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Bovespa e educação financeira: a hegemonia neoliberal e a gestão das finanças

pessoais no universo das classes médias brasileiras

Eduardo Vilar Bonaldi*

Resumo: Este artigo apresenta nossa pesquisa sobre os cursos de educação financeira da Bovespa,
promovidos regularmente pela Bolsa de Valores de São Paulo (BOVESPA). Estes cursos buscam
atrair e formar novos investidores para o mercado de capitais brasileiro. Inicialmente, nós propomos
uma discussão com os economistas marxistas que interpretam a fase contemporânea do capitalismo
sob a idéia de ‘mundialização financeira’. Posteriormente, nós avançamos o conceito de “revolução
conservadora” que toma o capitalismo contemporâneo num sentido mais amplo. Finalmente, nós
argumentamos que análises empíricas e sociológicas das práticas sociais que constituem a
hegemonia neoliberal são necessárias para uma compreensão satisfatória do capitalismo
contemporâneo, apresentando, então, nossa pesquisa sobre os cursos de educação financeira,
inspirados fundamentalmente nos conceitos do sociólogo francês Pierre Bourdieu.

The São Paulo stock exchange and the financial education: the neoliberal hegemony
and the management of the personal finance within the brazilian middle class

Abstract: This article aims to present our research about the financial education courses, organized
and promoted on a regular basis by the São Paulo stock exchange (BOVESPA). These courses
intend to attract and to form new investors in the brazilian stock market. First, we propose a
discussion with the marxist economists who interpret the contemporary phase of capitalism under
the idea of financial globalization. Then, we advance the concept of “conservative revolution”,
which takes the contemporary phase of capitalism in a broader sense. Finally, we argue that
sociological and empirical analysis of the social practices that underlie the construction and the
preservation of the neoliberal hegemony are necessary for a deeper comprehension of the
contemporary phase of capitalism, presenting our research about the financial education courses,
mainly inspired by the concepts of Pierre Bourdieu.

Key words: Globalization, personal finance, stock market, habitus; field; neoliberal hegemony.

Dominação neoliberal e “revolução conservadora”


A economia política de inspiração marxista, principalmente aquela desenvolvida no
espaço intelectual francês (AGLIETTA, 1976; CHESNAIS, 2005; LORDON, 2002;
ÓRLEAN, 1999), diagnostica o capitalismo contemporâneo como produto de um longo
período de transição – desde os anos 1970 até a década de 1990 – durante o qual as relações
de propriedade do capital sofreram profundas modificações. O sistema financeiro
protagonizado, em geral, pelos grandes oligopólios bancários cedeu lugar ao mercado
financeiro, dominado fundamentalmente pelos investidores institucionais, isto é, fundos de

*
Mestrando em Sociologia pela USP. End. eletrônico: eduardo.bonaldi@usp.br
seguro, de investimento e de pensão que concentram as poupanças das famílias e
indivíduos, sendo administrados por gestores tecnicamente especializados1.
Tais modificações alteraram sobremaneira as condições de exercício dos direitos de
propriedade sobre o capital e, por conseqüência, as expectativas de rentabilidade dos
agentes econômicos, a distribuição do produto real entre as diversas frações da burguesia e
entre estas e a classe trabalhadora, e, por fim, as condições de estabilidade e a dinâmica de
crescimento do sistema.
Os investidores institucionais converteram-se nos acionistas majoritários de uma
inúmera quantidade de empresas, submetendo-as aos critérios de rentabilidade próprios do
mercado financeiro, caracterizados por taxas de retorno em curto prazo acima da taxa
média de lucro no longo prazo. Passaram, assim, a liderar, reportando-se a tais critérios,
todo o chamado processo de “reestruturação produtiva”, que compreende, de modo sucinto,
as seguintes tendências: redução de postos de trabalho, substituição de mão de obra
qualificada por trabalhadores mais jovens e menos qualificados, transferência de unidades
produtivas para países de regulamentação trabalhista flexível, investimento pesado em
processos de controle de qualidade e em tecnologias de rede e informação – para
compensar a utilização de mão de obra menos qualificada – (AGLIETTA, 1998, pp. 80-81),
retribuição em forma de bônus acionários às elites corporativas bem-sucedidas na elevação
do valor das ações e dos fluxos de dividendos, entre outras.
Deste modo, observa-se que o capitalismo contemporâneo – inaugurado a partir das
profundas modificações nas relações de propriedade do capital, marcadas pela ascensão dos
investidores institucionais – caracteriza-se fundamentalmente por baixas taxas médias de
crescimento, com grande concentração de renda e desemprego em massa, submetidas,
ainda, a altos graus de instabilidade dado o risco de ‘bolhas‘ financeiras, em virtude da
perseguição de taxas de lucro acima da taxa média de lucro no médio e longo prazo.
Contudo, não obstante o inegável poder explicativo deste estilo de análise realizado
pela política econômica de inspiração marxista, ele dificilmente acaba por satisfazer os

