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Título original:

Jésus le Christ — Dieu se donne un visage


INTRODUÇÃO
Tradução de:
Manuel de Aguiar

«Não nos cansamos de repetir frases feitas sobre Deus


feito homem. Temos, porém, de reconhecer que ainda
não tomámos perfeita consciência do que há de inaudi
to na aproximação da palavra Deus à palavra homem,
a propósito de Jesus de Nazaré». (1)
Estas linhas exprimem bem qual o espírito das dili
gências que nós faremos ao longo desta obra. Com efeito,
quereríamos que aparecesse, ao longo destas páginas,
o que efectivamente há de inaudito na fé cristã na apro
ximação destas duas palavras Deus e homem. Que Deus
Se tenha feito homem, que Ele tenha tomado cafne hu
piana eis o grande problema dos nossos contemporâ

neos. Pelo que não é possível, hoje em dia, prender-se


Fotocomposição: a fórmulas já gastas. No mundo em que nós vivemos,
SOTECLA. LDA. que perdeu as suas raízes cristãs, a fé dos cristãos em
Jesus de Nazaré é, se não aberrante, ao menos vazia.
Pelo que é necessário encontrar-lhe o conteúdo.
Afé dos cristãos pode resumir-se no subtítulo desta
ISBN 972-30-0447-X pequena obra: emJesus de Nazaré, «Deus assume um
(edição original: ISBN 2-227-30137-6 rosto». Para ii1Er exprimir o que tem de inesperado
Paris. França)
iimaial afirmação, podem fazer-se testes, aliás fáceis
e úteis: basta considerar a forma como se fala de Jesus,
© Éditions du Centurion, 1988, Paris
© 1990. EDIÇÕES PAULISTAS — Tel. 80 52 73 (1) Claude Geffré. L’historicité de Dieu ou le vrai scandale de la

Rua Dom Pedro de Cristo, 10 - 1700 LISBOA foi’, Catéchèse, n.° 76, Julho de 1979, p. 31.

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quer à nossa volta, no falar espontâneo das pessoas, quer sentir o Seu mistério, o cinema é de facto uma lingua
nas próprias expressões mais elaboradas da literatura e gem muito difícil. Entre o Jesus Superestrela dos filmes
do cinema. O problema que se poderia pôr, a pergunta do Oeste, contado pelo cinema americano, e o «Mes
que se poderia fazer já foi feita por Cristo: «quem di sias» visto pelo italiano Rosselini, há a imensa distância
zem os homens que Eu sou?» (Mc 8,27). Os estudos e do oceano. O cineasta italiano, com a sua evocação da
os inquéritos, susceptíveis de dar resposta contemporâ simplicidade do Jesus que trabalha a madeira, e vive pró
nea a esta pergunta estão aí e são muitos. Contentemo ximo dos Seus pela Sua humilde condição de carpintei
-nos com indicar algumas pistas. ro, faz-nos pensar em Jesus numa outra dimensão, a
dimensão do mistério, que um Jesus superestrela não po
Quem dizem os homens que Eu sou? de deixar de escamotear.
O Jesus do cinema, as mais das vezes, é a expressão
Há muito pouco tempo, surgiu uma nova colecção da sensibilidade de uma época. Mas, numa civilização
«Jesus depois de Jesus» (2), cuja ambição é delinear, em da imagem, como é a nossa, o cinema é, talvez, um dos
vinte volumes, os retratos de Jesus através da história. meios pelos quais os nossos contemporâneos podem mais
Ao longo dos vinte séculos que nos separam do nasci frequentemente entrar em contacto com Jesus. E é por
mento de Jesus multiplicaram-se os retratos. Assim —
isso que o cristão consciente não tem outra alternativa
e para não falar senão do século XIX surgiu-nos um—
senão estar atento àquilo que aparece no cinema.
Jesus romântico, um Jesus revolucionário e violento, co- Um dos testes mais significativos poderia ser
munista até —um Jesus oscilante entre «a doçrae a to de Jesus pintado pelas seitas, um Jesus à margem da
dor») Cada época nos deixou os seus próprios retra Igreja, um Jesus com todas as cores do arco-íris. Estu
• Jesus. E tão diferentes uns dos outros ue nos dando a «nova religiosidade» (5) que se manifesta nestas
oderemos justamente perguntar se tiveram ou não diante seitas, J. Vernette notou que a figura de Jesus sofre em
dos olhos o mesmo. moeo. tudo isto uma distorção em função dos dois pólos em
os retratos se afastaram bastantes vezes da fé cristã. volta dos quais estas seitas se podem classificar.
Um outro teste pode ser o cinema. O «rosto de Cris que bebem na mística orien, designam Jesus como
) do cinema é pelo menos tão variado como o da
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to»( Cristo, crístico, iniciado, Mestre, instrutor, guia.
literatura. Umas vezes, animado por uma vontade im Jesus, que ocupa um lugar ao lado de outros mestres da
piedosa de desmistificar a figura de Jesus, outras vezes, sabedoria, não tem qualquer identidade divina. Outras
desejoso de apresentar ou, pelo menos, de fazer pres teorias religiosas, próximas do fundo judeo-cristão, con
(2) Colecção Jesus depois de Jesus»’, Cerf. 1987. Anunciados, vinte
sideram Jesus como Salvador, Filho de Deus, Messias,
volumes. Ver igualmente a colecção .»Jesus e Jesus Cristo’. dirigida por
etc. E correm o risco de esguecepor seu lado, a Sua
J. Doré, Paris, Desclée, colecção em que os colaboradores são não só Eiiuianidade. Ora estas seitas revelam bem uma tendên
teólogos corno também representantes de outras religiões e até agnósti ia que nos ameaça a todos: a de fragmentar a figura
cos. Afinal apareceram mais de trinta volumes.
(3) Frank Paul Bowman. Le Christ des barricades. 1789-1848, Pa
(5) Jean Vernette, Jésus dans Ia nouvelle religiosité, col. Jésus et
ris, Cerf, 1987.
(4) Henri Agel. Le visage du chrisr à 1 ‘écran. Paris, Desclée. 1985. Jésus-Christ, núm. 29, Paris, Desclée, 1987.

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de Jesus, reter dela apenas um aspecto, o da Sua hurna daquilo de que são feitas as vias da cristologia e da ma
ndade&io da Sua divindade.. neira como foram, progressivamente, traçadas ao lon
E, finalmente, o derradeiro teste: as sonda ens. go da história.
Quando interrogamos, as pessoas acerca daqui o em que Para descobrirmos as etapas que vão organizar este
elas crêem, rapidamente nos damos conta de que a sua percurso e dar dele a primeira visão global, sugerimos
fé é bastante incerta. Ela já não sealimenta unicamente que comecemos por ler as primeiras palavras do Evan
dos ensinamentos da Igreja pelo que a imagem de Jesus gelho de Marcos, considerado o mais antigo de todos.
se torna pouco nftida. Uma sondagem (6) efectuada em Marcos leva-nos imediatamente à fonte do testemunho
Setembro de 1986 revelou que 64 % dos franceses acre apostólico pelo simples título do seu Evangelho:
ditam em Cristo como Filho de Deus; mas admira mais
que, entre aqueles que se dizem explicitamente católi
cos, somente 72 % reconheçam que Jesus é Filho de «BOA-NOVA DE JESUS CRISTO
Deus, ao passo que 11 % dizem que não é e 17 % não FILHO DE DEUS» (Mc 1,1)
sabem que responder. Para alguns, Jesus não passa de
um sábio ou de um super-sábio, que ensina um código Este simples enunciado contém o essencial acerca da
de moralidade, prega a palavra de Deus, um profeta. fé cri’tã. Boa-Nova: estas palavras, que inauguram o
o filho do carpinteiro, etc. Jesus tem sem dúvida e —
Evangelho, exprimem o carácter inesperado deste acon
ao contrário do que acontece com a Igreja uma boa

