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Rio de Janeiro
2009
LIA DE MATTOS ROCHA
Banca Examinadora:
Adalberto Cardoso
Diana Lima
Márcia Leite
Rio de Janeiro
2009
II
AGRADECIMENTOS
Aproveito esses agradecimentos para expressar a minha gratidão àqueles que foram
fundamentais não apenas para a realização desta tese, mas que também tiveram papel na
minha formação profissional, além de terem me dado o apoio pessoal sem o qual essa
tarefa teria sido muito mais inglória e solitária. Muitas vezes me escapou a capacidade e
a oportunidade de agradecer ao vivo e a cores, e por isso o faço agora, no papel, onde as
ironias (ou autoironias) perdem a graça.
A Márcia Leite Pereira da Silva, agradeço a orientação informal, por ter sido minha
maior interlocutora e incentivadora, sempre apresentando saídas para dramas teóricos,
metodológicos e, porque não, pessoais. Agradeço também pelas conversas fora das salas
de aula e de reuniões (que foram muitas): pelos chopes, cafés e águas de coco, onde
aprendi a admirar, além de sua inteligência, também seu humor, sua sensibilidade e seu
carinho por todos. Márcia me fez ver as sutilezas do campo, as possibilidades
escondidas, os achados que eu tinha na mão e não percebia, e sempre com graça,
gentileza e respeito pelo meu trabalho. Márcia, sou sua fã!
III
que me fez entender que a “tranquilidade” do Pereirão não era um problema, mas o
problema desta tese, e também a Itamar Silva, a quem devo importantes reflexões sobre
os moradores de favelas cariocas e os dilemas de suas lideranças.
A Lia e Caroline (e também Valéria), que na secretaria do Iuperj zelaram pela minha
figura jurídica com competência, cuidado e zelo, apesar da desorganização que sempre
causei quando confrontada com o labirinto dos formulários e prazos. Agradeço também
a Simone Sampaio pela gentileza e carinho demonstrados todas as vezes que entrei na
biblioteca nesses longos quatro anos. Sereias, gratidão eterna.
A Graziella Moraes, com enorme admiração e gratidão, por ter sido minha amiga tão
querida por todos esses anos, com quem tive a honra de trabalhar, e que me motivou a
ser uma pesquisadora (e uma pessoa) melhor, simplesmente por seu exemplo.
IV
pela torcida. Também agradeço a Jussara Freire pela amizade tão preciosa e pela
inteligência e generosidade, atendendo sempre a todos os meus pedidos de ajuda.
Aos amigos que fiz há dez anos, na graduação do IFCS, e que ainda são tão importantes
na minha vida e carreira. A confraria de 96.1, meus primeiros interlocutores: João
Marcelo, José Renato, Guilherme, Gustavo, Cláudio, Felipe e Cecília. A Eliska e Bruno
Carvalho, pela amizade e pela confiança, e também por trocarem comigo as delícias e as
dores do parto que é escrever uma tese. A Denise Lopes, amiga de uma década, com
quem comecei a fazer pesquisa e com quem estou sempre aprendendo.
As “amigas de infância” que fiz no estágio em Paris, que foram minha família por seis
meses: Larissa, Isabel, Eliana, Iara, Juliana, Alexandra e Renata.
Agradeço a minha família e amigos de toda a vida, pela torcida e admiração que me
deram uma autoconfiança que beira a megalomania. Wilson, João Vicente, Vó Gumê,
Tias Nelcy e Lurdinha, Bia, Gabriela, Fernanda (a irmã que escolhi), Ingrid, Aninha,
Pedro, Pupi, Tia Verinha – amo vocês. A Lurdes e Euclides, que leram e editaram a
maior parte da tese, muito obrigada pelo carinho e pelas dicas (e pela pegadinha
também). Agradeço especialmente a minha mãe, Léa, que me apresentou a sociologia
(afinal, é a primeira socióloga que conheci) e as favelas cariocas, minha maior
incentivadora e meu maior exemplo. Ao tio Silas, que quando eu era ainda criança me
deu “História do Mundo para crianças”, do Monteiro Lobato, para que eu pudesse
começar a entender algumas das questões que já me tiravam do sério (e a ele também).
V
Resumo
A partir deste caso real do possível discuto as implicações dessa “tranquilidade” para a
sociabilidade local, e particularmente para sua associação de moradores e para a
organização não-governamental ali localizada. Argumento que a ausência de conflitos
frequentes é uma importante dimensão na vida local, pois permite aos moradores não
apenas a manutenção de sua “segurança ontológica” (Giddens, 1991), como também
oferece à população local um importante recurso acionado nos processos de limpeza
moral que executam. No entanto, afirmo que tal “tranquilidade” é acompanhada de um
silenciamento por parte dos moradores e de suas organizações sobre suas rotinas e sobre
os riscos por eles vivenciados. No caso de sua associação de moradores, tal
silenciamento tem como consequência, entre outras, uma imobilidade no que diz
respeito à mobilização para ações coletivas que demandem melhorias para a localidade.
No caso da ONG local, o silenciamento se dá de outra forma; o trabalho executado está
relacionado a representações sobre a criminalidade violenta e sobre a “vulnerabilidade”
da juventude local frente a ela. Nesse sentido, os participantes da ONG possuem uma
voz sobre a vida nesses territórios, mas que está “ajustada” ao enquadramento atual do
“problema da favela”. Elevando a discussão a uma dimensão mais geral, analiso o
“ajustamento” (Boltanski e Thévenot, 1991) de associações de moradores e
organizações não-governamentais tanto aos novos parâmetros da atuação estatal nessas
localidades quanto ao discurso mais recente sobre sociedade civil e movimentos sociais
– que modelam esse atual “problema da favela”. Por fim, discuto qual a “voz possível”
para moradores de favelas, dentro das condições dadas pelas representações coletivas
existentes sobre eles e sobre o lugar que ocupam na dinâmica socioespacial da cidade.
VI
Summary
From this case I argue the implications of this “tranquillity” for the local sociability, and
particularly for the resident’s association and the non-governmental organization
located there. I argument that the absence of frequent conflicts is an important
dimension of local life, since it allows the maintenance of the residents’ “ontological
security” (Giddens, 1991), as well as it offers them an important resource applied in the
processes of “moral cleanness” executed by them in regular tenses. However, I affirm
that this “tranquillity” goes along with the residents’ (and theirs organizations’) silence
about their routines and the risks they experience. In the case of the resident’s
association, such silence provokes its immobility regarding the improvement of the
locality’s quality of life, among others consequences. The local NGO, on the other
hand, produces representations on violent crime and how the local youth are
“vulnerable” to it. Therefore, its participants have a voice over the life in these
territories, but that voice is “adjusted” to the recent framing on the “favelas’ problem”.
Raising the discussion to a more general level, I analyze the “adjustment” (justesse, as
presented by Boltanski and Thévenot, 1991) of resident’s associations and non-
governmental organizations to the new parameters of the state performance in these
localities, as well as to the most recent speeches on civil society and social movements.
Finally, I discuss the possibility of voice for favelas’s residents, regarding the
conditions given by collective representations about them and about the place they
occupy in the socio-spatial dynamics of the city.
VII
Résumé
Cette thèse enquête les nouvelles configurations de l'associativisme dans des bidonvilles
de Rio de Janeiro (connue comme favelas) à partir de l'étude de cas d’une favela
localisée dans la Zone Sud de la ville de Rio de Janeiro, qui profite d'une situation
particulière et presque exceptionnelle : l'absence de conflits fréquents parmi des
trafiquants de drogues et entre ceux-là et la police, sans être dominé par des groupes
paramilitaires (comme c'est le cas dans beaucoup d’autres favelas). Pour leurs habitants,
il s'agit d'une favela« tranquille » et, donc, « différente des autres ».
VIII
Sumário
Introdução __________________________________________________________________ 1
I. Uma favela onde “reina a paz”. _______________________________________________ 23
1.1. O passado da “comunidade” do Pereirão.____________________________________ 25
1.2 O “Mutirão pela Paz” e vizinhança com o BOPE: de uma favela violenta a uma favela
“tranquila”._______________________________________________________________ 27
1.3 “Em paz”: rotina e tensões. _______________________________________________ 35
1.4. Silêncio e medo em um cotidiano “tranquilo”.________________________________ 43
1.5. Diversas apropriações possíveis da “tranquilidade” do Pereirão.__________________ 50
II. A associação de moradores: “eles lá e nós aqui”. _________________________________ 55
2.1. A associação de moradores. ______________________________________________ 57
2.1.1. A gestão de Antônio. ________________________________________________ 57
2.1.2 A gestão de Jennifer. ________________________________________________ 69
2.2 “Tempos da política” nas favelas cariocas. ___________________________________ 73
2.3. Política e criminalidade violenta nas favelas do Rio de Janeiro. __________________ 78
2.4. Voz e silenciamento da representação de moradores de favelas. __________________ 92
III. A ONG TV Morrinho: “Como na vida real”.____________________________________ 96
3.1. TV Morrinho: a ONG do Pereirão. _________________________________________ 97
3.2 História do Morrinho. ___________________________________________________ 99
3.3. A ONG TV Morrinho. _________________________________________________ 107
3.4 Os múltiplos significados do Morrinho. ____________________________________ 116
3.4.1 Colocando a violência em evidência, mas como problema.__________________ 116
3.4.2 Colocando a violência em evidência, mas como experimentação._____________ 126
3.5. O Morrinho e o “silenciamento da palavra”. ________________________________ 136
IV. Associação de moradores e organizações não-governamentais: rupturas e continuidades. 138
4.1. Da profissionalização da militância a representantes dos favelados: movimentos sociais e
ONGs. _________________________________________________________________ 139
4.2. O “duplo ajustamento” ao “problema das favelas”. ___________________________ 152
Conclusão: Paz sem voz. _____________________________________________________ 165
Referências Bibliográficas. ___________________________________________________ 176
Anexos.___________________________________________________________________ 188
Anexo I: Lista de entrevistados.______________________________________________ 188
Anexo II: Sites, Artigos de jornal e documentos oficiais (impressos ou digitais). _______ 189
IX
Introdução
Eu Sou Favela
(Sergio Mosca - Noca Da Portela)
Em defesa de todas as favelas do meu Brasil,
aqui fala o seu embaixador.
Desde seu surgimento, há mais de um século, as favelas são vistas pela maioria
da sociedade brasileira como local “infestado de vagabundos e criminosos que são o
sobressalto das famílias” e “cidadelas da miséria” (Valladares, 2005:26 e 32).
Concomitantemente, foram produzidas também representações “idealizadas” da favela,
como na música apresentada acima e outras que retratavam as favelas como “pertinho
do céu”, um “cenário de beleza”, lugar de “gente boa”1. Porém, nas últimas décadas o
crescimento no número de eventos violentos tem agravado o estigma secular que recai
sobre as favelas. Ao mesmo tempo em que se dá o agravamento deste estigma, as
favelas têm sido palco de intervenções do poder público e de atores da sociedade civil,
através dos quais são executadas ações que tentam dar conta do que seria “o problema
da favela”.
1
Nas músicas “Opinião”, de Zé Kéti; “Hino de Exaltação a Mangueira”, de Chico Buarque; e “Favela”,
de Arlindo Cruz, Acyr Marques e Ronaldinho, respectivamente.
Para Valladares (2000), desde seu início as favelas foram “problematizadas” por
jornalistas, médicos e engenheiros – que liam a “favela como doença, moléstia
contagiosa, uma patologia social que precisava ser combatida”. A partir dos anos 1930 a
favela é reconhecida oficialmente e, como tal, “passa gradativamente a ser vista como
um problema a ser administrado”. Quando as ciências sociais estão constituídas no país
as favelas se tornam objeto de suas investigações, pois foi “a necessidade de administrar
a favela e os seus pobres que despertou o interesse em conhecê-la e conhecê-los mais de
perto”. Dessa forma, como Valladares demonstrou neste e em outro importante trabalho
(Valladares, 2005), a história das favelas cariocas está fortemente relacionada com a
identificação delas enquanto um “problema”. Porém a interpretação sobre qual tipo ou
dimensão do problema modifica-se a cada período histórico e contexto político
nacional: problema “sanitário”, habitacional, de “ordem pública”, de segurança ou
problema “social” – dimensões que se sobrepõem na maior parte das vezes, mas que
recebem maior ou menor destaque em contextos diferentes. No entanto, “o problema da
favela” permanece sendo entendido na maioria dessas abordagens como um problema
de (pouca ou nenhuma) integração das classes subalternas à institucionalização
democrático-legal, e poucas vezes enquanto um problema de desigualdade (um abismo
de poder entre “asfalto” e “favela”) e, portanto, um tema que diz respeito à sociabilidade
precária e à alteridade inconsistente que caracterizam as relações entre subalternos e
classes superiores na sociedade brasileira (Machado da Silva, 2002: 235).
Esta tese versa sobre moradores de favelas e suas organizações coletivas locais e
supralocais, e a forma como têm tentado combater a representação corrente que os
estigmatiza e os confundem com os traficantes de drogas que controlam esses territórios
e submetem seus habitantes. Na percepção social dominante, a contigüidade territorial
com criminosos violentos transforma todos os moradores de favela em cúmplices,
coniventes ou eles próprios potenciais criminosos (Zaluar, 1985; Machado da Silva e
Leite, 2004). Dessa forma, o “o problema da favela” atualmente está identificado como
um problema de segurança pública e combate à criminalidade violenta. Esta mutação do
antigo estigma tem profundo impacto sobre as vidas dos moradores, pois, entre outras
conseqüências negativas, serve de justificativa para a violência policial
sistematicamente praticada contra essa população e afeta a capacidade de se fazerem
presente e ouvidos nas arenas públicas, através de suas lideranças. Assim, a presença de
traficantes nas favelas representa impedimento para a ação coletiva por dois lados: os
2
traficantes muitas vezes controlam e cerceiam a ação das associações de moradores; ao
mesmo tempo, os líderes são desqualificados, por serem identificados como porta-vozes
de interesses criminosos2. Essa perda de legitimidade também acontece dentro das
próprias localidades; denúncias de corrupção, de uso dos recursos da associação para
interesses pessoais e até de envolvimento com o tráfico têm afastado os moradores da
participação nos movimentos de base e desacreditado a atuação de seus representantes
(Zaluar, 1985; Leeds, 2003; Machado da Silva e Leite, 2004). Porém, neste contexto
surgem outros atores sociais que apresentam novas credenciais para participar da
discussão pública sobre as favelas, e que entram na disputa sobre a imagem dessas
localidades e também sobre quem pode falar de forma legítima pelos moradores.
Segundo dado anunciado pelo Instituto Pereira Passos (IPP – ligado à Prefeitura
do Rio de Janeiro) no começo de 2009, o Rio de Janeiro possuía 968 favelas3. Em
relação aos dados sobre a população dessas favelas, no entanto, as informações mais
recentes são do último Censo Demográfico, realizado em 2000. Naquele momento,
segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, existiam 513 favelas4 na
cidade, nas quais moravam 1.092.783 habitantes – em torno de 19% da população
carioca. A partir de dados disponibilizados pelo IBGE, o IPP calculou as taxas de
crescimento para a cidade do Rio de Janeiro, os setores considerados subnormais (as
favelas) e os setores normais. Segundo este relatório, a população da cidade cresceu,
entre 1991 e 2000, a taxas anuais de 0,67%, mas enquanto nos setores normais a
população cresceu 0,38% ao ano a população das favelas aumentou a taxa de 2,4% ao
ano, particularmente nas regiões da Barra da Tijuca e Jacarepaguá (IPP, 2002).
Contudo, as favelas têm crescido em ritmo cada vez menor: segundo o IPP (Viana,
2008), entre 1950 e 1960 a população residente em favelas cresceu 98% (enquanto a
2
Em diversos artigos de jornais e revistas de grande circulação os presidentes de associação de moradores
são identificados imediatamente como representantes dos traficantes locais; Cf. “A vida no fio da
navalha. Prisão de líder comunitário revela ligação do tráfico com associações de moradores de favelas”
(VEJA, 2005) e “No curral e com ficha suja. ‘Candidato único’ da Rocinha responde a 14 ações por
roubo, furto e estelionato” (O Globo, 2008).
3
Cf. O Globo, 10 de janeiro de 2009. Expansão Horizontal: Favelas crescem 3 milhões de metros
quadrados no Rio.
4
Há divergências entre a contagem do IBGE e do IPP, pois o primeiro considera favela (aglomerado
subnormal na nomenclatura do Instituto) “conjunto constituído por no mínimo 51 unidades habitacionais;
ocupando ou tendo ocupado até período recente terreno de propriedade alheia (pública ou particular);
dispostas, em geral, de forma desordenada e densa; e carentes, em sua maioria, de serviços públicos
essenciais” (Araújo, 2006: 2). Já o segundo baseia-se em fotos de satélites para determinar o número de
favelas, e não determina a quantidade mínima de unidades habitacionais. Além disso, a contagem do IPP
é feita com maior freqüência que a do IBGE, que acontece, sobretudo, durante a realização do Censo (a
cada 10 anos em média).
3
taxa de crescimento da população carioca como um todo foi de 38%); entre 1980 e 1991
a população de favela cresceu 22% (e 8% para a população como um todo); e entre
1991 e 2000 a população das favelas cresceu 24% (e 7% para a população total da
cidade). Internamente, sabe-se que as favelas possuem grande heterogeneidade interna
(Machado da Silva, 1967; Preteceille e Valladares, 2000; Viana, 2008): as favelas não
são local de moradia da maioria dos pobres da cidade, e nem todos que habitam em
favelas são pobres. Segundo Viana (2008) apenas 1/3 dos pobres cariocas vive em
favelas, e dos habitantes destas apenas 1/3 é considerada pobre, i.e., têm renda
domiciliar per capita mensal inferior a meio salário mínimo.
4
De início, vale notar que o termo criminalidade, tal como usado ao longo de toda a
matéria, é uma noção geral que reúne um variado leque de fenômenos distintos.
Entretanto, a simples lembrança de que a reportagem dedica toda uma seção ao
narcotráfico já permite perceber que esta atividade concreta fornece o núcleo central
daquela ideia. De fato, essa associação permeia toda a análise desenvolvida; nela,
‘criminalidade’ e ‘narcotráfico’ como que se definem mutuamente, até porque o
tráfico de drogas é concebido como o responsável pelo caráter orgânico da
criminalidade atual (Machado da Silva, 1995: 499).
5
O aumento da criminalidade, especialmente ligada ao tráfico de drogas, é
reconhecido pelos dados e sentido pela população em geral, e de acordo com Zaluar
(2004) está diretamente ligada à questão do crescimento e internacionalização do tráfico
de drogas. Para a autora não existe uma mudança qualitativa no perfil dos traficantes de
drogas, comparando os anos 1980 com o momento atual, pois em ambos os momentos
os líderes das quadrilhas eram homens jovens interessados tanto no comércio quanto no
poder que exerciam. O que teria mudado seria a forma como esses líderes seriam
escolhidos, e como o poder seria transferido em caso de prisão ou morte, pois no final
da década de 1980 essa decisão passou a ser tomada de fora da favela, e não mais por
bandidos locais. Assim, os traficantes selecionados para o posto de liderança não seriam
mais ligados à população local, o que para os moradores representou uma mudança de
traficantes criados na favela, e assim conhecidos, para outros que não teriam o mesmo
tipo de relação baseada no respeito pelos moradores (Zaluar, 2004: 358).
Machado da Silva (1995), por sua vez, afirma que a violência urbana não é
causada por um desvio da ordem institucional vigente – ou seja, em função de uma crise
de legitimidade do Estado –, nem um conflito entre grupos políticos que resultem em
6
uma transformação do sistema social. Para ele, a criminalidade atual tem as
características de uma nova sociabilidade, que não é nem contrária nem alternativa à
sociabilidade convencional, mas paralela. Assim, a criminalidade urbana não é
conseqüência da crise de legitimidade do Estado Brasileiro, e, portanto, deve ser
entendida a partir de outros pressupostos (Machado da Silva, 1995: 507). O autor
defende a separação analítica dessas duas formas paralelas e contíguas de sociabilidade
– a convencional e a que ele denominou ‘sociabilidade violenta’ (Machado da Silva
1995, 2002, 2004, 2008a). Na sociabilidade violenta o que orienta a ação do ator é a
força, e a única resistência do ambiente à ação desse ator é física; o ator sabe a força que
tem e a força que os outros atores envolvidos têm, e somente essa é a sua limitação. Não
existe, assim, “acordo, negociação, contrato ou outra referência comum compartilhada”
(Machado da Silva, 2004: 40). Toda a interação existente se resume à submissão do
mais fraco pelo mais forte, sem que a vontade e a subjetividade dos outros envolvidos
seja considerada5.
5
Neste sentido, não se trata de um tipo puro de dominação, como conceituou Weber, pois esta “costuma
apoiar-se internamente em bases jurídicas, nas quais se funda a sua legitimidade” (Weber, ano: 128,
grifos do autor), enquanto a submissão imposta pelos traficantes aos moradores de favela não precisa
basear-se na legitimidade já que está apoiada na força.
7
O conceito de que a violência que experimentamos nos dias atuais é diferente da
conhecida anteriormente encontra respaldo na análise proposta por Michel Wieviorka
(2006). Para esse autor, não é possível abordar a questão da violência hoje da mesma
forma que há vinte ou trinta anos atrás, pois o mundo transformou-se consideravelmente
nesse período de tempo. O fim da Guerra Fria, o declínio do movimento operário (que
nos países capitalistas centrais teve características diferentes das encontradas nos países
de capitalismo tardio), a globalização e o reconhecimento de identidades particulares
(que o autor define como “a era das vítimas”), apresentam novas condições onde a
violência aparece com um repertório diferente do que tinha antes dessas transformações.
Assim, as diferentes abordagens para a questão da violência – seja as que privilegiam
sua função como ‘válvula de escape’, as que consideram sua dimensão instrumental ou
as que valorizam as relações entre cultura e violência – não dão conta de dimensões
importantes da violência. Não explicam, por exemplo, a crueldade, a violência gratuita,
quando o ator não apenas destrói o outro, mas a si próprio também. Para Wieviorka,
essas novas dimensões só poderiam ser captadas por uma abordagem que reconhecesse
a lógica de ‘perda de sentido’ que caracteriza essas ações – que pode ser dar tanto como
déficit quanto como sobrecarga de sentido. Para tanto, o autor propõe o conceito de
Sujeito – enquanto a capacidade de cada ator de se construir, decidir sua vida e fazer
suas escolhas – para compreender esse fenômeno.
8
suas pesquisas, apesar de importantes diferenças no enfoque teórico e nos pressupostos
analíticos, todos os três autores demonstraram que os favelados possuíam os valores
modernos e urbanos que organizavam a sociedade brasileira, e que o estigma que
sofriam impedia que pudessem reivindicar sua participação na vida social do país.
9
dessa guerra. Sua força foi tanta que fez parte da agenda política dos candidatos à
prefeitura e ao governo do estado na época (Leite, 2000: 75).
O modo pelo qual o Estado reage ao tráfico de drogas nas favelas constitui um
exemplo atual (numa série de paralelos históricos) de repressão do ‘comportamento
aberrante’ da classe inferior e, logo, de repressão de segmentos expressivos de toda
uma classe (Leeds, 2003: 235).
10
não falar pelos traficantes que habitam suas localidades. A “limpeza moral” torna-se
condição para sua legitimidade enquanto representantes dos moradores ‘de bem’ das
favelas. Todavia, a contigüidade que vivenciam com os traficantes muitas vezes é
acionada por essas organizações supralocais quando sua entrada nas favelas é
necessária, como, por exemplo, nas situações em que a prefeitura confirma com as
associações de moradores a autorização para a realização de obras e serviços, exigindo
que a associação demande aos traficantes de drogas pela ‘autorização’ e eximindo-se
assim do contato com eles (Miranda e Magalhães, 2004). Assim, ao mesmo tempo em
que se exige o afastamento das lideranças em relação às quadrilhas de tráfico de drogas,
essa mediação é requisitada em diversos outros momentos, o que traz grandes
dificuldades para as associações – que são frequentemente identificadas como
coniventes e cúmplices dos traficantes.
11
lideranças comunitárias enfrentam o estigma de serem tratados como “cúmplices dos
traficantes ou como informantes da polícia” (Leeds 2003: 251). É fato que muitas
lideranças foram assassinadas ou tiveram que fugir de suas localidades por colocarem-
se contra os interesses dos grupos armados. Até as manifestações feitas contra a
violência policial são muitas vezes reprimidas, com o argumento de serem
manifestações de apoio aos traficantes. Como afirma Leeds (2003), o que seria
permitido dentro das regras do processo democrático (opor-se à violência exercida
contra os moradores) é uma dificuldade para as associações de moradores, o que
enfraquece sua atuação e ameaça o senso de coletividade dos moradores.
6
Ver Por dentro do Universo das ONGs. Revista Época, 11 de agosto de 2008.
7
Segundo dados do IBGE, e computados pela Revista Época, a distribuição das ongs é a seguinte: 24,8%
são Congregações Religiosas; 17,8% são entidades de Defesa de direitos (sendo metade associações
comunitárias, um terço são associações de moradores e 10% entidades de defesa de grupos específicos e
minorias); 17,4% são associações patronais e profissionais; 13,9% são entidades de Cultura e recreação;
11,6% são de Assistência Social; 5,9% Educação e pesquisa; 1,3% Saúde; 0,8% Meio ambiente e
proteção animal; 0,1% Habitação e 6,4% outras atividades.
12
mencionado acima. De qualquer forma, a pesquisa citada acima traz informações
importantes para estimar o tamanho deste setor. Segundo o IBGE, em 2005 elas eram
mais de 338 mil, e a cada dia 57 ONGs são criadas no país. De acordo com dados
citados pela Revista, essas organizações receberam em 2007 R$ 1.150 milhões – o que
representa uma duplicação dos investimentos sociais feitos no ano de 2001.
8
Refiro-me aqui ao Projeto Favela-Bairro, ao Plano de Aceleração do Crescimento para as Favelas, o
Programa Nacional de Segurança e Cidadania, entre outros. Tais políticas públicas serão abordadas com
mais profundidade no Capítulo II desta tese.
9
Ver, entre outros, Herschmann (2005), Souto (2003) e Cecchetto (2003).
13
participantes buscam não apenas dar visibilidade ao trabalho que realizam, mas também
comprovar – através da apresentação de si mesmos – que “nem todos os favelados são
bandidos”. Dessa forma, aproximam estratos sociais que se encontram afastados
geográfica e socialmente, e combatem a generalização, “palavra-chave da ‘cultura do
medo’” (Novaes, 2003: 153).