1
Outro economista francês, Henri Jacot, afirma, para ilustrar o poderio dos fundos de pensão no processo de
mundialização, que nos Estados Unidos e Inglaterra, os fundos de pensão, somados aos de seguro, detêm
aproximadamente metade de todas as ações e títulos de dívida cotados em Wall Street e na bolsa de Londres.
(cf. JACOT, 2000, p.123 ) Segundo dados de 2005, apurados pela Irish Association of Pension Funds (IAPF),
a soma dos valores dos fundos de pensão norte-americanos alcançavam 99% do PIB norte-americano,
enquanto a soma dos fundos ingleses chegava a 66% do PIB inglês. Na Holanda, a relação entre a soma dos
valores dos fundos do país ante seu PIB alcança extraordinários 125% (IAPF, 2007).
praticantes da sociologia, muito menos aqueles situados na periferia do sistema econômico
mundial2. Pois, estas análises compreendem a constituição histórico-social da dominação
neoliberal – ou do “regime de acumulação com predominância da valorização financeira”,
nomenclatura comumente utilizada por estes economistas para designá-la – como uma mera
questão de acumulação quantitativa das forças econômicas, políticas e sociais beneficiárias
desta dominação, que exerceriam uma pressão mecânica cada vez maior ao longo de seu
crescimento quantitativo sobre as políticas públicas e os setores trabalhistas da sociedade,
procurando estender o novo regime de acumulação até suas últimas conseqüências.
Encontra-se aqui, portanto, a apropriação e o uso analítico do velho raciocínio que
Marx havia pinçado de Hegel, segundo o qual, as diferenças quantitativas, a partir de certo
ponto, sempre terminam por se converter em distinções qualitativas; um raciocínio analítico
bem razoável, ainda que de todo insuficiente para resolver de modo satisfatório o problema
da constituição histórico-social da dominação neoliberal. Insuficiente, pois, a ascensão
deste novo regime de acumulação é processada, na verdade, por uma “revolução
conservadora” (GUEX, 2003) no terreno das idéias e representações sociais sobre conceitos
de justiça, direito e responsabilidade, que modifica profundamente a maneira como os
indivíduos compreendem a vida em sociedade, como se auto-representam e como se
relacionam entre si e com as instituições públicas.
Em outras palavras, esta “revolução conservadora” é carreada por um amplo projeto
cultural de justificação, defesa e naturalização da transfiguração regressiva do conceito de
cidadania, isto é, do recuo da esfera das obrigações públicas em proveito da ampliação do
espaço no qual o cidadão deve agir como consumidor, abandonando a esfera do direito para
adentrar as leis do mercado.
Portanto, a análise da dominação neoliberal não deve restringir-se, segundo nossa
opinião, apenas na constatação do acúmulo quantitativo de forças materiais, tendo de
acertar contas com o fato de que tal acúmulo depende inextricavelmente – na verdade, só
pode se processar através – da larga, profunda e avassaladora transformação do