tecimento. Podemos descobrir nelas três dimensões: a
«imagem de marca»; só que esta imagem é muito histórica, a salvífica e a ontológica. Esta Boa-Nova tem,
antes de mais, uma dimensão histórica, pois diz respei
E vós, quem dizeis que Eu sou? to a Jesus, um Homem situado, que tem um nome ju
deu, cujos pais são conhecidos, e que viveu num lugar
Aquilo que dissemos sobre a imagem de Jesus e que e momento precisos da história dos homens. Ao falar
é expressão da opinião pública pode servir-nos de pon mos deste Homem, não podemos recusar a Sua condi
to de partida para a descoberta daquilo que sobre Jesus ção humana, mas ainda menos limitar a ela o nosso olhar.
afirma o discurso cristão. Desde que um «certo Jesus» A fé vai mais longe!
surgiu na história dos homens,. gerações de homens e Com efeito, o Evangelho de Marcos acrescenta ao
de mulheres reconheceram neste homem o Filho de nome de Jesus o título de «Cristo». palavra esta que. em
Deus. O que eles criam acerca d’Ele_foi-nos_transi grego, quer dizer «ungido» e, em hebraico, «messias».
do pe1in,ge1hq, ps Concflioseos testemunhos que Este nome, que evoca a unção com azeite recebida pe
nos ficaram. As perguntas que fazemos a n6 próprios los reis de Israel, apresenta Jesus como a figura do Mes
acerca de Jesus não encontrarão, porém, aqui, uma res sias, que Deus envia para salvar o Seu povo e estabelecer
posta teórica. E caminhando que nós nos damos conta no mundo o Seu Reino, te nome de Jesus Cristo
(6) Sondagem efectuada em Setembro de 1986 pelo Sofres, publi
só por si, um programa. izer de Jesus que é Cristo sig
cada em Le Monde de 1 de Outubro de 1986 e no número 2144 de La nitica dizer que toi reconhecidomo o Desejado, aquele
Vie, 1 a 7 de Outubro de 1986. que Israel esperava, o qual lhe ia permitir realizariiTa

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vocação, isto é, anunciar o nome de Deus a todas as na tre estava de novo vivo? É esta experiência que consti
que quer dizer que o nome de Jesus Cristo é tui a matriz do cristianismo. Pelo que é muito importante
uma boa nova para o mundo e tem por isso uma dimen que, numa primeira parte, estejamos atentos à experiên
são salvadora, um alcance salvífico ou, para falarmos çia pascal dos discípulos, a qual os levou a reconhecer,
como os teólogbs, soteriológico. no rosto do seu Mestre ressuscitado, a glória de Deus.
Eis-me, porém, perante um verdadeiro caso de es
pantar, que nos obriga a dar mais um passo. Como é
possível que a história de um Homem possa trazer ai 2. Numa segunda etapa, veremos como os primei
dãhumanidade a salvação de Deus? A resposta cristã ros cristãos descobriram a dimensão ontológica de Je
éuma resposta de fé. Ela ronhece que, neste Homem sus. Eles reconheceram n ‘Ele o Filho Eterno de Deus.
Jesus, é o pr6jio Deus que Se insere na nossa história.. A Páscoa fez com que os discípulos vivessem uma es
Ãó dizer deste Jesus que é Filho de Deus, dizemos qual perança de salvação, que lhes revelou o papel único e
quer coisa que pertençe à própria essência de Cristo. Por decisivo de Jesus no desígnio de Deus. Foi esta expe
outras palavras, afirmamos a propósito do homem Je riência que guiou os Padres da Igreja, que guiou, de
sus não somente que Ele é o enviado de Deus para sal pois, as grandes testemunhas da tradição teológica até
var, mas que ele próprio é Deus. O que quer dizer qiie aos nossos dias, sempre que procuraram mostrar, com
toda a palavra sobre Jesus Ciito tem igualmente uma precisão, a misteriosa identidade de Jesus. Todos dão
dimensão ontológica no sentido de que.enuncia alguma conta da mesma fé, resumida na seguinte fórmula: a pes
õia sobro serde Jesus Cristo identificado, enquanto soa de Jesus é em si mesma a «imagem do Deus invisí
Filho, não somente com o dom da salvação que Deus vel» (Cl 1,15).
nos concede n’Ele, mas também com o dom que Deus
nos faz de Si mesmo._ 3. A nossa terceira etapa ocupar-se-á da obra da sal
Entre os itinerários possíveis, quereríamos que o nos vação, levada a cabo por Deus em Jesus Cristo, ou se
so percurso fosse mostrando, progressivamente, estas ja, da dimensão salvífica. Será o momento de aprofundar
três. dimensões ao mesmo tempo que se mantém fiel, o o sentido que tem para nós esta Boa Nova da salvação.
mais possível, à caminhada da fé dos cristãos através Para o fazer, ter-nos-ia sido possível partir das nossas
dos séculos. Estas três dimensões são inseparáveis, mas próprias indagações humanas. Mas pareceu-nos prefe
cada uma delas oferece um ponto de vista particular. rível seguir o caminho escolhido por Deus, que é um
Tratá-las-emos pela ordem seguinte: caminho paradoxal: sendo um caminho de vida, passa
pela morte na cruz, «escândalo para os judeus, loucura
1. Na primeira etapa, ficar-nos-emos pela dimensão para os pagãos» (iCor 1,23), como dirá S. Paulo. Pre
histórica. Uma vez que a fé dos cristãos se apoia na fé cisaremos então de clarificar, de uma forma especial,
dos Apóstolos, começaremos por recolher os testemu a ideia de redenção, que tanto marcou a cultura ociden
nhos que estes deram de Jesus, conforme estão consig tal, e manter-nos fiéis ao sentido da figura do crucifica
nados nos escritos apostólicos (N.T.). Por que vias do. Ficará sempre a pergunta, que não se pode iludir:
chegaram os discípulos à afirmação de que o seu Mes quem é esse Deus que Se revela numa morte destas?
lo. li
1

«NÓS VIMOS
À SUA GLÓRIA»
A experiência pascal dos Apóstolos
o Verbo Se fez carne
e habitou entre nós
e nós vimos a Sua glória»
Jo 1,14
«Quem é, para mim, Jesus Cristo?» Antes de aceitar
o percurso que propomos, poderá o leitor aceitar o ris
co de responder a esta pergunta à sua própria custa. Dis
porá, assim, de uma primeira confissão de fé, que poderá
ir ampliando e corrigindo à medida que for realizando
a sua progressão (Ver Anexo 1). O itinerário que lhe
é proposto aqui não parte, porém, desta experiência pes
soal. Caminhando através das Escrituras, estará sempre
atento aos discípulos de Jesus para poder acolher o seu
testemunho acerca do Ressuscitado bem como a leitura
que eles próprios fizeram da sua experiência de Jesus
de• Nazaré, cujos passos e vida decidiram seguir.
A nossa fé nasceu na Páscoa com um grito de ale
gria: Cristo ressuscitou!
Que terá acontecido para que os discípulos do Pro
feta de Nazaré se tenham posto a proclamar que o seu
Mestre estava vivo, viveria para sempre e n’Ele todas
as promessas de Deus haviam de ser cumpridas? «Cris
to ressuscitou !» E escutando este anúncio pascal e
deixando-nos guiar pela sua força organizadora que po
deremos compreender como nasceu a fé dos Apóstolos.
As raízes desta fé mergulham na história de Israel. Te
mos de o demonstrar. Mas temos, sobretudo, de dar con
ta, neste livro, dos grandes momentos que viveram com
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Jesus e recolher a sua mensagem destinada ‘s cristãos Estrutura do anúncio pascal
de todos os tempos.
O anúncio da ressurreição de Jesus exprime-se, no
Novo Testamento, de diversas maneiras: confissões de DEUS A
fé, relatos de aparições, exposições bem documentadas,
como iCor 15. Uma das formas mais desenvolvidas deste
anúncio é o discurso missionário, também chamado «que
rigma». termo de uso profano. que designava a procla
ANTES —

mação oficial das novidades nas cidades gregas. Nos


Actos dos Apóstolos, podem ler-se seis destes discur 1’ JESUS
B
sos. Cinco são de Pedro (1,14-39; 3.13-26; 4,9-12; SENHOR

5,30-32; 10,34-43). e um de Paulo (13,16-41). Lucas 4,


DEPOIS
apresenta-os sob a forma de esquemas cuja estrutura se —

pode ver muito facilmente no esboço da página seguinte:


— No coração da mensagem, há o anúncio da res
surreição d’Aquele que foi crucificadó. Em torno deste
ESPÍRITO C
anúncio fundamental (círculo central do desenho) estão
dispostos certos traços do ministério de Jesus, assim co
mo os sinais que acompanharam a Sua ressurreição (cír
culo intermédio).
— Este acto de Deus, que, em Jesus, sai vitorioso
da morte, ocupa lugar numa história da salvação: men A: O desígnio de Deus
((Os profetas dão testemunho de Jesus»
ção do desígnio de Deus, recordação dos textos da Es
critura que apresentam a Páscoa como a realização deste B: O “facto Jesus»
desígnio e a inauguração dos últimos tempos, os tem 1. Começo, na Galileia
pos do Espírito. Desta maneira, o acontecimento pas 2. Condenação à morte: Eles eliminaram-n’O»
3. Ressurreição: ((Deus ressuscitou-O»
cal, alargado ao conjunto da vida de Jesus, faz parte de ((Deus designou-O Juiz e Salvador)>
um círculo muito mais amplo, para manifestar que este 4. Testemunho: «E nós somos testemunhas disso»
acontecimento se situa no desígnio criador e salvador «Nós comemos e bebemos com Ele,
de Deus. após a ressurreição»

Esta primeira leitura do esboço, de acordo com o eixo C: Iniciou-se o tempo do Espírito
horizontal, que mostra a dimensão histórica, deve ser O perdão foi concedido em nome de Jesus
completada com uma leitura vertical de cima a baixo, o Espírito derramou-Se
ao longo do esboço (A-B-C), a qual manifesta a dimen Coordenar os discursos dos Actos dos Apóstolos com os
são trinitária do acontecimento. A partir deste primeiro capítulos 2, 10 e 13.

