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RESUMO: Este trabalho apresenta passos iniciais de uma pesquisa rumo à definição e
desenvolvimento de um objeto de estudo. Discute-se um dos principais aspectos da harmonia tonal,
relacionado ao tratamento de notas estranhas aos acordes, sendo este tratamento dividido em duas
categorias diferentes em termos da resolução das dissonâncias: o tratamento melódico, no qual as
dissonâncias são resolvidas em consonâncias; e o tratamento harmônico, no qual as dissonâncias são
incorporadas à estrutura do acorde.
PALAVRAS-CHAVE: análise musical, harmonia tonal, notas estranhas aos acordes, repertório
pianístico.
ABSTRACT: This work presents some initial steps taken by its author towards the definition and
development of a subject for research. It discusses one of the main aspects of harmony which is
related to the melodic treatment of non-harmonic tones, being this treatment separated in two different
categories in terms of their resolution: the melodic treatment, by which dissonaces are resolved into
consonances; and the harmonic treatment, when dissonances are absorbed into the chordal structure
instead of being resolved.
∗
Mestre em Música pela UFRGS, professor efetivo da Faculdade de Artes do Paraná, pesquisador do Grupo de
Pesquisa Interdisciplinar em Artes da FAP.
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1
Zamacois descreve a formação dos acordes como uma superposição de terças, mas também como a adição de
uma terça e uma quinta sobre uma nota fundamental (1997, p. 29).
2
Deve-se considerar a noção de dissonância também no movimento melódico como, por exemplo, no saltos de
trítono ou de segunda aumentada, proibidos no ensino do contraponto (CARVALHO, 2002, p.23). No entanto, é
a dimensão vertical da música que nos proporciona de forma mais patente o sentido de dissonância ou de notas
estranhas ao acorde.
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O movimento por grau conjunto implica numa relação dissonante entre tons vizinhos por
definição, pois a segunda maior e a segunda menor são definidas como dissonâncias. O outro
lado desta moeda é o fato de que qualquer intervalo dissonante pode ser convertido num
intervalo consonante por meio do deslocamento conjunto (por segunda maior ou menor) de um
de seus componentes3; em outras palavras, qualquer dissonância tem a possibilidade da
resolução, por grau conjunto, numa consonância. (PISTON, 1987, p. 110).
A validade deste princípio não se encontra apenas nas regras apresentadas por manuais
de contraponto e de harmonia, mas pode ser também ser verificada por meio de um exame do
repertório musical cuja organização é guiada pela oposição consonância/dissonância, isto é,
do período denominado por Piston como prática comum. Não se faz necessário, portanto,
definir em que medida a música é feita por meio da obediência a um conjunto de regras pré-
existentes ou se as regras é que são sistematizadas por meio da observação da música. O
presente estudo parte do pressuposto que a música tonal tem a oposição entre dissonância e
consonância como um de seus princípios estéticos fundamentais. Também não se faz
indispensável, portanto, uma análise acústica da dissonância – ainda que isso seja possível, -
uma vez que se trata de um princípio estético e não físico que orienta as considerações aqui
apresentadas.
Partindo do princípio contido na citação acima, em que se descreve a resolução
melódica da dissonância, pode-se inferir que há duas formas possíveis de se tratar uma nota
estranha a um acorde: realizando a resolução por grau conjunto em direção a uma nota
consonante ou não confirmando essa possibilidade dando origem a um tratamento livre da
dissonância. Corrêa refere-se ao tratamento mais livre das notas estranhas aos acordes como
“emancipação da dissonância”, onde “As notas ‘dissonantes’ dos acordes dispensam
quaisquer tratamentos especiais” (2006, p. 88). Já Piston faz a distinção entre as possíveis
abordagens das notas dissonantes através dos termos notas harmônicas e notas melódicas: no
primeiro caso, por não serem preparadas nem resolvidas, tais notas aparecem como parte
integrante do acorde e são movimentadas não no sentido de resolução, mas como se houvesse
um arpejamento da harmonia; já no segundo caso, constituem uma ocorrência melódica, onde
há resolução linear da dissonância (pp. 335 e 369). O exemplo abaixo ilustra a resolução
melódica por grau conjunto da décima terceira sobre a quinta do acorde de sétima da
dominante no último tempo do compasso (mão direita) alcançando-se a tônica, também por
grau conjunto, numa cadência autêntica (Chopin, Estudo op. 10 No. 8 em Fá maior):
3
“...of one of its factors”, no original
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– página 12), não se pode negar a memória de resoluções como a que se ouve nos dois
compassos finais da Allemande da suíte 3, também em sol menor, de J. S. Bach:
.