2
Não satisfazem especialmente aos sociólogos situados na periferia do capitalismo, porque opõe o novo
regime de acumulação à realidade do estado de bem-estar social, do qual a América Latina, como inúmeras
vezes nos lembra o Prof. Francisco de Oliveira, só conheceu um ‘simulacro’, de qualidade insatisfatória e
restrito às minorias incorporadas ao setor moderno das economias latino-americanas. Aqui, portanto, o
adversário da dominação neoliberal é caracteristicamente o ideário nacional-desenvolvimentista, e não o
modelo do bem-estar social.
enquadramento cognitivo dentro do qual as relações entre o indivíduo e o social são
compreendidas, que designamos de “revolução conservadora”.
No quadro desta “revolução conservadora”, a insegurança social, como a socióloga
americana Dorothy Ross constatava em seu estudo sobre a origem das ciências sociais
norte-americanas, é reconstruída como o mais virtuoso princípio de organização da
sociedade, a engendrar agentes econômicos e instituições sociais dotadas de maior
flexibilidade, dinamismo e produtividade. Tem-se, logo, toda uma nova (re) engenharia
social, fundada na generalização do paradigma, tipicamente liberal e anglo-saxônico, do
‘Estado mínimo’ a zelar por mais dinamismo e produtividade, em contraposição ao modelo
de bem-estar social da Europa continental, moroso, pesado, economicamente irracional e
covarde, uma vez que se acha pautado pelo ‘medo dos riscos’ inerentes ao jogo do mercado
(ROSS, 1998).
A flexibilização das leis trabalhistas e o contínuo desmonte do modelo de bem-estar
social agem justamente neste sentido, supondo e, ao mesmo tempo, reforçando o que
tratamos por “revolução conservadora” no terreno das idéias e representações, bem como
alargando o escopo das possibilidades de reestruturação produtiva das empresas e do
Estado. No primeiro caso, amplia-se o raio de ação para as medidas que visam equiparar ou
aproximar as taxas de lucro das empresas às expectativas de ganho vigentes no circuito da
valorização financeira do capital – sabidamente altas e, com freqüência, de natureza
especulativa – às custas das garantias e direitos trabalhistas. Já no que concerne ao Estado,
sua reestruturação potencializa, especialmente na periferia do sistema, os rentáveis
mercados de títulos de dívida pública e de especulação cambial.
Esta nova engenharia social encontra no mainstream de inspiração neoclássica ou
marginalista da ciência econômica seu discurso de apoio, justificação e divulgação. Esta
vertente da análise econômica interpreta a sociedade enquanto resultado da interação de
indivíduos livres, racionais e socialmente atomizados agindo – sempre de modo egoísta, calculista e
maximizador - frente a um determinado conjunto de incentivos e desincentivos econômicos, de
modo que tal jogo interativo termina por provocar, espontânea e necessariamente, tendências
estáveis ao equilíbrio e à máxima satisfação econômica da soma destes indivíduos.
Na verdade, a ciência econômica assume a capacidade de estruturar o vocabulário e o
enquadramento cognitivo das mais díspares questões que emergem na arena pública, redefinindo-as
invariavelmente a partir dos conceitos de ‘produtividade’, ‘eficácia’, ‘ ganhos marginais’ etc. A esta
situação de expansão avassaladora da eficácia simbólica do discurso econômico nas mais diversas
esferas, Bourdieu referia-se como “ imperialismo econômico”; um processo que viria a transgredir
e ameaçar, em maior ou menor grau, a autonomia relativa dos diversos microcosmos ou campos
sociais; algo que, inevitavelmente, traz-nos à memória a análise de Lukács acerca da expansão do
processo de reificação por todas esferas do mundo social.
Um exemplo paradigmático do poder e alcance privilegiado, nos mais diversos contextos
nacionais, dos economistas mainstream para a proposição destas reformas nos é fornecido pela onda
verdadeiramente global de reformas previdenciárias e crescimento dos fundos de pensão3 levadas a
cabo a partir da década de 1990, fortemente influenciadas, nos mais diversos contextos, pela
ortodoxia liberal.
A idéia que subjaz à expansão e crescimento dos fundos de pensão não é outra senão
a utopia anunciada ainda na década de 1970 pelo economista canadense, reputado como pai
da moderna literatura do management Peter Drucker. Drucker argumentava que a expansão
dos fundos de pensão norte-americanos seria a revolução silenciosa que estava a realizar, de
fato, a socialização do capital, no seio próprio do jogo de mercado, uma vez que os
poderosos fundos de pensão norte-americanos tornavam os trabalhadores acionistas e
controladores do capital de inúmeras empresas, podendo, deste modo, fruir dos lucros e do
dinamismo típico das economias de livre mercado (Drucker, 1976). Era esta a utopia de
uma “democracia de acionistas”, na qual os cidadãos obteriam segurança,direitos, proteção
e reduziriam as desigualdades entre si a partir da participação ampliada num robusto
mercado de ações, num contexto de Estado mínimo. No limite, os indivíduos afirmar-se-
iam cidadãos não mais na esfera política do Estado, mas sim como investidores no
mercado.
A utopia da “democracia dos acionistas” é, de fato, muito significativa daquilo que
desejamos comunicar por “revolução conservadora”, pois ela evidencia uma característica
deste projeto de ampla redefinição cognitiva já apontada pelo estudo do “novo espírito do
capitalismo” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 1999), qual seja, o intento “conexionista”, isto
é, o movimento de negação, justaposição e harmonização dos ‘contrários’(neste caso, das

