sua adesão ao “estilo de vida
pacificado” do Pereirão é suficiente para que sejam percebidos como ameaças à “paz”.
Ainda que não veja nesse contexto uma reprodução da divisão social identificada por
Elias e Scotson em Winston Parva, empresto deles a noção de que entre aqueles que
compartilham de uma coesão grupal, e que se veem como membros de um grupo
superior moralmente (os “estabelecidos”), o autocontrole individual é maior, pois está
articulado com a opinião coletiva do grupo ao qual se faz parte (Elias e Scotson, 2000:
41). Assim, para manter a coesão interna e reforçar o autocontrole é preciso retratar os
recém-chegados, aqueles que não participam do grupo e não aderiram da mesma forma
aos valores deste, como uma ameaça.

Além dos aspectos de garantia da segurança ontológica e de controle social,


acredito que as afirmações a respeito da “tranquilidade” local também atuem como
mecanismo de limpeza moral, distinguindo o Pereirão de outras favelas que abrigam
traficantes e, assim, levam à criminalização de seus moradores. Novamente é possível
traçar paralelos com o caso de territórios dominados por milícias. Em ambos os casos,
os temas da violência e do tráfico tornam-se um verdadeiro tabu, pois falar sobre eles é
reconhecer uma presença que deve ser negada (veja-se, por exemplo, o alerta do
morador durante sua entrevista para os realizadores do vídeo). Dessa forma, os
moradores do Pereirão, ao negar a presença de drogas e de traficantes (e dos outros
problemas encontrados não apenas em outras favelas), ressaltam sua singularidade e
demonstram que não estão “contaminados”.

Todavia, este verdadeiro tabu em torno do tráfico de drogas revela o inegável


silenciamento que permeia as afirmações sobre a “tranquilidade” na localidade. Isto
impede que os moradores articulem um discurso crítico, individual ou coletivo, a
respeito da influência dos traficantes e da violência em suas condutas. Em geral, a
proibição vem dos próprios traficantes, que assim se protegem de possíveis indiscrições
sobre suas atividades (para a polícia ou para bandos rivais). No caso do Pereirão,
entretanto, essa “lei do silêncio” é apropriada pelos moradores como forma de

53
autoproteção, pois negando a presença do tráfico de drogas, evitam serem vistos pelos
47
não-moradores de favela como “coniventes” . Dessa forma, estabelece-se um
paradoxo de extrema desumanidade: submetendo-se ao próprio dispositivo que os
oprime, os moradores do Pereirão conseguem evitar sua desqualificação moral por
conivência, mas não conseguem denunciar potenciais ameaças à sua segurança.

O silenciamento dos moradores do Pereirão, assim, possui características


particulares, no sentido de ser acionado como um “capital simbólico” (Bourdieu, 2001:
173) usado para distingui-los dos outros moradores de favela e também para reforçar o
controle social ali existente. No entanto, possui também aspectos que os colocam em
situação semelhante a dos outros moradores de favela, pois não podem (ou não
conseguem) articular discursos, reflexões e denúncias sobre sua situação – análise que
sublinho na conclusão desta tese. No próximo capítulo discorro ainda sobre as
dimensões do silenciamento, mas a partir do caso da associação de moradores local e de
seus dirigentes.

47
Em diversos momentos, representantes do poder público no Rio de Janeiro requisitaram que os
moradores de favela denunciassem a localização dos traficantes sob o argumento de que não fazê-lo seria
cumplicidade com os mesmos. Cfr Machado da Silva, Leite e Fridman, 2005; Machado da Silva (org.)
2008.

54
II. A associação de moradores: “eles lá e nós aqui”.

Fonte: www.favelinha.com

Desde os anos 1940, e principalmente no período da redemocratização do país,


as associações de moradores ocuparam um papel importante tanto no campo dos
movimentos sociais quanto no debate público sobre a cidade. Foram atores
fundamentais na luta contra as remoções dos anos 1960 e no processo de urbanização de
grandes favelas, nas décadas de 1980 e 1990, fenômenos que modificaram fortemente a
face das favelas cariocas. No entanto, apesar de existirem em grande número e de terem
uma importância política reconhecida, as associações de moradores de favelas têm
encontrado grande dificuldade para atuar no espaço público nos últimos anos, tanto
dentro quanto fora das favelas. Os problemas enfrentados são de conhecimento geral: as

55
associações de moradores têm voltado à pauta dos jornais em escândalos políticos,
acusadas de favorecerem candidatos nas eleições de 2008 escolhidos por grupos de
traficantes de drogas48. Além disso, há alguns anos é de conhecimento público que o
cerco sobre os moradores de favelas praticado pelas quadrilhas de traficantes se fecha
também sobre as associações, causando a morte ou a expulsão de muitos dirigentes de
suas casas e territórios de moradia49.

No entanto, apesar de todas as dificuldades, muitas associações de moradores


continuam trabalhando e atuando nas favelas. Portanto, continua havendo certa margem
para a ação coletiva, apesar da imposição do domínio dos bandos de traficantes nas
diversas localidades. Ainda seria possível aos líderes atuar em atividades de interesse
coletivo, pelo menos na medida em que elas não interferem com o comércio de drogas.
Ao contrário, aos moradores comuns resta apenas a opção de adaptar-se às imposições
dos traficantes.

Neste capítulo irei apresentar o caso da associação de moradores do Pereirão e


discutir como seus dirigentes constroem suas estratégias de atuação dentro e fora do
território das favelas. Inicialmente apresento as dificuldades encontradas pela
associação de moradores na primeira gestão e as mudanças ocorridas com a mudança na
presidência da associação; na seção seguinte analiso como se transformaram as relações
entre associação de moradores e poder público; para, em seguida, utilizando dados
recolhidos no Projeto de Pesquisa “Rompendo o cerceamento da palavra: moradores em
busca de reconhecimento”, discutir os desafios e recursos mobilizados pelos dirigentes
nos dias atuais na cidade do Rio de Janeiro, principalmente frente aos riscos
representados pelo controle dos traficantes de drogas sobre os territórios e os moradores
das favelas.

48
Segundo denúncia da Revista Época de 04 de Agosto de 2008, o traficante que controla o comércio de
drogas na Rocinha escolheu o candidato da localidade, não permitirá a entrada na favela de outros
candidatos e pretende usar sua quadrilha para fazer a campanha eleitoral. O candidato em questão seria o
presidente da principal associação de moradores da região. A reportagem afirma ainda que também nos
territórios controlados por milícias existe o favorecimento a candidatos escolhidos por criminosos – em
uma versão urbana do coronelismo característico do Nordeste rural.
49
Uma pesquisa realizada pela Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Rio de
Janeiro, em 2005, analisou dados sobre 800 dirigentes de associações de moradores de favelas entre 1992
e 2001, e chegou à conclusão que nesse período 300 dirigentes foram expulsos de suas localidades por
divergências com traficantes locais, e 100 foram assassinados (Leite, 2005:382). Leite aponta que essas
expulsões, de dirigentes e outros moradores, são tão freqüentes quanto invisíveis para a sociedade em
geral, muitas vezes não sendo percebida mesmo como uma modalidade de violência praticada pelos
traficantes de drogas. Com o aumento de casos, no entanto, a categoria de “refugiados do tráfico” se
tornou comum nos meios de comunicação (Leite, 2005: 381-383).

56
2.1. A associação de moradores.

Como comentado no capítulo anterior, a “tranquilidade” experimentada no


território em questão é permeada por medos e inseguranças comuns à maioria dos
moradores de favela do Rio de Janeiro. A “ausência” de quadrilhas de traficantes de
drogas é entendida de forma contextualizada, ou seja, ela existe em um determinado
momento da história dessa localidade, mas sua presença sub-reptícia – e a possibilidade
concreta de uma volta do regime de opressão – causa impactos na vida dos moradores
que possui reflexos evidentes também na sua vida coletiva. O medo é um elemento
constante no cotidiano dos moradores, e também está presente na associação de
moradores da localidade. Porém, a forma como os moradores organizam suas rotinas, e
como se organizam coletivamente, modifica-se de acordo com o contexto de cada
situação. Assim, observam-se duas abordagens diferenciadas para a ação coletiva frente
à Associação de Moradores, nas duas gestões que acompanhei durante o meu trabalho
de campo. Ainda que uma das gestões tenha sido acompanhada mais longamente (a
segunda gestão tem menos de um ano), pode-se delinear algumas importantes mudanças
de curso na condução do trabalho frente à associação, tanto interna quanto externamente
à favela.

2.1.1. A gestão de Antônio.

No momento do começo do trabalho de campo, a associação de moradores se


localizava atrás de uma quadra de esportes poliesportiva, cercada por um muro de
cimento, bem na entrada da favela. No ano seguinte o Presidente da Associação
construiu sozinho duas salas na entrada da favela, uma para a sede da associação e outra
para a biblioteca e para a recreação infantil. As principais áreas de atuação da
Associação eram: o gerenciamento da correspondência dos moradores, o fornecimento
de declarações de residência aos moradores, e o gerenciamento do programa Gari
Comunitário em parceria com a prefeitura. A diretoria estava esvaziada, tendo como

57
membro atuante ao seu final apenas o Presidente (durante a realização do trabalho de
campo a secretária da associação começou a trabalhar como auxiliar de serviços gerais
em uma escola e deixou a associação). A atual gestão tinha à época do começo do
trabalho de campo pouco tempo de existência; antes disso a associação esteve fechada
durante dois anos. A antiga gestão ficou à frente da associação por 16 anos, período
durante o qual concorreu em todas as eleições como chapa única. Afastados por
denúncias de corrupção (nunca investigadas), o antigo Presidente e alguns diretores se
mudaram do morro, pressionados pelos moradores e também por traficantes de drogas
locais, segundo relato de moradores.

O então presidente da associação de moradores, Antônio, nunca tinha


participado anteriormente de organizações coletivas. Morador da favela desde seu
nascimento, o presidente em gestão era até recentemente eletricista, um trabalhador
manual especializado e autônomo, sem experiências sindicais (até porque sempre foi um
trabalhador autônomo), em organizações de bairro ou religiosas. Com idade em torno de
50 anos, casado, com duas filhas adolescentes, o presidente vive em uma casa
confortável com um terraço de onde se tem uma bela vista do mar. A casa ainda estava
em construção, como muitas na favela, e era ele próprio quem estava encarregado das
obras. A esposa trabalhava fora como cozinheira, mas também trabalhava em casa
cozinhando por encomenda. Sua vida, segundo seu relato, foi bem mais difícil que a de
suas filhas. Órfão de pai aos três anos, foi criado pela mãe junto com outros nove
irmãos. A mãe e as irmãs, com o trabalho de lavadeiras, sustentaram a família toda. Os
irmãos mais velhos foram trabalhar na construção civil, especialmente em Brasília, e
por isso o entrevistado perdeu contato com muitos deles. Naquele momento tinha mais
contato com um irmão, que morava em uma favela próxima, mas não falava com as
quatro irmãs, por considerá-las “muito fofoqueiras”. Apesar da infância difícil, falava
com nostalgia desse período, e da favela de então, onde era possível comer frutas
colhidas no quintal. Mencionou também que durante sua infância sua família foi muito
ajudada pelo Dr. Sobral Pinto50, que morou na rua que dá entrada à favela.

De acordo com a mulher do presidente, a decisão de deixar o trabalho para se


dedicar à associação foi uma “besteira, uma brincadeira que já passou da hora de

50
Dr. Sobral Pinto foi um famoso jurista, nascido em 1893 e morto em 1991. Mineiro, católico fervoroso,
atuou na defesa de muitos militantes políticos durante as ditaduras Vargas e militar, como Luís Carlos
Prestes, Graciliano Ramos, Miguel Arraes, entre outros (Isto É, 2008).

58
acabar”. A filha mais velha parecia apoiar mais a decisão do pai, mas também
reclamava que os moradores não reconheciam o esforço empreendido por ele. No
discurso do presidente a possibilidade de fechar a associação e voltar ao trabalho de
eletricista estava o tempo todo presente, como uma ameaça que seria cumprida quando
ele se cansasse de “levar a associação sozinho”. Pela sua fala, a atuação como dirigente
da associação era quase um “sacrifício” feito em prol da “comunidade”, uma escolha
que levava mais em conta o bem comum que o bem individual ou de sua família.
Segundo ele, teria feito uma loucura ao deixar seu trabalho, que lhe rendia uma renda
razoável, para ficar “batendo cabeça” à frente da associação, sem receber o
reconhecimento devido por parte dos moradores.

Na atuação deste frente à associação de moradores chamava a atenção sua falta


de experiência política e de contatos ou apoios. Ao falar sobre seu cotidiano, o
entrevistado relatava a espera nas salas de gabinetes de secretários da administração
municipal e estadual, de vereadores e deputados estaduais, nunca sendo atendido.
Comentou também de diversos projetos de investimentos já aprovados a serem feitos na
favela, mas que sem perdem na burocracia. Ao relatar sua ida à FAFERJ (Federação das
Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro) o presidente comentou que muitos
outros dirigentes também passam por dificuldades, algumas ainda mais graves que as
dele, mas que a federação não tem muito a oferecer em termos de apoio –
principalmente apoio político para a liberação de investimentos públicos. Assim, o ex-
presidente da associação do Pereirão parecia ter poucos contatos e apoios para executar
seu trabalho, o que demonstraria sua falta de savoir faire para a política. Para Pierre
Bourdieu (2004), a vida política exige a posse de competências sociais e técnicas que
não estão ao alcance de todos, e por isso a política é feita por poucos, ainda que afete a
vida de todos. A maioria das pessoas não possui instrumentos materiais e culturais que
permitem sua participação na política, e assim a divisão do trabalho político é definida
pela quantidade de capital econômico e cultural que cada um consegue acumular, e
também pela divisão assimétrica desses capitais, particularmente o capital cultural. “O
mercado da política é, sem dúvida, um dos menos livres que existe” (Bourdieu, 2004:
166).

Essa pouca intimidade com os canais da política institucional de Antônio era


acompanhada também de falta de intimidade com a política cotidiana feita do contato
com os moradores. Para Antônio, ele só era procurado pelos moradores para resolver

59
problemas como os do serviço de TV a cabo “alternativo51”, para chamar a Defesa Civil
em caso de necessidade (como o perigo representado por uma pedra grande no alto da
favela em dias de temporal), para resolver disputas de marido e mulher. Segundo ele,
todos esses eram problemas que “cada um poderia resolver por si mesmo, é só passar a
mão no telefone e ligar”. Tradicionalmente, as lideranças comunitárias envolvem-se em
todos estes assuntos, ainda que não seja essa sua função principal. Mas o entrevistado
afirmava que os moradores esperavam dele o contato com o órgão público desejado,
seja ele um órgão do executivo municipal, a polícia ou o sistema de justiça. Ele não teria
contatos especiais para realizar os pedidos, nem teria seus pedidos atendidos mais
rapidamente que o morador mediano da comunidade: “(...) as pessoas aqui acham que
eu tenho um poder que eu não tenho”.

Apesar das dificuldades que afirmava encontrar, declarou diversas vezes que
gozava de uma situação privilegiada em relação a outros presidentes de associações,
pois pode atuar de forma autônoma frente a influências exteriores, i.e, os traficantes de
drogas. Segundo ele, “tem presidente que nem trabalha, não consegue trabalhar”, em
função de uma grande interferência por parte dos traficantes. Já no Pereirão, tanto ele
quanto a sua antiga colaboradora, que também foi entrevistada várias vezes, apesar de
reconhecerem implicitamente o poder dos traficantes, afirmaram que ali era “cada um
na sua”, e que existiria uma relação baseada ao mesmo tempo na civilidade (tratando-se
com recíproca polidez, sem agressões de ambos os lados) e na distância social. No
entanto, ambos reconheciam que os traficantes possuiriam uma espécie de reserva de
poder que lhes permitiria interferir no trabalho da associação se quisessem.

Graças a Deus aqui eles não mandam nada, nunca interferiram em nada. Mas
também no dia que quiserem mandar alguma coisa eu pego as minhas coisas e saio.
Coloco um cartaz na porta da associação: ‘por motivo de saúde o presidente está
afastado’. Porque eu tenho família, tenho duas filhas, e não posso me arriscar desse
jeito.

Bandidos não dão um pio na vida da comunidade, mas quando acontece alguma
coisa não tem como escapar. Por exemplo, quando aconteceu uma matança aqui
perto, no ano passado, tive que ficar andando pra cima e pra baixo com a polícia.
Depois, quando eles foram embora, tive que fazer a mesma coisa com os bandidos.
Sem diferença. Senão ia dar problema.

51
Como em muitas outras favelas do Rio de Janeiro o serviço de televisão a cabo é ilegal, ou seja, o sinal
é desviado e transmitido para as residências da favela por um preço bem menor.

60
Nos relatos acima o entrevistado reconhecia o risco de ser confrontado pelos
traficantes, e deixava clara a sua falta de recursos disponíveis para enfrentá-los. No
primeiro fragmento, o entrevistado afirmava que os traficantes não teriam interesse em
controlar ou interferir na atuação da associação, e essa é sua garantia de segurança. No
segundo fragmento, porém, Antônio afirmou que em certas situações os traficantes se
aproximam da associação de moradores, e que nesse caso é preciso evitar o confronto
para não ter “problemas”. Como veremos adiante, evitar o confronto com os traficantes
de drogas através da passividade, retirando-se da organização ou apenas interagindo
com eles quando confrontado, é uma estratégia muitas vezes utilizada pelos dirigentes
de associações de moradores para manterem-se em segurança sem se tornarem
cúmplices dos traficantes.

Assim, para Antônio, a independência da associação seria atribuída ao


desinteresse dos traficantes, e não à capacidade da organização de mantê-los afastados.
Identificando um profundo desequilíbrio de forças, a única alternativa vislumbrada pelo
presidente, caso essa situação se modifique – o que ocorreria por decisão unilateral dos
traficantes – seria a resistência passiva: o abandono do cargo, sem sequer explicitar o
verdadeiro motivo. Na fala do presidente transparece a avaliação de que a autonomia
frente ao tráfico pode ser passageira, e que ele não dispõe de poder suficiente para evitar
essa mudança. Sua descrença na possibilidade de resistir aos traficantes de drogas fica
explícita em outra fala: numas das visitas à sede da FAFERJ, Antônio encontrou o então
presidente da União Pró-Melhoramentos da Rocinha, preso na Operação Navalha na
Carne junto com outra dirigente e sete policiais, por ligações com os traficantes de
drogas da região. Para o entrevistado, a prisão era injusta, já que todos sabem que é
“impossível ser presidente de associação, ainda mais da Rocinha, sem ter contato com o
tráfico”. A Rocinha era um caso emblemático para Antônio por ser uma favela que
possui muitos recursos, que despertariam o interesse dos traficantes de drogas – como
obras públicas, projetos sociais, comércio aquecido, etc. – além de ser um ponto de
venda de drogas rentável, o que aumentaria o poder bélico dos traficantes locais e a
ameaça que eles representariam.

Dados coletados nesta e em outras pesquisas (Zaluar, 2004; Leeds, 2003;


Machado da Silva e Leite, 2004) apontam que os traficantes aproximam-se das

61
associações de moradores visando controlar os recursos de que essas dispõem. Os
recursos podem ser financeiros (repasses do poder público, contribuição mensal dos
moradores etc.) ou de poder (indicação de pessoas para trabalhar em projetos do
governo ou de ONGs, influência sobre a gestão destes projetos etc.). No caso da
associação de moradores do Pereirão, a falta de ambos os tipos de recursos poderia ser
responsável pelo desinteresse e consequente afastamento dos traficantes de drogas da
associação.

São muitos os relatos sobre a coação do tráfico às lideranças. Zaluar (2004)


afirma que os líderes que coordenam nas favelas os programas municipais, como o Gari
Comunitário, Favela-Bairro e outros mais, são obrigados a colocar traficantes na lista de
pagamento. O fato dos traficantes terem de ser consultados sobre as atividades da
associação também é comentado pela autora:

Tudo se passa como se os traficantes fossem atores políticos que não podem deixar
de ser consultados para a execução dessas atividades. É preciso ter a permissão
deles, sob pena de sofrer represálias que inviabilizariam essa execução (Zaluar,
2004:362).

Leeds (2003), por sua vez, afirma que o tráfico de drogas em algumas favelas já
ocupa o papel de mediação entre as favelas e os políticos, antes desempenhado pelas
associações de moradores:

(...) são as alianças entre candidatos a cargos públicos e grupos de traficantes, as


quais costumam ocorrer nas comunidades onde estes últimos são particularmente
poderosos. (...) É sabido que candidatos inescrupulosos passam por cima da
autoridade legítima nas favelas, preferindo obter um acesso mais exclusivo através
de grupos de traficantes que lhes permitam fazer campanha à vontade ou que
pressionem a associação de moradores a proibir a campanha de outros candidatos
(Leeds, 2003:255).

Apesar de afirmar que os traficantes não interferem no trabalho da associação


(ao mesmo tempo reconhecendo, implicitamente, sua presença), o presidente e a ex-
secretária relataram momentos em que eles interferiram em assuntos que envolviam a
favela em seu conjunto. Em um caso relatado durante o trabalho de campo, a Prefeitura,

62
através do programa Posto de Orientação Urbanística e Social (Pouso), da Secretaria
Municipal de Urbanismo, não estaria liberando a construção de novas casas dentro da
favela. Segundo a ex-secretária da associação, quando queriam construir, os moradores
buscavam a associação para que essa interferisse junto à Prefeitura. Entretanto, como o
presidente afirmava não dispor de autoridade para modificar decisões relativas à
ocupação do espaço, eles acabavam pedindo autorização aos traficantes. Além de
reconhecer que não tem autoridade para isso, Antônio sempre se colocou contrário ao
crescimento da favela, pois segundo ele o aumento no número de moradores acabaria
por fazer dali uma favela “igual às outras”, onde não seria possível impedir que “coisas
erradas acontecessem”. Por outro lado, ainda segundo Cristina, muitos moradores
acabavam, apesar de tudo, desistindo de construir por medo de verem as casas
derrubadas pela prefeitura. Para ela, os traficantes autorizavam a construção porque isso
não interferia nos assuntos “deles”, muito embora a licença fosse contrária à orientação
da associação. Segundo a versão dos entrevistados, a liberação dada pelos traficantes de
drogas não teria força para se contrapor à proibição da Prefeitura. Isso explicaria o
respeito à determinação oficial. Vale ressaltar que está implícita na declaração dos
entrevistados uma ridicularização dos traficantes da localidade, presente em muitos dos
depoimentos dados pelos dois informantes. Em diversos depoimentos coletados os
traficantes foram descritos como bobões, fracos, covardes, “os primeiros a se esconder
embaixo da cama quando ouvem som de tiro”, etc. Vale ressaltar, porém, que de fato
foram construídas novas casas na favela, o que demonstra não apenas que a proibição da
associação de moradores não tem efeito prático, mas também que alguns moradores
podem estar construindo por se sentirem apoiados pelos traficantes de drogas (embora
não se possa descartar que as construções possam estar sendo realizadas à revelia de
ambos os poderes locais).

Em outro momento o presidente mencionou que a Prefeitura tinha oferecido a


construção de algumas casas para os moradores, como forma de compensar a localidade
pela impossibilidade de construir a creche pedida pela associação por razões
orçamentárias. Segundo ele a construção dessas casas seria um problema, visto que
poderia pô-lo em confronto com o tráfico:

Eu já falei com a Prefeitura que se eles quiserem construir essas casas aqui eles vão
ter que se responsabilizar pela distribuição delas. Porque não tem casa para todo

63
mundo, e se aparecer alguém dizendo que mandaram [referindo-se aos traficantes]
dar a casa para ele, o que eu vou fazer? Eu sei quem precisa de casa realmente, mas
nem sempre é esse que recebe.

Dessa forma, apesar de afirmar a autonomia do trabalho da associação, o


presidente confirmava que frente à vontade e ao poder dos traficantes ele não tem
possibilidade de resistência. Como estratégia de ação para continuar trabalhando, este
líder buscava manter distância dos traficantes em sua função pública de representante de
uma organização. Entretanto, ele não via tal afastamento como necessário quando se
trata de contatos privados – afirmou, por exemplo, que como simples vizinho
aconselhou alguns moradores a procurarem os traficantes em uma situação em que
considerava não poder interferir enquanto presidente. Interessante notar, na citação
abaixo, que está implícito que, não fora o receio de que a situação saísse do controle, o
recurso aos traficantes poderia ser válido.

O pessoal aqui de cima veio reclamar comigo que tinha umas meninas que bebiam
um pouco, ficavam meio doidonas, e tacavam pedras no telhado dos moradores.
Eles queriam que eu tomasse uma atitude, mas o quê que eu posso fazer? Posso falar
com elas, mas elas não vão me escutar. Então eu mandei eles irem nos caras, mas
não nesses daqui, que são muito bobões, nos lá de cima. Eles vieram e deram um
pau nas meninas que elas nunca mais jogaram pedra no telhado de ninguém. Mas eu
não posso ir lá reclamar, porque vai que um dia morre alguém, ou acontece alguma
coisa dessas? Como é que eu vou olhar para a família delas de novo?

Em outro contexto, no entanto, Antônio não propôs a resolução do conflito


através da intervenção dos traficantes de drogas: um dos motoristas do micro-ônibus
que faz a rota entre a estação de metrô do Largo do Machado e o Pereirão, através do
Parque Guinle e da Rua Pereira da Silva, exigiu que Antônio interviesse junto aos
jovens moradores da favela, que estavam se comportando de maneira inadequada no
transporte coletivo, gritando, usando palavrões e incomodando os outros usuários do
serviço, muitos deles moradores da rua e do condomínio. Antônio recomendou que o
motorista procurasse a polícia, que seria para ele a instituição responsável por conter
baderneiros. O presidente novamente evitou intervir diretamente na situação, reforçando
as limitações de seu poder enquanto liderança local, mas não recomendou a intervenção
dos traficantes.

64
As duas situações são diferentes; enquanto uma era assunto interno da favela,
conflito entre moradores, o outro envolvia agentes externos – a companhia de transporte
público. Assim, para Antônio o reconhecimento da validade da intervenção dos
traficantes de drogas depende do contexto de cada conflito. Em ambos os casos,
contudo, o presidente buscou o distanciamento em relação aos traficantes; ainda que
internamente ao território da favela reconhecesse o poder destes e até tivesse sugerido
que ele fosse acionado quando fora necessário. Mesmo nessas condições, porém,
alguma distância teve que ser mantida (ele não se propõe a fazer diretamente a
solicitação), pois a impossibilidade de prever ou garantir o que os traficantes iriam fazer
seria um risco que ele não pretendia assumir, como presidente ou como morador antigo
e conhecido das pessoas envolvidas. Porém, o afastamento que este líder busca em
relação ao tráfico – ainda que compreensível, em função do medo, e louvável, ao tentar
evitar qualquer contaminação – muitas vezes acaba por comprometer sua atuação
enquanto presidente da associação de moradores. Ao recusar participar da divisão das
casas pela prefeitura por temer a intervenção injusta dos traficantes, por exemplo, acaba
por não cumprir um dos papéis importantes da liderança comunitária.

A paralisia de ação do presidente se reflete na associação, que estava


praticamente inativa, sem atuação concreta a não ser nos serviços de distribuição de
cartas e na cessão de sua sede para atividades do programa estadual “Jovens pela Paz”.
Nas conversas com o presidente ele confirmou o esvaziamento da associação, culpando
por isso o desinteresse do poder público pela localidade e o desinteresse dos moradores
em se organizar em prol da coletividade – segundo ele, há muita desunião entre eles,
ninguém tem interesse em melhorar as condições de vida na localidade ou pressionar o
poder público para fornecer serviços52. Assim, seria muito difícil obter do poder público
o investimento necessário para melhorar as condições daquela localidade sem a pressão
popular, visto que eles não possuem um “padrinho político”. Essa explicação para a
paralisia da associação chama a atenção por dois diferentes pontos: i) a noção de que a
atividade principal da associação é ser um canal entre os moradores e o poder público,
para demandar investimentos localizados; ii) a compreensão de que a atuação do poder
público nessas localidades se dá através da mediação de um agente político, um

52 Note-se que, se tal avaliação está correta, que ela se opõe à ideia muito difundida de que são fortes os
laços primários e a solidariedade de vizinhança nas favelas pequenas.

65
vereador, deputado ou secretário de governo que interceda em nome da “comunidade”,
em troca de votos.

A compreensão de que é necessário um “padrinho” para ter acesso aos bens


públicos é resultado da experiência de anos dos moradores de favelas (e de bairros
populares, em geral) com o poder público. No período da “política da bica d’água”
(anos 1970), por exemplo, muitos dirigentes procuravam políticos com inserção no
poder público para que investimentos fossem feitos nas localidades em troca de votos
(Pandolfi e Gryszpan, 2002: 247). Vale ressaltar, porém, que naquele momento não
existiam políticas públicas específicas para as favelas, e por isso o acesso a esses
investimentos era feito na base dos contatos pessoais entre líderes de associações e
políticos locais. Mas o fenômeno do apadrinhamento, ou do clientelismo, é corrente na
cultura política brasileira.

Para Carvalho (1997), o conceito de clientelismo perpassa toda a história política


do país, e indica a relação entre atores políticos que trocam benefícios públicos (como
empregos, isenções e benefícios fiscais, entre outros) por apoio político. De acordo com
o momento político vivido, a relação entre o governo, que controla esses benefícios, e a
população pode ser feita com ou sem a mediação de um chefe, um coronel ou um
político local.

Nesse sentido, é possível mesmo dizer que o clientelismo se ampliou com o fim do
coronelismo e que ele aumenta com o decréscimo do mandonismo. À medida que os
chefes políticos locais perdem a capacidade de controlar os votos da população, eles
deixam de ser parceiros interessantes para o governo, que passa a tratar com os
eleitores, transferindo para estes a relação clientelística (Carvalho, 1997).

Analisando comunidades rurais no sul e no nordeste do país, e suas relações com


a política, Heredia (1996) demonstra que o voto é a “moeda de intercâmbio” com a qual
pessoas ‘comuns’ podem ter acesso a bens que se localizam fora de sua comunidade,
das relações de vizinhança ou compadrio, e que para serem alcançadas precisam da
ajuda de alguém de fora.

66
(...) emprego na prefeitura, no correio e no hospital, como professor de uma escola,
serviços de saúde, serviços jurídicos, acesso a crédito bancário, obtenção de
aposentadoria e documentos pessoais, liberação de impostos. Estas são coisas que
supõem ajuda de pessoas de ‘fora da comunidade’, que possuam um capital
profissional ou disponham de relações sociais ou econômicas que lhes permitam
mobilizar recursos para atender tais demandas (Heredia, 1996: 63).

No caso analisado, a lógica parece ser a mesma, ainda que os bens desejados
sejam coletivos: a construção de uma creche, investimentos em projetos sociais para a
juventude, entre outros. Apesar disso, é evidente que esse tipo de troca permite também
ganhos pessoais, sejam eles materiais ou simbólicos – as vantagens em questão estão
sempre associadas à posse de capital simbólico representado pela atuação política
(Bourdieu, 2004: 173). No entanto, diferentemente do que acontecia no período da
“política da bica d’água”, atualmente existem intervenções específicas do poder público
nos territórios das favelas, e nesses casos os dirigentes comunitários podem concentrar
mais poder, ao dispensar algumas mediações e a controlar diretamente os recursos
aplicados. No caso do Plano de Aceleração do Crescimento – PAC53, realizado em
algumas favelas cariocas, os dirigentes de associações de moradores negociam
diretamente com o poder público estadual e federal, bem como com as empresas
privadas responsáveis pela execução das obras.

A explicação dada para esse desinteresse de atores políticos como secretários e


vereadores no Pereirão teria como motivo, segundo Antônio, o fato de a favela ter
poucos habitantes, em torno de dois mil e quinhentos, o que daria em torno de apenas
700 eleitores, de acordo com seus cálculos. Assim, os candidatos não teriam interesse
em gastar recursos para ganhar “apenas setecentos votos54” – e por isso ele, enquanto
mediador dos moradores junto aos poderes públicos, teria dificuldade em ter suas
demandas atendidas. Na troca necessária do atendimento a demandas locais por votos,

53
O PAC é uma iniciativa federal apresentada durante o segundo mandato do Presidente Luís Inácio Lula
da Silva. O programa prevê uma série de investimentos para aumentar o dinamismo da economia
brasileira. No Rio de Janeiro, por exemplo, estão previstos investimentos em portos, aeroportos e
estradas, bem como na produção de energia, saneamento e urbanização. O investimento previsto é de
165,6 bilhões de reais só no estado, sendo que R$ 89,8 bilhões até 2010. Desses, R$ 8,8 bilhões serão
investidos nas áreas social e urbana – urbanização, saneamento e habitação (Secretaria de Comunicação
Social da Presidência da República, 2008). Estão previstas obras em algumas favelas, como Rocinha,
Cantagalo e Pavão-Pavãozinho (Zona Sul do Rio de Janeiro), em Acari e nos conjuntos de favelas do
Alemão e de Manguinhos (Zona Norte), além de favelas localizadas nos bairros do Caju e Bangu.
54
O entrevistado deixa implícito que todos (ou a maioria) os moradores votariam no candidato que se
tornasse o “padrinho” local, reforçando a representação das favelas e espaços populares como currais
eleitorais de políticos clientelistas.

67
ele não tem muito a oferecer, e assim não poderia pagar a dívida contraída com o
“padrinho” na moeda em que essas trocas são feitas: votos que garantam a eleição do
“padrinho” (Heredia, 1996). Além dos poucos votos arrecadáveis na localidade, o
presidente destaca que o fato dessa não ser uma favela com visibilidade pública
(referindo-se à exposição na mídia) faz com que o poder público ou políticos “ignorem-
nos”, por não auferirem publicidade para suas gestões ou mandatos através de atuações
ali. A invisibilidade da favela na mídia se daria pela sua “tranquilidade”, pela falta de
conflitos violentos na região (entre traficantes ou entre esses e a polícia), pois “somente
assim as favelas saem no jornal”. Outros dirigentes de associações de moradores,
ouvidos pela pesquisa “Rompendo o cerceamento da palavra” e que participaram dos
“coletivos de confiança” mencionados na Introdução, também apresentaram a mesma
relação de causa-efeito entre eventos violentos e ações públicas. Onde acontecem
conflitos violentos, especialmente com vítimas fatais, seriam os locais privilegiados
para investimentos públicos; até como uma forma de resposta do Estado aos
acontecimentos. A lógica de que ações sociais, executadas pelo governo ou por
entidades do terceiro setor, podem ser ferramentas contra a criminalidade – “estratégias
de prevenção ao crime” (Soares, 1996) – perpassa discursos e práticas no campo da
segurança pública (como discuto nos capítulos III e IV).

Essa falta de um “padrinho político” (pelo desinteresse dos políticos pela


localidade), assim como o desinteresse da população local em pressionar o poder
público, pode ser confirmada pela falta de investimentos no local que podem ser vistos
em outras favelas. Como dito anteriormente, quando da execução do “Mutirão Pela Paz”
na localidade, o governo do estado garantiu que diversos programas e políticas sociais
seriam executados no local. No entanto, à exceção da sede do Batalhão do BOPE e do
trailer da Policia Militar instalado na entrada da favela, nenhum outro serviço
permaneceu em funcionamento. Segundo o presidente da associação, apenas o
Programa “Jovens Pela Paz” foi executado por mais tempo.

O caso analisado aqui não é, contudo, único ou excepcional no que tange à


denúncia da ausência de investimentos públicos. Nos “coletivos de confiança”
mencionados foram coletadas reclamações de dirigentes de associações de moradores
sobre o desinteresse do poder público em investir em favelas pequenas ou de pouca
“visibilidade” (entendida como presença nos meios de comunicação e debates públicos).
De acordo com esses relatos existiria uma disputa de mercado entre favelas, e os

68
investimentos seriam alvo de competição entre elas, por não serem homogeneamente
distribuídos entre todas as áreas pobres da cidade. A noção de uma competição entre
favelas por recursos públicos é apresentada por Machado da Silva (2002), ao comentar a
relação entre o poder público, no caso o municipal, e os representantes de diferentes
favelas a partir da implantação do Programa Favela-Bairro55. Segundo ele, tal política
pulveriza a luta coletiva por melhorias, pois cada favela passa a defender seus interesses
separadamente, o que “enfraquece o conjunto das mobilizações e despolitiza as
reivindicações, circunscrevendo-as à dimensão administrativa e técnico-financeira na
qualidade de pequenos lobbies (...)” (Machado da Silva, 2002: 232).