Considerado o trinado cadencial o qual envolve a nota superior, temos a sonoridade da
décima terceira menor nesta harmonia dominante. Ora, em Bach, a nota em questão é
resolvida por grau conjunto numa consonância, a quinta do acorde. No caso de Chopin – e a
escolha de peças numa mesma tonalidade é deliberada – o si bemol não confirma a tendência
esperada na progressão de um acorde I 6/4 cadencial para o V, onde a terça do I6/4 tende a
descer para a quinta do V para então resolver na tônica, mas salta descendentemente, por um
intervalo de quarta diminuta para o fá#, a terça do acorde dominante (D7). Ainda na Balada, o
trecho imediatamente a seguir manifesta maior complexidade no que se refere ao uso de notas
não harmônicas. Tomemos a primeira metade do compasso logo em seguida à resolução da
cadência em sol menor:
4
Observe-se a mão esquerda, onde vemos uma séria de apojaturas. A mão direita, por sua vez, realiza uma
diminuição rítmica do padrão apresentado pela mão esquerda, com uma ornamentação das apojaturas.
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sétima, na harmonia da prática comum, pede resolução por grau conjunto, normalmente para a
terça do próximo acorde. No entanto, se tal resolução melódica se der num mesmo acorde,
resulta numa sexta, também nota não harmônica. Já que o fá natural deste exemplo resolve no
mi bemol, sexta menor em relação à tônica, teríamos: ou a resolução da dissonância numa
outra nota não harmônica, gerando uma nova suspensão só resolvida na segunda metade do
compasso, quando o mi bemol resolve sobre o ré da harmonia dominante; ou o uso livre de
notas dissonantes sobre a harmonia da tônica. Por outro lado, poderíamos considerar a
formação de um acorde de Eb, no qual o fá natural constituiria uma apojatura de nona.
Tal ambigüidade também pode ser observada na harmonia seguinte, – segunda metade
do mesmo compasso – onde se pode analisar o acorde como sendo D ou F#dim. No entanto,
neste caso a harmonia dominante é inequívoca, sendo que o parentesco por demais próximo
entre V7(9) e o VIIdim faz com que tais acordes muitas vezes acabem por fundir-se num
único. Ainda assim, a ambigüidade entre V7 e VII diminuto permite uma dupla interpretação
do mi bemol na mão esquerda: ou é a sétima diminuta do VII ou a nona menor do V7,
resolvendo na fundamental do acorde e caracterizando uma apojatura.
Pode-se inferir da análise acima que a ambigüidade harmônica pode ser um fator de
abertura ao uso livre de notas não harmônicas, ou pelo menos de interpretação ambígua das
notas que seriam pertencentes ou não a um acorde, de modo a diluir as noções de consonância
e dissonância. Na sonata de Mozart KV 333 em Si bemol maior podemos destacar um caso
em que a definição de estruturas triádicas aparece implícita, também gerando ambigüidade na
análise harmônica. Nos compassos iniciais do terceiro movimento da sonatac, o tema do
rondó é apresentado em apenas duas vozes, de modo que os acordes aparecem figurados pelo
movimento linear da cada voz.