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olhar sobre a estrutura da confissão pascal é possível in
dicar o itinerário que vamos seguir. 1. O tempo das promessas
Se quisermos recapitular a totalidade do tempo das
1. O tempo das promessas. Na Páscoa, Jesus é pro
promessas, temos de evocar todo o Antigo Testamento.
clamado Cristo porque n’Ele se realizam as promessas
Obrigados a escolher, fixaremos a nossa atenção sobre
de Deus feitas ao Seu povo, O que quer dizer que a fé
pascal radica numa esperança geral, culminada, aliás, três dados essenciais: as traves mestras da fé de Israel,
na esperança específica da ressurreição dos mortos. Es a fé na ressurreição dos mortos e a situação do Povo
deDeus na época deJesus.
ta esperança tomou corpo de uma forma literal na pes
soa de Jesus. Só nos resta perguntar de onde vem esta
esperança. 1. Escuta, Israel!

2. O tempo de Jesus. A fé pascal refere-se à obra Estas duas palavras «escuta, Israel!» constituem o
realizada por Jésus de Nazaré, reconhecido como Aquele começo de uma oração que o Judeu piedoso recitava vá
pelo qual veio a Boa-Nova da Paz (Act 10,36). Os dis rias vezes por dia, e que se chamava o «shemá» (Dt 6,4-9;
cípulos, que viveram com o Mestre durante meses, fi 11,13-21; Nm 15,37-41). A alma do Povo eleito expri
caram marcados profundamente, como o prova muito mia-se inteiramente nesta oração, Um povo que tinha
bem o seu desapontamento no dia a seguir à morte de a consciência de ser um povo escolhido e, por isso mes
Jesus (Lc 24,19-24). O lugar dos relatos evangélicos na mo, chamado por Deus. Israel nasceu da Aliança que
vida da Igreja testemunha a importância desta referên Deus fez com ele, ao tirá-lo da servidão do Egipto para
cia à vida de Jesus para se compreender verdadeiramente fazer dele um povo de filhos. A este povo deu Deus a
quem era o Ressuscitado. Sua Palavra (a Lei), na qual devia discernir a vontade
divina, uma Terra que era preciso pôr a dar fruto, um
3. Reconhecer o Crucificado. A esperanças que vi Templo no qual esse povo podia encontrar-se com Deus.
via no coração dos discípulos e que, como filhos de Is Toda a esperança de Israel nasceu desta iniciativa divi
rael, eles partilhavam com o seu povo, bem como o na e desta história de amor (Os 2), sem que as outras
encontro que tiveram com Jesus na Sua vida terrestre, nações sejam por isso postas de parte. Para correspon
permitir-lhes-ão compreender melhor as dimensões ‘es der à sua vocação, Israel deve, com efeito, «escutar o
senciais da experiência pascal. seu Deus», mas igualmente testemunhar diante de todos
os outros povos o amor que Deus lhe tem (Gn 12,2-3).
O que quer dizer que a história de Israel está em ten
4. A mensagem pascal. Após a análise desta expe
são para o pleno cumprimento. No entanto, esta espe
riência dos discípulos, estaremos em condições de per
rança foi, ao longo dos séculos, evoluindo sempre. No
ceber o alcance da mensagem pascal, mensagem sem a
reino de Judá, no Sul, foi a dinastia real que se tornou
qual, no dizer de S. Paulo, «a nossa fé não teria conteú instrumento de Deus para realizar o Seu desígnio. Só que
do e a nossa pregação seria vã» (1 Cor 15,14). a infidelidade dos reis, a destruição do país, a deporta-
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ção das populações levaram à esperança num Messias. fez um povo ressuscitado, que regressa à sua terra para
que o próprio Deus mandaria, e num outro mundo. á aí adorar o seu Deus e viver segundo as Suas leis. Tes
que a salvação não podia nascer deste vale de lágrimas. temunho desta fé é a extraordinária visão de Ezequiel
Também se esperava uma última testemunha de Deus, dos ossos ressequidos (Ez 37) que voltam à vida pelo
semelhante a Moisés e as Profetas, a qual realizaria a sopro de Deus.
profecia feita por Moisés: «Será um profeta como eu que depois, foi a experiência das perseguições no tem
o teu Deus suscitará no meio de ti de entre os teus ir po dos Macabeus, no século II antes de Cristo. Come
mãos» (Dt 18,15). Por esta razão se esperava em Israel çou, então, a parecer impossível que o justo que morria
que, no termo da história, Deus Se revelasse e manifes mártir por causa da sua fidelidade a Deus ficasse, pela
tasse a Sua glória. Então, o Espírito seria dado ao povo morte, separado de Deus definitivamente (2Mc 7 e Dn
e infundido no coração de cada um. 12,2).
Assim surgiu a ideia de que o justo devia voltar a
viver após a morte. Esta lei é, na essência, baseada em
2. «Deus reclama a Tua vida na tumba» (Salmo 103.4) Deus como parceiro da Aliança. Os semitas não consi
déram o homem como um composto de alma e corpo,
Só muito tardiamente o povo de Deus chegou à fé com aquela a sobreviver à desaparição deste. Se chega
na ressurreição dos mortos. Para o israelita, o hõrizon ram ao ponto de acreditar na ressurreição, foi por causa
te da vida com Deus limitou-se, por muito tempo. à vi desta Aliança com Deus: sendo Deus vivo e justo, pode
da terrena. No limiar da morte, o rei Ezequias (7 16-687) restituir a vida àqueles que enfrentaram o martírio. A
exclamava: «Não mais verei a Deus na terra dos vivos !» fé na ressurreição alimenta-se, assim, da relação pre
(Is 38,11). O que quer dizer que, até por volta do ano sente e viva com Deus já neste mundo. Esta ressurrei
200 antes de Cristo, os judeus não acreditavam numa ção é mais do que uma vitória sobre a morte: é a vitória
ressurreição pessoal dos mortos. No tempo de Jesus, os sobre a injustiça. Eis um aspecto importante, que nos
Saduceus, partido de chefes religiosos, ainda não tinham ajuda a compreender o testemunho dado pelos discípu
aderido à fé na ressurreição. los acerca da ressurreição de Jesus.
Uma vez que a fé na ressurreição é, para Jesus e
para os.cristãos, algo de muito importante, há toda a
conveniência em procurar descobrir como esta fé apa 3. Um tempo de crise
rece(’). Duas experiências fundamentais levaram os
crentes a esta conclusão: Na época de Jesus, parecia que os céus estavam fe
• primeiro, foi a experiência colectiva do regresso chados: há muito tempo que os profetas se tinham cala
do exflio (séc. VI a.C.): De um povo morto, disperso, do e o Espírito de Deus já Se não manifestava. Era na
exilado, afastado da sua terra, sem rei nem templo, Deus Escritura (a Torah) e na prática dos mandamentos que
(1) Cadernos Évangiie, n.° 3:
uma excelente apresentação dos con
os Judeus piedosos redescobriam Deus e viviam com Ele
tributos bíblicos para o esclarecimento dos textos referentes à ressur a sua relação filial. Ocupada pelos Romanos, Israel es
reição de Cristo. tava, em todo o caso, em plena efervescência. O ardor
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religioso de certos estratos da população era atiçado pela um Deus misericordioso, que Se ocupa dos pobres e mar
aspiração à liberdade: Deus havia de vir! ginalizados, que vai em busca daqueles que se perdem,
• Um Messias Rei, ou talvez dois, havia de surgir. dos que não têm esperança. Neste sentido, o tempo de
Deus em pessoa purificaria a Sua própria terra. Essé Jesuséum tempo novo, radicalmente novo. No fundo
nios, fariseus e baptistas, cada um deles desenvolvia esta da sua prisão, João Baptista sentiu-se confuso (Mt 11,2-6)
esperança de acordo com o seu próprio guião ou argu e precisou que Cristo o esclarecesse. Jesus fez-lhe com
mento preferido. E foi neste clima de expectativa e de preender que as promessas feitas aos profetas se tinham
crise que Jesus apareceu. tornado realidade (Lc 4,16-2 1): os cegos vêem, os pre
sos são libertados, etc. Testemunha da vinda do Deus
da Aliança e da recõnciliação, Jesus quer preparar os
corações para acolherem a Boa-Nova. Opõe-se a tudo
II. O tempo de Jesus (2) aquilo que separa os homens de Deus e os homens uns
dos outros. E este o sentido da Sua mensagem como o
Jesus vem da demonstram os milagres que faz e o modo como vive.
de Jerusalém por causa dos resíduos de presença pagã
que ali continuavam. Filho de Israel, surge na órbita de Os milagres de Jesus
João Baptista, que atrai as multidões com o anúncio do Os milagres de Jesus np ervç prja
Isagem; o._io sim, para a ilustrar concretamente
A mensagem de João é o mais simples possível: procla (Mc 2fi). E tocante verificar que os Seus adversá
ma um baptismo para a remissão dos pecados (Mc 1,4-8), rios chegam a censurá-l’O por não fazer milagres sufi
sem exigir 05 Custosos sacrifícios do Templo. Jesus apa cientemente convincentes. Mas Jesus recusa o espec
rece neste contexto onde está bem viva a esperança do táculo. A originalidade dos Seus milagres (3) está em que
fim dos tempos. No entanto, depois de ter baptizado du eles são, na sua essência, jiLais do Reino de Deus em
rante brevíssimo tempo, Jesus vai mudar o Seu compor Com Jesus e através d’Ele, Deus re1iãas pro
tamento. Enquanto João levava as pessoas para fora das messas que fez, socorre os pobres, liberta os doentes,
cidades na direcção do deserto Jesus andava de cidade reintegra na comunidade aqueles a quem a doença afas
pregando a vinda de Deus para rnuitob tou, por via das interdições que a lei fazia pesar sobre
eles. A salvação que o milagre manifesta respeita a ne
1. O reino de Deus está no meio de vós cessidades fundamentais como comer, ter saúde, viver.
Os milagres não pretendem provar nada: são sinais do
Exactamente como João Baptista, Jesus a uncia a ma Reino de Deus. Anunciam, através da solicitude de Deus
stS sgie, em vez degar um Deus (3) Cf. René Latourefle, Miracles de Jésus et théologie du mi
terrível, faz com que as pessoaidescubram
racle, ParisfMontréal, Cerf/Bellarmin, 1986. Ou então, mais fácil:
Jean-Pierre Charlier, Signes etprodiges. Les Miracles dans I’évan
(2) P. M. Beaude, Jésus de Nazareth, Desclée, 1983, p. 130. gile, Paris, Cerf, 1987.