3
Entidades privadas de capitalização da poupança com fins previdenciários em contas individuais, a serem
administradas e investidas no mercado por gestores especializados.. Tais fundos acumulariam rendimentos ao
longo do tempo, garantindo a aposentadoria futura de seus participantes, segundo o ideário que moveu a onda
de reformas previdenciárias, em níveis mais elevados que os benefícios mínimos a serem pagos pelo sistema
público de repartição.
forças sociais contraditórias) a partir do qual as assimetrias estruturais do mundo
econômico e social apareceriam como reduzidas ou absolutamente equalizadas. A
participação massificada de ‘cidadãos comuns’ no jogo do mercado financeiro elevaria os
mesmos à condição de investidores e co-proprietários do capital de diversas empresas,
difundindo lucros e dividendos pelos mais diversos grupos sociais, bem como realizando a
suposta natureza democrática do capitalismo financeirizado. Assim, tudo se passa como se
as assimetrias sociais pudessem e devessem ser dissolvidas no emaranhado de
antagonismos individuais que se entrechocam diariamente no mercado, mas, cujo desfecho,
no entanto, é sempre o equilíbrio no ponto de máxima eficiência.
Um significativo índice do alcance da “revolução conservadora” é a apropriação
desta utopia da ‘democracia dos acionistas’ por representantes intelectuais da centro-
esquerda, no calor dos debates europeus sobre a reforma previdenciária nos anos de 1990,
principalmente na França, onde o debate questiona toda a forte tradição republicana deste
país. Desta forma, o importante economista francês Michel Aglietta passou a defender os
fundos de pensão como instrumentos de crucial importância para a harmonização das
relações entre capital e trabalho, podendo, assim, reequilibrar as perdas e danos impingidas
à classe trabalhadora pelo processo de financeirização e abertura das economias nacionais4
(AGLIETTA, 1998). Sendo seguido pelo sociólogo inglês Robin Blackburn, que vê os
fundos de pensão como os novos espaços de poder da classe trabalhadora no capitalismo
financeirizado (BLACKBURN, 1999).

A Bovespa e a educação financeira


Nossa prévia tentativa de apreender a “revolução conservadora” na típica
formulação que ela assume aqui, na periferia da economia global, pressupõe, como
Bourdieu o faz (BOURDIEU, 1997), a arena pública como espaço social observável no
qual transcorrem batalhas cognitivas que se evidenciam como os verdadeiros eixos
constituintes das lutas políticas de uma sociedade. No entanto, os esforços de delimitação e
análise destes enfrentamentos cognitivos não esgotam, de modo algum, o problema da
dominação neoliberal. Ainda que se inscrevam como etapa imprescindível para o estudo da

