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R ESUMO
O presente artigo trata da proposta de inserção da capoeira, uma arte popular
genuinamente brasileira, no contexto da escola de nível médio como facilitadora no
processo de aprendizado da Física. É uma constatação empírica que o Ensino da Física
esbarra em inúmeras dificuldades nas escolas brasileiras. Uma destas dificuldades reside
no preocupante grau de desinteresse pela Física, enquanto disciplina ensinada nas
escolas. O ensino repetitivo e mnemônico, aliado a falta de atividades experimentais,
vem privando a Física escolar de todo o caráter filosófico e cultural da ciência. Mesmo
com todo o progresso da pesquisa educacional, a Física escolar ainda está afastada do
cotidiano do aluno. Os estudantes têm dificuldade de ver a realidade do seu entorno, as
atividades vivenciadas por eles, aplicadas no contexto do conhecimento escolar. Neste
sentido a escola tem o dever de abraçar e incluir no seu universo a cultura popular.
Muitos educadores em Física podem acreditar que este não é o papel da ciência, que se
diz neutra. No entanto, em 2003 a Lei nº 10.639 reformou a LDB tornando, no artigo
26-A, obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira em todo o currículo
escolar. Em 2005, a Lei nº 11.645 incluiu a temática indígena. Desta forma, agora estão
todos os educadores imbuídos da missão de incluir em algum momento de suas aulas a
temática da história e cultura dos negros e índios brasileiros. Este trabalho visa a
promover uma aproximação do conhecimento contido na cultura brasileira, na forma de
um artífice popular, a capoeira, aos conhecimentos científicos. Com isso, espera-se
motivar os alunos para a melhor compreensão dos conceitos físicos estudados.
INTRODUÇÃO
Independente da área seja ela a de Língua Portuguesa (que começa com o Trovadorismo
português), com a Biologia (que mostra as discussões sobre geração espontânea ocorridas no século
XVII), a Matemática (com as bases explicitadas através da geometria euclidiana), os referenciais e
exemplos são sempre europeus. Não que isso seja um erro.
As nossas referências científicas são em sua maioria de origem européia , mas a sua
exemplificação não precisa necessariamente ser. Dentro de uma nação periférica como o Brasil, que
apesar de suas tão decantadas precariedades, possui valores como André Rebouças, Carlos Chagas e
César Lattes, a busca da valorização de nossas tradições e referenciais é fundamental e possível.
É cada vez maior, dada a evidente descontinuidade entre a escola e a sociedade (a qual não
se vê dentro do ambiente escolar), a necessidade de rever essa situação. Em um país de inúmeras
distorções sociais, com uma população com um grande quantitativo de pobres – muitos dos quais
negros e mestiços –, uma história feita a partir dos pressupostos europeus e de uma elite nacional
não é representativa dos segmentos mais populares, como nos lembra DAVIES (1990, p.103):
Como foi dito, a maioria da população está excluída dos livros didáticos. Suas crenças,
costumes e práticas não são temas relevantes. Felizmente, essa situação tem mudado, como o
aumento às referências à importância dos saberes indígenas a respeito de ervas medicinais.
Entretanto, esse processo de inserção de toda uma gama de classes sociais, minorias e grupos que
até agora estavam colocados à margem dos processos históricos, é lento e ainda está nos seus passos
iniciais.
Qualquer revisão dos paradigmas e/ou modelos para a inserção de novos olhares, questões,
etc. é complexa e coloca problemas. A História, que tem tido um papel pioneiro nesse proc esso,
discute como lidar com essas mudanças, já que seu programa está pronto há quase duzentos anos,
criado nas academias européias e, em boa parte, reproduzido aqui pela maioria de nossa elite
acadêmica. Como pesquisar esses grupos marginais? Onde encontrar documentação?
“Cada vez que a história se orienta para novos 'territórios', ressurge a mesma
questão: existem documentos específicos que permitam responder às novas
problemáticas? No caso presente, a pergunta é mais árdua ainda: como ouvir a voz
dos marginais do passado, quando, por definição, ela foi sistematicamente abafada
pelos detentores do poder, que falavam dos marginais, mas não os deixavam falar.”
(SCHMITT, 284)
A utilização de fontes não escritas, como a história oral, o estudo de material iconográfico e
de práticas é uma saída. Daí percebe -se a importância da capoeira: além de uma característica da
cultura negra e que contribui para a compreensão da religiosidade dos muitos escravos negros que a
praticaram, fornece informações sobre seus costumes e tradições, etc.
A atenção dada ao estudo da prática da capoeira se insere nas discussões da História Cultural
e na forma como se pode construir um conhecimento que não remonte aos parâmetros eurocêntricos
vigentes. Assim, a arte da capoeiragem se insere na linha dos estudos da história do corpo, temática
atual e que tem antecedentes ilustres no Brasil, como Gilberto Freyre.