22 23
pelos abandonados, um mundo «onde deixará de haver 2. As pretensões de Jesus
morte, gritos e lágrimas» (Ap 21,4). A mensagem de Jesus, os Seus milagres, o Seu mo
do de vida, suscitam entusiasmo; mas suscitam também
O modo de viver de Jesus a oposição de fariseus e chefes religiosos. De onde virá
esta hostilidade? Vem, claro, de vistas deiasiado cur
Como os milagres, o modo de viver de Jesus incar
mas deve, essencialmente, às pretensões inaudi
na a Sua mensgm. Ao comer com os pecadores, por
tas que eles vislubravam nos propósitos e gestos do
exemplo, Jesus dá uma ideia do perdão de Deus. Nesta
profeta de Nazaré. Em tudo aquilo ,ue Jesus vi
época, as refeições eram lugar e tempo de divisão: as senteeéde Deus
tudo aquilo que rnamfD
regras de pureza ritual não permitiam aos membros de
aueseti-atrata. Três debates essenciais o demonstram:
certas seitas comer à mesma mesa com aqueles que eram
considerados impuros. Ora a mesa de Jesus deixou de A relação de Jesus com os pecadores
ser a mesa da separação para ser a mesa da reconcilia
ção, uma mesa aberta a todos. Mesmo com o risco de Fariseus e sábios, que consideram Jesus um homem
passar por «glutão e bebedor» (Mt 11,19), testemunha, justo e recto, ficam escandalizados com as Suas compa
ao comer com os pecadores, que os abandonados se nhias. Pressentem, através do Seu comportamento, a pre
transformaram em hóspedes de Deus. tensão invulgar de ser, entre os homens, a presença de
Esta opção de Jesus poderia também ser ilustrada ob Deus, que, pelo £dão, Se reconcilia com os pecado
servando como Jesus escolhe os Seus discípulos. Nesse res. O próprio Jesus não deixa que subsistam quaisquer
tempo, os que se dedicavam ao estudo da Torah é que dúvidas sobre esse assunto: Quem não é por Ele é con
escolhiam os seus mestres. Jesus, ao contrário, escolhe tra Deus; quem O contesta contesta a Deus; quem O aco
os Seus discípulos por Si mesmo e, entre esses discípu lhe acolhe a Deus. Os homens serão julgados em função
los, algumas mulheres, o que era contrário aos costu da atitude que tiverem a Seu respeito (cf. Mc 8,38).
mes da época. E não só pede que O sigam como exige O problema põe-se com toda a crueza. Quem é Jesus
também que deixem tudo para o poderem fazer, sem para ligar desta forma a vinda de Deus e a concessão
qualquer ideia de voltar atrás. Entre os Seus discípulos, do Seu perdão à simples presença da Sua pessoa? Uma
tal pretensão lança a confusão em todas as representa
há um fiel cumpridor da Lei, Natanael, um judeu pie
doso, Simão, o Zeloso, partidários da violência, Tiago ções religiosas. A maneira de agir de Jesus torna cadu
e João, para não falarmos de Judas e de Pedro, um pu cas todas as mediações instimídas para assegurar a
ão entre o homem e Deus no mundo judeu: a To
blicano, Mateus (os publicanos eram, nesse tempo, con
siderados como •pecadores), um helenista, Filipe,
rah, o Templo, etc. Jesus aparece ciio uma ameia para
originário de uma cidade fronteiriça, etc. Nada chama a ordem da salvação con !da pelos homens
religiosos da época.
va estes discípulos a viver em comum a não ser a escolha
-convite de Jesus. Um grupo com elementos tão • A relação entre Jesus e a Lei
diferentes não podia deixar de ser um sinal vivo de re
Torah o
conciliação. modesprezo. Não veio aboli-la, mas dar-lhe cumpri-
24 25
mento em todos os seus aspectos. A Torah revestia, nessa centro das peregrinações que celebram os feitos notá
época, duas formas: a Torah escrita (identificada com veis de Deus na história de Israel. Jesus frequenta o Tem
os cinco primeiros Livros da Bíblia) e a Torah_oral, trans plo, ensina nos seus átrios; mas assume uma atitude de
mitida pelos sábios e qualificada de «tradiçâõ dos anti relativo distanciamento em relação ao Templo e ao Sa
gos», igualmente atribuída a Moisés. Ora Jesus situa as cerdócio que o serve. Basta reler a parábola do «Bom
Suas palavras ao nível desta «tradição dos antigos» e mes Samaritano» (Lc 10) em que os levitas e os sacerdotes
mo acima dela, o que quer dizer que Ele pretende, cla não são lá muito exemplares! Ou o episódio dos nego
ro está, ultrapassar Moisés. E neste sentido que devemos ciantes expulsos do Templo: as palavras que Jesus pro
ler textos como aquele em que Ele afirma: «Ouvistes o nuncia nesta ocasião serão o pretexto principal para Ele
que foi dito aos antigos... Eu, porém, digo-vos...» as ser preso e condenado à morte (Mc 14,53-65).
sim como todos os textos que sublinham a Sua autori Mas a atitude de Jesus vai mais longe. Não Se con
dade (Mt 7,29). tenta com criticar o sacerdócio de Jerusalém. Outros,
A menção da autoridade de Jesus não aparece como como os Essénios, também criticavam este sacerdócio.
uma nota temperamental. Para um Judeu, isto tem um Só que Jesus, pura e simplesmente acaba com ele. E neste
significado muito preciso: um mestre, quando fala, dá sentido que se deve ler o episódio dos negociantes ex
as suas referências; ora Jesus fala da Sua própria auto pulsos do Templo: «Jesus não permitia a ninguém trans
ridade, o que quer dizer que Se substitui à tradição oral, portar um objecto através do Templo» (Mc 11,16).
enunciando em Seu próprio nome a vontade de Deus, Objecto quer dizer material do culto. O sentido do epi
o que, para os Judeus, é intolerável. Jesus não Se situa sódioé claro: Jesus detém o processo do culto sarifi
entre Deus e o povo, como intérprete da Lei, mas enun cial. Jesus sente-Se no Templo como em Sua casa (Lc
cia a Lei e exige aos que O ouvem que sejam Seus dis 2,46-49). Considera-se acima das regras, suspendendo
cípulos porque aSua autoridade foi-Lhe dada por Deus o culto. «Facilmente se compreendem a emoção e as con
(Mt 11,27-30). E portanto n’Ele que se deve acreditar, sequências que irão seguir-se» (5).
a Ele que se deve seguir, porque Ele é «o caminho, a Com esta crítica, Jesus toma o lugar do Templo e
verdade e a vida»! Jesus manifesta, com esta liberdade, apresenta-Se a Si próprio como aquele que abre cami
«a Sua consciência do reino soberano de Deus em Si e nho para Deus e manifesta o Seu perdão. E neste senti
através de Si» (4). do que devemos ler os episódios que põem em cena os
Samaritanos opostos aos Judeus precisamente no que diz
• Jesus e o Templo respeito ao Templo. Jesus faz compreender à Samarita
O comportamento de Jesus em relação ao Templo na que, daí para diante, a Sua presença, que transcende
vai no mesmo sentido: o Templo é op aquestãoda loca çolo Templo (Jo 4,21-21), torna
o Templo inútil. Quando reliam estes episódios, os pri
o lugar no qual
se oferecem os sacrifícios pelo perdão dos pecados, o meiros cristãos compreenderiam que Jesus era por Si o
(4) W. D. Davies, Pour comprendre Je serrnon de Ia
montagne, (5) Charles Perrot, Jésus et I’histoire, Paris, Desclée. 1979, p.
Paris, Seuil, 19.70, pp. 155 e ss. 147.