Laranjeiras Pereirão
14
No entanto, busquei ao longo do texto construir pontes entre o caso do Pereirão e
o do conjunto de favelas cariocas – ainda que ciente da heterogeneidade intra e entre
favelas característica desse fenômeno. Ainda que a partir de um “caso particular do
possível”, acredito que a reflexão sobre o Pereirão auxilie a refletir sobre as
complexidades que definem a situação das favelas no momento atual da história
brasileira e da relação entre a cidade e seus moradores, especialmente aqueles que
moram em territórios estigmatizados. Assim, esta tese está organizada em quatro
capítulos, além desta introdução e da conclusão.
15
universidades e instituições10, e financiada pela Faperj e pela Unesco. A pesquisa foi
feita entre os anos de 2005 e 2007, e recolheu relatos de 150 moradores de 45 favelas
cariocas através da realização de 15 grupos focais. Tais grupos focais foram
organizados de forma a permitir que os moradores de favelas sentissem-se seguros para
relatar os tipos de coerção pelas quais passam diuturnamente. Dessa forma, eles foram
reunidos em ambientes fora das favelas, em salas alugadas que permitem a gravação das
conversas (aceita pelos participantes). Além disso, todos os participantes convidados
possuíam contanto pessoais anteriores com pesquisadores ligados ao grupo, de forma a
construir um ambiente de confiança onde pudessem abordar temas sobre os quais os
moradores de favela se sentem impossibilitados de falar, por medo de retaliações.
Assim, esses grupos focais foram nomeados “coletivos de confiança”. Outra fonte de
material empírico para a pesquisa foi o trabalho de campo realizado em três favelas
cariocas: uma considerada “tranquila” (sem tráfico de drogas ostensivo nem grandes
operações policiais), outra violenta e uma terceira onde há a presença de grupos de
milícia11. O resultado dessa pesquisa foi publicado no livro “Vida sob cerco: violência e
rotina nas favelas do Rio de Janeiro” (Machado da Silva, 2008c).
10
São elas: Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (Iuperj); Instituto Brasileiro de Análises
Sociais e Econômicas (Ibase); Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj); Universidade Federal
Fluminense (UFF); e Universidade do Norte-Fluminense (Uenf).
11
Sobre os campos feitos em outras favelas ver Machado da Silva (org.), 2008; Mesquita, 2008.
16
de campo garanti aos entrevistados o anonimato de seus depoimentos, mas, como
sempre cogitei mencionar o nome da favela, todos os informantes foram informados
dessa possibilidade. Estou ciente que tal escolha pressupõe certos riscos, e informações
foram retiradas do texto para proteger alguns entrevistados. Mas como toda escolha,
esta também oferece perdas e ganhos, e nessa intricada aritmética achei que o trabalho
ganharia mais em densidade e em riqueza de informações com a divulgação do nome.
17
representação do tráfico de drogas “a partir do ponto de vista do nativo”, tentando
seguir as recomendações de Geertz (1983):
To grasp concepts that, for another people, are experience-near, and to do so well
enough to place them in illuminating connection with experience-distant concepts
theorists have fashioned to capture the general features of social life, is clearly a task
at least as delicate, if a bit less magical, as putting oneself into someone else's skin.
The trick is not to get yourself into some inner correspondence of spirit with your
informants. Preferring, like the rest of us, to call their souls their own, they are not
going to be altogether keen about such an effort anyhow. The trick is to figure out
what the devil they think they are up to (Geertz, 1983: 58).
Buscando entender “o que diabos eles pensam que estão fazendo”, tentei
contrastar teorias “nativas” com outras explicações – do senso comum e da teoria. Para
tanto, segui as pistas apresentadas por Peirano (1992):
Ou ainda:
18
de inspiração etnográfica como parte do levantamento de dados empíricos para a
pesquisa, que visava descrever e analisar os relatos de moradores de favela sobre
práticas violentas e como eles compreendiam e vivenciam o fenômeno coletivamente
identificado como “violência urbana”. Assim, minha tarefa no Pereirão era observar a
rotina dos moradores e como eles lidavam com as situações de tensão e conflito geradas
pela atuação dos traficantes e/ou da polícia. Porém, em função da peculiaridade do
Pereirão – ser uma favela “tranquila”, sem confrontos entre traficantes e entre esses e os
policiais – meu olhar foi direcionado para compreender a dinâmica dessa
“tranquilidade”, e também seus limites. Pois somente depois de decorrido algum tempo
de minha presença na favela as pessoas passaram a falar a respeito do tráfico de drogas.
Tais relatos se deram em contextos de conversas informais, referida às atividades
rotineiras (conversas de vizinhos nos portões, almoços, passeios etc.) fruto de minha
convivência com aquelas pessoas. Quando a pergunta sobre o tráfico de drogas era feita
de forma direta, mesmo com o gravador desligado, as pessoas não respondiam, ou então
repetiam o mesmo argumento do “lugar tranquilo”12. Por causa disto, o gravador foi
aposentado após a primeira semana de trabalho de campo, só sendo utilizado em
algumas poucas entrevistas (especificamente em quatro delas, com participantes da
associação de moradores e da ONG). Assim, os materiais empíricos sobre os quais se
assenta a minha análise são, sobretudo, anotações de observações feitas em campo e
relatos de conversas informais com os moradores.
12
Já é possível adiantar, por essa informação, que apesar da “tranquilidade” propagada os moradores do
Pereirão possuem a palavra cerceada (Machado da Silva, 2008) de forma bastante similar aos outros
moradores de favelas; dimensão que será discutida detalhadamente mais à frente.
13
Nome fictício.
19
presença dos moradores ao meu lado parecia uma gentileza, ainda que evidenciasse
minha posição de visitante na favela. Além de guia, Antônio se tornou também meu
principal informante, e um dos poucos moradores a me conceder entrevistas gravadas14.
No começo do trabalho de campo não só ele me escoltava como me ajudou a recrutar os
primeiros entrevistados, me acompanhando nas entrevistas (ainda que em muitas delas
permanecesse fora das casas, “para me dar mais liberdade”, segundo ele). Ainda que a
possibilidade de ter Antônio escolhendo meus entrevistados não fosse muito sedutora,
não recusei sua ajuda, e por causa dele comecei a construir minha rede de informantes.
Como para ele eu deveria estar escrevendo a “história” do morro, no começo conversei
com muitos moradores idosos; mas com o tempo minha rede de contatos passou a
incluir também moradores de outras faixas etárias.
Após um mês de trabalho fui convidada por Antônio para participar de uma
reunião na casa de uma moradora da rua que leva à favela (no “asfalto”), a respeito de
um vídeo que ela gostaria de fazer sobre a história da favela. Nessa reunião fui
convidada (e de certa forma convocada) pelo presidente a ajudar na realização do vídeo
entrevistando os moradores e, apesar da minha recusa inicial por receio de que minha
ligação com um vídeo sobre a história da favela pudesse prejudicar meu trabalho na
localidade, aceitei o convite/convocação. Durante dois meses, junto com uma equipe de
vídeo formada por participantes de uma ONG sediada em outra favela, além de alguns
membros da ONG local15, realizei dezenas de entrevistas com moradores idosos. Essa
experiência foi útil não só para me aproximar do presidente da associação, como para
propiciar meu contato com os jovens moradores participantes da ONG. Em função
dessa dupla entrada – pela pesquisa e pelo vídeo – entrevistei muitos moradores antigos
e suas famílias. As entrevistas seguiam um roteiro parecido: era só perguntar sobre o
passado na favela que as lembranças se repetiam. Árvores cheias de fruta, bosques,
passeios sem preocupação, sem luz nas ruas e nas casas, histórias de fantasmas de
escravos mortos ali na senzala, de lobisomem e mula-sem-cabeça... Diziam-me: “era
como uma fazenda”. As lembranças também se referiam à união entre os moradores, ao
sentimento de comunidade em sua acepção mais clássica16 - local da proximidade e do
afeto. Este sentimento de comunidade era reforçado pelos elogios feitos frequentemente
14
O material sobre Antônio e a associação de moradores foi analisado no capítulo 2 desta tese.
15
A iniciativa foi analisada no capítulo III desta tese.
16
Refiro-me às concepções de Tonnies (1957), onde a comunidade se manifesta através das relações de
afeto, do hábito e da memória.
20
à localidade, ao prazer de habitar ali, aos convites para que eu me mudasse também para
o Pereirão.
17
É importante destacar que a construção analítica expressa no conceito de “ajustamento” aqui utilizado
não comporta um julgamento ou avaliação moral: como ressaltam Boltanski e Thevenot (1991: 50 e
seguintes) tal ajustamento pode estar orientado para o sentido de justiça (algo ser justo ou injusto) ou para
o sentido de justesse, que significaria bom (ou mal) funcionamento, seja de coisas ou de pessoas. É neste
segundo sentido que utilizo o termo “ajustamento”, ou seja, a maior ou menor “adequação” dessas
organizações ao enquadramento atual do tema das favelas. O conceito recupera também a idéia weberiana
de ação racional com fins a um objetivo (Weber, 2004): seriam “ajustadas” as ações que conseguem
chegar com maior eficácia aos objetivos determinados, e são “desajustadas” as ações que não alcançam os
fins desejados. A dimensão da justiça, ou seja, se este enquadramento é justo ou injusto, não está contida
na análise aqui feita.
21
mais geral de enquadramento do “problema da favela” e da nova sociabilidade que nelas
aparece. Espero ter feito jus ao Pereirão, a seus moradores e à complexidade de suas
experiências.
22
I. Uma favela onde “reina a paz”.
Fonte: www.favelinha.com
Em janeiro de 1999 uma pequena favela da Zona Sul do Rio de Janeiro foi
visitada pela Vice-Governadora do Estado, pelo subsecretário de Segurança e por
diversos políticos e oficiais da Polícia Militar. Naquele dia era inaugurada uma das
iniciativas-piloto nomeadas “Mutirão Pela Paz”18, projeto da Secretaria Estadual de
Segurança que pretendia fazer uma “ocupação social” da favela, em oposição às
“ocupações” policiais. Da “ocupação social” não participariam apenas policiais, mas
18
O Projeto “Mutirão Pela Paz” será mais bem delineado à frente.
23
também serviços públicos, como acesso à documentação, provisão de carteiras de
trabalho e defensoria pública, além de projetos sociais. A escolha do Morro do Pereirão
como palco dessa intervenção se deu em um contexto particular, onde eventos ligados
ao combate ao tráfico de drogas na cidade tiveram grande repercussão pela proximidade
da favela com importantes vias e prédios públicos, além de sua localização em um
bairro tradicional de classe média. Dessa forma, o local foi escolhido como modelo de
um novo padrão de intervenção preconizado pelo governo do estado. Porém essa não foi
a única ação executada no local; além do “Mutirão pela Paz”, em 2000 a sede do
Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE) da Polícia Militar do Estado do Rio
de Janeiro foi transferida para uma rua perto da entrada da favela19. Em função desses
eventos essa favela tem estado “em paz”, sem conflitos entre grupos de traficantes ou
entre estes e a polícia20. De acordo com os moradores o Pereirão é desde então um lugar
“tranquilo” para se morar. Vale ressaltar que tanto “tranquilo” quanto “em paz” são
termos nativos, i.e., utilizados pelos próprios moradores, fazendo parte do repertório
utilizado por eles para descrever seu local de moradia, seu cotidiano. Por isso elas se
encontram entre aspas, o mesmo valendo para o termo “comunidade”.
19
O BOPE é responsável, entre outras ações especiais, pelas operações realizadas em favelas. O tema será
mais aprofundado à frente, neste capítulo.
20
Ao longo do trabalho de campo ocorreu um conflito, que será descrito mais à frente. No entanto,
mesmo após esse evento o Pereirão ainda é considerado uma favela “em paz”.
24
É a partir da memória dessa época, de comunidade pequena e tradicional, que os
moradores entrevistados começam a analisar o presente do Pereirão. A avaliação tem
sempre como contraponto esse passado idílico e bucólico, e a oposição é estabelecida
em relação à situação de incerteza atual sobre o futuro da localidade. Apesar de serem
bastante positivos na avaliação sobre a favela, particularmente no que diz respeito à
“paz” hoje vivenciada, muitos dos moradores entrevistados demonstraram preocupação
com a manutenção dessa situação, ou seja, o possível retrocesso à situação de constante
conflito. Para compreender como a favela chegou à situação de “paz” e quais as
ameaças identificadas pelos moradores, discuto na seção a seguir os discursos dos
moradores sobre sua localidade.
25
terrenos, um deles doado aos moradores por freiras do colégio católico vizinho à favela.
Um dos moradores entrevistados, de 75 anos, afirmou ter nascido já no Pereirão, mas a
maioria dos moradores mais antigos teria ali chegado na década de 1960. O terreno no
lado esquerdo é ocupado há muitos anos por uma grande casa no estilo palacete, que
pertenceria a um duque. Antigamente era possível entrar no bosque localizado na
propriedade, pois não havia então o muro que separa os dois terrenos, e os moradores
mais antigos ali passeavam, brincavam, colhiam frutas, etc. A favela dessa época foi
descrita por alguns como uma chácara, ou uma fazenda; para outros se assemelhava a
um pomar, pela quantidade de árvores frutíferas. De qualquer forma, as palavras
selecionadas faziam referência a uma vida rural, de cidade pequena ou de roça,
inclusive porque eram poucas as famílias que ocupavam o território, o que permitia um
espaçamento entre as casas, além de fortalecer os laços de vizinhança entre os
moradores. Os moradores mais antigos também fazem referência às condições de vida
nessa época, descrevendo os melhoramentos feitos na localidade desde então:
mencionam que antigamente não havia iluminação nem calçamento, citam uma grande
enchente no ano de 1966 onde muitos ficaram desabrigados, mas alguns lamentam que
as melhores condições de vida atualmente sejam acompanhadas da expansão da favela e
da diminuição da vegetação local. Para os mais jovens, que fazem pouca referência a
esse passado do Pereirão, os laços de vizinhança são frequentemente mencionados
durante a descrição da favela do passado, onde todos se conheciam e as crianças
chamavam os vizinhos de “tio” e “tia”. Também são feitas referências ao fato de muitos
serem “nascidos e criados” na favela. Assim, nas diferentes gerações entrevistadas, o
passado do Pereirão é a sua constituição enquanto “comunidade”, de parentes, de
vizinhos, de conhecidos por muitos anos.
Esse passado quase rural é contrastado com o período mais recente, nos anos
1990, quando a favela era um dos pontos de drogas mais frequentados da Zona Sul do
Rio de Janeiro. Segundo os moradores entrevistados, o chefe do tráfico no local,
conhecido como Português, realizava nos fins de semana bailes funk com três mil
participantes (contingente maior que o de moradores da favela), e as filas para compra
de drogas saíam da quadra de esportes na entrada do morro (onde se localizava a
associação de moradores21) e desciam pela Rua Pereira da Silva. Devido a sua
21
Atualmente o local é ocupado por algumas casas e um bar, onde no final de semana acontecem bailes
de forró e pagode, alternadamente.
26
localização estratégica e à possibilidade de posicionar a boca de fumo tão perto da
entrada da favela e, portanto, do “asfalto”, é possível estimar a importância do Pereirão
na venda de drogas na cidade, naquele momento. Essa época é bastante lembrada
também pelos constantes conflitos entre os traficantes locais e a polícia, que aconteciam
de manhã e no final da tarde, horário de entrada e saída dos moradores e principalmente
de crianças em idade escolar. Foi nessa época, entre 1994 e 1998, que a favela ficou
famosa nos jornais pela violência dos conflitos, que culminaram com o assassinato da
liderança local do tráfico no final de 1998. É a partir desse evento que a história do
Pereirão começa a mudar.
1.2 O “Mutirão pela Paz” e vizinhança com o BOPE: de uma favela violenta a uma
favela “tranquila”.
No final ano de 1998 a favela do Pereirão esteve na capa dos jornais, quando
traficantes do bairro ordenaram o fechamento de estabelecimentos comerciais na rua
principal do bairro, durante um domingo, como represália à execução do chefe do
tráfico local por policiais. De acordo com denúncias de moradores, ele teria sido
assassinado por policiais corruptos, que receberiam subornos mensais para permitirem a
venda de drogas na favela e não achacarem nem agredirem os moradores da favela. Ele
teria acusado os policiais de não cumprirem o acordo, e por causa disso teria sido
executado junto com um comparsa e um morador sem envolvimento com o tráfico, mas
que teria dado carona aos dois bandidos. Tal fato teria acontecido durante o dia, na
esquina de ruas movimentadas do bairro próximas à favela, e na frente de diversos
moradores. Os relatos recolhidos diferem um pouco, mas todos afirmam que o traficante
foi executado pelos policiais num ajuste de contas entre cúmplices. Essa é a versão
apresentada também por Luis Eduardo Soares (2000), um dos principais atores no
enredo que se desenrolou a partir desse evento. Segundo ele, a repercussão nos jornais à
época retratava o clima de conflagração social que permeava a cidade, e evidenciava o
distanciamento entre os moradores do morro e do “asfalto”:
27
No dia 27 de dezembro, domingo, os traficantes que dominavam os morros do
bairro mandaram recados aos comerciantes, donos de restaurantes, padarias e
lanchonetes, para que fechassem as portas. Quem desrespeitasse as ordens arcaria
com as conseqüências. Apesar do prejuízo e da revolta, todos obedeceram,
indignados. O coronel Noaldo desdenhou: “Foram funcionários que avisaram os
patrões sobre tais ameaças. Tem gente que não quer trabalhar, principalmente num
domingo” (O Dia, 29 de Dezembro). Ao JB, declarou: “Foi coisa de empregado
querendo descansar no domingo” (...).(Soares, 2000: 67).
[Sobre as denúncias feitas pela família do morador assassinado, de que ele não teria
envolvimento com o tráfico] De seu gabinete, o coronel secretário prestou a seguinte
declaração à imprensa: “Menos um seqüestrador no Rio. Foi um presente de Natal
para muita gente” (JB, 29 de dezembro, 1998). (Soares, 2000: 68).
O “Mutirão pela Paz” era um dos pilares da nova política de segurança pública
implementada por Anthony Garotinho e sua equipe, junto com a modernização das
delegacias, treinamento e aumento da força policial e combate à corrupção policial.
Anthony Garotinho foi eleito em 1998, em uma campanha na qual a questão da
segurança pública teve papel muito importante. Sua plataforma para a Segurança
Pública estava fundamentada nas sugestões de um grupo de pesquisadores liderados
pelo antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares22, que posteriormente assumiu
posições executivas na Secretaria de Segurança, especificamente na Subsecretaria de
Pesquisa e Cidadania. As indicações dos pesquisadores, reunidas em livro
(Criminalidade e violência no estado do Rio de Janeiro, publicado pela Editora Hamas
22
Entre 1999 e 2000 Luiz Eduardo Soares foi Sub-Secretário de Pesquisa e Cidadania da Secretaria de
Segurança. Além dele faziam parte da publicação Bárbara Musumeci Soares, João Trajano Sento-Sé,
Leonarda Musumeci, Silvia Ramos e Antonio Carlos Carballo Blanco. Alguns desses pesquisadores o
acompanharam na Subsecretaria. Para maiores informações ver Soares (2000).
28
em 1998), tinham por princípio que era possível e necessário executar uma política de
segurança que conjugasse eficiência policial e respeito aos direitos humanos,
contrapondo-se às políticas anteriores do governo do estado, quando os índices de
criminalidade eram bastante altos e eram acompanhados de muitas denúncias de
violência e corrupção policial.
Além da favela em questão, outras foram foco de atuação similar por parte do
governo. Segundo Luiz Eduardo Soares, seu idealizador:
29
No entanto essa proposta teve vida curta no governo. Em 17 de março de 2000 o
governador demitiu Luiz Eduardo Soares, após este ter denunciado ao Ministério
Público a existência de um grupo de policiais corruptos e criminosos (a ”banda podre”,
como ficaram conhecidos) na cúpula da Secretaria de Segurança. Segundo Luiz
Eduardo Soares (2000), o projeto “Mutirão pela Paz” nunca alcançou a dimensão
esperada, derrotado por dificuldades de diferentes tipos. Por um lado, o programa
enfrentou dificuldades relacionadas à gestão da administração pública, já que sua
execução dependia do trabalho coordenado de diversas secretarias e autarquias
estaduais, como as Secretarias de Trabalho, Educação, Saúde, Justiça, Meio Ambiente,
Ação Social, Esporte e Lazer, além da Defensoria Pública, do Detran – que forneceria
as carteiras de identidade para os atendidos, da FAETEC (Fundação de Amparo às
Escolas Técnicas) e dos CCDCS (Centros Comunitários de Defesa da Cidadania) – que
ofereceriam cursos para os moradores das localidades atendidas. Por outro lado, o
“Mutirão pela Paz” se baseava em propostas que nunca foram consensuais dentro da
Secretaria de Segurança Pública e do próprio governo, e que acabaram sendo
descartadas junto com seu idealizador23.
23
Para maiores informações sobre os bastidores da gestão de Soares na Secretaria de Segurança ver
Soares, 2000.
24
Projeto da Secretaria Municipal de Habitação, era uma versão do Programa Favela-Bairro, de
urbanização de favelas, para favelas de pequeno porte. Política executada durante o governo do Prefeito
César Maia (1993-1997 e 2001-2008).
25
O Programa “Jovens Pela Paz” foi criado em 2000 pelo Governo do Estado como parte das políticas
públicas para combate à violência, e oferecia atividades de cultura e esportes a moradores de “áreas de
risco”. Os jovens participantes eram capacitados como instrutores e agentes sociais, atuavam nas suas
localidades de moradia e recebiam uma bolsa-auxílio. Atendeu até o ano de 2006 cerca de dez mil jovens
de 400 localidades populares no estado do Rio de Janeiro, com idades entre 16 e 24 anos. (FOLHA ON-
LINE, 2006). No começo do governo de Sérgio Cabral (2007) o programa foi cancelado.
30
impacto na vida dos moradores, tanto que eles consideram essa proximidade como um
dos motivos para a “tranquilidade” local.
31
dos Ossos Secos, na Rua Campo Belo, Laranjeiras”28. A origem dos nomes Palácio da
Caveira e Vale dos Ossos Secos não está explicada no site, mas o nome do palácio faz
menção ao símbolo do Batalhão que, de acordo com o site, representa a vitória sobre a
morte. “Vale dos Ossos Secos” é uma referência bíblica. Em uma de suas passagens,
Ezequiel é levado pelo Senhor para pregar em um vale repleto de ossos ressequidos, e
durante a pregação os ossos se transformam em um exército numeroso de homens. Em
seguida, Ezequiel os enche com o sopro do Espírito Santo, dando-lhes vida29. A
passagem representaria a capacidade de superação pela fé de todas as dificuldades, até
mesmo da morte.
28
Fonte: http://www.boperj.org/
29
“Veio sobre mim a mão do Senhor; ele me levou pelo Espírito do Senhor e me deixou no meio de um
vale que estava cheio de ossos e me fez andar ao redor deles; eram mui numerosos na superfície do vale e
estavam sequíssimos. Então, me perguntou: Filho do homem, acaso, poderão reviver estes ossos?
Respondi: Senhor Deus, tu o sabes. Disse-me ele: Profetiza a estes ossos e dize-lhes: Ossos secos, ouvi a
palavra do Senhor. Assim diz o Senhor Deus a estes ossos: Eis que farei entrar o espírito em vós, e
vivereis. Porei tendões sobre vós, farei crescer carne sobre vós, sobre vós estenderei pele e porei em vós o
espírito, e vivereis. E sabereis que eu sou o Senhor. Então, profetizei segundo me fora ordenado;
enquanto eu profetizava, houve um ruído, um barulho de ossos que batiam contra ossos e se ajuntavam,
cada osso ao seu osso. Olhei, e eis que havia tendões sobre eles, e cresceram as carnes, e se estendeu a
pele sobre eles; mas não havia neles o espírito. Então, ele me disse: Profetiza ao espírito, profetiza, ó filho
do homem, e dize-lhe: Assim diz o Senhor Deus: Vem dos quatro ventos, ó espírito, e assopra sobre estes
mortos, para que vivam. Profetizei como ele me ordenara, e o espírito entrou neles, e viveram e se
puseram em pé, um exército sobremodo numeroso” (Ezequiel 37:1-10).
30
Relato da reunião à autora por uma militante de organização em prol dos Direitos Humanos.
32
policial31, como o já citado antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares. Ele
propôs acionar o BOPE em momentos de crise em questões de Segurança Pública por
confiar em sua formação técnica de elite:
31
Ainda que a opinião sobre a atuação do BOPE possa ter mudado durante a última década,
especialmente após denúncias de excesso no uso da força em diversos casos, não encontrei análises
recentes de pesquisadores na área que identifiquem tal processo de transformação.
33
também chamadas de “polícia mineira” ou “mão-branca”32, que cobrariam
‘mensalidades’ pelo ‘serviço de segurança’ prestados, mas que no último ano foram
denunciados como controlando através da força todos os serviços e comércio existente
nas favelas que controlam33. Nesses casos, os agentes da segurança são identificados
como moradores da localidade e como agentes estatais, que atuariam à margem da lei
por considerarem os aparatos estatais de segurança limitados, ou pouco eficazes.
Apesar das diferenças, o caso do Pereirão tem semelhanças com os das favelas
controladas por milícias no que diz respeito à ausência de conflitos armados e ao
enfraquecimento do tráfico de drogas local. Nesse sentido, ao afirmar que a favela é
“tranquila” os moradores entrevistados fazem referência a esses aspectos da vida
cotidiana na localidade. A rotina do Pereirão e as estratégias dos moradores para a
manutenção dessa “tranquilidade” são descritas e analisadas na próxima seção.
32
Referência ao apelido de um “justiceiro” ligado a grupos de extermínio localizados na Baixada
Fluminense, periferia do Estado do Rio de Janeiro. Sua existência é até hoje objeto de discussão entre
pesquisadores.
33
De acordo com o Gabinete Militar da Prefeitura do Rio de Janeiro existiriam 92 favelas “dominadas”
pelas milícias no Rio de Janeiro (O Globo, 10/12/2006), número que pode ter aumentado desde então.
Estes grupos têm ocupado diversas favelas cariocas, entrando em confronto com traficantes e instalando
uma nova forma de submissão para os moradores dessas localidades. Para maiores informações sobre essa
modalidade ilegal de controle territorial, cfr. Mesquita, 2008; Cano e Ioot, 2008.
34
1.3 “Em paz”: rotina e tensões.
Na nossa comunidade tem paz, não tem traficante dando tiro, como antigamente.
Mas hoje a minha comunidade não tem tráfico, só tem usuário. E os moradores saem
de lá para usar droga em outra. Então lá a paz reinou. Então os evangélicos falam:
Graças a Deus, Ele olhou para cá. Mas olhou para tirar as armas, tirou o traficante
(...). O BOPE é do lado. Então ele tirou o traficante.