4
Para uma profunda análise sobre os trabalhos de Michel Aglietta e sua perspectiva política “social-liberal”,
consultar (BRAGA, 2003)
questão, tais esforços devem ser seguidos, em nossa opinião, por uma reflexão analítica,
fundada em densas pesquisas empíricas, sobre a influência concreta deste amplo projeto de
redefinição cognitiva sobre o comportamento concreto dos grupos e agentes sociais. Em
outras palavras, é preciso enfrentar o clássico problema da mediação entre ação e
representação social, nos mais diversos microcosmos sociais que se vêem ‘revirados’ pela
ascensão da dominação neoliberal.
É este justamente o intento de nossa pesquisa, circunscrito àquilo que descrevemos
como a idéia que provavelmente melhor traduz o espírito da “revolução paradigmática”, ou
seja, a utopia de uma “democracia de acionistas”. Esta idéia não é difundida apenas pela,
por si só já relevante, expansão dos fundos de pensão em nosso país e no mundo5, como
também por toda a movimentação suscitada pela Bovespa, nos últimos anos, com a
finalidade de espraiar a cultura de investimento financeiro pela sociedade brasileira.
Igualmente destacável é o apoio às iniciativas de popularização do mercado
financeiro, oriundo tanto do Estado 6. Ademais, impressiona a grande expansão dos
pequenos investidores, pessoa física, constatada nos últimos seis anos 7.
Nossa pesquisa é focada na iniciativa decisiva para as tentativas de estabelecimento
desta ‘ democracia de acionistas’, ou seja, os cursos de educação financeira, gratuitos e de
curta duração, organizados e promovidos pela Bovespa.
Estes cursos propõem-se a difundir noções de planejamento orçamentário,
incentivando a cultura de poupança e apresentando conceitos gerais sobre o funcionamento
e as operações de investimento do mercado financeiro. São gratuitos e destinados a leigos
em finanças.
Em nossa primeira experiência de campo, realizando o acompanhamento de um
destes cursos 8, tivemos a oportunidade de observar de que modo eles procuram defender o

