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Introdução à Apologia de Sócrates

De acordo com Diógenes Laércio, a acusação apresentada contra Sócrates, em janeiro


de 399 a.C., foi a que segue: "A seguinte acusação escreve e jura Meleto, filho de
Meleto, do povoado de Piteo, contra Sócrates, filho de Sofronisco, do povoado de
Alópece. Sócrates é culpado de não aceitar os deuses que são reconhecidos pelo Estado,
de introduzir novos cultos, e, também, é culpado de corromper a juventude. Pena: a
morte"
A cidade de Atenas não podia mover ações, mas um cidadão podia, assumindo, porém,
total responsabilidade, se a acusação não fosse considerada procedente pelo júri. O
acusador era Meleto, mas não só ele; também Ânito e Lícon, com os mesmos direitos à
palavra no decorrer do processo. Meleto era o acusador oficial, porém nada exigia que o
acusador oficial fosse o mais respeitável, hábil ou temível, mas somente aquele que
assinava a acusação.
E, neste caso, a influência exercida por Ânito constituiu o elemento mais respeitável no
desfecho do processo, que foi por ele zelosamente preparado nas reuniões dos diversos
cidadãos, sustentando-o com a autoridade de seu nome.
No Eutífron, vemos que Sócrates, ao se aproximar do Pórtico do Rei, onde fora afixada
a acusação por Meleto, ao ser inquirido pelo adivinho Eutífron a respeito de quem era
aquele que o acusava, respondeu: "Sei bem pouco a respeito dele, talvez porque seja um
homem jovem e desconhecido. Acredito chamar-se Meleto, do povoado de Piteo, de
cabelos lisos, barba rala e nariz em forma de bico de pássaro".
A respeito de saber com exatidão quem era esse Meleto, existem muitas dúvidas, sendo
uma delas se se tratava do personagem citado por Aristófanes. Mas não há elementos
em que basear essa suposição, pois um jovem poeta de 399 a.C. pouco provavelmente
chamaria a atenção de Aristófanes em 405 a.C., além de considerar que Sócrates insiste
no fato de que Meleto é desconhecido.
Julgar tratar-se do Meleto que, em 399 a.C., chegou a tomar parte da acusação contra
Andócides, no célebre processo por causa da mutilação da estátua de Hermes e da
profanação dos Mistérios, seria muito conveniente, por haver sido essa também uma
acusação de impiedade. Contudo, existe outro obstáculo, de acordo com a própria
informação de Andócides: esse Meleto foi um dos que, em 404 a.C., por ordem dos
Trinta Tiranos, se prestaram a deter Leon de Salamina. À parte o problema da mudança
de lado - de partidário dos Trinta Tiranos tornar-se aliado de Ânito, que derrotara e
expulsara esses mesmos Trinta Tiranos -, sobra a dificuldade de explicar por que motivo
Sócrates, que conforme ele mesmo afirma na Apologia, juntamente com outros quatro
homens recebera a ordem de deter a Leon de Salamina, tendo sido o único a recusar-se a
obedecer, não disse que Meleto era um desses homens.
Exceto se reputarmos que essa defesa não seja de fato de Sócrates, e sim escrita por
Platão, que se vale do nome de Meleto, já então tido como um fanático religioso, a fim
de engrandecer o mestre desaparecido.
Desse modo, podemos considerar Meleto de Sócrates o mesmo Meleto de Andócides,
assim solucionando o problema que tanta discussão tem provocado, embora,
logicamente, fique apenas no campo da suposição, já que nada corrobora realmente esta
pretensão.
O pouco que conhecemos ou podemos presumir a respeito de Lícon é que pouca
importância e autoridade teve no decorrer do processo, com seu nome sendo citado
sempre com evidente desapreço.
Ânito, o mais importante dos acusadores, é aquele que, não resta dúvida, dava a
impressão de conhecer Sócrates, que a ele alude como se Meleto fosse seu subordinado,
como se deste tivesse se originado a idéia da pena de morte para persuadir Sócrates a
abandonar a cidade antes que o processo tivesse seguimento. Ânito era filho de
Antemione, comerciante de couro, nascera por volta de - 150 a.C. e já havia exercido
importantes cargos e magistraturas, sendo estratego em 410 a.C. Após ter sido enviado
ao exílio pelos Trinta Tiranos, juntamente com Trasíbulo e outros, regressou de File
com estes e tomou parte da expedição armada contra o governo dos tiranos. Depois da
restauração do regime democrático, tornou-se um dos mais eminentes cidadãos de
Atenas.
Ânito manteve relação com Sócrates, segundo comprova sua atuação no Mênon, onde
manifesta uma ameaça velada a este: "Afigura-se-me, ó Sócrates, que com muita
facilidade te dedicas à maledicência, e eu te aconselho, se quiseres me ouvir, que tenhas
cuidado".
A opinião de Platão a esse respeito é bem clara: não foi por razões religiosas que
Sócrates recebeu a condenação, mas sim por questões evidentemente políticas.
A bem da verdade, Sócrates dera, mediante palavras e atos, patente mostra de sua
obstinada repulsa aos governos democráticos.
Portanto, nessa época de instalação do regime democrático, convinha afastar de Atenas
o mestre de Crísias, o homem que sempre se recordava de haver sido discípulo de
Arquesilau, o qual, por sua vez, fora discípulo de Anaxágoras, expulso de Atenas em
decorrência de um processo parecido com o seu.
Mas é preciso frisar que o propósito, como o próprio Sócrates repete, não era matá-lo, e
sim afastá-lo de Atenas, e se isso não ocorreu deveu-se à demasiada teimosia do próprio
Sócrates, que em vez de escolher o exílio preferiu a proposta de uma multa irrisória,
vindo a ser, por conseguinte, condenado.
No que concerne à condenação por motivos religiosos, da mesma maneira que se dá
com condenações por motivos políticos, o texto da sentença preocupa-se muito mais em
esconder do que apresentar as verdadeiras causas. Tanto isso é verdade que, em sua
defesa, vemos o réu inverter a ordem das acusações e colocar em primeiro lugar a
última imputação: corromper os jovens.
Desde a época de Sócrates, afirmara-se o culto patriarcal, em que Zeus era o deus-pai, o
líder máximo. Se a acusação tivesse se dado em épocas mais antigas, poderíamos
presumir que Sócrates teria adotado a defesa do culto da deusa, isto é, um movimento
reacionário em termos de culto.
Coloquemos a questão com mais clareza: as lendas referem a revolta patriarcal contra o
matriarcado.
A Tripla Deusa, venerada como Réia, esposa de Cronos, em seus três aspectos: lua
crescente, lua cheia a lua minguante, era a suprema deusa e gerava uma vez por ano a
Dionisos - Zagreus, seu filho, que era sempre devorado pelo tempo.
Dessa maneira, as múltiplas facetas da deusa prevaleciam, constituindo as sacerdotisas
os verdadeiros líderes das povoações e os homens, seus instrumentos de fertilização e
prazer, executando os trabalhos mais necessários à sobrevivência e à defesa.
Numerosas revoltas começaram a eclodir com a chegada de contínuas levas de dórios,
minianos e jônios, em cujas culturas o patriarcalismo era arraigado, que acabaram por
fomentar a rebelião de Zagreus contra seu pai e mãe. Zagreus torna-se Zeus, o Deus-
Agnes, ou o Agnos-Deus, que pode significar tanto o deus desconhecido quanto o deus-
carneiro; Réia vem a ser adorada como Hera, e seus aspectos: marinho, lunar e noturno,
como Anfitrite, Ártemis e Cérbero. Anfitrite é esposa de Posêidon, um dos aspectos de
Zeus; Ártemis é filha de Zeus, e permanece virgem; quanto a Cérbero, representa
Hécate, sendo fiel guardião dos domínios de Hades, outro aspecto de Zeus, seu culto
tendo sido de novo extinto durante o período de estabelecimento do culto olímpico.
Nessa fase seria de fato correto crer que alguém sofresse um processo por questões
religiosas, mas à época de Sócrates tudo isso já se encontrava devidamente solidificado,
e a argumentação de Burnet, em seu comentário à Apologia, revela-se, portanto, bem
pouco confiável, quando afirma "que esses novos deuses da cosmologia jônica eram
uma antiga história e que poderia ser uma violação da anistia colocá-los de novo à luz
do dia".
Portanto, considerando-se a anistia garantida até mesmo pelo próprio Ânito, que
juntamente com Trasíbulo fora seu principal defensor, não era possível levar em conta
as culpas passadas de Sócrates para condená-lo, isso presumindo que existisse alguma, e
era necessário arranjar o pretexto para executá-lo.
Era todo o ensinamento socrático que se tornava perigoso, e não os novos fatos. O que
significava aquela sabedoria, proclamada superior até mesmo pelo oráculo, que
consistia em saber que não se sabe?
Qual a postura dos políticos diante disso? Que direitos seriam mais opostos aos da
democracia do que aqueles originados da experiência e da competência, e a
superioridade da inteligência sobre os direitos da assembléia popular e soberana?
É isso que causou a condenação de Sócrates, a exigência de que o piloto do barco
conheça seu ofício, isto é, a superioridade do saber sobre a aclamação do povo.
Ademais, é necessário recordar que Sócrates manteve relações com os Trinta Tiranos:
estes não lhe teriam ordenado a prisão de Leon de Salamina se não o considerassem um
deles; Crísias, o mais feroz dos Tiranos, havia sido seu discípulo, e também Alcebíades,
que voltara a ser assunto pela recente inclusão de seu nome entre os envolvidos na
profanação dos Mistérios. E mais: Sócrates menciona a seu favor sua participação no
caso do exílio de Querofonte, porém, assim, insiste no fato de que, durante o mandato
dos Trinta, Querofonte foi obrigado a se exilar, enquanto Sócrates pôde permanecer.