34
Segundo os moradores, a favela é utilizada como campo de treinamento pelos policiais do BOPE, o que
foi apresentado como motivo de orgulho pelos moradores, como uma distinção em relação às outras
favelas, que são alvos de ações policiais. Apesar de esses treinamentos serem descritos como algo
rotineiro, durante a realização do trabalho de campo eles não aconteceram.
35
A metodologia e o uso do material recolhido estão apresentadas na Introdução desta tese.
35
constatação: “não é igual às outras favelas não, Graças a Deus!”. No entanto, os
moradores sempre alertavam que a situação de excepcionalidade podia estar sendo
ameaçada, e a maior ameaça seria o crescimento da favela e a chegada de novos
moradores.
36
eles mesmos e com os seus (parentes, conterrâneos, os que professam a mesma religião,
etc.). As explicações apresentadas para tal comportamento dos novos moradores,
considerado como anticomunitário, vão desde acusações sobre origem e religião dos
recém-chegados (que em geral são identificados como “paraíbas36“ e/ou “crentes37”) a
que eles possuiriam um código de conduta diferente da experimentada no Pereirão em
função de suas vivências anteriores em outras favelas. Ainda que as acusações feitas
sejam de dimensões diferentes, o que está sendo questionado é o não pertencimento
prévio àquela “comunidade”. Nesse sentido, entendo que a categoria acionada nesse
momento pelos moradores antigos faz referência ao conceito de Park sobre “regiões
morais”, proposto para se aplicar a locais “onde prevaleça um código moral divergente,
por uma região em que as pessoas que a habitam são dominadas, de uma maneira que as
pessoas normalmente não o são, por um gosto, por uma paixão, ou por algum interesse
que tem suas raízes diretamente na natureza original do indivíduo” (Park, 1987: 66).
Dessa forma, os moradores antigos afirmam compartilhar, todos eles, de uma mesma
moral que não é a mesma dos moradores de outras localidades, particularmente de
outras favelas, ou de outras origens sociais. Ainda que o conceito proposto por Park
possa ser usado como uma reafirmação do estigma recorrente sobre os favelados (que
escolheriam uma moral divergente e oposta àquela da institucionalidade legal
burguesa), no caso do Pereirão ele permite articular o conceito de “região moral” com o
de comunidade, para falar de um coletivo reunido em um território específico e que
possui uma moralidade própria.
36
Paraíba é uma categoria de acusação muito utilizada no Rio de Janeiro para identificar e estigmatizar
migrantes do Nordeste.
37
Termo utilizado para fazer referência aos protestantes pentecostais e neopentecostais, que também são
conhecidos como evangélicos.
37
década de 196038. Ainda que os perfis utilizados na diferenciação entre moradores
antigos e recém-chegados não sejam comprováveis censitariamente, as categorias de
acusação são eficientes porque ressaltam o que seria a grande diferença entre os dois
grupos: enquanto os moradores antigos pertencem à “comunidade” do Pereirão, os
recém-chegados pertencem a outras “comunidades” – seja a comunidade de fiéis
evangélicos, seja a comunidade de conterrâneos da mesma cidade ou região – e assim
devotam sua fidelidade não a seus vizinhos, mas a outros pertencimentos.
Não foi possível explorar com maior profundidade a oposição estabelecida entre
os moradores “antigos” e os “recém-chegados”, mesmo porque o objetivo da pesquisa
não era investigar configurações de relação entre moradores, no estilo “estabelecidos e
outsiders” (Elias e Scotson, [1994] 2000). Além disso, a rede de contatos e informantes
que construí era formada privilegiadamente por moradores considerados “antigos”, ou
então “recém-chegados” aceitos pelos antigos. Foram essas as pessoas apresentadas a
mim por Antônio e Cristina, que por seu pertencimento anterior à favela seriam
representantes do grupo dos moradores antigos. Enquanto o primeiro nasceu no
Pereirão, a segunda teria se mudado para lá há muito tempo, “há apenas 24 anos”, como
ela me disse, e ali criou todos os seus quatro filhos. No entanto, apesar de não dispor de
informações mais detalhadas sobre essa configuração social, acredito ter recolhido
diversos depoimentos onde a identificação dos “recém-chegados” como ameaçadores à
“tranquilidade” local é bem clara, como veremos a seguir.
38
Em seu clássico estudo sobre moradores de favelas nesse período, Perlman relata que, entre seus 600
entrevistados, mais de 80% eram migrantes, mas vinham em igual proporção dos estados do Nordeste,
Minas Gerais, Espírito Santo e do interior do Estado do Rio de Janeiro (Perlman, [1977] 2002: 94).
38
Em outro momento, quando da organização de uma festa junina, Antônio e
Cristina estavam bastante descrentes da possibilidade de organizar um evento que
contasse com a participação dos moradores. Segundo eles, tal iniciativa causaria muitos
problemas, visto que nem todos estavam imbuídos do espírito de cooperação. Para
Cristina, a possibilidade de fazer a festa era “uma dor de cabeça”, e até o sorteio dos
moradores que poderiam montar barracas na festa para vender comida e bebida seria
motivo para discussão. Ela me explicou que durante muitos anos tinha organizado festas
coletivas na localidade, como churrascos e almoços, mas que tinha desistido nos últimos
anos porque muitos moradores não queriam ajudar, mas simplesmente aproveitar a festa
organizada e financiada por alguns. Por isso, recentemente, só organizava festas com
duas vizinhas com quem tinha maiores laços de amizade, e fazia festas privativas para
afastar os vizinhos “bicões”. Em função do clima pouco favorável a festa junina acabou
não acontecendo, como já não tinha sido feita no ano anterior.
Por fim, presenciei um caso que pode não ser ordinário, mas ilustra bem o meu
argumento: como acontece em outras favelas, o Pereirão foi usado como cenário para
uma pequena filmagem que pretendia utilizar a imagem da favela, que ali ainda conta
com a bela paisagem de fundo da Baía da Guanabara e do Pão de Açúcar. Além disso, a
ONG localizada na favela (Cf. Capítulo III) é também uma produtora de vídeo onde,
junto com os diretores, os jovens moradores trabalham na equipe técnica e fazem a
produção e direção dos filmes. Nesse dia a gravação era para um vídeo institucional de
uma empresa de lâmpadas, e fazia parte de um projeto de “responsabilidade social39” da
mesma – por isso a imagem retratada da favela era positiva, e alguns moradores
estavam bastante animados com a iniciativa, particularmente os participantes do projeto
e Antônio. O vídeo estava sendo gravado na laje de uma casa, onde estava localizada
toda a equipe. Alguns moradores assistiam à movimentação de um caminho superior,
inclusive eu e Antônio, protegidos por um corrimão gradeado que dava ao local “ares”
de camarote. Dessa gravação participavam jovens de outros projetos sociais, como
jovens negras que desfilavam roupas confeccionadas por de cooperativas de costura,
jovens músicos tocando instrumentos de música clássica, etc. Uma das partes mais
39
Responsabilidade Social é um termo utilizado pelas empresas e por ONGs para denominar a
preocupação de empresários com questões coletivas, como o meio-ambiente e a pobreza, e identificar
campos de atuação para as organizações ligadas ao desenvolvimento social e ambiental. Assim, empresas
que possuem “responsabilidade social” investem em ONGs, para que essas desenvolvam ações junto às
áreas consideradas importantes pelas empresas. No entanto, o conceito é polissêmico, como
demonstraram Cappellin et alli (2001).
39
complexas do vídeo era a mensagem da empresa para seus funcionários, dita por um dos
jovens integrantes do projeto localizado no Pereirão, em cima de uma grua e com a
cidade ao fundo, já com as luzes sendo acesas por causa do pôr-do-sol. A gravação não
podia atrasar porque os produtores desejavam realçar o cenário iluminado, para fazer
referência às lâmpadas produzidas na empresa.
fonte: www.favelinha.com
40
morador resistente não saiu de casa para religar seu relógio, e a gravação continuou sem
maiores percalços. Ao comentar comigo o episódio Antônio deu o diagnóstico completo
do morador “inconveniente”: era um recém-chegado evangélico – “deu para perceber
pela música de crente que ele estava escutando, né?” – e não percebia como, com sua
ação, estava prejudicando “a comunidade” como um todo, em um momento importante
em que era preciso apoiar a iniciativa dos jovens moradores. Ou seja, que não
compartilhava dos laços de solidariedade e vizinhança que faziam daquele local uma
“comunidade”.
41
turistas estrangeiros tentaram pagar a hospedagem com remédios e roupas usadas, como
se os moradores da favela fossem sujeito de caridade, no que foram devidamente
repreendidos por ela, mas afirmou também que a maioria dos hóspedes se “apaixona”
pelo local, chegando até a dormir na varanda da pousada por acreditarem estar “em
segurança”. Relatou suas dificuldades para legalizar o empreendimento, normalizar a
conta de luz junto à companhia de eletricidade, entre outros. Por fim, se colocou como
objeto do estigma dos não-moradores de favela, ao relatar o interesse de jornalistas em
fazer matérias que privilegiavam o aspecto espetacular da pousada, e que tentavam
40
representá-la como localizada em um lugar “cercado por traficantes” . Apesar de
existirem outras favelas com pousadas no Rio de Janeiro, segundo a proprietária a sua é
mais visada para essas matérias sensacionalistas porque “ninguém” (i.e., traficantes)
impede a entrada de jornalistas, como em outras localidades.
Mas nem todos os novos moradores são vistos da mesma forma. Existem aqueles
que chegaram recentemente e que foram aceitos pelos de dentro, como o casal que me
foi apresentado como “moradores recém-chegados”, mas que sabiam reconhecer o
privilégio de morar em uma favela “diferente das outras”. Habitando há sete anos o
Pereirão, o casal era formado por dois senhores, ela migrante do Nordeste (descrita pelo
marido como “paraíba”) e ele de Minas Gerais. Eles moravam anteriormente em Rocha
Miranda, bairro do subúrbio carioca, mas se mudaram para lá porque o terreno onde
moravam estava sendo cogitado para desapropriação pelo governo, em função da
construção de equipamentos esportivos para os Jogos Pan-Americanos de 2007.
Segundo o casal, eles já moraram em vários lugares, mas ficaram seduzidos pela
combinação entre montanha e mar existente no local. Além disso, a irmã da esposa já
morava no local, o que facilitou a compra da casa (onde investiram R$ 10 mil, além do
mesmo valor para reformá-la). Após a conversa os dois me mostraram a casa, reformada
de forma a permitir que do segundo andar se abrisse um terraço para aproveitar melhor
a vista da Baía da Guanabara. É possível imaginar que o fato de serem parentes de uma
moradora da favela pode ter facilitado sua aceitação pela “comunidade”, assim como o
fato de terem vindo de um bairro pobre do Rio de Janeiro, e não de outra favela.
Assim, o Morro do Pereirão é apresentado por seus moradores como uma favela
“diferente das outras” e “em paz”. Observa-se também o trabalho cotidiano dos
40
Suas experiências com os jornalistas foram tão negativas que Flavia somente aceitou conversar comigo
e minha colega de pesquisa quando provamos ser estudantes.
42
moradores para reforçar essa construção simbólica, inclusive desenhando diferenças e
proximidades com moradores que acreditam pertencerem à mesma “comunidade”, com
quem compartilham os mesmos códigos de conduta que permitem a manutenção dessa
favela como um local “pacificado”. No entanto, alguns episódios que serão discutidos
em seguida permitem visualizar as tensões na construção da “tranquilidade” existente
no Pereirão.
43
ressaltar a semelhança e a diferença entre o Pereirão e outras favelas, onde as
prestadoras de serviço público não entram nas localidades sem avisar à associação de
moradores. Esse procedimento visa, na maioria dos casos, requisitar à associação uma
intermediação junto às quadrilhas de traficantes locais, para garantir a segurança de seus
trabalhadores quando realizando reparos ou obras em favelas. Tal prática é reconhecida
tanto pelo poder público quanto pelos dirigentes de organizações de moradores
(Miranda e Magalhães, 2002; Silva e Rocha, 2008)41. A fala do presidente pode ter tido
a intenção de marcar sua posição como mediador necessário, ao dizer que garantia a
segurança dos trabalhadores, ainda que com a preocupação de confirmar seu
distanciamento em relação aos traficantes de drogas. Porém, confirma que a precaução
dos funcionários é necessária.
44
os dois que seria impossível receber o marido de volta – no momento ele estava
internado em um hospital psiquiátrico – já que ele estaria colocando a sua vida, bem
como de sua família, em risco. Segundo ela, foi por sorte que nada aconteceu, se
referindo aos jovens que entraram em sua casa.
43
O morador fazia referência ao programa de internet Google Terra (ou Google Earth), que reproduz em
três dimensões imensas partes do planeta, com bastante capacidade de aproximação, através de
fotografias feitas por satélites espaciais.
45
organizadas como subalternas que são à ordem estatal, mas sob a condição de serem
impedidas de se apropriar coletivamente da ‘outra parte’ dessa mesma normalidade
cindida” (Machado da Silva, 2004: 314). O autor refere-se ao direito garantido pela
ordem estatal de livre expressão, que como vimos não se estende aos moradores de
favela. No caso pesquisado, no entanto, tal controle sobre o que pode ou não ser falado
publicamente é particularmente perverso, por contrastar com a aparente liberdade de
que desfrutam os moradores do Pereirão. Ao mesmo tempo em que afirmam seu
afastamento das limitações impostas pela opressão realizada pelos traficantes de drogas,
reconhecem o cerceamento das suas liberdades individuais.
Outra coerção identificada foi o controle do ir e vir, tanto de pessoas que não
residem na localidade (como já disse, fui sempre acompanhada por moradores nas
minhas visitas – e essa precaução não parecia se restringir à minha pessoa), quanto dos
moradores, quando saem do território. No relato abaixo, recolhido “coletivo de
confiança” mencionado, o jovem morador afirmou:
Então eu nunca entrei no [nome da favela]. E eu sinto vontade de ir lá para ver como
é. (...) Eu me sinto livre para ir, mas depois você fica naquela assim. Se eu for,
neguinho vai dizer que eu estou me aliando à facção rival. ‘Olha lá, ele está
deixando de fechar com o Comando para fechar com a ADA’ [facção criminosa que
controla uma localidade vizinha]. Então você fica...
46
existentes no Rio de Janeiro), uma vez que essa é a facção que domina o conjunto de
favelas (denominados de complexos) no qual o Pereirão se localiza. Dessa forma, apesar
da presença de traficantes ser pouco visível na localidade, o controle que exercem sobre
o que os moradores falam e como vivem é semelhante em alguns aspectos àquelas onde
a força do tráfico de drogas é mais explícita.
Na primeira visita que fiz ao local depois desse acontecimento (eu não estava lá
no momento e só pude retornar a campo duas semanas depois) um dos moradores ligado
à organização do evento relatou que na semana anterior a polícia teria recebido
reclamações dos moradores dos prédios localizados perto da favela a respeito de um
baile funk – festas realizadas por equipes de som que reúnem jovens em localidades
periféricas do Rio de Janeiro, às vezes milhares – que estaria acontecendo na quadra da
favela. Ainda segundo ele, tratava-se apenas de uma festa de aniversário, mas tal fato
teria despertado a desconfiança da polícia para a possível presença de traficantes na
favela44. No dia do tiroteio a polícia teria subido até a entrada da favela para fazer um
patrulhamento de rotina, e teria sido recebida a tiros pelos traficantes que estariam na
favela – mas sem deixar claro em que condições, se participando da festa ou escondidos,
seja na mata, seja nas casas. Vale ressaltar que no período de trabalho de campo
realizado para esta pesquisa, em momento algum vi ou fui informada sobre
44
Investigações policiais e reportagens investigativas denunciaram que muitos desses eventos são
patrocinados por traficantes de drogas. Entre as matérias jornalísticas, o caso de Tim Lopes – jornalista
torturado e assassinado por traficantes quando realizava uma reportagem investigativa sobre tráfico de
drogas e prostituição infantil realizados em bailes funk na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro – foi o que
alcançou mais repercussão. Cfr. Arquivo G1: Tim Lopes é assassinado.
47
patrulhamentos policiais na entrada da favela. Aparentemente este patrulhamento foi
uma exceção, em função do evento que estava sendo realizado na entrada da localidade.
Pelo relato do jovem, os policiais teriam pedido reforço dos policiais do BOPE,
e até helicópteros teriam sido acionados para o confronto. Os policiais teriam entrado na
favela e atirado contra os moradores. Quando cheguei ao local vi que o trailer da PM
que ficava localizado na entrada da favela não estava mais lá. Ao ser perguntado sobre
isso, o jovem disse que há seis meses o trailer tinha sido retirado, e que durante esse
período o tráfico estaria tentando voltar a atuar na favela, ainda que de forma
embrionária – mas em seu relato não ficou claro qual dos eventos aconteceu primeiro.
Ele ressaltou a importância da polícia impedir o tráfico de se reorganizar naquele
território – mas sem colocar a vida dos moradores em risco, e que os moradores, a
“comunidade”, não poderiam deixar o tráfico voltar a controlar o Pereirão. Observa-se
que os moradores estão insatisfeitos com a possível volta do tráfico, pois é a ausência de
conflitos entre policiais e traficantes que garante a “tranquilidade” local – que é sempre
relacionada à ausência de conflitos entre traficantes e policiais, e nunca diretamente
relacionada com a ausência do comércio de drogas em si. O que era comentado sempre
que essa questão surgia nas conversas com os moradores era a diferença entre aquele
momento e o vivido até 1998, época dos grandes conflitos.
48
mesmo tempo pela atual configuração local. Em um dado momento esses fatores – a
visibilidade política que a favela recebeu; a colocação do trailer na entrada da favela
inibindo a compra de drogas; a proximidade com a sede do BOPE; o desinteresse do
tráfico pela localidade, etc. – fez com que a “paz” fosse possível. No entanto, esse
contexto pode estar se modificando: o interesse do tráfico no local pode ter mudado,
talvez em função das disputas territoriais nas favelas vizinhas; o interesse do governo
também pode ter mudado45, o que explicaria a retirada do trailer. Assim, as variáveis
que permitem a “tranquilidade” podem mudar, como aparentemente mudaram haja vista
a pequena boca-de-fumo instalada. Considero, portanto, importante frisar que o
contexto de “tranquilidade” é passível de mudanças, pois nenhum dos fatores que
garantiram sua manutenção é permanente.
45
É importante ressaltar o dado de que tal evento ocorreu menos de quatro meses depois da posse do
novo governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, e de toda a cúpula da Secretaria de Segurança Pública.
49
Dessa forma, se tomarmos como premissa que naquela localidade o tráfico de
drogas, se existe, atua de forma subterrânea (e, portanto, descartamos a possibilidade de
uma grande encenação para enganar a pesquisadora), a obediência às ‘regras do tráfico’
seria motivada pela antecipação à possibilidade de retaliação dos traficantes em caso de
desobediência. E os moradores se antecipariam por compreender que a situação de
“tranquilidade” local é provisória. Pensar que, em um momento futuro, existirá
retaliação para o que foi feito ou dito hoje remete à noção de que o tráfico tem uma
capacidade de controlar e vigiar as pessoas maior do que as evidências apontadas por
diversas pesquisas. No entanto, muitos moradores de favela, inclusive os do Pereirão,
acreditam que estão sendo vigiados constantemente por traficantes ou por policiais. E
neste caso estar sendo ou pensar que está sendo vigiado tem o mesmo efeito46.
46
Cfr. Farias, 2008.
50
urbanas; e nesse caso os bandos poderiam estar ligados tanto ao tráfico de drogas
quanto às milícias, pois essas últimas também impõem aos moradores dos locais onde
atuam sua versão da “lei do silêncio” (Mesquita, 2008 e Cano e Ioot, 2008).
51
Outro aspecto que pode ser associado à linguagem da “tranquilidade” é sua
função de controle social. Quando os moradores repetem entre si e para os visitantes
que aquele é um lugar “tranquilo”, ao mesmo tempo em que se referem ao fato de não
mais conviverem com traficantes armados e “operações” policiais, eles também
silenciam os possíveis casos “desviantes” (que, como foi mencionado, reaparecem nas
entrelinhas). Os desvios, quando reconhecidos, são apresentados como exceções e como
reprováveis moralmente, e que não comprometem a totalidade da “comunidade” –
mesmo aqueles que dizem respeito ao espaço doméstico e particular dos moradores,
mas que são freqüentemente mencionados na caracterização do modo de vida dos
favelados. O fragmento abaixo, de entrevista realizada com uma moradora de 35 anos e
nascida no local, é bastante representativo:
[E porque aqui é uma comunidade modelo?] Porque não temos tráfico armado, não
temos problemas de gravidez na adolescência, de meninas de 10, 11 anos tendo
relações, com filho no braço sem nem saber de quem, como eu vejo em outras
favelas. Não temos casos de violência doméstica, três ou quatro no máximo, não
temos casos de alcoolismo, graças a Deus, cinco ou seis no máximo. (...) Tem
viciados aqui? Tem, mas os nossos meninos não entram para o tráfico, senão alguns
casos isolados. E aqui não tem arma. Fora o BOPE, ou quando a polícia vem
passear. Mas fora isso a gente não tem arma.
Tal modalidade de controle social poderia ter paralelo, ainda que guardadas
grandes diferenças, com o caso de localidades dominadas por milícias, onde também se
reitera de forma categórica que não existem traficantes ou consumidores de drogas na
favela (Mesquita, 2008). A afirmação, quando repetida e confirmada por todos, pode ter
a força de inibir os efeitos desses atos sobre a sociabilidade local. Por exemplo, usar
certas drogas ilícitas é tido como algo moralmente condenável por todos (dentro ou fora
de favelas), e os moradores negam que elas sejam consumidas em sua favela,
reforçando a representação de “lugar tranquilo” e coibindo o possível uso pelos
moradores. Sem publicidade, o consumo de drogas se mantém, no máximo, como
conduta clandestina, de modo que a negação discursiva funciona como um dispositivo
de controle. A pretensão implícita – cuja possibilidade de sucesso é obviamente limitada
– é impedir a objetivação institucionalizada daquelas condutas que, uma vez saídas da
obscuridade das atividades privadas, poderiam se articular como uma forma de poder
vista como deletério para a vida social local.
52
É no aspecto do controle social, e de seu acionamento como meio para garantir a
manutenção da situação de “tranquilidade”, que fica mais evidente a importância da
construção de “comunidade” ali existente, pois é através dela que se forma a coesão
necessária para impedir e controlar comportamentos desviantes. Ainda que os
moradores recém-chegados não sejam todos identificados como potenciais
consumidores ou traficantes de drogas, a dúvida sobre sua adesão ao “estilo de vida
pacificado” do Pereirão é suficiente para que sejam percebidos como ameaças à “paz”.
Ainda que não veja nesse contexto uma reprodução da divisão social identificada por
Elias e Scotson em Winston Parva, empresto deles a noção de que entre aqueles que
compartilham de uma coesão grupal, e que se veem como membros de um grupo
superior moralmente (os “estabelecidos”), o autocontrole individual é maior, pois está
articulado com a opinião coletiva do grupo ao qual se faz parte (Elias e Scotson, 2000:
41). Assim, para manter a coesão interna e reforçar o autocontrole é preciso retratar os
recém-chegados, aqueles que não participam do grupo e não aderiram da mesma forma
aos valores deste, como uma ameaça.
53
autoproteção, pois negando a presença do tráfico de drogas, evitam serem vistos pelos
47
não-moradores de favela como “coniventes” . Dessa forma, estabelece-se um
paradoxo de extrema desumanidade: submetendo-se ao próprio dispositivo que os
oprime, os moradores do Pereirão conseguem evitar sua desqualificação moral por
conivência, mas não conseguem denunciar potenciais ameaças à sua segurança.
47
Em diversos momentos, representantes do poder público no Rio de Janeiro requisitaram que os
moradores de favela denunciassem a localização dos traficantes sob o argumento de que não fazê-lo seria
cumplicidade com os mesmos. Cfr Machado da Silva, Leite e Fridman, 2005; Machado da Silva (org.)
2008.
54
II. A associação de moradores: “eles lá e nós aqui”.
Fonte: www.favelinha.com
55
associações de moradores têm voltado à pauta dos jornais em escândalos políticos,
acusadas de favorecerem candidatos nas eleições de 2008 escolhidos por grupos de
traficantes de drogas48. Além disso, há alguns anos é de conhecimento público que o
cerco sobre os moradores de favelas praticado pelas quadrilhas de traficantes se fecha
também sobre as associações, causando a morte ou a expulsão de muitos dirigentes de
suas casas e territórios de moradia49.
48
Segundo denúncia da Revista Época de 04 de Agosto de 2008, o traficante que controla o comércio de
drogas na Rocinha escolheu o candidato da localidade, não permitirá a entrada na favela de outros
candidatos e pretende usar sua quadrilha para fazer a campanha eleitoral. O candidato em questão seria o
presidente da principal associação de moradores da região. A reportagem afirma ainda que também nos
territórios controlados por milícias existe o favorecimento a candidatos escolhidos por criminosos – em
uma versão urbana do coronelismo característico do Nordeste rural.
49
Uma pesquisa realizada pela Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Rio de
Janeiro, em 2005, analisou dados sobre 800 dirigentes de associações de moradores de favelas entre 1992
e 2001, e chegou à conclusão que nesse período 300 dirigentes foram expulsos de suas localidades por
divergências com traficantes locais, e 100 foram assassinados (Leite, 2005:382). Leite aponta que essas
expulsões, de dirigentes e outros moradores, são tão freqüentes quanto invisíveis para a sociedade em
geral, muitas vezes não sendo percebida mesmo como uma modalidade de violência praticada pelos
traficantes de drogas. Com o aumento de casos, no entanto, a categoria de “refugiados do tráfico” se
tornou comum nos meios de comunicação (Leite, 2005: 381-383).
56
2.1. A associação de moradores.
57
membro atuante ao seu final apenas o Presidente (durante a realização do trabalho de
campo a secretária da associação começou a trabalhar como auxiliar de serviços gerais
em uma escola e deixou a associação). A atual gestão tinha à época do começo do
trabalho de campo pouco tempo de existência; antes disso a associação esteve fechada
durante dois anos. A antiga gestão ficou à frente da associação por 16 anos, período
durante o qual concorreu em todas as eleições como chapa única. Afastados por
denúncias de corrupção (nunca investigadas), o antigo Presidente e alguns diretores se
mudaram do morro, pressionados pelos moradores e também por traficantes de drogas
locais, segundo relato de moradores.
50
Dr. Sobral Pinto foi um famoso jurista, nascido em 1893 e morto em 1991. Mineiro, católico fervoroso,
atuou na defesa de muitos militantes políticos durante as ditaduras Vargas e militar, como Luís Carlos
Prestes, Graciliano Ramos, Miguel Arraes, entre outros (Isto É, 2008).