Na avaliação de Antônio, sem um “padrinho” político e sem “mortos aparecendo


nos jornais”, o único canal possível para que o poder público atendesse as necessidades
dos moradores do Pereirão seria a pressão popular: “todo mundo invadir o gabinete do
secretário ou do prefeito sentar no chão e só sair quando ele se comprometesse a liberar
os recursos”. No entanto, os moradores não se dispunham a participar de demonstrações
como essas, e esperariam que ele fizesse tudo sozinho. Como me disse Cristina: “o povo
aqui gosta de mole”. Dessa forma, estabeleceu-se entre os moradores do Pereirão e sua
liderança local uma situação insustentável: os primeiros estavam insatisfeitos com o
presidente, e esse não encontrava caminhos para sua ação política, permanecendo inerte
por se considerar sem os meios para agir. Consequentemente, Antônio não foi reeleito, e
sua gestão foi substituída pela presidência de Jennifer, jovem nascida e criada no
Pereirão, acompanhada por outras mulheres que, como ela, são ligadas à organização
não-governamental atuante no Pereirão.

2.1.2 A gestão de Jennifer.

Após o fim do trabalho de campo, ao retornar ao Pereirão para rever Antônio, fui
surpreendida pela informação de que agora a presidente da Associação de Moradores
era Jennifer, que conheci quando acompanhei as atividades da ONG TV Morrinho (Cfr.
Capítulo III). “Nascida e criada” no Pereirão, tem “30 anos de comunidade”. Sua

55
As linhas gerais do programa, bem como de outras políticas públicas executadas em favelas, serão
apresentadas a seguir, em um pequeno histórico.

69
família não mora mais lá: perdeu pai e mãe, seus irmãos moram fora da favela, e um dos
irmãos ela “perdeu para o tráfico”. No momento acumula o trabalho na associação com
seu expediente na ONG, e como as duas organizações são vizinhas ela passa o dia se
movimentando entre as duas salas. A participação na associação não foi sua primeira
experiência no trabalho comunitário: durante seis anos participou de um programa do
Governo estadual onde coordenava trabalho com jovens da localidade. Também
participou de outras gestões da associação de moradores. Diz que sempre foi uma
liderança e gostou do trabalho comunitário, sendo uma de suas responsabilidades na
ONG facilitar que essa tenha um envolvimento maior com a localidade (como na
realização de festas coletivas, de campanhas, etc.).

Segundo Jennifer, Antônio não ligava mais para nada e mantinha a sede da
entidade fechada o dia inteiro: “a associação estava entregue à própria sorte”. Assim,
junto com outros moradores que desejavam “mudar a situação, e não apenas reclamar”,
montou uma chapa de oposição e foram eleitos “com o dobro dos votos necessários”.
Após eleita, seu desafio é reconquistar a confiança dos moradores, que estariam
decepcionados com a associação após quase vinte anos de gestões insatisfatórias. Ainda
que goste de Antônio pessoalmente, seu conhecido “desde a barriga da minha mãe”,
avaliou que ele não estava mais preocupado com o bem-estar coletivo, e era autoritário
em suas decisões, o que afastou os moradores da entidade. Desde o começo de sua
gestão tem realizado reuniões semanais, que se no começo contavam com poucos
participantes hoje reúnem mais de 120 moradores na quadra que se localiza na entrada
da favela. Conseguiu aumentar também o número de moradores que contribuem com a
taxa de manutenção da favela coletada pela associação, de cinqüenta para duzentas
contribuições – feito alcançado após reduzir o valor da taxa de cinco para dois reais56.

O discurso de Jennifer sobre sua gestão na associação contrasta com o de


Antônio na primeira impressão. Enquanto este apontava com bastante ênfase as
dificuldades que encontrava, Jennifer não se cansa de discorrer sobre as qualidades da
favela do Pereirão, sempre se referindo à “tranquilidade” e ampliando a
excepcionalidade do local para seus moradores:

56
Para aqueles que são proprietários de casas alugadas a taxa é de R$ 10,00 por cada quarto existente na
casa.

70
Aqui é uma comunidade modelo, e pode ser muito mais. Porque o nível de tráfico e
de violência, graças a Deus, não é nada gritante, tendo em vista o que está
acontecendo aí fora. Mas dá para a coisa ficar ainda melhor.

É importante considerar que há uma diferença entre o trabalho de campo


realizado com Antônio e com Jennifer: enquanto no primeiro caso acompanhei o
cotidiano do presidente da associação e realizei com ele uma série de entrevistas (após
termos estabelecido uma relação de mínima confiança), com Jennifer não tive tempo
para acompanhar sua rotina, e realizei apenas algumas entrevistas. A relação de
confiança construída não foi a mesma que com Antônio, evidentemente, ainda que o
fato de ter conhecido Jennifer anteriormente, em função de seu trabalho na ONG,
facilitou a aproximação inicial. Além da diferença no tempo dos dois trabalhos de
campo, entendo que em uma entrevista a “apresentação de si” é mais facilmente
incorporada e ativada que nas situações concretas do cotidiano – que só podem ser
acessadas quando este cotidiano é acompanhado pelo pesquisador, e não apenas descrito
pelo entrevistado. Apesar das ponderações metodológicas mencionadas acima, acreditei
ser possível observar diferenças na atuação dos dois dirigentes: percebi que a associação
de moradores estava mais cheia, e vi Jennifer atuando como mediadora de conflitos
entre moradores em algumas situações, papel que era pouco executado por Antônio.

Como exemplo dessa mediação de conflitos assumida por Jennifer, em uma de


minhas visitas à localidade ela me relatou que, na noite anterior, tinha chamado o
Conselho Tutelar57 do bairro para intervir junto a um casal, que tinha deixado seu bebê
de poucos meses sozinho em casa e tinham ido a um bar. Durante a conversa o pai da
criança foi à associação, reclamar com ela sobre a convocação que tinha recebido do
Conselho. Jennifer argumentou que estava apenas cumprindo seu papel de presidente da
associação, que incluía intervir em situações de “negligência paterna” (em suas
palavras) acionando o órgão público adequado. Quando o morador afirmou que, caso
fosse prejudicado em seu trabalho, iria “cobrar” por essa intervenção, Jennifer saiu da
sede da associação e gritou para que alguns jovens que estavam parados na entrada da
favela viessem em seu auxílio, pois estava sendo “ameaçada”. Um dos jovens chamados
avisou ao morador que ali era uma “comunidade”, e que ele não poderia fazer ameaças a

57
Criado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, o Conselho Tutelar é um órgão permanente e
autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da
criança e do adolescente, definidos na Lei Federal 8.069 de 13 de julho de 1990, que entrou em vigor no
dia 14 de outubro de 1990. Cf. site Portal do Conselheiro Tutelar.

71
ninguém. Nesse momento acredito que ele estava fazendo referência ao fato de, em uma
“comunidade”, existirem forças que regulam os conflito – possivelmente os traficantes
de drogas. Apesar de não ter confrontado Jennifer sobre este caso, creio que ela não
acionou os jovens ao acaso; ela parecia estar ciente de que aqueles rapazes seriam
identificados pelo morador como representantes de uma “força” maior. A manobra
surtiu efeito, pois o morador desculpou-se pela forma “exagerada” pela qual tinha
reagido e disse que estava apenas preocupado por ter que faltar ao trabalho para ir a
audiência marcada pelo conselheiro tutelar. Em seguida foi embora. Além deste caso
específico, as reuniões mensais da associação, das quais não pude participar também por
motivos de tempo, já representam uma mudança em relação à maneira como Antonio
tomava as decisões frente à associação, sem consultar ninguém.

É nos discursos, no entanto, que a diferença entre os dois ficou mais evidente. A
concepção de que é necessário um “padrinho político” para a comunidade, repetida em
entrevistas por Antonio, é rejeitada por Jennifer. Segundo ela, “Não gosto disso, porque
o padrinho de hoje vai te sugar amanhã. Eu não quero padrinho”. Ao relatar como se
passaram no Pereirão as eleições municipais recém terminadas, disse que não escolheu
candidato, não indicou ninguém, e que todos os candidatos que quiseram realizar
campanha na favela foram recebidos – ainda que na imprensa só tenha sido mencionada
a visita do candidato a prefeito vencedor e que na favela, um mês após a eleição, eu só
tenha visto material de campanha de um único candidato a vereador, do mesmo partido
do prefeito (mas que não foi eleito). Jennifer afirmou ainda que mais importante que
padrinhos é o dirigente “(...) saber reivindicar. Com quem você deve falar, aonde deve
ir”. Assim, demonstra estar mais ciente que Antônio de uma das competências mais
acionadas pelos dirigentes de associações de moradores: a capacidade se mover na
burocracia e de acionar as pessoas-chave na estrutura. Além disso, Jennifer fala
constantemente na necessidade de fazer “parcerias” com o poder público, empresas e
pessoas físicas, demonstrando compreender que as relações entre poder público e
favelas passam atualmente por esse conceito, e não pelas antigas dinâmicas clientelistas,
como acreditava Antônio. Todavia, a efetividade do discurso de Jennifer, em termos de
conseguir tais “parcerias” em forma de investimentos, não pôde ser mensurada dentro
do tempo disponível para a realização desta pesquisa.

Assim, o dinamismo de Jennifer faz pensar se a paralisia de Antônio era apenas


receio das arbitrariedades dos traficantes de drogas ou se as críticas feitas pela nova

72
presidente procedem, no sentido do desinteresse dele pelas questões coletivas do
Pereirão. Seria necessário acompanhar o trabalho de Jennifer para avaliar se uma
atuação mais ativa à frente da associação de moradores será alvo dos traficantes de
drogas ou não, e quais as estratégias que Jennifer escolherá nesse caso. Em relação à sua
capacidade de trabalho e de realizar uma gestão eficiente do ponto de vista dos
moradores da favela, também seria preciso mais trabalho de campo. No entanto,
percebe-se que os moradores têm começado a se aproximar mais da associação, ainda
que tal movimento não represente uma mobilização dos moradores em torno de suas
questões coletivas. Para Jennifer, o afastamento dos moradores também representa um
problema na condução das reivindicações feitas.

A saída é reivindicar, saber reivindicar. Com quem você deve falar, aonde deve ir.
Se mover. Mas não vai ser o presidente sozinho, vai ser a comunidade que assina
embaixo e vai dizer junto: nós estamos pedindo há tanto tempo e não temos nada.
Isso vai estar ajudando. Porque se a associação não trabalhar direito, não fizer a
coisa certa, nem mil padrinhos vão resolver.

Diferentemente de Antonio, Jennifer não apresentou esse afastamento como um


desinteresse, e sim como resultado de mal sucedidas gestões da associação. Na seção
seguinte discuto o conceito de “tempos da política” (Heredia, 1996) e como através das
décadas passadas as organizações de moradores de favelas passaram por momentos de
maior mobilização ou de maior esvaziamento, de acordo com as condições impostas
pelas dinâmicas políticas de cada período histórico.

2.2 “Tempos da política” nas favelas cariocas.

Apesar do afastamento dos moradores e conseqüente esvaziamento da


associação ser considerado grave pelos dirigentes, não é uma situação única nem
inédita. Em muitas outras associações a avaliação por parte dos dirigentes é parecida.
No entanto, eles comparam a situação atual a um passado onde os moradores estariam
engajados na vida política das suas localidades, ainda que esse passado seja identificado

73
em momentos históricos diferentes, de acordo com cada interlocutor. Podemos
observar, no entanto, que em alguns momentos na história das favelas no Rio de Janeiro
realmente houve uma mobilização maior por parte dos moradores, sobretudo quando a
permanência desses nos seus territórios de moradia estava ameaçada. Também houve
grande mobilização em algumas favelas em torno do tema da urbanização.

O trabalho de Beatriz Heredia (1996), mais uma vez, auxilia na compreensão


desses movimentos de oscilação entre períodos de maior e menor mobilização dos
moradores de favelas em torno de suas associações locais. Segundo a autora, a política
não está presente cotidianamente nas comunidades camponesas que estuda, mas em
momentos específicos ela se torna parte importante da vida coletiva:

Nas comunidades camponesas, a política não é um tema que faça parte do cotidiano.
No entanto, isso se altera no período eleitoral, quando a política está presente tanto
através da mídia, especialmente rádio e televisão, quanto pela presença física dos
políticos e de seus símbolos – bandeiras, cartazes e músicas. Essa presença da
política em tempos de eleição permite-nos dizer, sem temor de equívocos, que
nesses momentos ela faz parte de seu cotidiano. É essa presença maciça da política,
e a maneira como ela se dá, que faz referirmo-nos ao período eleitoral nas
comunidades camponesas como sendo o tempo da política (Heredia, 1996: 57).

Assim, ainda que a autora se refira às comunidades camponesas e ao momento


das eleições, podemos traçar paralelos com os diferentes momentos da história das
favelas – a cada momento de ameaça à existência das favelas, ou de perspectiva de
melhorias, houve ações de mobilização dos moradores e o fortalecimento da ação
coletiva.

O surgimento das primeiras associações de moradores de favelas, nos anos 1940,


acontece em um contexto de reação dos favelados às propostas de remoção das favelas
para lugares distantes do centro da cidade. Já no início da década de 1960, para tentar
conter o crescimento das favelas, o governo municipal estimulou a formação de diversas
associações, que seriam agências estatais dentro das favelas para “auxiliar o governo na
implantação de serviços básicos e na manutenção da ordem interna. (...) Não foi por
acaso que, num curto espaço de tempo, entre 1961 e 1962, a Serfha, sob direção do
sociólogo Artur Rios, criou mais de 75 associações, entre as quais a União Pró-
Melhoramentos dos Moradores da Rocinha (UPMMR)” (Pandolfi e Grynszpan, 2002:

74
243). A política do governo estadual, nesse período, oscilava entre a remoção e a
urbanização das favelas, mas o golpe militar de 1964 possibilitou o ambiente para que
as propostas remocionistas se fortalecessem, reprimindo de forma violenta qualquer tipo
de ação coletiva, intervindo e enfraquecendo o movimento das associações de
moradores. As associações passaram a atuar como representantes do governo dentro das
favelas, gerenciando os serviços públicos e evitando o crescimento das favelas.
Algumas associações, inclusive, passaram a defender as remoções (Pandolfi e
Grynszpan, 2002: 245). Nessa época as relações entre poder público e moradores de
favelas já se davam na dinâmica da troca de votos por recursos de fonte externa, o que
garantia às lideranças locais uma posição elevada dentro da hierarquia social e
econômica da favela, formando junto com pequenos capitalistas a “burguesia da
favela”, como definiu Machado da Silva (1967). O autor ressaltou ainda que a
participação da maioria dos moradores era muito pequena ou inexistente, e somente
aqueles que pertenciam ao estrato social mais elevado se envolviam nas atividades
políticas. O controle dos recursos internos disponíveis garantia a permanência do
dirigente na associação e impedia o acesso coletivo aos recursos mencionados (1967:
38-9).

No final dos anos 1970, com o processo de redemocratização do país e o (re)


surgimento de movimentos sociais, o ritmo das remoções começou a diminuir, tanto
pelos problemas relacionados aos custos das obras dos conjuntos habitacionais e ao
pouco retorno dado pelos financiamentos, quanto pela pressão do movimento de
favelados. Nesse momento é a bandeira da urbanização que impulsiona a organização
coletiva, mas a inexistência de políticas públicas específicas para esses territórios faz
com que as associações de moradores passem a se relacionar com os políticos de forma
clientelista (Burgos, 2003: 39), trocando benefícios para as localidades por votos. O
governo de Leonel Brizola (que durou de 1983 a 1987) representou uma mudança na
relação entre poder público e favelas, especialmente por ele ter sido o primeiro
governador do Estado do Rio de Janeiro eleito de forma direta após a fusão entre os
Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, em 197558. Segundo Burgos (2003: 41)
Brizola foi eleito com o voto dos “excluídos” – moradores de favelas e conjuntos
habitacionais cariocas. Para o autor a motivação dos que votaram em Brizola era o

58
Após a fusão, Floriano Peixoto Faria Lima foi nomeado governador (entre 1975 e 1979). Em seguida,
Chagas Freitas foi eleito indiretamente, e governou entre 1979 e 1983.

75
“ressentimento” em relação à forma como essa camada foi tratada anteriormente pelos
governos. Assinalando o fim das políticas de remoção, a urbanização de favelas
começou a ser implantada, e o governo do estado passou a investir em sistema de esgoto
e água e na coleta de lixo nessas localidades, bem como em tentar modificar a forma
como a polícia atuava dentro das favelas (Burgos, 2003: 42). Dentro dessa nova
perspectiva trazida por Brizola, as lideranças tornaram-se interlocutoras frequentes do
governo, continuando a assumir os papéis de agência estatal que lhes tinham sido
atribuídos anteriormente. Assim, as associações negociavam suas demandas diretamente
com o governo, sem a intermediação dos políticos como no período da “política da bica
d’água”. Foram atribuídas às associações tarefas públicas em acordos firmados com
agências estatais, que incluíam a contratação de mão-de-obra para trabalhar nas obras e
na manutenção e garantiam à associação de moradores uma taxa de administração de
5%, segundo informação coletada por Burgos e citada por Pandolfi e Grynszpan (2002:
249). Os autores ressaltam que essa forma de relação entre associações e Governo
fortaleceu a atuação de muitas associações, já que estar na associação significava ter
acesso a recursos como empregos, controle dos serviços, etc., o que acarretou inclusive
a contratação de muitas lideranças como funcionárias do governo, no posto de agentes
comunitários.

Assim, Brizola escolheu a interlocução direta com as associações de moradores


sem a mediação de políticos, incentivando que essas se aproximassem mais do poder
público em suas demandas, que participassem mais da administração pública presente
em suas localidades, entre outros. Tal aproximação com o poder público seria o que
Doimo (1995) denominou “integração ao sistema”, em seu estudo sobre os movimentos
sociais urbanos a partir da década de 1970. Segundo a autora, nesse período os
movimentos sociais optam por uma abordagem mais “propositiva” em suas relações
com o estado, em detrimento de um posicionamento contestador e reivindicatório.
Pandolfi e Grynszpan (2002: 249) ressaltam que essa forma de articulação entre
associações e Governo incentivou a adesão de moradores às organizações, já que estar
na associação significava ter acesso a recursos como empregos, controle dos serviços,
etc., o que acarretou inclusive a contratação de muitas lideranças como funcionárias do
governo, no posto de agentes comunitários. No entanto, tal posicionamento mais
conciliador foi identificado por parte do movimento de base como uma “cooptação”

76
dessas lideranças pelo poder público, e a transformação das entidades em atores da
política institucional.

A relação de proximidade entre associações e Governo permaneceu nos anos


1990, agora institucionalizada como “parcerias”, e inclusive teve sua atuação aumentada
nesse campo na gestão municipal de César Maia, especialmente em função do Programa
Favela-Bairro, iniciado em 1994. Dentro do Programa Favela-Bairro as associações são
gerentes de programas financiados com recursos públicos, e concentram cada vez mais
poder através da contratação de funcionários e serviços. Como dito anteriormente, o
Programa Favela-Bairro pulveriza a luta por melhorias, pois cada favela passa a
defender seus interesses separadamente, o que “enfraquece o conjunto das mobilizações
e despolitiza as reivindicações, circunscrevendo-as à dimensão administrativa e técnico-
financeira na qualidade de pequenos lobbies (...)” (Machado da Silva, 2002: 232).

No momento atual, as obras do PAC nas favelas cariocas parecem reproduzir o


mesmo tipo de relação entre associações e poder público, mas agora incluindo também
na rede o poder federal. O formato das ações continua sendo a ação localizada,
privilegiando algumas favelas em detrimento de outras. As associações de moradores
continuam atuando como “parceiras”, mas participando como executoras das políticas, e
não como copartícipes de sua elaboração. Ao mesmo tempo, a política de segurança
pública permanece como monopólio da Secretaria de Segurança Pública do Estado, e as
denúncias de que as associações de moradores atuam como mediadoras do poder
público junto aos traficantes de drogas (quando não são acusadas de cúmplices destes)
são cada vez mais frequentes na mídia59.

Este pequeno histórico das relações entre associações de moradores e poder


publicou permite questionar a afirmativa, feita por Antônio e por outros dirigentes de
associações ouvidos, de que não há “interesse” por parte dos moradores de favelas na
luta por melhorias em suas condições de vida. A forma como o poder público e os
favelados se relacionam politicamente é que oscila entre momentos de maior
mobilização (quando não há tanta repressão à organização e a participação coletiva é

59
Cf. Elos Perdidos. Entre o Palácio do Planalto e os traficantes, as associações de moradores de
favelas (Revista Piauí, julho de 2008); Quem decide o voto é o crime. Traficantes e milicianos do Rio
resolveram entrar para a política. Seus métodos são a violência, a intimidação e a criação de currais
eleitorais (Revista Época, agosto de 2008); No curral, e com ficha suja. ‘Candidato único’ da Rocinha
responde a 14 ações por roubo, furto e estelionato (O Globo, 26 de julho de 2008).

77
incentivada) e outros de apresentação das demandas coletivas através dos canais
institucionais. Na atual configuração das relações entre esses atores, as competências e
habilidades que devem ser acionadas e que permitem o sucesso nas demandas não são
ligadas ao carisma interno ou à força de mobilização coletiva, e sim às capacidades de
articulação política e de mediação entre os interesses internos e externos. Mais
“ajustada60” aos novos tempos, Jennifer substituiu Antônio propondo cumprir os papéis
de mediação que ele se recusou a fazer, seja com as forças externas seja com as forças
locais – entre elas possivelmente os traficantes de drogas (como no caso dos jovens que
foram chamados para intervir quando um morador teria ameaçado Jennifer).

As mediações que as associações têm que fazer ao assumirem o papel de


representante dos moradores é um tema que preocupa e mobiliza seus dirigentes. Ao
mesmo tempo em que consideram como um importante recurso a capacidade de fazer
todas essas articulações, os dirigentes sabem que esses contatos são perigosos e
ameaçam tanto sua imagem de lideranças comprometidas e honestas quanto sua
segurança pessoal. Ao estabelecerem contatos com o poder público, as “parcerias”,
correm o risco de serem acusados de favorecimento pessoal. E ao aceitarem o papel de
mediadores junto aos traficantes de drogas estão cientes do risco de serem rotulados
como cúmplices destes, além do perigo de atraírem para si as ameaças recorrentes da
convivência com essa força violenta. Na próxima seção, analiso o discurso de outros
dirigentes de associação de moradores de favelas, de diferentes partes da cidade,
tamanhos e contextos internos, e discuto como eles trataram esses temas,
particularmente a relação com os agentes da criminalidade violenta que se instalou nas
favelas ainda na década de 1980, e se tornou um problema de grandes proporções a
partir dos anos 1990.

2.3. Política e criminalidade violenta nas favelas do Rio de Janeiro.

Nesta seção irei analisar as representações sobre política e criminalidade


violenta de alguns dirigentes e ex-dirigentes de associações de moradores de favelas do
Rio de Janeiro. Esses relatos foram coletados no âmbito da Pesquisa: “Rompendo o
60
Para o conceito de ajustamento (ou justesse), ver Boltanski e Thévenot (1991: 59 e seguintes) e nota 18.

78
cerceamento da palavra: A voz dos favelados em busca do reconhecimento”, como
mencionado na Introdução desta tese. Dos 12 participantes presentes ao coletivo de
confiança, quatro estavam naquele momento atuando como presidentes de associações
de moradores; dois eram vice-presidentes, um era dirigente de federação de associações,
dois eram ex-dirigentes (e no momento atuavam em ONGs em suas favelas), um era
diretor de associação, um não declarou seu cargo e outro não tinha função na associação
e trabalhava como agente comunitário contratado pela Prefeitura da Cidade do Rio de
Janeiro. Percebe-se pelo grupo formado uma amostra da diversidade possível de
organização coletiva dentro das favelas, particularmente no que diz respeito à
participação de ex-dirigentes de associações de moradores em organizações não-
governamentais, atuando dentro das favelas em que dirigiram anteriormente associações
de moradores. No momento em que esta tese é escrita, quase três anos após a realização
do encontro em questão, a maioria dos participantes não se encontra mais à frente de
associações de moradores, e um deles foi assassinado enquanto ocupava o cargo de
presidente.

A relação entre os grupos armados de traficantes e as associações de moradores


deve ser pensada dentro do contexto da convivência desses grupos com os moradores
em geral, relação essa que é marcada pela submissão a uma forma de vida que não
reconhece outra forma de orientação da ação que não a força (Machado da Silva, 1995,
2002, 2004a, 2004b, 2008a). Assim, como os outros moradores de favela, os dirigentes
de associações de moradores estão submetidos a uma ordem violenta, na qual não existe
“acordo, negociação, contrato ou outra referência comum compartilhada” (Machado da
Silva, 2004b: 40). A condição de liderança local os coloca em evidência, o que pode
representar uma proteção, por serem “pessoas públicas”, mas pode também representar
um risco se eles forem considerados um impedimento para a ação dos traficantes de
drogas. Como vimos anteriormente no caso do Pereirão, os dirigentes tentam dar
continuidade ao trabalho que desenvolvem como representantes dos moradores, mas são
cotidianamente confrontados com a presença dessa força no território. No entanto, as
estratégias escolhidas para evitar o conflito com os traficantes e as consequentes
retaliações podem ser diferentes, como mostramos ao comparar as duas gestões à frente
da associação de moradores local. Também os dirigentes e ex-dirigentes que
participaram do coletivo de confiança apresentaram diferentes estratégias para resistir,
sobreviver e agir em uma situação de convivência forçada, como veremos a seguir.

79
Para algumas das lideranças entrevistadas os traficantes são descritos como
moradores comuns, alguns deles tendo crescido ali e mantendo uma convivência
anterior à entrada nas quadrilhas. Como diz o participante do coletivo de confiança
abaixo:

Agora, esse papo de jogar bola com o cara, a gente com o pessoal {do tráfico}, a
gente bebe até cerveja, mas cada um na sua. Eles sabem que sua vida é essa, a dele é
aquela. Você não vai ignorar o cara, é a realidade. O cara hoje é vagabundo, ontem,
ele foi, é filho do seu amigo. Eu vou ignorá-lo por causa disso? Agora, ele tem que
me respeitar como morador, eu o respeito como vagabundo.

No fragmento acima, como em outros ao longo do coletivo de confiança, os


participantes afirmam que, por serem moradores também, os traficantes devem ser
tratados como tal, ou seja, não se pode ignorar seu pertencimento àquele grupo. O que a
princípio parece uma ambiguidade no tratamento dado aos traficantes de drogas pelos
dirigentes e pelos moradores pode ser um “recurso social/simbólico” acionado para
tentar lidar com o risco representado por esses agentes de uma ordem violenta (Leite,
2008: 128). O participante respeita o “vagabundo” porque reconhece “a realidade” de
sua presença e de sua força; além disso, “jogar bola com o cara” pode ser utilizado em
outra situação como estratégia para se proteger, ou a pessoas próximas, de alguma
violência. Nesse sentido, a proximidade se apresenta enquanto um “recurso ativo”, a ser
acionado em momentos de risco (Leite, 2008: 130).

Para além de sua dimensão enquanto recurso, no fragmento acima o dirigente


está em um momento informal, o que é diferente de estar na posição de dirigente da
associação. Nesse caso, é possível aproximar-se do traficante, embora deixando claras
as diferenças morais e existenciais: o “respeito” é o mesmo, mas os mundos não são. O
encontro entre os dois mundos, tornado possível pelo entrelaçamento anterior das
trajetórias pessoais, ocorre como se fosse uma trégua – uma suspensão, mais que
apagamento – nas insuperáveis diferenças atuais. É essa suspensão que permite a
continuação da confiança na durabilidade das rotinas, ou seja, que dá ao morador a
sensação (não racional, segundo Giddens, 1991) de que controla alguns elementos de

80
sua vida cotidiana e dos riscos que enfrenta diariamente: ver o traficante também como
“filho do amigo” ou “amigo de infância” permite ao morador (seja ele dirigente ou não)
vislumbrar uma estratégia para reduzir os danos potencialmente causados pelos contatos
entre moradores e traficantes.

Neste sentido, o trabalho dos moradores para se diferenciarem dos traficantes


precisa ser diuturno, especialmente quando o morador pretende desempenhar o papel de
liderança política, ou seja, um status público. Outra participante do mesmo coletivo de
confiança reforça a ideia de que os traficantes são moradores também, e assim merecem
a atenção das lideranças, mas ao mesmo tempo delimita o afastamento necessário entre
os bandidos e a organização comunitária:

Eles são moradores iguais a qualquer um. Procurou pra saber, é isso, isso. E isso,
isso, aquilo. Não procurou, estou na minha também. Então o negócio é meio termo.
Não tem também que ficar dando satisfação de tudo, e nem como ele colocou, ficar
aceitando as coisas. Aceitou, é um favor, {o traficante} vai querer guardar armas,
vai querer guardar drogas, vai querer se esconder da polícia. Não tem esse tipo de
jogada. E deixar bem claro, a sede da associação é dos moradores, entendeu? A sede
não é do tráfico, é dos moradores.

Percebe-se no fragmento acima que a associação de moradores, enquanto


instituição, precisa afastar-se dos traficantes, pelo risco destes exigirem da associação
acobertamento as suas práticas. No entanto, sabe-se que esse afastamento é muito
difícil, porque os traficantes podem forçar uma aproximação. Da mesma forma que o
resto dos moradores, as lideranças podem ser obrigadas, através de ameaças à
integridade física, a colaborar com os traficantes. Segundo o depoimento acima, negar
essa colaboração fica ainda mais difícil quando se aceita ‘coisas’ dos traficantes –
mesmo que não sejam benefícios pessoais como, por exemplo, a oferta de donativos
para a realização de festas comunitárias.

Em outro depoimento o participante afirma que a liderança que atua de forma


mais efetiva dentro da sua localidade não consegue impedir essa aproximação com os
traficantes. E essa aproximação é tanta, segundo o relato, que a pessoa corre risco de
vida na eventualidade de a favela vir a ser ocupada por uma quadrilha rival:

81
(...) se o comando é com ele, ele que é o cara no morro, se eu realmente... eu estou
ali, fazendo um trabalho, fortalecendo, e eu estou sempre em contato com eles. Se
entrar esse grupo aqui, irmão, pode ralar peito (...) Vai morrer. É onde muitos
morrem. Mas muitos porque se envolvem. Não é que eles não queiram se envolver
não, o grupo está ali, os caras, como ele falou: ‘Criado junto’. O pessoal ali, eles
procuram, você não tem como (...).

Observa-se que mesmo quando os grupos de traficantes não intervêm


diretamente no trabalho das lideranças comunitárias eles podem diminuir a autoridade e
a legitimidade da representação dessas lideranças, por tornarem evidente para o
conjunto dos moradores que, naquele território, têm mais força que os dirigentes. No
caso do Pereirão, tal descrédito da autoridade da associação de moradores foi observado
no caso da autorização para a construção na favela, que teria sido dada pelos traficantes
contra a orientação do dirigente local. Ou ainda quando Antônio afirmou que não
participaria da partilha das casas que seriam construídas pela prefeitura, para não ser
contradito pelos traficantes. Segundo Zaluar (2004:362), as lideranças comunitárias
perderam poder e respeito para os ‘donos do morro’, e não possuem mais controle sobre
o que acontece dentro da sua ‘comunidade’. Nos relatos recolhidos nenhum entrevistado
reconheceu receber ordens de traficantes (mesmo porque não é fácil admiti-lo, para
quem se pretende líder), mas todos tematizam as limitações que a proximidade com o
tráfico trazem para as atividades priorizadas.

A pessoa que filma nos procura. Você não pode... Infelizmente você é presidente,
você não é dono da comunidade. (...) O dono da comunidade é o tráfico. Não tem
como fugir disso, se alguém falar que é diferente, não é. Porque não é mesmo.

Em função desse domínio do local pelos traficantes, muitos entrevistados


afirmaram não poder impedir a atuação desses grupos junto à associação. No
depoimento abaixo o participante do coletivo de confiança argumenta que muitas vezes
não é possível dizer não:

Participante: “(...) Ele falou ali: Ah, não vou receber nada de ninguém! Concordo
plenamente com ele, mas muitas vezes o cara chega aqui... ele vê que você vai fazer
um evento. Ele chega pra você: E aí meu cumpadi! E olha que hoje não tem mais
dinheiro não, hein? Hoje eles não têm dinheiro. Hoje eles estão passando fome (...).

82
Mas mesmo assim ainda chega um ali, com aquela boa vontade dele, querendo
ajudar o grupo: (...) Aí o cidadão: Não irmão, está tranquilo, não esquenta não, pode
deixar que a gente vai... Não cumpadi, eu quero ajudar. Aí chega lá, digamos com
duzentos reais, tudo bem. Você não pode chegar pra ele e dizer: "Não, não quero o
seu dinheiro não”.

Moderador: “Não pode?”.

Participante: “Não vou dizer isso pra ele. É a mesma coisa que eu estar desfazendo
dele. Tudo bem, ele pode até colaborar com duzentos reais, mas eu tenho que
mostrar pra ele que o que eu fiz custou dois mil. Se não tivesse aqueles duzentos
reais ali, ia acontecer do mesmo jeito, está entendendo? Agora, aquilo ali, você pode
até receber, mas isso hoje... não tem mais dinheiro também não, que eles não têm
mais dinheiro não”.

Percebe-se que as lideranças tentam criar limites para a aproximação dos


traficantes de drogas, diferenciando o que é patrocínio e o que é apenas uma
“colaboração”. Segundo o relato acima, aceitar dinheiro do tráfico é, além de inevitável,
não-problemático – desde que não seja uma proporção muito alta da quantia necessária
à realização da atividade. Fica claro também que a aceitação dessa ajuda por parte do
tráfico é tácita, uma estratégia para evitar um conflito inglório com os portadores da
força. A necessidade de não “desfazer” do traficante demonstra implicitamente o risco
da recusa ao contato ou à aproximação, representada pela rejeição da oferta de
colaboração financeira.

Existiria, assim, um campo de estratégias de ação possíveis, que vão desde


aceitar uma simples contribuição em dinheiro, como mencionado acima, até pedir
autorização para realizar atividades (próprias ou de agentes externos) na favela, como
também foi indicado em depoimento anterior. No entanto, todos os participantes do
coletivo de confiança confirmaram que não existe a possibilidade de evitar
completamente a relação com os traficantes, visto que sua presença no território das
favelas é um fato. Como será essa relação depende de diversos fatores, principalmente
da forma como os traficantes se colocam frente à favela que dominam e, por extensão, à
sua associação. No relato abaixo, o participante desenha uma linha de afastamento
possível em relação ao tráfico:

Moderador: “Eu pergunto o seguinte: É possível hoje não negociar?”.

83
Participante: “Não. Tem que negociar. Tem que negociar desde o momento que
você seja procurado. (...) Tem que negociar. Se não negociar, você não vai trabalhar
lá, se não negociar, você vai morrer”.

(...).

Moderador: “E o que é negociar?”.

Participante: “Negociar é... Você não precisa ficar procurando. A partir do momento
que eles vão te procurar, aí sim”.