Some-se a isto que Sócrates jamais desejou exercer nenhuma magistratura, nem
participar de alguma forma do governo de sua cidade, embora não seja verdade que
permanecesse fora do âmbito do governo, pois com freqüência era visto discutindo em
público; e não se pode afirmar, pelos testemunhos que possuímos, que fosse
singularmente prudente ou diplomático em sua maneira de discutir.
As mais importantes orientações da vida eram subvertidas por seu orgulho de ter
consciência da sua ignorância, e os jovens, de fato, iriam acabar desrespeitando
qualquer autoridade que não se identificasse com a inteligência e a sabedoria,
provocando ainda o desapreço por tudo que não buscasse a sabedoria, desprezando a
economia doméstica e a riqueza.
Apologia de Sócrates
Preâmbulo
Desconheço atenienses, que influência tiveram meus acusadores em vosso espírito; a
mim próprio, quase me fizeram esquecer quem sou, tal o poder de persuasão de sua
eloqüência. De verdades, porém, não disseram nenhuma. Uma, sobretudo, me espantou
das muitas perfídias que proferiram: a recomendação de precaução para não vos
deixardes seduzir pelo orador formidável que sou. Com efeito, não corarem de me haver
eu de desmentir prontamente com os fatos, ao mostrar-me um orador nada formidável,
eis o que me pareceu a maior de suas insolências, salvo se essa gente chama formidável
a quem diz a verdade; se é o que entendem, eu admitiria que, em contraste com eles, sou
um orador. Seja como for, repito-o, de verdades eles não disseram alguma; de mim,
porém, vós ouvireis a verdade inteira. Mas não por Zeus, atenienses, não ouvireis
discursos como os deles, aprimorados em substantivos e verbos, em estilo florido; serão
expressões espontâneas, nos termos que me ocorrerem, porque deposito confiança na
justiça do que digo; nem espere outra coisa qualquer um de vós. Verdadeiramente,
senhores, não ficaria bem a um velho como eu vir diante de vós modelar seus discursos
como um rapazinho. Faço-vos, contudo, um pedido, atenienses, uma súplica premente;
se ouvirdes, na minha defesa, a mesma linguagem que habitualmente emprego na praça,
junto das bancas, onde tantos dentre vós me haveis escutado, e em outros lugares, não a
estranheis nem vos revolteis por isso. Acontece que venho ao tribunal pela primeira vez
aos setenta anos de idade; sinto-me, assim, completamente estrangeiro à linguagem do
local. Se eu fosse de fato um estrangeiro, sem dúvida me desculparíeis o sotaque e o
linguajar de minha criação; peço-vos nesta oportunidade a mesma tolerância, que é de
justiça a meu ver, para a minha linguagem, que poderia ser talvez pior, talvez melhor, e
que examineis com atenção se o que digo é justo ou não. Nisso reside o mérito de um
juiz; o de um orador, em dizer a verdade.

A Defesa de Sócrates - Primeira Parte


Diversidade Entre Duas Categorias de Acusadores: os Antigos e os
Recentes
Em princípio, ó atenienses, é legítimo que eu me defenda das calúnias das primeiras
acusações que me foram dirigidas e dos primeiros acusadores, e depois das mais
recentes acusações e dos novos acusadores. Pois muitos que se encontram entre vós já
me acusaram no passado, sempre faltando com a verdade, e esses me causam bem mais
temor do que Ânito e seus amigos, embora estes sejam acusadores perigosos. Mas os
primeiros são muito mais perigosos, ó cidadãos, aqueles que convivendo com a maior
parte de vós, como crianças que deviam ser educadas, procuraram convencer-vos de
acusações não menos caluniosas contra mim: que existe um certo Sócrates, homem de
muita sabedoria, que especula a respeito das coisas do céu, que esquadrinha todos os
segredos obscuros, que transforma as razões mais fracas nas mais consistentes. Estes, ó
atenienses, que propalaram essas coisas acerca de mim, são os acusadores que mais
receio, porque, ao ouvi-los, as pessoas acreditam que quem se dedica a tais
investigações não admite a existência dos deuses. E esses acusadores são muito
numerosos e me acusaram há bastante tempo, e, o que é mais grave, caluniaram-me
quando vós tínheis aquela idade em que é bastante fácil – alguns de vós éreis crianças
ou adolescentes – dar crédito às calúnias, e assim, em resumo, acusaram-me
obstinadamente, sem que eu contasse com alguém para me defender. E o que é mais
assombroso é que seus nomes não podem sequer ser citados, exceto o de um
comediógrafo; porém os outros – os que, por inveja ou por vício em fazer falsas
acusações, procuraram colocar-vos contra mim, ou os que pretenderam convencer os
outros por estarem verdadeiramente convencidos e de boa fé –, esses todos não podem
ser encontrados, nem se pode exigir que ao menos alguns deles venham até aqui, nem
acusar ninguém por difamação, e, em verdade, a fim de me defender só posso lutar
contra sombras, e acusar de mentiroso a quem não responde. Portanto, vós deveis vos
certificar de que existem duas categorias de acusadores: de um lado, os que me acusam
há pouco tempo, e de outro, os que já me acusam há bastante tempo e dos quais tenho
falado a respeito, e então reconhecereis que devo defender-me destes em primeiro lugar.
Ainda mais porque esses acusadores fizeram-se ouvir por vós antes e mais
demoradamente do que aqueles que vieram depois.
Defender-me-ei, portanto, ó atenienses, e assim descobrirei se aquela calúnia, que
martiriza meu coração há tanto tempo, possa ser extirpada, embora deva fazê-lo em tão
curto prazo. E se eu for bem-sucedido, se conseguir acarretar-vos algum benefício com
a minha defesa, será excelente para vós e para mim. Bem sei quanto isto é difícil e tenho
plena consciência da enorme dificuldade que me espera. Que tudo se passe de acordo
com a vontade do Deus, pois à lei é necessário obedecer e defender-se.
Defesa Contra os Antigos Acusadores
Calúnia a Respeito do Saber de Sócrates
Vamos começar desde o início e examinar que tipo de acusação motivou essa calúnia,
na qual Meleto se baseou para redigir sua acusação neste processo. Que afirmavam
meus detratores? Façamos de conta que se trate de uma acusação juramentada de
acusadores reais e dos quais seja preciso ler o texto: "Sócrates é réu de haver-se
ocupado de assuntos que não eram de sua alçada, e investigando o que existe embaixo
da terra e no céu, procurando transformar a mentira em verdade e ensinando-a às
pessoas". A acusação possui mais ou menos este teor. Assististes a alguma coisa
semelhante na comédia de Aristófanes, na qual um certo Sócrates aparece andando de lá
para cá, afirmando que caminha em cima das nuvens, e outro amontoado de tolices, que
não consigo compreender nem um pouco. E não digo isso por julgar aquelas ciências
coisas vis, se é mesmo verdade que haja cientistas de tais ciências. Não faltaria quem,
acompanhando Meleto, fizesse contra mim uma acusação tão grave! Eu só vos asseguro,
ó atenienses, que não me ocupo desses assuntos, e recorro à maioria de vós para que
sirvam de testemunhas. Peço que revelem publicamente quantos de vós já me ouviram
falar a respeito dessas coisas, e então compreendereis que tudo o mais que dizem sobre
mim possui o mesmo valor.
Resumindo: nada existe em tudo isso que corresponda à verdade; e, mais ainda, se
ouvistes alguém declarar que instruo os homens em troca de dinheiro, isto também não
passa de mentira. Mesmo que, se alguém se propõe a instruir homens como fazem
Górgias de Leontini, Pródico de Ceo e Hípias de Élida, se me afigure coisa em absoluto
nada condenável. Esses valorosos homens percorrem as cidades com o propósito de
instruir os jovens, aos quais seria mais fácil, e sem ter de gastar dinheiro, fazer-se
instruir por um de seus concidadãos; e convencem esses jovens a preferir a sua
companhia à dos seus, recebendo em troca dinheiro e ainda por cima gratidão. Ouvi
também referências a outro homem, de Paros, que possui muita sabedoria e veio morar
em Atenas, e o soube por intermédio de Cálias, filho de Hipônico, homem que gastou
mais dinheiro com sofistas do que qualquer outro ateniense. Perguntei a ele:
– Cálias, se teus dois filhos fossem dois potros ou duas vitelas, terias de contratar e
pagar uma pessoa que tomasse conta deles, que tivesse a capacidade de lhes ensinar as
virtudes para serem acrescentadas à sua natureza, e eles se tomariam cavalariços ou
agricultores; mas teus filhos são homens; que educação, então: tencionas proporcionar-
lhes? Quem entende das virtudes que lhes são necessárias, ou seja, das virtudes do
homem e cidadão? Acredito que pensaste a respeito disso quando puseste os filhos no
mundo. Existe alguém capaz de fazê-lo?
– Claro que sim – respondeu-me.
– E quem é ele? – indaguei-lhe. – de onde é e quanto cobra para ensinar?
– Eveno de Paros. E seu preço é cinco minas – respondeu-me.
No íntimo, parabenizei esse tal de Eveno, se é de fato possuidor dessa doutrina e a
ensina a tão baixo preço. Eu mesmo me orgulharia se fosse capaz de tal coisa, contudo
eu não sei, ó atenienses.
O Que é o Saber de Sócrates
O Oráculo de Delfos
Algum de vós poderia questionar-me: "Ó Sócrates, o que fazes então? Que motivo
originou essas calúnias? Com certeza, se muitos te acusaram, não se deveu ao fato de
que nada fizeste fora do comum; tantas vozes não teriam se erguido se tivesses te
comportado como todos se comportam Conte o que fizestes, pois não desejamos julgar-
te irrefletidamente".