58
acabar”. A filha mais velha parecia apoiar mais a decisão do pai, mas também
reclamava que os moradores não reconheciam o esforço empreendido por ele. No
discurso do presidente a possibilidade de fechar a associação e voltar ao trabalho de
eletricista estava o tempo todo presente, como uma ameaça que seria cumprida quando
ele se cansasse de “levar a associação sozinho”. Pela sua fala, a atuação como dirigente
da associação era quase um “sacrifício” feito em prol da “comunidade”, uma escolha
que levava mais em conta o bem comum que o bem individual ou de sua família.
Segundo ele, teria feito uma loucura ao deixar seu trabalho, que lhe rendia uma renda
razoável, para ficar “batendo cabeça” à frente da associação, sem receber o
reconhecimento devido por parte dos moradores.
59
problemas como os do serviço de TV a cabo “alternativo51”, para chamar a Defesa Civil
em caso de necessidade (como o perigo representado por uma pedra grande no alto da
favela em dias de temporal), para resolver disputas de marido e mulher. Segundo ele,
todos esses eram problemas que “cada um poderia resolver por si mesmo, é só passar a
mão no telefone e ligar”. Tradicionalmente, as lideranças comunitárias envolvem-se em
todos estes assuntos, ainda que não seja essa sua função principal. Mas o entrevistado
afirmava que os moradores esperavam dele o contato com o órgão público desejado,
seja ele um órgão do executivo municipal, a polícia ou o sistema de justiça. Ele não teria
contatos especiais para realizar os pedidos, nem teria seus pedidos atendidos mais
rapidamente que o morador mediano da comunidade: “(...) as pessoas aqui acham que
eu tenho um poder que eu não tenho”.
Apesar das dificuldades que afirmava encontrar, declarou diversas vezes que
gozava de uma situação privilegiada em relação a outros presidentes de associações,
pois pode atuar de forma autônoma frente a influências exteriores, i.e, os traficantes de
drogas. Segundo ele, “tem presidente que nem trabalha, não consegue trabalhar”, em
função de uma grande interferência por parte dos traficantes. Já no Pereirão, tanto ele
quanto a sua antiga colaboradora, que também foi entrevistada várias vezes, apesar de
reconhecerem implicitamente o poder dos traficantes, afirmaram que ali era “cada um
na sua”, e que existiria uma relação baseada ao mesmo tempo na civilidade (tratando-se
com recíproca polidez, sem agressões de ambos os lados) e na distância social. No
entanto, ambos reconheciam que os traficantes possuiriam uma espécie de reserva de
poder que lhes permitiria interferir no trabalho da associação se quisessem.
Graças a Deus aqui eles não mandam nada, nunca interferiram em nada. Mas
também no dia que quiserem mandar alguma coisa eu pego as minhas coisas e saio.
Coloco um cartaz na porta da associação: ‘por motivo de saúde o presidente está
afastado’. Porque eu tenho família, tenho duas filhas, e não posso me arriscar desse
jeito.
Bandidos não dão um pio na vida da comunidade, mas quando acontece alguma
coisa não tem como escapar. Por exemplo, quando aconteceu uma matança aqui
perto, no ano passado, tive que ficar andando pra cima e pra baixo com a polícia.
Depois, quando eles foram embora, tive que fazer a mesma coisa com os bandidos.
Sem diferença. Senão ia dar problema.
51
Como em muitas outras favelas do Rio de Janeiro o serviço de televisão a cabo é ilegal, ou seja, o sinal
é desviado e transmitido para as residências da favela por um preço bem menor.
60
Nos relatos acima o entrevistado reconhecia o risco de ser confrontado pelos
traficantes, e deixava clara a sua falta de recursos disponíveis para enfrentá-los. No
primeiro fragmento, o entrevistado afirmava que os traficantes não teriam interesse em
controlar ou interferir na atuação da associação, e essa é sua garantia de segurança. No
segundo fragmento, porém, Antônio afirmou que em certas situações os traficantes se
aproximam da associação de moradores, e que nesse caso é preciso evitar o confronto
para não ter “problemas”. Como veremos adiante, evitar o confronto com os traficantes
de drogas através da passividade, retirando-se da organização ou apenas interagindo
com eles quando confrontado, é uma estratégia muitas vezes utilizada pelos dirigentes
de associações de moradores para manterem-se em segurança sem se tornarem
cúmplices dos traficantes.
61
associações de moradores visando controlar os recursos de que essas dispõem. Os
recursos podem ser financeiros (repasses do poder público, contribuição mensal dos
moradores etc.) ou de poder (indicação de pessoas para trabalhar em projetos do
governo ou de ONGs, influência sobre a gestão destes projetos etc.). No caso da
associação de moradores do Pereirão, a falta de ambos os tipos de recursos poderia ser
responsável pelo desinteresse e consequente afastamento dos traficantes de drogas da
associação.
Tudo se passa como se os traficantes fossem atores políticos que não podem deixar
de ser consultados para a execução dessas atividades. É preciso ter a permissão
deles, sob pena de sofrer represálias que inviabilizariam essa execução (Zaluar,
2004:362).
Leeds (2003), por sua vez, afirma que o tráfico de drogas em algumas favelas já
ocupa o papel de mediação entre as favelas e os políticos, antes desempenhado pelas
associações de moradores:
62
através do programa Posto de Orientação Urbanística e Social (Pouso), da Secretaria
Municipal de Urbanismo, não estaria liberando a construção de novas casas dentro da
favela. Segundo a ex-secretária da associação, quando queriam construir, os moradores
buscavam a associação para que essa interferisse junto à Prefeitura. Entretanto, como o
presidente afirmava não dispor de autoridade para modificar decisões relativas à
ocupação do espaço, eles acabavam pedindo autorização aos traficantes. Além de
reconhecer que não tem autoridade para isso, Antônio sempre se colocou contrário ao
crescimento da favela, pois segundo ele o aumento no número de moradores acabaria
por fazer dali uma favela “igual às outras”, onde não seria possível impedir que “coisas
erradas acontecessem”. Por outro lado, ainda segundo Cristina, muitos moradores
acabavam, apesar de tudo, desistindo de construir por medo de verem as casas
derrubadas pela prefeitura. Para ela, os traficantes autorizavam a construção porque isso
não interferia nos assuntos “deles”, muito embora a licença fosse contrária à orientação
da associação. Segundo a versão dos entrevistados, a liberação dada pelos traficantes de
drogas não teria força para se contrapor à proibição da Prefeitura. Isso explicaria o
respeito à determinação oficial. Vale ressaltar que está implícita na declaração dos
entrevistados uma ridicularização dos traficantes da localidade, presente em muitos dos
depoimentos dados pelos dois informantes. Em diversos depoimentos coletados os
traficantes foram descritos como bobões, fracos, covardes, “os primeiros a se esconder
embaixo da cama quando ouvem som de tiro”, etc. Vale ressaltar, porém, que de fato
foram construídas novas casas na favela, o que demonstra não apenas que a proibição da
associação de moradores não tem efeito prático, mas também que alguns moradores
podem estar construindo por se sentirem apoiados pelos traficantes de drogas (embora
não se possa descartar que as construções possam estar sendo realizadas à revelia de
ambos os poderes locais).
Eu já falei com a Prefeitura que se eles quiserem construir essas casas aqui eles vão
ter que se responsabilizar pela distribuição delas. Porque não tem casa para todo
63
mundo, e se aparecer alguém dizendo que mandaram [referindo-se aos traficantes]
dar a casa para ele, o que eu vou fazer? Eu sei quem precisa de casa realmente, mas
nem sempre é esse que recebe.
O pessoal aqui de cima veio reclamar comigo que tinha umas meninas que bebiam
um pouco, ficavam meio doidonas, e tacavam pedras no telhado dos moradores.
Eles queriam que eu tomasse uma atitude, mas o quê que eu posso fazer? Posso falar
com elas, mas elas não vão me escutar. Então eu mandei eles irem nos caras, mas
não nesses daqui, que são muito bobões, nos lá de cima. Eles vieram e deram um
pau nas meninas que elas nunca mais jogaram pedra no telhado de ninguém. Mas eu
não posso ir lá reclamar, porque vai que um dia morre alguém, ou acontece alguma
coisa dessas? Como é que eu vou olhar para a família delas de novo?
64
As duas situações são diferentes; enquanto uma era assunto interno da favela,
conflito entre moradores, o outro envolvia agentes externos – a companhia de transporte
público. Assim, para Antônio o reconhecimento da validade da intervenção dos
traficantes de drogas depende do contexto de cada conflito. Em ambos os casos,
contudo, o presidente buscou o distanciamento em relação aos traficantes; ainda que
internamente ao território da favela reconhecesse o poder destes e até tivesse sugerido
que ele fosse acionado quando fora necessário. Mesmo nessas condições, porém,
alguma distância teve que ser mantida (ele não se propõe a fazer diretamente a
solicitação), pois a impossibilidade de prever ou garantir o que os traficantes iriam fazer
seria um risco que ele não pretendia assumir, como presidente ou como morador antigo
e conhecido das pessoas envolvidas. Porém, o afastamento que este líder busca em
relação ao tráfico – ainda que compreensível, em função do medo, e louvável, ao tentar
evitar qualquer contaminação – muitas vezes acaba por comprometer sua atuação
enquanto presidente da associação de moradores. Ao recusar participar da divisão das
casas pela prefeitura por temer a intervenção injusta dos traficantes, por exemplo, acaba
por não cumprir um dos papéis importantes da liderança comunitária.
52 Note-se que, se tal avaliação está correta, que ela se opõe à ideia muito difundida de que são fortes os
laços primários e a solidariedade de vizinhança nas favelas pequenas.
65
vereador, deputado ou secretário de governo que interceda em nome da “comunidade”,
em troca de votos.
Nesse sentido, é possível mesmo dizer que o clientelismo se ampliou com o fim do
coronelismo e que ele aumenta com o decréscimo do mandonismo. À medida que os
chefes políticos locais perdem a capacidade de controlar os votos da população, eles
deixam de ser parceiros interessantes para o governo, que passa a tratar com os
eleitores, transferindo para estes a relação clientelística (Carvalho, 1997).
66
(...) emprego na prefeitura, no correio e no hospital, como professor de uma escola,
serviços de saúde, serviços jurídicos, acesso a crédito bancário, obtenção de
aposentadoria e documentos pessoais, liberação de impostos. Estas são coisas que
supõem ajuda de pessoas de ‘fora da comunidade’, que possuam um capital
profissional ou disponham de relações sociais ou econômicas que lhes permitam
mobilizar recursos para atender tais demandas (Heredia, 1996: 63).
No caso analisado, a lógica parece ser a mesma, ainda que os bens desejados
sejam coletivos: a construção de uma creche, investimentos em projetos sociais para a
juventude, entre outros. Apesar disso, é evidente que esse tipo de troca permite também
ganhos pessoais, sejam eles materiais ou simbólicos – as vantagens em questão estão
sempre associadas à posse de capital simbólico representado pela atuação política
(Bourdieu, 2004: 173). No entanto, diferentemente do que acontecia no período da
“política da bica d’água”, atualmente existem intervenções específicas do poder público
nos territórios das favelas, e nesses casos os dirigentes comunitários podem concentrar
mais poder, ao dispensar algumas mediações e a controlar diretamente os recursos
aplicados. No caso do Plano de Aceleração do Crescimento – PAC53, realizado em
algumas favelas cariocas, os dirigentes de associações de moradores negociam
diretamente com o poder público estadual e federal, bem como com as empresas
privadas responsáveis pela execução das obras.
53
O PAC é uma iniciativa federal apresentada durante o segundo mandato do Presidente Luís Inácio Lula
da Silva. O programa prevê uma série de investimentos para aumentar o dinamismo da economia
brasileira. No Rio de Janeiro, por exemplo, estão previstos investimentos em portos, aeroportos e
estradas, bem como na produção de energia, saneamento e urbanização. O investimento previsto é de
165,6 bilhões de reais só no estado, sendo que R$ 89,8 bilhões até 2010. Desses, R$ 8,8 bilhões serão
investidos nas áreas social e urbana – urbanização, saneamento e habitação (Secretaria de Comunicação
Social da Presidência da República, 2008). Estão previstas obras em algumas favelas, como Rocinha,
Cantagalo e Pavão-Pavãozinho (Zona Sul do Rio de Janeiro), em Acari e nos conjuntos de favelas do
Alemão e de Manguinhos (Zona Norte), além de favelas localizadas nos bairros do Caju e Bangu.
54
O entrevistado deixa implícito que todos (ou a maioria) os moradores votariam no candidato que se
tornasse o “padrinho” local, reforçando a representação das favelas e espaços populares como currais
eleitorais de políticos clientelistas.
67
ele não tem muito a oferecer, e assim não poderia pagar a dívida contraída com o
“padrinho” na moeda em que essas trocas são feitas: votos que garantam a eleição do
“padrinho” (Heredia, 1996). Além dos poucos votos arrecadáveis na localidade, o
presidente destaca que o fato dessa não ser uma favela com visibilidade pública
(referindo-se à exposição na mídia) faz com que o poder público ou políticos “ignorem-
nos”, por não auferirem publicidade para suas gestões ou mandatos através de atuações
ali. A invisibilidade da favela na mídia se daria pela sua “tranquilidade”, pela falta de
conflitos violentos na região (entre traficantes ou entre esses e a polícia), pois “somente
assim as favelas saem no jornal”. Outros dirigentes de associações de moradores,
ouvidos pela pesquisa “Rompendo o cerceamento da palavra” e que participaram dos
“coletivos de confiança” mencionados na Introdução, também apresentaram a mesma
relação de causa-efeito entre eventos violentos e ações públicas. Onde acontecem
conflitos violentos, especialmente com vítimas fatais, seriam os locais privilegiados
para investimentos públicos; até como uma forma de resposta do Estado aos
acontecimentos. A lógica de que ações sociais, executadas pelo governo ou por
entidades do terceiro setor, podem ser ferramentas contra a criminalidade – “estratégias
de prevenção ao crime” (Soares, 1996) – perpassa discursos e práticas no campo da
segurança pública (como discuto nos capítulos III e IV).
68
investimentos seriam alvo de competição entre elas, por não serem homogeneamente
distribuídos entre todas as áreas pobres da cidade. A noção de uma competição entre
favelas por recursos públicos é apresentada por Machado da Silva (2002), ao comentar a
relação entre o poder público, no caso o municipal, e os representantes de diferentes
favelas a partir da implantação do Programa Favela-Bairro55. Segundo ele, tal política
pulveriza a luta coletiva por melhorias, pois cada favela passa a defender seus interesses
separadamente, o que “enfraquece o conjunto das mobilizações e despolitiza as
reivindicações, circunscrevendo-as à dimensão administrativa e técnico-financeira na
qualidade de pequenos lobbies (...)” (Machado da Silva, 2002: 232).
Após o fim do trabalho de campo, ao retornar ao Pereirão para rever Antônio, fui
surpreendida pela informação de que agora a presidente da Associação de Moradores
era Jennifer, que conheci quando acompanhei as atividades da ONG TV Morrinho (Cfr.
Capítulo III). “Nascida e criada” no Pereirão, tem “30 anos de comunidade”. Sua
55
As linhas gerais do programa, bem como de outras políticas públicas executadas em favelas, serão
apresentadas a seguir, em um pequeno histórico.
69
família não mora mais lá: perdeu pai e mãe, seus irmãos moram fora da favela, e um dos
irmãos ela “perdeu para o tráfico”. No momento acumula o trabalho na associação com
seu expediente na ONG, e como as duas organizações são vizinhas ela passa o dia se
movimentando entre as duas salas. A participação na associação não foi sua primeira
experiência no trabalho comunitário: durante seis anos participou de um programa do
Governo estadual onde coordenava trabalho com jovens da localidade. Também
participou de outras gestões da associação de moradores. Diz que sempre foi uma
liderança e gostou do trabalho comunitário, sendo uma de suas responsabilidades na
ONG facilitar que essa tenha um envolvimento maior com a localidade (como na
realização de festas coletivas, de campanhas, etc.).
Segundo Jennifer, Antônio não ligava mais para nada e mantinha a sede da
entidade fechada o dia inteiro: “a associação estava entregue à própria sorte”. Assim,
junto com outros moradores que desejavam “mudar a situação, e não apenas reclamar”,
montou uma chapa de oposição e foram eleitos “com o dobro dos votos necessários”.
Após eleita, seu desafio é reconquistar a confiança dos moradores, que estariam
decepcionados com a associação após quase vinte anos de gestões insatisfatórias. Ainda
que goste de Antônio pessoalmente, seu conhecido “desde a barriga da minha mãe”,
avaliou que ele não estava mais preocupado com o bem-estar coletivo, e era autoritário
em suas decisões, o que afastou os moradores da entidade. Desde o começo de sua
gestão tem realizado reuniões semanais, que se no começo contavam com poucos
participantes hoje reúnem mais de 120 moradores na quadra que se localiza na entrada
da favela. Conseguiu aumentar também o número de moradores que contribuem com a
taxa de manutenção da favela coletada pela associação, de cinqüenta para duzentas
contribuições – feito alcançado após reduzir o valor da taxa de cinco para dois reais56.
56
Para aqueles que são proprietários de casas alugadas a taxa é de R$ 10,00 por cada quarto existente na
casa.
70
Aqui é uma comunidade modelo, e pode ser muito mais. Porque o nível de tráfico e
de violência, graças a Deus, não é nada gritante, tendo em vista o que está
acontecendo aí fora. Mas dá para a coisa ficar ainda melhor.
57
Criado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, o Conselho Tutelar é um órgão permanente e
autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da
criança e do adolescente, definidos na Lei Federal 8.069 de 13 de julho de 1990, que entrou em vigor no
dia 14 de outubro de 1990. Cf. site Portal do Conselheiro Tutelar.
71
ninguém. Nesse momento acredito que ele estava fazendo referência ao fato de, em uma
“comunidade”, existirem forças que regulam os conflito – possivelmente os traficantes
de drogas. Apesar de não ter confrontado Jennifer sobre este caso, creio que ela não
acionou os jovens ao acaso; ela parecia estar ciente de que aqueles rapazes seriam
identificados pelo morador como representantes de uma “força” maior. A manobra
surtiu efeito, pois o morador desculpou-se pela forma “exagerada” pela qual tinha
reagido e disse que estava apenas preocupado por ter que faltar ao trabalho para ir a
audiência marcada pelo conselheiro tutelar. Em seguida foi embora. Além deste caso
específico, as reuniões mensais da associação, das quais não pude participar também por
motivos de tempo, já representam uma mudança em relação à maneira como Antonio
tomava as decisões frente à associação, sem consultar ninguém.
É nos discursos, no entanto, que a diferença entre os dois ficou mais evidente. A
concepção de que é necessário um “padrinho político” para a comunidade, repetida em
entrevistas por Antonio, é rejeitada por Jennifer. Segundo ela, “Não gosto disso, porque
o padrinho de hoje vai te sugar amanhã. Eu não quero padrinho”. Ao relatar como se
passaram no Pereirão as eleições municipais recém terminadas, disse que não escolheu
candidato, não indicou ninguém, e que todos os candidatos que quiseram realizar
campanha na favela foram recebidos – ainda que na imprensa só tenha sido mencionada
a visita do candidato a prefeito vencedor e que na favela, um mês após a eleição, eu só
tenha visto material de campanha de um único candidato a vereador, do mesmo partido
do prefeito (mas que não foi eleito). Jennifer afirmou ainda que mais importante que
padrinhos é o dirigente “(...) saber reivindicar. Com quem você deve falar, aonde deve
ir”. Assim, demonstra estar mais ciente que Antônio de uma das competências mais
acionadas pelos dirigentes de associações de moradores: a capacidade se mover na
burocracia e de acionar as pessoas-chave na estrutura. Além disso, Jennifer fala
constantemente na necessidade de fazer “parcerias” com o poder público, empresas e
pessoas físicas, demonstrando compreender que as relações entre poder público e
favelas passam atualmente por esse conceito, e não pelas antigas dinâmicas clientelistas,
como acreditava Antônio. Todavia, a efetividade do discurso de Jennifer, em termos de
conseguir tais “parcerias” em forma de investimentos, não pôde ser mensurada dentro
do tempo disponível para a realização desta pesquisa.
72
presidente procedem, no sentido do desinteresse dele pelas questões coletivas do
Pereirão. Seria necessário acompanhar o trabalho de Jennifer para avaliar se uma
atuação mais ativa à frente da associação de moradores será alvo dos traficantes de
drogas ou não, e quais as estratégias que Jennifer escolherá nesse caso. Em relação à sua
capacidade de trabalho e de realizar uma gestão eficiente do ponto de vista dos
moradores da favela, também seria preciso mais trabalho de campo. No entanto,
percebe-se que os moradores têm começado a se aproximar mais da associação, ainda
que tal movimento não represente uma mobilização dos moradores em torno de suas
questões coletivas. Para Jennifer, o afastamento dos moradores também representa um
problema na condução das reivindicações feitas.
A saída é reivindicar, saber reivindicar. Com quem você deve falar, aonde deve ir.
Se mover. Mas não vai ser o presidente sozinho, vai ser a comunidade que assina
embaixo e vai dizer junto: nós estamos pedindo há tanto tempo e não temos nada.
Isso vai estar ajudando. Porque se a associação não trabalhar direito, não fizer a
coisa certa, nem mil padrinhos vão resolver.
73
em momentos históricos diferentes, de acordo com cada interlocutor. Podemos
observar, no entanto, que em alguns momentos na história das favelas no Rio de Janeiro
realmente houve uma mobilização maior por parte dos moradores, sobretudo quando a
permanência desses nos seus territórios de moradia estava ameaçada. Também houve
grande mobilização em algumas favelas em torno do tema da urbanização.
Nas comunidades camponesas, a política não é um tema que faça parte do cotidiano.
No entanto, isso se altera no período eleitoral, quando a política está presente tanto
através da mídia, especialmente rádio e televisão, quanto pela presença física dos
políticos e de seus símbolos – bandeiras, cartazes e músicas. Essa presença da
política em tempos de eleição permite-nos dizer, sem temor de equívocos, que
nesses momentos ela faz parte de seu cotidiano. É essa presença maciça da política,
e a maneira como ela se dá, que faz referirmo-nos ao período eleitoral nas
comunidades camponesas como sendo o tempo da política (Heredia, 1996: 57).
74
243). A política do governo estadual, nesse período, oscilava entre a remoção e a
urbanização das favelas, mas o golpe militar de 1964 possibilitou o ambiente para que
as propostas remocionistas se fortalecessem, reprimindo de forma violenta qualquer tipo
de ação coletiva, intervindo e enfraquecendo o movimento das associações de
moradores. As associações passaram a atuar como representantes do governo dentro das
favelas, gerenciando os serviços públicos e evitando o crescimento das favelas.
Algumas associações, inclusive, passaram a defender as remoções (Pandolfi e
Grynszpan, 2002: 245). Nessa época as relações entre poder público e moradores de
favelas já se davam na dinâmica da troca de votos por recursos de fonte externa, o que
garantia às lideranças locais uma posição elevada dentro da hierarquia social e
econômica da favela, formando junto com pequenos capitalistas a “burguesia da
favela”, como definiu Machado da Silva (1967). O autor ressaltou ainda que a
participação da maioria dos moradores era muito pequena ou inexistente, e somente
aqueles que pertenciam ao estrato social mais elevado se envolviam nas atividades
políticas. O controle dos recursos internos disponíveis garantia a permanência do
dirigente na associação e impedia o acesso coletivo aos recursos mencionados (1967:
38-9).
58
Após a fusão, Floriano Peixoto Faria Lima foi nomeado governador (entre 1975 e 1979). Em seguida,
Chagas Freitas foi eleito indiretamente, e governou entre 1979 e 1983.
75
“ressentimento” em relação à forma como essa camada foi tratada anteriormente pelos
governos. Assinalando o fim das políticas de remoção, a urbanização de favelas
começou a ser implantada, e o governo do estado passou a investir em sistema de esgoto
e água e na coleta de lixo nessas localidades, bem como em tentar modificar a forma
como a polícia atuava dentro das favelas (Burgos, 2003: 42). Dentro dessa nova
perspectiva trazida por Brizola, as lideranças tornaram-se interlocutoras frequentes do
governo, continuando a assumir os papéis de agência estatal que lhes tinham sido
atribuídos anteriormente. Assim, as associações negociavam suas demandas diretamente
com o governo, sem a intermediação dos políticos como no período da “política da bica
d’água”. Foram atribuídas às associações tarefas públicas em acordos firmados com
agências estatais, que incluíam a contratação de mão-de-obra para trabalhar nas obras e
na manutenção e garantiam à associação de moradores uma taxa de administração de
5%, segundo informação coletada por Burgos e citada por Pandolfi e Grynszpan (2002:
249). Os autores ressaltam que essa forma de relação entre associações e Governo
fortaleceu a atuação de muitas associações, já que estar na associação significava ter
acesso a recursos como empregos, controle dos serviços, etc., o que acarretou inclusive
a contratação de muitas lideranças como funcionárias do governo, no posto de agentes
comunitários.
76
dessas lideranças pelo poder público, e a transformação das entidades em atores da
política institucional.
59
Cf. Elos Perdidos. Entre o Palácio do Planalto e os traficantes, as associações de moradores de
favelas (Revista Piauí, julho de 2008); Quem decide o voto é o crime. Traficantes e milicianos do Rio
resolveram entrar para a política. Seus métodos são a violência, a intimidação e a criação de currais
eleitorais (Revista Época, agosto de 2008); No curral, e com ficha suja. ‘Candidato único’ da Rocinha
responde a 14 ações por roubo, furto e estelionato (O Globo, 26 de julho de 2008).
77
incentivada) e outros de apresentação das demandas coletivas através dos canais
institucionais. Na atual configuração das relações entre esses atores, as competências e
habilidades que devem ser acionadas e que permitem o sucesso nas demandas não são
ligadas ao carisma interno ou à força de mobilização coletiva, e sim às capacidades de
articulação política e de mediação entre os interesses internos e externos. Mais
“ajustada60” aos novos tempos, Jennifer substituiu Antônio propondo cumprir os papéis
de mediação que ele se recusou a fazer, seja com as forças externas seja com as forças
locais – entre elas possivelmente os traficantes de drogas (como no caso dos jovens que
foram chamados para intervir quando um morador teria ameaçado Jennifer).
