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Suicídio.com
Sites na internet incentivam adolescentes como o gaúcho Yoñlu a se matar e ajudam
a escolher o método
ELIANE BRUM E SOLANGE AZEVEDO, COLABOROU RENATA LEAL
"Eu acredito que a cadência e a harmonia certas no momento certo podem despertar
qualquer sentimento, inclusive o da felicidade nos momentos mais sombrios’’
Essa frase é de
um adolescente
de 16 anos. Um
garoto que
amava
Radiohead,
Mutantes e
Vitor Ramil. Foi
escrita no dia
de seu suicídio.
Era parte de
sua carta de
despedida. Ele
dizia aos pais
que a música
era a melhor
maneira de
enfrentar o
desespero que
viria. Antes de
começar a INTERROMPIDO
morrer, colou a Vinícius Gageiro Marques suicidou-se com a ajuda de internautas. Tinha 16 anos
carta no lado
externo da porta do banheiro. Acima dela, um cartaz: “Não entre. Concentrações letais de
monóxido de carbono”. Vinícius ligou o aparelho de som – “porque é bom morrer com
música alegre” – e entrou.
Essa frase escrita na morte se transformou num legado de vida ao ser impressa no encarte
do CD que será lançado ainda em fevereiro pela Allegro Discos, com 23 músicas de sua
autoria. Parte delas foi entregue aos pais na forma de uma herança às avessas: “Deixei na
mesa do computador um envelope vermelho da Faber-Castell que contém um CD com
algumas de minhas músicas”. Yoñlu, o título do CD, é o nome com o qual batizou a si
mesmo no mundo em que circulava com mais desenvoltura: a internet.
Ambos, Vinícius e Yoñlu, morreram por asfixia por volta das 15h30 de uma quarta-feira de
inverno, 26 de julho de 2006. Vinícius foi estimulado ao suicídio e auxiliado por pessoas
anônimas na internet. Ele é a primeira vítima conhecida no Brasil de um crime que tem
arrancado a vida de jovens de diferentes cantos do mundo – uma atrocidade que poderia ser
chamada de Suicídio.com.
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O brasileiro Vinícius Gageiro Marques deixou o inventário de seu suicídio. Documentou sua
morte na carta de despedida impressa em papel e no registro virtual da internet. Seguindo
seus passos, é possível chegar ao impasse de uma época em que adolescentes habitam
dois mundos – mas os pais só os alcançam em um.
Como Yoñlu, ele marcou seu suicídio no mundo virtual para as 11 horas de 26 de julho de
2006. No mundo real, Vinícius estava havia dois meses em internação domiciliar por
determinação de seu psicanalista. Ele era um garoto superdotado, descrito como
“extraordinariamente inteligente” e “extremamente sensível”. Filho único do casamento de
um professor universitário que foi secretário de Cultura do Rio Grande do Sul com uma
psicanalista, ele teve todo o estímulo para desenvolver inteligência e sensibilidade.
Alfabetizou-se em francês quando a mãe fazia doutorado em Paris com a historiadora e
psicanalista Elizabeth Roudinesco, biógrafa de Jacques Lacan. Mas o mundo doía em
Yoñlu, como mostram as letras de muitas de suas músicas. Sua questão não era morrer,
mas fazer a dor parar.
Vinícius parecia “curado” no mundo real. Na internet, porém, Yoñlu pedia instruções sobre o
melhor método de suicídio. Em 23 de junho, comentou que adiaria sua morte porque muita
gente estava elogiando suas músicas. A faixa 10 do CD, “Deskjet Remix”, em parceria com
um DJ escocês, tocava em festas eletrônicas de Londres. O mundo virtual de Yoñlu
alcançava gente de vários países em sites de suicídio e fóruns de música, com quem
conversava num inglês desenvolto.
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Enquanto
Vinícius tecia
uma fantasia no
mundo real, a
realidade
estava onde os
adultos de sua
vida não
esperavam
encontrá-la: no
mundo virtual.
A mãe
arrumava a
mesa para o
churrasco de
ficção. Bem ali
perto, o
computador
anunciava a SENTIDO
morte do filho Vinícius aprendeu a tocar bateria aos 4 anos. A música o prendeu à vida por muito
pelo método tempo. E foi música que ele aconselhou aos pais para suportarem sua perda
conhecido
como “barbecue”. Por volta de 11h15, os pais saíram do apartamento que ocupa três
andares de um prédio da família, num bairro de classe média de Porto Alegre. Por volta das
12 horas Vinícius ligou para o celular da mãe, avisando que os amigos tinham chegado e
que estava “tudo bem”. Às 13 horas, os pais deixaram o violão, que estava no conserto, na
portaria do prédio. Vinícius foi buscá-lo. Três horas depois, os pais leriam: “Para garantir
uma margem segura de tempo, inventei a história do churrasco, pedindo para que vocês
saíssem de casa durante todo o dia. (...) Essa medida fez com que o churrasco de hoje
parecesse um grande progresso no que tange a minha condição psíquica, quando na
verdade era justamente o contrário”.