Procurarei esclarecer-vos a respeito da causa dessas calúnias contra mim. Escutai-me,
portanto. É possível que alguns entre vós creiam que eu esteja brincando; não, estou
falando sério. Ó atenienses, é verdade que adquiri renome por possuir certa sabedoria. E
que tipo de sabedoria é essa? Possivelmente, uma sabedoria estritamente humana. E a
respeito de ser sábio, receio possuir esta única sabedoria. Ao passo que esses, de quem
vos falava há pouco, talvez sejam possuidores de uma sabedoria sobre-humana, mas
afirmo que não a conheço, e quem diz o contrário mente, apenas com o intuito de
caluniar-me. Peço-vos para não fazer algazarra, ó atenienses, embora possais ter a
impressão de que eu esteja proferindo palavras por demais fortes; que não é meu
depoimento, mas o de uma testemunha que merece toda a vossa confiança. De minha
sabedoria, se de fato se trata de sabedoria, e de sua natureza, invocarei como
testemunha, diante de vós, o próprio deus de Delfos. Todos vós conheceis Querefonte.
Era meu amigo desde o tempo da juventude e pertencente ao vosso partido popular;
partiu no último exílio em vossa companhia e regressou também em vossa companhia.
Sabeis que tipo de homem era Querofonte e de como era determinado em suas
resoluções Dirigiu-se em certa ocasião a Delfos e atreveu-se a perguntar ao oráculo se
existia alguém mais sábio que eu. A pitonisa respondeu que não existia ninguém. Como
testemunho deste fato se prestará o irmão de Querefonte, em virtude de este haver
falecido.
Pesquisa Junto aos Políticos
Saberão agora o motivo pelo qual vos relato isso: meu intento é pôr-vos a par de onde se
originou a calúnia contra mim. Após ter ouvido a resposta do oráculo, refleti da seguinte
maneira: "Que pretende o deus dizer? Qual é o significado oculto do enigma? Tendo em
vista que eu não me considero sábio, que quer dizer o deus ao afirmar que sou o mais
sábio dos homens? Com certeza não mente, pois ele não pode mentir". E longamente
me mantive nesta dúvida. Por fim, ao arrepio de minha vontade, comecei a investigar
acerca disso. Fui ter com um daqueles que possuem reputação de sábios, julgando que
somente assim poderia desmentir o oráculo e responder ao vaticínio: "Este é mais sábio
que eu e afirmastes que era eu". Mas enquanto estava analisando este – o nome não é
necessário que eu vos revele, ó cidadãos; basta dizer que era um de nossos políticos –,
enfim, este com que, analisando e raciocinando em conjunto, fiz a experiência que irei
descrever-vos, e este homem aparentava ser sábio, no entender de muitas pessoas e
especialmente de si mesmo, mas talvez não o fosse de verdade. Procurei fazê-lo
compreender que embora se julgasse sábio, não o era. Em vista disso, a partir daquele
momento, não só ele passou a me odiar, como também muitos dos que se encontravam
presentes. Afastei-me dali e cheguei à conclusão de que era mais sábio que aquele
homem, neste sentido, que nós, eu e ele, podíamos não saber nada de bom, nem de belo,
mas aquele acreditava saber e não sabia, enquanto eu, ao contrário, como não sabia,
também não julgava saber, e tive a impressão de que, ao menos numa pequena coisa,
fosse mais sábio que ele, ou seja, porque não sei, nem acredito sabê-lo. Aí procurei um
outro, entre os que possuem reputação de serem mais sábios que aqueles, e me ocorreu
exatamente a mesma coisa, e também este me dedicou ódio, juntamente com muitos
outros.
© Texto elaborado por Rosana Madjarof
OBRAS UTILIZADAS
DURANT, Will, História da Filosofia - A Vida e as Idéias dos Grandes Filósofos, São
Paulo, Editora Nacional, 1.ª edição, 1926.
FRANCA S. J., Padre Leonel, Noções de História da Filosofia.
PADOVANI, Umberto e CASTAGNOLA, Luís, História da Filosofia, Edições
Melhoramentos, São Paulo, 10.ª edição, 1974.
VERGEZ, André e HUISMAN, Denis, História da Filosofia Ilustrada pelos Textos,
Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 4.ª edição, 1980.
Coleção Os Pensadores, Os Pré-socráticos, Abril Cultural, São Paulo, 1.ª edição, vol.I,
agosto 1973.
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Pesquisa Junto aos Poetas
Não obstante isso, continuei diligentemente com minha pesquisa, embora notando, com
desagrado e assombro, que todos passaram a me odiar e que, contudo, afigurava-se-me
impossível deixar de atentar para as palavras do deus. "Se almejas saber o que o oráculo
quer dizer", dizia a mim mesmo, "deves visitar todos aqueles que possuem reputação
de sabedoria." Por isso, ó atenienses, devo dizer-vos de novo a verdade; juro-vos que
este foi o resultado da minha pesquisa: os que eram famosos por possuírem maior
sabedoria, conforme minha pesquisa, conforme a palavra do deus, pareceram-me quase
todos em maior erro. E outros, sem fama alguma, se me afiguraram melhores e mais
sábios. Mas desejo terminar de relatar-vos minhas peregrinações e as fadigas que sofri
para convencer-me de que a palavra do oráculo era incontestável.
Em seguida aos políticos, fui procurar os poetas, tanto os que escreviam ditirambos e
tragédias como os demais, convencido de que diante daqueles confirmaria minha
ignorância e sua superioridade. Peguei suas melhores poesias, as que considerava mais
bem construídas, e indaguei aos próprios poetas o que eles pretendiam dizer; porque
dessa maneira aprenderia alguma coisa com eles. Estou com vergonha, ó atenienses, de
contar-vos a verdade! Mas é obrigatório que eu a diga. Resumindo, todas as outras
pessoas presentes discorriam melhor a respeito do que os poetas haviam escrito que os
próprios autores; diante disto, descobri que não era por nenhum tipo de sabedoria que
eles faziam versos, mas por uma propensão e inspiração natural que eu desconheço,
como os adivinhos e vaticinadores, que dizem de fato muitas coisas belas, mas não
conhecem nada do que dizem, e aproximadamente o mesmo, e isto eu percebi com
clareza, é o que ocorre entre os poetas. E compreendi também que os poetas, pelo fato
de fazerem poesias, julgavam-se os mais sábios dos homens até mesmo em outras coisas
em que realmente não o eram. Então afastei-me deles, com a certeza de ser mais sábio
que eles, pelo mesmo motivo que era mais que os políticos.
Pesquisa Junto aos Artesãos
No final, dirigi-me aos artesãos, que de sua arte tinha a consciência de não conhecer
nada, e eles sabiam que eu os considerava conhecedores de numerosas e belas coisas. E
não me equivoquei, eles conheciam coisas que eu não conhecia, e nisso eram mais
sábios do que eu. Porém, ó atenienses, também os artesãos famosos apresentavam o
mesmo defeito dos poetas: por conhecerem muito bem sua arte, cada um deles julgava-
se extremamente sábio, até mesmo em outros assuntos de maior realce e dificuldade, e
este importante defeito deslustrava toda sua sabedoria. De forma que eu, em nome do
oráculo, indaguei a mim mesmo se deveria permanecer tal como era, nem sabedor de
minha sabedoria nem ignorante de minha ignorância, ambas as coisas, como eles, e
respondi a mim e ao oráculo que convinha continuar tal qual eu era.
O Verdadeiro Saber Consiste em Saber Que Não se
Sabe
Em virtude desta pesquisa, fiz numerosas e perigosíssimas inimizades, e a partir destas
inimizades surgiram muitas calúnias, e entre as calúnias, a fama de sábio, porque, toda
vez que participava de uma discussão, as pessoas julgavam que eu fosse sábio naqueles
assuntos em que somente punha a descoberto a ignorância dos demais. A verdade,
porém, é outra, ó atenienses: quem sabe é apenas o deus, e ele quer dizer, por
intermédio de seu oráculo, que muito pouco ou nada vale a sabedoria do homem, e, ao
afirmar que Sócrates é sábio, não se refere propriamente a mim, Sócrates, mas só usa
meu nome como exemplo, como se tivesse dito: "Ó homens, é muito sábio entre vós
aquele que, igualmente a Sócrates, tenha admitido que sua sabedoria não possui
valor algum". É por esta razão que ainda hoje procuro e investigo, de acordo com a
palavra do deus, se existe alguém entre os atenienses ou estrangeiros que possa ser
considerado sábio e, como acho que ninguém o seja, venho em ajuda ao deus provando
que não há sábio algum. E tomado como estou por esta ânsia de pesquisa, não me restou
mais tempo para realizar alguma coisa de importante nem pela cidade nem pela minha
casa, e levo uma existência miserável por conta deste meu serviço ao deus.
As Muitas Inimizades e a Acusação
Vós tendes conhecimento de que os jovens que dispõem de mais tempo que os outros,
os filhos das famílias mais ricas, seguem-me de livre e espontânea vontade, e se
regozijam em assistir a esta minha análise dos homens; inúmeras vezes procuram
imitar-me e tentam, por sua própria conta, analisar alguma pessoa. Logicamente,
deparam-se com numerosos homens que julgam saber alguma coisa e sabem pouco ou
nada, e então, aqueles que são analisados por eles voltam-se contra mim e não contra
quem os analisou, declarando que Sócrates é homem por demais infame e corruptor dos
jovens. E se alguém indaga: "Afinal, o que faz e o que ensina este Sócrates para
corromper os jovens?", nada respondem, porque o desconhecem, e, só para não
evidenciar que estão confusos, dizem as coisas que comumente são ditas contra todos os
filósofos, além de afirmar que ele especula sobre as coisas que se encontram no céu e as
que ficam embaixo da terra, e que também ensina a não acreditar nos deuses e apresenta
como melhores as piores razões. A verdade, porém, é que esses homens demonstraram
ser pessoas que dão a impressão de saber tudo, porém, naturalmente, não querem dizer a
verdade. Desta maneira, ambiciosos, dominados pela paixão e numerosos como são, e
todos da mesma opinião nesta difamação a meu respeito e com argumentos que podem
parecer também convincentes, sem escrúpulo algum encheram vossos ouvidos com suas
calúnias. Este é o motivo pelo qual, finalmente, lançaram-se contra mim Meleto, Ânito
e Lícon: Meleto profundamente irado por causa dos poetas, Ânito por causa dos artesãos
e dos políticos, Lícon por causa dos oradores. Contudo, como vos disse desde o início,
seria de fato um verdadeiro milagre se eu tivesse a capacidade de arrancar-vos do
coração esta calúnia que possui raízes tão firmes e profundas. Esta é, ó cidadãos, a
verdade, e eu a revelo por completo, sem ocultar-vos nada, nem mesmo esquivando-me
dela, embora saiba que sou odiado por muitos exatamente por isso. Por sinal, é outra
prova de que digo a verdade, e que esta é a calúnia contra mim e esta a causa. Indagai
quanto quiserdes, agora ou depois, e recebereis sempre a mesma resposta.