78
cerceamento da palavra: A voz dos favelados em busca do reconhecimento”, como
mencionado na Introdução desta tese. Dos 12 participantes presentes ao coletivo de
confiança, quatro estavam naquele momento atuando como presidentes de associações
de moradores; dois eram vice-presidentes, um era dirigente de federação de associações,
dois eram ex-dirigentes (e no momento atuavam em ONGs em suas favelas), um era
diretor de associação, um não declarou seu cargo e outro não tinha função na associação
e trabalhava como agente comunitário contratado pela Prefeitura da Cidade do Rio de
Janeiro. Percebe-se pelo grupo formado uma amostra da diversidade possível de
organização coletiva dentro das favelas, particularmente no que diz respeito à
participação de ex-dirigentes de associações de moradores em organizações não-
governamentais, atuando dentro das favelas em que dirigiram anteriormente associações
de moradores. No momento em que esta tese é escrita, quase três anos após a realização
do encontro em questão, a maioria dos participantes não se encontra mais à frente de
associações de moradores, e um deles foi assassinado enquanto ocupava o cargo de
presidente.
79
Para algumas das lideranças entrevistadas os traficantes são descritos como
moradores comuns, alguns deles tendo crescido ali e mantendo uma convivência
anterior à entrada nas quadrilhas. Como diz o participante do coletivo de confiança
abaixo:
Agora, esse papo de jogar bola com o cara, a gente com o pessoal {do tráfico}, a
gente bebe até cerveja, mas cada um na sua. Eles sabem que sua vida é essa, a dele é
aquela. Você não vai ignorar o cara, é a realidade. O cara hoje é vagabundo, ontem,
ele foi, é filho do seu amigo. Eu vou ignorá-lo por causa disso? Agora, ele tem que
me respeitar como morador, eu o respeito como vagabundo.
80
sua vida cotidiana e dos riscos que enfrenta diariamente: ver o traficante também como
“filho do amigo” ou “amigo de infância” permite ao morador (seja ele dirigente ou não)
vislumbrar uma estratégia para reduzir os danos potencialmente causados pelos contatos
entre moradores e traficantes.
Eles são moradores iguais a qualquer um. Procurou pra saber, é isso, isso. E isso,
isso, aquilo. Não procurou, estou na minha também. Então o negócio é meio termo.
Não tem também que ficar dando satisfação de tudo, e nem como ele colocou, ficar
aceitando as coisas. Aceitou, é um favor, {o traficante} vai querer guardar armas,
vai querer guardar drogas, vai querer se esconder da polícia. Não tem esse tipo de
jogada. E deixar bem claro, a sede da associação é dos moradores, entendeu? A sede
não é do tráfico, é dos moradores.
81
(...) se o comando é com ele, ele que é o cara no morro, se eu realmente... eu estou
ali, fazendo um trabalho, fortalecendo, e eu estou sempre em contato com eles. Se
entrar esse grupo aqui, irmão, pode ralar peito (...) Vai morrer. É onde muitos
morrem. Mas muitos porque se envolvem. Não é que eles não queiram se envolver
não, o grupo está ali, os caras, como ele falou: ‘Criado junto’. O pessoal ali, eles
procuram, você não tem como (...).
A pessoa que filma nos procura. Você não pode... Infelizmente você é presidente,
você não é dono da comunidade. (...) O dono da comunidade é o tráfico. Não tem
como fugir disso, se alguém falar que é diferente, não é. Porque não é mesmo.
Participante: “(...) Ele falou ali: Ah, não vou receber nada de ninguém! Concordo
plenamente com ele, mas muitas vezes o cara chega aqui... ele vê que você vai fazer
um evento. Ele chega pra você: E aí meu cumpadi! E olha que hoje não tem mais
dinheiro não, hein? Hoje eles não têm dinheiro. Hoje eles estão passando fome (...).
82
Mas mesmo assim ainda chega um ali, com aquela boa vontade dele, querendo
ajudar o grupo: (...) Aí o cidadão: Não irmão, está tranquilo, não esquenta não, pode
deixar que a gente vai... Não cumpadi, eu quero ajudar. Aí chega lá, digamos com
duzentos reais, tudo bem. Você não pode chegar pra ele e dizer: "Não, não quero o
seu dinheiro não”.
Participante: “Não vou dizer isso pra ele. É a mesma coisa que eu estar desfazendo
dele. Tudo bem, ele pode até colaborar com duzentos reais, mas eu tenho que
mostrar pra ele que o que eu fiz custou dois mil. Se não tivesse aqueles duzentos
reais ali, ia acontecer do mesmo jeito, está entendendo? Agora, aquilo ali, você pode
até receber, mas isso hoje... não tem mais dinheiro também não, que eles não têm
mais dinheiro não”.
83
Participante: “Não. Tem que negociar. Tem que negociar desde o momento que
você seja procurado. (...) Tem que negociar. Se não negociar, você não vai trabalhar
lá, se não negociar, você vai morrer”.
(...).
Participante: “Negociar é... Você não precisa ficar procurando. A partir do momento
que eles vão te procurar, aí sim”.
Tudo se passa como se os traficantes fossem atores políticos que não podem deixar
de ser consultados para a execução dessas atividades. É preciso ter a permissão
deles, sob pena de sofrer represálias que inviabilizariam essa execução. (Zaluar,
2004:362).
84
Os constrangimentos que esses poderes paralelos impõem às organizações políticas
locais, inclusive com o assassinato de muitas de suas lideranças, dão
prosseguimento ao terror policialesco antes imposto pelo Estado {durante o regime
militar}. Inibe-se, com isso, a adesão dos excluídos à institucionalidade
democrática, o que representa um desafio à própria democracia. (Burgos, 2003: 44).
Sabe-se que tais submissões existem, mas para os dirigentes, relatar episódios
relativos a esses constrangimentos é reconhecer a perda de legitimidade de sua função
de liderança local, preocupação que os moradores que não possuem esse papel de
representação não demonstram; e por isso junto a eles foram coletados testemunhos tão
contundentes dessas submissões e constrangimentos (Cfr. Machado da Silva, 2008c).
Assim, no coletivo de confiança aqui analisado não foram recolhidos relatos em que
líderes obedeciam a ordens de traficantes, o mesmo acontecendo na realização do meu
trabalho de campo no Pereirão. Também Antônio e Jennifer se preocupavam com a
apresentação que faziam de si mesmos. Mas em um depoimento recolhido no coletivo
de confiança é possível vislumbrar alguns dos constrangimentos existentes:
Eu mandei um gari comunitário embora, que ele falou assim: ‘Ó, mais tarde vou
desenrolar com o cara lá’. Eu agarrei no braço dele, segurei até chegar a hora do
cara descer, eu falei: ‘Ó, mandei embora, ele falou que ia vir aqui conversar com
você’. ‘Ah é? Mas qual foi?’. ‘Porque ele faltou ontem, faltou hoje, ainda inventa de
mandar atestado aí, e eu mandei ele embora porque está mesmo [incompreensível]
sua função, sua carga horária’. ‘Presidente, você é que sabe!’. ‘Então beleza!’.
85
que limitada e controlada), e também a própria segurança pessoal e da instituição,
quando o tráfico não tem interesse em interferir no trabalho da associação de moradores,
como ficou evidente no caso do Pereirão. Em muitos relatos os entrevistados afirmam
que os traficantes têm interesse exclusivo em manter seu ponto de venda, e desde que
não sejam perturbados em sua atividade não se interessam pelo que acontece na
associação. No entanto, eles sabem que a associação de moradores é uma fonte de
diversos recursos, políticos e financeiros, e assim podem a qualquer momento desejar
usufruí-los. No relato abaixo, por exemplo, os traficantes voltaram sua atenção para a
associação em busca de dinheiro:
Aconteceu um episódio muito chato lá [Nome da favela]. Pra ser sincero, depois da
gestão do Garotinho, não sei se todos concordam (...), o Garotinho inibiu a entrada
do tráfico61 na comunidade. Só que quando ele inibiu a entrada do tráfico, ele
afrouxou a parte de baixo. Aí desceu o morro, pra assaltar a redondeza (...). Nós
percebemos que eles [os traficantes] começaram a perseguir um pouquinho mais as
associações de moradores. Que a renda estava menor pra entrar, eles têm o padrão
de vida deles. A renda por ser um pouco menor, ele começou a pegar no pé da
associação.
(...), nossa creche estava desativada há oito meses, ele (representante do tráfico)
chamou o meu tesoureiro e falou, ofereceu uma verba pra que nós pudéssemos abrir
nossa creche novamente. O meu tesoureiro, sem saber, trouxe pra assembléia e
discutimos. Falamos o seguinte: “Só queremos ter espaço pra trabalhar. Não
queremos nada desse pessoal! Se der pra pintar a parede hoje, pinta, se não dá, a
gente pinta amanhã. Nós não queremos...”. Se você aceitar um real, mil reais ou cem
reais, está devendo um favor. E sempre ele vai te cobrar. (...) Quer dizer, não
aceitando desde o início, conseguimos trabalhar quase que tranquilo.
61
Mais à frente no relato o participante afirma que o Garotinho impediu a entrada de drogas nos morros,
não conseguiu eliminar o tráfico.
86
Dessa forma, novamente os dirigentes presentes reforçam que há alternativas de
ação que permitem se distanciar minimamente da submissão imposta pelos traficantes.
Mas as lideranças comunitárias sabem da dificuldade de manter distanciamento dos
traficantes, ainda mais em situações que apresentam real risco de vida. Nos casos em
que os traficantes tomam a iniciativa de procurar as lideranças locais, essas têm que dar
satisfações do seu trabalho (e, pode-se imaginar – embora nenhum relato o confirme –
até mesmo obedecer a uma eventual ordem dos criminosos). Mesmo assim, muitos
relatos apontam tentativas de manter o afastamento possível:
87
Moderador: “(...) é possível tentar produzir uma outra atitude?”.
Participante: “Sabe por quê? Porque o presidente que tava na época (...) a associação
ela foi muito assim, desmotivada, as pessoas não tinham confiança naquela pessoa
que estava na presidência, entendeu? (...) Porque achavam, quer dizer, não tinham
aquela visão, então hoje em dia mudou essa consciência. Então as pessoas estão
mais acostumadas a não procurar tanto o tráfico, a procurar mais a associação de
moradores, porque a gente passou uma certa confiança pras pessoas, não sei se
porque a gente é mulher, né?”.
Participante: “Faz diferença ser mulher, entendeu? E faz diferença também você não
ter vinculo, vinculo nenhum. Você ser vista, como se você não tem vinculo nenhum
com o tráfico, porque a gente não tem e a gente não aceita nada, entendeu? A gente
conversa quando eles precisam, pedem, igual ao que ela falou, vai todo mundo, é
assim, é meio que assim, né. Quando eles vêm falar, a gente chama o [Nome de uma
liderança comunitária antiga], chama não sei quem, vamos lá todo mundo. Aí
sempre resolve. Entendeu? Nunca se vai sozinho pra conversar nada. Entendeu?
(...)”.
88
Eles [a polícia] não conhecem, eles não conhecem ninguém. Ele não quer saber em
que casa ele vai entrar. Ele não quer saber de nada, porque ele não tem vínculo com
ninguém. Entendeu? Então ele vem, atira pra qualquer lado, não quer saber. (...)
Porque a polícia não quer saber em quem ele vai atirar, se ele vai atingir o bandido,
se ele vai atingir trabalhador, se ele vai atingir o... Ele não quer saber, ele está
atirando. E o bandido por sua vez, não. Ele vai naquilo que ele quer. Entendeu? Ele
tem a proposta dele, ele não sai matando o morador. Porque ele só mata aquele que
se envolve com ele, né? Então eu acho que a polícia é muito pior, cem vezes pior.
Porque eles chegam, e não têm noção do que ele vai encontrar, então ele já vai com
medo, atirando pra todos os lados.
89
existente em não desempenhar esse papel, em não buscar captar recursos e projetos para
a favela, pois os moradores cobrariam da associação a realização desses projetos.
Lá {Nome da favela}, nós éramos pichados por fazer muitas assembléias, tudo tinha
que chamar os moradores pra discutir, tudo tinha que chamar os moradores pra
discutir. Mas naquele momento, a associação tinha um papel. Era o papel de
representação política da comunidade. Hoje, ele tem uma visão né, embora não
tenha perdido esse papel, mas ela tem uma visão, mais de uma micro-empresa né,
uma microempresa, eu chamo 'ONG das ONGs'. Mas na visão real hoje, é uma
micro-empresa. (...). Então, eu falei que sou romântico por isso, porque eu, esse
papel de representação política dentro da comunidade, esse pra mim é vital. É vital.
E na federação, a gente se depara muito, a pergunta que o {Nome do participante}
falou: "Ah, mas ninguém trás nada, ninguém faz nada!” É certo! Se não se preparar
pra enfrentar essa situação, vai continuar do jeito que tá. E pior: "O que você tá
fazendo aí, meu irmão? Ali a favela A, o morro P tem tudo, como aqui não tem?”.
Oitenta, noventa por cento das lideranças comunitárias hoje, estão nos gabinetes.
(...) verdade, estão. Estão nos gabinetes, a maioria delas tem o cargo, que seja
trabalhando na prefeitura, trabalhando no governo do estado. Porque a primeira
coisa que eles procuram é a liderança comunitária, eles trazem para eles a liderança
comunitária. Aqueles que são resistências, eles associam ao tráfico, eles
desmoralizam (...).
Apesar da ligação com políticos não ser nova, o momento atual é marcado por
uma maior proximidade entre os dirigentes à frente de associações de moradores e o
poder público, em função da forma como os programas públicos são executados nas
favelas atualmente, onde as lideranças atuam como gestores dessas iniciativas, como
discutido na seção anterior. Assim, os dirigentes de associações de moradores buscam
ampliar o leque de suas ações para áreas como o gerenciamento de serviços públicos,
bem como para o desenvolvimento de projetos sociais via ONGs. Pretendem, dessa
forma, dar maior legitimidade para seu trabalho – tanto para os de fora das favelas
90
quanto para os moradores. No entanto, segundo os participantes do coletivo de
confiança, ainda assim muitos moradores não apoiam os dirigentes, acusando-os de se
beneficiarem dos recursos obtidos:
Moderação: E os moradores?
Participante: Ladrão! Como você vive nessa situação? E você não tem um centavo
nem pra sair da comunidade...
91
representados. Pode estar aí mais um elemento que esclareça porque as associações de
moradores de favela estão perdendo legitimidade, segundo seus dirigentes.
92
mando. Deste modo, ao controlar as associações eles não visam legitimar-se; trata-se de
algo que faz parte do processo de submissão pela força (não da ‘dominação’ weberiana)
dos moradores. Neste sentido, os traficantes se relacionariam com a associação de
moradores e com as lideranças, assim como com todos os moradores, de forma
estritamente instrumental, visando apenas aprofundar a submissão. Essa hipótese
encontra respaldo em alguns dos relatos obtidos; porém, é importante notar que a
intervenção direta do tráfico nas associações não é uma regra, pois se constatou também
pelos relatos e entrevistas que existem associações e dirigentes que atuam com certo
grau de autonomia.
A mediação faz com que, como por milagre, a ilegitimidade do contato se quebre. O
fato de alguém que é técnico ou representante de ONG estar negociando com uma
liderança permite que, por meio de um artifício cruel, aja como se todas as consultas
fossem legais e legítimas. Admite-se que a liderança estabeleça relações com
representantes do tráfico. É como se o fato de ser morador (a) eliminasse as
barreiras entre legal e ilegal que são válidas para as outras pessoas.
Aproximados(as) do ilegítimo, moradores(as) e lideranças são afastados(as) da
ordem e reafirmados(as) em sua não-cidadania.
93
pública que depende de uma verdadeira antinomia: de um lado, precisam ser vistos
como desenvolvendo uma atuação política consequente, do ponto de vista dos
moradores comuns e dos próprios traficantes; mas essa atividade, de outro lado, é
dificultada pela fragilidade de seu poder real, que afasta parte considerável de sua
potencial base social de apoio e abre espaço para reações imponderáveis dos traficantes,
minando sua legitimidade. Essa parece ser a dimensão privada, pessoal e local, da
tragédia que se abate atualmente sobre a ação coletiva nas favelas cariocas.
94
lideranças possuem nenhum ou poucos recursos para se defender ou reagir. Porém, para
os líderes comunitários, estratégias estão disponíveis em função de seu papel; como
representantes de associações de moradores essas pessoas tentam encontrar alternativas
que permitam sua atuação dentro das favelas. Para os moradores comuns, que tentam
proteger-se das ações dos traficantes, na maioria das vezes resta apenas a opção de
adaptar-se às imposições feitas pelo tráfico.
Por fim, quero ressaltar que o silenciamento dos dirigentes sobre as submissões
cotidianas que sofrem no exercício do seu papel permite encontrar similitudes com a
situação dos moradores do Pereirão, analisada no capítulo anterior: o silêncio sobre a
submissão vivenciada perpetua seus mecanismos de atuação, criando um dispositivo
que funciona em moto-perpétuo. Assim, delineia-se para os moradores de favela uma
condição de ausência de voz. No entanto, a vitalidade e a multiplicação das ações
coletivas nas favelas cariocas, majoritariamente no formato de “projetos sociais”, e o
destaque que essas ações vêm recebendo no espaço público mostram que, em alguns
contextos e sob condições específicas, os favelados possuem canais de expressão. Eles
têm voz. A forma como alguns dos moradores do Morro do Pereirão se expressam é
abordada no próximo capítulo.
95
III. A ONG TV Morrinho: “Como na vida real”.
Foto da autora
96
na condução de seu trabalho frente à associação de moradores tem repercussões na
legitimidade que os moradores dão a esse trabalho. Por fim, analisei como a modalidade
de presença do tráfico de drogas na localidade incide sobre as possibilidades de ação
dos dirigentes e como, apesar de sua presença subterrânea, também no Pereirão os
traficantes representam um risco a ser considerado pelos dirigentes.
97
Morrinho. Ainda que no começo da pesquisa o grupo estivesse desmobilizado, e que as
atividades realizadas não possuam ainda hoje uma constância62, no intervalo que durou
minha presença na favela do Pereirão não apenas o grupo realizou diversas viagens para
expor seu trabalho (além das viagens nacionais eles viajaram para a França, a Alemanha
e a Itália, para a Bienal de Arte de Veneza), como se transformou em organização não-
governamental, com sede na entrada da favela, começou um projeto de turismo na
localidade e lançou um documentário relatando sua história.
Assim, ainda que o grupo não se encaixasse nas minhas definições sobre o que
era um “movimento social” ou uma “ação coletiva”, suas atividades me pareciam
interessantes, não apenas pelo fato de ser uma iniciativa de jovens moradores, mas pela
maneira como retratavam, em forma e em conteúdo, a temática da violência cotidiana
vivenciada pelos moradores de favelas, e que estava ausente das falas dos moradores do
Pereirão.
98
presença intersticial do tráfico de drogas. Em função da grande quantidade de material
disponível sobre o grupo, particularmente na internet, o material analisado neste
capítulo inclui, além do trabalho de campo e de algumas entrevistas realizadas, pesquisa
em artigos de jornal e revistas e a observação de vídeos disponibilizados pelo grupo em
seu canal no site YouTube63. Vale ressaltar que as entrevistas realizadas não foram
muitas: primeiro por dificuldades em mobilizar os jovens quando as atividades do grupo
estavam suspensas, e quando as atividades aconteciam era difícil conversar com cada
um separadamente; em segundo lugar porque eles se mostravam decepcionados quando
eu dizia que a entrevista não era para a televisão ou para o jornal, mas para uma tese em
que seus nomes seriam trocados, o que fazia da entrevista um momento não muito
atraente. Assim, privilegiei neste capítulo (como nos outros), além do material
encontrado na internet e na mídia, a observação das atividades do grupo.
63
O YouTube é um site na internet, criado em 2005, que permite a divulgação e a troca de vídeos em
formato digital. Cada participante pode criar uma conta e “disponibilizar” seu vídeo, com uma limitação
de tempo de duração e algum controle sobre direitos de imagem, mas que são pouco respeitados. Também
é possível assistir aos vídeos sem ser inscrito no site. Ver: http://br.youtube.com/.
64
O Lego é uma marca de brinquedos dinamarqueses, que são produzidos industrialmente desde os anos
1950. Feitas de plástico, as peças possuem um mecanismo de encaixe, que permite a quem está brincando
criar diferentes formas, o que possibilitou a construção de cidades inteiras, expostas nos diferentes
parques temáticos da marca localizados na Europa. No Brasil os produtos começaram a ser
comercializados na década de 1980 e, ainda que sejam bastante populares, não são um produto de
consumo de massa por terem um preço elevado (entre R$ 50 e R$ 500, segundo pesquisa realizada em
sites de lojas de brinquedos). Para a utilização no Morrinho os participantes compravam suas peças em
brechós ou lojas de produtos usados.
99
de filmes que acaba de lançar um documentário sobre o grupo, um ponto turístico que
começa a receber investimentos públicos e finalmente uma organização não-
governamental. Mas como gostam de dizer seus participantes, para eles ainda se trata,
sobretudo, de uma brincadeira.
A ideia era brincar. A gente não tinha o que fazer, então começou a criar o que via.
A retratar o tráfico, o moto-táxi, o baile funk. Tentamos mostrar a realidade, o bem e
o mal.
65
Cf. Favela de brinquedo leva meninos à Itália: Maquete de comunidades cariocas criada como
brincadeira há 9 anos por dois jovens pobres ganha espaço na Bienal de Arte de Veneza. Reportagem de
Talita Bedinelli para o site do PNUD Brasil.
66
Cf. Favela Chique. Depois de fazer sucesso na Bienal de Veneza, o Morrinho, maquete feita por
garotos do Pereirão, ganha documentário. Revista o Globo de 15 de julho de 2007.
100
também em entrevista concedida a mim, a necessidade de encontrar espaços de lazer
seguros em um território que era naquele momento palco de freqüentes conflitos
armados entre traficantes de drogas foi o que motivou a iniciativa, e que incentivou a
adesão dos outros meninos participantes. O espaço de refúgio passou a ser o quintal da
casa de Cabeção, que então se localizava numa das áreas mais distantes das duas
entradas na favela, quase dentro da mata (atualmente sua família não mora mais no
local, pois se mudou para outra residência na favela, e a casa virou um centro para
recepção dos turistas que visitam a maquete). Era para lá que iam, após as aulas, os
amigos de infância. Ainda que muitos moradores reclamassem da brincadeira, já que os
jovens roubavam tijolos que estavam sendo utilizados em obras particulares na favela
para construir as casas da maquete, os pais deles apoiavam a iniciativa, tranquilizados
porque seus filhos estavam ali, e não circulando pela favela e expostos ao risco de serem
vítimas em um confronto armado entre traficantes e policiais. Além disso, os pais
estariam satisfeitos por saber que os filhos não estavam envolvidos em “atividades
erradas”, o que pode ser uma referência à adesão às quadrilhas de traficantes.
101
amigos para filmar a “brincadeira”. Ainda segundo a reportagem mencionada, os
meninos teriam “fugido para o mato” com a chegada dos diretores e do equipamento:
“Éramos uns estranhos invadindo a brincadeira deles”. No entanto, dois teriam se
interessado pela aparelhagem, e assim eles decidiram deixar as câmeras com os meninos
durante alguns dias. Assim foram feitas as primeiras filmagens na maquete. Já em vídeo
disponível na internet, feito por uma equipe de televisão universitária, um dos
participantes diz que os diretores queriam que eles representassem cenas para serem
filmadas, mas como o tempo da “brincadeira” era diferente do tempo de filmagem (em
função de seu “realismo”, que será descrito a seguir), os meninos acabaram fazendo o
filme eles mesmos.
67
A aproximação entre os projetos sociais e a “Cité par Projet” de Bolstanski e Chiapello foi abordada no
próximo capítulo desta tese.
102
Mas antes de discutir a transformação do grupo em artistas profissionais e em uma
organização não-governamental, vale a pena se deter um pouco nos detalhes da maquete
e da encenação ali feita.
O Morrinho é uma maquete que reproduz diversas favelas da cidade, que serve
de cenário para a representação da vida cotidiana nas favelas cariocas, particularmente
daqueles participantes das quadrilhas de tráfico de drogas. No Morrinho cada jovem
participante é dono de um morro, responsável por sua concepção, construção e
manutenção. Não existe um responsável pela maquete inteira – todos são igualmente
“donos” de suas partes da maquete, “donos de suas favelas”, e responsáveis pela sua
manutenção geral. O trabalho de manutenção é contínuo, já que as casas (feitas de
pedaços de tijolos) se localizam sobre terreno acidentado e sem contenção, o que
demanda não só o cuidado cotidiano como a reconstrução após dias de chuva. Ainda
que em termos estéticos a maquete em si chame bastante a atenção, por sua dimensão,
uso de cores e composição artística, o uso feito pelos jovens participantes dela como
cenário para a representação da vida nas favelas é sua mais importante característica.
Habitadas por bonecos Lego (como visto na imagem acima) que representam seus
moradores, as favelas contidas no Morrinho são “controladas” e “ocupadas” por
quadrilhas de traficantes de drogas, e esses são os principais personagens das
brincadeiras realizadas pelos jovens, bem como são as figuras centrais da produção
audiovisual do grupo, ainda que mais recentemente outras temáticas também tenham
sido abordadas. Assim, parte substancial da performance realizada pelos participantes
na maquete tem como tema a vida e o cotidiano dos traficantes de drogas e daqueles que
os cercam, namoradas, cúmplices, inimigos e até a polícia. São encenados conflitos
entre diferentes favelas e entre os traficantes e a polícia, especialmente o BOPE,
representado e localizado na maquete, com direito à sede. Nela existem bonecos que
103
representam os policiais, armas apreendidas em conflitos e uma carceragem, onde
diversos bonecos/traficantes estão presos. Representa-se a antiga “brincadeira” de
mocinho e bandido, mas com adaptações que tornam a performance em questão
particularmente interessante (como apresento na quarta seção deste capítulo).
Foto da autora
104
do Borel ele será, portanto, parte do Comando Vermelho, e será aliado de jovens que
controlam “favelas” que são representações de favelas controladas por traficantes da
mesma facção.
68
Com o desenvolvimento tecnológico os jogos eletrônicos conhecidos como games passaram a oferecer
a seus usuários uma representação gráfica muito avançada, o que permitiu, segundo jornalistas
especializados, um maior “realismo” das imagens. Por outro lado, esse realismo passou a preocupar os
pais e educadores, pois ainda se especula sobre uma possível correlação entre esse tipo de entretenimento
e um aumento na propensão para praticar atos de violência. Cf. “Violência do game Silent Hill ganha
realismo”, “Violência impede divulgação do game ‘Stranglehold’ na TV”, “Alta definição em games
gera preocupação com violência”, “Estudo nega que games incentivem violência”, “Games tornariam
jovens insensíveis à violência”.