Assim, a diferença está em tomar ou não iniciativa. Ao afirmar que quando


procurados os líderes têm que negociar, o entrevistado está apenas reconhecendo uma
situação concreta de extremo desequilíbrio de força. Ele reconhece o risco de se negar a
conversar, reforçando a noção de que o tráfico se coloca como um poder que submete
todos os moradores, mesmo aqueles que dispõem de mais recursos, como as lideranças.
Ainda que no “coletivo de confiança” os participantes tenham dado maior destaque à
própria capacidade de se conduzirem autonomamente frente aos traficantes, inclusive
porque estavam envolvidos em um processo de apresentação de si mesmos (visando
garantir que seriam vistos como lideranças legítimas e distantes dos traficantes), são
muitos os relatos sobre a coação do tráfico aos dirigentes de associação de moradores.
Zaluar (2004) afirma que os responsáveis por coordenar nas favelas os programas
municipais, como o Gari Comunitário, o Programa Favela-Bairro e outros mais, são
obrigados a colocar membros das quadrilhas na lista de pagamento. O fato dos
traficantes terem de ser consultados sobre as atividades da associação também é
comentado pela autora:

Tudo se passa como se os traficantes fossem atores políticos que não podem deixar
de ser consultados para a execução dessas atividades. É preciso ter a permissão
deles, sob pena de sofrer represálias que inviabilizariam essa execução. (Zaluar,
2004:362).

A gravidade da situação é também ressaltada por Burgos (2003), que compara a


opressão do tráfico sobre os favelados com a repressão que esses sofriam na época da
ditadura militar:

84
Os constrangimentos que esses poderes paralelos impõem às organizações políticas
locais, inclusive com o assassinato de muitas de suas lideranças, dão
prosseguimento ao terror policialesco antes imposto pelo Estado {durante o regime
militar}. Inibe-se, com isso, a adesão dos excluídos à institucionalidade
democrática, o que representa um desafio à própria democracia. (Burgos, 2003: 44).

Sabe-se que tais submissões existem, mas para os dirigentes, relatar episódios
relativos a esses constrangimentos é reconhecer a perda de legitimidade de sua função
de liderança local, preocupação que os moradores que não possuem esse papel de
representação não demonstram; e por isso junto a eles foram coletados testemunhos tão
contundentes dessas submissões e constrangimentos (Cfr. Machado da Silva, 2008c).
Assim, no coletivo de confiança aqui analisado não foram recolhidos relatos em que
líderes obedeciam a ordens de traficantes, o mesmo acontecendo na realização do meu
trabalho de campo no Pereirão. Também Antônio e Jennifer se preocupavam com a
apresentação que faziam de si mesmos. Mas em um depoimento recolhido no coletivo
de confiança é possível vislumbrar alguns dos constrangimentos existentes:

Eu mandei um gari comunitário embora, que ele falou assim: ‘Ó, mais tarde vou
desenrolar com o cara lá’. Eu agarrei no braço dele, segurei até chegar a hora do
cara descer, eu falei: ‘Ó, mandei embora, ele falou que ia vir aqui conversar com
você’. ‘Ah é? Mas qual foi?’. ‘Porque ele faltou ontem, faltou hoje, ainda inventa de
mandar atestado aí, e eu mandei ele embora porque está mesmo [incompreensível]
sua função, sua carga horária’. ‘Presidente, você é que sabe!’. ‘Então beleza!’.

Nessa situação, o participante do coletivo de confiança afirmou sua autonomia


em relação ao grupo de traficantes de sua favela, pois teve sua decisão respeitada, mas
reconheceu que não pôde furtar-se de se explicar ao chefe do tráfico de drogas local.
Fica evidente o risco, pois caso seus argumentos não fossem suficientes, ou ele não
tivesse admitido a participação do traficante na resolução do caso, o desfecho poderia
ter sido outro. Assim, mesmo quando não há o confronto ou a cumplicidade com
traficantes, as lideranças comunitárias não podem desconsiderar a presença deles, ou a
força que possuem.

A partir dos relatos e da distinção entre o que é estar próximo e que é se


distanciar dos traficantes, percebe-se que é mais fácil manter autonomia de ação (ainda

85
que limitada e controlada), e também a própria segurança pessoal e da instituição,
quando o tráfico não tem interesse em interferir no trabalho da associação de moradores,
como ficou evidente no caso do Pereirão. Em muitos relatos os entrevistados afirmam
que os traficantes têm interesse exclusivo em manter seu ponto de venda, e desde que
não sejam perturbados em sua atividade não se interessam pelo que acontece na
associação. No entanto, eles sabem que a associação de moradores é uma fonte de
diversos recursos, políticos e financeiros, e assim podem a qualquer momento desejar
usufruí-los. No relato abaixo, por exemplo, os traficantes voltaram sua atenção para a
associação em busca de dinheiro:

Aconteceu um episódio muito chato lá [Nome da favela]. Pra ser sincero, depois da
gestão do Garotinho, não sei se todos concordam (...), o Garotinho inibiu a entrada
do tráfico61 na comunidade. Só que quando ele inibiu a entrada do tráfico, ele
afrouxou a parte de baixo. Aí desceu o morro, pra assaltar a redondeza (...). Nós
percebemos que eles [os traficantes] começaram a perseguir um pouquinho mais as
associações de moradores. Que a renda estava menor pra entrar, eles têm o padrão
de vida deles. A renda por ser um pouco menor, ele começou a pegar no pé da
associação.

No relato a seguir o entrevistado afirma que é possível manter distância em


relação aos traficantes, ainda que ela seja parcial e limitada, sempre condicionada pela
potencial intervenção dos traficantes. Como outros relatos já tinham apontado, algumas
lideranças encontraram uma possibilidade de manter-se afastadas evitando tomar a
iniciativa de procurar os traficantes para pedir ajuda, e especialmente não aceitando
favores e contribuições do tráfico:

(...), nossa creche estava desativada há oito meses, ele (representante do tráfico)
chamou o meu tesoureiro e falou, ofereceu uma verba pra que nós pudéssemos abrir
nossa creche novamente. O meu tesoureiro, sem saber, trouxe pra assembléia e
discutimos. Falamos o seguinte: “Só queremos ter espaço pra trabalhar. Não
queremos nada desse pessoal! Se der pra pintar a parede hoje, pinta, se não dá, a
gente pinta amanhã. Nós não queremos...”. Se você aceitar um real, mil reais ou cem
reais, está devendo um favor. E sempre ele vai te cobrar. (...) Quer dizer, não
aceitando desde o início, conseguimos trabalhar quase que tranquilo.

61
Mais à frente no relato o participante afirma que o Garotinho impediu a entrada de drogas nos morros,
não conseguiu eliminar o tráfico.

86
Dessa forma, novamente os dirigentes presentes reforçam que há alternativas de
ação que permitem se distanciar minimamente da submissão imposta pelos traficantes.
Mas as lideranças comunitárias sabem da dificuldade de manter distanciamento dos
traficantes, ainda mais em situações que apresentam real risco de vida. Nos casos em
que os traficantes tomam a iniciativa de procurar as lideranças locais, essas têm que dar
satisfações do seu trabalho (e, pode-se imaginar – embora nenhum relato o confirme –
até mesmo obedecer a uma eventual ordem dos criminosos). Mesmo assim, muitos
relatos apontam tentativas de manter o afastamento possível:

(...) E na hora de eu assumir a associação de moradores, eu tive que realmente dar


satisfação e prestar conhecimento do que seria o meu mandato. Então tive uma
conversa, mostrei minha proposta, e eles falaram: ‘Ó, você pode trabalhar tranquilo,
desde o momento que você não atrapalhe a gente!’. Eu mostrei também o meu
parâmetro, eu acho que eles têm o trabalho deles, a gente não pode fugir disso hoje.
Eu acho que é uma realidade que a gente vive. E eu deixei bem afastado, esse
sentido de estar realmente participando dentro da questão de financiar alguma coisa
e, eu pegar esse dinheiro. E hoje é uma batalha grande. Eu estou há um ano e pouco.
Essa pessoa já até faleceu, que me deu um respaldo. Toda hora se muda e você não
sabe qual vai ser a questão que vem agora (...).

No relato acima fica claro que o projeto de gestão da associação de moradores


precisou ser aceito pelo tráfico, o que pode representar uma limitação nas ações que a
direção pretende executar. Assim, afirma-se que é possível fazer trabalho comunitário
dentro da favela, desde que não se interfira nos interesses do tráfico, condicionando os
interesses dos moradores de favela aos dos traficantes. Não há afastamento total do
tráfico, apenas o que poderia ser denominado de convivência entre diferentes, de um
lado com a suspensão da hostilidade (qualificando de “trabalho” a atividade de
traficantes armados) e de outro com o desinteresse (“… desde que você não atrapalhe”).
Dessa forma, o poder do tráfico não é contestado, mas também não impede que, pelo
menos em certa medida, o trabalho da associação continue. São poucos os relatos de
casos em que a associação consegue, de alguma forma, contornar o poder do tráfico, ou
ainda diminuir sua importância, mas o fragmento selecionado abaixo pode ser
esclarecedor. Nele, uma participante afirma que uma mudança de atitude em relação ao
tráfico por parte das lideranças se reflete em uma mudança por parte dos moradores, e
assim a legitimidade do tráfico diminui:

87
Moderador: “(...) é possível tentar produzir uma outra atitude?”.

Participante: “Agora é”.

Moderador: “E como é que é?”.

Participante: “Sabe por quê? Porque o presidente que tava na época (...) a associação
ela foi muito assim, desmotivada, as pessoas não tinham confiança naquela pessoa
que estava na presidência, entendeu? (...) Porque achavam, quer dizer, não tinham
aquela visão, então hoje em dia mudou essa consciência. Então as pessoas estão
mais acostumadas a não procurar tanto o tráfico, a procurar mais a associação de
moradores, porque a gente passou uma certa confiança pras pessoas, não sei se
porque a gente é mulher, né?”.

Moderador: “Faz diferença ser mulher?”.

Participante: “Faz diferença ser mulher, entendeu? E faz diferença também você não
ter vinculo, vinculo nenhum. Você ser vista, como se você não tem vinculo nenhum
com o tráfico, porque a gente não tem e a gente não aceita nada, entendeu? A gente
conversa quando eles precisam, pedem, igual ao que ela falou, vai todo mundo, é
assim, é meio que assim, né. Quando eles vêm falar, a gente chama o [Nome de uma
liderança comunitária antiga], chama não sei quem, vamos lá todo mundo. Aí
sempre resolve. Entendeu? Nunca se vai sozinho pra conversar nada. Entendeu?
(...)”.

A partir dos relatos apresentados acima é possível perceber que existem


limitações para a atuação das associações de moradores. No caso da associação do
Pereirão, particularmente na gestão de Antônio, as limitações foram reconhecidas como
tão fortes que a única forma encontrada pelo dirigente para manter o afastamento foi a
quase paralisação das atividades, de forma a não despertar o interesse dos traficantes de
drogas. Além disso, é evidente que o medo de retaliações dificulta a ação das lideranças
locais no sentido de denunciar problemas que afetem a vida dos moradores quando estes
são consequência da ação do tráfico (violência, conflito, atos considerados injustos,
etc.). No entanto, uma parte da violência cometida contra os moradores de favela pode
ser denunciada: a violência policial. Mesmo neste caso, apesar das lideranças
denunciarem a violência policial com veemência, seu poder para fazê-lo também fica
limitado, pois além do perigo de serem executadas pela polícia denunciada, as
lideranças não encontram respaldo na opinião pública para suas denúncias. Nos relatos
abaixo as lideranças deixam clara sua insatisfação com a polícia e com a forma como
atuam dentro das favelas:

88
Eles [a polícia] não conhecem, eles não conhecem ninguém. Ele não quer saber em
que casa ele vai entrar. Ele não quer saber de nada, porque ele não tem vínculo com
ninguém. Entendeu? Então ele vem, atira pra qualquer lado, não quer saber. (...)
Porque a polícia não quer saber em quem ele vai atirar, se ele vai atingir o bandido,
se ele vai atingir trabalhador, se ele vai atingir o... Ele não quer saber, ele está
atirando. E o bandido por sua vez, não. Ele vai naquilo que ele quer. Entendeu? Ele
tem a proposta dele, ele não sai matando o morador. Porque ele só mata aquele que
se envolve com ele, né? Então eu acho que a polícia é muito pior, cem vezes pior.
Porque eles chegam, e não têm noção do que ele vai encontrar, então ele já vai com
medo, atirando pra todos os lados.

Ainda que o tema da contiguidade com os traficantes de drogas tenha sido


bastante discutido no grupo, os dirigentes e ex-dirigentes presentes ao coletivo de
confiança aqui relatado deram maior ênfase em suas falas aos problemas enfrentados
enquanto “lideranças de suas comunidades”: a dificuldade em “captar recursos” para
serem investidos em “projetos sociais” de interesse dos moradores da favela; sobre o
que seria uma “cooptação” por parte do poder público de dirigentes para trabalhar
dentro da burocracia estatal; sobre a falta de políticas públicas nas favelas, sobre a falta
de apoio dos moradores. Em relação ao primeiro ponto, a atuação das associações de
moradores como gerente de projetos e programas sociais dentro da favela foi
apresentada por alguns dos participantes como a melhor (ou única) possibilidade da
associação de moradores exercerem sua função de buscar melhorias para o conjunto dos
moradores.

Hoje inclusive, o presidente de {Nome da favela}, eu hoje procurei chamar a


atenção dele, porque existem diversos projetos acontecendo em {Nome da favela} e
ele fez um pequeno comentário: "Poxa, e a associação continua devendo cinco mil e
ninguém traz nada!" Eu falei: "Ué, você tem que ir buscar!”. Eu aprendi assim.
Porque em {Nome da favela}, ele de repente deu aquela guinada, porque nós
começamos a escrever projetos, isto tem que buscar. Isto não acontece assim.

No entanto, essa posição não foi compartilhada por todos os participantes.


Alguns demonstraram preocupação com o que seria uma transformação da associação
de moradores em ONG ou em microempresa. Esse papel atual estaria sendo executado
em detrimento da função principal da associação, de “representação política”, e poderia
representar uma “bomba” para o dirigente, que teria que lidar com questões sobre as
quais não tem experiência. No entanto, o mesmo participante aponta a dificuldade

89
existente em não desempenhar esse papel, em não buscar captar recursos e projetos para
a favela, pois os moradores cobrariam da associação a realização desses projetos.

Lá {Nome da favela}, nós éramos pichados por fazer muitas assembléias, tudo tinha
que chamar os moradores pra discutir, tudo tinha que chamar os moradores pra
discutir. Mas naquele momento, a associação tinha um papel. Era o papel de
representação política da comunidade. Hoje, ele tem uma visão né, embora não
tenha perdido esse papel, mas ela tem uma visão, mais de uma micro-empresa né,
uma microempresa, eu chamo 'ONG das ONGs'. Mas na visão real hoje, é uma
micro-empresa. (...). Então, eu falei que sou romântico por isso, porque eu, esse
papel de representação política dentro da comunidade, esse pra mim é vital. É vital.
E na federação, a gente se depara muito, a pergunta que o {Nome do participante}
falou: "Ah, mas ninguém trás nada, ninguém faz nada!” É certo! Se não se preparar
pra enfrentar essa situação, vai continuar do jeito que tá. E pior: "O que você tá
fazendo aí, meu irmão? Ali a favela A, o morro P tem tudo, como aqui não tem?”.

Em relação à denúncia sobre a “cooptação” de lideranças, a participante afirmou


que, além de oferecer cargos e salários aos dirigentes de associações de moradores para
trabalharam na burocracia do governo estadual ou municipal, alguns representantes
desses poderes “desqualificariam” aqueles dirigentes que não aceitassem a oferta de
trabalho.

Oitenta, noventa por cento das lideranças comunitárias hoje, estão nos gabinetes.
(...) verdade, estão. Estão nos gabinetes, a maioria delas tem o cargo, que seja
trabalhando na prefeitura, trabalhando no governo do estado. Porque a primeira
coisa que eles procuram é a liderança comunitária, eles trazem para eles a liderança
comunitária. Aqueles que são resistências, eles associam ao tráfico, eles
desmoralizam (...).

Apesar da ligação com políticos não ser nova, o momento atual é marcado por
uma maior proximidade entre os dirigentes à frente de associações de moradores e o
poder público, em função da forma como os programas públicos são executados nas
favelas atualmente, onde as lideranças atuam como gestores dessas iniciativas, como
discutido na seção anterior. Assim, os dirigentes de associações de moradores buscam
ampliar o leque de suas ações para áreas como o gerenciamento de serviços públicos,
bem como para o desenvolvimento de projetos sociais via ONGs. Pretendem, dessa
forma, dar maior legitimidade para seu trabalho – tanto para os de fora das favelas

90
quanto para os moradores. No entanto, segundo os participantes do coletivo de
confiança, ainda assim muitos moradores não apoiam os dirigentes, acusando-os de se
beneficiarem dos recursos obtidos:

Participante: Olha, como é visto a gente na favela, eu não tô generalizando, mas,


companheiro, eu não tô generalizando porque sempre que consigo ali uma coisa, que
chega na sua vida, é bom isso, é, você não concordar. Mas olha só, como é que as
pessoas veem? Você não pode comprar uma bicicleta nova, não pode comprar
camisa nova, que diz que todo presidente é ladrão né? O policial te vê como aliado
do tráfico, o tráfico vê você como um mané, que você não está chegando junto, pra
fechar com eles.

Moderação: E os moradores?

Participante: Ladrão! Como você vive nessa situação? E você não tem um centavo
nem pra sair da comunidade...

Ainda que questões sobre a contiguidade espacial com os traficantes de drogas


tenham sido tópico de discussão entre os dirigentes presentes ao coletivo de confiança,
foi dada maior ênfase pelos participantes ao debate de temas como a “cooptação”, a
falta de investimento público e o “desinteresse” dos moradores. Como vimos acima,
foram poucos os relatos de episódios em que foi necessário interagir com os traficantes
de drogas, ainda que tenha sido reconhecido que esses momentos são frequentes em
algumas localidades. Os dirigentes e ex-dirigentes apresentam-se a maior parte do
tempo como “neutros” em relação aos traficantes de drogas (Rocha, 2006) – admitem
certo grau de submissão, recusam a conivência ou a participação em ações ilegais, mas
reafirmam sua legitimidade enquanto lideranças locais. A preferência pelos temas
políticos (“cooptação”, falta de investimento, etc.), ainda que importantes para o debate
sobre as associações de moradores, revelou um desconforto dos dirigentes, e em alguns
casos foram identificadas estratégias de evitação do tema: seja minimizando os
constrangimentos impostos pelos traficantes e valorizando sua autoridade local, seja
deslizando o debate da violência dos traficantes para uma violência difusa praticada
contra os moradores de favela pelo estado (Silva e Rocha, 2008). Apesar do
reconhecimento de que a dificuldade dos dirigentes em abordar esses temas é justificada
– seja por causa das possíveis retaliações, seja pela preocupação em perder sua
legitimidade – o silenciamento e a evitação impedem que os representantes dos
moradores de favela deem publicidade aos problemas que atingem o cotidiano de seus

91
representados. Pode estar aí mais um elemento que esclareça porque as associações de
moradores de favela estão perdendo legitimidade, segundo seus dirigentes.

2.4. Voz e silenciamento da representação de moradores de favelas.

Ao analisar o conjunto dos dados apresentados, evidencia-se que é mais fácil


manter a autonomia de ação (ainda que limitada e controlada), e também a própria
segurança pessoal e da instituição, quando o tráfico não tem interesse em interferir no
trabalho da associação de moradores. Mas os dirigentes sabem da dificuldade de manter
suas organizações distantes do tráfico. Como mencionado na seção anterior, nos casos
em que os traficantes tomam a iniciativa de procurar os dirigentes da associação é
imperativo dar satisfações sobre o trabalho desenvolvido (e, pode-se imaginar, até
mesmo obedecer a uma eventual ordem de algum traficante).

Em alguns casos, porém, os traficantes têm interesse em controlar ativamente a


direção da associação, inclusive participando dela como membros da diretoria. Por seu
papel de mediação para fora das favelas, as associações de moradores podem ser fontes
de contatos para os traficantes com políticos (Leeds, 2003). Pandolfi e Grynszpan
(2002) afirmam que a participação dos traficantes nas direções das associações de
moradores afasta outros grupos da organização, e que muitas vezes esse afastamento se
dá através de intimidação e ameaça. Para eles a ‘cultura do medo’ tomou conta dos
espaços decisórios das associações, e assim a possibilidade das associações se tornarem
espaços democráticos capazes de organizar as lutas dos moradores está cada vez mais
distante. Apesar de nenhum dirigente apresentar-se como sofrendo intervenção direta do
tráfico, foram recolhidos relatos em que a associação estava desacreditada frente aos
moradores em função de seu domínio pelos grupos de traficantes.

Os motivos para os traficantes aproximarem-se da associação e suas lideranças


não é consenso na literatura. Leeds (2003) afirma que esse interesse do tráfico em
influenciar a ação da associação de moradores tem por objetivo buscar legitimação e
respeitabilidade dentro das favelas. Para Machado da Silva (1995, 2004), porém, o que
orienta a ação desses grupos armados é a força – essa é a fonte de sua capacidade de

92
mando. Deste modo, ao controlar as associações eles não visam legitimar-se; trata-se de
algo que faz parte do processo de submissão pela força (não da ‘dominação’ weberiana)
dos moradores. Neste sentido, os traficantes se relacionariam com a associação de
moradores e com as lideranças, assim como com todos os moradores, de forma
estritamente instrumental, visando apenas aprofundar a submissão. Essa hipótese
encontra respaldo em alguns dos relatos obtidos; porém, é importante notar que a
intervenção direta do tráfico nas associações não é uma regra, pois se constatou também
pelos relatos e entrevistas que existem associações e dirigentes que atuam com certo
grau de autonomia.

Quando a relação das associações de moradores com os traficantes de drogas


não é tão direta e próxima, há espaço para outras formas de convivência entre esses
atores, ainda que a extensão da distância possível seja variável de acordo com os
diferentes contextos. No caso de Antônio, a distância foi alcançada através da paralisia
da associação. Ainda que seja cedo para conhecer a estratégia a ser adotada por Jennifer,
nos relatos obtidos no coletivo de confiança alguns dirigentes demonstraram que aceitar
algum tipo de contato com os traficantes de drogas é indispensável para viabilizar as
ações da organização de base. O contato se torna necessário particularmente quando um
dos papéis fundamentais da associação de moradores passa a ser a mediação entre atores
externos e traficantes de drogas instalados em seu território. São os representantes do
poder público ou outras instituições que solicitam a mediação dos líderes locais, para
poderem agir nas favelas. Miranda e Magalhães (2004:52) sugerem que essa é a forma
encontrada pelos atores externos para manterem distância dos traficantes e
permanecerem limpos moralmente:

A mediação faz com que, como por milagre, a ilegitimidade do contato se quebre. O
fato de alguém que é técnico ou representante de ONG estar negociando com uma
liderança permite que, por meio de um artifício cruel, aja como se todas as consultas
fossem legais e legítimas. Admite-se que a liderança estabeleça relações com
representantes do tráfico. É como se o fato de ser morador (a) eliminasse as
barreiras entre legal e ilegal que são válidas para as outras pessoas.
Aproximados(as) do ilegítimo, moradores(as) e lideranças são afastados(as) da
ordem e reafirmados(as) em sua não-cidadania.

A garantia fundamental da segurança dessas lideranças nestes contatos é a


construção em longo prazo – nem sempre bem sucedida, é claro – de uma imagem

93
pública que depende de uma verdadeira antinomia: de um lado, precisam ser vistos
como desenvolvendo uma atuação política consequente, do ponto de vista dos
moradores comuns e dos próprios traficantes; mas essa atividade, de outro lado, é
dificultada pela fragilidade de seu poder real, que afasta parte considerável de sua
potencial base social de apoio e abre espaço para reações imponderáveis dos traficantes,
minando sua legitimidade. Essa parece ser a dimensão privada, pessoal e local, da
tragédia que se abate atualmente sobre a ação coletiva nas favelas cariocas.

Ao analisar os relatos dos dirigentes comunitários (presidentes e diretores de


associações de moradores de favela) presentes ao “coletivo de confiança”, pode-se
concluir que, apesar das variações na forma como os traficantes atuam em cada
localidade, a coerção e a necessidade de submissão estão sempre presentes, e devem ser
consideradas quando se escolhem as estratégias para lidar com essa força que lhes
aparece como um dado da realidade, sobre o qual não têm controle. Porém, o fato de no
Pereirão o tráfico estar presente de forma menos evidente e opressora que em outros
lugares, poderia representar uma possibilidade de atuação coletiva, sem os
impedimentos que este tipo de ação sofre em localidades com presença mais ostensiva
dos bandos de traficantes. No entanto, isto não aconteceu. Como dito anteriormente, a
associação de moradores local estava esvaziada e deslegitimada. Este é um dos
principais efeitos da submissão dos traficantes de drogas sobre a população das favelas:
mesmo sem pressionar a organização coletiva, o perigo potencial de confrontar-se com
os bandos de traficantes anularia (ou reduziria significativamente) a tentativa de ação
dos dirigentes locais que, para proteger-se, muitas vezes deixam de intervir em assuntos
que deveriam ser de sua atribuição.

As dificuldades das associações de moradores não se restringem à convivência


com os traficantes de drogas. Além das denúncias de autoritarismo e favorecimento
pessoal dos dirigentes (Zaluar, 2004), as organizações de base enfrentam desafios que
estão colocados a todos os movimentos sociais, relativos ao surgimento de novas formas
de participação no espaço público que não as institucionais – ou sociais, como propõe
Touraine (1978, 2005). No entanto, apesar das questões levantadas acima, a existência
dos bandos de traficantes dentro dos territórios de favela representa um obstáculo de
muito mais difícil transposição do que outros, pois frente a estes os moradores e suas

94
lideranças possuem nenhum ou poucos recursos para se defender ou reagir. Porém, para
os líderes comunitários, estratégias estão disponíveis em função de seu papel; como
representantes de associações de moradores essas pessoas tentam encontrar alternativas
que permitam sua atuação dentro das favelas. Para os moradores comuns, que tentam
proteger-se das ações dos traficantes, na maioria das vezes resta apenas a opção de
adaptar-se às imposições feitas pelo tráfico.

Por fim, quero ressaltar que o silenciamento dos dirigentes sobre as submissões
cotidianas que sofrem no exercício do seu papel permite encontrar similitudes com a
situação dos moradores do Pereirão, analisada no capítulo anterior: o silêncio sobre a
submissão vivenciada perpetua seus mecanismos de atuação, criando um dispositivo
que funciona em moto-perpétuo. Assim, delineia-se para os moradores de favela uma
condição de ausência de voz. No entanto, a vitalidade e a multiplicação das ações
coletivas nas favelas cariocas, majoritariamente no formato de “projetos sociais”, e o
destaque que essas ações vêm recebendo no espaço público mostram que, em alguns
contextos e sob condições específicas, os favelados possuem canais de expressão. Eles
têm voz. A forma como alguns dos moradores do Morro do Pereirão se expressam é
abordada no próximo capítulo.

95
III. A ONG TV Morrinho: “Como na vida real”.

Foto da autora

Nos dois capítulos anteriores busquei apresentar o território em que realizei


minha pesquisa e a organização representativa dos moradores ali existente. No capítulo
I discuti a história da localidade e como ela chegou a sua situação atual, de
“tranquilidade” e “paz”. Analisei também a forte ênfase dos moradores na diferença
entre as outras favelas do Rio de Janeiro e a favela do Pereirão, apresentada como
“tranquila” e “em paz”, e os pontos de conflito e tensão entre os moradores que apontam
para a pluralidade de representações locais sobre o tráfico de drogas e a sua presença na
localidade. No capítulo II apresentei os dados levantados na pesquisa sobre a associação
de moradores local, e como essa se encontra paralisada, em parte pela maneira como o
poder público se relaciona com os territórios favelados cariocas – através de políticas
focalizadas e curtas, intermediadas por políticos que estabelecem com os líderes locais
relações de “clientelismo”. Por outro lado, demonstrei como o “estilo” de cada dirigente

96
na condução de seu trabalho frente à associação de moradores tem repercussões na
legitimidade que os moradores dão a esse trabalho. Por fim, analisei como a modalidade
de presença do tráfico de drogas na localidade incide sobre as possibilidades de ação
dos dirigentes e como, apesar de sua presença subterrânea, também no Pereirão os
traficantes representam um risco a ser considerado pelos dirigentes.

Neste terceiro capítulo, discorro sobre uma forma alternativa de organização


coletiva, que vem se tornando cada vez mais comum nas favelas cariocas, aglutinando
diversos setores sociais que se interessam sobre esses territórios e seus moradores, e que
na localidade do Pereirão se apresenta como a iniciativa coletiva mais ativa: a
organização não-governamental TV Morrinho. Novamente cabe uma ressalva sobre a
escolha em revelar o nome da organização pesquisada: utilizo o mesmo critério
empregado no caso da decisão de enunciar o nome do Pereirão; trata-se de uma
organização conhecida, cujo trabalho é único e reconhecido. Portanto, não revelar seu
nome não teria o efeito desejável de proteger a identidade dos informantes. Quando foi
preciso mencionar situações acontecidas com integrantes do grupo, optei por criar
nomes fictícios. Os jovens e dirigentes que foram entrevistados por mim não exigiram
anonimato, nem para si nem para sua organização. Vale sublinhar que participantes de
organizações não-governamentais estão habituados a serem “objeto” de investigações
como esta, e que apreciam oportunidades de tornar público o trabalho que realizam. De
qualquer forma, como relato algumas situações que não me foram relatadas em uma
entrevista, e sim observadas in loco, optei pelo anonimato dos participantes, ainda que
ciente do fato de que minha presença nessas situações não tenha passado desapercebida.

3.1. TV Morrinho: a ONG do Pereirão.

Ao longo do trabalho de campo, frequentemente comparava a imobilidade da


associação de moradores com o florescimento das atividades do grupo de jovens que se
reunia em torno de uma imensa maquete, feita de pedaços de tijolos e habitadas por
bonecos de plástico representando diversos morros cariocas e seus moradores, chamada

97
Morrinho. Ainda que no começo da pesquisa o grupo estivesse desmobilizado, e que as
atividades realizadas não possuam ainda hoje uma constância62, no intervalo que durou
minha presença na favela do Pereirão não apenas o grupo realizou diversas viagens para
expor seu trabalho (além das viagens nacionais eles viajaram para a França, a Alemanha
e a Itália, para a Bienal de Arte de Veneza), como se transformou em organização não-
governamental, com sede na entrada da favela, começou um projeto de turismo na
localidade e lançou um documentário relatando sua história.

Minha primeira visita ao Morrinho foi marcada por sentimentos mistos de


admiração pela obra, uma imensa maquete de 300 metros quadrados representando
diversas favelas, com seus prédios, ruas, moradores e personagens, mas também um
grande estranhamento. Estranhei, sobretudo, o fato de a maior parte da produção do
grupo fazer referência aos traficantes de drogas, e também por considerar a atividade
restrita a poucos participantes, sem se configurar como uma atividade coletiva. No
entanto, as ações do grupo se desdobraram em outras atividades que não apenas a
exposição da maquete, o que acarretou a incorporação de outros jovens ao grupo, seja
na atividade ligada à manutenção e reprodução da maquete seja na atividade turística,
ligada ao circuito do turismo em favelas que cresce na cidade do Rio de Janeiro, e
particularmente na região em se localiza o Pereirão. Dessa forma, o grupo não apenas
expandiu suas atividades como se tornou um “símbolo” importante para os moradores
do Pereirão, mais uma evidência que comprovaria que aquela favela era realmente
“diferente das outras”.

Assim, ainda que o grupo não se encaixasse nas minhas definições sobre o que
era um “movimento social” ou uma “ação coletiva”, suas atividades me pareciam
interessantes, não apenas pelo fato de ser uma iniciativa de jovens moradores, mas pela
maneira como retratavam, em forma e em conteúdo, a temática da violência cotidiana
vivenciada pelos moradores de favelas, e que estava ausente das falas dos moradores do
Pereirão.

Neste capítulo apresento a história do grupo, sua passagem de uma iniciativa de


jovens moradores para sua instituição no formato ONG, sua produção audiovisual e os
diferentes significados possíveis dessa atividade dentro do território, caracterizado pela
62
Como ficará claro na descrição que se segue, no momento a ong não possui financiamento para suas
atividades, e assim os jovens mobilizam-se em torno dela em momentos específicos, como viagens,
apresentações, filmagens ou outros trabalhos; dessa forma, suas atividades não possuem uma freqüência.

98
presença intersticial do tráfico de drogas. Em função da grande quantidade de material
disponível sobre o grupo, particularmente na internet, o material analisado neste
capítulo inclui, além do trabalho de campo e de algumas entrevistas realizadas, pesquisa
em artigos de jornal e revistas e a observação de vídeos disponibilizados pelo grupo em
seu canal no site YouTube63. Vale ressaltar que as entrevistas realizadas não foram
muitas: primeiro por dificuldades em mobilizar os jovens quando as atividades do grupo
estavam suspensas, e quando as atividades aconteciam era difícil conversar com cada
um separadamente; em segundo lugar porque eles se mostravam decepcionados quando
eu dizia que a entrevista não era para a televisão ou para o jornal, mas para uma tese em
que seus nomes seriam trocados, o que fazia da entrevista um momento não muito
atraente. Assim, privilegiei neste capítulo (como nos outros), além do material
encontrado na internet e na mídia, a observação das atividades do grupo.

3.2 História do Morrinho.

O Morrinho é uma maquete de 300 m2 de diversas favelas do Rio de Janeiro,


habitada por moradores representados por bonecos Lego64 e onde os jovens
participantes desenvolvem performances que representam a vida nas favelas com
bastante realismo, particularmente seu lado mais violento e conflituoso: o tráfico de
drogas. Dessa iniciativa, criada há dez anos, participam atualmente dez jovens de 10 a
24 anos, e o que era uma brincadeira feita no quintal se transformou em instalação
artística reproduzida em museus e festivais de arte no Brasil e na Europa, uma produtora

63
O YouTube é um site na internet, criado em 2005, que permite a divulgação e a troca de vídeos em
formato digital. Cada participante pode criar uma conta e “disponibilizar” seu vídeo, com uma limitação
de tempo de duração e algum controle sobre direitos de imagem, mas que são pouco respeitados. Também
é possível assistir aos vídeos sem ser inscrito no site. Ver: http://br.youtube.com/.
64
O Lego é uma marca de brinquedos dinamarqueses, que são produzidos industrialmente desde os anos
1950. Feitas de plástico, as peças possuem um mecanismo de encaixe, que permite a quem está brincando
criar diferentes formas, o que possibilitou a construção de cidades inteiras, expostas nos diferentes
parques temáticos da marca localizados na Europa. No Brasil os produtos começaram a ser
comercializados na década de 1980 e, ainda que sejam bastante populares, não são um produto de
consumo de massa por terem um preço elevado (entre R$ 50 e R$ 500, segundo pesquisa realizada em
sites de lojas de brinquedos). Para a utilização no Morrinho os participantes compravam suas peças em
brechós ou lojas de produtos usados.

99
de filmes que acaba de lançar um documentário sobre o grupo, um ponto turístico que
começa a receber investimentos públicos e finalmente uma organização não-
governamental. Mas como gostam de dizer seus participantes, para eles ainda se trata,
sobretudo, de uma brincadeira.

Segundo seu “fundador”, conhecido como Cabeção, a maquete começou a ser


construída por ele no quintal da sua casa para “matar o tempo”, após sua mudança para
a favela. A partir dessa iniciativa outros sete meninos passaram a brincar na mesma
maquete, cada um construindo a “sua favela”, e representando o papel de “chefe”,
responsável pela construção, manutenção e ação de seus habitantes. Cada participante,
portanto, aumentou a dimensão da maquete original, incorporando outras “favelas”.
Essas representam favelas reais, como as do Fogueteiro, Prazeres, Borel, Grota, Turano,
Querosene, Fallete, Encontro, entre outras. Segundo Cabeção, em entrevista dada ao site
do PNUD Brasil (por ocasião da ida do grupo à Bienal de Veneza, em 2007)65:

A ideia era brincar. A gente não tinha o que fazer, então começou a criar o que via.
A retratar o tráfico, o moto-táxi, o baile funk. Tentamos mostrar a realidade, o bem e
o mal.