26 27
novo Templo, que garantia a permanência de Deus en 8,27-29). Mas Pedro ainda não sabe a quem ou a quê
tre os homens (Jo 1,14; Ef 2, etc.) Com Ele, o Templo deu a sua palavra. Recusa o caminho do sofrimento, que
vivo de Deus, nós temos alguém que é «mais que Salo se abre diante de Cristo e vai renegar o Mestre, uma
mão», que construiu o Templo de Jerusalém (Mt 12,42). vez que julga indigno do Messias o caminho que Jesus
escolheu (Mc 8,32-33;14,66-72). O que quer dizer que
3. Então quem é Jesus? os discípulos estão divididos sobre o assunto. Ao fim
e ao cabo, quem é Jesus? Que diz Ele de Si mesmo?
As pretensões de Jesus mostram que se trata de fac Jesus não Se pregou a Si próprio nem declinou a Sua
to da vinda de Deus, mas de uma vinda que, cumprindo própria identidade. Pregou o Reino de Deus e deu-Se
muito embora as promessas, as subverte e ultrapassa. a conhecer pelas obras que fez (Jo 5,36; 10,25-37). Mas
Mais que testemunha de Deus, Jesus é Aquele pelo qual o que as Suas obras deixam pressentir é de tal modo inau
Deus torna presente o Seu perdão. O espaço onde o per dito que a maior parte fecha-se na recusa. Jesus não re
dão é concedido não é o do Templo, mas o espaço quo cusou certos títulos, como «Mestre» e «Profeta»; e, na
tidiano dos homens, onde Jesus Se situa (Mt 5,23-24). verdade, ao apresentar-Se como mensageiro decisivo de
O espaço do culto, como o espaço da Lei, alargou-se Deus, deixa pressentir que é o Profeta esperado dos úl
ao outro, sem excepção, porque o outro, seja ele quem timos tempos, anunciado em (Dt 18,15). Mas, ao mes
for, deve tornar-se o próximo (Lc 10,29-37). mo tempo, é mais do que um profeta. Um dos tftulos
Uma tal irrupção de Deus não responde de imediato que melhor O revelam é sem dúvida o do «Filho do Ho
às expectativas das multidões. Por isso se compreende mem)>, essa personagem misteriosa que aparece no li
bem que Jesus tenha sido incompreendido e rejeitado. vro de Daniel (7,13-14) e à qual é confiado o julgamento
As multidões, que esperavam uma libertação política, dos homens. Este título, posto sistematicamente pelos
entusiasmavam-se por uns momentos, mas, depois, evangelistas nos lábios de Jesus, surge como o nome que
afastavam-se d’Ele. A Sua famiia, pensando que Ele Ele deu a Si próprio.
perdera o juízo, inquietava-se. Os fariseus rugiam, con Seja como for, o certo é que Jesus não diz em parte
siderando uma blasfémia a pretensão de Jesus de Se si alguma de maneira peremptória «Eu sou o Messias», «Eu
tuar entre Deus e a Lei. Os Saduceus tinham medo d’Ele, sou o Filho do Homem», «Eu sou o Filho de Deus». Não
já que Jesus punha em causa o Templo, que era a fonte Se identifica com nenhum modelo do passado. Se o re
dos proventos deles. Os chefes viam n’Ele um pertur ferirmos a outros modelos preexistentes, correremos o
bador, que se arriscava a irritar o ocupante romano que risco de «passar à margem daquilo que Ele é, no essen
lhes dava protecção; numa palavra, Jesus pôs contra Si cial; no essencial porque aquilo que Ele é não se revela
a opinião pública. rá plenamente senão mais tarde, quando o Seu destino
Nem os discípulos se mantêm unânimes. Alguns ). Mas porquê estas reticências de Jesus,
se confirmar»(
6
separam-se d’Ele (Jo 6,66). Um deles atraiçoa-O. Cla
(6) J. Doré, no artigo «Jésus-Christ”, Diction.naire des Religions,
ro que Pedro, como outros, aliás, reconhecia em Jesus
Paris, Puf, 1984, p. 853. Para o uso evangélico do título de Filho
o Messias prometido: a Sua acção traz a assinatura di do homem», ver P. M. Beaude, op. cit., cap. 12, e Ch. Perrot, op.
vina que liberta aqueles que vivem na servidão (Mc cit.. cap. 7.

28 29
quando se trata de Se definir? Se Ele não Se define, é mo um profeta que era para dar testemunho de Deus.
porque Se quer totalmente transparente a um outro, a cujo Reino anunciava (7); mas foi crucificado fora da ci
Deus, a quem chama «Pai» de uma maneira única (ab dade; depois de ter sido condenado como um agitador,
ba) (Mc 14,36). Pelo modo de viver a relação com o morreu como um escravo entre dois malfeitores.
Pai, na oração, e pela relação de serviço que mantém E teve de viver a esperança, nestas difíceis condi
com todos, Jesus dá testemunho de um Deus de Amor. ções. O tempo de Jesus termina com um fracasso. Mas
no próprio fracasso da Sua missão, Jesus conserva a Sua
esperança em Deus. Na hora da morte, recita a oração
do justo perseguido (Salmo 22), recapitulando assim toda
4. A esperança de Jesus a esperança do Antigo Testamento. A Sua morte revela
um homem que viveu até ao fim o abandàno de Deus,
Jesus viverá «até às últimas consequências» (Jo 13,1) na confiança e na esperança, à maneira dos justos que
este radical serviço de Deus e dos homens. E terá de investiram em Deus toda a sua vida. Nessa noite escura
o viver na fé e na esperança, rejeitado por todos, entre em que a morte O submerge, Jesus é todo Ele uma ofe
gue por um dos Seus, aparentemente abandonado por renda ao Pai, Mas a revelação não fica por aqui.
Pedro. Apesar do fracasso, a esperança de Jesus nunca
será desmentida. Esperará pela Sua ressurreição «no ter
ceiro dia», ou seja, no dia em que Deus há-de ressusci
tar todos os justos, esperando que, desta maneira, a Sua ifi. Reconhecer o Crucificado
obra venha a sobreviver, como o testemunham as pala
vras e os gestos da Ultima Ceia. Morreu, por isso, nu
De facto, o percurso de Jesus não pára na Sua mor
ma atitude de fé, como o justo que, abandonado de todos,
se entrega a Deus e d’Ele tudo espera, mau grado o si te, que é o triunfo dos Seus inimigos e mostra que Jesus
lêncio que O cerca. é o Justo fiel até áo fim. Esse caminho vai desembocar
na ressurreição. Ao grito de Jesus moribundo responde
- A morte de Jesus parece uma vitória dos Seus inimi Deus com a ressurreição, pela qual Jesus entra na gló
gos. Preso e interrogado, no decurso de um processo ria do Pai. Como foi recebida esta boa-nova da Páscoa?
desonesto, onde o direito judaico nem sequer é respei Está no cerne de que experiência? Para responder a es
tado, é entregue à autoridade romana como se fosse um tas perguntas, é preciso examinar, antes de mais, as «nar
agitador, e condenado ao suplício da cruz. As razões da- rativas das aparições» em que são 4adas as dimensões
das para a Sua morte são reveladoras. O Sinédrio julga essenciais da experiência pascal. Deve igualmente
que Ele merece a pena capital porque ousou falar con levantar-se o problema da historicidade dos factos que
tra o Templo e fazerSe igual a Deus; o motivo oficial nos são relatados.
da Sua condenação, gravado no letreiro da cruz, é, no
entanto, político: pretendeu ser rei no império de Cé
sar. E, desta maneira, Jesus é despojado até do sentido (7) Ver J. Sch}osser, Le Dieu de Jésus,
estudo exegético, Pa
da Sua própria morte. Queria morrer em Jerusalém, co- ris. Cerf, 1987, pp. 203-209.