Defesa Contra Meleto
No que diz respeito aos meus primeiros acusadores, isso é o bastante para a defesa das
culpas a mim atribuídas; procurarei em seguida defender-me de Meleto, homem digno e
patriota, como ele mesmo se define, e dos acusadores que virão depois. Vou começar
desde o início e como se na verdade dissesse respeito a outra espécie de acusadores,
analisemos também o ato de acusação deste. Declarou mais ou menos isto:"Sócrates é
réu de corromper os jovens, de não crer nos deuses nos quais a cidade crê e também de
praticar cultos religiosos extravagantes".
Analisemos esta acusação minuciosamente. Meleto afirma que corrompo a juventude, e
eu digo, ó atenienses, que o réu é o próprio Meleto, porque aborda com leviandade
assuntos sérios e tão inescrupulosamente leva homens diante do tribunal, com o intuito
de fazer crer que se preocupa com coisas com as quais, na verdade, nunca se preocupou.
E procurarei provar-vos que isso é a pura verdade.
Meleto Não Sabe o Que é Educar Nem Corromper
Meleto, mostra-te e responde. Não julgas de suprema importância que os jovens
consigam se tornar os melhores possíveis?
MELETO: — Julgo.
SÓCRATES: — Dize, então, aos juizes o que os torna melhores. Com certeza o sabes,
pois esta é uma preocupação tua e descobriste quem os corrompe, conforme afirmas, e
por este motivo citaste-me diante do tribunal e me acusaste. Vamos, dize aos juizes o
que os faz melhores. Vês, Meleto, como ficas calado, sem saber o que dizer? E isto não
te se afigura vergonhoso, e prova suficiente do que afirmo: que nunca te preocupaste
com estes assuntos? Vamos, ó excelente homem, responde: que os faz melhores?
MELETO: — As leis.
SÓCRATES: — Não se trata disto, meu amigo. Indago-te qual é o homem que, em
primeiro lugar, deve ter conhecimento, conforme dizes, das leis.
MELETO: — Estes, ó Sócrates, os juizes.
SÓCRATES: — Afirmas, então, Meleto, que estes possuem a capacidade de educar os
jovens e torná-los melhores?
MELETO: — Afirmo.
SÓCRATES: — Crês que todos, ou alguns sim e outros não?
MELETO: — Todos.
SÓCRATES: — Dizes bem, por Hera! E grande a quantidade de bons educadores!
Também estes que estão nos ouvindo tornam os jovens melhores ou não?
MELETO: — Sim, também estes.
SÓCRATES: — E os senadores?
MELETO: — Também os senadores.
SÓCRATES: — Quer dizer, então, Meleto, que talvez aqueles das Assembléias
Populares corrompam os jovens? Ou também aqueles os tornam melhores?
MELETO: — Também aqueles.
SÓCRATES: — Todos os atenienses que te ouvem tornam os jovens bons e belos,
todos, exceto eu. Portanto, sou eu quem os corrompe. É isto que queres dizer?
MELETO: — Exatamente isto.
SÓCRATES: — Como sou infeliz! Mas responde-me a isto: também com os cavalos
crês que seja assim? Que todos os homens os tornem melhores e somente um os mutile?
Ou, ao contrário, que somente um os torne melhores, ou poucos, aqueles que são peritos
em cavalos, e que os demais se sirvam dos cavalos e os mutilem? E não acontece assim,
ó Meleto, com os cavalos e com todos os seres vivos? Com certeza é assim, digam
Ânito e tu mesmo que sim ou não. Seria uma grande felicidade para os jovens se
correspondesse à verdade que somente um lhes causa danos e todos os outros os educam
e melhoram. Mas, prossegue, Meleto, já que demonstrei a contento que tu nunca te
preocupaste com os jovens. Mais ainda, demonstrei que nunca tiveste preocupação com
as coisas pelas quais me trouxeste diante deste tribunal.
Agora dize-me, ó Meleto, o que mais convém, viver entre bons cidadãos ou entre maus
cidadãos? Amigo, responde, não é difícil o que te pergunto. Os maus não prejudicam
aqueles que lhes são próximos? E os bons não lhes fazem o bem?
MELETO: — Com toda a certeza.
SÓCRATES: — Pode existir alguém que esteja com eles e que prefira receber o mal
em lugar do bem? Responde, excelente homem. Também a lei deseja que respondas.
Pode existir alguém que prefira receber o mal?
MELETO: — Não, realmente.
SÓCRATES: — Então, trouxeste-me a este tribunal porque corrompo os jovens por
querer è os torno maus, ou faço isto sem querer?
MELETO: — Afirmo que é por querer.
SÓCRATES: — Quer dizer, então, ó Meleto, tua sabedoria sendo maior que a minha,
na tua idade, tendo eu os anos que tenho, que pensas conhecer melhor do que eu que os
maus sempre causam algum mal, principalmente àqueles mais próximos deles, e que os
bons façam o bem, e que eu ignore essas coisas a ponto de não saber que se se torna
mau a um deles corre-se o risco de receber algo mau dele e que, no caso de saber disso,
eu me empenhe em torná-los maus? Não me persuadirás disto, ó Meleto. Nem acredito
que possas persuadir a ninguém. Ou seja, não corrompo os jovens, ou, se os corrompo,
faço-o sem querer, de maneira que em ambos os casos mentes. Se eu os corrompo sem
querer, por faltas involuntárias, não existe lei alguma que possa me obrigar a vir até
aqui, mas sim que faça com que seja afastado, a fim de advertir-me ou censurar-me, e é
claro que, uma vez advertido, não mais farei o que fazia sem querer. Tens evitado
encontrar-te comigo e advertir-me; não o quiseste fazer de forma alguma e me trazes
aqui, embora as leis estabeleçam que aqui sejam trazidos somente os que devem ser
castigados, e não censurados.
Meleto Acusa Sócrates de Ateísmo e se Contradiz
Neste momento, cidadãos de Atenas, é bastante evidente aquilo que eu afirmava: que
Meleto nunca se preocupou com essas coisas. Apesar disso, dize-nos, Meleto, de que
maneira, de acordo com tua opinião, eu corrompo a juventude? Não o faço, como
afirma com clareza a acusação que apresentaste contra mim, ensinando-os a não
acreditar nos deuses nos quais a cidade acredita, mas em outras divindades novas? Não
é, conforme dizes, ensinando estas coisas que os corrompo?
MELETO: — Sim, eu digo exatamente isto.
SÓCRATES: — Em nome desses mesmos deuses a respeito dos quais agora falamos,
explica-te com maior clareza, tanto para mim como para estes juizes, porque não
consigo compreender a quais deuses eu ensino que os jovens devem acreditar, pois se
naqueles que acredito são deuses, não sou ateu e, por conseguinte, não posso ser
culpado disso, mesmo que não sejam os da cidade, e sim outros; é por causa disso que
me trazes a este tribunal, por que são outros ou por que afirmas que não acredito de
maneira alguma nos deuses e ensino isto aos jovens?
MELETO: — Eu afirmo que não acreditas de maneira alguma nos deuses.
SÓCRATES: — Ó excelente Meleto! Por que dizes que não acredito, da mesma
maneira que os outros homens, que o sol e a lua sejam deuses?
MELETO: — Com certeza, ó juizes, pois afirma que o sol é uma pedra e a lua é feita
de terra.
SÓCRATES: — Pensas, meu bom Meleto, em acusar também Anaxágoras? E tens em
tão pouca estima e reputas tão ignorantes nas letras a estes juizes, a ponto de não
saberem que os livros de Anaxágoras de Clazomena estão repletos destes ensinamentos?
E por que motivo os jovens iriam aprender de mim estas coisas que por uma simples
dracma podem comprar na ágora e zombarem de Sócrates, se este as apresentasse como
suas, ainda mais sendo tão extravagantes? Por Zeus, pensas de fato que eu não acredite
em deus algum?
MELETO: — Em nenhum, com certeza.
SÓCRATES: — Ninguém acredita em ti, ó Meleto, e naquilo que afirmas; creio que
não consegues persuadir nem a ti mesmo. Na verdade, ó atenienses, tudo isto se me
afigura desaforado e atrevido, e quem escreveu esta acusação foi desaforado e a
escreveu por atrevimento e desrespeito juvenil. É como se alguém desejasse pôr-me à
prova compondo uma espécie de enigma:"Dar-se-á conta Sócrates, aquele grande
sábio, que o estou ridicularizando e me contradigo? Ou conseguirei enganá-lo e a
todos aqueles que me ouvem?" Com efeito, parece-me que Meleto se contradiz na
acusação, como se declarasse: "Sócrates é réu de não acreditar nos deuses, mas
também de acreditar nos deuses". E isto significa desejo de se divertir.
Ó atenienses, analisai comigo de que maneira creio que ele se contradiz. Responde, ó
Meleto. E vós, como já vos exortei no começo, recordai-vos de não me interromper se
continuo a raciocinar à minha maneira.
Existe alguém, ó Meleto, que acredite na existência de fatos humanos e não em
homens? Fazei com que responda, ó atenienses, e não criai tanta agitação por causa de
uma palavra. Há quem não acredite na existência de cavalos, mas sim nas coisas
relativas a cavalos? E que não acredite na existência de flautistas, mas sim que existam
sons de flauta? Não ha ninguém, eu mesmo respondo, a ti e aos outros que aqui se
encontram, se não queres responder. Mas responde ao menos à pergunta seguinte: existe
quem possa acreditar em coisas demoníacas, mas não em demônios?