Em diversos materiais de divulgação e em entrevistas concedidas a meios de


comunicação, a chegada recente ao Rio de Janeiro, vindo de uma cidade do interior do
estado, e o estranhamento frente a essa nova realidade foram as motivações que levaram
o adolescente a utilizar os azulejos escamoteados do pai, pedreiro, para construir
réplicas das favelas cariocas. Mas outras motivações também foram relatadas, em
distintos materiais de divulgação e em entrevistas que realizei com o Cabeção durante
meu trabalho de campo. O excesso de tempo livre, em função de ter ficado sem estudar
durante dois anos, aparece como um elemento impulsionador em entrevista concedida a
uma importante revista semanal66. A falta de dinheiro para comprar brinquedos foi
mencionada em vídeo realizado por alunos de uma faculdade privada carioca, e
disponibilizado no site YouTube. Já em outra publicação de grande circulação, e

65
Cf. Favela de brinquedo leva meninos à Itália: Maquete de comunidades cariocas criada como
brincadeira há 9 anos por dois jovens pobres ganha espaço na Bienal de Arte de Veneza. Reportagem de
Talita Bedinelli para o site do PNUD Brasil.
66
Cf. Favela Chique. Depois de fazer sucesso na Bienal de Veneza, o Morrinho, maquete feita por
garotos do Pereirão, ganha documentário. Revista o Globo de 15 de julho de 2007.

100
também em entrevista concedida a mim, a necessidade de encontrar espaços de lazer
seguros em um território que era naquele momento palco de freqüentes conflitos
armados entre traficantes de drogas foi o que motivou a iniciativa, e que incentivou a
adesão dos outros meninos participantes. O espaço de refúgio passou a ser o quintal da
casa de Cabeção, que então se localizava numa das áreas mais distantes das duas
entradas na favela, quase dentro da mata (atualmente sua família não mora mais no
local, pois se mudou para outra residência na favela, e a casa virou um centro para
recepção dos turistas que visitam a maquete). Era para lá que iam, após as aulas, os
amigos de infância. Ainda que muitos moradores reclamassem da brincadeira, já que os
jovens roubavam tijolos que estavam sendo utilizados em obras particulares na favela
para construir as casas da maquete, os pais deles apoiavam a iniciativa, tranquilizados
porque seus filhos estavam ali, e não circulando pela favela e expostos ao risco de serem
vítimas em um confronto armado entre traficantes e policiais. Além disso, os pais
estariam satisfeitos por saber que os filhos não estavam envolvidos em “atividades
erradas”, o que pode ser uma referência à adesão às quadrilhas de traficantes.

Assim, em sua origem, o Morrinho está ligado à história do passado violento do


Pereirão. Ainda que essa versão não conste do histórico apresentado no site do grupo,
também não se trata de um segredo ou uma versão “não-oficial”. Cabeção mencionou
também, em entrevista concedida a mim, que os traficantes locais chegaram a participar
em alguns momentos da brincadeira, inclusive fazendo comentários sobre comandos
“rivais” e incentivando invasões das “favelas” existentes na maquete. Em outro
episódio, relatado no documentário feito pelo grupo sobre sua história, policiais
militares em operação na favela obrigaram os jovens a destruir a maquete por
desconfiança que se trataria de um local de treino para estratégias de guerrilha, invasão
de outras favelas, etc. Essa desconfiança seria compartilhada por alguns moradores.
Vale ressaltar que não encontrei no material pesquisado, seja na imprensa seja nos
vídeos, qualquer menção à presença de traficantes no espaço da maquete.

Três anos depois que os jovens começaram a construir a maquete e a encenar


episódios da “vida real das favelas”, dois realizadores de filmes de publicidade foram
conhecer o local e os meninos, interessados em fazer um filme-documentário sobre a
iniciativa. Segundo um desses realizadores, em entrevista a um grande veículo da
imprensa quando do lançamento do documentário, ele foi informado da atividade por
um dos professores dos meninos, e maravilhado com o que encontrou convidou dois

101
amigos para filmar a “brincadeira”. Ainda segundo a reportagem mencionada, os
meninos teriam “fugido para o mato” com a chegada dos diretores e do equipamento:
“Éramos uns estranhos invadindo a brincadeira deles”. No entanto, dois teriam se
interessado pela aparelhagem, e assim eles decidiram deixar as câmeras com os meninos
durante alguns dias. Assim foram feitas as primeiras filmagens na maquete. Já em vídeo
disponível na internet, feito por uma equipe de televisão universitária, um dos
participantes diz que os diretores queriam que eles representassem cenas para serem
filmadas, mas como o tempo da “brincadeira” era diferente do tempo de filmagem (em
função de seu “realismo”, que será descrito a seguir), os meninos acabaram fazendo o
filme eles mesmos.

De qualquer maneira, independente da versão, a origem do grupo é o encontro


entre “meninos da favela” e “homens do asfalto”, interessados na mesma “brincadeira”,
seja como jogo, seja como expressão artística. A partir desse encontro é que se torna
possível a transformação da maquete em instalação artística, reproduzível em outros
contextos e foco do interesse artístico para fora do território da favela, e em ONG.
Contudo, a mudança de status do grupo e a profissionalização de suas atividades
representam uma importante mudança de direção; não se trata apenas de profissionalizar
o que antes era uma brincadeira, mas de começar uma nova atividade: a atuação coletiva
sobre a localidade e seus moradores, através de um formato de ação pública que é
bastante comum nas favelas cariocas atualmente, o “projeto social”. “Projeto social” é
utilizado aqui como termo nativo, isto é, parte do vocabulário utilizado pelos
entrevistados e pelos profissionais do campo do trabalho social – por esse motivo, o
termo será utilizado entre aspas. Nesse sentido, “projeto social” é uma atividade com
duração determinada, que reúne diferentes profissionais e instituições públicas e
privadas, e que pretende atuar sobre uma coletividade, denominada freqüentemente
como público-alvo, que teria alguma necessidade “social”: educação, saúde, trabalho,
entre outras. A utilização do termo projeto pode estar relacionada à forma como essas
atividades são apresentadas, especialmente para fins de captação de recursos: através de
documentos que descrevem intenções, planejamentos, ações futuras, resultados
esperados. No entanto, o termo projeto foi identificado por Boltanski e Chiapello (1999)
como fundamental para compreender o novo espírito do capitalismo contemporâneo67.

67
A aproximação entre os projetos sociais e a “Cité par Projet” de Bolstanski e Chiapello foi abordada no
próximo capítulo desta tese.

102
Mas antes de discutir a transformação do grupo em artistas profissionais e em uma
organização não-governamental, vale a pena se deter um pouco nos detalhes da maquete
e da encenação ali feita.

Fonte: reprodução do site do grupo.

O Morrinho é uma maquete que reproduz diversas favelas da cidade, que serve
de cenário para a representação da vida cotidiana nas favelas cariocas, particularmente
daqueles participantes das quadrilhas de tráfico de drogas. No Morrinho cada jovem
participante é dono de um morro, responsável por sua concepção, construção e
manutenção. Não existe um responsável pela maquete inteira – todos são igualmente
“donos” de suas partes da maquete, “donos de suas favelas”, e responsáveis pela sua
manutenção geral. O trabalho de manutenção é contínuo, já que as casas (feitas de
pedaços de tijolos) se localizam sobre terreno acidentado e sem contenção, o que
demanda não só o cuidado cotidiano como a reconstrução após dias de chuva. Ainda
que em termos estéticos a maquete em si chame bastante a atenção, por sua dimensão,
uso de cores e composição artística, o uso feito pelos jovens participantes dela como
cenário para a representação da vida nas favelas é sua mais importante característica.
Habitadas por bonecos Lego (como visto na imagem acima) que representam seus
moradores, as favelas contidas no Morrinho são “controladas” e “ocupadas” por
quadrilhas de traficantes de drogas, e esses são os principais personagens das
brincadeiras realizadas pelos jovens, bem como são as figuras centrais da produção
audiovisual do grupo, ainda que mais recentemente outras temáticas também tenham
sido abordadas. Assim, parte substancial da performance realizada pelos participantes
na maquete tem como tema a vida e o cotidiano dos traficantes de drogas e daqueles que
os cercam, namoradas, cúmplices, inimigos e até a polícia. São encenados conflitos
entre diferentes favelas e entre os traficantes e a polícia, especialmente o BOPE,
representado e localizado na maquete, com direito à sede. Nela existem bonecos que

103
representam os policiais, armas apreendidas em conflitos e uma carceragem, onde
diversos bonecos/traficantes estão presos. Representa-se a antiga “brincadeira” de
mocinho e bandido, mas com adaptações que tornam a performance em questão
particularmente interessante (como apresento na quarta seção deste capítulo).

Foto da autora

A polícia desempenha papel importante na maquete, ainda que não seja


controlada por nenhum jovem em especial – a cada situação um participante diferente
assume o papel da polícia, seja nos conflitos com os traficantes seja em atividades mais
rotineiras, como o momento de buscar a propina com o “chefe” local do tráfico (o
“arrego”), ou a negociação para a libertação de algum bandido preso.

Na execução existe uma preocupação enorme, por parte dos participantes, em


continuar no espaço da representação as regras da realidade; segundo as regras do
Morrinho um bonequinho não pode voar, pular várias casas, se locomover rápido
demais e nem sobreviver a tiros ou acidentes de carro. Personagens que são presos
ficam afastados, sem participar das histórias, e aqueles que morrem, obviamente, não
podem voltar: “Nas nossas histórias não tem espaço para fantasias”, explicou um dos
participantes a uma revista semanal de grande circulação. Outras regras da realidade
também devem ser respeitadas: as “regras do tráfico”. As favelas presentes no Morrinho
pertencem a diferentes facções, e reproduzem com bastante fidelidade a geografia do
controle territorial da cidade do Rio de Janeiro. Assim, se um jovem é “dono” da favela

104
do Borel ele será, portanto, parte do Comando Vermelho, e será aliado de jovens que
controlam “favelas” que são representações de favelas controladas por traficantes da
mesma facção.

Assim, durante as “brincadeiras” os meninos incorporam os traficantes ou a


polícia e recriam vozes, fazem os movimentos dos bonecos e assim gerenciam o
negócio da droga na “favela” que lhes pertence. Geralmente as situações reproduzidas
envolvem conflitos, mas os meninos também podem brincar de realizar bailes funk,
gerenciar o comércio local (inclusive o de drogas) ou simplesmente recriar eventos do
cotidiano das favelas. Chamou-me bastante a atenção que, pelo menos na maquete
original (a que se localiza na favela, em contraste com as maquetes que são produzidas
para as exposições itinerantes), quase não existem moradores “ordinários”, i.e., não
envolvidos na dinâmica da venda ilegal de drogas – os bonequinhos representam em sua
maioria traficantes, policiais ou “mulheres de bandidos”. Em uma das primeiras visitas
perguntei onde estavam os “moradores” mesmo, e um dos jovens me disse que eles
estavam em casa, porém a informação foi dada com um tom possivelmente de
brincadeira. Vale ressaltar que em alguns vídeos, sobretudo aqueles encomendados por
um canal de televisão infantil internacional, as encenações têm como personagens
moradores que não possuem ligação com os traficantes, ou pelo menos as histórias não
se focam nesse aspecto. Falarei mais demoradamente sobre a produção de vídeos feita
pelo grupo a seguir.

Os jovens participantes imprimem à encenação realizada um enorme “realismo”,


que no contexto da “brincadeira” pode fazer referência aos jogos eletrônicos para
adultos que investem no realismo das imagens e das situações68, mas que pode ser
entendido também em sua concepção artística69. Um pequeno relato sobre uma conversa

68
Com o desenvolvimento tecnológico os jogos eletrônicos conhecidos como games passaram a oferecer
a seus usuários uma representação gráfica muito avançada, o que permitiu, segundo jornalistas
especializados, um maior “realismo” das imagens. Por outro lado, esse realismo passou a preocupar os
pais e educadores, pois ainda se especula sobre uma possível correlação entre esse tipo de entretenimento
e um aumento na propensão para praticar atos de violência. Cf. “Violência do game Silent Hill ganha
realismo”, “Violência impede divulgação do game ‘Stranglehold’ na TV”, “Alta definição em games
gera preocupação com violência”, “Estudo nega que games incentivem violência”, “Games tornariam
jovens insensíveis à violência”.
69
O termo Realismo é usado para descrever movimentos artísticos em diferentes áreas, como nas artes
plásticas, na literatura, no teatro, etc. Em comum apresentam a característica de rejeição às idealizações
sobre o ser humano, especialmente em relação aos seus desejos e valores e a opção por descrever o real
em seus detalhes mais prosaicos e cotidianos (Dicionário Le Petit Robert, Dictionaire de la langue
française). Na França seus principais exemplos são a literatura de Flaubert e sua heroína adúltera
Madame Bovary, e a pintura de Coubert, em que retratou os trabalhadores em suas rotinas. No Brasil seu

105
com um dos participantes, Sandro, pode ilustrar melhor o “realismo” da brincadeira ali
encenada. Durante o trabalho de campo em um sábado fui informada que, naquela noite,
aconteceria em uma das “favelas” da maquete um baile funk70. Os bailes são realizados
à noite, pois a maquete possui iluminação feita pelos jovens especialmente para esses
eventos, e contam com um aparelho de som para completar a encenação. A música é
tocada alta, e chegou a incomodar os vizinhos. Ao baile vão os moradores da “favela”
em que ele se realiza e também moradores de “favelas” cujos “donos” pertencem à
mesma facção. Assim, segundo Sandro, seus bonecos iriam também, mas ele tinha que
coordenar a ida porque os bonecos têm que se locomover pela maquete com o maior
realismo possível – ele não pode juntar todos em um saco e levá-los até lá, por exemplo.
Quando perguntei se ele organizava bailes em sua própria “favela” Sandro me disse que,
como seus bonecos tinham entrado em conflito recentemente com a “polícia”, ele tinha
cancelado todas as atividades que contassem com a presença de “moradores” de outras
“favelas”, já que tinha certeza que a “polícia” dificultaria a entrada desses no seu morro.
Quando perguntei porque ele tinha entrado em conflito com a “polícia”, respondeu-me
que essa era a característica do “morro dele”: “eles” eram "esquentados" e “tiravam
onda” demais, referindo-se à personalidade de seus bonecos, que teriam uma postura
ousada e arrogante frente à “polícia”.

É a partir da maquete, e da “brincadeira” nela realizada, que se desenvolvem as


outras atividades do grupo, sobre as quais falaremos a seguir. É importante mencionar,
contudo, que a maquete e a performance ocupam papel fundamental na dinâmica das
ações do grupo: no processo de incorporação de novos participantes ao grupo
(nomeados como “Nova Geração”) um dos passos mais importantes é o aprendizado da
confecção das casas e dos bonecos que ocupam as favelas e a posse pelo novato de um
espaço dentro da maquete para a confecção da “sua favela”. Além disso, em diversos
vídeos colocados na internet, por ocasião de viagens internacionais para expor em
festivais de arte, quando perguntados se eles mesmos se consideram artistas, os jovens
afirmam que não, que para eles aquilo não é arte, mas uma “brincadeira”.

maior expoente é o escritor Machado de Assis, cuja obra discorreu sobre as hipocrisias da sociedade
brasileira durante a passagem do séc. XIX para o séc. XX.
70
Cf. nota feita no capítulo 3 definindo o que é um baile funk.

106
3.3. A ONG TV Morrinho.

Inaugurada em 2006, a organização não-governamental criada pelos jovens e


pelos cineastas é descrita nos materiais de divulgação como o “ápice” da parceria
firmada entre eles. A ONG gerencia as atividades e capta recursos para outros projetos,
e segundo o site do grupo se organiza em quatro linhas:

a) A exposição da maquete em eventos artísticos, quando o coletivo reproduz em


dimensões reduzidas a maquete original e pode encenar algumas histórias;

b) A produtora audiovisual, que realiza seus próprios filmes e que também faz
filmes sob encomenda;

c) O turismo sustentável, que oferece serviço de visita guiada à maquete;

d) O braço social, que possui um projeto de capacitação profissional na área de


audiovisual para os jovens da localidade, tendo como instrutores os participantes
do grupo, mas que ainda não encontrou patrocinadores.

A abertura da ONG atendeu à necessidade de formalizar juridicamente uma


organização que já existia em termos práticos e que já tinha, inclusive, recebido
patrocínio para comprar equipamentos e montar a estrutura de produção audiovisual do
grupo. O financiamento foi obtido junto a um fundo para pequenos projetos criado pelo
grupo musical O Rappa e a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional
(Fase), a partir dos recursos arrecadados na campanha Na Palma da Mão. Segundo o site
da banda, “o principal critério para inscrição dos projetos é que eles tenham como
mobilizadores e executores os próprios jovens”. A partir desse financiamento foi
possível a compra de equipamentos e a abertura da TV Morrinho, a produtora de vídeos
mencionada acima. Além disso, os jovens acompanharam a banda quando essa se
apresentou em um famoso e popular programa de televisão dominical, quando
montaram uma réplica da maquete no palco. Nessa ocasião os jovens pediram apoio
financeiro para bancar uma viagem ao exterior, para apresentar a exposição em um
festival internacional, e foram ajudados por artistas presentes.

107
Portanto, a criação da ONG permitiu formalizar atividades que já estavam sendo
realizadas de forma amadora, além de fazer parte das iniciativas para profissionalizar os
envolvidos com o grupo, tanto os jovens artistas quanto a equipe de apoio
(coordenadores, técnicos, etc.). A ONG possibilita também o pedido de futuros
financiamentos, especialmente os que se destinam a viabilizar “projetos sociais”, e que
são passo importante para a profissionalização mencionada acima. O caminho
percorrido por diversos movimentos sociais e grupos que lhes prestavam assessoria
rumo à profissionalização é processo analisado por Landim (1993), e parece ter
paralelos com o caso do Morrinho, ainda que esse não tenha nascido de um “movimento
social”, e sim da reunião em torno de uma “brincadeira”. Segundo Landim (1993), na
década de 1980 as agências que financiavam o trabalho dos centros de assessoria e
educação popular ‘a serviço dos movimentos sociais’ (que em seguida se tornariam as
primeiras ONGs) modificaram sua relação com essas organizações, muito em função da
entrada de agências multilaterais (como o Banco Mundial) e governos no mercado de
financiamento social. A partir de então os financiadores demonstram interessem em
sustentar projetos que atuem na prestação de serviços diretos, de resolução imediata de
problemas da população, no que a autora chamou de ‘projetos materiais’ – em oposição
aos ‘projetos imateriais’, de política educativa, formação de lideranças, etc. (Landim,
1993: 368).

Foto da autora

108
No caso específico analisado, a formação da ONG acarretou também novas
formas de relação dos participantes do grupo com sua atividade artística, que desde o
começo foi concebida uma “brincadeira”, mas que gradativamente vem assumindo o
lugar de um “trabalho” na vida dos jovens participantes. Em diversos momentos do
campo essa nova relação com o grupo e com o produto que realizam ficou evidente.
Inicialmente, destaco o fato de que, nas diversas viagens feitas, os jovens participantes
receberam um cachê das equipes de organização dos eventos, que permite não apenas
cobrir os gastos feitos com a viagem (basicamente hospedagem e alimentação), mas
também que eles tragam dinheiro para casa ao final da estada no exterior. Segundo
relato de participantes foi possível, em alguns momentos, poupar cerca de 2/3 do cachê,
o que garantiu a um dos jovens uma renda durante os três meses seguintes em que ele
não trabalhou. Além disso, o cachê permite aos jovens o acesso a bens de consumo
acima das possibilidades de outros jovens da localidade. Ao relatar as aventuras e
desventuras de cada viagem, eles sempre mencionam as compras feitas no exterior:
cordões que custaram 100 euros, tênis, casacos, bonés, entre outros itens característicos
do consumo de jovens de qualquer classe ou local de moradia.

As viagens são, dessa forma, não apenas momentos onde os jovens são
reconhecidos enquanto artistas, mas também possibilidades de ganho financeiro. Gerar
renda e trabalho para esses jovens é um dos objetivos da ONG, mas em alguns
momentos se torna também fonte de conflitos no grupo. Por exemplo, na fase
preparatória de uma das viagens discutiu-se a possibilidade de um jovem da “segunda
geração”, Beto, acompanhar os colegas no lugar de um jovem do grupo original que não
poderia ir. Não seria sua estréia nas apresentações do grupo – ainda que fosse a primeira
viagem para fora do Brasil – e o jovem estava fortemente decidido a ir, mas alguns
colegas foram contra, visto que ele estava trabalhando já há sete meses em uma empresa
ligada ao ramo turístico na cidade, e contratado de maneira formal. Assim, seus
companheiros argumentavam que era pouco prudente abrir mão de um trabalho de
“carteira assinada” para engajar-se em uma viagem com o grupo, mesmo que o cachê
fosse convidativo; tratava-se de um cachê de 1.500 euros, por uma viagem de duas
semanas para apresentar a réplica da maquete no centro cultural de uma empresa
européia que realizava uma exposição sobre o Brasil. Para completar o cenário, o jovem
seria pai em poucos meses. O grupo discutia coletivamente, dessa forma, a legitimidade
do pedido de Beto, mas a maioria estava fortemente contra: um deles inclusive afirmou

109
que se recusaria a ir se ele fosse, pois se tratava de uma “maluquice”. Muitos
argumentavam: “você consegue um emprego e agora quer pedir demissão para viajar? A
ONG serve para te ajudar a encontrar um emprego, não para te fazer sair dele!” Outros
argumentavam ainda que ele acabaria sendo despedido por justa-causa, o que
dificultaria sua inserção em outro posto de trabalho, e assim quando seu filho nascesse e
ele não tivesse como sustentá-lo sua família acusaria “a ONG” de ter causado tal
situação. Expressavam assim uma preocupação que a imagem da ONG ficasse
prejudicada com o episódio, e argumentavam que o bem da ONG, enquanto coletivo,
era mais importante que o desejo de Beto de viajar. Ao final do debate prevaleceu a
decisão da maioria dos participantes, e o jovem não viajou com o grupo. Vale ressaltar
que a discussão se deu entre os jovens participantes, e não contou com a participação
dos coordenadores da ONG.

Além dos ganhos com os cachês das exposições da maquete, os jovens estão se
profissionalizando no ramo do audiovisual, e já atuam como diretores, roteiristas,
editores, diretores de arte e de fotografia, técnicos de som e aparelhagem, tanto nas
produções próprias do grupo quanto nas filmagens feitas por encomenda, ainda que
essas não sejam frequentes. O contato dos coordenadores da ONG com produtoras de
vídeo cariocas possibilitou que dois jovens participantes estagiassem nessas empresas,
mas essa experiência não resultou em oportunidades mais longas de trabalho após o fim
do estágio. Os pedidos feitos à produtora de filmes deles é uma fonte de renda para os
jovens: um canal de TV internacional, voltado para o público infantil, encomendou
quatro pequenos filmes para a produtora, que foram roteirizados, filmados e editados
pelos meninos, ainda que com o acompanhamento dos coordenadores da atividade. Em
outro momento, uma empresa contratou a produtora para realizar seu vídeo institucional
de final de ano, focado na categoria de “responsabilidade social” e apresentando
algumas ONGs que atuam no Rio de Janeiro. Nesses casos, o valor recebido é dividido
entre os participantes, e os meninos têm acesso a toda a negociação realizada e aos
valores pagos. No entanto, essa atividade não é tão consolidada e frequente quanto a
realização de exposições da maquete.

Outra fonte de ganho para os jovens é o projeto de “turismo sustentável” pois,


quando passeios à maquete são agendados, são os jovens participantes que atuam como
guias, recebendo uma porcentagem do valor pago por cada visitante. Esses passeios são
agendados diretamente na sede da organização ou através de contatos com empresas de

110
turismo especializadas em um turismo de caráter “social”, e a parte mais representativa
dos visitantes são estrangeiros. Como os jovens participantes do grupo às vezes estão
envolvidos em outras atividades, algumas crianças moradoras da favela atuam também
como guias, passando assim a fazer parte da “nova geração” do grupo.

A proposta do “turismo sustentável” compartilha dos mesmos conceitos da


“economia sustentável” ou “sustentabilidade”, onde se busca (segundo os seus
defensores) equilibrar as necessidades de ganho econômico com preocupações com a
preservação do meio ambiente e das populações que podem ser atingidas pelos
empreendimentos econômicos realizados, seja social ou culturalmente. Assim, a
realização de um empreendimento de “turismo sustentável” na localidade pressupõe
reverter positivamente para o local o impacto da atividade; no caso, através do
engajamento dos jovens locais como guias. As ações de “turismo sustentável” em
favelas do Rio de Janeiro são cada vez mais frequentes, abrindo um promissor campo na
economia dessas localidades. O público-alvo são majoritariamente os turistas
estrangeiros que desejam experimentar a “vida na favela”, e em outras favelas cariocas
como a Rocinha já não se trata de novidade71. Freire-Medeiros (2005) identifica este
tipo de destino turístico como parte de um fenômeno recente chamado “reality tour”,
onde os turistas buscam

(...) viajar para lugares idealizados como locus de elementos autênticos pertencentes
a outras culturas ou a um passado mistificado, ‘encenações’ das quais participam
também os próprios nativos que se beneficiam das oportunidades de trabalho e renda
gerados pelo turismo (Freire-Medeiros, 2005:6).

Entre estes “reality tours” a autora destaca os roteiros “sombrios” e os “sociais”.


Entre os primeiros estão lugares onde aconteceram tragédias como Nova Orleans pós-
Katrina, o Ground Zero das Torres Gêmeas em Nova Iorque, os campos de
concentração europeus e a região de Chernobyl. Já nos tours ”sociais” o objetivo é a
participação e a experiência autêntica. Entre estes destinos “sociais” encontram-se
visitas a acampamentos de trabalhadores rurais pertencentes ao Movimento dos Sem-
Terra e a presídios. O objetivo dessas visitas é, além da experiência “autêntica”, ajudar

71
Cf. Carneiro e Freire-Medeiros (2004) e Freire-Medeiros (2006).

111
as populações envolvidas, través de um turismo menos predador, onde “tanto os
anfitriões quanto os hóspedes vivem uma experiência positiva de interação e
conhecimento mútuo” (Freire-Medeiros, 2005:7). A menção às experiências reais ou
realistas vai ao encontro do que é proposto pelo Morrinho: conhecer as favelas como
elas são. No material de divulgação do turismo local os visitantes são convidados a
desfrutar de uma “maravilhosa e segura experiência de arte e vida real” (Enjoy an
amazing and safe experience of art and real life, em inglês no original).

As favelas cariocas encontram-se agora entre os destinos do turismo social,


incentivados pelo governo municipal, que inclui visitas a algumas delas como parte do
roteiro turístico-ecológico da cidade72; Freire-Medeiros (2005) cita a Rocinha, o Morro
da Babilônia, o Morro dos Prazeres e o Morro da Providência. No final de 2008 a
Secretaria Municipal de Turismo, em parceria com o Ministério do Turismo, selecionou
15 ações de “turismo sustentável” em favelas para serem incentivadas com
financiamentos para suas atividades. O objetivo do edital que selecionou esses “projetos
sociais” é o de “dar educação, qualificar e gerar trabalho e renda, promovendo a
inclusão social”73. No caso do morro do Pereirão, o investimento permitiu a construção
de uma sede de acolhida ao turista (antiga casa da família do Cabeção, como
mencionado anteriormente), e a construção de outras instalações para melhorar e
expandir as atividades do grupo. Segundo o site feito especialmente para a ação de
turismo sustentável no Morro do Pereirão, são realizadas em média 80 visitas por mês, e
o objetivo é aumentar para 180/ mês.

A estrutura de turismo sustentável no Pereirão se completa com a Pousada


Favelinha, que propõe a seus hóspedes uma imersão no cotidiano da favela, já que eles
ficariam ali hospedados, convivendo com os moradores – ainda que em muitos aspectos
esse cotidiano assuma a forma de encenação, como aponta Freire-Medeiros, 2005.
Também no caso da pousada os clientes preferenciais são os turistas estrangeiros, pois
segundo a proprietária “os brasileiros têm medo de entrar em favela”.

Os diferentes ramos de atividade propostos pela ONG investem, portanto, na


profissionalização dos envolvidos em suas ações. No entanto, em diversos aspectos a
72
Cfr http://www.rio.rj.gov.br/riotur/pt/guia/?Canal=38.
73
Jornal do Brasil, “Turismo sobe o morro”, 28 de novembro de 2008.

112
organização ainda funciona de maneira informal, e as relações pessoais entre os jovens,
e entre esses e os coordenadores e técnicos, são bastante importantes nas decisões sobre
os rumos do grupo. No caso mencionado acima, do jovem que queria pedir demissão
para acompanhar o grupo em uma viagem, a decisão foi tomada sem a participação dos
coordenadores da ONG, em uma reunião feita pelos jovens no local da maquete,
enquanto ensaiavam para a performance que seria apresentada no exterior. Nesse
mesmo dia, o coordenador convocou uma reunião na sede (na entrada da favela) para
discutir um tema que ele considerava importante, relacionado aos contatos que estavam
sendo feitos com uma instituição pública. Os jovens, todavia, não consideraram essa
reunião importante, e preferiram continuar o ensaio na maquete. Em outro dia, os jovens
discordaram sobre quais atividades deveriam ser realizadas naquele dia, véspera da
viagem à Áustria: enquanto a maioria escolheu confeccionar os bonecos, um deles
decidiu ensacar areia para a obra que está sendo realizada na sede de acolhimento dos
turistas. Por fim, ainda que exista uma separação entre profissionais e jovens, pois os
diretores de vídeo são os coordenadores da ONG, no final do campo fui surpreendida
com a notícia que a presidência da ONG estava sendo ocupada por um dos jovens, já
que o então presidente (um dos coordenadores) não teria disponível o tempo necessário.
Apesar de não ter entendido corretamente a diferença entre o cargo de coordenador e de
presidente, não posso deixar de notar que a hierarquia entre os membros do grupo não é
tão rígida quanto parecia à primeira vista.

Por último, a abertura da ONG permite que o grupo possa entrar no setor em
expansão do financiamento públicos e privados para “projetos sociais”, em sua maioria
ocupado por organizações não-governamentais. Em trabalho recente, Landim (2005)
discute dados de 2002 sobre o setor de Fundações e Associações sem fins lucrativos
(Fasfil) no Brasil74, mostrando como esse tem crescido nos últimos anos (o recorte
temporal da pesquisa é de 1996 a 2002), especialmente o setor de desenvolvimento e
defesa de direitos, onde se encontra a maior parte das ONGs, segundo a autora (2005:
83). Analisando os dados relativos às fundações e associações criadas mais
recentemente, a autora afirma que a maioria é de “vocação territorializada local e de
interesse geral (comunitárias e de moradores)”, e de defesa de direitos de grupos e
minorias (Landim, 2005: 82). Ela aponta ainda que este crescimento acontece em um
conhecido contexto de

74
Cf. ABONG et alli.

113
(...) redefinição das relações entre Estado e sociedade, as transformações nas
modalidades de regulação do laço social, as mudanças no mundo do trabalho e nas
formas de solidariedade a elas associadas, o aumento da desigualdade e da
desafiliação social, as dinâmicas de descentralização político-administrativas, etc.
(Landim, 2005: 77).

Dessa forma, as ONGs apresentam características adequadas para atuar em um


cenário onde as mudanças são tantas e tão variadas, como descrito acima. Como afirma
Gohn (2002), a partir da década de 1990 a fome e a miséria passam a ser objeto da
preocupação de organismos internacionais que, ao propor medidas para combater esses
problemas, modificam o paradigma anterior de políticas universalistas, características
do Estado de Bem-Estar. Essas novas políticas reconfiguram a relação entre governo e
sociedade civil organizada, pois algumas das instituições que antes atuavam como
grupos de pressão e interlocutores do governo agora atuam como ‘parceiras’ na
execução de ações governamentais. Para que tal atuação seja possível é necessário um
maior grau de institucionalização dessas organizações, para que elas tenham capacidade
de sustentação e reprodução dentro do mercado, isso é, que sejam capazes de prestar
serviços e arrecadar recursos. Institui-se uma lógica diferente à que orientava os
movimentos sociais, mudando-se o cerne da relação entre poder público e sociedade
civil da interlocução para a “parceria”. Tal lógica atendeu ao mesmo tempo a duas
necessidades do governo, pois permitiu que fosse possível modificar as ações
implementadas e, concomitantemente, a estrutura administrativa da burocracia estatal,
enxugando a estrutura de cargos e transferindo responsabilidades para as ONGs (Gohn,
2002: 300). São as organizações institucionalizadas da sociedade civil que executam as
novas políticas sociais focadas nos pobres, em “parceria” com o poder público, que
entraria com os recursos financeiros necessários e manteria dessa forma o controle final
sobre o tratamento dado aos “problemas sociais”.

Nesse sentido, a profissionalização mencionada anteriormente responde às


necessidades não apenas daqueles que trabalham nas organizações, mas também dos
governos e organismos que nelas investem. Além disso, no caso específico do Rio de
Janeiro (que acredito ser comparável ao de outras cidades em alguns aspectos, mas que
possui ainda assim características próprias) as organizações não-governamentais se
apresentam como os atores sociais mais adequados a executar as políticas sociais que

114
dão tratamento diferenciado aos moradores das áreas populares, e que nos últimos anos
se inscrevem no contexto de combate à violência urbana, como veremos na seção
seguinte.

No entanto, antes de terminar essa seção é importante mencionar que a criação


da ONG representa também, para alguns dos seus participantes, uma forma de “ajudar a
comunidade”. Por um lado, acreditam estar divulgando uma imagem positiva do Morro
do Pereirão, através da divulgação do próprio trabalho. Segundo um dos participantes
entrevistados, alguns jovens moradores do local têm vergonha de dizer onde moram,
pois o Pereirão teria pouco “reconhecimento” entre os moradores de favela, por ser uma
favela pequena, sem atividades como bailes funk, por exemplo. A imagem positiva da
favela seria também divulgada para fora do circuito de moradores de favela, e inclusive
“no exterior”, o que aumentaria a auto-estima dos moradores. Por fim, especialmente
nas falas dos participantes mais velhos, a possibilidade de servir como exemplo para as
crianças da localidade e de transmitir a elas o que aprenderam é descrita como uma das
maiores recompensas alcançadas. Segundo Cabeção:

Você está vendo que a molecada da comunidade não está indo para o caminho da
violência, estão seguindo o caminho que eu segui. Você vê eles se espelhando em
você. Sente emoção. Acho que isso é consideração e respeito. (em entrevista
concedida a uma equipe universitária75).

Considerando que representar positivamente o Pereirão aparece como um dos


objetivos dos participantes, chamou-me a atenção que a violência e os traficantes de
drogas estejam presentes na produção audiovisual realizada, o que poderia representar
um contrasenso. A tensão entre ser fiel à realidade das favelas e apresentar uma imagem
positiva delas também está presente na prática de outros grupos de moradores de favelas
que trabalham com representações alternativas da favela: artistas que produzem imagens
para serem consumidas por turistas que vão as favelas (Freire-Medeiros, Menezes e
Nunes, 2008); grupos de fotógrafos oriundos das favelas e que fazem delas seu principal
tema (Gama, 2009); ONGs organizadas em torno da memória das favelas, etc. No
entanto, a representação de traficantes de drogas no material produzido não é usual,

75
Vídeo disponível no YouTube, no canal do grupo.

115
ainda que em muitos desses casos a busca por autenticidade nas reproduções feitas não
permita esconder a existência desses atores. Por exemplo, o turismo em favelas é
orientado para proporcionar ao turista uma experiência real (Freire-Medeiros, 2007), e
por isso os visitantes vêem os traficantes, ainda que sejam orientados a não fotografá-
los. No entanto, os traficantes não são representados nos souvenires produzidos por
moradores e vendidos aos participantes dos tours. Os traficantes também não aparecem
nas fotografias feitas pelos “fotógrafos favelados” profissionais, ainda que nesse caso
esteja evidente que os traficantes não permitiriam serem fotografados de qualquer
maneira. Contudo, nas duas formas de representar favelas mencionadas acima mais
detalhadamente, os moradores envolvidos querem apresentar ao “de fora” a realidade da
favela, e selecionam como tema de seu trabalho também questões como as condições
precárias de moradia, de saneamento, etc., mas apresentando com bastante ênfase os
aspectos positivos. A produção da TV Morrinho parece, por outro lado, se focar quase
que exclusivamente sobre esses agentes, ainda que outros temas tenham aparecido nos
materiais mais recentes e profissionais. Dessa forma, a imagem positiva que os jovens
participantes dizem produzir pode estar mais ligada ao aspecto cênico (a maquete) do
que a produção de vídeos. Além disso, a elevação dos jovens participantes a condição
de artistas parece cumprir para eles a função de ser uma representação positiva sobre as
favelas e seus moradores.