5
Para uma análise sobre a expansão dos fundos de pensão no Brasil e no mundo, consultar (BONALDI,
2007) e (BIANCHI; BRAGA, 2005)
6
Nos governos de Fernando Henrique Cardoso e de Luis Inácio, regulamentaram-se incentivos para a compra
de ações das duas ‘estrelas’ do mercado acionário brasileiro, a Vale do Rio Doce e a Petrobrás, com recursos
do FGTS. Em 2002, também foi criado o programa “Tesouro Direto”, que propicia a compra de títulos de
dívida do Tesouro Nacional para o pequeno investidor individual, ao valor mínimo de apenas 200 reais
(PINHEIRO, 2008, p. 46-7)
7
A quantidade de pessoas físicas que compram ações cresceu seis vezes desde 2002, alcançando cerca de
meio milhão de pessoas (GRADILONE, 2008, p. 102).
8
Acompanhamos uma edição destes cursos de educação financeira nos dias 07 e 08 de Janeiro do presente
ano.
investimento em títulos de dívida e ações como opção de gestão das finanças pessoais mais
vantajosa face às concorrentes, como por exemplo, as opções de endividamento para a
antecipação de desejos de consumo (cartão de crédito, cheque especial, recurso a
financiadoras), as opções de investimento mais “tradicionais”(basicamente poupança e
CDBs) e as opções de investimento no mercado financeiro por meio de fundos
administrados por terceiros ( tanto os de renda fixa quanto os de renda variável, geralmente
vendidos por bancos).
As opções de endividamento para a antecipação de desejos de consumo são
moralmente desqualificadas como pensamento de pobre. Elas se caracterizam, de acordo
com os cursos, pelo uso do dinheiro dos outros, sem os devidos cálculos sobre os custos de
tal opção, o que constantemente repõe os indivíduos na condição de devedores, impedindo
qualquer acúmulo de patrimônio. As opções de investimento mais “tradicionais” são
representadas como recursos de pessoas excessivamente preocupadas com estabilidade e
segurança, que não se mostrariam capazes de perceber e usufruir das novas, e mais
rentáveis, oportunidades de investimento. Por fim, as opções de investimento no mercado
financeiro por meio de fundos administrados por terceiros são reportadas pelos cursos como
formas de gestão das finanças pessoais ligadas ao dinamismo e às oportunidades do
mercado financeiro, mas, ainda assim, inferiores ao investimento diretamente controlado
pela pessoa física, na medida em que implicam na cobrança de taxas administrativas que
reduzem os possíveis ganhos do investimento.
Assim sendo, é possível vislumbrar a possibilidade, evocada pelo sociólogo inglês
Alan Aldridge (1998), de se mobilizar o conceito de “campo” (desenvolvido nos trabalhos
de Bourdieu) para o estudo da competição entre as diversas formas e instituições de gestão
das finanças pessoais. Aldridge argumenta que o consenso estruturador do campo das
finanças pessoais – acerca do valor último da ação específica a tal campo – não é outro
senão a crença (o illusio) na legitimidade de se atrair e conquistar cada vez mais indivíduos
para as diversas formas particulares de gestão planejada das finanças pessoais. Deste modo,
as instituições de gestão das finanças pessoais competem entre si pelo maior número de
‘adeptos’. Cada qual reivindica, com argumentações específicas, oferecer o serviço de
gestão mais adequado e vantajoso, e, como acabamos de ver, procura representar de
maneira própria (segundo seus próprios interesses) as ofertas de seus concorrentes.
Em nossa preliminar experiência de campo, pudemos verificar ademais os sentidos
e justificações que os cursos evocam para sustentar a necessidade de se desenvolver o
investimento financeiro como hábito estável de gestão das finanças pessoais. Num primeiro
momento, o investimento financeiro é representado como a forma mais acertada e vantajosa
de se constituir uma reserva patrimonial contra a grande instabilidade empregatícia e a
deterioração da previdência pública contemporânea. Contudo, os cursos também defendem
que, se bem manejados, tais investimentos podem se converter em estratégias de ascensão
social, podendo até mesmo, nos casos mais bem-sucedidos, liberar os indivíduos do
trabalho, transformando-os em investidores-rentistas. Por fim, os cursos buscam representar
os pequenos investidores como, ao mesmo tempo, expressão e agentes da modernização do
capitalismo brasileiro. Neste sentido, eles não estariam apenas a agir em benefício próprio,
mas também em benefício do país como um todo, que estaria no limiar de um novo ciclo de
desenvolvimento fundado no mercado de capitais. Desta forma, é possível sustentar que os
cursos reportam os pequenos investidores como indivíduos mais sensíveis, adaptados e
conscientes das mudanças globais contemporâneas, ou seja,é possível considerar que a
prática estável do investimento financeiro é reconstituída, pelo discurso, como uma espécie
de fronteira de status, separando os que estão ‘fora’, daqueles que estão ‘dentro’ do novo
capitalismo financeirizado e global.
Segundo os cursos, o primeiro passo para o sucesso no mercado financeiro seria
“pensar como rico”, ou seja, redimensionar o orçamento familiar para que constantemente
haja uma determinada sobra destinada a investimentos, fugir dos financiamentos e compras
a prazo (“ porque rico não paga juros, rico prefere receber juros.”), preferir a multiplicação
do patrimônio à satisfação imediata dos desejos de consumo.
Assim, como já dissemos, os cursos representam a inserção no mercado financeiro
como uma aventura universalmente possível e acessível. Esta suposta universalidade é a
base para a afirmação da possibilidade de uma “democracia dos acionistas”, ou seja, de
uma participação massificada na distribuição dos ganhos do mercado financeiro que
reivindica uma coloração de justiça social ao capitalismo financeirizado.
Contudo, em suas análises sobre a apropriação da alta cultura e sobre o sistema
escolar, Bourdieu já argumentava que o consumo dos ‘bens simbólicos legítimos’ (a alta cultura,
isto é, a ida a ópera, a museus, o gosto pelo teatro e os ‘cinemas de arte’ etc.) dependia da posse
prévia dos códigos de deciframento e dos instrumentos de apropriação de tais bens, adquiridos pela
educação “contínua, difusa e implícita” proporcionada pela família e pela cultura escolar.
(BOURDIEU, 2007). Sendo que, a absorção da cultura escolar e a adesão a seus valores também se
mostrava dependente dos diferentes graus de competência lingüística e cultural, cuja posse desigual
retrocedia às desigualdades iniciais de capital econômico e cultural, que caracterizam as famílias
dos alunos (BOURDIEU, 2007). Por esta razão, tanto o consumo dos bens simbólicos legítimos
quanto a absorção da cultura escolar demonstravam-se virtualmente monopolizados pelos estratos
sociais de alto capital econômico e/ou cultural.
Deste modo, nossa pesquisa avança a hipótese de que o desenvolvimento do
investimento financeiro como hábito de gestão das finanças pessoais não é, de modo algum,
uma possibilidade universal, e sim dependente da origem e trajetória social dos indivíduos.
Buscaremos verificar o modo de operação concreto dos aspirantes a investidores que
tenham participado do curso da Bovespa, isto é, como buscam informações sobre
investimento, de que forma tomam decisões, com que freqüência mudam suas posições de
investimento, se permanecem no mercado ou se ingressam e saem freqüentemente etc. No
caso dos indivíduos que nunca tenham efetivamente começado a investir, buscaremos
flagrar não apenas as razões do interesse pelo mercado financeiro não contemplado pela
prática, como também as eventuais ‘auto-estigmatizações’, dado que o discurso presente
nestes cursos, como vimos, é fortemente caracterizado por marcações sociais que visam a
estigmatização moral dos não- investidores.
Para os fins de nossa pesquisa, a noção de “capital cultural” seria reinterpretada de
acordo com seu sentido mais amplo de “capital informacional”, isto é, o conjunto de
conhecimentos e informações acerca do mercado financeiro, somado à capacidade
intelectual de processá-lo e apreendê-lo de modo razoavelmente adequado 9. Deste modo,
pretendemos apreender a natureza do processo de acumulação deste capital, verificando se
este processo, a exemplo do processo de aquisição de capital cultural, desenrola-se
tipicamente como uma acumulação “permanente, difusa e implícita” que não se encerraria,
de maneira alguma, nos cursos oferecidos pela Bovespa. Nossa segunda hipótese é a de que
este processo se estenda, conforme o maior ou menor grau de presença de investidores nos
círculos sociais mais próximos do indivíduo (família, amigos, colegas de trabalho etc.).