MELETO: — É completamente impossível.
SÓCRATES: — Quanta satisfação me proporcionou tua resposta, embora tenhas sido
obrigado pelos juizes. Portanto, acusas-me de acreditar em coisas demoníacas e de
ensiná-las; é isto que afirmas e que juraste no teu ato de acusação. Mas se acredito em
coisas demoníacas, devo obrigatoriamente crer em demônios, não é assim? Com certeza
é assim. Parece-me que aceitas, já que não contestas. E não consideramos estes
demônios filhos dos deuses?
MELETO: — Logicamente.
SÓCRATES: — Ora, se afirmas que existem demônios, se estes demônios são deuses,
é neste ponto que eu digo que fazes enigmas e brincadeiras, quando declaras que eu,
embora não acreditando na existência dos deuses, afirmo a sua existência, uma vez que
digo existirem demônios. De outra forma, se estes demônios são filhos dos deuses, são
também filhos bastardos gerados por ninfas ou outras mães; então, quem poderá pensar
que existam filhos de deuses e de deuses não? Seria disparate igual se pensasse que os
mulos fossem filhos de jumentos e cavalos e que estes últimos não existissem. Por isso,
Meleto, é impossível, exceto que haja sido para pôr-me à prova, que tenhas escrito
contra mim uma acusação como esta, ou é necessário dizer que não sabias do que me
acusar? Mas que consiga convencer quem quer que seja, mesmo se fraco de intelecto,
que a mesma pessoa que acredita em coisas demoníacas possa não acreditar em coisas
divinas e, de outra forma, que a mesma pessoa que acredita em coisas demoníacas possa
não acreditar nem em demônios, nem em deuses, nem em heróis, isto é impossível.
A Missão Divina
Fazer o Que é Justo, Permanecer no Lugar Adequado,
Obedecer ao Deus
Chega, ó atenienses, isto é o bastante para demonstrar que não sou culpado das
acusações de Meleto, pois não se faz necessária uma defesa muito longa. O que eu vos
disse, desde o início, que um profundo ódio ergueu-se contra mim, e vindo de muitas
pessoas, é verdade, vós sabeis; e se algo me causará dano, não será nem Meleto nem
Ânito, mas sim este ódio, esta calúnia e esta raiva das pessoas. Pessoas estas que já
causaram a perda de tantos outros e valorosos homens, e, acredito, outros ainda irão
perder, não havendo perigo que causem somente a minha perda.
Algum de vós poderia talvez altercar-me: "Sócrates, não te envergonhas de haveres
exercido tal atividade, que agora coloca em risco tua vida?" Eu responderia a este: "Não
falas bem se pensas que alguém, tendo a capacidade de fazer algum bem, mesmo sendo
pequeno, deva calcular os riscos de vida ou de morte e não deva olhar o injusto e se
pratica as ações de homem honesto e corajoso ou de infame e mau. Por outro lado,
acompanhando este teu raciocínio, teriam sido néscios todos os heróis que morreram em
Tróia, e o mais néscio de todos seria o filho de Tétis que, sem se envergonhar, tamanho
desdém mostrou pelo perigo, quando sua mãe, uma deusa, estando ele ávido do sangue
de Heitor, disse-lhe, se bem me lembro: 'Ó filho, se vingares a morte do teu
companheiro Pátroclo e matares Heitor, também morrerás'. Ao ouvir tais palavras,
Aquiles negligenciou o perigo e a morte, receando muito mais viver miseravelmente
sem vingar o amigo, e declarou: 'Rapidamente eu morra, logo após ter castigado a quem
matou, nem que para isso me torne objeto de desprezo'. Acreditas que Aquiles tenha
pensado na morte e no perigo?"
É assim que deve ser, ó atenienses, que onde alguém se haja instalado, considerando ser
aquele seu lugar mais honroso, ou onde tenha sido instalado por quem ordena, aí, creio,
deve ficar e enfrentar os riscos e não pensar na morte, nem em outra desgraça qualquer,
à exceção de na desonra e na vergonha.
Declaro-vos, ó cidadãos, que meu comportamento seria anormal e excêntrico se, ao
passo que em Potidéia, Anfípolis e Délio, quando os comandantes que vós elegestes me
designaram uma posição, lá fiquei, como qualquer outro, arriscando minha vida, aqui,
ao contrário, ao receber ordens do deus, ao menos conforme pude ouvir e interpretar
essa mesma ordem, pela qual deveria viver filosofando e dedicando-me a conhecer a
mim mesmo e aos outros, que, digo, por temor à morte ou a outra desgraça semelhante,
tivesse desertado do posto a mim designado pelo deus. Seria algo, repito, anormal e, de
fato, existiriam então motivos para trazer-me aqui no tribunal como sendo um
desumano que não cresse nos deuses, já que desobedece ao oráculo, receia a morte e
julga ser sábio sem sê-lo. Com efeito, atenienses, recear a morte não passa de julgar ser
sábio e não sê-lo, dado que significa pensar saber aquilo que não se sabe. E, em
verdade, ninguém sabe se, por acaso, ela não seja o maior de todos os bens que podem
ser dados ao homem e, contudo, receiam-na como se soubessem que ela é a maior das
desgraças. E não é ignorância, a mais vergonhosa das ignorâncias, acreditar saber o que
não se sabe? Ora, atenienses, acredito distinguir-me por este motivo e precisamente
neste ponto da maior parte dos homens, e se me atrevesse a dizer que em alguma coisa
sou mais sábio que os outros, somente por isto o diria, que como não sei nada de preciso
a respeito das coisas do Hades, também nada penso saber a esse respeito. Mas ser
injusto e desobedecer a quem é melhor que nós, seja deus, seja homem, isto bem sei que
é coisa vergonhosa e indecente. Por isso, como ocorre diante dos males que sei que são
nefastos, nunca acontecerá que eu fuja diante daqueles de que não sei se por acaso não
são bens.
Portanto, mesmo que me concedesses a liberdade, contra a vontade de Ânito que, desde
o começo, declarava não ser necessário que eu viesse até este tribunal, ou, uma vez aqui
trazido, que era impossível não condenar-me à morte, porque, dizia, se consigo safar-me
da condenação, daquele momento em diante, seus filhos prosseguindo a praticar os
ensinamentos de Sócrates, estariam inapelavelmente perdidos e corrompidos; se, ao
ouvir este raciocínio de Ânito, me dissésseis: "Ó Sócrates, não pretendemos dar, agora,
atenção a Ânito e deixamos-te livre, desde que não empregues mais teu tempo nessas
pesquisas, nem te ocupes mais de filosofia, e se fores surpreendido a praticar ainda estas
coisas, morrerás"; se, como dizia, com esta condição me deixásseis em liberdade, eu vos
responderia: "Ó atenienses, eu vos amo, mas obedecerei primeiro ao deus do que a vós,
e enquanto tiver ânimo, e enquanto for capaz, não pararei de filosofar, não pararei de
estimular-vos e censurar-vos; e a quem quer que eu encontrasse de vós, em qualquer
ocasião, conversando da minha maneira habitual, assim diria: "E tu, que és o melhor dos
homens; tu, ateniense, cidadão da maior cidade e mais célebre por sabedoria e poder,
não te envergonhes de pensar em acumular o máximo de riquezas, fama e honras, sem
te preocupar em cuidar da inteligência, da verdade e da tua alma, para que se tornem tão
boas quanto possível?" E se algum de vós retrucasse que cuida de fato delas, não o
deixaria afastar-se nem iria embora, mas o interrogaria, o analisaria, o impugnaria, e se
me afigurasse que não possui virtude mas apenas afirma possuí-la, eu o envergonharia
demonstrando-lhe que considera infames as coisas mais estimáveis e de valor, as
infames. E agiria assim com qualquer um que eu quisesse: jovens ou velhos, atenienses
ou estrangeiros, e também com vós, que me sois mais estritamente próximos. Isto, vós
não desconheceis, é ordem do deus e estou convencido de que haja para vós maior bem
na cidade do que esta minha obediência ao deus.
Em verdade, com este meu caminhar não faço outra coisa a não ser convencer-vos,
jovens e velhos, de que não deveis vos preocupar nem com o corpo, nem com as
riquezas, nem com qualquer outra coisa antes e mais que com a alma, a fim de que ela
se torne excelente e muito virtuosa, e de que das riquezas não se origina a virtude, mas
da virtude se originam as riquezas e todas as outras coisas que são venturas para os
homens, tanto para os cidadãos individualmente como para o Estado. Se ao falar desta
maneira corrompo os jovens, está certo, isto significará que minhas palavras são
nocivas, mas se alguém afirma que falo diferentemente e não deste modo, então diz
coisas insensatas. Por tudo isso, permiti que vos diga, ó cidadãos atenienses: ou dareis
ouvidos a Ânito, ou não dareis, absolver-me-eis ou não, mas, de qualquer forma, tende a
certeza de que nunca agirei de outra maneira que esta, mesmo que não só uma, mas
muito mais vezes devesse morrer.
