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1 Caetano Veloso
CAETANO VELOSO
Incluir Caetano Veloso em um livro dedicado à poesia significa reconhecer uma tradição
lírica muito peculiar à literatura brasileira: o cancioneiro popular, que remonta a Noel Rosa,
Cartola e Humberto Teixeira e chega até nossos dias com Dorival Caymmi, Chico Buarque,
Gilberto Gil, Aldir Blanc, Paulo César Pinheiro, Luiz Tatit e Tom Zé, entre tantos outros.
Discute-se muito se as letras de MPB devem ser lidas de um ponto de vista estritamente
poético, desvinculadas das músicas com as quais foram criadas. A questão traz nas
entrelinhas um julgamento de valor, como se o fato de ser indissociável de melodias e
harmonias circunscrevesse essa produção a um gênero menor (prova disso são
as resistências à obra de Vinicius Pág. 39] de Moraes). Mas também existe o argumento de
que no Brasil — graças a inventividade singular de compositores que prescindem de
comparações com a literatura "pura"—, a canção popular se tornou um gênero maior.
Seja como for, a recente publicação de Letra Só (2003), reunindo 180 composições de
Caetano Veloso, demonstra que podemos enxergá-las também como poemas. Lendo os
versos de "Língua", por exemplo, seria quase possível esquecer as harmonias e a voz do
compositor — se isso não significasse a pobreza de espírito de trocar o mais pelo menos,
de ignorar as virtualidades latentes na pergunta que ele mesmo formula: "O que quer/ O
que pode/ Esta língua?"
Nas mãos de Caetano, a língua pode muito: assimila a alta tradição lírica ao
experimentalismo concreto ("Sampa"), deglute a si mesma em gesto que reproduz
metalingüisticamente aquilo que denuncia ("O furto, o estupro, rapto pútrido/ O fétido
sequestro,/ O adjetivo esdrúxulo em U") e se reinventa numa sucessão barroca de
neologismos (como em "Outras Palavras": "Parafins, gatins, alphaluz, sexonhei da
guerrapaz/ Ouraxé, palávoras, driz, okê, cris, espacial").
"A seleção revelou muita coisa interessante da dicção dessas palavras escritas para serem
cantadas que eu não perceberia de outra forma", confessa Caetano Veloso. "Senti que as
letras, apresentadas na condição de poemas,
mostraram virtudes que eu não desconfiava que possuíssem e fiquei surpreso com valores
que eu não observava."
Eucanaã Ferraz toma o cuidado de não chamar as letras de poemas e não chamar
Caetano de poeta. "Ele faz as letras para a música", observa." Mas há, na transposição
para um papel, um deslocamento formidável, como o que em Cinema Falado assegurava a
impureza do cinema; aqui, o poema cantado, observado distante da melodia, mostra-se em
outra dimensão. E é surpreendente como, mesmo para quem conhece bem as melodias,
ao ler as letras fora dos encartes dos discos percebe outros valores. É como se o tempo
todo essas letras estivessem nos enganando, fingindo não ser poemas. A reunião em livro
dá numa forma de vida nova para os escritos."
2 Caetano Veloso
Mas, afinal, letra de música é poesia ou não? Eucanaã acha que a discussão, dada a
peculiaridade da produção cultural brasileira, é, sim, pertinente, e que o livro trouxe o tema
de novo à baila. Afinal, Caetano hoje é citado, junto a outros como Chico Buarque e
Arnaldo Antunes por Manuel da Costa Filho em Literatura Brasileira hoje, publicação Folha
Explica, como poeta. Em tempo, Chico consta como prosista.
Principais Obras: Verdade Tropical (Companhia das Letras, 1997), Letra Só (Companhia
das Letras, 2003).
3 Caetano Veloso
Língua
Caetano Veloso
4 Caetano Veloso
– Bote ligeiro!
– Ma’de brinquinho, Ricardo!? Teu tio vai ficar desesperado!