3.4 Os múltiplos significados do Morrinho.

3.4.1 Colocando a violência em evidência, mas como problema.

Desde o começo do trabalho de campo no morro do Pereirão me chamava


atenção como o discurso local sobre a “tranquilidade” naquela favela (cf. capítulo 2)
contrastava com outras falas que recolocavam naquele território a questão da violência e
da submissão imposta pela contigüidade territorial com os traficantes de drogas. E uma
das falas que mais me pareciam contrastantes era o discurso da importância da
existência e manutenção do Morrinho enquanto um “projeto social” cuja finalidade seria

116
manter seus jovens participantes afastados de “riscos” sociais, como a adesão ao tráfico
de drogas.

Entre os profissionais do campo da assistência social e de organizações não-


governamentais, o conceito de “risco social” é bastante acionado, assim como o de
“vulnerabilidade social”. Ainda que façam parte do mesmo repertório, porém, os
conceitos têm significados um pouco diferentes. O conceito de “vulnerabilidade social”
tem sido usado pelo Banco Mundial, ONU, CEPAL e outras agências internacionais
como conceito alternativo ao de pobreza, que não levaria em conta a complexidade de
suas causas, nem os diferentes recursos de que dispõem os pobres e que não podem ser
medidos de maneira monetária. Assim, propõem o conceito de “vulnerabilidade social”,
entendido como:

(...) o resultado negativo da relação entre a disponibilidade dos recursos materiais ou


simbólico dos atores, sejam eles indivíduos ou grupos, e o acesso à estrutura de
oportunidades sociais, econômicas, culturais que provêem do Estado, do mercado e
da sociedade (Abramovay et alii, 2002: 28).

O conceito de “risco”, por outro lado, é bastante trabalhado pela teoria


sociológica. O risco é o efeito nefasto da modernidade (Giddens, 1991), é uma ameaça
que pode atingir a todos, mas com a qual podemos conviver desde que nos sintamos
seguros. O conceito de “risco social”, por sua vez, pressupõe o conceito de convivência
com o perigo acionada por Giddens: dizer que um jovem está em “risco social” é dizer
que ele ainda não foi atingido pelo perigo, mas está sendo ameaçado. No entanto, o
“risco social” não é homogêneo em sua abrangência; os que podem estar em “risco
social” são os que se encontram, permanentemente, em situação de desvantagem social,
quase sempre de pobreza. Mas ainda que seja usado freqüentemente pelos profissionais
do campo do trabalho social e também por alguns acadêmicos, o conceito não é definido
e delimitado como o de “vulnerabilidade social”; utilizado nos contextos de avaliação
dos problemas sociais urbanos e de proposição de intervenções sobre eles, o conceito
está quase sempre referido aos jovens moradores das grandes cidades e aos perigos a
que estão submetidos por serem agentes e vítimas preferenciais da violência urbana.
Como afirmam Cardia et alii (2003), o conceito de risco alcança “múltiplos atores e

117
múltiplas formas de atividades”, mas “No mundo ocidental moderno, um dos grupos
mais vulneráveis ao risco social é o constituído por jovens”.

Por sua referência direta à proximidade e ameaça representada pelos agentes da


violência urbana, falar em jovens “em risco social” me pareceu “fora de lugar” quando
confrontada aos discursos sobre ausência de tráfico de drogas no local. No entanto, esse
argumento foi utilizado pela coordenação da ONG, por alguns de seus jovens
participantes e por outros moradores. Quando iniciei o trabalho de campo fui
apresentada à iniciativa pelo então presidente da associação de moradores como algo
muito importante e valioso para os moradores, pois impedia que os jovens “tivessem
ideias ruins ou fizessem coisas erradas” ao ocupar seu tempo livre. Em uma das
primeiras entrevistas que realizei com o coordenador da ONG, em outro exemplo, ele
relatou o caso de um ex-participante do projeto que, mesmo sendo office-boy da Finep
(posição conseguida através de mediações feitas pela organização), escolheu trabalhar
para o tráfico de drogas em uma favela vizinha e acabou sendo assassinado. Segundo o
coordenador, se não fosse pelo projeto pelo menos quatro dos dez jovens que
participavam então da ONG teriam feito a mesma escolha, pois “as necessidades de
consumo e de poder exercem uma pressão muito grande sobre eles”. Também nas
entrevistas dadas pelos jovens participantes aos meios de comunicação a participação na
ONG é apresentada como uma “alternativa” à entrada na vida criminosa; um dos jovens
participantes menciona76 inclusive que cogitou entrar para uma quadrilha de traficantes,
chegando a ter “uma arma nas mãos”, mas que mudou de ideia porque a ONG lhe abriu
outras oportunidades.

Além dos relatos recolhidos e das entrevistas, o argumento que apresenta o


“projeto social” executado pela ONG como uma maneira de evitar ou contornar o “risco
social” que existiria potencialmente na localidade é diversas vezes acionado no Plano de
Negócios77 para suas atividades no ano de 2007 (material disponível no site do grupo).
Por exemplo, o segundo objetivo descrito no plano de negócios é: “Diminuir o nível de
violência e criminalidade na Comunidade do Pereirão”. Em seguida, entre os
indicadores que avaliarão o desempenho do trabalho realizado a ONG apresenta:
76
Além da declaração dada a um jornal, o jovem relatou a mesma história em um “coletivo de confiança”
realizado durante a pesquisa “Rompendo o cerceamento da palavra: a voz dos favelados em busca de
reconhecimento”.
77
O Plano de Negócios é um projeto que apresenta os objetivos, ações, resultados esperados, fraquezas e
forças de iniciativas que podem ser no campo do trabalho social, como no caso, ou em empreendimentos
econômicos. Em geral tal plano é utilizado como material a ser apresentado a potenciais investidores.

118
“Abandono das atividades relacionadas ao tráfico de drogas”; ou seja, que o número de
jovens participantes das atividades do projeto que tinham envolvimento com ações do
tráfico de drogas e que as abandonaram será utilizado como uma medida da eficácia do
trabalho. Os objetivos apresentados, assim como os indicadores, são bastante similares
aos de outros “projetos sociais” que atuam em favelas do Rio de Janeiro. No entanto, a
mobilização do argumento do perigo potencial de adesão dos jovens da localidade ao
tráfico de drogas parece em descompasso com a descrição feita da favela, inclusive no
mesmo Plano de Negócios mencionado; os autores apresentam como uma das forças do
projeto a “Ausência de tráfico armado na região”.

O descompasso que eu identificava entre os discursos da “tranquilidade local” e


do “risco social” a que seus moradores estariam expostos se estendia também sobre a
história dos jovens participantes e da formação do grupo. Afinal de contas, a maquete
tinha sido construída exatamente porque os jovens participantes, à época meninos,
buscavam um refúgio para se protegerem dos constantes conflitos ligados ao comércio
de drogas existentes no local. Em sua origem, ainda que assumindo atualmente
contornos de mito ou lenda (como é bastante comum quando relatamos histórias do
passado ou da infância), o Morrinho é a rejeição dos jovens à violência real que era
bastante próxima deles, ainda que através da recriação dessa violência enquanto
brincadeira e performance. Logo, me parecia pouco lógico justificar a existência de um
“projeto social” com o argumento de impedir a entrada daqueles jovens no tráfico de
drogas, já que eles mesmos tinham rejeitado essa possibilidade anteriormente; além de
pouco lógico, me parecia ofensivo aos participantes que eles fossem apresentados
publicamente como vulneráveis a aderir ao crime.

Apesar disso, o discurso do Morrinho enquanto “projeto social” para impedir a


entrada dos jovens no tráfico de drogas faz todo o sentido dentro do quadro maior em
que se encontram as favelas cariocas, bem como as políticas de combate à violência que
são nelas executadas. O enquadramento dessas políticas sociais enquanto ações
específicas para os territórios populares e para seus moradores, sobretudo os jovens, é
“ajustado” à relação de dominação estabelecida pelo resto da cidade sobre as favelas
desde seu surgimento, no final do séc XIX. Tal enquadramento não apenas representa
uma continuidade dos dispositivos de controle e repressão existentes sobre essa
população, como incorpora sua atualização, na qual as favelas são um “‘mal’ a se
irradiar para a cidade” (Leite, 2000: 74), e seus moradores são coniventes com os

119
traficantes de drogas que ocupam seus locais de moradia e, portanto, alvo das ações
realizadas nessa “guerra” (Leite, 2000, 2008).

Desde que as favelas passaram a ser vistas como um “problema” , como aponta
Valladares (2005), são planejadas e executadas ações que diferenciaram os territórios
populares (incluindo as favelas) do resto do território da cidade, enquadrando sua
população de maneira diferenciada e, quase sempre, discriminatória. A autora apresenta
com detalhes como a representação social desses espaços enquanto um mundo à parte –
insalubre, anti-higiênico e contagioso (2005: 37) – orientava as políticas públicas a
serem ali executadas, desde as medidas para remoção dos cortiços até a políticas que
visavam administrar e controlar as favelas e suas populações (2005: 49). Nas décadas
que se seguiram ao surgimento das primeiras favelas, as ações públicas sobre elas
visavam sua eliminação, assim como de outras formas de habitação popular como os
cortiços, por seu caráter de “doença, mal contagioso, patologia social a ser combatida”
(Valladares, 2005: 40). A partir dos anos 1930, porém, há uma inflexão na
representação social sobre as favelas, por conta do governo do presidente Getúlio
Vargas, ainda segundo a autora (2005: 49). É na década de 1940, ainda no governo
Vargas, que são criados os Parques Proletários, exemplos de uma nova concepção do
poder público sobre as favelas e seus moradores (Burgos, 2003). Nos Parques
Proletários foram realojados entre sete e oito mil moradores de favelas, e seu objetivo
era não apenas fornecer melhores condições de moradia, mas principalmente:

(...) dar assistência e educar os habitantes para que eles próprios modificassem a sua
prática, adequando-se a um novo modo de vida capaz de garantir a sua saúde física e
moral (Valladares, 2005: 62).

Assim, a existência de políticas territoriais cujo foco são os moradores de


favelas não é novidade, nem seu caráter de “controle de seus comportamentos e do seu
acesso à cidade” (Birman, 2008: 102). Farias (2008) argumenta que as medidas
implantadas para solucionar o “problema” dos moradores de favela teriam por
pressuposto o não compartilhamento por esses do mesmo estatuto dos outros cidadãos
da cidade, necessitando serem objeto de “pedagogias civilizatórias” e “ajustamentos
morais” que, como bem ressalta a autora, se aproximam das medidas analisadas por

120
Foucault para os pobres, mendigos e loucos na Paris retratada em História da Loucura
(Foucault, 2005b).

Logo, observa-se que as favelas e territórios populares sempre foram local de


políticas diferenciadas, que visavam controlar e disciplinar sua população. No entanto, o
contexto de explosão da violência urbana nos anos 1990 e a sua relação com o tráfico de
drogas inauguram uma nova representação sobre as favelas, que seriam o território da
violência e seus moradores cúmplices dos responsáveis pela violência, os traficantes de
drogas, por “escolherem” viver sob a “lei do tráfico” e não sob a “lei do país” (Leite,
2008: 117). A partir dessa representação surgem apelos por políticas repressivas de
combate ao crime, como demonstrou Leite (2000, 2005):

Neste cenário, o medo do crime violento associou-se ao aumento do preconceito e


da discriminação em relação à população que vive nesses territórios, gerando
apoios, mais ou menos explícitos, de consideráveis segmentos das camadas médias e
abastadas e setores da mídia, a políticas repressivas de segurança pública, que
pressupõem a incompatibilidade entre resultados eficientes no combate à violência
urbana e respeito aos direitos civis de moradores e moradoras dos territórios
favelados. Assim, vêm se renovando e aprofundando as barreiras para seu pleno
direito à cidade e à cidadania (Leite, 2005: 66).

As políticas repressivas atuais inauguram um novo momento nas relações entre


sociedade, Estado e favelas, com o endurecimento da repressão e um distanciamento
cada vez maior entre os que moram nas favelas e os moradores do “asfalto”, o que
permite que a duplicidade das políticas públicas, uma para o “asfalto” e outra para o
“morro”, fique ainda mais legitimada e autorizada, como fica evidente nas declarações
do atual secretário de segurança pública, José Mariano Beltrame, que ao falar sobre o
uso de armas não-letais pela polícia militar do Rio de Janeiro avisou a população que
elas continuariam a ser usadas nas áreas de risco, i.e., as favelas. Citando o artigo: “As
operações em favelas, segundo Beltrame, são casos diferentes78”.

Ainda que a duplicidade de ações públicas permaneça a mesma, o conteúdo


dessas ações se modifica, incorporando a nova representação social de “guerra” contra o
crime e, por extensão, contra as favelas. No bojo do aumento da preocupação com a
violência urbana durante os anos 1990 surgem diferentes explicações para a sua causa e
78
PM já treina com armas não-letais. JB Online. 24 de Julho de 2008.

121
propostas para a sua solução, que foram sintetizadas por Leite (2000: 74) em duas
linhas. Uma delas demandaria mais ordem e repressão, e defenderia que os direitos dos
moradores das favelas não poderiam ser um impedimento para o combate aos
criminosos escondidos nelas. A outra seria composta majoritariamente por intelectuais,
ONGs e alguns profissionais da comunicação, e defenderia que o combate aos
traficantes de drogas deveria aliar “políticas de promoção da cidadania, destinadas
principalmente a jovens moradores” dessas áreas e iniciativas de segurança públicas
mais eficientes (Leite: 2000:74). Ainda hoje o debate sobre as causas da violência e as
soluções para combater a criminalidade comporta os dois discursos, que disputam
cotidianamente a autoridade sobre a questão. Ambas orientam as ações públicas, pois
vemos ao mesmo tempo um investimento crescente nas políticas de confronto entre
policiais e traficantes de drogas, que resultam em mortes diárias nas favelas (e em
menor número entre policiais), e um investimento em ações que prometem incluir
socialmente os jovens moradores de favelas, como as realizadas por diferentes ONGs
com financiamento público79.

O papel da política social passa a ser, portanto, evitar que os jovens escolham a
carreira criminosa, pois se acredita que a causa da adesão desses à criminalidade seja
sua “exclusão social”. Soares (1996), por exemplo, argumenta que a grande maioria das
vítimas e dos agentes da violência urbana são os “jovens excluídos da cidadania” e que,
portanto, uma das medidas para controlar esse fenômeno é “implementar políticas
públicas e iniciativas da sociedade civil criativas e intensas, emergenciais, voltadas
prioritariamente para a integração da juventude pobre” (Soares, 1996: 258). Assim, os
“projetos sociais” precisam disputar os jovens moradores de favela com os traficantes,
criando “(...) condições de atração da juventude pobre, bloqueando sua cooptação pelos
grupos que operam o tráfico de drogas e de armas (...)” (1996: 298). Segundo Machado
da Silva (2008a), o pressuposto que orienta essas ações é a crença na possibilidade de
cancelamento ou redução das condutas criminosas através de modificações

79
No dia 21 de janeiro de 2009 foi assinado um acordo entre a Prefeitura do Rio de Janeiro e o Ministério
da Justiça para a liberação de R$ 60 milhões para projetos sociais e esportivos em “áreas carentes” da
cidade, vindos do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci). Cf. Segurança:
Prefeitura receberá R$ 60 milhões. Globo Online, 21 de janeiro de 2009. Ainda no mesmo mês o
Governador Sérgio Cabral anunciou que irá liberar R$ 1,5 milhão para investimento no “projeto social”
do grupo AfroReggae, na localidade de Vigário Geral. Cf. AfroReggae ganha novo centro cultural. Globo
Online, 14 de janeiro de 2009. No ano de 2008 foi anunciado pelo governo federal que o Rio de Janeiro
irá receber R$ 99,9 milhões para investir em ações de segurança pública, também com verba do Pronasci.
Cf. Ministério da Justiça libera verbas para estado, e Tarso afirma que Pronasci deve ter efeito em 3 ou
5 anos. Globo On line, 27 de junho de 2008.

122
institucionais – que buscariam solucionar a “ineficácia intrínseca das leis” ou “a
incapacidade das agências de administração da justiça de fazê-las cumprir” – e de
iniciativas de caráter “civilizador” que diminuiriam o risco da opção pelo crime. No
entanto, o autor chama atenção para o fato de que, no debate sobre a “violência urbana”,
as análises que localizam o problema na ordem social institucional-legal jogam “na
obscuridade” a reflexão sobre o conjunto de práticas sociais que deram origem ao
problema, e que compõem a forma de vida em que estão inseridos os traficantes de
drogas (2008a: 40).

As políticas sociais voltadas para os jovens no Brasil, no geral, enquadram esse


grupo como “problema” mesmo quando não são executadas em favelas. Para Abramo
(1997), o interesse sobre a questão da juventude no Brasil80 não é apenas do poder
público – através de políticas voltadas para a formação profissional e serviços de saúde,
cultura e lazer – mas também de organizações não governamentais, associações
beneficentes, instituições de assistência, etc. No entanto, muitas dessas ações têm por
objetivo, direta ou indiretamente, conter o risco real ou potencial que esses jovens de
camadas pobres dos centros urbanos brasileiros representam, através de seu afastamento
da rua e da ocupação de suas “mãos ociosas”. Isto se daria porque desde a década de
1990 o jovem tem tido na mídia e na opinião pública o estatuto de problema social, de
vítima e ator da desordem. Nessa década eram freqüentes as matérias jornalísticas sobre
meninos de rua, jovens envolvidos em arrastões, surf ferroviário, gangues, galeras,
vandalismo, grupos de pichadores, etc. Assim, a sociedade voltava sua atenção para a
deficiente integração desses jovens, em sua maioria de classes subalternas e moradores
de periferias, ao mundo dos adultos, da ordem social e do trabalho, e demandava a
intervenção tanto dos programas públicos quanto da sociedade civil na resolução deste
problema social.

Segundo Sposito e Carrano (2003), é no bojo do crescimento tanto do tráfico


quanto do consumo de drogas por jovens na década de 1990 que o governo Fernando
Henrique Cardoso cria um conjunto de ações focadas na juventude:

80
Para a autora, o interesse na juventude é recente no Brasil, datando dos anos 1990, mas na Europa e nos
Estados Unidos desde o começo do séc. XX agências governamentais são focadas nos jovens, o mesmo
acontecendo entre outros países da América Latina, em função do estímulo de organismos como a
CEPAL, ONU e de intercâmbios com o governo espanhol (Cf. Abramo, 1997).

123
Sob a égide da segurança pública foi criado o Programa do Gabinete de Segurança
Institucional da Presidência da República, sob o controle de um general do exército,
num claro simbolismo da ‘guerra’ que deveria se travar pela salvação da juventude
das garras do crime, do tráfico e da violência (Sposito e Carrano, 2003: 30).

Ainda segundo os autores, os indicadores sobre desemprego juvenil e aumento


da exclusão social desse segmento apontaram para a necessidade de políticas de
assistência e integração social voltadas para os jovens. Nesse sentido, algumas políticas
apresentam outras preocupações que não a criminalidade juvenil. É dentro dessa
perspectiva que surgem as políticas de capacitação profissional, englobadas em sua
maioria pelo Projeto Comunidade Solidária81. Ainda que o foco na entrada no mercado
de trabalho dos jovens permaneça atualmente na orientação das principais políticas
públicas, vide o Programa Nacional de Estímulo ao Primeiro Emprego do governo
federal82, o tema do “risco” ou da “vulnerabilidade” social dos jovens moradores de
favela permanece como uma justificativa acionada pelos representantes das entidades
executoras dessas políticas, como observei em outro trabalho (Rocha e Araújo, 2008:
15).

O discurso que apresenta os jovens como vulneráveis aos riscos representados


pelos traficantes de drogas e que, portanto, precisam ser protegidos pelo poder público e
pela sociedade civil, tem por efeito reforçar a representação existente sobre a
aproximação entre traficantes e moradores de favelas, especialmente os jovens, como
apontam Machado da Silva e Leite (2008):

Aqui talvez resida o mais claro exemplo do encontro entre representação, construção
de problemas públicos e políticas de intervenção. Com efeito, as ideias de
cumplicidade com os criminosos são em boa parte sustentadas, reproduzidas e
objetivadas pelas próprias políticas sociais e/ou ações filantrópicas destinadas aos
moradores de favelas em geral e, especialmente, aos seus segmentos mais jovens. À
sua orientação claramente focalizada e compensatória é adicionada uma filosofia
justificadora que penaliza a clientela, sempre pensada como potencialmente

81
Criado em 1995 pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso e coordenado por sua esposa, a
antropóloga Ruth Cardoso, tinha como principal conceito a articulação entre grupos da sociedade civil e o
poder público para o enfrentamento da pobreza e da exclusão social.
82
O Programa Nacional de Estímulo ao Primeiro Emprego é uma iniciativa do Ministério de Trabalho e
Emprego de geração de oportunidades de trabalho para jovens entre 16 e 24 anos, sem experiência prévia
no mercado de trabalho formal, que possuem renda familiar per capita de até meio salário mínimo.
Através de subvenções econômicas às empresas empregadoras – R$ 1.500 por ano/por vaga – o projeto
pretende gerar postos de trabalho direcionados para jovens participantes do programa. Cf. Rocha e
Araújo, 2008.

124
criminosa. Os programas passam a ser formulados e implementados em um viés
repressivo/preventivo, como uma espécie de ampliação dos instrumentos de controle
social, visando a afastar as categorias sociais “vulneráveis” ou “de risco” das
tentações da carreira criminal. (Machado da Silva e Leite, 2008: 50-1).

Os discursos do “risco social” têm por efeito perverso o reforço do estigma que
recai sobre os jovens que buscam atender, pois os classifica como potencialmente
criminosos, e servem de justificativa para ações e programas públicos que possuem um
caráter disciplinador, como observado em outro trabalho (Rocha e Araújo, 2008). Ao
analisar as falas de jovens participantes do Programa Nacional de Estímulo ao Primeiro
Emprego (PNPE), do governo federal, percebemos as freqüentes menções a medidas de
caráter disciplinador, que possuíam peso mais elevado na qualificação desses jovens que
conhecimentos técnicos específicos ou conhecimentos mais amplos sobre processos de
trabalho e gestão. Entre essas medidas foi destacada uma grande preocupação com as
roupas usadas pelos participantes (eles eram orientados a não usar roupas curtas e
justas), mas também eram feitos comentário sobre marcas corporais identificadas como
comuns entre moradores de áreas periféricas, como cortes e descoloração de cabelo,
especialmente no caso dos meninos. O mesmo era feito em relação ao vocabulário por
eles utilizados: gírias identificadas como de “favelados” eram desestimuladas, com o
argumento de que não seriam aceitas por seus potenciais empregadores (Rocha e
Araújo, 2008: 11-2).

A combinação entre proteção dos jovens e criminalização desses não é, contudo,


um fenômeno recente. Lefebvre (2008) demonstra que datam do final do séc XIX na
França medidas governamentais que expressavam preocupação com “enfants en
danger” ou “moralement abandonnés”, que também eram apresentadas como futuros
delinqüentes e criminosos. Tal discussão teria, segundo o autor, mais proximidade com
as preocupações com as classes perigosas à época do que com questões sobre a proteção
das crianças. O autor mostra como, mesmo após uma guinada na legislação sobre a
infância em direção a preocupações com a solidariedade social, o conceito de prevenção
à delinqüência juvenil sempre fez parte das ações públicas e privadas voltadas para esse
segmento, e que ainda nos dias atuais o sistema de proteção à infância se encontra
dividido entre as figuras do menor abandonado e do delinqüente juvenil. Já Niget
(2008) apresenta como, na primeira metade do séc XX, a preocupação com a criança
abandonada desliza do campo penal para o social, e em seguida para o da profilaxia

125
física e mental (2008: 20). O resultado deste “intrigante casamento” (ou “hibridização”)
entre o campo penal e o social é uma ação pública sobre os jovens ao mesmo tempo
protetora e autoritária (2008: 23-4). No entanto, nos dias atuais as crescentes taxas de
criminalidade, sobretudo juvenil, e a incapacidade dos governos de controlar a violência
vêm colocando novamente a juventude em evidência como alvo das políticas de
manutenção da ordem. Segundo o autor, observamos atualmente o retorno das
demandas por aprisionamento de jovens nos países ocidentais, representando um novo
movimento no pêndulo entre os campos penais e sociais. Ou, como disse o autor, uma
“(re) pénalisation” do campo social (2008:23).

Nesse sentido, o discurso sobre o “risco social” a que estariam expostos os


jovens do Morro do Pereirão pode parecer “fora do lugar” vis-à-vis à construção
daquela favela como “diferente das outras”, mas ele se apresenta como “ajustado” ao
discurso vigente sobre as favelas e sobre como resolver seu “problema” (Machado da
Silva, 2002), como argumento no próximo capítulo e na conclusão. Mas o fato de terem
se tornado ONG, e de incorporarem o discurso do “risco social”, faz pensar sobre a
recolocação da questão da violência urbana em uma localidade onde esse tema é
silenciado pelos moradores, ainda que a maneira como essa colocação é feita esteja
orientada pelos discursos de estigmatização dos moradores de favelas. Na próxima
seção, apresento outra forma pela qual o grupo discute a violência e a relação dos
traficantes de drogas com os territórios favelados: através da experiência de ser “dono”
do morro.

3.4.2 Colocando a violência em evidência, mas como experimentação.

Toda criança quando nova fala: ah, eu quero ser bandido!

(depoimento colhido no coletivo de confiança da pesquisa


“Rompendo o cerceamento da palavra: favelados em busca de
reconhecimento”).

Desde o começo do trabalho de campo chamou minha atenção a temática das


encenações realizadas na “brincadeira” daqueles jovens: â primeira vista, tratava-se de

126
jovens brincando de ser traficantes de drogas, e mais ainda, de “donos” de “favelas”,
controlando um exército de bandidos, “soldados”, e engajados nas questões relativas a
essa carreira: confrontos armados, negociação com policiais, venda de drogas,
organização de eventos como “bailes funk”, etc. Pareceu-me estranho que a encenação
da vida de traficantes de drogas, sem condenação moral de sua atividade, fosse o centro
das atividades de um grupo que se apresentava como um “projeto social”. Além disso, a
brincadeira não me pareceria tão estranha se fossem crianças brincando, o que é fato
corriqueiro nas favelas cariocas há bastante tempo (Cf. Zaluar, 1985), mas o fato de
serem jovens homens brincando “de bandido” me pareceu diferente83. Talvez por causa
dessa primeira impressão criei uma resistência inicial a encarar o grupo como produtor
de uma expressão artística que falava, direta e abertamente, sobre um tema que estava
sempre em suspenso nas conversas estabelecidas com os outros moradores do local: a
existência nos territórios das favelas de quadrilhas de traficantes de drogas e os efeitos
da convivência forçada sobre a rotina e a sociabilidade dos moradores.

Ao iniciar minha pesquisa no Pereirão estava mobilizada pela representação


local – que para mim se apresentava de forma bastante frequente como dúvida – de que
se tratava de uma favela “diferente das outras”. Assim, foi com surpresa que encontrei,
no meio deste território, bandidos armados – ainda que feitos de plástico. Causava-me
estranhamento o fato da brincadeira girar inteiramente em torno da rotina dos traficantes
de drogas não fosse uma questão a ser “justificada” para ninguém: nem para o
presidente da associação de moradores, que primeiro me apresentou ao grupo, nem para
os coordenadores da organização, nem para os jovens. Ao contrário, a temática da
“brincadeira” era inclusive descrita pelos coordenadores e jovens participantes como
uma “representação da verdade”:

Não existem heróis no Morrinho, os meninos representam a realidade da cidade do


Rio de Janeiro, ainda que de uma forma bem violenta. Mas toda brincadeira tem sua
violência (Coordenador da ONG).

83
Adultos brincando não é nada excepcional. Segundo pesquisa divulgada pelo Jornal O Globo, mais de
50% dos adultos americanos jogam videogames, e entre 18 e 29 anos o índice aumentaria para 81%,
segundo pesquisa de Pew Internet & American Life Project. Cf. matéria no site O Globo Online “Mais de
50% dos adultos dos EUA jogam videogames, revela pesquisa”, publicada em 09 de dezembro de 2008.

127
Obs: Ver boneco armado à esquerda, tomando conta do prédio da “prefeitura”. Foto da autora

Para os jovens a opção pelo tema da vida dos traficantes de drogas aparece como
evidente, como me disse várias vezes Cabeção: “Retratamos a vida das favelas como ela
é”. Em uma das minhas visitas ao grupo perguntei a ele se era possível uma “favela” na
maquete não ter “dono”, tentando fazer um paralelo com a experiência do Pereirão, uma
favela “sem tráfico”. Para a minha surpresa, a resposta foi: “Claro que não, não existe
favela sem ‘dono’!”. Quando mencionei o Pereirão, como exemplo de “favela sem
dono”, ele modificou os termos da conversa, passando de uma discussão mais geral
sobre as favelas do Rio de Janeiro para o nível particular da maquete, dizendo que eles
tinham feito uma vez a reprodução do Pereirão na maquete, mas que por falta de
cuidado do seu ‘dono’ ela tinha sido destruída pela chuva e em seu lugar foi construída
outra favela. Em outro momento fiz referência aos lemas escritos em placas e colocadas
ao longo da maquete, que em sua grande maioria fazem referência ao imaginário sobre
os traficantes de drogas: falam sobre traição e inimigos, sobre informantes da polícia,
sobre guerra e confrontos:

Quem nunca errou que atire a primeira pedra, ou dê o primeiro tiro.

Vivo fui traído, preso esculachado, morto deixarei saudades.

Todos aqueles que me invejam um dia terão o castigo que merecem.

128
Dizem que eu não rezo pela alma dos meus inimigos. Mentira. Rezo para que elas
queimem no inferno.

Novamente, quando perguntei sobre as frases, de onde elas vinham, me disseram


que ouviam dos amigos e, quando gostavam, colocavam nas placas. Além das
referências nas placas, e dos bonequinhos armados, as encenações também fazem
referência direta aos traficantes. No canal de vídeos do grupo, entre quase noventa
vídeos diferentes, oito são vídeos com encenações e quatro apresentam histórias
“estreladas” por traficantes, como apresentado a seguir:

Putaria, Marcola e Bill: dois traficantes, Marcola e Bill, vão a um bordel e são
enganados pelas prostitutas, que aplicam o golpe conhecido como “Boa noite,
Cinderela”, onde a vítima consome uma bebida com um forte calmante e dorme,
permitindo que o criminoso a roube sem resistência. O vídeo termina com as
prostituas passeando pela maquete no carro dos traficantes.

Cena do Ratatá: “Sargento Trincado” e “Cabo Neurose” ligam pelo rádio para os
traficantes do Morro do Ratatá, cobrando o pagamento da propina realizado
semanalmente. Os traficantes argumentam que já pagaram o “arrego” a outro
policial que se apresentou como amigo do Sargento, e os dois entram em conflito.
Começa a troca de tiros entre os traficantes e os policiais, que pedem reforço ao
Batalhão onde estão alocados. Mas quando o reforço chega são os policiais que têm
uma surpresa, pois foi o coronel responsável pelo Batalhão que tinha recebido a
propina que lhes era devida. Ao final os dois policiais são punidos pelo coronel.

O destino insólito de Alex: filmado quase em câmera lenta, com apuro cênico e
música de filme de ação, o vídeo mostra o acidente de carro que causou a morte do
traficante Alex, e como a polícia comemorou ao identificar quem era a vítima do
acidente.

Lágrima e revolta pelo irmão Alex: continuação do vídeo anterior, mostra a família
do traficante e os moradores da localidade onde ele “atuava” (a favela do
Fogueteiro) iniciando uma manifestação para denunciar que a morte de Alex não foi
um acidente, e sim um homicídio perpetrado pelos policiais. Os moradores gritam:
“Mataram o Alex! Covardes! Justiça! Justiça!” O vídeo acompanha o Coronel
Araújo, que dá uma entrevista a uma rede de TV afirmando que Alex fazia, no
momento do acidente, o transporte de armas e drogas entre favelas, e que foram
encontrados junto ao corpo quatro quilos de cocaína. Em seguida, a polícia ameaça
os manifestantes que começam a descer o morro: “Quer protestar? Daqui para lá!
Porque se ultrapassar... a porrada vai comer!”. O vídeo termina com a família de
Alex chorando.

129
O primeiro vídeo é uma anedota sobre a vida dos bandidos, fazendo referência a
ambientes e figuras marginais, como bordéis e prostitutas. Ainda que seja protagonizado
por bandidos (um deles com o mesmo apelido de um criminoso famoso, líder da facção
que controla diversos presídios brasileiros, o Primeiro Comando da Capital, e
atualmente preso: Marcos Camacho), nesse vídeo os bandidos são vítimas, enganados
pelas prostitutas. Em outro vídeo – do qual assisti apenas os ensaios, mas que ainda não
está disponibilizado na Internet – os bandidos também são ridicularizados, passando por
situações humilhantes. No entanto, nesse vídeo a figura do “chefe do morro” aparece
como positiva, pois ele é o árbitro que castiga os bandidos que tinham desviado uma
carga de drogas e colocado a culpa em um artista da favela. O segundo vídeo descrito
acima tem o aspecto de denúncia, ainda que em tom de comédia, da relação de
promiscuidade e corrupção entre bandidos e policiais. Aqui não existem heróis e vilões,
todos estão envolvidos na dinâmica do comércio ilegal de drogas. A crítica à polícia
permanece nos dois vídeos seguintes, onde os policiais comemoram a morte de um
traficante e impedem a sua família de protestar. No entanto, ainda que pareça ser uma
obra em construção (provavelmente com outros capítulos, mas que não foram
encontrados on-line), a figura do “traficante” Alex não é condenada nem absolvida. Não
sabemos se realmente ele carregava drogas, ou em que medida se justifica a denúncia da
família de que ele foi assassinado pela polícia, especialmente porque não sabemos o que
se passou antes da cena do acidente com o carro. A “novela de Alex” apresenta apenas
um pequeno fragmento da história, um recorte que mostra uma cena da vida de seus
personagens.

Ainda que por ângulos diferentes, com personagens diferentes, os traficantes de


drogas são o tema dos vídeos acima descritos. Observa-se, no entanto, a abordagem de
outros temas, particularmente em encenações que se destinam a um público maior –
como os vídeos encomendados pelo canal de TV estrangeiro. Nesses, a temática ainda é
vida na favela, mas sem fazer referência aos traficantes de drogas. Um deles – “O Saci
no Morrinho” – aborda as dificuldades de um menino com o assédio violento de um
vizinho, da mesma idade, e como ele conseguiu reverter tal situação com a ajuda do
Saci-Pererê84. Outro aborda a relação entre vizinhos, e o que acontece quando um
morador decide construir uma piscina em seu quintal e cobrar dos vizinhos que queriam

84
Este vídeo recebeu o prêmio de Melhor Filme na Mostra Competitiva do Festival ‘Visões Periféricas’,
realizado em 2007.