Não promoveis algazarra, ó cidadãos, lembrai-vos de meu pedido de que não causásseis
balbúrdia diante do que eu dissesse, mas que vos limitásseis a ouvir. Ademais, creio que
vos será útil escutar. Restam-me algumas outras coisas a dizer-vos, às quais, talvez,
erguereis a voz. Não, não fazei assim. Convencei-vos: se me condenardes à morte, a
mim que sou como vos disse, não me causareis maior dano que podeis causar a vós
mesmos. A mim não causarão dano nem Meleto nem Ânito. E nem o poderiam. Não
penso que seja possível que um homem de bem receba o mal de um malvado. Poderá
sim, Ânito, condenar-me à morte, ou ao desterro, espoliar-me dos direitos civis; tudo em
que este homem crer e outros crerem serão grandes males, não o creio eu; penso que
seja um mal bem mais grave aquele que é cometido por esses que tentam condenar à
morte um homem inocente. Logo, ó atenienses, de maneira alguma estou falando em
minha defesa, como alguém poderia achar, mas falo por vós, que não necessitais pecar,
condenando-me à morte, contra o dom do deus. Pois se me matardes, não encontrarão
facilmente um outro igual a mim, que, não riam da comparação, tenha sido colocado de
fato pelo deus aos flancos da cidade como aos flancos de um cavalo grande e de boa
raça, mas pelo seu próprio tamanho, um pouco lerdo e necessitado de estímulo, um
ferrão. Assim parece-me que o deus me colocou aos flancos da cidade; nunca paro de
exortar-vos, de convencer-vos, de falar-vos, um por um, estando a vosso lado, em todo
lugar. Afirmo, pois, que outro como eu não nascerá facilmente, ó atenienses, e se
desejais me ouvir, me poreis a salvo. Mas se estais irritados comigo como o que está em
vias de adormecer com quem o desperta, e golpeais como a matar um inseto inoportuno,
condenar-me-eis à morte, por obediência a Ânito, e depois, no decorrer de todo o resto
de vossa existência, dormireis tranqüilamente, se o deus não vos mandar algum outro
para substituir-me. E se for eu mesmo a pessoa indicada pelo deus para presentear a
cidade, podereis me reconhecer por isso: que não parece humano que haja descuidado
todos os meus negócios e ainda agüentar por tantos anos que tenham sido descuidadas
as coisas da minha casa, e sempre, ao contrário, cuidando das vossas, estando por perto
como estaria um pai ou irmão mais velho, para convencer-vos a buscar a virtude. Que se
desta vida tirasse algum proveito e se pelos conselhos que dou recebesse alguma
compensação, aí sim haveria uma razão, mas vistes que meus detratores, que me
acusaram tão despudoradamente de tantas outras culpas, desta não tiveram o despudor
de me acusar, pondo-me frente a frente com uma testemunha, somente uma, que
provasse ter eu recebido uma única vez compensação ou de havê-la solicitado. E a
prova cabal de que é verdade o que vos declaro, eu dou: a minha pobreza.
© Texto elaborado por Rosana Madjarof
OBRAS UTILIZADAS
DURANT, Will, História da Filosofia - A Vida e as Idéias dos Grandes Filósofos, São
Paulo, Editora Nacional, 1.ª edição, 1926.
FRANCA S. J., Padre Leonel, Noções de História da Filosofia.
PADOVANI, Umberto e CASTAGNOLA, Luís, História da Filosofia, Edições
Melhoramentos, São Paulo, 10.ª edição, 1974.
VERGEZ, André e HUISMAN, Denis, História da Filosofia Ilustrada pelos Textos,
Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 4.ª edição, 1980.
Coleção Os Pensadores, Os Pré-socráticos, Abril Cultural, São Paulo, 1.ª edição, vol.I,
agosto 1973.

Repugnância e Abstenção Socrática da Política
Comum
É possível que pareça estranho eu me encontrar sempre próximo e me dar tanto ao
trabalho de fornecer conselhos a este ou àquele em particular, se, ao se tratar de
aconselhar a cidade e de ir à tribuna para falar ao povo, então me falte coragem. E o
motivo disso me haveis ouvido dizer várias vezes e em vários lugares, que existe em
mim não sei que espírito divino e demoníaco, a respeito do qual, também Meleto, com
jeito de estar se divertindo, aponta no ato da acusação. É como uma voz que possuo
dentro de mim desde criança, e que, toda vez que eu a ouço, sempre faz com que eu
desista do que estou para fazer, e nunca me convence a realizar qualquer outra coisa. É
essa voz que me impede de me ocupar das coisas do Estado, e parece-me que faz muito
bem em agir dessa forma. Sabeis perfeitamente, ó cidadãos, que se eu tivesse, por algum
tempo, me ocupado dos negócios de Estado, teria sido morto também num curto espaço
de tempo e não teria realizado nada de útil, nem por vós nem por mim. E não me
desprezei se falo assim, pois é a verdade. Não existe homem que possa se salvar ao
opor-se com sinceridade, não digo a vós, mas a qualquer outra multidão, e tente impedir
que muitas vezes se cometam injustiças as leis na cidade; e é também preciso que
aquele que luta em defesa do que é justo, se de fato pretende escapar da morte, mesmo
que por breve tempo, de viver de forma privada e não exercer funções públicas.
Daquilo que afirmo eu mesmo posso oferecer-vos provas cabais, e não palavras, mas do
que mais necessitais: fatos. Escutai o que me sucedeu e vereis então que diante do que é
justo não sou homem de ceder a ninguém por temor à morte; e que, além de não ceder,
estou pronto a morrer. Falarei um pouco grosseiramente, como fazem alguns dos
freqüentadores dos tribunais, mas com sinceridade. Tendes conhecimento, ó cidadãos,
de que nunca exerci em nossa cidade magistratura alguma, exceto uma vez em que fiz
parte do Conselho, justamente no dia em que era o vosso desejo julgar em conjunto, ao
arrepio da lei, e em seguida acolhestes todos ao meu parecer, aqueles dez capitães que
não haviam recolhidos os náufragos e os mortos depois da batalha naval das
Arginusas.Então eu me opus, lutando para que nada fosse feito contra a lei, e votei
contra. Os oradores habituais já estavam prontos para suspender-me da função e
aprisionar-me, e vós a intigá-los e a gritar; julguei que era meu dver correr aquele risco
mantendo-me ao lado do direito e do justo em vez de apoiar-vos e deliberar o injusto
por temer a prisão e a morte. E isto ocorreu quando a cidade ainda era regida por uma
democracia. Mais tarde, depois que surgiu a oligarquia, os Trinta mandaram-me
chamar, e a mais outros quatros, levaram-nos à sala do Tolo e ordenaram que
retirássemos de Salamina o Leon de Salamina, para que este viesse a morrer. E davam
ordens semelhantes a vários outros homens, na tentativa de envolver em seus atos cruéis
o maior número de pessoas possível. E naquela ocasião, não com palavras, e sim com
fatos, demonstrei que a morte, se a palavra não soar por demais vulgar, não possui
importância alguma para mim, mas de não cometer injustiças ou crueldades, isto sim me
importa acima de qualquer coisa.E aquele governo, apesar de prepotente, não me
atemorizou, não me obrigou a cometer um ato injusto, e, quando saímos do Tolo e os
outros quatro se dirigiram para Salamina a fim de retirar Leon, deixei-os ir e voltei para
casa. Acredito que só por causa disso, eu já teria morrido, se aquele governo não tivesse
sido deposto logo em seguida. E disto que relatei possuo muitas testemunhas.
O Testemunho dos Discípulos, de seus Pais e Irmãos
Credes que eu teria vivido por tantos anos se houvesse me ocupado de assuntos públicos
e, fazendo-o como homem de bem, tivesse lutado em defesa da justiça e tivesse
considerado esta defesa, como é necessário, meu dever mais alto? Com certeza,
atenienses, não existe homem que o tivesse conseguido! Em verdade, em toda minha
existência, tanto em público, nas poucas vezes que me ocupei de coisas públicas, como
privadamente, sempre fui o mesmo, um homem que diante do justo nunca cedeu a quem
quer que fosse, a ninguém, e nem mesmo àqueles que os caluniadores chamam de meus
discípulos. Nunca fui mestre de quem, quer que seja, principalmente se é uma pessoa
que , quando falo ou atendo àquilo que acredito ser meu ofício, deseja escutar-me; seja
jovem, seja velho, nunca me refutaram, e não é verdade que, se recebo dinheiro, eu falo
e se não recebo, fico calado, porque estou da mesma maneira à disposição de todos,
pobres e ricos, quem quer que me indague e deseje ouvir as minhas respostas. Por
conseguinte, se entre os homens que me freqüentam, um se torne de boa formação
moral ou não, não será justo que eu receba elogios ou impropérios, já que não prometi
ensinamento algum a ninguém, nem nunca ensinei coisa alguma. E se há quem diga que
aprendeu ou ouviu alguma coisa de mm, em particular, alguma coisa que todos os
outros não tenham aprendido ou ouvido, tenhais a certeza de que este não diz a verdade.
Diante disso, como é possível que a alguns agrade estar comigo tanto tempo? Vós
ouvistes, ó cidadãos, que eu disse toda a verdade: têm prazer de ouvir-me quando
submeto à prova aqueles que pensam serem sábios e não o são. Com efeito, não é
desagradável. Ao fazer isso, repito-vos, cumpro as ordens do deus, dadas por
intermédios de vaticínios e sonhos, e por outros meios de que se serve a providência
divina para ordenar ao homem que faça alguma coisa. E estas coisas, ó atenienses, são
verdadeiras e demonstráveis. Se de fato eu corrompo os jovens, se já corrompi algum,
seria ainda necessário que estes, ao envelhecerem, tomassem consciência de que quando
eram jovens eu os aconselhei a praticar o mal, e que viessem à tribuna para acusar-me e
para exigir minha punição, e, se não quisessem fazê-lo diretamente, que enviassem hoje
para cá as pessoas de sua família, pais, irmãos, e outros, se os que lhe são caro sofreram
algum mal por mim causado, e que me fizessem pagar por isso. Muitos destes estão
presentes, eu os vejo. Ali está Críton, meu contemporâneo e conterrâneo com sei filho
Critóbulo, e também Lisânias de Esfeto, com seu filho Ésquino,e ainda Antífon de
Cefísia, pai de Epígeno, e ali estão outros, cujos irmãos viveram comigo familiarmente,
Nicóstrato, , filho de Teozótides, irmão de Teódoto, e como Teódoto faleceu, não
poderá falar com o irmão a meu favor, e aí está Parálio, filho de Demódoco,de quem era
irmão Teages, e ali Adimanto, filho de Aríston, de quem ali se encontra o irmão Platão,
e Aantodoro, de quem temos aqui o irmão Apolodoro. E poderia nomear muitos outros.