69
O termo Realismo é usado para descrever movimentos artísticos em diferentes áreas, como nas artes
plásticas, na literatura, no teatro, etc. Em comum apresentam a característica de rejeição às idealizações
sobre o ser humano, especialmente em relação aos seus desejos e valores e a opção por descrever o real
em seus detalhes mais prosaicos e cotidianos (Dicionário Le Petit Robert, Dictionaire de la langue
française). Na França seus principais exemplos são a literatura de Flaubert e sua heroína adúltera
Madame Bovary, e a pintura de Coubert, em que retratou os trabalhadores em suas rotinas. No Brasil seu
105
com um dos participantes, Sandro, pode ilustrar melhor o “realismo” da brincadeira ali
encenada. Durante o trabalho de campo em um sábado fui informada que, naquela noite,
aconteceria em uma das “favelas” da maquete um baile funk70. Os bailes são realizados
à noite, pois a maquete possui iluminação feita pelos jovens especialmente para esses
eventos, e contam com um aparelho de som para completar a encenação. A música é
tocada alta, e chegou a incomodar os vizinhos. Ao baile vão os moradores da “favela”
em que ele se realiza e também moradores de “favelas” cujos “donos” pertencem à
mesma facção. Assim, segundo Sandro, seus bonecos iriam também, mas ele tinha que
coordenar a ida porque os bonecos têm que se locomover pela maquete com o maior
realismo possível – ele não pode juntar todos em um saco e levá-los até lá, por exemplo.
Quando perguntei se ele organizava bailes em sua própria “favela” Sandro me disse que,
como seus bonecos tinham entrado em conflito recentemente com a “polícia”, ele tinha
cancelado todas as atividades que contassem com a presença de “moradores” de outras
“favelas”, já que tinha certeza que a “polícia” dificultaria a entrada desses no seu morro.
Quando perguntei porque ele tinha entrado em conflito com a “polícia”, respondeu-me
que essa era a característica do “morro dele”: “eles” eram "esquentados" e “tiravam
onda” demais, referindo-se à personalidade de seus bonecos, que teriam uma postura
ousada e arrogante frente à “polícia”.
maior expoente é o escritor Machado de Assis, cuja obra discorreu sobre as hipocrisias da sociedade
brasileira durante a passagem do séc. XIX para o séc. XX.
70
Cf. nota feita no capítulo 3 definindo o que é um baile funk.
106
3.3. A ONG TV Morrinho.
b) A produtora audiovisual, que realiza seus próprios filmes e que também faz
filmes sob encomenda;
107
Portanto, a criação da ONG permitiu formalizar atividades que já estavam sendo
realizadas de forma amadora, além de fazer parte das iniciativas para profissionalizar os
envolvidos com o grupo, tanto os jovens artistas quanto a equipe de apoio
(coordenadores, técnicos, etc.). A ONG possibilita também o pedido de futuros
financiamentos, especialmente os que se destinam a viabilizar “projetos sociais”, e que
são passo importante para a profissionalização mencionada acima. O caminho
percorrido por diversos movimentos sociais e grupos que lhes prestavam assessoria
rumo à profissionalização é processo analisado por Landim (1993), e parece ter
paralelos com o caso do Morrinho, ainda que esse não tenha nascido de um “movimento
social”, e sim da reunião em torno de uma “brincadeira”. Segundo Landim (1993), na
década de 1980 as agências que financiavam o trabalho dos centros de assessoria e
educação popular ‘a serviço dos movimentos sociais’ (que em seguida se tornariam as
primeiras ONGs) modificaram sua relação com essas organizações, muito em função da
entrada de agências multilaterais (como o Banco Mundial) e governos no mercado de
financiamento social. A partir de então os financiadores demonstram interessem em
sustentar projetos que atuem na prestação de serviços diretos, de resolução imediata de
problemas da população, no que a autora chamou de ‘projetos materiais’ – em oposição
aos ‘projetos imateriais’, de política educativa, formação de lideranças, etc. (Landim,
1993: 368).
Foto da autora
108
No caso específico analisado, a formação da ONG acarretou também novas
formas de relação dos participantes do grupo com sua atividade artística, que desde o
começo foi concebida uma “brincadeira”, mas que gradativamente vem assumindo o
lugar de um “trabalho” na vida dos jovens participantes. Em diversos momentos do
campo essa nova relação com o grupo e com o produto que realizam ficou evidente.
Inicialmente, destaco o fato de que, nas diversas viagens feitas, os jovens participantes
receberam um cachê das equipes de organização dos eventos, que permite não apenas
cobrir os gastos feitos com a viagem (basicamente hospedagem e alimentação), mas
também que eles tragam dinheiro para casa ao final da estada no exterior. Segundo
relato de participantes foi possível, em alguns momentos, poupar cerca de 2/3 do cachê,
o que garantiu a um dos jovens uma renda durante os três meses seguintes em que ele
não trabalhou. Além disso, o cachê permite aos jovens o acesso a bens de consumo
acima das possibilidades de outros jovens da localidade. Ao relatar as aventuras e
desventuras de cada viagem, eles sempre mencionam as compras feitas no exterior:
cordões que custaram 100 euros, tênis, casacos, bonés, entre outros itens característicos
do consumo de jovens de qualquer classe ou local de moradia.
As viagens são, dessa forma, não apenas momentos onde os jovens são
reconhecidos enquanto artistas, mas também possibilidades de ganho financeiro. Gerar
renda e trabalho para esses jovens é um dos objetivos da ONG, mas em alguns
momentos se torna também fonte de conflitos no grupo. Por exemplo, na fase
preparatória de uma das viagens discutiu-se a possibilidade de um jovem da “segunda
geração”, Beto, acompanhar os colegas no lugar de um jovem do grupo original que não
poderia ir. Não seria sua estréia nas apresentações do grupo – ainda que fosse a primeira
viagem para fora do Brasil – e o jovem estava fortemente decidido a ir, mas alguns
colegas foram contra, visto que ele estava trabalhando já há sete meses em uma empresa
ligada ao ramo turístico na cidade, e contratado de maneira formal. Assim, seus
companheiros argumentavam que era pouco prudente abrir mão de um trabalho de
“carteira assinada” para engajar-se em uma viagem com o grupo, mesmo que o cachê
fosse convidativo; tratava-se de um cachê de 1.500 euros, por uma viagem de duas
semanas para apresentar a réplica da maquete no centro cultural de uma empresa
européia que realizava uma exposição sobre o Brasil. Para completar o cenário, o jovem
seria pai em poucos meses. O grupo discutia coletivamente, dessa forma, a legitimidade
do pedido de Beto, mas a maioria estava fortemente contra: um deles inclusive afirmou
109
que se recusaria a ir se ele fosse, pois se tratava de uma “maluquice”. Muitos
argumentavam: “você consegue um emprego e agora quer pedir demissão para viajar? A
ONG serve para te ajudar a encontrar um emprego, não para te fazer sair dele!” Outros
argumentavam ainda que ele acabaria sendo despedido por justa-causa, o que
dificultaria sua inserção em outro posto de trabalho, e assim quando seu filho nascesse e
ele não tivesse como sustentá-lo sua família acusaria “a ONG” de ter causado tal
situação. Expressavam assim uma preocupação que a imagem da ONG ficasse
prejudicada com o episódio, e argumentavam que o bem da ONG, enquanto coletivo,
era mais importante que o desejo de Beto de viajar. Ao final do debate prevaleceu a
decisão da maioria dos participantes, e o jovem não viajou com o grupo. Vale ressaltar
que a discussão se deu entre os jovens participantes, e não contou com a participação
dos coordenadores da ONG.
Além dos ganhos com os cachês das exposições da maquete, os jovens estão se
profissionalizando no ramo do audiovisual, e já atuam como diretores, roteiristas,
editores, diretores de arte e de fotografia, técnicos de som e aparelhagem, tanto nas
produções próprias do grupo quanto nas filmagens feitas por encomenda, ainda que
essas não sejam frequentes. O contato dos coordenadores da ONG com produtoras de
vídeo cariocas possibilitou que dois jovens participantes estagiassem nessas empresas,
mas essa experiência não resultou em oportunidades mais longas de trabalho após o fim
do estágio. Os pedidos feitos à produtora de filmes deles é uma fonte de renda para os
jovens: um canal de TV internacional, voltado para o público infantil, encomendou
quatro pequenos filmes para a produtora, que foram roteirizados, filmados e editados
pelos meninos, ainda que com o acompanhamento dos coordenadores da atividade. Em
outro momento, uma empresa contratou a produtora para realizar seu vídeo institucional
de final de ano, focado na categoria de “responsabilidade social” e apresentando
algumas ONGs que atuam no Rio de Janeiro. Nesses casos, o valor recebido é dividido
entre os participantes, e os meninos têm acesso a toda a negociação realizada e aos
valores pagos. No entanto, essa atividade não é tão consolidada e frequente quanto a
realização de exposições da maquete.
110
turismo especializadas em um turismo de caráter “social”, e a parte mais representativa
dos visitantes são estrangeiros. Como os jovens participantes do grupo às vezes estão
envolvidos em outras atividades, algumas crianças moradoras da favela atuam também
como guias, passando assim a fazer parte da “nova geração” do grupo.
(...) viajar para lugares idealizados como locus de elementos autênticos pertencentes
a outras culturas ou a um passado mistificado, ‘encenações’ das quais participam
também os próprios nativos que se beneficiam das oportunidades de trabalho e renda
gerados pelo turismo (Freire-Medeiros, 2005:6).
71
Cf. Carneiro e Freire-Medeiros (2004) e Freire-Medeiros (2006).
111
as populações envolvidas, través de um turismo menos predador, onde “tanto os
anfitriões quanto os hóspedes vivem uma experiência positiva de interação e
conhecimento mútuo” (Freire-Medeiros, 2005:7). A menção às experiências reais ou
realistas vai ao encontro do que é proposto pelo Morrinho: conhecer as favelas como
elas são. No material de divulgação do turismo local os visitantes são convidados a
desfrutar de uma “maravilhosa e segura experiência de arte e vida real” (Enjoy an
amazing and safe experience of art and real life, em inglês no original).
112
organização ainda funciona de maneira informal, e as relações pessoais entre os jovens,
e entre esses e os coordenadores e técnicos, são bastante importantes nas decisões sobre
os rumos do grupo. No caso mencionado acima, do jovem que queria pedir demissão
para acompanhar o grupo em uma viagem, a decisão foi tomada sem a participação dos
coordenadores da ONG, em uma reunião feita pelos jovens no local da maquete,
enquanto ensaiavam para a performance que seria apresentada no exterior. Nesse
mesmo dia, o coordenador convocou uma reunião na sede (na entrada da favela) para
discutir um tema que ele considerava importante, relacionado aos contatos que estavam
sendo feitos com uma instituição pública. Os jovens, todavia, não consideraram essa
reunião importante, e preferiram continuar o ensaio na maquete. Em outro dia, os jovens
discordaram sobre quais atividades deveriam ser realizadas naquele dia, véspera da
viagem à Áustria: enquanto a maioria escolheu confeccionar os bonecos, um deles
decidiu ensacar areia para a obra que está sendo realizada na sede de acolhimento dos
turistas. Por fim, ainda que exista uma separação entre profissionais e jovens, pois os
diretores de vídeo são os coordenadores da ONG, no final do campo fui surpreendida
com a notícia que a presidência da ONG estava sendo ocupada por um dos jovens, já
que o então presidente (um dos coordenadores) não teria disponível o tempo necessário.
Apesar de não ter entendido corretamente a diferença entre o cargo de coordenador e de
presidente, não posso deixar de notar que a hierarquia entre os membros do grupo não é
tão rígida quanto parecia à primeira vista.
Por último, a abertura da ONG permite que o grupo possa entrar no setor em
expansão do financiamento públicos e privados para “projetos sociais”, em sua maioria
ocupado por organizações não-governamentais. Em trabalho recente, Landim (2005)
discute dados de 2002 sobre o setor de Fundações e Associações sem fins lucrativos
(Fasfil) no Brasil74, mostrando como esse tem crescido nos últimos anos (o recorte
temporal da pesquisa é de 1996 a 2002), especialmente o setor de desenvolvimento e
defesa de direitos, onde se encontra a maior parte das ONGs, segundo a autora (2005:
83). Analisando os dados relativos às fundações e associações criadas mais
recentemente, a autora afirma que a maioria é de “vocação territorializada local e de
interesse geral (comunitárias e de moradores)”, e de defesa de direitos de grupos e
minorias (Landim, 2005: 82). Ela aponta ainda que este crescimento acontece em um
conhecido contexto de
74
Cf. ABONG et alli.
113
(...) redefinição das relações entre Estado e sociedade, as transformações nas
modalidades de regulação do laço social, as mudanças no mundo do trabalho e nas
formas de solidariedade a elas associadas, o aumento da desigualdade e da
desafiliação social, as dinâmicas de descentralização político-administrativas, etc.
(Landim, 2005: 77).
114
dão tratamento diferenciado aos moradores das áreas populares, e que nos últimos anos
se inscrevem no contexto de combate à violência urbana, como veremos na seção
seguinte.
Você está vendo que a molecada da comunidade não está indo para o caminho da
violência, estão seguindo o caminho que eu segui. Você vê eles se espelhando em
você. Sente emoção. Acho que isso é consideração e respeito. (em entrevista
concedida a uma equipe universitária75).
75
Vídeo disponível no YouTube, no canal do grupo.
115
ainda que em muitos desses casos a busca por autenticidade nas reproduções feitas não
permita esconder a existência desses atores. Por exemplo, o turismo em favelas é
orientado para proporcionar ao turista uma experiência real (Freire-Medeiros, 2007), e
por isso os visitantes vêem os traficantes, ainda que sejam orientados a não fotografá-
los. No entanto, os traficantes não são representados nos souvenires produzidos por
moradores e vendidos aos participantes dos tours. Os traficantes também não aparecem
nas fotografias feitas pelos “fotógrafos favelados” profissionais, ainda que nesse caso
esteja evidente que os traficantes não permitiriam serem fotografados de qualquer
maneira. Contudo, nas duas formas de representar favelas mencionadas acima mais
detalhadamente, os moradores envolvidos querem apresentar ao “de fora” a realidade da
favela, e selecionam como tema de seu trabalho também questões como as condições
precárias de moradia, de saneamento, etc., mas apresentando com bastante ênfase os
aspectos positivos. A produção da TV Morrinho parece, por outro lado, se focar quase
que exclusivamente sobre esses agentes, ainda que outros temas tenham aparecido nos
materiais mais recentes e profissionais. Dessa forma, a imagem positiva que os jovens
participantes dizem produzir pode estar mais ligada ao aspecto cênico (a maquete) do
que a produção de vídeos. Além disso, a elevação dos jovens participantes a condição
de artistas parece cumprir para eles a função de ser uma representação positiva sobre as
favelas e seus moradores.
116
manter seus jovens participantes afastados de “riscos” sociais, como a adesão ao tráfico
de drogas.
117
múltiplas formas de atividades”, mas “No mundo ocidental moderno, um dos grupos
mais vulneráveis ao risco social é o constituído por jovens”.
118
“Abandono das atividades relacionadas ao tráfico de drogas”; ou seja, que o número de
jovens participantes das atividades do projeto que tinham envolvimento com ações do
tráfico de drogas e que as abandonaram será utilizado como uma medida da eficácia do
trabalho. Os objetivos apresentados, assim como os indicadores, são bastante similares
aos de outros “projetos sociais” que atuam em favelas do Rio de Janeiro. No entanto, a
mobilização do argumento do perigo potencial de adesão dos jovens da localidade ao
tráfico de drogas parece em descompasso com a descrição feita da favela, inclusive no
mesmo Plano de Negócios mencionado; os autores apresentam como uma das forças do
projeto a “Ausência de tráfico armado na região”.
119
traficantes de drogas que ocupam seus locais de moradia e, portanto, alvo das ações
realizadas nessa “guerra” (Leite, 2000, 2008).
Desde que as favelas passaram a ser vistas como um “problema” , como aponta
Valladares (2005), são planejadas e executadas ações que diferenciaram os territórios
populares (incluindo as favelas) do resto do território da cidade, enquadrando sua
população de maneira diferenciada e, quase sempre, discriminatória. A autora apresenta
com detalhes como a representação social desses espaços enquanto um mundo à parte –
insalubre, anti-higiênico e contagioso (2005: 37) – orientava as políticas públicas a
serem ali executadas, desde as medidas para remoção dos cortiços até a políticas que
visavam administrar e controlar as favelas e suas populações (2005: 49). Nas décadas
que se seguiram ao surgimento das primeiras favelas, as ações públicas sobre elas
visavam sua eliminação, assim como de outras formas de habitação popular como os
cortiços, por seu caráter de “doença, mal contagioso, patologia social a ser combatida”
(Valladares, 2005: 40). A partir dos anos 1930, porém, há uma inflexão na
representação social sobre as favelas, por conta do governo do presidente Getúlio
Vargas, ainda segundo a autora (2005: 49). É na década de 1940, ainda no governo
Vargas, que são criados os Parques Proletários, exemplos de uma nova concepção do
poder público sobre as favelas e seus moradores (Burgos, 2003). Nos Parques
Proletários foram realojados entre sete e oito mil moradores de favelas, e seu objetivo
era não apenas fornecer melhores condições de moradia, mas principalmente:
(...) dar assistência e educar os habitantes para que eles próprios modificassem a sua
prática, adequando-se a um novo modo de vida capaz de garantir a sua saúde física e
moral (Valladares, 2005: 62).
120
Foucault para os pobres, mendigos e loucos na Paris retratada em História da Loucura
(Foucault, 2005b).
121
propostas para a sua solução, que foram sintetizadas por Leite (2000: 74) em duas
linhas. Uma delas demandaria mais ordem e repressão, e defenderia que os direitos dos
moradores das favelas não poderiam ser um impedimento para o combate aos
criminosos escondidos nelas. A outra seria composta majoritariamente por intelectuais,
ONGs e alguns profissionais da comunicação, e defenderia que o combate aos
traficantes de drogas deveria aliar “políticas de promoção da cidadania, destinadas
principalmente a jovens moradores” dessas áreas e iniciativas de segurança públicas
mais eficientes (Leite: 2000:74). Ainda hoje o debate sobre as causas da violência e as
soluções para combater a criminalidade comporta os dois discursos, que disputam
cotidianamente a autoridade sobre a questão. Ambas orientam as ações públicas, pois
vemos ao mesmo tempo um investimento crescente nas políticas de confronto entre
policiais e traficantes de drogas, que resultam em mortes diárias nas favelas (e em
menor número entre policiais), e um investimento em ações que prometem incluir
socialmente os jovens moradores de favelas, como as realizadas por diferentes ONGs
com financiamento público79.
O papel da política social passa a ser, portanto, evitar que os jovens escolham a
carreira criminosa, pois se acredita que a causa da adesão desses à criminalidade seja
sua “exclusão social”. Soares (1996), por exemplo, argumenta que a grande maioria das
vítimas e dos agentes da violência urbana são os “jovens excluídos da cidadania” e que,
portanto, uma das medidas para controlar esse fenômeno é “implementar políticas
públicas e iniciativas da sociedade civil criativas e intensas, emergenciais, voltadas
prioritariamente para a integração da juventude pobre” (Soares, 1996: 258). Assim, os
“projetos sociais” precisam disputar os jovens moradores de favela com os traficantes,
criando “(...) condições de atração da juventude pobre, bloqueando sua cooptação pelos
grupos que operam o tráfico de drogas e de armas (...)” (1996: 298). Segundo Machado
da Silva (2008a), o pressuposto que orienta essas ações é a crença na possibilidade de
cancelamento ou redução das condutas criminosas através de modificações
79
No dia 21 de janeiro de 2009 foi assinado um acordo entre a Prefeitura do Rio de Janeiro e o Ministério
da Justiça para a liberação de R$ 60 milhões para projetos sociais e esportivos em “áreas carentes” da
cidade, vindos do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci). Cf. Segurança:
Prefeitura receberá R$ 60 milhões. Globo Online, 21 de janeiro de 2009. Ainda no mesmo mês o
Governador Sérgio Cabral anunciou que irá liberar R$ 1,5 milhão para investimento no “projeto social”
do grupo AfroReggae, na localidade de Vigário Geral. Cf. AfroReggae ganha novo centro cultural. Globo
Online, 14 de janeiro de 2009. No ano de 2008 foi anunciado pelo governo federal que o Rio de Janeiro
irá receber R$ 99,9 milhões para investir em ações de segurança pública, também com verba do Pronasci.
Cf. Ministério da Justiça libera verbas para estado, e Tarso afirma que Pronasci deve ter efeito em 3 ou
5 anos. Globo On line, 27 de junho de 2008.
122
institucionais – que buscariam solucionar a “ineficácia intrínseca das leis” ou “a
incapacidade das agências de administração da justiça de fazê-las cumprir” – e de
iniciativas de caráter “civilizador” que diminuiriam o risco da opção pelo crime. No
entanto, o autor chama atenção para o fato de que, no debate sobre a “violência urbana”,
as análises que localizam o problema na ordem social institucional-legal jogam “na
obscuridade” a reflexão sobre o conjunto de práticas sociais que deram origem ao
problema, e que compõem a forma de vida em que estão inseridos os traficantes de
drogas (2008a: 40).
80
Para a autora, o interesse na juventude é recente no Brasil, datando dos anos 1990, mas na Europa e nos
Estados Unidos desde o começo do séc. XX agências governamentais são focadas nos jovens, o mesmo
acontecendo entre outros países da América Latina, em função do estímulo de organismos como a
CEPAL, ONU e de intercâmbios com o governo espanhol (Cf. Abramo, 1997).
123
Sob a égide da segurança pública foi criado o Programa do Gabinete de Segurança
Institucional da Presidência da República, sob o controle de um general do exército,
num claro simbolismo da ‘guerra’ que deveria se travar pela salvação da juventude
das garras do crime, do tráfico e da violência (Sposito e Carrano, 2003: 30).
Aqui talvez resida o mais claro exemplo do encontro entre representação, construção
de problemas públicos e políticas de intervenção. Com efeito, as ideias de
cumplicidade com os criminosos são em boa parte sustentadas, reproduzidas e
objetivadas pelas próprias políticas sociais e/ou ações filantrópicas destinadas aos
moradores de favelas em geral e, especialmente, aos seus segmentos mais jovens. À
sua orientação claramente focalizada e compensatória é adicionada uma filosofia
justificadora que penaliza a clientela, sempre pensada como potencialmente
81
Criado em 1995 pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso e coordenado por sua esposa, a
antropóloga Ruth Cardoso, tinha como principal conceito a articulação entre grupos da sociedade civil e o
poder público para o enfrentamento da pobreza e da exclusão social.
82
O Programa Nacional de Estímulo ao Primeiro Emprego é uma iniciativa do Ministério de Trabalho e
Emprego de geração de oportunidades de trabalho para jovens entre 16 e 24 anos, sem experiência prévia
no mercado de trabalho formal, que possuem renda familiar per capita de até meio salário mínimo.
Através de subvenções econômicas às empresas empregadoras – R$ 1.500 por ano/por vaga – o projeto
pretende gerar postos de trabalho direcionados para jovens participantes do programa. Cf. Rocha e
Araújo, 2008.
124
criminosa. Os programas passam a ser formulados e implementados em um viés
repressivo/preventivo, como uma espécie de ampliação dos instrumentos de controle
social, visando a afastar as categorias sociais “vulneráveis” ou “de risco” das
tentações da carreira criminal. (Machado da Silva e Leite, 2008: 50-1).
Os discursos do “risco social” têm por efeito perverso o reforço do estigma que
recai sobre os jovens que buscam atender, pois os classifica como potencialmente
criminosos, e servem de justificativa para ações e programas públicos que possuem um
caráter disciplinador, como observado em outro trabalho (Rocha e Araújo, 2008). Ao
analisar as falas de jovens participantes do Programa Nacional de Estímulo ao Primeiro
Emprego (PNPE), do governo federal, percebemos as freqüentes menções a medidas de
caráter disciplinador, que possuíam peso mais elevado na qualificação desses jovens que
conhecimentos técnicos específicos ou conhecimentos mais amplos sobre processos de
trabalho e gestão. Entre essas medidas foi destacada uma grande preocupação com as
roupas usadas pelos participantes (eles eram orientados a não usar roupas curtas e
justas), mas também eram feitos comentário sobre marcas corporais identificadas como
comuns entre moradores de áreas periféricas, como cortes e descoloração de cabelo,
especialmente no caso dos meninos. O mesmo era feito em relação ao vocabulário por
eles utilizados: gírias identificadas como de “favelados” eram desestimuladas, com o
argumento de que não seriam aceitas por seus potenciais empregadores (Rocha e
Araújo, 2008: 11-2).
125
física e mental (2008: 20). O resultado deste “intrigante casamento” (ou “hibridização”)
entre o campo penal e o social é uma ação pública sobre os jovens ao mesmo tempo
protetora e autoritária (2008: 23-4). No entanto, nos dias atuais as crescentes taxas de
criminalidade, sobretudo juvenil, e a incapacidade dos governos de controlar a violência
vêm colocando novamente a juventude em evidência como alvo das políticas de
manutenção da ordem. Segundo o autor, observamos atualmente o retorno das
demandas por aprisionamento de jovens nos países ocidentais, representando um novo
movimento no pêndulo entre os campos penais e sociais. Ou, como disse o autor, uma
“(re) pénalisation” do campo social (2008:23).
126
jovens brincando de ser traficantes de drogas, e mais ainda, de “donos” de “favelas”,
controlando um exército de bandidos, “soldados”, e engajados nas questões relativas a
essa carreira: confrontos armados, negociação com policiais, venda de drogas,
organização de eventos como “bailes funk”, etc. Pareceu-me estranho que a encenação
da vida de traficantes de drogas, sem condenação moral de sua atividade, fosse o centro
das atividades de um grupo que se apresentava como um “projeto social”. Além disso, a
brincadeira não me pareceria tão estranha se fossem crianças brincando, o que é fato
corriqueiro nas favelas cariocas há bastante tempo (Cf. Zaluar, 1985), mas o fato de
serem jovens homens brincando “de bandido” me pareceu diferente83. Talvez por causa
dessa primeira impressão criei uma resistência inicial a encarar o grupo como produtor
de uma expressão artística que falava, direta e abertamente, sobre um tema que estava
sempre em suspenso nas conversas estabelecidas com os outros moradores do local: a
existência nos territórios das favelas de quadrilhas de traficantes de drogas e os efeitos
da convivência forçada sobre a rotina e a sociabilidade dos moradores.
83
Adultos brincando não é nada excepcional. Segundo pesquisa divulgada pelo Jornal O Globo, mais de
50% dos adultos americanos jogam videogames, e entre 18 e 29 anos o índice aumentaria para 81%,
segundo pesquisa de Pew Internet & American Life Project. Cf. matéria no site O Globo Online “Mais de
50% dos adultos dos EUA jogam videogames, revela pesquisa”, publicada em 09 de dezembro de 2008.