Percebe -se que a preocupação com a pesquisa relativa às práticas corporais e aos usos
sociais do corpo pode fornecer elementos para uma discussão sobre a hegemonia do saber. O
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domínio das forças, dos ângulos, a maestria do equilíbrio exibida pelos capoeiristas coloca em
questão a importância de um saber empírico, como é possível perceber nesse documento de 1908:
“ – Então os capoeiras estão nos presepes para acabar com as presepadas...
– Sim senhor. Capoeiragem é uma arte, cada movimento tem um nome. É
mesmo como sorte de jogo. Eu agacho, prendo V.S. pelas pernas e vir V.S. virou
balão e eu entrei debaixo . Se eu cair virei boi. Se eu lançar uma tesoura eu sou um
porco , porque tesoura não se usa mais. Mas posso arrastar-lhe uma tarrafa mestra.
– Tarrafa?
– É uma rasteira com força. Ou esperar o degas de galho, assim duro, com os
braços para o ar e se for rapaz da luta, passar-lhe o tronco na queda, ou, se for
arara , arrumar-lhe mesmo o baú, pontapé na pança. Ah! V.S. não imagina que
porção de nomes tem o jogo. Só rasteira, quando é deitada, chama -se banda,
quando com força tarrafa , quando no ar para bater na cara do cabra meia -lua...”
(RIO, 2008: 130)
Esses praticantes agem dentro de um universo interpretado a partir de leis físicas as quais
desconhecem. Dessa forma, a capoeira aparece como algo “novo” no ensino da Física e capaz de
explicitar, dentro de nossas tradições, elementos das regras que regem a natureza dos movimentos.
Cabe lembrar a expansão do interesse na capoeira, a qual tem tido papel de destaque em
academias, projetos sociais, etc. Todo esse movimento contrasta em muito com a perseguição que a
mesma sofreu no passado. A capoeiragem por estar ligada aos marginalizados, aos mais humildes,
era vista como prática suspeita e até criminosa.
Portanto, a capoeira não é útil apenas para os afro-descendentes, mas para os brasileiros em
geral, já que vem se tornando uma atividade praticada por pessoas de diferentes origens étnicas e
sociais.
Não se sabe com certeza a origem da capoeira. Alguns mestres acreditam que foi uma
criação dos africanos no Brasil. Entretanto, a maioria afirma que as raízes vieram da África,
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oriundas de antigos rituais. São poucos os documentos referentes à capoeira pratica na época da
escravidão brasileira. Dessa forma, a maior fonte de conhecimento sobre a origem da capoeira é por
meio da transmissão oral. Conta-se que na África, em Angola, existia um ritual bastante violento
chamado n’golo ou “jogo da zebra”, no qual os negros lutavam aplicando cabeçadas e pontapés e os
vencedores tinham como prêmio as moças da tribo.
O termo capoeira, hoje associado à luta, tem sua origem indefinida. Segundo KANDUS et al
(2006) termo caá-puêra vêm do Tupi-guarani e significa “lugar onde existiu mato virgem e que hoje
não há mais”. Conta-se que, quando um negro escravo fugia e o feitor retornava sem conseguir
capturá-lo, o feitor alegava que o negro o havia “pegado na capoeira”, referindo-se ao local onde
fora vencido. Outra teoria, levantada por Gerhard Kubik (apud Kandus et al, 2006) é que o nome
vem da palavra ka/pwe/re, verbo de origem angolana, da língua Umbundu (Mbundu), cujo
signi?cado é “bater as mãos”. Uma terceira hipótese é levantada por BUENO (2003) ao afirmar que
“capoeira” era o nome de uma espécie de gaiola que os escravos utilizavam para transportar galos
castrados, por extensão o termo passou a designar o próprio escravo. Os escravos colocavam as
gaiolas no chão para praticar a luta/dança e com o tempo o nome da atividade passou a ser
associada ao praticante.
A prática da capoeira foi vista como uma atividade marginal por muitos anos. Mesmo depois
de abolida a escravidão, os capoeiristas continuaram a sofrer perseguições da polícia e eram
malvistos pela sociedade. Apesar das dificuldades, a capoeira sobreviveu, mas foi-se modificando
ao longo dos tempos com a criação de novos movimentos e cânticos, de grande importância para o
folclore. Mas é importante destacar que a capoeira nasceu em nome da liberdade, na luta contra a
escravidão.
A capoeira perdeu o seu caráter marginal e foi levada ao meio acadêmico. Hoje ela é alvo de
muitos estudos em vários centros universitários. No entanto, fora da História e da Educação Física,
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existem poucos trabalhos acadêmicos sobre a capoeira. Uma pesquisa na internet revelou apenas
dois artigos interessantes sobre o tema.