Tal progressão aparece, portanto, de forma implícita nos dois primeiros compassos, de
modo que os graus I e VI, parecem mesclar-se no c. 1, gerando ambigüidade na interpretação
dos acordes que se formam e também quanto ao pertencimento ou não das notas da melodia
aos acordes. Por outro lado, na cadenza deste movimento, temos o tema claramente expresso
em apenas duas harmonias, I e V7:
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A categorização funcional dos acordes visa entender o papel que diferentes formações podem desempenhar
numa sucessão de acordes, em se contexto musical, envolvendo as frases e cadências, bem como na interligação
entre diferentes idéias. A teoria normalmente referida como tradicional, que considera a tríade como estrutura
harmônica básica, fora da qual qualquer nota passa a ser tratada como dissonância, estipula princípios de
sucessão entre os diferentes acordes diatônicos. Neste sentido, procura-se normatizar progressões mais fortes ou
mais fracas tonalmente, progressões incomuns e mais comuns. Aqui, os termos tônica, subdominante e
dominante mantém-se em princípio ligadas aos graus da escala sobre os quais essas tríades são construídas (I, IV
e V). Piston se refere a esses graus como graus tonais, que seriam os graus que definem com maior clareza a
tonalidade. Ele afirma, no entanto, que a harmonia dominante (V) tende a absorver o VII. E que a harmonia
subdominante (IV), por sua vez, tende a absorver o II. Esse autor categoriza como graus modais o III e o VI, por
serem essencialmente diferentes nos modos maior e menor, definindo portanto o modo. Quanto aos graus
modais, sabemos que o III e o III e VI podem aparecer com a sua fundamental alterada por um semitom
ascendente na forma melódica do modo menor, mas a prática comum demonstra um uso mais freqüente desses
graus com as suas fundamentais “bemolizadas” em relação à tônica (terça menor e sexta menor). O acorde
dominante, por sua vez mantém-se idêntico em sua estrutura, tanto no modo maior quanto menor, variando
apenas com relação à nona e à décima terceira – os quais, por sua vez, correspondem às fundamentais dos graus
modais.
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a omissão de uma das notas do acorde enfraquece o sentido de estrutura de terças e faz
com que o ouvido aceite os tons superiores como notas melódicas dependentes de um
fundo harmônico simples, normalmente uma tríade ou um acorde de sétima da
dominante (p.370).
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O termo modernidade é aqui empregado no seu sentido de senso comum, significando algo inovador
esteticamente.
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necessariamente aquilo que é mais recente, mas a idéia de algo que se distancia de
procedimentos tidos como mais comuns.
Assim, não se pretende colocar este ou outro elemento de modernidade
necessariamente como inovação no sentido cronológico e evolutivo, uma vez que certa
oposição entre procedimentos harmônicos tidos como mais comuns tonalmente falando e
procedimentos que consideramos mais livres ou modernos pode ser detectados “coexistindo”
em diferentes períodos da história da música. Além disso, o sentido de modernidade passa a
ter mais sentido a partir do instante em que uma única prática harmônica passa a ser de uso
comum. Desse modo, não seria necessariamente apropriado considerar moderno o que
compositores dos séculos XIII ou XIV fizeram ao empregar livremente várias dissonâncias
entre o início e o fim de uma seção, uma vez que a tonalidade e o pensamento harmônico
vertical não haviam ainda se estabelecido tal como a partir do século XVIII. Bach, em
cadências de alguns de seus corais, ao resolver um V num I, não resolvia a voz que tem a
sensível encaminhando-a em direção à tônica, mas descendo uma terça para a quinta do I.