O que aconteceu depois foi gravado por Yoñlu no computador. Às 14h28, ele postou num
grupo de discussão, sempre em inglês: “Estou fazendo esse método CO (suicídio por
inalação de monóxido de carbono) neste momento e tenho duas grelhas queimando no
banheiro. Aqui está a foto. Alguém pode me dizer se há carvão suficiente e quando eu posso
entrar no banheiro e me deitar? Por favor, por favor, me ajudem! Eu não tenho muito tempo”.
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a polícia de sua cidade para avisar que alguém no sul do Brasil estava se suicidando. Deu o
endereço de Vinícius, obtido com outro amigo virtual. Canali acionou a Polícia Militar.
Os PMs Volmir da Silva Ramos, sargento, e Fernando Hermann Heck, soldado, tentavam
conter uma mulher em surto psicótico debaixo de um viaduto quando foram chamados pela
central. Eram 16h10. A zeladora do prédio demorou 15 minutos para deixá-los entrar,
assustada com a presença da polícia narrando uma história que soava absurda. Chamou o
avô de Vinícius, que morava em outro apartamento do mesmo prédio. “Não é possível. Só
meu neto está aqui, e ele está com os amigos, numa festa”, ele teria dito aos policiais. A
cena que encontraram não precisa ser descrita.
Durante cerca de uma hora, o serviço médico tentou reanimar Vinícius. Ele explicou aos
pais na carta: “O método que escolhi foi intoxicação por monóxido de carbono, é indolor e
preserva o corpo intacto, mas demora, e se a pessoa é resgatada antes de morrer fica com
graves lesões cerebrais e torna-se um vegetal”.
Vinícius era um garoto de 1,83 metro de altura, magro e bonito. Mas não era essa a imagem
que via. Em alguns momentos, segundo o inquérito, sentia que seu corpo se desintegrava,
que seu rosto estava deformado. Procurava então um espelho para ter certeza de que
estava ali. Na escola, quando tinha essa sensação, levava um CD para poder se olhar sem
chamar a atenção. Aos 12 anos, ele já lia Kafka.
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sido feito para impedir isso”. E fragmentos de vida. Como a colega de escola que não virou
namorada. Para Luana, ele compôs “Mecânica Celeste Aplicada”, a faixa 20 do CD. Diante
do amor, Yoñlu não conseguia se passar pelo adulto de 26 anos que dizia ser em grupos da
internet. Virava guri, o Pipoca do tradicional Colégio Rosário, Pop Corn nas aulas de inglês,
Palomita nas de espanhol. Em qualquer aula, sobre qualquer tema, Pipoca emergia dos
fones de ouvido para lançar a pergunta que toda a turma 303, do 3o ano do ensino médio,
esperava: “Mas e qual é a relação com a água?”. Todo mundo ria, mas talvez esta fosse a
pergunta que ele fazia ao mundo: qual é a relação com a água?
Não há como saber o que fariam esses adolescentes que suspenderam a vida num chat da
internet se conseguissem tornar-se adultos. Em 16 anos, um tempo exíguo demais, Yoñlu
deixou um impressionante legado composto de músicas, desenhos e fotografias. Todo o
material que ilustra esta reportagem foi feito por ele, é parte do encarte do CD Yoñlu. Em
sua carta de despedida, Vinícius escreveu: “Se conseguirem enxergar além da ótica da
paternidade, verão que nada de especial aconteceu no dia de hoje. O mundo continua igual.
(...) Espero que não tenha ficado nada pendente”.
Ele estava errado. Nada nunca mais será igual. Tudo ficou pendente.
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ÉPOCA entrou nos grupos de suicídio que Yoñlu freqüentava para descobrir o que um adolescente encontra nessa
rede macabra
“Estou muito deprimido. Não vejo nenhuma razão para a minha vida. Como posso cometer suicídio? Ajudem-me, por
favor.” A súplica foi feita por Diego Martin em um fórum de discussões sobre suicídio na internet. O grupo tem quase
2 mil internautas cadastrados que se correspondem em inglês. É um dos mais conhecidos da rede. Foi ali que
Vinícius Gageiro Marques, o Yoñlu, fez alguns “amigos” virtuais. Logo que Diego se conectou, na semana passada,
encontrou pessoas dispostas a ajudá-lo a morrer. “Você leu o que está no http://gr...? Veja o coquetel D... Pesquise
no alto da página, à direita”, disse Kat. “Se você quer que funcione, sugiro que pesquise bastante. O http://gr... é um
bom lugar para você começar”, afirmou Peter. Kat, que escreveu ser mãe de duas crianças e sofrer de problemas
psicológicos, quis conhecer melhor Diego antes de dar a sentença de morte.
Diego Martin não existe. É um jovem criado pela reportagem de ÉPOCA para descobrir como as pessoas se
comportam na web quando conversam sobre suicídio. Mas Kat e Peter existem. Assim como centenas de outros
internautas prontos para ajudar e incentivar quem deseja se matar. De acordo com Adalton de Almeida Martins,
chefe da Unidade de Repressão a Crimes Cibernéticos da Polícia Federal, criar um personagem na internet não é
crime. “Seria falsidade ideológica apenas se houvesse prejuízo a alguém”, afirma. Crime é incitar ao suicídio.