No ano de 2006, os autores deste artigo iniciaram um estudo de como aplicar a temática da
capoeira às aulas de Física. Desde então, vem sendo aplicada na Unidade do CEFET/RJ de Nova
Iguaçu uma proposta de inclusão da capoeira como motivadora para o ensino da Física como forma
de inserir a cultura afro-brasileira no currículo escolar desta disciplina. Essa iniciativa veio,
inclusive, ao encontro da Lei nº 11.645/2008 que reforma a LDB, incluindo a obrigatoriedade do
ensino da história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas.
Como esse artigo refere-se a relatar o uso da capoeira como elemento motivador e com
caráter demonstrativo, dispensaremos uma descrição matemática detalhada dos exemplos aqui
representados.
Exemplos de aplicação
1. Centro de massa
Figura 01
Figura 01 – Representação em pontilhado da trajetória do centro de massa numa prova de salto
ornamental.1
Propõe-se aqui que sejam incorporados a gama de exemplos sobre este tópico os
movimentos da capoeira. Por que negar ao estudo deste tema os movimentos do capoeirista? Ao
1
Fonte: RAMALHO, 1998.
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(a) (b)
Figura 02
Figura 02 – No movimento do capoeirista seu corpo gira no ar (a), mas o centro de massa executa um
movimento parabólico (b). 2
Outro aspecto que pode ser abordado sobre o centro de massa é o fato de que para que um
corpo apoiado sobre uma superfície não tombe é preciso que a linha de ação de seu peso intercepte
a região de apoio (figura 03).
Figura 03
Uma das maiores humilhações para o capoeirista é sujar seu abada 3. Quando ocorre uma
queda na roda de capoeira o jogador geralmente se irrita e sofre com as brincadeiras dos demais. No
jogo de capoeira, o jogador deve alterar sua postura corporal para que a linha de ação esteja sempre
na linha que intercepta o seu pé (figura 05).
Figura 04 Figura 05
Figura 04 – Movimentos da capoeira: Ataque com Bênção – Defesa com Negativa. 4
Figura 05 – Para não cair o jogador altera a posição do centro de massa para que a linha de ação do
peso esteja sempre sobre a linha que passa pelo ponto de apoio. 5
2
Adaptada de RAMALHO , 1998.
3
O Abadá é o nome da roupa do capoeirista, comumente na cor branca.
4
Fonte: AMADIO, 2005
5
Adaptada de AMADIO, 2005
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2. Dinâmica de Rotação
Figura 06
Na proposta deste trabalho utiliza-se o movimento do jogador de capoeira para exem plificar
o mesmo fenômeno (Figura 07).
Figura 07
A música representa um papel fundamental na capoeira. É o som que dita o ritmo do jogo e
confere a esse esporte um caráter lúdico. Além dessa função, as letras das “xulas” – como são
chamadas as músicas na capoeira – contam a história não apenas do jogo, mas também do povo
negro e de sua luta pela liberdade.
Como uma tentativa de incorporação dos aspectos culturais brasileiros , os autores vêm
utilizando nas aulas de Física o berimbau, instrumento que dita o ritmo na roda de capoeira, para
trabalhar ondas mecânicas, em particular o som. Como referência pode citar-se o trabalho de
KANDUS et al (2006) sobre a aplicação do berimbau no estudo das oscilações.
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Fonte: RAMALHO, 1998.
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(a) (b)
Figura 08
Figura 08 – O berimbau é composto de uma cabaça pressa a um fio de aço, ambos conectados
ao “pau de beriba”.
Freqüentemente os exemplos abordados no Ensino Médio para tratar de ondas numa corda
são os de instrumentos considerados “clássicos”, como o violão ou o violino. Estes instrumentos,
embora façam parte do nosso cotidiano, trazem informações culturais referentes à influência
principalmente eur opéia, eles não carregam nenhum componente cultural no que diz respeito ao
papel da nossa origem africana. Por que negligenciar exemplos tão fortes da presença africana nas
raízes brasileiras? Por que não inserir estes elementos que fazem parte do dia-a-dia dos estudantes e
que refletem a história da formação do povo brasileiro?
CONCLUSÃO
Entretanto, outras vertentes deste trabalho podem ser citadas para justificar sua aplicação.
Encontra-se na literatura alguns exemplos de que a abordagem da ciência por meio de elementos
cotidianos tem trazido bons resultados. Várias pesquisas têm destacado a importância da
contextualização dos temas escolares para construção de um ensino próximo ao dia -a-dia do
educando, o que daria mais significado ao que é ensinado, auxiliando na compreensão e na
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apropriação dos saberes. Esse tipo de projeto com a inserção da capoeira mostrou como é
importante trazer para escola experiências da vida cotidiana do seu entorno, situando-a como parte
da comunidade em que ela própria está inserida. O saber cultural pode e deve ser valorizado pela
escola, pois ele é parte da vida dos estudantes e compõe importante aspecto da sua formação.
R EFERÊNCIAS :