30 31
1. As componentes da experiência pascal Um reconhecimento

As narrativas das aparições do Ressuscitado são bem - Este Jesus que aparece aos discípulos é, ao mesmo
diversas. S. Paulo evoca uma aparição «a mais de qui tempo, diferente d’Aquele que eles conheceram e,to
nhentos irmãos ao mesmo tempo» (iCor 15,6). No fim davia, continua o mesmo; o que é sublinhado pelos si
dos Evangelhos, temos várias narrativas. Não se trata iEempiulhes aparece: os vestígios dos
de relatos jornalísticos, mas de meditações sobre uma cravos, a fracção do pão. Estes pormenores não só que
experiência, e que se ocupam do esseniil. Quando re rem estabelecer uma relação de identidade entre Aque
cordamos acontecimentos que nos marcaram a vida, po le que morreu e Aquele que Se mostra vivo, como
demos enganar-nos sobre os pormenores, mas o sentido pretendem sublinhar que Aquele que ressuscitou é exac
profundo, o fundamental, conserva-se sempre e, algu tamente O que foi rejeitado por todos e como tal conde
mas vezes, com o tempo, ainda mais se aprofunda. As nado à morte. Euma maneira de dizer que o próprio
sim acontece com as narrativas das aparições de Cristo. Deus ratifica a obra de Jesus. Ressuscitando-ÓDis
Através da sua diversidade, podemos distinguir quatro revê o processo que O condnou, garantindo a vitória
aspectos fundamentais: de Jesus não só sobre a morte como sobre a injustiça
da Sua condenação. E toda a existência de Jesus que é,
• Uma revelação divina no fim e ao cabo, ratificada por Deus.
Todas as narrativas sublinham o carácter inesp1-
do do encontro com Jesus Ressuscitãdo, o que é uma
• Uma tarefa da fé
maneira de dizer que a iniciativa do encontro nada tem
a ver com os discípulos, mas parte de Jesus: aparece
A ressurreição de Jesus não foi imposta aos discípu
quando «todas as portas estão fechadas» ou vem juntar-
1os, foi algo que se ofereceu à sua livre decisão. Eles
-Se inesperadamente a dois discípulos no caminho de
reconheceram-n’O com os olhos da fé. A comunicação
Emaús. Várias vezes se diz que Ele «Se mostrou» (em
do Ressuscitado com os Seus situa-se a um nível radi
grego, ofté: iCor 15,3-8; Lc 24,34; Act 9,17;13,31;
calmente novo. As narrativas sublinham este aspecto de
26,16). Ora este vocábulo, que é uma alusão às teofa
muitas e variadas maneiras. Já não estamos perante o
nias (manifestações) de Deus no Antigo Testamento, quer
mesmo tipo de relato que fala de Jesus ao longo dos ca
dar a entender que as manifestações do Ressuscitado têm
minhos da Galileia. A partir de então, nada se opõe a
uma íntima relação com uma manifestação de Deus, tra
esta comunicação: nem o temor, nem as portas fecha
zem, digam irn, a Sua assinatura: Deus manifesta-
das. Mas também nada os obriga a ela: ela acontece na
-Se na glória (divindade) «no facto de Se identificar com
). O Res fé; os olhos vêem, mas não reconhecem imediatamen
o Crucificado, trazendo-O da morte à vida»(
8
te; a dúvida permanece. E mesmo quando são dados si
suscitado fica, a partir de então, habitado pela glória de
nais, como é o caso de Tomé, mesmo nessa altura, é
Deus (Rm 6,4).
necessária a adesão do coração (Lc 24,16; Jo 20,24-29;
(8) W. Kasper, Jésus le Christ, Paris, Cerf, 1976, pág. 211. 21,4; Mt 28, 16-17; Mc 16,11-14).
33
32
Uma experiência missionária
Os textos que se referem ao encontro com o Ressus Será a ressurreição de Jesus
citado são muito sóbrios, não usam o estilo das teofa um acontecimento histórico?
nias, como acontece, por exemplo com a narrativa da
Transfiguração, mas surgem como gestos de quem en Se a Ressurreição de Jesus é a Sua entrada no
via outrem em missão (Mc 16,7.15; Mt 28,7.18; Lc mundo de Deus, esta escapa à condição de aconte
24,49; Jo 20,17,21-23; Act 1,8). cimento histórico. E que o historiador não podé
E assim os discípulos podem verificar que a Palavra tar senão aquilo que é Imanente ao nosso mundo. No
de Jesus, sepultada com Cristo, deve surgir de novo com entanto, este mundo de Deus, que não se rege pelas
leis do nosso mundo, está em relação com ele, como
um testemunho autónomo. A missão é o sinal de que podemos ver pelas narrativas de aparições. Só que
Jesus está vivo. Aos discípulos compete ressuscitar-Lhe esta relação só com a fé se pode apreender.
a palavrã e anunciá-la ao mundo. Para exprimir esta transcendência do Ressusci
tado em relação ao mundo em que vivemos, o Novo
Testamento utiliza uma dupla linguagem: a da ressur
2. Vestígios históricos do Ressuscitado reição, que faz apelo ao esquema antes/depois (antes,
está morto; depois, está vivo); mas também ao da exal
Poderemos ir além do testemunho dos discípulos de tação, que recorre ao esquema em baixo/no alto
Jesus, os quais «viram» o Ressuscitado? Haverá porven (Jesus é exaltado, é elevado à glória de Deus). En
quanto a primeira destas linguagens sublinha a Iden
tura um «vestígio histórico» do acontecimento? O Res tidade da pessoa de Jesus, antes e após a morte (é
suscitado manifestou-Se aos discípulos, que acreditaram a mesma pessoa que morreu e agora está viva), a se
n’Ele, mas não Se manifestou ao mundo, que «não vol gunda sublinha a passagem a uma vida que não pode
tará a vê-l’O» (Jo 14,19-22). O nimulo vazio não é uma ser medida pelos mesmos parâmetros com que me
prova em favor da ressurreição; foi, isso sim, entendi dimos a vida que se deixou (a Sua vida de ressusci
tado é outra, radicalmente diferente daquela que era
do, a posteriori, como um sinal no qual a fé reconhece, a Sua neste mundo).
retrospectivamente, o facto pascal. O verdadeiro vestí A ressurreição de Cristo é sem dúvida um acon
gio histórico é o grupo dos discípulos, que testemunhou tecimento real e, neste sentido, é um facto histórico,
que Jesus tinha de facto ressuscitado. Com toda a razão pois diz respeito ao destino do homem histórico de
dirá Paulo que a Igreja é o Corpo de Cristo, a Sua pre Nazaré. Mas não se pode dizer que seja um aconte
cimento histórico no sentido de que, na Sua nova con
sença no mundo. dição — que transcende a história — é acessível
E este o facto que se pode assinalar, no qual se ins através dos vestígios deixados na História, vestígios
creve de uma maneira visível a acção de Deus que res esses que podem ser udos e decifrados pelos histo
suscita Jesus, Podemos explicitá-lo do seguinte modo: riadores. Pertencendo, desde então, ao mundo de
Deus, a Ressurreição escapa à ciência histórica e só
— Este acontecimento dá aos discípulos uma nova é acessível por uma relação estabelecida através da
vida, ressuscita-os, por assim dizer, ao juntá-los de no fé. O único vestígio histórico é este: a existência de
vo e ao arrancá-los às garras do desespero. Este regres uma comunidade que testemunha que Ele está vivo.
so acontece por obra e graça da ressurreição do Mestre.
34 35
A aventura de Jesus ressurge nas suas vidas. A ressur mos que evocavam o fim do mundo: o 3.° dia. Se Jesus
reição de Jesus fá-los passar da dúvida ao espanto e do ressuscitou, foi porque a força do Espírito surgiu no mun
espanto à fé. do para o levar ao seu termo. Jesus é o «primogénito»,
— O acontecimento pascal é uma experiência do per o mais velho de uma multidão de irmãos», o «primeiro
dão de Deus. Eles, que tinham abandonado Jesus, des de uma humanidade acabada» (Cl 1,18; Rm 8,24; ICor
cobrem que estão reconciliados com Ele e tornam-se 15,20-27,45-50). A Sua ressurreição inaugura a ressur
testemunhas da Sua misericórdia (Jo 20,19-23). As apa reição dos mortos. Eis a razão pela qual ela é o aconte
rições não são apenas uma identificação de Jesus, mas cimento salvador por excelência.
a experiência na própria vida deste perdão que caracte De onde se conclui que em Jesus se cumprem as Es
rizava Jesus na Sua atitude para com os pecadores. crituras (Lc 24,27 e 44). Só relacionando todos os fac
— O acontecimento pascal é, finalmente, fonte de tos da Escritura é que podemos descobrir, de uma vez
libertação. Os discípulos passam do desespero à espe por todas, que «tudo fora criado para Ele» (Co! 1,16).
rança, do medo ao júbilo, do temor ao testemunho. Quem N’Ele Deus «deu-nos a conhecer o mistério da Sua von
Se lhes manifesta é, sem dúvida, o Deus da Aliança, li tade, segundo o beneplácito que n’Ele de antemão esta
bertador do Seu povo: descobrem n’Ele o Deus salva belecera para ser realizado ao completarem-se os tempos:
dor já actuante na existência pré-pascal de Jesus, cuja reunir sob a chefia de Cristo todas as coisas no céu e
aventura prossegue neles e por eles, já que a missão de na terra» (Ef 1,9-10).
les consiste em fazer aquilo que Ele fez: curar os doen O que é atribuído a Jesus, investido na Sua qualida
tes (Act 3,6-8), ensinar, convidar à comunhão, partir de de «Filho de Deus em poder» (Rm 1 ,4) diz respeito
o pão (Act 2,42). a toda a humanidade. «Príncipe da vida» recebeu o Es
pírito, mas para d’Ele fazer os outros participarem (Jo
20,22). Encontramos aqui um dos aspectos importantes
IV. A mensagem pascal da experiência pascal: a ressurreição de Jesus manifesta-
-se na vida de um grupo ressuscitado, o que quer dizer
Os discípulos proclamam aquilo que experimentaram que há na ressurreição de Jesus um duplo movimento:
na Páscoa, preferindo obedecer a Deus a obedecer aos movimento para o Pai — Ele passa com todo o Seu ser
homens (Act 5,32). Estamos agora em condições de iden ao mundo de Deus e movimento para os Seus irmãos,