E conseguiria indicar vários outros que Meleto poderia apresentar como testemunhas na
sua acusação; se ele se esqueceu disso, que os apresente agora, cedo-lhe o lugar; se
existe alguma testemunha deste tipo, que se manifeste.
Porém, atenienses, vereis que todos farão o contrário, todos falarão a favor do corruptor,
em defesa daquele que causa o mal de seus familiares, como afirmam Meleto e Ânito.
Talvez esses, os corrompidos, tenham alguma razão para me defender, mas aqueles que
não foram corrompidos, que são agora anciãos, que outra razão podem ter para me
defender exceto esta, que é verdadeira e justa: a certeza de que Meleto mente e eu digo a
verdade?
Epílogo
Sócrates não quer Misericórdia
Cidadãos, são estas, enfim, as razões que posso apresentar em minha defesa, e algumas
mais, que, porém, são bem poucos diferentes destas. É possível que alguém entre vós,
ao pensar em si mesmo, possa irritar-se comigo se, algum dia, ao ter de enfrentar um
processo menos arriscado do que este, suplicou clemência aos juizes, e, além disso,
trouxe ao tribunal os filhos e vários de seus parentes e amigos, ao passo que eu não me
porto desta maneira, embora, ao que parece, esteja arriscando a vida .É possível que
alguém, ao fazer intimamente esta comparação, se deixe influenciar pelo amor-próprio
ferido e, desta forma, enraivecido com minha atitude, emita seu voto com raiva. A uma
pessoa assim, que talvez esteja entre vós, não afirmo categoricamente que há, poderei
responder da seguinte maneira: "Meu estimado amigo, eu também trouxe alguém da
minha família, e aqui caberia aquele dito de Homero: 'Que não de carvalho, nem de
pedra nasci, mas de criaturas humanas'.
Eu também possuo família, ó atenienses; tenho três filhos, um já crescido e dois ainda
crianças, mas não os trouxe aqui para despertar vossa misericórdia e absolver-me". E
não é por orgulho que me comporto assim, nem por desprezo, nem para provar que sou
corajoso diante da mote, mas pela minha reputação, pela vossa e de toda a cidade, não
me pareceu honroso agir dessa maneira, ainda mais na minha idade e com o meu nome,
verdadeiro ou falso que seja, porque corre pela cidade que, em quaisquer aspectos,
Sócrates se distingue da maioria dos homens. Ora, se aquele que entre vós possuem
fama de se distinguirem pela sabedoria e coragem, ou por outra virtude qualquer, se
procedessem dessa maneira, seria vergonhoso, e pessoas desse tipo, eu mesmo
presenciei muitas vezes, quando eram réus em um processo, embora possuíssem alguma
boa reputação, têm atitudes excepcionais, como se achassem que iriam sofrer sabe-se lá
que tortura se devessem morrer e como se tornassem imortais se não fossem
condenados à morte por vós. Estes, sim, envergonham a toda a cidade, tanto que
qualquer forasteiro poderia imaginar que aqueles atenienses que se distinguem por sua
virtude e que seus concidadãos elegem à magistratura e outras honras não são em nada
melhores que as mulheres. Por isso, não nos portamos dessa maneira é o que compete a
nós, que temos fama de sermos ainda alguma coisa. Nem vos conviria, se nos
comportássemos assim, deixar-nos fazê-lo, mas sim mostrar a todos que julgais com
maior rigor quem encena esses dramas lastimosos e cobre a cidade de ridículo do que
quem suporta com serenidade o próprio destino.
Não considero justo, ó cidadãos, tentar influir nos juízes e, mediante súplicas, livrar-me
da condenação, mas sim infomá-los e convencê-los.
Os juízes não se encontram aqui para favorecer o justo, mas para julgar o justo, nem
juraram que favorecerão a quem lhes paga, mas que farão justiça de acordo com as leis.
Portanto, não é necessário que vos habitueis a isso; não faremos coisas boas e piedosas,
nem vos nem eu. Não iríeis querer então, ó atenienses, que eu cometesse diante de vós
atos que reputo desonestos, injustos e vis, e eu menos ainda, eu que sou acusado por
Meleto, aqui presente, de impiedade. Porque é evidente que se eu, por meio de súplicas
procurasse convencer-vos e obrigar-vos a violar o juramento, eu vos ensinaria que, desta
acusação, seria culpado de não crer nos deuses. E é justamente o contrário que sucede.
Acredito nos deuses mais do que qualquer um dos meus acusadores, e deixo a vosso
critério, e ao do deus, julgar o que será para vós e para mim o melhor.
Segunda Parte
A Pena
Do Esperado da Pena
Se eu não estou abalado, ó atenienses, com o que acaba de ocorrer, o de terem votado
pela minha condenação, isso deve-se, entre outras razões, ao fato de não haver sido
apanhado de surpresa. O que, no entanto, me causa mais estranheza é o grande número
de votos favoráveis a mm , pois acreditava que seria condenado por muito mais votos, e
não por tão poucos. Ao que me parece, com apenas mais trinta votos a meu favor teria
sido absolvido. Portanto, penso haver escapado das mãos de Meleto, e não só haver
escapado delas, mas, o que é bastante evidente, se Ânito e Lícon não tivessem vindo
para me acusar, eu teria sido multado em mil dracmas por não haver conseguido um
quinto dos votos.
Este homem, então, pensa que mereço a pena capital. E eu, que pena apresentarei em
oposição à vossa, ó atenienses? Não é evidente que seja a mesma que me foi imposta?
Qual será então? Que pena merecerei ou que multa, por não haver usufruído em paz, ao
longo da minha existência, o que aprendi, e por ter desprezado aquilo que atrai a
maioria; riquezas, interesses particulares, cargos militares e políticos e todas as outras
magistraturas, e as agitações e conspirações que acontecem nas cidades, pois sempre me
considerei por demais honesto para conseguir salvar-me se me dedicasse a tais coisas e
convencido de que não teria sido útil nem para mm nem para vós, e porque sempre
acudi rapidamente aonde quer que eu reputasse poder proporcionar o maior bem a cada
um de vós em particular, tentando convencer-vos de que, antes de qualquer coisa e de
vós mesmos, procurásseis ser os melhores e mais sensatos possível, e que vos
esforçásseis ao máximo para trabalhar em prol da cidade. Que mereço por sempre haver
agido desta forma? Algum grande bem, ó atenienses, se é que devo ser recompensado
como mereço. Que será apropriado para um pobre benfeitor que precisa de tempo para
aconselhar-vos nos vossos assuntos? O que mais seria conveniente a esse homem,
atenienses não seria mantê-lo no Pritaneu com muito maior razão do que aqueles que,
com cavalo, biga ou quadriga, tenham conseguido triunfos nos Jogos Olímpicos. Porque
estes vos proporcionam felicidade, e também a mim, e não precisam ser sustentados
como eu precioso. Se, então, devo pedir, de acordo com o direito, aquilo a que faço jus,
peço se alimentado no Pritaneu.
Contudo, mesmo nestas minhas palavras de agora, talvez julgais notar quase o mesmo
sentimento de ofensivo orgulho que acreditáveis ter percebido quando falava a respeito
de suplicar e despertar comiseração. Não, não é isso, ó cidadãos, mas algo bastante
diferente. Penso nunca haver prejudicado ninguém por querer, e mesmo assim não
logrei convencer-vos; tivemos muito pouco tempo para nos entendermos. E acredito que
se houvesse leis entre nós, como as que há entre outros povos, que proíbem que uma
pena de morte seja aplicada em apenas um dia, e sim em mais, estaríeis convencidos, e,
mesmo assim, não é fácil livrar-se em tão breve espaço de tempo de acusações tão
graves. E também pensa em prejudicar a mm mesmo ao declarar que sou merecedor da
pena e pedir que esta pena seja aplicada a mim. E por temer o que eu deveria agir dessa
forma? Talvez por temer sofrer aquilo que Meleto exige para mim e que eu declaro não
saber se é bom ou mau? E em troca desta pena devo escolher outra entre aquelas que eu
sei serem más? Deverei solicitar a prisão? E por que motivo deverei viver preso, a
serviço da eterna magistratura dos Onze? Uma pena em dinheiro e permanecer
enjaulado enquanto não for paga? Mas é exatamente a mesma coisa que a anterior,
porque não possuo dinheiro para pagá-la. Pedirei o exílio? Sim, talvez seja precisamente
esta pena que desejastes para mim. Porém, em verdade, ó atenienses, eu teria de estar
imbuído de uma bem ingênua vontade de viver se fosse assim tão irracional a ponto de
não poder nem mesmo fazer este raciocínio, que enquanto vós, embora sendo meus
concidadãos, não fostes capazes de agüentar minha companhia e os meus discursos, e
mais, que minha companhia foi tão desagradável que procuras agora livrar-vos dela, que
outros a agüentariam de bom grado? E ainda, atenienses, que excelente vida seria a
minha, nesta idade, exilado, mudando sempre de país para país, perseguido em todos os
lugares. Porque sei muito bem que aonde quer que eu vá, os jovens acorrerão a fim de
me ouvir, como aqui, e, se eu os repelir, serão estes mesmos que me farão perseguir,
convencendo os mais velhos; e se não os repelir, serei perseguido por seus pais e demais
parentes.
Algum de vós talvez pudesse contestar-me: "Em silêncio e quieto, ó Sócrates, não
poderias viver após ter saído de Atenas?" Isso seria simplesmente impossível. Porque,
se vos dissesse que significaria desobedecer ao deus e que, por conseguinte, não seria
possível que eu vivesse em silêncio, não acreditaríeis e pensaríeis que estivesse sendo
sarcástico. Se vos dissesse que esse é o maior bem para o homem, meditar todos os dias
sobre a virtude e acerca dos outros assuntos que me ouvistes discutindo e analisando a
meu respeito e dos demais, e que uma vida desprovida de tais análises não é digna de
ser vivida, se vos dissesse isto, acreditar-me-iam menos ainda. Contudo, é isto que vos
digo, ó atenienses, porém é difícil convencer-vos. Por outro lado, não estou habituado a
considerar-me merecedor de mal algum. Se eu possuísse dinheiro, poderia ter-me
aplicado uma multa que conseguisse pagar, porque, assim, não teria me infligido mal
algum. Mas não possuo dinheiro e não posso fazer isso, exceto se desejeis multar-me de
uma quantia que eu tenha a possibilidade de pagar. Poderei pagar-vos apenas uma mina
de prata. Portanto, multo-me em uma mina de prata.