130
usufruir dela. O terceiro filme é “Acadêmicos do Morrinho”, que dramatiza as dúvidas e
angústias de um cantor de funk (MC), convidado para cantar o samba da escola da sua
“comunidade”. Esse filme, especificamente, é bastante significativo de uma outra
abordagem adotada nos filmes, pois tem uma “lição moral” a ser ensinada: que devemos
enfrentar nossos medos, acreditar em nós mesmos, perseguir nossos sonhos, etc. Por
fim, o filme “A revolta dos bonecos” traz a indignação dos bonecos Lego que são
deixados na maquete original, quando os jovens partem para se apresentar em uma
exposição internacional. Trava-se entre bonecos e jovens uma discussão sobre quem são
os verdadeiros “artistas”, as figuras ou quem as manipula, em um interessante exercício
de meta-linguagem85.

Existe, assim, uma variedade de temas abordados na produção audiovisual do


grupo, que pode ter paralelos com sua ‘profissionalização’: ao lado das encenações que
reproduzem as brincadeiras, cujos personagens são os “traficantes”, encontram-se outras
onde aparecem outros personagens e há, até, uma ‘lição de moral’. No entanto, a
temática do tráfico de drogas não desaparece; por exemplo, para a última apresentação
do grupo eles ensaiavam uma continuação da história “Putaria, Marcola e Bill”, que
seria apresentada em parte através de um vídeo e depois seria encenada ao vivo – como
eles já tinham feito em outros eventos. Vale ainda ressaltar que os outros vídeos
encontrados no canal da internet apresentam depoimentos dos jovens feitos por eles
mesmos ou pelos coordenadores, cenas de viagens, dos bastidores da construção das
instalações e seqüências de fotos feitas por eles mesmos, e editadas em formato de
apresentação com direito à trilha sonora.

Parece-me, portanto, que existe uma preocupação em adaptar o enredo de cada


produto de acordo com o público que irá consumi-lo, mas é possível pensar também em
um processo de amadurecimento do grupo, em face de uma maior exposição a outros
ambientes e situações – como o contato com o mundo das artes, as viagens, as diversas
reportagens feitas, etc. – e ao próprio amadurecimento dos jovens: do grupo original,
dois serão pais em pouco tempo, e um segue carreira no serviço militar, limitando sua
participação nas atividades. A dimensão da ‘brincadeira de ser bandido’ ainda
permanece em parte, mas incorpora atualmente outras referências.

85
Novamente o filme foi apresentado no Festival ‘Visões Periféricas’.

131
A reprodução, enquanto ‘brincadeira’, do cotidiano de traficantes de drogas do
Rio de Janeiro remete aos conceitos de ‘play’ e ‘game’, como proposto por Mead
(1967). Para ele, o self individual é desenvolvido ao longo da infância, através de
interações sociais como a brincadeira e o jogo (play e game) que permitem o contato da
criança com o mundo social. Para ele, o processo começa com o play, quando a criança
assume o papel de personagens do mundo “adulto”: bandido e policial, médico e
paciente, mamãe e filhinho, etc. e experimenta as diferentes posições. Em um segundo
momento, a criança participa de games, onde deve respeitar as regras e lidar com as
expectativas dos outros participantes, entrando em contato com um “outro
generalizado”, o conjunto de normas e expectativas presentes na vida social. Oliveira
(2008) faz excelente uso das categorias de Mead, ao analisar a relação de jovens com a
carreira criminosa, mostrando como o tráfico de drogas pode fornecer a eles imagens e
símbolos que assumem papel fundamental na construção da identidade nessa faixa
etária, o que explicaria o fascínio que os traficantes exercem sobre muitos jovens,
mesmo aqueles que não aderem ao crime (Oliveira, 2008: 277-279). Nesse sentido,
através de uma ‘brincadeira’, que se organiza enquanto ‘jogo’ (em função das regras
criadas), os participantes experimentavam a vivência de uma carreira criminosa,
atividade que observavam em seu cotidiano, ao mesmo tempo em que participavam do
processo de socialização (o mundo social ao qual as crianças são apresentadas através
de jogos e brincadeiras). No entanto, no caso analisado a brincadeira e o jogo
ultrapassariam a fase da infância.

Pensar que se trata de uma “experimentação” da vida criminosa pode, por um


lado, diminuir a importância da encenação e dos diferentes enfoques abordados dentro
dessa temática (como visto nos vídeos descritos). Porém, a forma como os bandidos e
sua atividade são representados pelos jovens foi percebido por mim como um
encantamento com o mundo da criminalidade, em alguns momentos do trabalho de
campo. Por exemplo, ao assistir ao ensaio para essa última apresentação, por exemplo,
presenciei com a conversa de três meninos pertencentes à ‘Nova Geração’ do projeto:
eles falavam sobre armas, e sobre quais queriam comprar para seus bonequinhos – as
armas são negociadas entre os jovens, que criaram um sistema monetário para regular
essas trocas, bem como as outras operações financeiras necessárias: “arregos”, resgates,
etc. – e faziam referências a armas reais (as armas de plástico teriam no contexto da
encenação as mesmas características, em termos de força e alcance, que as armas de

132
verdade). Compreendo que falar sobre armas faz parte do cotidiano de jovens homens
moradores de favelas, porque essas estão presentes nessa vida cotidiana. Mas falar de
armas reais em uma favela “diferente das outras” me pareceu novamente “fora de
lugar”, e me fez questionar se a temática do tráfico de drogas era uma escolha artística
ou uma forma de viver como jogo a experiência da vida criminosa, não mais como
vítima – o que é comum na experiência dos moradores de favela – e sim como
protagonista.

Outra “pista” que levaria à noção da encenação como “experimentação” da vida


criminosa seria a ausência de meninas no grupo. Ainda que meninas participem da
dublagem de algumas encenações, o grupo é composto unicamente por rapazes. Tal fato
pode dever-se à natureza da atividade realizada – sabe-se que jogos de encenação como
os Role Play Game86 atraem mais os meninos que as meninas, mas ainda assim não se
trata de um universo totalmente masculino. Mas pode também estar relacionada ao fato
de que a brincadeira de ‘bandido’ atraia mais os meninos que as meninas em geral, pois
seria parte importante da experiência nesse tipo de vida o prazer obtido com o risco e
com o desafio, elementos componentes de uma masculinidade “guerreira” (Cf. Soares,
2000; Zaluar, 2004; Cecchetto, 2004). Essas análises se apóiam na evidente
predominância masculina na vida criminosa87.

Contudo, “brincar de bandido” não é exclusividade desse grupo. Como mostra


Zaluar (1985), relatando sua experiência na Cidade de Deus no começo dos anos 1980:

De fato, vi também as brincadeiras infantis em 1980: de revolver de pau na mão,


dividiam áreas, defendiam o território contra os inimigos, trocavam tiros, cobravam
pedágio dos passantes. Quando um fazia o papel da polícia não vinha impor a lei:
matava os bandidos, pedia dinheiro, morria (Zaluar, 1985: 155).

86
Role Play Games são jogos onde os participantes interpretam personagens, e criam em conjunto o
enredo da história a ser experimentada. A menção às semelhanças entre as performances realizadas pelo
grupo e esse jogo, criado nos Estados Unidos e trazido para o Brasil nos anos 1980, foi feita pelos
próprios participantes do Morrinho.
87
Pesquisas demonstram que as mulheres respondem por menos de 5% da população carcerária no país.
Cf. Souza, 2006. A autora registra um aumento das mulheres presas por tráfico de drogas (54,6% contra
20,8% em 1976, como levantado por pesquisa feita por Lemgruber à época), mas segundo entrevistas
feitas com presas do Tavalera Bruce, no Rio de Janeiro, sua inserção nas quadrilhas era subalterna,
atuando mais no transporte de drogas entre favelas (mula) do que no planejamento das atividades
criminosas (Cf, Souza: 2006: 15).

133
No entanto, a autora menciona a brincadeira de “ser bandido” ao analisar as
explicações dos moradores (as “teorias nativas”) para a entrada de jovens na vida do
crime, e como esses entendiam que a proximidade com os bandidos, e o fato de
reproduzir o comportamento desses nas brincadeiras, incentivaria a adesão ao crime.
Em seguida, Zaluar afirma que as crianças da localidade se tornaram alvo da atenção de
moradores organizados e de lideranças locais, que criaram atividades como capoeira e
futebol infantil, buscando “orientar o menor” e “ocupá-lo em suas horas ociosas com o
lazer saudável” (2002 [1985]: 155). No caso do Morrinho, ainda que em alguns
momentos a “brincadeira” tenha sido vista e rejeitada por alguns moradores88, não é
essa a imagem que outros moradores, críticos de arte, jornalistas, artistas,
pesquisadores, etc. fazem do grupo.

Compreender que a falta de “condenação moral” sobre a atividade do tráfico de


drogas – a ausência de uma condenação moral ou mesmo de uma discussão interna
sobre a natureza da opressão dos traficantes sobre os moradores de favela – não
significa uma adesão dos jovens ao que o tráfico de drogas representa hoje na cidade só
foi possível durante o processo de redação da tese. Em primeiro lugar, tive que entender
e valorizar que eles falavam sobre violência em um local onde isso é tabu (Cf. Capítulo
2 desta tese), o que por si só indica uma quebra (ainda que pequena) no silenciamento
sobre a criminalidade que incide sobre o local e sobre outras favelas cariocas (Machado
da Silva, 2008c). Vale ressaltar, porém, que existe uma diferença fundamental entre
esses jovens e o resto dos moradores do Pereirão, que silenciam sobre a violência e o
tráfico de drogas como forma de proteção e de “limpeza moral”, evitando acusações de
conivência ou cumplicidade; os jovens possuem sua inserção em um “projeto social”
como instrumento para sua “limpeza moral”. Em segundo lugar, tive que atentar para a
possibilidade de que nós (em geral, e moradores de favela em particular) sejamos
ambivalentes em relação à criminalidade, como afirma Peralva (2000). Para a autora:

Hoje, diante do crime, a ambivalência reina. A ambivalência não é um mal em si


mesma. É um atributo da condição moderna. (...) A ambivalência esteve
efetivamente no âmago da dinâmica igualitária que preparou no Brasil as condições
do ingresso na democracia (2000: 182-3).

88
Além do episódio em que policiais militares no morro obrigaram os meninos a destruir a maquete, os
participantes disseram que no começo os moradores da favela que criticavam a brincadeira diziam que
eles estavam “treinando para ser bandido”.

134
A ambivalência em relação ao crime, portanto, seria parte constitutiva do caráter
democrático e ao mesmo tempo desigual da sociedade brasileira, reflexo de condutas
que se tornam, a cada dia, menos definidas por adesão a valores e, portanto, mais
reflexivas e ambivalentes. Para a autora, a ambivalência explica a forma como alguns
intelectuais veem o crime, ou certas modalidades criminosas, assim como a forma como
moradores de favela convivem com os criminosos:

E se, em sua maioria, os favelados disso não tiram nenhum proveito [do comércio de
drogas que se realiza em suas localidades de moradia], todos são capazes de
entender por que alguns de seus filhos entram “nessa vida”. Diante de uma violência
policial desmedida, como pedir-lhes que se oponham, como no passado, ao
banditismo? Prevalecem também para eles as estratégias de sobrevivência (2000:
184).

Ainda que a hipótese de uma ambivalência frente ao crime possa explicar a


ausência de julgamentos morais sobre o conteúdo da performance dos jovens, é
necessário ressaltar sua diferença em relação à categoria de ambigüidade, que muitas
vezes é acionada para explicar a densa e complexa relação dos moradores de favela com
os traficantes de drogas. Ambigüidade pressupõe que os moradores não condenam a
atividade dos traficantes de drogas, e que utilizariam os recursos oferecidos pelos
traficantes, sejam eles financeiros ou materiais (como a força). Não afirmo que os
jovens do Morrinho – nem os outros moradores do Pereirão – sejam ambíguos frente às
quadrilhas de traficantes de drogas; escolho operar com a hipótese levantada por Leite
(2008), que entende a violência como um dado empírico incorporado à sociabilidade
dos moradores de favela, e que é levado em conta nos cálculos da vida cotidiana (2008:
120). Trata-se, portanto, de se movimentar na realidade que se apresenta, e evitar ações
ou reações que possam atrair para si os riscos e perigos decorrentes dos encontros entre
traficantes de drogas e moradores. Os efeitos da existência dos traficantes não é foco de
reflexão ou de rejeição, mas como é dito e repetido pelos participantes do Morrinho um
dado da “vida como ela é”.

135
3.5. O Morrinho e o “silenciamento da palavra”.

Nos dois capítulos antecedentes discuti como os moradores da favela do


Pereirão, e os representantes de sua associação de moradores, vivenciam a situação
específica local de uma presença intersticial e subterrânea no território de traficantes de
drogas. Considerei que a compreensão “nativa” sobre o tráfico de drogas ali localizado é
profundamente orientada pela procura dos moradores em se diferenciar da maior parte
dos favelados cariocas, vistos como cúmplices ou como vítimas impotentes de um
“estado paralelo” – imagens que povoam a representação social. Analisei como essa
compreensão “nativa” incide sobre a falta de iniciativa por parte da organização local,
pois ainda que discursivamente os agentes locais do tráfico de drogas sejam descartados
como impedimento para a ação coletiva, o receio de represálias por parte deles cerceia o
campo de ação dos representantes. Em outras palavras, afirmei que os moradores do
Pereirão estão submetidos a um dispositivo opressor no qual a submissão se reforça pela
negação de sua existência: para se apresentarem como “livres” do domínio do tráfico
silenciam sobre os riscos que se apresentam, inclusive a possibilidade de retorno de
bocas de fumo à localidade.

Após analisar os dados da pesquisa de campo feita sobre a TV Morrinho,


acrescento uma nova camada de formulações “nativas” sobre a forma de vida
representada pelos traficantes: a violência através da qual eles agem está presente no
cotidiano dos moradores, ainda que como representação, performance ou “brincadeira”.
Está presente também como recurso a ser acionado para o melhor “ajustamento” à
linguagem das ONGs e dos financiadores de iniciativas sociais nas favelas, visando
acesso a uma fonte de recursos que é acionada por outras localidades. No entanto, ainda
que representações e discursos sobre o tráfico de drogas estejam presentes no conteúdo
das ações desenvolvidas pelo grupo, o silenciamento também cerceia a palavra deles, no
que diz respeito a elaborar versões e compreensões sobre a vida cotidiana que levam, e
sobre as possibilidades, limites e riscos representados pela situação de “tranquilidade” e
“paz do local”. Ainda que seja foco das performances, e objetivo da ONG, a violência é
tratada de forma abstrata, generalizada, ou sem referência à situação local, localizada e

136
restrita à maquete e à representação que nela acontece. Nesse sentido, essa
representação assemelha-se a de filmes recentes, como Cidade de Deus e Tropa de
Elite, onde não são produzidas reflexões sobre situações complexas de violência, e sim
um “espelho” que apenas constata “um estado de coisas”, como afirmou Bentes (2003:
231).

Vale ressaltar ainda que, como dito acima, o fato de se reunirem em torno de
uma ONG oferece aos jovens do Morrinho uma proteção contra possíveis condenações
morais, que recaem sobre a maior parte dos outros moradores de favelas. Assim,
possuem um campo maior de ação, inclusive nos espaços fora da favela – como o
espaço público, a mídia, os governos, etc. – por conta dessa proteção que “vestem”,
dessa armadura de “projeto social”. O formato de ONG dá ao grupo um status que,
ainda que parcialmente, permite sua circulação social e o reconhecimento de sua
atividade. “Ser” ONG é diferente de “ser” associação de moradores, ou “ser” um
favelado. Essas diferentes formas de “ser” dos moradores de favela, e sobre como elas
se “ajustam” às formulações atuais sobre o “problema da favela”, as novas formas de
atuação pública e um “novo espírito do capitalismo” (Boltanski e Chiapello, 1999) são o
objeto da reflexão apresentada a seguir.

137
IV. Associação de moradores e organizações não-governamentais:
rupturas e continuidades.

Mosaico localizado na escadaria do Selarón, em Santa Teresa/Rio de Janeiro 89.


Foto da autora.

A partir da pesquisa de campo realizada no Morro do Pereirão, as proximidades


e as distâncias entre a associação de moradores e a ONG local ficaram bem
evidenciadas, visíveis a quem chegava à favela: localizadas em prédios vizinhos, a sede
da associação encontrava-se a maior parte do tempo fechada, enquanto a sede da ONG
quase sempre comportava mais gente que o adequado, em reuniões, trabalhando ou
apenas servindo de ponto de encontro para alguns dos jovens participantes. Ainda que
pareçam tão diferentes, no entanto, associações de moradores e organizações não-

89
Texto do Mosaico: “Viver na favela é uma arte. Ninguém rouba, ninguém escuta, nada se perde. Manda
quem pode; obedece quem tem juízo”.

138
governamentais compartilham de uma mesma ascendência: ambas são organizações da
sociedade civil e compartilham valores e metodologias inauguradas a partir do
fenômeno nomeado “movimentos sociais urbanos”. Porém, para além dessas
proximidades, tais atores encontram respostas diferentes no espaço público para as
ações que realizam no mesmo território. Tais semelhanças e diferenças estabelecem-se a
partir de seus lugares dentro de uma reflexão maior sobre os “novos movimentos
sociais”, mas também dentro da discussão mais recente sobre o papel do estado
enquanto agente executor de políticas públicas, especialmente aquelas voltadas para a
questão social.

4.1. Da profissionalização da militância a representantes dos favelados:


movimentos sociais e ONGs.

Os “novos movimentos sociais” são assim denominados por apresentarem uma


oposição aos “antigos” movimentos sociais, especificamente os movimentos sindical e
político-partidário, característicos da maior parte do século XX. Nos últimos quarenta
anos, no entanto, esses movimentos perdem sua força aglutinadora das classes populares
e seu capital representativo, em função das transformações recentes no capitalismo.
Com o aumento da precarização nas relações de trabalho e do desemprego estrutural, o
trabalho perde centralidade na vida e na política feita por essas classes, assim como
perde sua capacidade de explicar e organizar a vida social – ainda que para a teoria
social permaneça o desafio de explicar o por quê e o como desse processo, como
adverte Offe (1989). Assim, o movimento dos trabalhadores – que era até então o
grande espaço de reivindicação popular – dá espaço à “novos movimentos sociais”, que
passam a ocupar o espaço público com reivindicações diferentes. Esses “novos
movimentos” representariam outras identidades que não a de trabalhador, como a de
gênero e étnica, e outros valores, como o pacifismo e a consciência ecológica90. A
categoria “movimentos sociais urbanos” também nomeia o mesmo conjunto de
organizações de ação direta e reivindicação coletiva, porém valorizando mais o atributo

90
Mas a transição dos “velhos” para os “novos” movimentos sociais não é tão linear quanto parece; por
exemplo, o movimento feminista está presente nos países centrais desde o final do séc. XIX, e no Brasil
esse se consolida nos anos 1930.

139
“urbano” que a idéia de “novo”. O termo “movimentos sociais urbanos” destaca a
adesão das classes populares recém-chegadas nos grandes centros urbanos e organizadas
em torno das questões da cidade, como habitação, saúde, transporte, escolas e creches,
etc., em um movimento diretamente relacionado às profundas transformações
estruturais pelas quais o país passou a partir da segunda metade do séc XX,
particularmente a partir dos anos 1970 (Boschi, 1987: 41). Talvez em função dessa
característica, mais popular e relacionada às reivindicações por melhores condições de
vida, o termo mais comumente empregado na literatura brasileira seja “movimentos
sociais urbanos”.

No caso dos países da América Latina, o surgimento em cena desses novos


atores sociais é concomitante com a luta política pelo fim das ditaduras durante a
segunda metade do século passado. Os autores que analisam tais movimentos sociais no
Brasil identificam nesse período de redemocratização o crescimento no número de
associações de moradores (tanto de favelas quanto de "bairros") e de associações
profissionais de base na classe média, o que representaria uma novidade por colocar no
espaço público novos atores sociais (Boschi, 1987). Avritzer (1997) afirma que o
processo de democratização da sociedade brasileira implicou em mudanças nas práticas
sociais, isso é, na forma como os atores sociais colocam-se no espaço público, e que
uma dessas mudanças seria a pluralização de interesses e de objetivos dos movimentos,
onde a incorporação ao Estado deixaria de ser a principal reivindicação, dando lugar a
uma preocupação com o aprofundamento da democracia. O autor destaca como
características desse ‘novo associativismo’: a) o deslocamento da questão ocupacional
para a territorial, diminuindo a centralidade do movimento sindical entre as associações
coletivas; b) o crescimento de associações de auto-ajuda, como reflexo da diminuição
da política social por parte do Estado (mutirões, cozinhas coletivas, etc); c) a entrada da
classe média nos movimentos sociais, que deixam de ser exclusivamente populares; e d)
o surgimento de associações temáticas, em defesa de questões mais amplas como o
meio ambiente, direitos humanos, entre outros.

Uma característica que dá unidade à diversidade temática dos “movimentos


sociais urbanos” é a rejeição à institucionalização, vista como impedimento para o
acesso democrático às esferas políticas, e o afastamento das estruturas estatais,
responsabilizadas por “cooptar” sindicatos e partidos. Para Machado da Silva e Ribeiro
(1985) a identificação desses movimentos sociais como “expressões populares,

140
alternativas, independentes e espontâneas (tanto no sentido de não-institucionais quanto
de não dirigidas desde fora)” é uma definição em “contraste” aos outros movimentos
populares – e representa o núcleo central do paradigma teórico a respeito dessas
manifestações coletivas (1985: 324). Sua forma de inserção no processo político,
tomando o estado como interlocutor privilegiado e se apresentando como ator cujas
ações podem ter impacto transformador, é considerada um pressuposto analítico nas
pesquisas avaliadas pelos autores (1985: 325 e seguintes). A partir da crítica formulada
por Machado da Silva e Ribeiro (1985), bem como do trabalho de Ruth Cardoso (1983,
1987), percebe-se que desde os anos 1980 a perspectiva utilizada na abordagem desses
“movimentos sociais urbanos” primava por evidenciar suas diferenças em relação aos
movimentos anteriores, e sua nova forma de articulação com o estado. No entanto, os
autores mencionados, assim como análises feitas posteriormente, buscaram ressaltar as
continuidades e as tensões existentes dentro desses coletivos.

Em relação à base social desses movimentos, Doimo (1995) afirma que no


Brasil:

(...) a grande base social dos novos conflitos sociais é formada por segmentos de
baixa renda e os temas desses conflitos passam, sobretudo, pela sobrevivência
imediata, como saúde pública, moradia, transporte coletivo urbano, saneamento
básico, segurança pública, proteção aos ‘menores abandonados’, entre outros
(Doimo, 1995: 61).

Ou seja, as populações engajadas estão à margem do Estado, do mercado e da


cultura, e assim em situação de carência frente a todas essas dimensões. Assim, os
antagonistas e aliados são muitos e oscilam entre essas duas posições de acordo com a
demanda em questão. Por exemplo, o Estado ora é cobrado, por não permitir a
participação dos pobres, e ora é legitimado porque se espera dele prover as necessidades
dos pobres. Boschi afirma que a oposição dos movimentos à penetração do Estado nas
organizações de base é acompanhada da demanda desses mesmos atores por maior
intervenção estatal em áreas que ainda não eram reguladas como, por exemplo, a
questão da violência coletiva (1987: 30). Porém, ainda que os movimentos que mais
demandavam atuação estatal fossem aqueles ligados a populações com menos recursos,
também movimentos de classe média demandavam a regulação do estado,

141
especialmente aqueles que visam direitos, como o feminista ou o negro. No caso
específico dos movimentos por direitos, o autor adverte que a especificidade da
constituição do Estado Brasileiro diferencia os nossos movimentos daqueles
encontrados nos países centrais, “onde, por contraste, os direitos de cidadania foram
conquistados” (Boschi, 1987: 30).

Tal relação de afastamento e aproximação com o Estado, de acordo com o que


está em jogo a cada situação, seria uma das características mais centrais para a definição
dos movimentos sociais urbanos no Brasil: é nela que repousa o binômio “autonomia X
institucionalização”, um debate clássico dentro dos movimentos e também nos estudos
sobre eles. Segundo as categorias em que se travou o debate, quanto maior a
aproximação das estruturas estatais maior a necessidade de formalização, de
mecanismos institucionais; ao mesmo tempo, menor a possibilidade de participação
direta, de democracia interna e de autonomia para os militantes frente à estrutura do
movimento. Ainda que autonomia e institucionalização fossem critérios usados para
classificar e avaliar os diferentes movimentos (na maioria das vezes como categorias de
acusação e como termos em disputa: críticas sobre a falta de autonomia, acusações de
cooptação, etc.) alguns autores defendem que as duas dinâmicas estariam presentes
nesses movimentos. Tal dualidade foi identificada por Boschi que, ao comentar sobre
como os movimentos precisavam de mecanismos institucionais para assegurar a eficácia
na representação de seus interesses, ainda que buscassem um “meio termo” entre
autonomia e institucionalização, definiu a questão como um “dilema bem antigo”
(Boschi, 1987: 14). Já Doimo (1995) considera que os movimentos populares possuem
duas faces, que ao mesmo tempo são inversas e complementares: a face ‘expressivo-
disruptiva’ e a face ‘integrativo-corporativa’. A primeira face diz respeito à
manifestação, por parte dos movimentos, de “(...) valores morais ou apelos ético-
políticos tendentes a deslegitimar a autoridade pública e a estabelecer fronteiras
intergrupos (...)”, enquanto no segundo caso o objetivo é “conquistar maiores níveis de
integração social pelo acesso a bens e serviços, não sem disputas intergrupos e a
interpelação direta aos oponentes” (1995: 69). Para a autora, é do conflito entre essas
duas faces que surgem as ambivalências que caracterizam os movimentos populares, e
também uma das causas para a crise que esses movimentos passam a enfrentar na última
década do séc. XX. A construção analítica de Doimo é particularmente importante para
o argumento aqui apresentado, porque é a partir da disputa entre essas duas faces, e a

142
progressiva vitória do componente integrativo dos movimentos, que as organizações
não-governamentais assumem o papel que desempenham hoje, de executoras de ações
públicas em “parceria” com o estado, como veremos a seguir.

A mudança observada nos movimentos populares no final do século passado


estaria, para Doimo, relacionada a essa ambivalência estrutural, referente à forma de
lidar com o binômio ‘autonomia-institucionalização’, bem como às condições
conjunturais do campo popular. Para a autora (1995), o equilíbrio que existia entre esses
aspectos contraditórios teve que se alterar em função das modificações conjunturais da
época: a) a Igreja Católica repensou sua atuação e interiorizou-se, e nesse processo o
modelo de trabalho de base passou a sofrer muitas críticas internas; b) as ONGs, que
atuavam como redes de apoio aos movimentos, passaram a atuar em ações “mais
propositivas em termos das políticas públicas” e menos na assessoria de movimentos, e
incorporaram critérios de eficácia e produtividade, passando a atuar em questões como
democratização, diversidade cultural e direitos de cidadania; c) os intelectuais passaram
a privilegiar o estudo da transição democrática e da ‘engenharia institucional’,
abandonando um sentimento de ‘otimismo teórico’ que tinham em relação aos
movimentos populares; d) a esquerda engajada no campo popular começou a buscar no
sistema partidário formas de intervir na gestão da coisa pública, ao invés de investir na
“grande transformação social”.

A principal mudança, no entanto, seria a nova postura adotada por esses


movimentos dentro das relações sociedade-Estado, dado que os movimentos passaram a
dedicar-se menos à oposição ao Estado, optando por uma postura ‘ativo-propositivas’
que busca a integração social e que tem como apelo a cidadania (Doimo, 1995: 213). É
nesse contexto que as ONGs passam a ocupar um local privilegiado dentro do espectro
dos movimentos sociais, como uma forma transmutada dessas organizações em um ator
que age “em parceria” com empresas privadas e com o Estado. Doimo demonstra,
contudo, que para essa transmutação acontecer não foi preciso uma transformação
radical dos princípios e fundamentos do campo popular, visto que já existia nele o
componente “integrativo-corporativista”. Sua análise mostra como os movimentos
sociais, ao longo das décadas de 70 e 80, oscilaram entre os pólos da ruptura e da
integração, ou da autonomia e da institucionalização. E que por fim, dada as
circunstâncias mencionadas acima, voltaram-se para o lado da integração e da
institucionalização.

143
Outro trabalho importante para compreender a passagem que alguns
movimentos fizeram em direção ao formato de ONGs é o de Leilah Landim (1993), já
mencionado no capítulo III desta tese (Cf. pp. 107). Para a autora, o espectro de
organizações que prestavam “assessoria” aos movimentos populares, e que recebiam em
sua maioria financiamento de instituições estrangeiras, entraram nos anos 1990 tendo
que se adaptar as demandas do novo mercado de financiamentos, modificado pela
participação de agências multilaterais e governos interessados em mitigar o problema da
fome e da pobreza. Nesse contexto, “projetos materiais”, de atuação direta com a
população-alvo, se tornaram mais prioritários que “projetos imateriais”, i.e., política
educativa, formação de lideranças, etc. (Landim, 1993: 368). As organizações de
assessoria melhoraram sua infra-estrutura para poder alcançar as metas e os resultados
planejados, e critérios como eficácia passaram a participar da avaliação do trabalho
realizado. Nesse sentido, Landim define essa profissão com contornos de militância de
“associativismo de resultado”. Mas os próprios movimentos, em seu processo de
modificação interna, exigiram dessas organizações uma adaptação, pois o processo de
democratização permitiu que os movimentos se consolidassem dentro do espaço
público, diminuindo assim a importância que os centros de assessoria tinham na
mediação deles com outros atores sociais. Além disso, aumentaram as disputas políticas
internas aos movimentos, e as próprias estratégias de atuação começaram a serem
repensadas. Dessa forma, as transformações nos movimentos reforçaram a necessidade
dos envolvidos na ‘assessoria a movimentos populares’ adaptarem-se a uma nova
situação, esvaziando a atividade de assessoria e passando a assumir o papel de atores
sociais, discutindo a questão do desenvolvimento e da luta contra a pobreza no contexto
dos anos 1990 (Landim, 1993: 350).

Atualmente, a ação de movimentos sociais através de ONGs é uma realidade.


Além disso, alguns novos atores da sociedade civil já nascem como ONGs, sem precisar
fazer a trajetória de movimento à organização. Teixeira (2002) demonstra que a
participação popular na definição de políticas públicas se dá, também, através de ONGs;
no entanto, chama a atenção para a perda deste papel quando a relação entre ONGs e
agências governamentais se dá como uma “troca mercantil”, e não como uma partilha
de responsabilidades entre os atores (2002: 111). Segundo a autora, as ONGs podem
estabelecer diferentes dinâmicas de relação com o Estado, que são denominadas
“encontros”: o “encontro pressão”, onde a ONG pressiona, monitora e critica uma

144
política estatal, e onde não existem contratos formais estabelecidos entre governo e
organizações; o “encontro prestação de serviços”, onde as relações entre ONGs e
governo são extremamente burocratizadas e distanciadas, e a ONG não participa da
elaboração de políticas, sendo chamada apenas para executá-las; e o “encontro
participativo”, onde ONGs e governos partilham as responsabilidades sobre a
formulação e execução das políticas públicas (2002: 111-2).

Para Teixeira (2002) essas interfaces entre ONGs e Estado são “encontros”
porque um mesmo governo pode estabelecer diferentes dinâmicas com as organizações,
dependendo da política em questão, do tema, da importância dada ao assunto, etc., e
vice-e-versa. Assim, esses três tipos de encontros definidos não esgotam as
possibilidades de relação entre ONGs e Estado, e nem determinam o perfil das
organizações por ela pesquisadas. No entanto, a autora deixa claro que, em “encontros”
onde as relações entre ONGs e agências governamentais são hierarquizadas e não há
partilha das responsabilidades entre os atores, não há uma efetiva participação da
sociedade civil na gestão da coisa pública, e não há democracia (2002: 141). Quando o
poder está concentrado nas mãos dos governos, e eles determinam o escopo e o formato
das políticas a serem executadas, a capacidade das ONGs de executarem seu papel de
monitoramento das ações públicas e de representarem os interesses dos coletivos
populares fica fortemente comprometida. Além disso, as ong’s passam a competir entre
si, enfraquecendo as redes e articulações das quais fazem parte, e tornam-se
dependentes do Estado para seu financiamento, limitando a crítica e o debate a respeito
dos rumos das políticas implementadas (2002: 135).

Fica evidente que os riscos mencionados pela autora são mais frequentes quando
o “encontro” entre ONGs e Estado se dá nos moldes de “prestação de serviços”. Esse
parece ser, no entanto, o tipo mais comum de relação entre o Estado e as ONGs que
atuam nas favelas cariocas, particularmente porque muitas dessas passam a atuar nesses
territórios apenas como executoras de “projetos sociais” diretamente vinculados a
políticas públicas. No entanto, algumas ONGs que também atuam na execução das
políticas tiveram importante papel na discussão a respeito da violência urbana e de
meios para diminuí-la, como vimos anteriormente (especificamente no caso do grupo de
pesquisadores ligados ao Iser e que formaram, posteriormente, o Movimento Viva Rio).
Trabalho recente de Koslinski (2007) mobiliza uma vasta literatura para tratar das
especificidades das ONGs enquanto associações da sociedade civil, mostrando que suas

145
características particulares as diferenciam de grupos de pressão e de representação de
interesse mais tradicionais na literatura sobre movimentos sociais. A partir de um survey
realizado com 301 organizações de diferentes estados brasileiros e configurações
internas, Koslinski demonstra como mais da metade das organizações pesquisadas têm
acesso a recursos governamentais, sobretudo as mais profissionalizadas, que contam
com trabalho especializado. Dessa forma, é possível afirmar que com a “parceria”
estabelecida entre organizações não-governamentais e governos – definida como
financiamento público dado para execução de “projetos sociais” ligados à políticas
públicas – as ONGs assumem cada vez mais uma função de agência estatal privada, e
cada vez menos de representante de interesses existentes na sociedade civil. De fato, o
papel da sociedade civil enquanto esfera política, onde a cidadania democrática é
exercitada, estaria sendo cada vez mais esvaziado (Alvarez, Dagnino e Escobar, 2000).

A grande presença das ONGs nos espaços públicos dá visibilidade a um


fenômeno que, por contraste, apontaria para uma diminuição da importância dos
movimentos sociais na representação dos interesses da sociedade civil nas articulações e
demandas junto ao Estado. No entanto, determinar se os movimentos sociais urbanos
estão (ou estiveram) em crise exigiria dos analistas uma série de dados estatísticos que
não estão disponíveis ou que possuem limitações metodológicas91; além disso,
pesquisas que pretendam comparar historicamente taxas de adesão a coletivos políticos
podem incorrer no risco de tentar igualar contextos bastante diferenciados. De qualquer
forma, pesquisas quantitativas sobre associativismo no Brasil nos anos 1990
demonstram que poucos entrevistados se identificaram como participantes de
associações, tanto nas classes populares quanto entre as classes médias (Ferreira, 1999;
Avritzer, Recamán e Venturi, 2003). Ainda assim, não é possível determinar um
movimento de crescimento ou de diminuição do número de associados. É possível,
conduto, verificar o aumento no número de associações ao longo dos anos,
especialmente entre os anos 1980 e 1990 (Boschi, 1987). Outras pesquisas, no entanto,
buscam demonstrar como os movimentos sociais se transmutaram em associações e
organizações (entre elas as não-governamentais), que são hoje no Brasil bastante

91
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) realizou em 1996 uma pesquisa sobre
associativismo no Brasil, como suplemento de uma Pesquisa Mensal de Emprego (PME), realizada em
seis regiões metropolitanas do país. Outras pesquisas foram feitas por outros institutos e pesquisadores,
mas todas carecem de critérios de comparabilidade. Além disso, as definições sobre “participação em
associação” não são consensuais (Avritzer, Recamán e Venturi, 2003).

146
numerosas92 e que ocupam um lugar particularmente importante na condução da
questão social nacional (Gohn, 2002; Landim, 1993). Outros trabalhos ainda recuperam
a importância dos movimentos sociais, independente do formato que têm assumido, na
discussão atual sobre novas subjetividades na contemporaneidade.