– Ó Tavinho, põe camisola pra dentro, assim mais pareces um espantalho!
– I like to spend some time in Mozambique
– Arigatô, arigatô!)
Nós canto-falamos como quem inveja negros
Que sofrem horrores no Gueto do Harlem
Livros, discos, vídeos à mancheia
E deixa que digam, que pensem, que falem.
Sampa
Caetano Veloso
Outras Palavras
Caetano Veloso
5 Caetano Veloso
Tudo seu azul, tudo céu, tudo azul e furta-cor
Tudo meu amor, tudo mel, tudo amor e ouro e sol
Na televisão, na palavra, no átimo, no chão
Quero essa mulher solamente pra mim, mais, muito mais
Rima, pra que faz tanto, mas tudo dor, amor e gozo:
Outras palavras
Nem vem que não tem, vem que tem coração, tamanho trem
Como na palavra, palavra, a palavra estou em mim
E fora de mim
quando você parece que não dá
Você diz que diz em silêncio o que eu não desejo ouvir
Tem me feito muito infeliz mas agora minha filha:
Outras palavras
Alegria, Alegria
Caetano Veloso
Em caras de presidentes
Em grandes beijos de amor
Em dentes, pernas, bandeiras
Bomba e Brigitte Bardot...
6 Caetano Veloso
Ela pensa em casamento
E eu nunca mais fui à escola
Sem lenço e sem documento,
Eu vou...
Tropicália
Caetano Veloso
Viva a bossa
Sa, sa
Viva a palhoça
Ca, ça, ça, ça...
O monumento
É de papel crepom e prata
Os olhos verdes da mulata
A cabeleira esconde
Atrás da verde mata
O luar do sertão
O monumento não tem porta
A entrada é uma rua antiga
Estreita e torta
E no joelho uma criança
Sorridente, feia e morta
7 Caetano Veloso
Estende a mão...
Viva a mata
Ta, ta
Viva a mulata
Ta, ta, ta, ta...
Viva Maria
Ia, ia
Viva a Bahia
Ia, ia, ia, ia...
Viva Iracema
Ma, ma
Viva Ipanema
Ma, ma, ma, ma...
Domingo é o fino-da-bossa
Segunda-feira está na fossa
Terça-feira vai à roça
Porém!
O monumento é bem moderno
Não disse nada do modelo
Do meu terno
Que tudo mais vá pro inferno
Meu bem!
Que tudo mais vá pro inferno
Meu bem!...
Viva a banda
Da, da
Carmem Miranda
Da, da, da, da...
8 Caetano Veloso
Fora de Ordem
Caetano Veloso
Vapor barato
Um mero serviçal
Do narcotráfico
Foi encontrado na ruína
De uma escola em construção...
E o cano da pistola
Que as crianças mordem
Reflete todas as cores
Da paisagem da cidade
Que é muito mais bonita
E muito mais intensa
Do que no cartão postal...
Alguma coisa
Está fora da ordem
Fora da nova ordem
Mundial...
Te encontro em Sampa
De onde mal se vê
Quem sobe ou desce a rampa
Alguma coisa em nossa transa
É quase luz forte demais
Parece pôr tudo à prova
Parece fogo, parece
Parece paz, parece paz...
Pletora de alegria
Um show de Jorge Benjor
Dentro de nós
É muito, é grande
É total...
Alguma coisa
Está fora da ordem
Fora da nova ordem
Mundial...
9 Caetano Veloso
Vem colocar-se plumas
De um velho cocar...
Estou de pé em cima
Do monte de imundo
Lixo baiano
Cuspo chicletes do ódio
No esgoto exposto do Leblon
Mas retribuo a piscadela
Do garoto de frete
Do Trianon
Eu sei o que é bom...
Alguma coisa
Está fora da ordem
Fora da nova ordem
Mundial...
10 Caetano Veloso