Assim, temos que o trítono presente no acorde dominante não é resolvido
contrapontisticamente conforme sua tendência tradicional7. Esta opção pode se dar devido a
uma confluência de duas necessidades que passam a se impor como sendo de primeira ordem
na situação em questão: 1) a voz que estava com a sensível dever ceder espaço à voz do
soprano para que esta possa terminar na tônica, e 2) o compositor quer uma sonoridade
completa no último acorde, não podendo por isso o contralto fazer uníssono com o soprano na
tônica, gerando a omissão da quinta neste acorde. No entanto, a resolução da sensível na
tônica, ainda que não numa mesma voz, é percebida pelo ouvinte como passando do contralto
ao soprano. Neste caso, portanto, a escolha pela não resolução rigorosa do trítono não se dá
com vistas em uma sonoridade inovadora, mas obedecendo a uma necessidade musical a qual
se impõe à condução das vozes.
Segundo a hipótese formulada, poderíamos dizer que um dos aspectos característicos
de uma harmonia a qual o ouvido tende a reconhecer como mais “moderna” é o de não dar
confirmação à resolução mais esperada de notas não harmônicas. Quando se comparam obras
de compositores como Mozart e de Chopin, em muitos casos é na condução de vozes, ao não
confirmar tendências de resolução contrapontística mais esperadas – as quais foram, ao longo
do tempo sistematizadas em forma de regras – que reconhecemos o elemento de
modernidade8. Podemos observar, por exemplo, que a harmonia da música popular –
notadamente do jazz e, no Brasil, da Bossa Nova e MPB – passou a prescindir do tratamento
tradicional exigido pelo uso das notas não harmônicas, de modo que os acordes passaram a
incorporar tais notas na sua estrutura. Tal pensamento tem sua forma extrema no jazz
moderno, onde a noção escalar e a harmônica no sentido verticalizante acabam por se fundir.
O pianista e professor Mark Levine expressa esta idéia ao dar a seguinte orientação aos
estudantes de piano e improvisação:
Certamente você terá que praticar escalas para que possa usá-las quando você
improvisar, mas os melhores músicos de jazz pensam nelas mais como uma ‘gama
disponível de notas’ a serem tocadas num dado acorde, ao invés de dó-ré-mi-fá-sol e
assim por diante (1999).
7
Isto é, sétima do V7 descendo por grau conjunto à terça do I e terça do V7 dirigindo-se à tônica.
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Não se pretende aqui afirmar que este seja o único elemento chave de modernidade na estruturação harmônica
de uma peça musical, mas que podemos reconhecer como um dos fatos a serem observados no desenrolar da
história da música ocidental compreendida no período denomimado por Piston de “prática comum”, a
incorporação de notas não harmônicas à estrutura dos acordes.
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E mais adiante, “a escala e o acorde são, na maior parte das vezes, duas formas de uma
mesma coisa”. O conceito de dissonância irá se restringir a notas as quais não podem coexistir
numa verticalidade devido à preponderância de uma categoria harmônica funcional sobre
outra. O caso mais importante disso é a impossibilidade das funções tônica e dominante
coexistirem verticalmente.
As considerações feitas até aqui procuram estabelecer um ponto de partida para o
aprofundamento da investigação acerca da harmonia como um elemento determinante do
discurso musical tonal. Ao longo deste processo de estudo e pesquisa, procurar-se-á
estabelecer pontos de contato entre teoria e repertório, numa relação em que o exame de
exemplos do repertório tradicional dará o apoio para que se defina linha de pensamento. Resta
ainda o caminho todo a ser percorrido, no qual se espera colocar luz sobre pontos importantes
da definição de um parâmetro de análise, mesmo que nem sempre para responder perguntas
fundamentais, mas ao menos para que se possa fazer a escolha de quais perguntas formular.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENEDICTIS, Savino de. Curso de harmonia teórico e prático. São Paulo: Sotero de Souza
Editor.
CARPEAUX, Otto Maria. O livro de ouro da história da música: da idade média ao século
XX. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
CARVALHO, Any Raquel. Contraponto tonal e fuga: manual prático. Porto Alegre: Novak
Multimedia, 2002.
PISTON, Walter. Harmony. Nova Iorque: W.W. Norton and Company, 1987.
SADIE, Stanley. Dicionário Grove de Música – Edição Concisa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1994.