Autores como Alvarez, Dagnino e Escobar (2000) afirmam que os movimentos


sociais possuem papel fundamental na luta política travada atualmente na América
Latina. Para eles “O que está fundamentalmente em disputa são os parâmetros da
democracia, são as próprias fronteiras do que deve ser definido como arena política:
seus participantes, instituições, processos, agenda e campo de ação” (Alvarez, Dagnino
e Escobar, 2000: 15). Nesse contexto, os movimentos teriam a função de contestar, no
âmbito da cultura política, as noções existentes sobre o que é a política e sobre a
participação no espaço público. Os movimentos sociais, ao questionarem os limites da
participação política, contestam a relação Estado - Sociedade, e a própria forma de
participação na política, fortalecendo a sociedade civil. A função de contestação cultural
dos movimentos sociais não se limitaria aos movimentos definidos mais claramente
como culturais, no caso o movimento de mulheres, de identidade étnica, homossexuais e
de direitos humanos. Para os autores, os movimentos urbanos de bairro e de
trabalhadores, como o movimento dos camponeses, também “(...) tentam dar novo
significado às interpretações culturais dominantes da política, ou desafiam práticas
políticas estabelecidas” (Alvarez, Dagnino e Escobar, 2000: 23). Dessa forma, possuem
papel central na construção de novas formas de participação e de exercício de cidadania
democrática dentro do espaço público, tendo a pretensão de lutar não apenas por
incorporação ao sistema, mas também pelo poder de participar da definição do sistema
político em si.

Nessa mesma linha de argumentação, Dagnino (2000) afirma que os


movimentos sociais percebem essa ‘nova relação’ estabelecida entre política e cultura
quando passam a lutar não “apenas por seus direitos sociais – moradia, saúde, educação,
etc. – mas pelo próprio direito a ter direitos”. No caso, os movimentos estão
combatendo uma concepção de parte considerável da sociedade brasileira que acredita
que os pobres não são sujeitos portadores de direito. Essa visão sobre os pobres seria

92
Um breve panorama das Ong’s no Brasil já foi mencionado na Introdução desta tese, mas vale lembrar
que em 2005 existiam no país em torno de 340 mil fundações privadas e associações sem fins lucrativos,
segundo o IBGE. Vale ressaltar que dentre essas associações nem todas são Ong’s.

147
uma regra cultural, que faria parte do conjunto de privações e da exclusão ao qual o
pobre está submetido, pois “(...) a pobreza é um sinal de inferioridade, uma forma de ser
na qual os indivíduos perdem sua capacidade de exercer seus direitos” (Dagnino, 2000:
82). A luta pelo reconhecimento das camadas populares como ‘portadoras de direitos’ é
então uma luta contra uma cultura autoritária, e é através dela que os movimentos
sociais estabelecem a ligação entre cultura e política, o que permitiu que se criasse uma
articulação com outros movimentos sociais de caráter mais cultural (estrito senso). Essa
visão de democracia que os movimentos tentam implementar é operacionalizada pelo
conceito de cidadania, pois é quando as carências sociais passam a ser vistas como
direitos, e defende-se que ‘o pobre também é cidadão’, que os movimentos populares
urbanos dão um passo importante na sua luta, e se encontram com outros movimentos
que também operam com essa noção.

Esse ponto de inflexão representou uma ruptura com as estratégias predominantes


de organização política dos setores populares, caracterizadas pelas relações de favor,
pelo clientelismo e pela tutela e subordinação. Essas estratégias, evidentemente
ainda vigentes, encontram suporte na cultura autoritária dominante e a reforçam, na
medida em que não confrontam seus sistemas de classificação e exclusão e suas
hierarquias básicas (Dagnino, 2000: 83).

Autor clássico na literatura sobre movimentos sociais, Alain Touraine tem se


debruçado há décadas sobre os “novos movimentos sociais”, realizando séries de
pesquisas sobre movimentos de estudantes, nacionalista, feminista e antinuclear. O
autor lançou em 2006 um livro no qual recupera alguns dos temas de seus livros
anteriores (1978, 1988), mas à luz dos eventos mais recentes do começo deste século.
Ele propõe repensar a capacidade da sociologia de dar conta de uma realidade onde a
vida coletiva não se regula mais por critérios sociais, e sim culturais. Segundo ele, essa
avaliação não é uma surpresa, já que milhões deploram a ruptura dos laços sociais e o
triunfo de um individualismo desorganizador. A volta a um mundo de identidades
coletivas compartimentadas, em oposição a uma identidade social mais ampla, estaria
exemplificada nos confrontos entre Ocidente e Oriente, sendo o principal deles o evento
de 11 de setembro de 2001. Segundo ele, os conflitos atuais não possuem função
política ou social. Outro fenômeno que evidencia tal reestruturação é a questão do
trabalho; com o aumento da duração da aposentadoria (para aqueles que estão nos níveis

148
mais elevados das hierarquias ocupacionais), do desemprego e do trabalho precário,
assistimos ao desmonte da civilização do trabalho. Tais fenômenos levam a uma
reorganização dos princípios em volta dos quais a vida coletiva se organiza. Nesse
sentido, Touraine acredita ser apropriado afirmar que, antes, nos referíamos a nós
mesmos em termos sociais; hoje falamos de nós mesmos em termos culturais. É no
campo cultural que estão em jogo os maiores conflitos da sociedade atual, e onde as
reivindicações apresentam-se com mais força. Multiculturalismo, proteção às minorias,
direito à prática religiosa, à diversidade cultural, etc. são as questões que mobilizam os
países centrais, e que são trazidas à cena pública pelos “novos movimentos sociais”.

Jeffrey Alexander (1998) também acredita que os movimentos sociais não


devem ser entendidos em seu caráter instrumental, mas como formas de novas questões
públicas serem colocadas em discussão pela sociedade em seu espaço público. Dessa
forma, os movimentos sociais não são respostas a problemas reconhecidos, sejam eles
de caráter econômico, cultural, legal, etc. O que pretendem é construir problemas
publicamente, isso é, convencer a “sociedade como um todo” que existe um problema
coletivo (e uma solução para ele), o que dá aos movimentos um caráter mais discursivo
do que as concepções utilitaristas a respeito dos movimentos sociais podem afirmar.
Nesse sentido, o autor conclui que o maior alvo dos movimentos sociais é a esfera civil
– que deve ser convencida da legitimidade do problema – e não o governo, como afirma
a perspectiva clássica que vê os movimentos sociais essencialmente como coletivos
organizados para apresentar demandas ao Estado.

Portanto, as análises de Touraine (1978, 1988, 2006) e Alexander (1998) podem


ser úteis à discussão aqui pretendida por proporem que os “novos movimentos sociais”
não são apenas formas de diferentes grupos sociais reivindicarem soluções para os
problemas trazidos pelo capitalismo flexível, mas também a construção no espaço
público de “novos problemas” que são legitimados pela sociedade, e que conseguem
esse reconhecimento em função de mudanças institucionais. Tal proposta de análise faz
sentido especialmente quando o caso das associações de moradores é considerado, pois
a organização dos favelados existe desde os anos 40 no Brasil, e desde então tem
tentado tornar seu problema legítimo – nessa perspectiva, o trabalho do movimento não
é apenas apresentar suas reivindicações ao Estado, mas também conquistar legitimidade
para o grupo que representa. E o período pós-ditadura militar representaria uma
possibilidade de reconhecimento dessas “novas questões”, em função do próprio

149
processo de democratização da sociedade brasileira – e por isso seria esse o momento
identificado pela literatura e pelos militantes como o auge da mobilização popular em
torno desses coletivos.

No entanto, apesar das associações de moradores de favelas terem publicizado


questões importantes para os favelados, como habitação, saneamento, titulação, etc.,
esses temas se encontram hoje em segundo plano na discussão sobre as favelas e seus
problemas. Primordialmente em função do crescimento do fenômeno da “violência
urbana”, e do enquadramento público dado a ele (Machado da Silva, 1995; Leite, 2000),
o foco do debate se concentrou na identificação das favelas como território dessa nova
criminalidade, o tráfico de drogas, tendo como consequência direta a estigmatização dos
moradores de favela. Assim, se consideramos as indicações analíticas a respeito da
importância da disputa simbólica nos conflitos sociais contemporâneos (Melucci, 1997:
5; Touraine, 2005: 265), é possível afirmar que o debate se trava em torno da
representação sobre as favelas. De um lado, se localizariam aqueles que veem a favela
como “valhacouto de bandidos”, ou o espaço da ilegalidade (incorporada no lema
“Ilegal, e daí?”, série de reportagens veiculadas pelo jornal O Globo a partir de
setembro de 2005); de outro, aqueles que defendem a favela como território de moradia
de trabalhadores, onde apenas “1% dos moradores estaria envolvido” com o tráfico
(Athayde, MV Bill e Soares, 2005).

No embate sobre as diferentes imagens públicas da favela, alguns moradores de


territórios periféricos se organizam para promover uma imagem positiva,
principalmente através de meio audiovisuais. Esse crescente movimento visa produzir
uma imagem alternativa dessas localidades, opondo-se ao olhar externo (da mídia, da
sociedade, do estado), geralmente estigmatizante e negativo (Gama, 2009) 93. Boa parte
deles organizados em torno de “projetos sociais”, esses grupos tentam transformar o
imaginário social, que é informado por essas imagens negativas, visando “estimular o
diálogo, ainda hoje deficiente e hierárquico, entre os setores da sociedade, e fazer

93
Evidentemente, tal disputa simbólica pela representação das favelas não é um fenômeno recente ou
inédito. Como demonstrou Valladares (2005), Leeds e Leeds (1978), Perlman (2002), entre outros, a
favela sempre foi objeto de olhares externos que a retratavam negativamente; seja como bárbaros,
simplórios, matutos, malandros, etc., entre outros estereótipos. No entanto, como apresentado na
Introdução desta tese, a variação atual deste embate põe em xeque a própria possibilidade de manutenção
de uma disputa entre representações sobre as favelas, dado que um dos lados deste conflito vem sendo
estigmatizado e rejeitado a ponto de não ser mais identificado como ator legítimo para participar da
produção dessas representações. Dessa forma, o que está em jogo não é a produção de imagens externas e
estereotipadas sobre as favelas em si, mas sim a variação observada em seu conteúdo.

150
circular outras imagens sobre as favelas, tornando a representação dessas áreas mais
complexa” (Gama, 2009: 109, grifos da autora). Os participantes desses movimentos
estão assim engajados em uma disputa no campo simbólico, onde o que está em jogo é
como são representados os territórios populares e seus moradores – ainda que, como
afirma a autora, contraponham estereótipos negativos das favelas a estereótipos
positivados, como a favela enquanto espaço da solidariedade e da união (2009: 96).

Retornando a comparação entre ONGs e associações de moradores, as primeiras


parecem estar mais engajadas na discussão a respeito dos conflitos no campo identitário
e simbólico. No caso do Pereirão, por exemplo, a ONG TV Morrinho se coloca
enquanto produtora de uma nova e positiva representação sobre as favelas (ainda que
compartilhe de uma representação negativa também ao apresentar como um dos
problemas locais a “violência”) inclusive através da reprodução de espaços favelados
como obra de arte. Já a associação de moradores permanece no campo do conflito
social, na apresentação de demandas coletivas ao poder público, o que acaba por
reforçar um outro e antigo estereótipo das favelas como lugar da carência. Tal diferença
pode ser tributária das funções públicas de cada organização; ONGs não são entidades
representativas, e assim podem assumir outras temáticas que não a melhoria das
condições de vida dos moradores. No entanto, a partir da colocação de Alexander
(1998) de que movimentos sociais publicizam e tornam coletivas questões que dizem
respeito a grupos, cabe refletir sobre a capacidade das associações de moradores de
serem ainda movimentos sociais, já que encontram atualmente grande dificuldade em
tornarem públicas suas demandas e intervirem no espaço público, legitimando e
tornando justas (Boltanski e Thévenot, 1991) as demandas dos moradores de favelas.

A partir da pesquisa realizada no Pereirão, bem como da revisão da literatura


sobre as favelas cariocas, argumento nesta tese que as associações de moradores
possuem hoje menor capacidade de publicização de temas e demandas que as
organizações não-governamentais, e que esse gradiente deve-se a uma diversidade de
variáveis. A literatura já tratou de algumas delas, que foram abordadas no capítulo II

151
desta tese94 (Cf. pág. 77 e seguintes). No entanto, existiria outra variável menos
abordada na bibliografia sobre organizações localizadas em favelas: o baixo
“ajustamento” das associações de moradores à atual configuração do “problema da
favela”, i.e., ao debate atual sobre segurança pública e sobre qual o papel que essas
localidades desempenham dentro da discussão sobre violência urbana e formas de
combatê-la. No enquadramento dado a esse debate, as organizações não-governamentais
estão “duplamente ajustadas”: em relação à forma pela qual agem e ao conteúdo de suas
ações. Para abordar esse “duplo ajustamento” preciso compartimentar a discussão em
duas partes: “ajustamento” do formato pelo qual as ONGs agem e “ajustamento” do
conteúdo de suas ações. Para realizar o primeiro debate, aciono a categoria formulada
por Boltanski e Chiappello na reflexão sobre o novo espírito do capitalismo: a “cité par
projet” (1999). Para tanto, recupero a discussão de Boltanski e Thévenot sobre a
justificação (1991), para em seguida analisar como as ONGs “ajustam” sua atuação à
gramática que articula o debate público no capitalismo contemporâneo. Posteriormente,
discuto o “ajustamento” do conteúdo das ações das ONGs, recuperando a discussão
feita anteriormente sobre a “metáfora da guerra” e o papel disciplinador das populações
faveladas que essas organizações possuem.

4.2. O “duplo ajustamento” ao “problema das favelas”.

Boltanski e Thévenot (1991) se concentram sobre as justificativas apresentadas


pelos atores para suas ações e que são aceitas, ou não, pelos outros atores. Afirmam que
tais justificativas são modeladas por diferentes conjuntos de valores: familiaridade,
talento, valores econômicos, espirituais, etc. Esses conjuntos de valores formam
diferentes “mundos”, cada um dos quais constitui uma cité ou ordem social, que explica
a desigualdade entre “grandes” e “pequenos” pela contribuição diferencial ao bem
comum, transformando relações de força em relações de grandeza, e permitindo o
debate em torno das provas de grandeza relativa entre participantes de uma humanidade
comum. As justificativas apresentadas devem ter pretensões generalistas, com validade

94
A saber: autoritarismo e favorecimento pessoal (Zaluar, 2004), perda de autoridade frente aos
traficantes de drogas (Pandolfi e Gryzpan, 2002; Zaluar, 2004; Silva e Rocha, 2008) e cumplicidade com
esses em alguns territórios (Leeds, 2003).

152
universal, e devem ser orientados para uma noção de bem comum – devem ser,
portanto, consideradas justas por todos que compartilham da mesma cité. Por exemplo,
o capitalismo existiria também em outro nível que não o de sua experiência prática, de
obtenção do lucro; ele seria um sistema justificado, capaz inclusive de fazer frente às
criticas que recebe (Boltanski e Chiappello, 1999: 61-62). Nesse sentido, a justificação
se apresenta enquanto base para sustentar o sistema, e também para sustentar as críticas
a ele. No entanto, tais justificações acionam diferentes conjuntos de valores, que estão
sobrepostos na realidade social – por isso as cités são variadas. Se os argumentos
utilizados para argumentar a justiça de certa situação são do âmbito familiar (laços
familiares, proximidades, dependências, hierarquias, etc.), pertencem a Cité
Domestique. Nessa cité aqueles que orientam seus atos a partir desses critérios
familiares têm suas ações justificadas, e são considerados grandes, na gramática
proposta (Boltanski e Thévenot, 1991: 26 e seguintes). Da mesma forma são
organizadas as outras cités: valores ascéticos e artísticos (Cité Inspirée); posse de
mercadorias escassas e da riqueza (Cité Marchande); reconhecimento externo, fama e
renome (Cité du renom); eficácia, capacidade técnica e profissional (Cité Industrielle); e
valores coletivos, a vontade geral e a representação desses interesses (Cité Civique),
além da já mencionada Cité Domestique95.

Para os autores é possível reconhecer na sociedade contemporânea justificativas


para agenciamentos sociais que se baseiam nessas seis cités. Mas em trabalho posterior
Boltanski e Chiappello identificam uma sétima cidade, onde habitariam valores como a
flexibilidade, a polivalência, a comunicação, a capacidade de se desligar de objetos e
pessoas e de se conectar rapidamente a outros, etc. – valores que modelariam um “novo
espírito do capitalismo” (Boltanski e Chiappello, 1999). Assim os autores constroem o
conceito de “cité par projet”, que seria a justificação do capitalismo contemporâneo e
definiria os critérios de grandeza nesta ordem social em construção96. Tal conceito é
particularmente importante para a análise aqui pretendida, pois acredito que as

95
O argumento dos autores aqui se encontra extremamente condensado e simplificado, e nesse sentido o
resumo apresentado é injusto com seu enorme trabalho analítico e teórico. Como o objetivo é apresentar
rapidamente o arcabouço teórico definido a fim de utilizá-lo em parte na construção do meu argumento,
não irei prolongar-me na discussão teórica. De qualquer forma, deixo registrada a superficialidade do
tratamento aqui dado ao trabalho de Boltanski e Thévenot (1991).
96
Boltanski e Chiappello consideram que a constituição do respectivo “mundo” é dificultada pela
paralisação – ou “desajustamento” – da crítica, contraparte necessária do processo de formulação de uma
nova metafísica de um bem comum capaz de generalizar uma “comum humanidade”. Esta questão,
entretanto, está fora do escopo da presente tese.

153
organizações não-governamentais estão “ajustadas” à gramática moral da “cité par
projet”, a qual articula o repertório das políticas públicas que têm sido executadas nas
favelas cariocas, especialmente as políticas sociais. É através das ONGs, “ajustadas” a
essa nova cité, que essas políticas são executadas e se tornam concretas e reais. É
importante recuperar, rapidamente, a idéia de “ajustamento” já apresentada
anteriormente97: o conceito de justesse, tal como proposto por Boltanski e Thévenot,
significaria bom (ou mal) funcionamento tanto de coisas quanto de pessoas. Nos
parágrafos seguintes analiso o funcionamento das ong’s e seu “ajustamento” à “cité par
projet” formulada por Boltanski e Chiappello (1999).

As ONGs realizam seus propósitos e ações através de projetos, pois é através do


financiamento dado para a execução desses que as organizações se sustentam e
implementam suas atividades. Sem projetos a ong é uma organização fantasma, vazia,
não apenas pela falta de financiamento, mas também porque os projetos são o meio e
também o produto final do seu trabalho. Tais projetos são limitados no tempo, têm uma
duração pré-determinada (que pode ou não ser estendida) e, consequentemente, suas
ações e resultados também são delimitados. A ONG que tem sucesso em suas atividades
é aquela que consegue executar diferentes projetos, que sempre consegue
financiamento, e que, assim, é capaz de começar outro projeto quando o primeiro está
em vias de acabar. As pessoas que trabalham nas ONGs estão, em sua maioria,
ancoradas em algum projeto, ou em vários ao mesmo tempo (algumas possuem
financiamento próprio e assim pagam o salário do pessoal administrativo, mas em
outras até os funcionários administrativos são pagos pelos projetos), e assim seu
pertencimento à organização está vinculado à sua adesão a um desses projetos. Tal
forma de engajamento tem como consequência uma grande rotatividade de
trabalhadores – mas os mais bem sucedidos são aqueles que conseguem rapidamente
“entrar” em outro projeto.

Os projetos, por se realizarem de forma delimitada no tempo, possuem uma


grande flexibilidade em termos de seu escopo, tempo e metodologia. Ao final de um
projeto é possível (re) adequá-lo às diretrizes dos financiadores (sejam eles o estado ou
a iniciativa privada), e assim ele pode sofrer adaptações em termos do local onde é
executado, do público-alvo com o qual pretende trabalhar, sua duração e a forma pela

97
Cf. referência 18 e Boltanski e Thévenot, 1991: 59 e seguintes.

154
qual é realizado. Muitas ONGs, principalmente as maiores, possuem projetos em
diversas linhas de atuação: gênero, infância, minorias, geração de emprego e renda,
jovens “em conflito com a lei”, etc. – o que demonstraria sua polivalência em relação ao
foco das ações executadas. Muitas vezes o escopo do projeto será decidido de acordo
com as escolhas feitas pelos financiadores. No momento da obtenção dos
financiamentos (ou renovação) as ONGs precisam comprovar não apenas o mérito de
suas ações, como também sua capacidade de “ajustamento” às novas orientações
exteriores98. Por fim, as organizações têm que ser capazes de finalizar um projeto e
abandoná-lo, como muitas vezes acontece por falta de interesse do financiador de
continuar investindo naquela ação. Para continuar seu trabalho a ONG deve buscar
formular outros projetos, que tenham maior aceitação junto aos patrocinadores, para não
ficar “sem projetos”. É na hora de sair de um projeto e entrar em outro que as ONGs
demonstram sua competência, eficácia e credibilidade.

Dessa forma, as características de uma ONG são as mesmas habilidades


necessárias para o “ajustamento” ao “novo capitalismo” ou, como propõe a gramática
de Boltanski e Thévenot, o “estado do grande”99 na “cité par projet”: entusiasta,
flexível, adaptável, polivalente, empregável, autônomo, não-prescrito, que sabe engajar
as pessoas, que escuta, tolerante, em evolução, engajado (Boltanski e Chiappello, 1999:
168-172). Ainda que alguns dos termos citados sejam características individuais, e não
de organizações, eles sintetizam o “espírito” das ONGs e de seus profissionais no que
diz respeito à rejeição ao formalismo e a institucionalização – “espírito” herdado dos
“novos movimentos sociais”, que viam nos “antigos” movimentos uma excessiva
institucionalização que impedia a participação “popular” e “autônoma” (Machado da

98
Como exemplo episódico posso citar os financiamentos oferecidos pela Petrobras S.A., uma das
empresas que mais investe em responsabilidade social no país. Por anos o tema da seleção pública de
projetos da empresa (mecanismo pelo qual ela escolhe parte dos projetos que financia) foi “Cultura de
Paz”, durante parte do governo de Fernando Henrique Cardoso. Com a mudança de governo o tema
passou a ser “Fome Zero”, lema do mandato do Presidente Lula. Os projetos apresentados buscaram então
se adaptar aos novos tempos, trocando a problemática da segurança pública para o da geração de emprego
e renda, ainda que a temática da segurança permaneça através do público-alvo preferencial (jovens entre
16 e 24 anos, considerado o grupo mais “vulnerável” a aderir à vida criminosa).
99
Segundo a gramática de Boltanski e Thévenot (1991), o grande é aquele que comporta todas as
características consideradas boas, que trazem a felicidade e que são identificadas com o bem comum
(1991: 99). É também aquele que encarna fortemente os valores da cité (Boltanski e Chiappello, 1999:
164). Nesse sentido, o estado do grande são as características consideradas positivas e desejadas dentro de
cada cité.

155
Silva e Ribeiro, 1985: 324; Cardoso: 1987)100. Sintetizam também a capacidade dessas
organizações de se “ajustarem” aos objetivos das políticas sociais e das cada vez mais
precárias formas de trabalho e contrato estabelecidas pelo poder público. Além das
grandezas, as maneiras pelas quais as ONGs executam suas ações e se movimentam
entre a sociedade civil, o mercado e o estado são as mesmas identificadas por Boltanski
e Chiappello como o “repertório de objetos e dispositivos” acionados pela “cité par
projet”: parcerias, acordos, redes de organizações, projetos, etc. (1999: 177). Como na
“cité par projet”, as redes são a forma “natural” de organização das ONGs (“figura
harmoniosa da ordem natural”), que permite a multiplicidade de contatos, o término das
conexões não-produtivas e a criação de novas conexões (1999: 167 e 190), e a mediação
é a atividade principal dos seres que a habitam, sua “relação natural” com outras
pessoas e coisas que também estão na mesma cité. Ao final de um projeto as ONGs
demonstram sua capacidade de adaptação e também de serem reconhecidas enquanto
mediadores, pois esses são os elementos avaliados para a continuação do projeto ou para
o financiamento de outro – é o momento da avaliação da justiça das ações, ou éprouve
modele (1999: 187). Assim, a ONG é “grande” na “cité par projet” porque encarna
seus valores fundamentais.

Ainda a partir das referências dadas pelo trabalho de Boltanski e Chiappello,


identifico o “ajustamento” das ONGs ao “novo espírito do capitalismo” também no que
se refere ao formato atualmente em voga para execução das polícias sociais públicas.
Essas também estariam sendo desenvolvidas “por projeto”, i.e., através de ações
focalizadas em alguns grupos identificados como alvo. Para Werneck Vianna (2009), a
partir dos anos 1990 a “questão social” passou a ser definida como a questão da
pobreza, e as políticas sociais que deveriam garantir os direitos sociais definidos pela
Constituição de 1988 passaram a ser vistas como ineficazes, em função de sua tendência
a “desequilibrar o orçamento fiscal, desperdiçar recursos, penalizar investimentos e a
não alcançar devidamente os pobres” (2009: 18). Dessa forma, no lugar de políticas
universalistas, são privilegiadas políticas “focalizadas” em indivíduos, grupos
específicos e segmentos da população pobre. E para implementar essas novas políticas
“focalizadas” foram convocadas as ONGs, definidas como mais ágeis, eficientes, menos

100
Mas, como afirmam os autores, tal “espírito” de autonomia e espontaneidade diz mais a respeito da
representação feita pelos pesquisadores sobre os movimentos sociais do que sobre suas realidades
cotidianas, que poucas vezes eram objeto das pesquisas feitas à época sobre esse tema.

156
burocráticas e corruptas (Leite, 1999: 9); em suma, pelos mesmos atributos de
flexibilidade que a fazem “grande” na “cité par projet”.

No entanto, diversos autores chamam a atenção para as conseqüências da


escolha de políticas focalizadas em detrimento de políticas universais (saúde, educação,
e principalmente seguridade social). Para Leite (1999), o Estado exime-se de sua
responsabilidade de promover o bem-estar social, separa cidadania e justiça social e,
dessa forma, enfatiza uma concepção individualista de cidadania, focada no “indivíduo
como proprietário e consumidor” (1999: 9). Para Werneck Vianna, as políticas
focalizadas não geram desenvolvimento, empregos sustentáveis e, portanto, são inócuas
no combate às desigualdades (2009: 19). Por outro lado, ao executarem tais políticas
focalizadas em “parceria” com o Estado, as ONGs deixam em segundo plano sua função
de trazer ao espaço público demandas pela inscrição de novos direitos na ordem legal,
característica de sua atuação junto aos movimentos sociais no período constituinte
(Paoli e Telles, 2000: 109). Assim, abandonam a gramática dos direitos para se
“ajustarem” a uma nova gramática da cidadania.

Guardadas as devidas proporções, um caso já mencionado no Capítulo II,


envolvendo a associação de moradores do Pereirão e a Prefeitura, pode ser bastante
demonstrativa da discussão mencionada acima. Como dito anteriormente, uma das
maiores reivindicações da gestão de Antônio junto à Prefeitura era a construção de uma
creche na localidade101. De acordo com o entrevistado, a Prefeitura argumentou que tal
obra não seria possível, em função de restrições orçamentárias, mas ofereceu ao
presidente da associação a construção de casas para alguns moradores da favela, como
forma de beneficiar a localidade de alguma maneira (oferta que foi recusada por
Antônio, pelos motivos mencionados anteriormente). A Prefeitura, dessa forma, alegou
restrições orçamentárias para a construção da creche, que além do investimento inicial
demandaria manutenção, contratação de equipe técnica, provisão de merenda para as
crianças, entre outros gastos. Por outro lado, a construção das casas seria uma atuação
pontual, sem demandar investimentos futuros por parte do poder público. Já na gestão
de Jennifer a principal reivindicação não era mais a creche, mas que a Prefeitura
financiasse o “projeto” de uma “Casa da Criança” no local, para atender as crianças da
localidade no contraturno escolar. A casa já estava construída, financiada com o

101
Vale ressaltar que a luta por creche é uma reivindicação antiga dos movimentos sociais urbanos
brasileiros. Cf. Gohn, 1985.

157
dinheiro da dona da pousada local, e seria gerenciada por uma ONG representada uma
mulher alemã (mesma nacionalidade do ex-marido da dona da pousada e principal
financiador do empreendimento) que desejava realizar um trabalho social na favela.
Segundo a entrevistada, as negociações para a obtenção desse financiamento público
estavam em andamento. Caso tal financiamento seja concedido, a Prefeitura irá
financiar um “projeto social” de uma ONG, que daqui a alguns anos poderá ser
financiada por outro agente não-estatal (se o “projeto” for considerado bem sucedido);
situação bem diferente da execução de uma política pública de assistência social e de
educação infantil, como no caso da creche.

Não pretendo que estas considerações dêem conta do espectro total de atividades
das organizações não-governamentais. Restrinjo minha pretensão de generalização
empiricamente fundamentada ao contexto das favelas e, no máximo, às intervenções
sobre os “territórios da pobreza”. Assim é que diversas pesquisas apontam que, dos anos
1990 para cá, os espaços populares, e especialmente os de favela, vem sendo ocupados
por “projetos sociais”, e a maioria deles não é uma iniciativa privada, mas sim uma ação
estatal – além do caso do “Mutirão pela Paz”, analisado no capítulo 1 (pp. 26), o
Programa Favela-Bairro também realizou diversos “projetos sociais” em parcerias com
ONGs (Burgos, 2003). Em ações recentes do poder público nas favelas o mesmo padrão
foi observado, como no caso das medidas implementadas após a Chacina do Alemão,
em 2007. Até o momento esse parece ser também o formato escolhido para as ações do
Pronasci (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania), do Ministério da
Justiça102.

As referências ao Pronasci, ao “Mutirão pela Paz” e à Chacina do Alemão são


significativas, pois permitem costurar as duas pontas deste argumento: em termos de seu
conteúdo, a ação das ONGs através dos “projetos sociais” realizados nas favelas está
“ajustada” à relação que o Estado estabeleceu com os territórios pobres da cidade,
particularmente através de seu aparelho repressor. Não afirmo que as ONGs sejam
agentes repressores, nem que estejam todas de acordo com a política pública de

102
Segundo o site do Programa: “O projeto articula políticas de segurança com ações sociais; prioriza a
prevenção e busca atingir as causas que levam à violência, sem abrir mão das estratégias de ordenamento
social e segurança pública. Entre os principais eixos do Pronasci destacam-se a valorização dos
profissionais de segurança pública; a reestruturação do sistema penitenciário; o combate à corrupção
policial e o envolvimento da comunidade na prevenção da violência. Para o desenvolvimento do
Programa, o governo federal investirá R$ 6,707 bilhões até o fim de 2012”. Cf. Site do Ministério da
Justiça.

158
segurança implementada. Contudo, a política de segurança e as ong’s que atuam nas
favelas através de “projetos sociais” voltados para a questão da “vulnerabilidade ou
risco social” compartilham de um pressuposto analítico: os moradores de favelas, e
particularmente os jovens, são potenciais marginais e, se não forem salvos a tempo,
representarão uma ameaça à sociedade. O enquadramento da questão da violência
urbana pelas ONGs evidencia a adesão a esse pressuposto: nos “projetos sociais” os
moradores são descritos como agentes potenciais das situações de violência, e não como
vítimas – especialmente os jovens do sexo masculino. Daí o enfoque na prevenção, em
disputar com o tráfico “menino a menino” (Soares, 2005a: 241).

Vale ressaltar que, como afirmado anteriormente, a grande maioria das ONGs
apenas executa os “projetos sociais” que são formatados (em termos de seu público-alvo
e ações principais) pelos financiadores desses – configurando-se um “encontro
prestação de serviços” (Teixeira, 2002: 111). Como ressalta a autora, esses “encontro”
caracteriza-se pela pouca ou nenhuma participação dessas organizações na formulação
das políticas; porém, ainda que algumas ONGs pouco participem da formulação atual da
política de segurança pública (à qual os “projetos sociais” muitas vezes estão
vinculados), ao executarem a política elas lhe dão legitimidade. Além disso, as ONGs
participaram intensamente da construção da opinião pública atual que vê “projetos
sociais” como solução para o problema da criminalidade juvenil (como afirmei ao longo
desta tese103).

No caso do Pereirão, a adesão a esse pressuposto evidencia-se pela redação e


justificativa do “projeto social” que a ONG TV Morrinho pretende vender; nele, os
objetivos apresentados são a diminuição da violência e da criminalidade na
“Comunidade do Pereirão” e o “abandono das atividades relacionadas ao tráfico de
drogas” pelos jovens participantes (Cf. capítulo III: 116). Vale ressaltar, no entanto, que
as representações criminalizadoras e estigmatizantes convivem com representações
positivas: no mesmo documento as potencialidades artísticas dos jovens são ressaltadas;
além disso, nos materiais de divulgação da organização os jovens são descritos como
artistas, como exemplos para os outros jovens moradores, etc. (Cf. Capítulo III). Nesse
sentido, a ambivalência de representações possibilita que essa ONG esteja “ajustada” ao
enquadramento da questão da violência urbana localizada nas favelas – necessária para

103
Ver também Soares (1996, 2002, 2005).

159
ser incluída no campo de agentes que estão engajados nessa temática, além de
importante para ser considerada adequada a receber financiamentos – bem como
“ajustada” a um discurso positivo sobre as favelas.

A criminalização dos jovens pelos agentes que se apresentam como seus


salvadores, e que em muitos casos estão realmente engajados nessa ação, seria para
Soares (2005b) uma consequência perversa do posicionamento daqueles que defendem
os “projetos sociais” como ferramentas para o combate da violência, mas que não
anularia os benefícios resultantes:

(...) quando circunscrevemos determinado grupo ou indivíduo como vulnerável,


exposto ao risco do envolvimento com a violência e o crime, nossa intenção é
protegê-lo, humanizá-lo, abrir-lhe alternativas, evitando a criminalização repressiva
que os estigmatiza, demoniza e condena ao círculo vicioso das profecias que se
autocumprem. Nossa intenção é esta, mas, frequentemente, caminhamos sobre o fio
da navalha, porque tangenciamos, nós mesmos e contra a vontade, a estigmatização
e a criminalização (que funcionará comprovando a verdade que previra, ao provocar
os efeitos que temia e enunciava). (Soares, 2005b: 209).

Segundo o autor, a tese de que pobres e negros são mais ‘vulneráveis’ a aderir ao
crime é empiricamente correta, mas é responsabilidade da sociedade se eles acabam nas
carreiras criminosas. Porém, tal posicionamento reforça a estigmatização e até autoriza
a violência (principalmente policial), ao reforçar a visão sobre os jovens pobres e negros
como ameaça potencial, ao invés de “enfatizar e defender seus direitos ao acolhimento,
a uma vida saudável, etc.” (Soares, 2005b: 210).

As associações de moradores ocupam um lugar diferente dentro desse cenário.


Ainda que muitas vezes não se pronunciem sobre a violência cotidiana existente nas
favelas cariocas, quando o fazem se apresentam como representantes das vítimas,
particularmente no caso dos excessos cometidos por políticas contra o conjunto dos
moradores. Como dito anteriormente, muitas vezes os dirigentes se calam (ou evitam o
assunto), mas por motivos diferentes dos da maioria das organizações não-
governamentais, seja por medo, falta de interlocutores que os escutem, para não serem
acusados de coniventes ou cúmplices dos traficantes, ou ainda porque alguns são
realmente cúmplices (Silva e Rocha, 2008; Freire, 2008; Leeds, 2003; Zaluar, 2004).
Vale ressaltar, contudo, que como no caso empírico aqui analisado e em outros relatos

160
recolhidos por outras pesquisas, os projetos sociais são aprovados e desejados por
muitos dirigentes de associações de moradores, principalmente por serem aprovados e
desejados por muitos moradores (Silva e Rocha, 2008), e dessa forma eles também
legitimam em certa medida o enquadramento dado aos moradores de favelas pelas
políticas executadas. Ainda que em menor intensidade, a ambivalência observada na
abordagem das ONGs é também encontrada entre os dirigentes de associações de
moradores. No entanto, no geral e particularmente nos momentos de conflito entre
traficantes e policiais com mortes de moradores de favelas, são os dirigentes de
associações que acionam o discurso que apresenta essa população como vítima tanto da
violência perpetrada pelos traficantes quanto pela polícia. O posicionamento das
associações reflete, assim, a ambivalência dos próprios moradores de favela, que se por
um lado opõem-se ao tratamento que recebem da polícia e do Estado enquanto
“potencialmente criminosos”, por outro aprovam ações de “prevenção à violência” nas
localidades, como observado no caso do Pereirão.