9
Em BOURDIEU; WACQUANT (1992, p. 119), afirma-se que somente a noção de “capital informacional”
pode oferecer o pleno alcance analítico do conceito de “capital cultural”.
Logo, indagamo-nos se as redes de contato sociais podem se constituir em uma
espécie de capital social a favorecer a conversão ao investimento financeiro, na medida em
que elas se possam se revelar não apenas como suportes e oportunidades de aprendizado
permanente e difuso sobre o mercado, mas também - e talvez principalmente – porque o
convívio com pessoas que investem tenderia, segundo nossa hipótese, a constituir e reforçar
a ‘crença’ no investimento financeiro como opção vantajosa e adequada( para pessoas de
semelhantes condições sociais) para gestão das finanças pessoais do indivíduo que se põe
nesta marcha de transição para o mercado de capitais.
Portanto, segundo a hipótese fundamental que buscaremos explorar em nossa
pesquisa, algo como uma “democracia de acionistas” – esta aspiração central para a defesa
ideológica do neoliberalismo – seria altamente improvável do ponto de vista sociológico,
uma vez que o ingresso no mercado financeiro mostrar-se-ia, como mais uma prerrogativa
das classes mais favorecidas.
Deste modo, no universo das classes médias brasileiras, apenas os círculos mais
altos demonstrar-se-iam, caso se confirme tal hipótese, aptos a tal ingresso, engendrando-se
aí, nos períodos de euforia do mercado financeiro global, mais um mecanismo de
aprofundamento das – sempre colossais – desigualdades que cingem a sociedade brasileira.
Contudo, nos momentos de crise e depressão dos mercados, tendo-se em conta a eminente
instabilidade da valorização financeira do capital, estes círculos experimentariam a
fragilidade intrínseca a sua condição de pequenos investidores – marcada, entre outras
coisas, pelas típicas assimetrias de informações (e contatos “preferenciais”) do mercado –
em oposição à classe dos grandes investidores, bancos e fundos de investimento
transnacionais; como consagrava um típico dito popular dos anos subseqüentes ao grande
Crack de 1929: “Quando o engraxate de sapatos da calçada da Bolsa sabe das grandes
oportunidades, é porque os tubarões já pularam fora delas.”

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