ÉPOCA selecionou alguns trechos de diálogos travados em um fórum na semana passada:
squidthings: Não quero te matar. Mas crianças usam essa m... o tempo todo. Tenho um amigo que tomou 2.650 mg
e ficou alucinado durante três dias. Depois acordou abandonado em Cleveland.
fkd up: Eu estou planejando cozinhar N* e injetar na veia.
axlgu: Não funciona. Eu já fiz isso.
Samantha: Se você quer companhia, eu gostaria de ir. O remédio N* é minha primeira opção. Eu estava esperando
para viajar com alguém. Estou reunindo os ingredientes para o coquetel de A*. É fácil achar esses remédios on-line.
Só não sei se vai funcionar. Mas isso vai me custar US$ 300.
JohnnieR: Sam, estou tentando organizar um grupo de três ou quatro pessoas. Você será mais do que bem-vinda.
angrygirl13: Me corto e me queimo desde os 11 anos. Me corto quase todos os dias. Tenho um filho menor de
idade, então eu não posso ir em frente agora... Mas todos os segundos, todos os dias, eu penso na morte.
tanhkx: Se alguém parar de comer, em quanto tempo morrerá? Provavelmente a pessoa vai ficar cega primeiro,
certo? Por causa da falta de vitamina A, eu acho.
avalanche: Isso não funciona. Você só vai acabar hospitalizado.
angrygirl13: Meu amigo acabou de tentar se enforcar. Ele estava num programa de prevenção ao suicídio e o
deixaram ir ao banheiro sozinho. Mas o lugar não era alto o suficiente para arrebentar o pescoço dele.
kat: Estava postando e notei a resposta de um policial. Devo ficar preocupada se ele estiver me rastreando? Que
diabos um policial está fazendo neste site? Talvez ele seja suicida também. Se ele for policial, eu gostaria que
atirasse na m... da minha cara.
squidthings: Uma vez, policiais apareceram on-line e tentaram me salvar. Chamaram o 911 e a polícia apareceu na
minha casa. Você precisa ter cuidado com quem fala antes de morrer.
A filosofia e o suicídio
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No século XVI, o ensaísta francês Montaigne cita trechos de filósofos antigos que
aprovam o suicídio. “Nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a
privação da vida não é um mal.” A interpretação mais comum, porém, é que
Montaigne ataca o medo da morte, que escraviza as pessoas, mas não chega a
defender o suicídio.
São os iluministas do século XVIII que mudam o foco da questão. Ali nascia uma ALBERT CAMUS
Para o autor de O Mito de Sísifo, o
filosofia de valorização da liberdade, e vários pensadores, como o escocês David suicídio é a única questão filosófica
Hume, consideraram o suicídio uma opção individual. Na virada para o século XIX, essencial. Sua conclusão é que
o movimento romântico se apropria do tema. Um livro do alemão Johann von matar-se é negar a liberdade
Goethe, sobre um jovem (Werther) que se mata ao concluir que jamais conquistaria
seu amor, supostamente levou a uma onda de suicídios no país. A melancolia inaugurada na França pelo poeta
Charles Baudelaire foi apelidada de “mal do século” e teria provocado, também, suicídios. O filósofo Arthur
Schopenhauer comparou o suicídio, para alguém que sentia dor intensa, a acordar de um pesadelo.
Foi nessa época que surgiu uma nova visão. O trabalho de sociólogos como Émile Durkheim mostrou que a
alienação e a falta de propósito ligadas à vida moderna incentivariam o suicídio. E o estabelecimento da psiquiatria
como uma disciplina independente jogou luz em fenômenos como a melancolia, a histeria e a depressão. Cerca de
90% dos suicídios estão relacionados a problemas psiquiátricos, segundo alguns estudos. A partir daí, o suicídio
passou a ser visto como fruto de uma condição psicológica e social, não mais como resultado da vontade livre de um
indivíduo.
Mesmo entre os filósofos que dão ênfase ao individualismo, o suicídio ganhou forte oposição. O inglês John Stuart
Mill, no século XIX, dizia que a condição essencial para a liberdade era a capacidade do indivíduo de fazer escolhas,
e o suicídio acaba com a possibilidade de escolhas futuras. Já no século XX, o escritor existencialista Albert Camus
tratou o suicídio como “o único tema filosófico realmente sério”, no livro O Mito de Sísifo. Sísifo é um personagem da
mitologia grega condenado a levar uma pedra para o alto de um morro. Toda vez que ele chega ao cume, a pedra
rola para baixo de novo, e ele deve recomeçar a tarefa do zero. Camus compara essa tarefa aos sofrimentos da vida.
Mas sua interpretação inovadora é que a vida não é o cumprimento de um objetivo, e sim o processo. Sísifo, para
Camus, não é um condenado infeliz. É um vitorioso, realizado na concentração de sua mente e no suor proveniente
de seu esforço. Para Camus, o suicídio é a negação da liberdade.
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