127
Obs: Ver boneco armado à esquerda, tomando conta do prédio da “prefeitura”. Foto da autora
Para os jovens a opção pelo tema da vida dos traficantes de drogas aparece como
evidente, como me disse várias vezes Cabeção: “Retratamos a vida das favelas como ela
é”. Em uma das minhas visitas ao grupo perguntei a ele se era possível uma “favela” na
maquete não ter “dono”, tentando fazer um paralelo com a experiência do Pereirão, uma
favela “sem tráfico”. Para a minha surpresa, a resposta foi: “Claro que não, não existe
favela sem ‘dono’!”. Quando mencionei o Pereirão, como exemplo de “favela sem
dono”, ele modificou os termos da conversa, passando de uma discussão mais geral
sobre as favelas do Rio de Janeiro para o nível particular da maquete, dizendo que eles
tinham feito uma vez a reprodução do Pereirão na maquete, mas que por falta de
cuidado do seu ‘dono’ ela tinha sido destruída pela chuva e em seu lugar foi construída
outra favela. Em outro momento fiz referência aos lemas escritos em placas e colocadas
ao longo da maquete, que em sua grande maioria fazem referência ao imaginário sobre
os traficantes de drogas: falam sobre traição e inimigos, sobre informantes da polícia,
sobre guerra e confrontos:
128
Dizem que eu não rezo pela alma dos meus inimigos. Mentira. Rezo para que elas
queimem no inferno.
Putaria, Marcola e Bill: dois traficantes, Marcola e Bill, vão a um bordel e são
enganados pelas prostitutas, que aplicam o golpe conhecido como “Boa noite,
Cinderela”, onde a vítima consome uma bebida com um forte calmante e dorme,
permitindo que o criminoso a roube sem resistência. O vídeo termina com as
prostituas passeando pela maquete no carro dos traficantes.
Cena do Ratatá: “Sargento Trincado” e “Cabo Neurose” ligam pelo rádio para os
traficantes do Morro do Ratatá, cobrando o pagamento da propina realizado
semanalmente. Os traficantes argumentam que já pagaram o “arrego” a outro
policial que se apresentou como amigo do Sargento, e os dois entram em conflito.
Começa a troca de tiros entre os traficantes e os policiais, que pedem reforço ao
Batalhão onde estão alocados. Mas quando o reforço chega são os policiais que têm
uma surpresa, pois foi o coronel responsável pelo Batalhão que tinha recebido a
propina que lhes era devida. Ao final os dois policiais são punidos pelo coronel.
O destino insólito de Alex: filmado quase em câmera lenta, com apuro cênico e
música de filme de ação, o vídeo mostra o acidente de carro que causou a morte do
traficante Alex, e como a polícia comemorou ao identificar quem era a vítima do
acidente.
Lágrima e revolta pelo irmão Alex: continuação do vídeo anterior, mostra a família
do traficante e os moradores da localidade onde ele “atuava” (a favela do
Fogueteiro) iniciando uma manifestação para denunciar que a morte de Alex não foi
um acidente, e sim um homicídio perpetrado pelos policiais. Os moradores gritam:
“Mataram o Alex! Covardes! Justiça! Justiça!” O vídeo acompanha o Coronel
Araújo, que dá uma entrevista a uma rede de TV afirmando que Alex fazia, no
momento do acidente, o transporte de armas e drogas entre favelas, e que foram
encontrados junto ao corpo quatro quilos de cocaína. Em seguida, a polícia ameaça
os manifestantes que começam a descer o morro: “Quer protestar? Daqui para lá!
Porque se ultrapassar... a porrada vai comer!”. O vídeo termina com a família de
Alex chorando.
129
O primeiro vídeo é uma anedota sobre a vida dos bandidos, fazendo referência a
ambientes e figuras marginais, como bordéis e prostitutas. Ainda que seja protagonizado
por bandidos (um deles com o mesmo apelido de um criminoso famoso, líder da facção
que controla diversos presídios brasileiros, o Primeiro Comando da Capital, e
atualmente preso: Marcos Camacho), nesse vídeo os bandidos são vítimas, enganados
pelas prostitutas. Em outro vídeo – do qual assisti apenas os ensaios, mas que ainda não
está disponibilizado na Internet – os bandidos também são ridicularizados, passando por
situações humilhantes. No entanto, nesse vídeo a figura do “chefe do morro” aparece
como positiva, pois ele é o árbitro que castiga os bandidos que tinham desviado uma
carga de drogas e colocado a culpa em um artista da favela. O segundo vídeo descrito
acima tem o aspecto de denúncia, ainda que em tom de comédia, da relação de
promiscuidade e corrupção entre bandidos e policiais. Aqui não existem heróis e vilões,
todos estão envolvidos na dinâmica do comércio ilegal de drogas. A crítica à polícia
permanece nos dois vídeos seguintes, onde os policiais comemoram a morte de um
traficante e impedem a sua família de protestar. No entanto, ainda que pareça ser uma
obra em construção (provavelmente com outros capítulos, mas que não foram
encontrados on-line), a figura do “traficante” Alex não é condenada nem absolvida. Não
sabemos se realmente ele carregava drogas, ou em que medida se justifica a denúncia da
família de que ele foi assassinado pela polícia, especialmente porque não sabemos o que
se passou antes da cena do acidente com o carro. A “novela de Alex” apresenta apenas
um pequeno fragmento da história, um recorte que mostra uma cena da vida de seus
personagens.
84
Este vídeo recebeu o prêmio de Melhor Filme na Mostra Competitiva do Festival ‘Visões Periféricas’,
realizado em 2007.
130
usufruir dela. O terceiro filme é “Acadêmicos do Morrinho”, que dramatiza as dúvidas e
angústias de um cantor de funk (MC), convidado para cantar o samba da escola da sua
“comunidade”. Esse filme, especificamente, é bastante significativo de uma outra
abordagem adotada nos filmes, pois tem uma “lição moral” a ser ensinada: que devemos
enfrentar nossos medos, acreditar em nós mesmos, perseguir nossos sonhos, etc. Por
fim, o filme “A revolta dos bonecos” traz a indignação dos bonecos Lego que são
deixados na maquete original, quando os jovens partem para se apresentar em uma
exposição internacional. Trava-se entre bonecos e jovens uma discussão sobre quem são
os verdadeiros “artistas”, as figuras ou quem as manipula, em um interessante exercício
de meta-linguagem85.
85
Novamente o filme foi apresentado no Festival ‘Visões Periféricas’.
131
A reprodução, enquanto ‘brincadeira’, do cotidiano de traficantes de drogas do
Rio de Janeiro remete aos conceitos de ‘play’ e ‘game’, como proposto por Mead
(1967). Para ele, o self individual é desenvolvido ao longo da infância, através de
interações sociais como a brincadeira e o jogo (play e game) que permitem o contato da
criança com o mundo social. Para ele, o processo começa com o play, quando a criança
assume o papel de personagens do mundo “adulto”: bandido e policial, médico e
paciente, mamãe e filhinho, etc. e experimenta as diferentes posições. Em um segundo
momento, a criança participa de games, onde deve respeitar as regras e lidar com as
expectativas dos outros participantes, entrando em contato com um “outro
generalizado”, o conjunto de normas e expectativas presentes na vida social. Oliveira
(2008) faz excelente uso das categorias de Mead, ao analisar a relação de jovens com a
carreira criminosa, mostrando como o tráfico de drogas pode fornecer a eles imagens e
símbolos que assumem papel fundamental na construção da identidade nessa faixa
etária, o que explicaria o fascínio que os traficantes exercem sobre muitos jovens,
mesmo aqueles que não aderem ao crime (Oliveira, 2008: 277-279). Nesse sentido,
através de uma ‘brincadeira’, que se organiza enquanto ‘jogo’ (em função das regras
criadas), os participantes experimentavam a vivência de uma carreira criminosa,
atividade que observavam em seu cotidiano, ao mesmo tempo em que participavam do
processo de socialização (o mundo social ao qual as crianças são apresentadas através
de jogos e brincadeiras). No entanto, no caso analisado a brincadeira e o jogo
ultrapassariam a fase da infância.
132
verdade). Compreendo que falar sobre armas faz parte do cotidiano de jovens homens
moradores de favelas, porque essas estão presentes nessa vida cotidiana. Mas falar de
armas reais em uma favela “diferente das outras” me pareceu novamente “fora de
lugar”, e me fez questionar se a temática do tráfico de drogas era uma escolha artística
ou uma forma de viver como jogo a experiência da vida criminosa, não mais como
vítima – o que é comum na experiência dos moradores de favela – e sim como
protagonista.
86
Role Play Games são jogos onde os participantes interpretam personagens, e criam em conjunto o
enredo da história a ser experimentada. A menção às semelhanças entre as performances realizadas pelo
grupo e esse jogo, criado nos Estados Unidos e trazido para o Brasil nos anos 1980, foi feita pelos
próprios participantes do Morrinho.
87
Pesquisas demonstram que as mulheres respondem por menos de 5% da população carcerária no país.
Cf. Souza, 2006. A autora registra um aumento das mulheres presas por tráfico de drogas (54,6% contra
20,8% em 1976, como levantado por pesquisa feita por Lemgruber à época), mas segundo entrevistas
feitas com presas do Tavalera Bruce, no Rio de Janeiro, sua inserção nas quadrilhas era subalterna,
atuando mais no transporte de drogas entre favelas (mula) do que no planejamento das atividades
criminosas (Cf, Souza: 2006: 15).
133
No entanto, a autora menciona a brincadeira de “ser bandido” ao analisar as
explicações dos moradores (as “teorias nativas”) para a entrada de jovens na vida do
crime, e como esses entendiam que a proximidade com os bandidos, e o fato de
reproduzir o comportamento desses nas brincadeiras, incentivaria a adesão ao crime.
Em seguida, Zaluar afirma que as crianças da localidade se tornaram alvo da atenção de
moradores organizados e de lideranças locais, que criaram atividades como capoeira e
futebol infantil, buscando “orientar o menor” e “ocupá-lo em suas horas ociosas com o
lazer saudável” (2002 [1985]: 155). No caso do Morrinho, ainda que em alguns
momentos a “brincadeira” tenha sido vista e rejeitada por alguns moradores88, não é
essa a imagem que outros moradores, críticos de arte, jornalistas, artistas,
pesquisadores, etc. fazem do grupo.
88
Além do episódio em que policiais militares no morro obrigaram os meninos a destruir a maquete, os
participantes disseram que no começo os moradores da favela que criticavam a brincadeira diziam que
eles estavam “treinando para ser bandido”.
134
A ambivalência em relação ao crime, portanto, seria parte constitutiva do caráter
democrático e ao mesmo tempo desigual da sociedade brasileira, reflexo de condutas
que se tornam, a cada dia, menos definidas por adesão a valores e, portanto, mais
reflexivas e ambivalentes. Para a autora, a ambivalência explica a forma como alguns
intelectuais veem o crime, ou certas modalidades criminosas, assim como a forma como
moradores de favela convivem com os criminosos:
E se, em sua maioria, os favelados disso não tiram nenhum proveito [do comércio de
drogas que se realiza em suas localidades de moradia], todos são capazes de
entender por que alguns de seus filhos entram “nessa vida”. Diante de uma violência
policial desmedida, como pedir-lhes que se oponham, como no passado, ao
banditismo? Prevalecem também para eles as estratégias de sobrevivência (2000:
184).
135
3.5. O Morrinho e o “silenciamento da palavra”.
136
restrita à maquete e à representação que nela acontece. Nesse sentido, essa
representação assemelha-se a de filmes recentes, como Cidade de Deus e Tropa de
Elite, onde não são produzidas reflexões sobre situações complexas de violência, e sim
um “espelho” que apenas constata “um estado de coisas”, como afirmou Bentes (2003:
231).
Vale ressaltar ainda que, como dito acima, o fato de se reunirem em torno de
uma ONG oferece aos jovens do Morrinho uma proteção contra possíveis condenações
morais, que recaem sobre a maior parte dos outros moradores de favelas. Assim,
possuem um campo maior de ação, inclusive nos espaços fora da favela – como o
espaço público, a mídia, os governos, etc. – por conta dessa proteção que “vestem”,
dessa armadura de “projeto social”. O formato de ONG dá ao grupo um status que,
ainda que parcialmente, permite sua circulação social e o reconhecimento de sua
atividade. “Ser” ONG é diferente de “ser” associação de moradores, ou “ser” um
favelado. Essas diferentes formas de “ser” dos moradores de favela, e sobre como elas
se “ajustam” às formulações atuais sobre o “problema da favela”, as novas formas de
atuação pública e um “novo espírito do capitalismo” (Boltanski e Chiapello, 1999) são o
objeto da reflexão apresentada a seguir.
137
IV. Associação de moradores e organizações não-governamentais:
rupturas e continuidades.
89
Texto do Mosaico: “Viver na favela é uma arte. Ninguém rouba, ninguém escuta, nada se perde. Manda
quem pode; obedece quem tem juízo”.
138
governamentais compartilham de uma mesma ascendência: ambas são organizações da
sociedade civil e compartilham valores e metodologias inauguradas a partir do
fenômeno nomeado “movimentos sociais urbanos”. Porém, para além dessas
proximidades, tais atores encontram respostas diferentes no espaço público para as
ações que realizam no mesmo território. Tais semelhanças e diferenças estabelecem-se a
partir de seus lugares dentro de uma reflexão maior sobre os “novos movimentos
sociais”, mas também dentro da discussão mais recente sobre o papel do estado
enquanto agente executor de políticas públicas, especialmente aquelas voltadas para a
questão social.
90
Mas a transição dos “velhos” para os “novos” movimentos sociais não é tão linear quanto parece; por
exemplo, o movimento feminista está presente nos países centrais desde o final do séc. XIX, e no Brasil
esse se consolida nos anos 1930.
139
“urbano” que a idéia de “novo”. O termo “movimentos sociais urbanos” destaca a
adesão das classes populares recém-chegadas nos grandes centros urbanos e organizadas
em torno das questões da cidade, como habitação, saúde, transporte, escolas e creches,
etc., em um movimento diretamente relacionado às profundas transformações
estruturais pelas quais o país passou a partir da segunda metade do séc XX,
particularmente a partir dos anos 1970 (Boschi, 1987: 41). Talvez em função dessa
característica, mais popular e relacionada às reivindicações por melhores condições de
vida, o termo mais comumente empregado na literatura brasileira seja “movimentos
sociais urbanos”.
140
alternativas, independentes e espontâneas (tanto no sentido de não-institucionais quanto
de não dirigidas desde fora)” é uma definição em “contraste” aos outros movimentos
populares – e representa o núcleo central do paradigma teórico a respeito dessas
manifestações coletivas (1985: 324). Sua forma de inserção no processo político,
tomando o estado como interlocutor privilegiado e se apresentando como ator cujas
ações podem ter impacto transformador, é considerada um pressuposto analítico nas
pesquisas avaliadas pelos autores (1985: 325 e seguintes). A partir da crítica formulada
por Machado da Silva e Ribeiro (1985), bem como do trabalho de Ruth Cardoso (1983,
1987), percebe-se que desde os anos 1980 a perspectiva utilizada na abordagem desses
“movimentos sociais urbanos” primava por evidenciar suas diferenças em relação aos
movimentos anteriores, e sua nova forma de articulação com o estado. No entanto, os
autores mencionados, assim como análises feitas posteriormente, buscaram ressaltar as
continuidades e as tensões existentes dentro desses coletivos.
(...) a grande base social dos novos conflitos sociais é formada por segmentos de
baixa renda e os temas desses conflitos passam, sobretudo, pela sobrevivência
imediata, como saúde pública, moradia, transporte coletivo urbano, saneamento
básico, segurança pública, proteção aos ‘menores abandonados’, entre outros
(Doimo, 1995: 61).
141
especialmente aqueles que visam direitos, como o feminista ou o negro. No caso
específico dos movimentos por direitos, o autor adverte que a especificidade da
constituição do Estado Brasileiro diferencia os nossos movimentos daqueles
encontrados nos países centrais, “onde, por contraste, os direitos de cidadania foram
conquistados” (Boschi, 1987: 30).
142
progressiva vitória do componente integrativo dos movimentos, que as organizações
não-governamentais assumem o papel que desempenham hoje, de executoras de ações
públicas em “parceria” com o estado, como veremos a seguir.
143
Outro trabalho importante para compreender a passagem que alguns
movimentos fizeram em direção ao formato de ONGs é o de Leilah Landim (1993), já
mencionado no capítulo III desta tese (Cf. pp. 107). Para a autora, o espectro de
organizações que prestavam “assessoria” aos movimentos populares, e que recebiam em
sua maioria financiamento de instituições estrangeiras, entraram nos anos 1990 tendo
que se adaptar as demandas do novo mercado de financiamentos, modificado pela
participação de agências multilaterais e governos interessados em mitigar o problema da
fome e da pobreza. Nesse contexto, “projetos materiais”, de atuação direta com a
população-alvo, se tornaram mais prioritários que “projetos imateriais”, i.e., política
educativa, formação de lideranças, etc. (Landim, 1993: 368). As organizações de
assessoria melhoraram sua infra-estrutura para poder alcançar as metas e os resultados
planejados, e critérios como eficácia passaram a participar da avaliação do trabalho
realizado. Nesse sentido, Landim define essa profissão com contornos de militância de
“associativismo de resultado”. Mas os próprios movimentos, em seu processo de
modificação interna, exigiram dessas organizações uma adaptação, pois o processo de
democratização permitiu que os movimentos se consolidassem dentro do espaço
público, diminuindo assim a importância que os centros de assessoria tinham na
mediação deles com outros atores sociais. Além disso, aumentaram as disputas políticas
internas aos movimentos, e as próprias estratégias de atuação começaram a serem
repensadas. Dessa forma, as transformações nos movimentos reforçaram a necessidade
dos envolvidos na ‘assessoria a movimentos populares’ adaptarem-se a uma nova
situação, esvaziando a atividade de assessoria e passando a assumir o papel de atores
sociais, discutindo a questão do desenvolvimento e da luta contra a pobreza no contexto
dos anos 1990 (Landim, 1993: 350).
144
política estatal, e onde não existem contratos formais estabelecidos entre governo e
organizações; o “encontro prestação de serviços”, onde as relações entre ONGs e
governo são extremamente burocratizadas e distanciadas, e a ONG não participa da
elaboração de políticas, sendo chamada apenas para executá-las; e o “encontro
participativo”, onde ONGs e governos partilham as responsabilidades sobre a
formulação e execução das políticas públicas (2002: 111-2).
Para Teixeira (2002) essas interfaces entre ONGs e Estado são “encontros”
porque um mesmo governo pode estabelecer diferentes dinâmicas com as organizações,
dependendo da política em questão, do tema, da importância dada ao assunto, etc., e
vice-e-versa. Assim, esses três tipos de encontros definidos não esgotam as
possibilidades de relação entre ONGs e Estado, e nem determinam o perfil das
organizações por ela pesquisadas. No entanto, a autora deixa claro que, em “encontros”
onde as relações entre ONGs e agências governamentais são hierarquizadas e não há
partilha das responsabilidades entre os atores, não há uma efetiva participação da
sociedade civil na gestão da coisa pública, e não há democracia (2002: 141). Quando o
poder está concentrado nas mãos dos governos, e eles determinam o escopo e o formato
das políticas a serem executadas, a capacidade das ONGs de executarem seu papel de
monitoramento das ações públicas e de representarem os interesses dos coletivos
populares fica fortemente comprometida. Além disso, as ong’s passam a competir entre
si, enfraquecendo as redes e articulações das quais fazem parte, e tornam-se
dependentes do Estado para seu financiamento, limitando a crítica e o debate a respeito
dos rumos das políticas implementadas (2002: 135).
Fica evidente que os riscos mencionados pela autora são mais frequentes quando
o “encontro” entre ONGs e Estado se dá nos moldes de “prestação de serviços”. Esse
parece ser, no entanto, o tipo mais comum de relação entre o Estado e as ONGs que
atuam nas favelas cariocas, particularmente porque muitas dessas passam a atuar nesses
territórios apenas como executoras de “projetos sociais” diretamente vinculados a
políticas públicas. No entanto, algumas ONGs que também atuam na execução das
políticas tiveram importante papel na discussão a respeito da violência urbana e de
meios para diminuí-la, como vimos anteriormente (especificamente no caso do grupo de
pesquisadores ligados ao Iser e que formaram, posteriormente, o Movimento Viva Rio).
Trabalho recente de Koslinski (2007) mobiliza uma vasta literatura para tratar das
especificidades das ONGs enquanto associações da sociedade civil, mostrando que suas
145
características particulares as diferenciam de grupos de pressão e de representação de
interesse mais tradicionais na literatura sobre movimentos sociais. A partir de um survey
realizado com 301 organizações de diferentes estados brasileiros e configurações
internas, Koslinski demonstra como mais da metade das organizações pesquisadas têm
acesso a recursos governamentais, sobretudo as mais profissionalizadas, que contam
com trabalho especializado. Dessa forma, é possível afirmar que com a “parceria”
estabelecida entre organizações não-governamentais e governos – definida como
financiamento público dado para execução de “projetos sociais” ligados à políticas
públicas – as ONGs assumem cada vez mais uma função de agência estatal privada, e
cada vez menos de representante de interesses existentes na sociedade civil. De fato, o
papel da sociedade civil enquanto esfera política, onde a cidadania democrática é
exercitada, estaria sendo cada vez mais esvaziado (Alvarez, Dagnino e Escobar, 2000).
91
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) realizou em 1996 uma pesquisa sobre
associativismo no Brasil, como suplemento de uma Pesquisa Mensal de Emprego (PME), realizada em
seis regiões metropolitanas do país. Outras pesquisas foram feitas por outros institutos e pesquisadores,
mas todas carecem de critérios de comparabilidade. Além disso, as definições sobre “participação em
associação” não são consensuais (Avritzer, Recamán e Venturi, 2003).
146
numerosas92 e que ocupam um lugar particularmente importante na condução da
questão social nacional (Gohn, 2002; Landim, 1993). Outros trabalhos ainda recuperam
a importância dos movimentos sociais, independente do formato que têm assumido, na
discussão atual sobre novas subjetividades na contemporaneidade.
92
Um breve panorama das Ong’s no Brasil já foi mencionado na Introdução desta tese, mas vale lembrar
que em 2005 existiam no país em torno de 340 mil fundações privadas e associações sem fins lucrativos,
segundo o IBGE. Vale ressaltar que dentre essas associações nem todas são Ong’s.
147
uma regra cultural, que faria parte do conjunto de privações e da exclusão ao qual o
pobre está submetido, pois “(...) a pobreza é um sinal de inferioridade, uma forma de ser
na qual os indivíduos perdem sua capacidade de exercer seus direitos” (Dagnino, 2000:
82). A luta pelo reconhecimento das camadas populares como ‘portadoras de direitos’ é
então uma luta contra uma cultura autoritária, e é através dela que os movimentos
sociais estabelecem a ligação entre cultura e política, o que permitiu que se criasse uma
articulação com outros movimentos sociais de caráter mais cultural (estrito senso). Essa
visão de democracia que os movimentos tentam implementar é operacionalizada pelo
conceito de cidadania, pois é quando as carências sociais passam a ser vistas como
direitos, e defende-se que ‘o pobre também é cidadão’, que os movimentos populares
urbanos dão um passo importante na sua luta, e se encontram com outros movimentos
que também operam com essa noção.
148
mais elevados das hierarquias ocupacionais), do desemprego e do trabalho precário,
assistimos ao desmonte da civilização do trabalho. Tais fenômenos levam a uma
reorganização dos princípios em volta dos quais a vida coletiva se organiza. Nesse
sentido, Touraine acredita ser apropriado afirmar que, antes, nos referíamos a nós
mesmos em termos sociais; hoje falamos de nós mesmos em termos culturais. É no
campo cultural que estão em jogo os maiores conflitos da sociedade atual, e onde as
reivindicações apresentam-se com mais força. Multiculturalismo, proteção às minorias,
direito à prática religiosa, à diversidade cultural, etc. são as questões que mobilizam os
países centrais, e que são trazidas à cena pública pelos “novos movimentos sociais”.
149
processo de democratização da sociedade brasileira – e por isso seria esse o momento
identificado pela literatura e pelos militantes como o auge da mobilização popular em
torno desses coletivos.
93
Evidentemente, tal disputa simbólica pela representação das favelas não é um fenômeno recente ou
inédito. Como demonstrou Valladares (2005), Leeds e Leeds (1978), Perlman (2002), entre outros, a
favela sempre foi objeto de olhares externos que a retratavam negativamente; seja como bárbaros,
simplórios, matutos, malandros, etc., entre outros estereótipos. No entanto, como apresentado na
Introdução desta tese, a variação atual deste embate põe em xeque a própria possibilidade de manutenção
de uma disputa entre representações sobre as favelas, dado que um dos lados deste conflito vem sendo
estigmatizado e rejeitado a ponto de não ser mais identificado como ator legítimo para participar da
produção dessas representações. Dessa forma, o que está em jogo não é a produção de imagens externas e
estereotipadas sobre as favelas em si, mas sim a variação observada em seu conteúdo.
150
circular outras imagens sobre as favelas, tornando a representação dessas áreas mais
complexa” (Gama, 2009: 109, grifos da autora). Os participantes desses movimentos
estão assim engajados em uma disputa no campo simbólico, onde o que está em jogo é
como são representados os territórios populares e seus moradores – ainda que, como
afirma a autora, contraponham estereótipos negativos das favelas a estereótipos
positivados, como a favela enquanto espaço da solidariedade e da união (2009: 96).
151
desta tese94 (Cf. pág. 77 e seguintes). No entanto, existiria outra variável menos
abordada na bibliografia sobre organizações localizadas em favelas: o baixo
“ajustamento” das associações de moradores à atual configuração do “problema da
favela”, i.e., ao debate atual sobre segurança pública e sobre qual o papel que essas
localidades desempenham dentro da discussão sobre violência urbana e formas de
combatê-la. No enquadramento dado a esse debate, as organizações não-governamentais
estão “duplamente ajustadas”: em relação à forma pela qual agem e ao conteúdo de suas
ações. Para abordar esse “duplo ajustamento” preciso compartimentar a discussão em
duas partes: “ajustamento” do formato pelo qual as ONGs agem e “ajustamento” do
conteúdo de suas ações. Para realizar o primeiro debate, aciono a categoria formulada
por Boltanski e Chiappello na reflexão sobre o novo espírito do capitalismo: a “cité par
projet” (1999). Para tanto, recupero a discussão de Boltanski e Thévenot sobre a
justificação (1991), para em seguida analisar como as ONGs “ajustam” sua atuação à
gramática que articula o debate público no capitalismo contemporâneo. Posteriormente,
discuto o “ajustamento” do conteúdo das ações das ONGs, recuperando a discussão
feita anteriormente sobre a “metáfora da guerra” e o papel disciplinador das populações
faveladas que essas organizações possuem.