tificar o último elemento desta pregação: com a Páscoa para os fazer entrar neste mundo de Deus. Jësus, em
inaugurou-se um tempo novo. Que espécie de tempo? bora tenha entrado nesse mundo, continua, no entanto,
Os sinais indicadores essenciais são-nos dados por três com os Seus discípulos até ao fim dos tempos. (Mt
afirmações do Credo: 28,18-20).
1. O terceiro dia ou o tempo do Espírito
2. Subiu aos céus
Jesus ressuscitou porque chegou o «30 dia» ou seja,
porque começou a ressurreição geral dos mortos. Vi Nos escritos do Novo Testamento, a imagem da su
mos que a esperança de Jesus se tinha exprimido em ter- bida aos céus tem um duplo alcance teológico.

36 37
— Por um lado, exprime a ideia de uma vitória total discrição. Há uma profunda unidade no comportamen
de Cristo sobre todas as forças que se opõem a Deus to de Jesus antes e depois da Páscoa: antes, manifesta-
Esta ideia anda ligada à da descida aos infernos: na Sua -Se como servo, propõe sem impor, recusa qualquer
morte, Jesus venceu até ao fim a condição mortal. Os actuação espectacular; depois, conserva exactamente a
infernos representam o destino mais trágico, o abando mesma discrição: não confunde aqueles que O conde
no mais absoluto. Cristo traz a salvação a todos os ho naram à morte, refugiando-Se por assim dizer, na co
mens, seja qual for a aflição em que se encontrem. «A munidade; são os gestos evangélicos dos cristãos, como
descida aos infernos convida a reconhecer até que pon a partilha e a fracção do pão, que devem permitir que
to Jesus Cristo desceu nas profundezas da morte, ou se O reconheçam (Act 2,42).
).
ja, até que ponto a Sua ressurreição foi vitoriosa»(
9
Nenhuma das potestades que pretendem dominar o uni
verso resiste ao Seu avanço vitorioso; nada poderá 3. Há-de vir julgar os vivos e os mortos
«separar-nos do amor de Deus manifestado em Cristo
Jesus, Nosso Senhor» (Rm 8, 38-39; Act 2,24; Rm 10,6; A Páscoa acontece no silêncio e inaugura entre os
Ef 4,8-9; lPd 3,18-20). Morte e ressurreição são coi primeiros cristãos uma espera, por vezes ímpaciente,
sas inseparáveis. apoiada na promessa de uma vinda do Senhor. Esta vinda
— Por outro lado, a subida aos céus inaugura o tem (não se trata de um «regresso»!) ou esta «parusia» (ter
po da Igreja. Demorando, entre a Ressurreição e a As mo profano que designava a visita de um rei a uma das
censão, um lapso de tempo de quarenta dias, durante suas cidades) é evocada de variadas maneiras (lo). O mo
os quais Jesus instruiu os Seus discípulos, os Actos que delo bíblico implícito é o da manifestação da glória de
rem responder a uma pergunta essencial dos cristãos: Deus no Sinai (Ex 19). No fim dos tempos, completar-
como pode explicar-se que, apesar da vitória de Jesus, -se-ão os acontecimentos iniciados no Exodo: Cristo virá
o mundo continue por mudar? A narrativa da Ascensão buscar o Seu povo e levá-lo-á ao Pai. «Assim estaremos
esclarece esta pergunta. E preciso lê-la à luz de 2Rs 2, sempre com o Senhor» (lTs 4,17). A salvação tem uma
9-12, em que o profeta Elias diz ao seu discípulo Eh- dimensão colectiva.
seu: se tu me vires quando eu for separado de ti, terás A Páscoa inaugura um tempo novo e contém uma
o meu espfrito e a minha força para prosseguires a mi promessa de salvação. E por isso que não convém limi
nha missão. O mesmo acontece com a Ascensão: Jesus tar a salvação à dimensão individual. O tempo que se
deixa os Seus, mas Lucas menciona três vezes que eles segue à Páscoa não é um tempo vazio: é um tempo em
O vêem. A lição é evidente: uma vez que viram Jesus que, apesar do silêncio e das não evidências de Deus,
partir têmo sinal anunciador de que receberão o Seu se constrói a história colectiva da salvação dos homens.
Espírito. E o tempo da Igreja que se inaugura. E verdade que a Parusia realizará o desígnio do Cria
isto realça um outro aspecto do mistério pascal: a
(lO) Ver Ch. Perrot, «A vinda do Senhor», em Le Retour du

J. Doré, no artigo «Descida aos infernos» do Dictionnaire


(9) Christ, obra colectiva, Publicação das Fac. Saint-Louis, Bruxelas,
des Religions, op. cit., p. 393. 1983, pp. 17-50.