Mas vedes, ó atenienses, que Platão, Críton, Critóbulo e Apolodoro querem que eu me
multe em trinta minas, que eles mesmos garantirão. Multo-me então em trinta minas. E
esses homens, dignos de crédito e confiança, serão garantes dessa quantia.
Terceira Parte
Após a Condenação
Aos que Votaram Contra
Por não haverdes aguardado mais um pouco, atenienses, aqueles que desejarem injuriar
a cidade vos impingirão a fama e a acusação de terdes matado Sócrates, um sábio. Sim,
chamar-me-ão de sábio, apesar de que eu não o seja, os que vos quiserem censurar. Se
esperásseis mais algum tempo, a própria natureza satisfaria o vosso desejo. Bem sabeis
a minha idade, já distante da vida e próxima da morte. Não dirijo essas palavras a todos
vós, mas aos que votaram pela minha morte.
Para esses mesmos, adito o seguinte: talvez imagineis, senhores, que me perdi por falta
de discursos com que vos poderia persuadir, se na minha opinião se devesse tudo fazer e
dizer para escapar à justiça. Engano! Perdi-me por falta, não de discursos, mas de
atrevimento e descaramento, por me recusar a proferir o que mais gostais de ouvir,
lamentos e gemidos, fazendo e dizendo uma porção de coisas que declaro indignas de
mm, tais como costumais ouvir dos outros. Ora, se antes achei que o perigo não
justificava indignidade alguma, tampouco me pesa agora da maneira por que me
defendi; ao contrário, muito mais folgo em morrer após a defesa que fiz, do que folgaria
em viver após fazê-la daquele outro modo. Quer no tribunal, quer na guerra, não devo
eu, não deve ninguém lançar mão de todo e qualquer recurso para escapar à morte. Com
efeito, é evidente que, nas batalhas, muitas vezes se pode escapar à morte arrojando as
armas e suplicando piedade aos perseguidores; em cada perigo, tem muitos outros meios
de escapar à morte quem ousa tudo fazer e dizer. Não se tenha por difícil escapar à
morte, porque muito mais difícil é escapar à maldade; ela corre mais ligeira que a morte.
Neste momento, fomos apanhados, eu, que sou um velho vagaroso, pela mais lenta das
duas, eu e os meus acusadores, ágeis e velozes, pela mais ligeira, a malvadez. Agora,
vamos partir; eu, condenado por vós à morte; eles, condenados pela verdade a seu
pecado e a seu crime. Eu aceito a pena imposta; eles igualmente. Por certo, tinha de ser
assim e penso que não houve excessos.
Acerca do futuro, no entanto, quero fazer-vos um vaticínio, meus condenadores; de fato,
eis-me chegado àquele momento em que os homens vaticinam melhor, quando estão
para morrer. Eu vos afianço, homens que me mandais matar, que o castigo os vos
alcançará logo após a minha morte e será, por Zeus, muito mais duro que a pena capital
que me impusestes. Vós o fizestes supondo que vos livraríeis de dar boas contas de
vossa vida; mas o resultado será inteiramente oposto, eu vo-lo asseguro. Serão mais
numerosos os que vos pedirão contas; até agora eu os continha e vós não os percebíeis;
eles serão tanto mais importunos quanto são mais jovens, e vossa irritação será maior.
Se imaginais que, matando homens, evitareis que alguém vos repreenda a má vida,
estais enganados; essa não é uma forma de libertação, enm é inteiramente eficaz nem
honrosa; esta outra, sim, é a mais honrosa e mais fácil; em vez de tapar a boca dos
outros, preparar-se para ser o melhor possível. Com este vaticínio, despeço-me de vós
que me condenastes.
Aos que o Absolveram
Com os que votaram pela absolvição, gostaria de conversar com respeito ao que se
acaba de suceder, enquanto os magistrados estão ocupados e antes de ir para onde devo
morrer. Por conseguinte, senhores, ficai comigo mais um pouco; nada obsta que nos
entretenhamos enquanto dispomos de tempo. Quero explicar-vos, como a amigos, o
sentido exato de que me aconteceu agora.
O que me ocorreu senhores juízes, a vós é que chamo com tino de juízes, foi algo
prodigioso. A usual inspiração, a da divindade, sempre foi rigorosamente assídua em
opor-se a ações mínimas, quando eu ia cometer um erro; agora, porém, acaba de me
ocorrer o que vós estais vendo, o que se poderia considerar, e há quem o faça, como o
maior dos males; mas a advertência divina não se me opôs de manhã, ao sair de casa,
nem enquanto subia aqui para o tribunal, nem quando ia dizer alguma coisa; no entanto,
quantas vezes ela me conteve em meio de outros discursos! Mas hoje não se me opôs
vez alguma no decorrer do julgamento, em nenhuma ação ou palavra. A que devo
atribuir isso? Vou dizer-vos: é bem possível que seja um bem para mim o que aconteceu
e não é forçoso acreditar que a morte seja um mal. Disso tenho agora uma boa prova,
porque a usual advertência não poderia deixar de opor-se, se não fosse uma ação boa o
que eu estava para praticar.
Façamos mais esta reflexão: há grande esperança de que isto seja um bem. Morrer é
uma destas duas coisas: ou o morte é igual a nada, e não sente nenhuma sensação d
coisa nenhuma; ou, então, como se costuma dizer, trata-se duma mudança, uma
emigração da alma, do lugar deste mundo para outro lugar. Se não há nenhuma
sensação, se é como um sono em que o adormecido nada vê nem sonha, que
maravilhosa vantagem seria a morte!
Bem posso imaginar que, se devêssemos identificar uma noite em que estivéssemos
dormindo tão profundamente que nem mesmo sonhássemos e, contrapondo a essa as
demais noites e dias de nossa vida, pensar e dizer quantos dias e noites de nossa
existência vivemos melhor e mais agradavelmente do que naquela noite, bem posso
imaginar que, já não digo um homem comum, mas o próprio rei da Pérsia acharia fácil
enumerar tal noite entre as outras noites e dias. Logo, se a morte é isso, digo que é uma
vantagem, porque, assim sendo, toda a duração do tempo se apresenta como nada mais
que uma noite. Se, do outro lado, a morte é como a mudança daqui para outro lugar e
está certa a tradição de que lá estão todos os mortos, que maior bem haveria que esse,
senhores juízes?
Se, ao chegar ao Hades, livre dessas pessoas que se intitulam juízes, a gente vai
encontrar os verdadeiros juízes que, segundo consta, lá distribuem a justiça, Minos, ¹
Radamanto, Éaco, Triptólemo e outros semideuses que foram justiceiros em vida, não
valeria a pena a viagem? Quanto não daria qualquer de vós para estar na companhia de
Orfeu, ² Museu, Hesíodo e Homero? Por mm, estou pronto a morrer muitas vezes, se
isso é verdade; eu de modo especial acharia lá um entretenimento maravilhoso, quando
encontrasse Palamedes, Ajax de Telamon e outros dos antigos, que tenham morrido por
um sentença iníqua; não me seria desagradável comparar com os deles os meus
sofrimentos e, o que é mais, passar o tempo examinando e interrogando os de lá como
aos de cá, a ver quem deles é sábio e quem, não o sendo, cuida que é. Quanto não se
daria, senhores juízes, para sujeitar a exame aquele que comandou a imensa expedição
contra Tróia, ou Ulisses, ou Sísifo? Milhares de outros se poderiam nomear, homens e
mulheres, com quem seria uma felicidade indizível estar junto, conversando com eles,
sujeitando-os a exame! Os de lá absolutamente não matam por uma razão dessas! Os de
lá são mais felizes que os de cá, entre outros motivos, por serem imortais pelo resto do
tempo, se a tradição está certa.
Vós também, senhores juízes, deveis bem esperar da morte e considerar particularmente
esta verdade: não há, para o homem bom, mal algum, quer na vida, quer na morte, e os
deuses não descuidam de seu destino. O meu não é conseqüência do acaso; vejo
claramente que era melhor para mim morrer agora e ficar livre de fadigas. Por isso é que
a advertência nada me impediu. Não me insurjo absolutamente contra os que votaram
contra mm ou me acusaram. Verdade é que não me acusaram e condenaram com esse
modo de pensar, mas na suposição de que me causavam dano: nisso merecem censura.
No entanto, só tenho um pedido a lhes fazer: quando meus filhos crescerem, castigai-os,
atormentai-os com os mesmíssimos tormentos que eu vos infligi, se achardes que eles
estejam cuidando mais da riqueza ou de outra coisa que da virtude; se estiverem
supondo ter um valor que não tenham, repreendei-os, como vos fiz eu, por não cuidarem
do que devem e por suporem méritos, sem ter nenhum. Se vós assim agirdes, eu terei
recebido de vós justiça; eu, e meus filhos também.
Bem, é chegada a hora de partirmos, eu para a morte, vós para a vida. Quem segue
melhor destino, se eu, se vós, é segredo para todos, exceto para a divindade.
¹ Rei lendário de Creta, filho de Europa e de Zeus, marido de Pasífae, sábio legislador, juiz dos Infernos
com Éaco e Triptólemo.
² Célebre aedo da era pré-homérica, cantava e tocava a lira com tal perfeição que até as feras se
aquietavam e vinham deitar-se a seus pés. Atribuía-se-lhe a invenção da lira e dos rituais mágicos e
divinatórios, origem de seitas místicas, a que se deu o nome de orfismo.
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