94
A saber: autoritarismo e favorecimento pessoal (Zaluar, 2004), perda de autoridade frente aos
traficantes de drogas (Pandolfi e Gryzpan, 2002; Zaluar, 2004; Silva e Rocha, 2008) e cumplicidade com
esses em alguns territórios (Leeds, 2003).
152
universal, e devem ser orientados para uma noção de bem comum – devem ser,
portanto, consideradas justas por todos que compartilham da mesma cité. Por exemplo,
o capitalismo existiria também em outro nível que não o de sua experiência prática, de
obtenção do lucro; ele seria um sistema justificado, capaz inclusive de fazer frente às
criticas que recebe (Boltanski e Chiappello, 1999: 61-62). Nesse sentido, a justificação
se apresenta enquanto base para sustentar o sistema, e também para sustentar as críticas
a ele. No entanto, tais justificações acionam diferentes conjuntos de valores, que estão
sobrepostos na realidade social – por isso as cités são variadas. Se os argumentos
utilizados para argumentar a justiça de certa situação são do âmbito familiar (laços
familiares, proximidades, dependências, hierarquias, etc.), pertencem a Cité
Domestique. Nessa cité aqueles que orientam seus atos a partir desses critérios
familiares têm suas ações justificadas, e são considerados grandes, na gramática
proposta (Boltanski e Thévenot, 1991: 26 e seguintes). Da mesma forma são
organizadas as outras cités: valores ascéticos e artísticos (Cité Inspirée); posse de
mercadorias escassas e da riqueza (Cité Marchande); reconhecimento externo, fama e
renome (Cité du renom); eficácia, capacidade técnica e profissional (Cité Industrielle); e
valores coletivos, a vontade geral e a representação desses interesses (Cité Civique),
além da já mencionada Cité Domestique95.
95
O argumento dos autores aqui se encontra extremamente condensado e simplificado, e nesse sentido o
resumo apresentado é injusto com seu enorme trabalho analítico e teórico. Como o objetivo é apresentar
rapidamente o arcabouço teórico definido a fim de utilizá-lo em parte na construção do meu argumento,
não irei prolongar-me na discussão teórica. De qualquer forma, deixo registrada a superficialidade do
tratamento aqui dado ao trabalho de Boltanski e Thévenot (1991).
96
Boltanski e Chiappello consideram que a constituição do respectivo “mundo” é dificultada pela
paralisação – ou “desajustamento” – da crítica, contraparte necessária do processo de formulação de uma
nova metafísica de um bem comum capaz de generalizar uma “comum humanidade”. Esta questão,
entretanto, está fora do escopo da presente tese.
153
organizações não-governamentais estão “ajustadas” à gramática moral da “cité par
projet”, a qual articula o repertório das políticas públicas que têm sido executadas nas
favelas cariocas, especialmente as políticas sociais. É através das ONGs, “ajustadas” a
essa nova cité, que essas políticas são executadas e se tornam concretas e reais. É
importante recuperar, rapidamente, a idéia de “ajustamento” já apresentada
anteriormente97: o conceito de justesse, tal como proposto por Boltanski e Thévenot,
significaria bom (ou mal) funcionamento tanto de coisas quanto de pessoas. Nos
parágrafos seguintes analiso o funcionamento das ong’s e seu “ajustamento” à “cité par
projet” formulada por Boltanski e Chiappello (1999).
97
Cf. referência 18 e Boltanski e Thévenot, 1991: 59 e seguintes.
154
qual é realizado. Muitas ONGs, principalmente as maiores, possuem projetos em
diversas linhas de atuação: gênero, infância, minorias, geração de emprego e renda,
jovens “em conflito com a lei”, etc. – o que demonstraria sua polivalência em relação ao
foco das ações executadas. Muitas vezes o escopo do projeto será decidido de acordo
com as escolhas feitas pelos financiadores. No momento da obtenção dos
financiamentos (ou renovação) as ONGs precisam comprovar não apenas o mérito de
suas ações, como também sua capacidade de “ajustamento” às novas orientações
exteriores98. Por fim, as organizações têm que ser capazes de finalizar um projeto e
abandoná-lo, como muitas vezes acontece por falta de interesse do financiador de
continuar investindo naquela ação. Para continuar seu trabalho a ONG deve buscar
formular outros projetos, que tenham maior aceitação junto aos patrocinadores, para não
ficar “sem projetos”. É na hora de sair de um projeto e entrar em outro que as ONGs
demonstram sua competência, eficácia e credibilidade.
98
Como exemplo episódico posso citar os financiamentos oferecidos pela Petrobras S.A., uma das
empresas que mais investe em responsabilidade social no país. Por anos o tema da seleção pública de
projetos da empresa (mecanismo pelo qual ela escolhe parte dos projetos que financia) foi “Cultura de
Paz”, durante parte do governo de Fernando Henrique Cardoso. Com a mudança de governo o tema
passou a ser “Fome Zero”, lema do mandato do Presidente Lula. Os projetos apresentados buscaram então
se adaptar aos novos tempos, trocando a problemática da segurança pública para o da geração de emprego
e renda, ainda que a temática da segurança permaneça através do público-alvo preferencial (jovens entre
16 e 24 anos, considerado o grupo mais “vulnerável” a aderir à vida criminosa).
99
Segundo a gramática de Boltanski e Thévenot (1991), o grande é aquele que comporta todas as
características consideradas boas, que trazem a felicidade e que são identificadas com o bem comum
(1991: 99). É também aquele que encarna fortemente os valores da cité (Boltanski e Chiappello, 1999:
164). Nesse sentido, o estado do grande são as características consideradas positivas e desejadas dentro de
cada cité.
155
Silva e Ribeiro, 1985: 324; Cardoso: 1987)100. Sintetizam também a capacidade dessas
organizações de se “ajustarem” aos objetivos das políticas sociais e das cada vez mais
precárias formas de trabalho e contrato estabelecidas pelo poder público. Além das
grandezas, as maneiras pelas quais as ONGs executam suas ações e se movimentam
entre a sociedade civil, o mercado e o estado são as mesmas identificadas por Boltanski
e Chiappello como o “repertório de objetos e dispositivos” acionados pela “cité par
projet”: parcerias, acordos, redes de organizações, projetos, etc. (1999: 177). Como na
“cité par projet”, as redes são a forma “natural” de organização das ONGs (“figura
harmoniosa da ordem natural”), que permite a multiplicidade de contatos, o término das
conexões não-produtivas e a criação de novas conexões (1999: 167 e 190), e a mediação
é a atividade principal dos seres que a habitam, sua “relação natural” com outras
pessoas e coisas que também estão na mesma cité. Ao final de um projeto as ONGs
demonstram sua capacidade de adaptação e também de serem reconhecidas enquanto
mediadores, pois esses são os elementos avaliados para a continuação do projeto ou para
o financiamento de outro – é o momento da avaliação da justiça das ações, ou éprouve
modele (1999: 187). Assim, a ONG é “grande” na “cité par projet” porque encarna
seus valores fundamentais.
100
Mas, como afirmam os autores, tal “espírito” de autonomia e espontaneidade diz mais a respeito da
representação feita pelos pesquisadores sobre os movimentos sociais do que sobre suas realidades
cotidianas, que poucas vezes eram objeto das pesquisas feitas à época sobre esse tema.
156
burocráticas e corruptas (Leite, 1999: 9); em suma, pelos mesmos atributos de
flexibilidade que a fazem “grande” na “cité par projet”.
101
Vale ressaltar que a luta por creche é uma reivindicação antiga dos movimentos sociais urbanos
brasileiros. Cf. Gohn, 1985.
157
dinheiro da dona da pousada local, e seria gerenciada por uma ONG representada uma
mulher alemã (mesma nacionalidade do ex-marido da dona da pousada e principal
financiador do empreendimento) que desejava realizar um trabalho social na favela.
Segundo a entrevistada, as negociações para a obtenção desse financiamento público
estavam em andamento. Caso tal financiamento seja concedido, a Prefeitura irá
financiar um “projeto social” de uma ONG, que daqui a alguns anos poderá ser
financiada por outro agente não-estatal (se o “projeto” for considerado bem sucedido);
situação bem diferente da execução de uma política pública de assistência social e de
educação infantil, como no caso da creche.
Não pretendo que estas considerações dêem conta do espectro total de atividades
das organizações não-governamentais. Restrinjo minha pretensão de generalização
empiricamente fundamentada ao contexto das favelas e, no máximo, às intervenções
sobre os “territórios da pobreza”. Assim é que diversas pesquisas apontam que, dos anos
1990 para cá, os espaços populares, e especialmente os de favela, vem sendo ocupados
por “projetos sociais”, e a maioria deles não é uma iniciativa privada, mas sim uma ação
estatal – além do caso do “Mutirão pela Paz”, analisado no capítulo 1 (pp. 26), o
Programa Favela-Bairro também realizou diversos “projetos sociais” em parcerias com
ONGs (Burgos, 2003). Em ações recentes do poder público nas favelas o mesmo padrão
foi observado, como no caso das medidas implementadas após a Chacina do Alemão,
em 2007. Até o momento esse parece ser também o formato escolhido para as ações do
Pronasci (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania), do Ministério da
Justiça102.
102
Segundo o site do Programa: “O projeto articula políticas de segurança com ações sociais; prioriza a
prevenção e busca atingir as causas que levam à violência, sem abrir mão das estratégias de ordenamento
social e segurança pública. Entre os principais eixos do Pronasci destacam-se a valorização dos
profissionais de segurança pública; a reestruturação do sistema penitenciário; o combate à corrupção
policial e o envolvimento da comunidade na prevenção da violência. Para o desenvolvimento do
Programa, o governo federal investirá R$ 6,707 bilhões até o fim de 2012”. Cf. Site do Ministério da
Justiça.
158
segurança implementada. Contudo, a política de segurança e as ong’s que atuam nas
favelas através de “projetos sociais” voltados para a questão da “vulnerabilidade ou
risco social” compartilham de um pressuposto analítico: os moradores de favelas, e
particularmente os jovens, são potenciais marginais e, se não forem salvos a tempo,
representarão uma ameaça à sociedade. O enquadramento da questão da violência
urbana pelas ONGs evidencia a adesão a esse pressuposto: nos “projetos sociais” os
moradores são descritos como agentes potenciais das situações de violência, e não como
vítimas – especialmente os jovens do sexo masculino. Daí o enfoque na prevenção, em
disputar com o tráfico “menino a menino” (Soares, 2005a: 241).
Vale ressaltar que, como afirmado anteriormente, a grande maioria das ONGs
apenas executa os “projetos sociais” que são formatados (em termos de seu público-alvo
e ações principais) pelos financiadores desses – configurando-se um “encontro
prestação de serviços” (Teixeira, 2002: 111). Como ressalta a autora, esses “encontro”
caracteriza-se pela pouca ou nenhuma participação dessas organizações na formulação
das políticas; porém, ainda que algumas ONGs pouco participem da formulação atual da
política de segurança pública (à qual os “projetos sociais” muitas vezes estão
vinculados), ao executarem a política elas lhe dão legitimidade. Além disso, as ONGs
participaram intensamente da construção da opinião pública atual que vê “projetos
sociais” como solução para o problema da criminalidade juvenil (como afirmei ao longo
desta tese103).
103
Ver também Soares (1996, 2002, 2005).
159
ser incluída no campo de agentes que estão engajados nessa temática, além de
importante para ser considerada adequada a receber financiamentos – bem como
“ajustada” a um discurso positivo sobre as favelas.
Segundo o autor, a tese de que pobres e negros são mais ‘vulneráveis’ a aderir ao
crime é empiricamente correta, mas é responsabilidade da sociedade se eles acabam nas
carreiras criminosas. Porém, tal posicionamento reforça a estigmatização e até autoriza
a violência (principalmente policial), ao reforçar a visão sobre os jovens pobres e negros
como ameaça potencial, ao invés de “enfatizar e defender seus direitos ao acolhimento,
a uma vida saudável, etc.” (Soares, 2005b: 210).
160
recolhidos por outras pesquisas, os projetos sociais são aprovados e desejados por
muitos dirigentes de associações de moradores, principalmente por serem aprovados e
desejados por muitos moradores (Silva e Rocha, 2008), e dessa forma eles também
legitimam em certa medida o enquadramento dado aos moradores de favelas pelas
políticas executadas. Ainda que em menor intensidade, a ambivalência observada na
abordagem das ONGs é também encontrada entre os dirigentes de associações de
moradores. No entanto, no geral e particularmente nos momentos de conflito entre
traficantes e policiais com mortes de moradores de favelas, são os dirigentes de
associações que acionam o discurso que apresenta essa população como vítima tanto da
violência perpetrada pelos traficantes quanto pela polícia. O posicionamento das
associações reflete, assim, a ambivalência dos próprios moradores de favela, que se por
um lado opõem-se ao tratamento que recebem da polícia e do Estado enquanto
“potencialmente criminosos”, por outro aprovam ações de “prevenção à violência” nas
localidades, como observado no caso do Pereirão.
Dessa forma, a atuação das ONGs, através de projetos sociais que buscam salvar
os favelados de uma potencial vida criminosa através de processos de controle dos
moradores mais “vulneráveis”, se mostra “ajustada” ao enquadramento do “problema
das favelas” em termos da “metáfora da guerra” (Leite, 2000), pois se articula com a
representação das favelas enquanto território do crime e da violência. Assim, a partir da
idéia da guerra, estabelecem-se duas formas socialmente reconhecidas de tratamento
para a questão das favelas e de sua população: o tratamento “civilizador” (através da
161
abordagem disciplinar dos projetos sociais) ou, para aqueles que não podem ou não
querem ser incluídos na sociabilidade institucional-legal, o extermínio (através da
política pública de segurança de enfrentamento ao crime). A divisão do tratamento do
“problema da favela” em uma solução disciplinar e uma solução final (a morte) remete
ao binômio poder disciplinar-biopoder, como proposto por Foucault (2005a).
162
A primeira, liderada pelo aparato policial civil e militar e contando com a adesão
ativa de vários políticos, de setores da mídia e de parte dos moradores da cidade,
oriunda principalmente de suas camadas médias e abastadas, clamava por ordem e
segurança e pela disciplinarização das “classes perigosas”. Considerava que a
situação excepcional da cidade — de guerra — não admitia contemporizações com
políticas de direitos humanos e com reivindicações pelo respeito aos direitos civis
dos moradores nos territórios conflagrados. A segunda, liderada por um grupo de
organizações não-governamentais e de intelectuais formadores de opinião na cidade,
e que contava com a adesão de alguns órgãos de imprensa e de setores médios
politizados e/ou intelectualizados, defendia a combinação de políticas de promoção
da cidadania, destinadas principalmente a jovens moradores em favelas e periferias,
com alternativas eficientes no campo da segurança pública (Leite, 2000: 74).
163
Nesse sentido, como tentei demonstrar ao longo deste capítulo, ONGs
encontram maior legitimidade para suas ações porque estão mais “ajustadas”, tanto ao
moderno capitalismo flexível quanto à “metáfora da guerra”, que regulam e orientam o
tratamento dado atualmente às favelas. Associações de moradores buscam recuperar sua
legitimidade, através de um “ajustamento” ao formato ONG – no entanto, não
alcançaram essa legitimidade, em função das diferenças de formato e de função que
possuem em relação às ONGs. Assim, as ONGs são hoje a “voz” das favelas, quem fala
sobre os moradores, para eles e por eles, pois são a “voz” que é ouvida e reconhecida.
No próximo capítulo, conclusão desta tese, discuto os limites dessa “voz”, e de que
maneira entendo que uma “voz ajustada” representa uma outra dimensão do
silenciamento que recai sobre os moradores das favelas, tão evidente no caso da favela
do Pereirão.
164
Conclusão: Paz sem voz.
165
Hirschman (1970)104, i.e. tornar público o descontentamento com o estado, com uma
empresa ou com uma organização como forma de reivindicar melhorias – ainda que a
dimensão crítica e reivindicatória da categoria como definida pelo autor possua uma
versão menos contestatória no quadro das favelas e de suas organizações de base. Nesse
contexto, trata-se menos de expressar um descontentamento, e mais de tornar pública
uma demanda, uma reivindicação, um problema. Assim, “possui voz” aquele que é
ouvido em momentos de conflitos (por exemplo: ações policiais, construções de
equipamentos públicos polêmicos, etc.), ou que participa dos debates sobre as políticas
públicas executadas nessas localidades. “Possui voz” também o ator capaz de propor
formulações sobre o que seria “o problema da favela” e sobre como solucioná-lo, e que
é ouvido a esse respeito. Em diferentes momentos, e frente a diferentes audiências,
associações de moradores e organizações não-governamentais possuíram “voz”, mas
esse capital vem sendo distribuído de forma bastante heterogênea, e cada vez se
concentra mais nas mãos de um desses atores.
104
Em seu trabalho mais conhecido, Hirschman (1970) apresenta um modelo de análise de relações
sociais que pretende definir os cursos de ação de atores sociais individuais frente a organizações de
diferentes tipos: consumidores face ao mal-funcionamento de serviços e produtos comprados, cidadãos
descontentes com os serviços públicos ou militantes desapontados com seus movimentos sociais. Ao
deparar-se com tais atores sociais, e com sua performance insuficiente, três possibilidades de ação são
vislumbradas por Hirschman: a saída, a voz e a lealdade (Exit, Voice e Loyalty). Mantendo o exemplo da
relação empresa-consumidor, a saída seria o comprador trocar de marca, desistindo de consumir aquele
produto; a lealdade seria o comprador continuar consumindo a mesma marca, mesmo descontente; e a voz
seria o comprador reclamar ou mobilizar-se com outros consumidores descontentes, de forma a exigir a
modificação do produto.
166
moradores, mas também nos espaços da associação de moradores e da ONG (ainda que
nessa última o silenciamento tenha contornos diferenciados, como veremos adiante).
167
sobre ali ser uma favela “tranquila” pela ausência de conflitos vai ao encontro das
representações dos moradores ouvidos na Pesquisa “Rompendo o cerceamento da
palavra: a voz dos favelados em busca de reconhecimento”, que dirigiam suas críticas
sobre a violência, seja ela policial ou vinda dos traficantes de drogas, à sua interferência
sobre o fluxo rotineiro da vida nos territórios das favelas, mais do que à violência ou ao
crime propriamente ditos (Machado da Silva e Leite, 2008: 75).
168
entrevistados estão submetidos a dispositivos de “confinamento” e de “silenciamento
coletivo” (Machado da Silva, 2008b: 19); e nesse sentido ela é “igual às outras”. Tal
silenciamento pode ser uma conseqüência do medo; como dito anteriormente, os
moradores do Pereirão seguem a “lei do silêncio” que se impõe sobre a coletividade dos
moradores de favelas, o que ficou evidente no comentário feito por um dos moradores
sobre o perigo de falar sobre o tema em entrevistas. Pode ser, dependendo do contexto,
o reconhecimento da inutilidade de falar sobre uma situação considerada inexorável –
observada no argumento “aqui é uma favela como as outras”, usado em um contexto
específico para reconhecer a existência do risco no local, mas também como forma de
encerrar uma discussão sobre o assunto.
169
uma escolha em diversas situações: quando as vítimas não encontram um ouvido
interessado em seus testemunhos; ou quando a sociedade está concentrada nos esforços
de reconstrução após a guerra e não tem mais energia para “ouvir a mensagem
culpabilizante dos horrores dos campos” (Pollack, 1989: 6). Pode ser ainda uma forma
de proteger os filhos, para que eles não cresçam com o peso das cicatrizes dos pais. O
autor afirma que o silêncio também é, muitas vezes, uma forma de fazer “boa figura” de
si mesmo frente às representações dominantes, como no caso das vítimas do nazismo
que não foram deportadas por motivos políticos, e que se calaram sobre sua condição
para não serem desmerecidas enquanto legítimas vítimas dos nazistas105.
105
As vítimas de crimes políticos seriam as mais valorizadas, o que calaria as mulheres envolvidas nos
casos de crimes de “vergonha racial”, ou seja, que foram condenadas por terem tido relações sexuais com
“arianos”. Silenciaram-se ainda os sobreviventes homossexuais, que temiam ser novamente julgados e
condenados, inclusive com a perda do emprego ou da moradia (Pollack, 1989: 12-3).
170
deportados pelo nazismo estudados por Pollack (1989), o silenciamento sobre a
condição não-legitimada em que cada um foi deportado não significou que a existência
do Holocausto tenha sido negada. No caso dos moradores do Pereirão, porém, o
silenciamento sobre a situação a que estão submetidos se traduz em negação da própria
submissão, o que dificulta ainda mais a possibilidade de serem ouvidos e reconhecidos
enquanto vítimas.
Veena Das (1999) oferece ainda uma análise sobre o silêncio em relação a
situações de violência. Em sua pesquisa, demonstra como as mulheres de famílias
punjabi discursam sobre as violências cometidas pelos maridos contra elas, relatam
injustiças sofridas e como fizeram para superá-las; essas histórias possuem uma
narrativa, uma temporalidade, atores (vítimas e agressores), e assim “aspectos da
performance ou esforços pelo controle da história” estão presentes (Das, 1999: 33). No
entanto, ao falar sobre o evento da Partição da Índia, em que mulheres foram raptadas e
violentadas nos confrontos, a narração das situações de violência assemelha-se a “slides
congelados” (1999: 33). Para a autora existe, portanto, uma diferenciação entre
situações de violência acontecidas dentro das redes familiares e privadas e aquelas
passadas no contexto da Partição, onde “uma violência que visivelmente rasgava o
próprio tecido da vida” tornou impossíveis “reivindicações da cultura através da
disputa” (1999: 38-9). Segundo Das:
Sugiro, assim, que aquilo que constitui o não-narrativo dessa violência é o que é
indizível nas formas da vida cotidiana. Sugiro, ainda, que é porque o alcance e a
escala do humano que é testado, definido e estendido nas disputas inerentes à vida
cotidiana que ela passa, da violência inimaginável da Partição, para formas de vida
que não são vistas como pertencentes à própria vida. Ou seja, essas experiências da
violência levantam certas dúvidas quanto à própria vida, e não apenas quanto às
formas que ela pode assumir. Foi um homem ou uma máquina que enterrou uma
faca nos órgãos genitais de uma mulher depois de estuprá-la? Eram homens ou
animais que saíam matando e colecionando pênis castrados como sinais de suas
proezas? Existe uma profunda energia moral na recusa de representar algumas
violações do corpo humano, pois tais violências são vistas como sendo “contra a
natureza”, definindo os limites da própria vida. O alcance e escala precisos da forma
de vida humana não são conhecidos de antemão, do mesmo modo que o alcance
preciso de uma palavra não é conhecido de antemão. Mas a intuição de que
determinadas violações não podem ser verbalizadas na vida cotidiana está no
reconhecimento de que não se pode trabalhá-las no âmbito do cotidiano queimado e
embotado. (Das, 1999: 39).
171
A partir da análise de Das (1999) é possível criar duas dimensões de violência
sofridas pelos moradores de favela, e assim duas formas de expressá-las: quando falam
de uma violência “simbólica” ou “econômica” (p. ex. o descaso do poder público, ou a
violência do tráfico e da polícia em termos abstratos), os moradores discorrem sobre sua
condição de marginalizados com maior facilidade e, principalmente, sentem-se mais
legitimados a se posicionarem enquanto vítimas. Contudo, falar sobre situações de
violência que aconteceram a indivíduos próximos ou a si mesmo, em que a própria
humanidade do vitimado foi negada, ou onde havia o sentimento de impotência pela
desigualdade de forças existente, é muito mais complicado, e exige manobras narrativas
diferentes daquelas usadas para descrever situações mais abstratas e que ocorrem de
forma mais generalizada. Tal diferenciação é particularmente rica para pensar o que
acredito ser um silenciamento por parte dos dirigentes da associação de moradores e dos
integrantes da ONG do Pereirão, especialmente os últimos: eles falam sobre a violência,
sobre a submissão imposta, mas o fazem de forma deslocada do contexto daquele
território, de suas experiências pessoais, ou de forma impessoal e não-subjetiva.
172
“parcerias” com o poder público um novo desenho para suas atuação, uma nova forma
de estar dentro dos territórios e de ser liderança comunitária. No entanto, enfrentam
nessa nova atividade a competição com as organizações não-governamentais, que são
vistas como menos “contaminadas” pelo contato com o tráfico de drogas e cujo trabalho
encontra, em muitos casos, maior aceitação e legitimidade pública tanto dentro quanto
fora das favelas (Silva e Rocha, 2008).
173
legítima, e por isso encontra-se quase ausente dos debates públicos sobre o tema106. O
enquadramento dado ao tema aceita representações que coloquem os favelados na
posição de algozes, ou de potenciais algozes, mas dificilmente como vítimas. É somente
a partir do “ajustamento” a esse pressuposto que se tornaria possível participar do
debate sobre os “problemas das favelas” e quais soluções possíveis para eles e, nesse
sentido, as ONGs podem participar com maior legitimidade do debate por estarem
“ajustadas” a esse discurso. Ter mais legitimidade para participar do debate não quer
dizer, contudo, que as opiniões e as soluções propostas pelas ONGs sejam aceitas pelos
outros participantes desse debate – ou que sejam até homogêneas. Ao contrário, as
ONGs são acusadas de defenderem apenas “os direitos dos bandidos”, ou ainda de má-
utilização do dinheiro público, mais recentemente107. No entanto, apesar das críticas que
recebem, as ONGs recebem financiamentos públicos, privados e internacionais; são
chamadas para dar declarações públicas sobre temas importantes do cotidiano do Rio de
Janeiro; participam de fóruns importantes onde são discutidos temas públicos, etc. – ou
seja, tentam influir no debate sobre as favelas e principalmente sobre as soluções
possíveis.
174
moradores em questões como o escopo e o tipo de política social executada nas favelas,
a abordagem violenta das “operações policiais” nessas localidades, ou a mais recente
discussão sobre muros e remoção de favelas108.
No entanto, ainda que as ONGs sejam uma “voz” atuante no espaço público e
nas discussões sobre “o problema das favelas”, representam uma outra dimensão do
silenciamento imposto aos moradores das favelas: enquanto “a voz que fala das favelas,
pelas favelas”, só é ouvida porque é “ajustada”. Assim, enquanto crítica ativa do sistema
(Hirschman, 1970; Freire, 2008), enquanto denúncia da situação de submissão dos
moradores a um regime de violência, a “voz” dos moradores de favela permanece
silenciada.
108
Cf. Governo do Rio de Janeiro constrói muros para conter favelas (O Globo, 29/03/09) e Paes diz que
remoção de favelas não pode ser tabu (O Globo, 11/04/09).
175
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Anexos.
Anexo I: Lista de entrevistados.
188
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