Nesse sentido, para além do “desajustamento” das associações de moradores aos


dispositivos institucionais compatíveis com a “cité par projet” mencionado acima – no
sentido de inadequação ao formato das ações no momento executadas nas localidades
populares – elas também encontrariam dificuldades em se “ajustar” ao conteúdo (isto é,
ao repertório moral) dessas novas relações, onde os moradores de favelas são
enquadrados em termos de sua ameaça, real ou potencial. Isso as excluiria, e aos grupos
que representam, da “comum humanidade” e as obrigaria a recorrer a um conjunto de
dispositivos que lhes permitiria reivindicar – com variáveis possibilidades de êxito – a
participação (certamente crítica) nessa comunidade de diálogo. Em termos do conteúdo
das ações e dos discursos também as ONGs estão mais bem “ajustadas”, e representam
o reverso do discurso que justifica o tratamento estigmatizante e criminalizador dado
aos moradores de favelas.

Dessa forma, a atuação das ONGs, através de projetos sociais que buscam salvar
os favelados de uma potencial vida criminosa através de processos de controle dos
moradores mais “vulneráveis”, se mostra “ajustada” ao enquadramento do “problema
das favelas” em termos da “metáfora da guerra” (Leite, 2000), pois se articula com a
representação das favelas enquanto território do crime e da violência. Assim, a partir da
idéia da guerra, estabelecem-se duas formas socialmente reconhecidas de tratamento
para a questão das favelas e de sua população: o tratamento “civilizador” (através da

161
abordagem disciplinar dos projetos sociais) ou, para aqueles que não podem ou não
querem ser incluídos na sociabilidade institucional-legal, o extermínio (através da
política pública de segurança de enfrentamento ao crime). A divisão do tratamento do
“problema da favela” em uma solução disciplinar e uma solução final (a morte) remete
ao binômio poder disciplinar-biopoder, como proposto por Foucault (2005a).

No livro “Em defesa da sociedade”, Foucault recupera a teoria sobre o poder


soberano para compreender como se sustenta o direito do rei em dispor da vida e da
morte de seus subalternos. O autor identifica dois outros dispositivos de poder que
sucederam no tempo o poder soberano, e acabaram por se sobrepor a ele: o poder
disciplinar e o biopoder. Segundo o autor, o poder disciplinar visa tornar os indivíduos
dóceis e úteis, através da separação, alinhamento, vigilância e treinamento de seus
corpos, de forma que se tornem mais produtivos para o trabalho. Trata-se de um
tratamento racional e técnico para a questão do desvio individual (Foucault, 2005a:
287). Já o biopoder não ocorre sobre o corpo individual, mas sobre um corpo
“múltiplo”, com “várias cabeças”, uma construção abstrata que transforma as pessoas
em uma “massa global” sobre a qual incidem processos da vida como o nascimento,
morte, doenças, etc: a população (2005a: 292). Enquanto o primeiro poder é exercido
através da disciplina (ações e técnicas focadas no indivíduo e no controle do seu corpo),
o segundo se dá através de regulamentações gerais (vacinas, cuidados sanitários,
estímulos à natalidade ou ao controle dela, etc.). No entanto, poder disciplinar e
biopoder, ainda que pertencentes a níveis diferentes de atuação (indivíduo x população),
não são excludentes; ao contrário, estão articulados (de maneira ortogonal) nas normas
que disciplinam e regulam a sociedade. Questões sociais como a sexualidade e a saúde,
por exemplo, são para Foucault formas normatizadas de atuar tanto sobre a pessoa
(corpo individual) quanto sobre a população (2005a: 297).

No caso das favelas cariocas, poder disciplinar e biopoder também estão


articulados. Incidem sobre os territórios favelados através de ações que são justificadas
por duas linhas de pensamento diferentes, às vezes com posicionamentos opostos dentro
do campo político. Essas duas linhas de enquadramento da questão foram identificadas
por Leite (2000), e passaram a polarizar a discussão pública a esse respeito a partir dos
anos 1990:

162
A primeira, liderada pelo aparato policial civil e militar e contando com a adesão
ativa de vários políticos, de setores da mídia e de parte dos moradores da cidade,
oriunda principalmente de suas camadas médias e abastadas, clamava por ordem e
segurança e pela disciplinarização das “classes perigosas”. Considerava que a
situação excepcional da cidade — de guerra — não admitia contemporizações com
políticas de direitos humanos e com reivindicações pelo respeito aos direitos civis
dos moradores nos territórios conflagrados. A segunda, liderada por um grupo de
organizações não-governamentais e de intelectuais formadores de opinião na cidade,
e que contava com a adesão de alguns órgãos de imprensa e de setores médios
politizados e/ou intelectualizados, defendia a combinação de políticas de promoção
da cidadania, destinadas principalmente a jovens moradores em favelas e periferias,
com alternativas eficientes no campo da segurança pública (Leite, 2000: 74).

No entanto, como indica a autora, ambos os enquadramentos estão orientados


em direção à localização da pobreza e da marginalidade nas favelas do Rio de Janeiro
(2000: 74). Meu argumento tem sentido parecido: ainda que muitas vezes justifiquem
ações opostas, representam faces diferentes do mesmo dispositivo que busca controlar,
disciplinar e regular os moradores desses territórios. Disciplina e regulação, como
indicou Foucault, se sobrepõem no tratamento dado aos moradores de favela, através da
representação desses como “o problema da segurança pública”, ou “o problema da
cidade”. Como demonstrado em trabalhos que abordam as diferentes políticas públicas
voltadas para as favelas, a preocupação em disciplinar e “civilizar” os seus moradores
foi constante ao longo do século passado, sendo concretizada nos Parques Proletários,
nos conjuntos habitacionais que receberam moradores removidos das favelas, na
Fundação Leão XIII (Burgos, 2003; Valladares, 2005; Farias, 2008). À abordagem
“civilizadora” se somaria atualmente o tratamento policial-repressivo, cristalizado no
termo “metáfora da guerra” (Leite, 2000), que justifica as ações violentas realizadas
pela polícia nesses territórios, com alta letalidade e ao custo de muitas vidas, em um
processo diuturno de eventos violentos. Tendo como ponto de partida os Parques
Proletários, Farias aborda a “atualização dos mecanismos de controle”, ao discorrer
sobre como essas populações se encontram hoje a mercê de uma atuação estatal que
demonstra pouca preocupação com a letalidade das ações policiais executadas naquele
território. Citando dados levantados por organismos internacionais, afirma que os
favelados são “matáveis”, já que a continuidade dos assassinatos e chacinas envolvendo
moradores de favela constitui-se em “um processo que vem sendo desempenhado por
alguns, legitimado por outros, deixado de lado por outros e denunciado por poucos”
(Farias, 2008).

163
Nesse sentido, como tentei demonstrar ao longo deste capítulo, ONGs
encontram maior legitimidade para suas ações porque estão mais “ajustadas”, tanto ao
moderno capitalismo flexível quanto à “metáfora da guerra”, que regulam e orientam o
tratamento dado atualmente às favelas. Associações de moradores buscam recuperar sua
legitimidade, através de um “ajustamento” ao formato ONG – no entanto, não
alcançaram essa legitimidade, em função das diferenças de formato e de função que
possuem em relação às ONGs. Assim, as ONGs são hoje a “voz” das favelas, quem fala
sobre os moradores, para eles e por eles, pois são a “voz” que é ouvida e reconhecida.
No próximo capítulo, conclusão desta tese, discuto os limites dessa “voz”, e de que
maneira entendo que uma “voz ajustada” representa uma outra dimensão do
silenciamento que recai sobre os moradores das favelas, tão evidente no caso da favela
do Pereirão.

164
Conclusão: Paz sem voz.

Ao longo da tese, silêncio e silenciamento foram mencionados em diversos


momentos: o silêncio dos moradores, de sua entidade representativa, de sua organização
de base. Às vezes o silêncio aparece como medo; em outros, como evitação, como
forma de tentar não se contaminar pela imagem negativa das favelas e de seus
moradores. Nesta conclusão essa discussão permanece, mas tendo como contraponto a
possibilidade se expressar publicamente, de ter “voz”: Quem tem voz nas favelas
cariocas? Quem fala pelas favelas, ou sobre as favelas? E quem fala para as favelas?

Ao usar o termo “voz” para descrever a participação na arena pública de


entidades compostas por moradores de favelas ou de organizações cujas ações estão ali
enraizadas, refiro-me a capacidade de posicionar-se legitimamente enquanto
organização e de ter suas ações reconhecidas (inclusive através de recebimento de
recursos). Mobilizo para a discussão a categoria “voz” como proposta por Albert

165
Hirschman (1970)104, i.e. tornar público o descontentamento com o estado, com uma
empresa ou com uma organização como forma de reivindicar melhorias – ainda que a
dimensão crítica e reivindicatória da categoria como definida pelo autor possua uma
versão menos contestatória no quadro das favelas e de suas organizações de base. Nesse
contexto, trata-se menos de expressar um descontentamento, e mais de tornar pública
uma demanda, uma reivindicação, um problema. Assim, “possui voz” aquele que é
ouvido em momentos de conflitos (por exemplo: ações policiais, construções de
equipamentos públicos polêmicos, etc.), ou que participa dos debates sobre as políticas
públicas executadas nessas localidades. “Possui voz” também o ator capaz de propor
formulações sobre o que seria “o problema da favela” e sobre como solucioná-lo, e que
é ouvido a esse respeito. Em diferentes momentos, e frente a diferentes audiências,
associações de moradores e organizações não-governamentais possuíram “voz”, mas
esse capital vem sendo distribuído de forma bastante heterogênea, e cada vez se
concentra mais nas mãos de um desses atores.

Como discutido ao final do Capítulo I, o silenciamento e o medo permanecem


no Pereirão, mesmo quando os moradores ressalvam sua diferença frente aos outros
moradores de favela, particularmente em relação à submissão desses ao poder arbitrário
dos traficantes de drogas. Mesmo quando falam sobre seu cotidiano, silenciam-se ao
não tematizar sobre a ordem violenta do tráfico de drogas e da polícia, através de uma
evitação do tema – direta, quando dizem que não querem falar sobre o assunto, ou
indireta, quando acionam o discurso da excepcionalidade local: “aqui não tem tráfico”,
“aqui é uma favela tranquila”. Dessa forma, não expressam sua “voz” no sentido
proposto por Hirschman (1970), pois não expressam crítica ao contexto em que vivem;
e mantendo o repertório do autor, também não expressam lealdade à ordem violenta,
nem renunciam (exit) a ela. Tal silenciamento foi observado não apenas entre os

104
Em seu trabalho mais conhecido, Hirschman (1970) apresenta um modelo de análise de relações
sociais que pretende definir os cursos de ação de atores sociais individuais frente a organizações de
diferentes tipos: consumidores face ao mal-funcionamento de serviços e produtos comprados, cidadãos
descontentes com os serviços públicos ou militantes desapontados com seus movimentos sociais. Ao
deparar-se com tais atores sociais, e com sua performance insuficiente, três possibilidades de ação são
vislumbradas por Hirschman: a saída, a voz e a lealdade (Exit, Voice e Loyalty). Mantendo o exemplo da
relação empresa-consumidor, a saída seria o comprador trocar de marca, desistindo de consumir aquele
produto; a lealdade seria o comprador continuar consumindo a mesma marca, mesmo descontente; e a voz
seria o comprador reclamar ou mobilizar-se com outros consumidores descontentes, de forma a exigir a
modificação do produto.

166
moradores, mas também nos espaços da associação de moradores e da ONG (ainda que
nessa última o silenciamento tenha contornos diferenciados, como veremos adiante).

De forma a apresentar alguns dos achados analíticos deste trabalho, recupero a


discussão feita nos capítulos anteriores. O silenciamento que, acredito, recobre a
sociabilidade no Pereirão apresenta-se de formas diferentes, de acordo com o contexto e
o agente que nele se coloca. Os moradores, na maioria das vezes, evitam falar sobre os
traficantes de drogas locais, negando ou minimizando sua presença na favela. Quando
falam sobre o tema, afirmam que não estão submetidos aos traficantes de drogas como
os outros moradores de favelas cariocas. Nesse contexto, essa fala tem o sentido de
enfatizar que não estão expostos aos riscos e inseguranças que são resultado direto do
encontro forçado entre moradores e traficantes de drogas. Dessa forma, a fala sobre a
“tranquilidade” local independe de se existe tráfico de drogas no local ou não. Os
moradores do Pereirão se apresentam como não-submetidos aos traficantes porque, ali,
os conflitos entre traficantes e entre esses e a polícia são considerados eventos
extraordinários, o que faria essa favela “diferente” face às localidades onde conflitos,
eventos violentos, troca de tiros, retaliações dos traficantes contra moradores,
assassinatos, espancamentos, etc., são mais freqüentes (Machado da Silva, 2008c).

Como dito na introdução desta tese, não pretendo responder à questão se o


Pereirão é ou não uma favela “diferente das outras”. Mais do que isso, não posso
responder com um sim ou um não, pois ela é diferente, e ao mesmo tempo é igual.
Observa-se nos relatos recolhidos e nas observações feitas que a excepcionalidade do
Pereirão não está ancorada empiricamente na ausência de traficantes no local, mas sim à
forma como eles ali se encontram, à configuração da rede do tráfico de drogas na
localidade: “aqui não tem tráfico”, ou “aqui não tem tráfico armado”, ou ainda “aqui é
cada um na sua, eles lá e nós aqui” são definições locais (nativas) sobre aquele tipo de
configuração do tráfico de drogas. É claro que os termos adotados variavam de acordo
com o entrevistado, sua idade, a relação de confiança estabelecida com a pesquisadora,
a situação em que cada conversa se dava. Porém, todos reforçam a importância da
ausência de contatos forçados, e dessa forma de conflitos reais ou potenciais, com os
traficantes de drogas – o que representa uma garantia, ainda que temporária, de que a
segurança pessoal e a rotina estão a salvo do risco que esses contatos representam.
Machado da Silva e Leite (2008) já discutiram a importância da manutenção da rotina
para os moradores de favelas. Nesse sentido, a compreensão dos moradores do Pereirão

167
sobre ali ser uma favela “tranquila” pela ausência de conflitos vai ao encontro das
representações dos moradores ouvidos na Pesquisa “Rompendo o cerceamento da
palavra: a voz dos favelados em busca de reconhecimento”, que dirigiam suas críticas
sobre a violência, seja ela policial ou vinda dos traficantes de drogas, à sua interferência
sobre o fluxo rotineiro da vida nos territórios das favelas, mais do que à violência ou ao
crime propriamente ditos (Machado da Silva e Leite, 2008: 75).

Assim, é importante ressaltar que, no sentido das garantias à manutenção da


rotina, o Pereirão é uma favela “diferente das outras”, segundo seus moradores. E
quando colocadas em oposição a favelas vizinhas, ou a favelas mais conhecidas da
cidade, ali os conflitos são muito menos freqüentes. No entanto, no que diz respeito à
confiança e possibilidade de expressão no espaço público, os moradores dessa
localidade muito se assemelham aos outros favelados. Sentem-se inseguros e
desprotegidos quando requisitados a falar sobre risco e perigo em suas vidas; evitam
falar sobre certos assuntos; observam regras de circulação no espaço da cidade –
continuam submetidos a uma ordem violenta, ainda que com maiores garantias para a
continuidade de suas rotinas. Essas maiores garantias, contudo, são suficientes para
confirmar a diferença entre o Pereirão e outras favelas cariocas. Segundo Machado da
Silva (2008b), os moradores de favelas fazem um esforço constante para manter o fluxo
de suas rotinas dentro da ordem social dominante – trabalhar, estudar, casar, ter filhos,
entrar e sair de suas localidades. Ter uma vida “normal”, rotineira, uma continuidade
que muitas vezes é interrompida pelos eventos violentos que resultam da proximidade
forçada com os traficantes de drogas (a “sociabilidade violenta”). Os moradores são,
assim, obrigados a uma enorme concentração de atenção, de forma a se protegerem das
conseqüências dos encontros. Portanto, a rotina dos moradores é preenchida por esse
esforço mental de concentração, inclusive para evitar infringir a ordem imposta através
de comportamentos não adequados, resultando em grande dose de desconfiança e medo
entre os próprios moradores (Machado da Silva, 2008b: 22). Ainda que o esforço
mental, a desconfiança e o medo permaneçam, eles seriam menores no Pereirão.

Mesmo que a situação excepcional do Pereirão – sua “tranquilidade” – seja


tópico de conversas e de apresentações sobre o local, os riscos envolvidos, as ameaças
existentes, os momentos de conflito e de violência, não são tematizados pelos
moradores entrevistados, nem sequer mencionados. Assim, apesar das diferenças em
seu cotidiano e da “tranquilidade” que afirmam desfrutar, também os moradores

168
entrevistados estão submetidos a dispositivos de “confinamento” e de “silenciamento
coletivo” (Machado da Silva, 2008b: 19); e nesse sentido ela é “igual às outras”. Tal
silenciamento pode ser uma conseqüência do medo; como dito anteriormente, os
moradores do Pereirão seguem a “lei do silêncio” que se impõe sobre a coletividade dos
moradores de favelas, o que ficou evidente no comentário feito por um dos moradores
sobre o perigo de falar sobre o tema em entrevistas. Pode ser, dependendo do contexto,
o reconhecimento da inutilidade de falar sobre uma situação considerada inexorável –
observada no argumento “aqui é uma favela como as outras”, usado em um contexto
específico para reconhecer a existência do risco no local, mas também como forma de
encerrar uma discussão sobre o assunto.

Em outros contextos, no entanto, o silenciamento não tem uma função apenas


reativa, como apresentado acima, no sentido da impossibilidade de falar sobre o
assunto. Silenciar sobre os eventos violentos (ou sobre a possibilidade deles
acontecerem) tem também a função de garantir a “segurança ontológica” (Giddens,
1991) dos moradores, sua confiança na continuidade da rotina e na normalidade do
fluxo de suas vidas, quando esses apresentam sua localidade como um ótimo lugar para
morar, “tranquilo”, “em paz”. Ele pode ser acionado pelos moradores ainda como um
recurso que os distingue positivamente, um “capital simbólico” (Bourdieu, 2004: 145):
uma forma de evitar o interesse da polícia na localidade, evitando assim confrontos e
operações no local, ou pelo menos como forma de reivindicar uma abordagem menos
agressiva dos policiais quando entram na localidade. Definitivamente, a “tranquilidade”
local é um “capital simbólico” quando utilizada para rejeitar o estigma que recai sobre
os favelados, acusados de serem coniventes com os traficantes de drogas. É um recurso
usado em momentos de apresentação de si em espaços públicos, acionado pelos
dirigentes da associação de moradores e também pelos jovens participantes da ONG,
além de ser acionado na busca por oportunidades de trabalho (ainda que limitadas
àqueles que reconhecem a especificidade local).

O silêncio pode representar ainda uma forma de evitação de um assunto que


pode colocar aquele que fala sob a crítica dos outros, correndo o risco de ser mal-
avaliado ou até mal-interpretado. Pollack (1989) discorre sobre o trabalho de
reconstrução da memória a respeito de eventos traumáticos, e sobre os silenciamentos
voluntários das vítimas a respeito deles. Em seu trabalho sobre a memória dos
sobreviventes dos campos de concentração o autor argumenta que o silêncio pode ser

169
uma escolha em diversas situações: quando as vítimas não encontram um ouvido
interessado em seus testemunhos; ou quando a sociedade está concentrada nos esforços
de reconstrução após a guerra e não tem mais energia para “ouvir a mensagem
culpabilizante dos horrores dos campos” (Pollack, 1989: 6). Pode ser ainda uma forma
de proteger os filhos, para que eles não cresçam com o peso das cicatrizes dos pais. O
autor afirma que o silêncio também é, muitas vezes, uma forma de fazer “boa figura” de
si mesmo frente às representações dominantes, como no caso das vítimas do nazismo
que não foram deportadas por motivos políticos, e que se calaram sobre sua condição
para não serem desmerecidas enquanto legítimas vítimas dos nazistas105.

Essa tipologia de discursos e de silêncios, e também de alusões e metáforas, é


moldada pela angústia de não encontrar uma escuta, de ser punido por aquilo que se
diz, ou, ao menos, de se expor a mal-entendidos (Pollack, 1989: 8).

O silêncio nos casos acima mencionados é uma estratégia para a valorização de


si mesmo, ou para evitar a desvalorização, pelo menos. Atua de forma semelhante ao
mecanismo de “limpeza moral” mencionado para o caso dos moradores de favela, pois
esses também têm que se apresentar enquanto “bons favelados” para não serem julgados
de forma negativa, assim como aqueles tinham que se apresentar como “vítimas
legítimas”. Seguindo a pista dada por Pollack, do silêncio como forma de evitar mal-
entendidos, não falar sobre o tráfico de drogas permite que os moradores da favela do
Pereirão evitem discorrer sobre as estratégias que precisam utilizar para protegerem-se
dos contatos inevitáveis com os traficantes. Em alguns momentos ao longo do trabalho
de campo os moradores relataram situações em que alguma forma de interação com os
traficantes de drogas foi realizada: por exemplo, nos casos relatados em que a polícia
realizou operações na favela os moradores envolvidos na organização dos eventos que
aconteciam naqueles momentos afirmaram ter tido que explicar para os traficantes que
não tinham relação com o ocorrido. No entanto, silenciavam sobre as circunstâncias
dessas interações, como forma de evitar acusações de conivência com os traficantes,
como observado no caso de moradores de outras favelas cariocas. Todavia, no caso dos

105
As vítimas de crimes políticos seriam as mais valorizadas, o que calaria as mulheres envolvidas nos
casos de crimes de “vergonha racial”, ou seja, que foram condenadas por terem tido relações sexuais com
“arianos”. Silenciaram-se ainda os sobreviventes homossexuais, que temiam ser novamente julgados e
condenados, inclusive com a perda do emprego ou da moradia (Pollack, 1989: 12-3).

170
deportados pelo nazismo estudados por Pollack (1989), o silenciamento sobre a
condição não-legitimada em que cada um foi deportado não significou que a existência
do Holocausto tenha sido negada. No caso dos moradores do Pereirão, porém, o
silenciamento sobre a situação a que estão submetidos se traduz em negação da própria
submissão, o que dificulta ainda mais a possibilidade de serem ouvidos e reconhecidos
enquanto vítimas.

Veena Das (1999) oferece ainda uma análise sobre o silêncio em relação a
situações de violência. Em sua pesquisa, demonstra como as mulheres de famílias
punjabi discursam sobre as violências cometidas pelos maridos contra elas, relatam
injustiças sofridas e como fizeram para superá-las; essas histórias possuem uma
narrativa, uma temporalidade, atores (vítimas e agressores), e assim “aspectos da
performance ou esforços pelo controle da história” estão presentes (Das, 1999: 33). No
entanto, ao falar sobre o evento da Partição da Índia, em que mulheres foram raptadas e
violentadas nos confrontos, a narração das situações de violência assemelha-se a “slides
congelados” (1999: 33). Para a autora existe, portanto, uma diferenciação entre
situações de violência acontecidas dentro das redes familiares e privadas e aquelas
passadas no contexto da Partição, onde “uma violência que visivelmente rasgava o
próprio tecido da vida” tornou impossíveis “reivindicações da cultura através da
disputa” (1999: 38-9). Segundo Das:

Sugiro, assim, que aquilo que constitui o não-narrativo dessa violência é o que é
indizível nas formas da vida cotidiana. Sugiro, ainda, que é porque o alcance e a
escala do humano que é testado, definido e estendido nas disputas inerentes à vida
cotidiana que ela passa, da violência inimaginável da Partição, para formas de vida
que não são vistas como pertencentes à própria vida. Ou seja, essas experiências da
violência levantam certas dúvidas quanto à própria vida, e não apenas quanto às
formas que ela pode assumir. Foi um homem ou uma máquina que enterrou uma
faca nos órgãos genitais de uma mulher depois de estuprá-la? Eram homens ou
animais que saíam matando e colecionando pênis castrados como sinais de suas
proezas? Existe uma profunda energia moral na recusa de representar algumas
violações do corpo humano, pois tais violências são vistas como sendo “contra a
natureza”, definindo os limites da própria vida. O alcance e escala precisos da forma
de vida humana não são conhecidos de antemão, do mesmo modo que o alcance
preciso de uma palavra não é conhecido de antemão. Mas a intuição de que
determinadas violações não podem ser verbalizadas na vida cotidiana está no
reconhecimento de que não se pode trabalhá-las no âmbito do cotidiano queimado e
embotado. (Das, 1999: 39).

171
A partir da análise de Das (1999) é possível criar duas dimensões de violência
sofridas pelos moradores de favela, e assim duas formas de expressá-las: quando falam
de uma violência “simbólica” ou “econômica” (p. ex. o descaso do poder público, ou a
violência do tráfico e da polícia em termos abstratos), os moradores discorrem sobre sua
condição de marginalizados com maior facilidade e, principalmente, sentem-se mais
legitimados a se posicionarem enquanto vítimas. Contudo, falar sobre situações de
violência que aconteceram a indivíduos próximos ou a si mesmo, em que a própria
humanidade do vitimado foi negada, ou onde havia o sentimento de impotência pela
desigualdade de forças existente, é muito mais complicado, e exige manobras narrativas
diferentes daquelas usadas para descrever situações mais abstratas e que ocorrem de
forma mais generalizada. Tal diferenciação é particularmente rica para pensar o que
acredito ser um silenciamento por parte dos dirigentes da associação de moradores e dos
integrantes da ONG do Pereirão, especialmente os últimos: eles falam sobre a violência,
sobre a submissão imposta, mas o fazem de forma deslocada do contexto daquele
território, de suas experiências pessoais, ou de forma impessoal e não-subjetiva.

De certa forma, o silenciamento dos moradores do Pereirão é também o


silenciamento dos moradores de favelas de forma geral, enquanto cidadãos cariocas
submetidos a uma ordem violenta que limita ou impede que denunciem sua situação.
Sem os aspectos positivos que destacam a “tranquilidade” local como um “capital
simbólico” disponível, o conjunto dos moradores de favelas silencia-se: por medo de
retaliações dos traficantes e de policiais, por medo de serem mal-compreendidos e
estigmatizados, por medo de não encontrar um ouvido disponível para o que desejam
falar. Mas, ainda que para os moradores o silenciamento face às situações de risco seja
uma estratégia possível, para as organizações representativas a escolha por não falar
representa o abandono de uma das principais funções desses atores. Assim, soma-se ao
risco representado pelo contato forçado com os traficantes a possibilidade de perda de
legitimidade do dirigente enquanto representante legítimo do conjunto dos moradores
que lhe deram seu mandato, o que “põe à prova e tensiona a legitimidade do porta-voz e
o horizonte político desta forma associativa” (Freire, 2008: 146). Contudo, este tem sido
o caminho escolhido por muitas das associações de moradores, por motivos semelhantes
aos dos moradores: medo, desconfiança, necessidade de escapar da “contaminação
moral” representada pelo tráfico de drogas. Com a voz silenciada e com seu espaço de
atuação limitado, as associações de moradores buscam na execução de “projetos” e nas

172
“parcerias” com o poder público um novo desenho para suas atuação, uma nova forma
de estar dentro dos territórios e de ser liderança comunitária. No entanto, enfrentam
nessa nova atividade a competição com as organizações não-governamentais, que são
vistas como menos “contaminadas” pelo contato com o tráfico de drogas e cujo trabalho
encontra, em muitos casos, maior aceitação e legitimidade pública tanto dentro quanto
fora das favelas (Silva e Rocha, 2008).

Enquanto as associações de moradores encontram-se silenciadas, as ONGs são


hoje reconhecidas como “a voz das favelas” – pelo menos aquela que é acolhida no
espaço público. No caso específico do Pereirão, contudo, ainda que atuante e com um
trabalho que se refere diretamente à temática da violência urbana, o tratamento dado
pela ONG local à questão do tráfico de drogas é também uma forma de silenciamento,
pois se apresenta apenas como uma representação estética da realidade, sem
questionamento, reflexão ou crítica sobre ela. Da mesma forma que em filmes
brasileiros recentes cujo tema é violência, nas performances dos participantes da ONG
as imagens produzidas não se pretendem “explicativas” da complexa realidade das
favelas cariocas, nem oferecem julgamento sobre elas; são apenas “‘espelho’ e
constatação de um estado de coisas” (Bentes, 2003: 231). A representação da violência,
nesse caso, não é uma “tomada de voz”, mas um “ajustamento” à representação corrente
das favelas como território da violência.

Não somente a ONG localizada no Pereirão encontra-se silenciada, no sentido


proposto acima; em termos de uma “tomada de voz” sobre a situação das favelas e de
seus moradores, a maioria das ONGs que hoje atuam nessas localidades possui uma
atuação “ajustada”, o que não significa uma representação dos interesses dos moradores.
De forma a refletir sobre essa outra forma de silenciamento, gostaria de retomar as
proposições de Touraine: movimentos sociais colocam em evidência questões centrais
para a sociedade e disputam, assim, qual o rumo dela – sua “historicidade” (Touraine,
1978). Além disso, como indicou Alexander (1989), buscam re-dimensionar essas
questões, transformando-as em preocupações legítimas e justas. No entanto, para tal
precisam do reconhecimento da validade dessa demanda por parte da sociedade. Hoje,
em função da radicalização dos discursos sobre criminalidade e violência urbana, a
discussão sobre os direitos humanos dos moradores de favela não é considerada

173
legítima, e por isso encontra-se quase ausente dos debates públicos sobre o tema106. O
enquadramento dado ao tema aceita representações que coloquem os favelados na
posição de algozes, ou de potenciais algozes, mas dificilmente como vítimas. É somente
a partir do “ajustamento” a esse pressuposto que se tornaria possível participar do
debate sobre os “problemas das favelas” e quais soluções possíveis para eles e, nesse
sentido, as ONGs podem participar com maior legitimidade do debate por estarem
“ajustadas” a esse discurso. Ter mais legitimidade para participar do debate não quer
dizer, contudo, que as opiniões e as soluções propostas pelas ONGs sejam aceitas pelos
outros participantes desse debate – ou que sejam até homogêneas. Ao contrário, as
ONGs são acusadas de defenderem apenas “os direitos dos bandidos”, ou ainda de má-
utilização do dinheiro público, mais recentemente107. No entanto, apesar das críticas que
recebem, as ONGs recebem financiamentos públicos, privados e internacionais; são
chamadas para dar declarações públicas sobre temas importantes do cotidiano do Rio de
Janeiro; participam de fóruns importantes onde são discutidos temas públicos, etc. – ou
seja, tentam influir no debate sobre as favelas e principalmente sobre as soluções
possíveis.

As associações de moradores, nesse cenário, tentam se adequar ao


enquadramento atual através da formatação de suas ações no mesmo desenho dos
“projetos sociais”; como visto no capítulo II, muitos dirigentes de associações vêem na
execução desses projetos uma saída para sua posição de isolamento em relação ao poder
público (tanto como uma forma de receber recursos quanto de agir sobre os territórios
de alguma maneira). No entanto, encontram dificuldades de adaptação determinadas: i)
por sua função de representatividade do coletivo dos moradores; diferentemente dos
“projetos sociais” as associações de moradores não podem focar-se apenas nos jovens
das favelas; ii) por terem sua imagem fortemente relacionada aos traficantes de drogas,
particularmente depois das mais recentes denúncias de formação de currais eleitorais
nas favelas (Cf. Capítulo II). Mesmo assim, apesar dessas questões, as associações de
moradores ainda se mantém funcionando, mesmo que esvaziadas – como no caso da
associação do Pereirão. Contudo, não conseguem exercer seu papel de representante dos
106
Importante exceção deve ser feita a movimentos sociais que têm na questão da defesa dos direitos
humanos sua principal bandeira (Cf. Leite, 2004; Farias, 2005). No entanto, como as próprias autoras
apontam, esses coletivos enfrentam grandes dificuldades em ocupar o espaço público com suas demandas,
apesar de terem obtido importantes conquistas em suas demandas, ainda que de forma individualizada
(alguns casos de assassinato de jovens por policiais foram reconhecidos e os autores condenados).
107
No ano passado, foram feitas diversas denúncias do uso de ong’s para desvio de verbas públicas. Cf.
Como fazer bem a si mesmo. Revista Época, 2008.

174
moradores em questões como o escopo e o tipo de política social executada nas favelas,
a abordagem violenta das “operações policiais” nessas localidades, ou a mais recente
discussão sobre muros e remoção de favelas108.

No entanto, ainda que as ONGs sejam uma “voz” atuante no espaço público e
nas discussões sobre “o problema das favelas”, representam uma outra dimensão do
silenciamento imposto aos moradores das favelas: enquanto “a voz que fala das favelas,
pelas favelas”, só é ouvida porque é “ajustada”. Assim, enquanto crítica ativa do sistema
(Hirschman, 1970; Freire, 2008), enquanto denúncia da situação de submissão dos
moradores a um regime de violência, a “voz” dos moradores de favela permanece
silenciada.

Sem uma entidade representativa, a possibilidade dos moradores se fazerem


ouvir fica ainda mais diminuída. Como fazem os moradores do Pereirão, a maioria dos
moradores de favelas protege-se no silêncio.

108
Cf. Governo do Rio de Janeiro constrói muros para conter favelas (O Globo, 29/03/09) e Paes diz que
remoção de favelas não pode ser tabu (O Globo, 11/04/09).

175
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187
Anexos.
Anexo I: Lista de entrevistados.

S. Anacleto, 74 anos, aposentado, afirma ter nascido na localidade.


Antônio: 55 anos, eletricista, natural do Rio de Janeiro, nascido na localidade, onde
sempre viveu.
D. Berenice: 91 anos, do lar, natural de Minas Gerais, mora na localidade há mais de 50
anos (não soube precisar).
S. Bernardo: 56 anos, aposentado, natural do Rio de Janeiro, nasceu na localidade.
Cabeção, 22 anos, artista, natural do Rio de Janeiro, mora na localidade há 10 anos.
Cristina, 48 anos, auxiliar de serviços gerais, natural do Rio de Janeiro, mora na
localidade há 25 anos.
Flávia, 35 anos, empresária, natural do Rio de Janeiro, mora na localidade há 4 anos.
S. Ítalo, 82 anos, natural do Rio de Janeiro, mora na localidade há 20 anos.
Jennifer: 30 anos, secretária, natural do Rio de Janeiro, nasceu na localidade.
S. Jorge: 74 anos, aposentado, natural do Rio de Janeiro, não soube precisar quando
chegou à localidade.
Jorgina: 32 anos, do lar, natural do Rio de Janeiro, mora na localidade há 7 anos.
Lucio, 22 anos, artista, natural do Rio de Janeiro, nasceu na localidade.
Newton, 15 anos, estudante e artista, natural do Rio de Janeiro, mora na localidade
desde pequeno.
S. Noaldo: 65 anos, aposentado, natural de Minas Gerais, mora na localidade há 5 anos.
S. Pedro: 75 anos, aposentado, natural da Bahia, mora na localidade há mais de 50 anos.
D. Salete: 71 anos, doméstica (aposentada), natural de Minas Gerais, mora na localidade
desde 1967.
Sandro, 21 anos, artista, natural do Rio de Janeiro, nasceu na localidade.
S. Silvio: 80 anos, aposentado, natural da Bahia, mora na localidade há mais de 50 anos
(também não soube precisar).
Suzana: 53 anos, vendedora, natural do Rio de Janeiro, nascida na localidade.
Tiago, 20 anos, artista, natural do Rio de Janeiro, nasceu na localidade.

188
Anexo II: Sites, Artigos de jornal e documentos oficiais (impressos ou digitais).
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