38 39
dor mas também se requer que a Promessa inaugurada atravessar a Tradição viva segundo uma ordem crono
com a Ressurreição de Jesus se verificou à escala do lógica. A primeira etapa põe-nos, sobretudo, em con
mundo criado para que, finalmente, se acendam no mun tacto estreito com a Escritura. A segunda situar-nos-á
do a luz da Sua vida e a verdade da Sua vitória. mais ao nível da Igreja dos Padres, que elaboraram a
Teremos mesmo de imaginar, no fim de tudo, um tradição dogmática da mesma. Ao passo que a terceira
juízo, que manifeste de uma forma clara, a omnipotên nos fará descobrir a teologia medieval e da época da Re
cia de Deus? (11) Há duas perspectivas. Segundo S. João, forma e conduzir-nos-á até aos nossos dias.
o juízo da História faz-se desde já (Jo 3,19) na recusa
ou na aceitação da luz de Cristo. Mas outros textos
situam-no no fim dos tempos. Estas duas posições não
são contraditórias: a Parusia revelará a verdade do juí
zo já em acção desde agora. Releia-se Mt 5,21-46: a pa
rábola chamada do juízo final exprime a identidade entre
a causa do homem e a causa do Messias de Deus. (12)

*
* *

No começo desta busca, fizemos notar que toda e


qualquer reflexão cristológica devia ter três dimensões:
histórica, soteriológica e ontológica. A primeira parte
deste percurso situou-nos na fonte da fé em Jesus Cris
to, Filho de Deus. Teremos de prosseguir a nossa refle
xão em duas direcções. Por um lado, perguntar como
é que a fé em Jesus, nascida historicamente da experiên
cia pascal dos discípulos, foi sendo explicitada até re
conhecer em Jesus o Filho eterno do Pai (dimensão
ontológica). Por outro lado, perguntar como foi com
preendida a dimensão soteriológica deste acontecimen
to, isto é, a percepção de Jesus como Salvador do mundo.
A lógica exigirá que a reflexão sobre Jesus Salvador
precedesse a outra sobre Jesus Filho de Deus. Escolhen
do a ordem inversa, fazemos uma opção pedagógica:
(li) Ver Ch. Duquoc, Christologie Ii. Le Messie, Paris, Cerf,

1972, pp. 281-317.


(12) Ibidem,
p. 317.

40 41
II

IMAGEM (OU ÍCONE)


DO DEUS INVISIVEL
A fé em Cristo, Filho de Deus
Deus que disse que das trevas resplandecesse a luz,
é que brilhou nos nossos corações para que
irradiássemos o conhecimento da glória de Deus.
que se reflecte na face de Cristo.
2Cor 4,6
No decurso desta nova etapa, que nos fará atraves
sar toda a história do Cristianismo, tentaremos perce
ber como foi descoberta e expressa a identidade de Jesus,
confessado como Filho Eterno de Deus, Seu Pai, e co
mo esta confissão de fé, transmitida de geração em ge
ração, chegou até nós. Esta segunda parte vai dividir-se
em três secções:

1. A fé da Igreja: A Igreja elaborou a sua fé na di


vindade de Jesus de uma maneira.progressiva. Apoiada
na experiência pascal, esta elaboração tem as suas raí
zes nessa mesma experiência e culmina nas definições
dos primeiros Concílios ecuménicos e será comentada
pela teologia medieval.

2. Uma tradição contestada: A expressão eclesial da


fé foi sendo contestada no decurso dos séculos. Retere
mos dois momentos importantes desta contestação: a Re
forma e o Racionalismo, cuja influência ainda hoje se
exerce no Ocidente.

3. Aberturas actuais: Numa última secção, tentare


mos discernir os caminhos actuais da cristologia, as suas
aberturas a novas posições, as formas que reveste hoje
o testemunho eclesial a respeito de Jesus, Filho de Deus.
45
Esta retrospectiva, que, algumas vezes, parecerá ár 1. De Jerusalém a Niceia
dua, não pode ser evitada. E indispensável recuperar esta
memória da Igreja, Descobriremos, então, que a fé não A — O TESTEMUNHO APOSTÓLICO
é um sistema de ideias anónimas, mas uma realidade ela O testemunho apostólico, conforme dissemos já, as
borada na confrontação, de rosto descoberto, em que se sumiu formas diversas, conforme a situação das comu
põem em jogo pessoas e culturas, e num diálogo cons nidades. Foi-se afeiçoando a partir da meditação das
tante entre a Palavra de Deus e a inteligência humana, Escrituras, tendo como referência a vida de Jesus, sem
que sempre tentou e tenta recolher daquela a riqueza de pre em ligação com a vida da Igreja e a sua missão. Não
que vive e que comunica aos outros. Só que a memória queremos ser exaustivos. Mas não queremos deixar de
não basta, A segunda secção mostrará como a aparição evocar dois pontos que a Igreja precisou, muito cedo,
de desafios novos, inéditos na época do racionalismo, de clarificar: a preexistência de Jesus e a Sua designa
obrigou a fé a novos esforços de inteligência. O nosso ção como Filho de Deus.
propósito não é, por isso, «fazer história», mas preparar-
-nos para compreender certas interrogações contempo
râneas que nos são feitas por esta história. A preexistência
A preexistência exprime a transcendncia de Jesus
em relação à História. «Preexistir» significa, etimologi
1. A fé da Igreja camente, existir antes. Esta noção sublinha a ideia de
que Jesus não tem a Sua única fonte de existência na his
tória, mas que a transcende não só pelo facto de ter sido
Desde os começos da Igreja(’) que a reflexão sobre elevado à direita do Pai, como pelo facto da Sua nature
o mistério de Cristo se foi fazendo em referência às tra za. Esta preexistência é afirmada de várias maneiras, no
dições culturais e religiosas das diferentes comunidades Novo Testamento, por S. Paulo, por exemplo, quando
que a compunham. A existência de quatro Evangelhos, afirma de Jesus que Ele é «o Filho bem-amado do Pai»,
que não se podem reduzir a um só, é de tudo isto a ilus a Imagem ou Icone do Deus invisível, «em quem por
tração mais clara. Não queremos apresentar o desenvol quem e para quem» todas as coisas foram criadas (Cl
vimento integral que levou da fé pascal inicial à fé 1,13-20); mas também por S. João, por exemplo no Pró
trinitária; mas será muito útil propor alguns pontos in logo do seu Evangelho (Jo 1,1-18).
dicadores, que sejam a garantia de um percurso balisa Entre os dados que permitiram chegar a estas prodi
do, que nos leve de Jerusalém a Niceia e, depois, de giosas afirmações, está, antes de mais, a experiência pas
Niceia a Calcedónia. cal. Esta experiência é a experiência da salvação. Se em
Jesus se realiza o desígnio de Deus, não é porque Ele
Se encontra em pessoa na origem deste desígnio? Entre
(1) Fresco sugestivo dos primeiros movimentos cristãos é o que se começar e acabar, entre o alfa e o omega, deve existir
propõe em F. Vouga, A 1 ‘aube du christianisme, une surprenante di
alguma correspondência. Quando os pagãos, adorado-
versité, Aubonne, Suíça, edit., du Moulin, 1986.

46 47
res que eram dos poderes celestes, descobrem em Jesus servado a Jesus. No Antigo Testamento, a qualidade de
o caminho para Deus, compreendem que este Jesus está Filho de Deus é reconhecida, por vezes, aos anjos e,
acima dos seres invisíveis que eles adoravam e que lhes sobretudo, ao povo de Israel (Ex 4,22; Os 11,1) e ao
serviam, até então, de mediadores para chegarem a Deus. rei que incarna o mistério deste povo; depois, ao Mes
Um outro dado é a vida de Jesus. Ao reler esta vida sias (Sl2,7, Act 9,20 e 22). Jesus nunca reivindicou para
de Jesus à luz da Páscoa, os discípulos compreenderam Si este título. Mas não podemos deixar de ser tocados
que a Sua pretensão de Se situar acima da Lei e do Tem pela afinidade que existe entre o anúncio do «Reino» de
plo, como representante do Deus único que perdoa, exi Deus, até ao cerne da Sua pregação, e este título de Fi
gia, naturalmente, identidade divina. A autoridade de lho. Faltava compreender que o Rei Messias é «Filho»
Jesus antes da Páscoa manifesta que já então actuava num sentido diferente dos outros reis porque o reino cujo
n’Ele o poder de Deus. centro Ele ocupa se identifica com o reino decisivo de
Finalmente, um último dado, que permitia aos dis Deus. Já não se trata de qualquer reino terrestre» (2).
cípulos chegar à ideia da preexistência: o Antigo Testa Esta particularidade da filiação de Jesus enriqueceu-
mento. A meditação do Antigo Testamento permitiu- -se no decurso do acompanhamento dos discípulos pelo
-lhes descobrir uma linguagem apropriada para expri seu Mestre, cuja vida lhes testemunhava em todos os por
mir esta transcendência de Jesus. Pensemos na figura menores uma relação privilegiada com Deus. As narra
do «Filho do Homem» e, sobretudo, na da «Sabedoria» tivas evangélicas são, neste ponto, sem ambiguidades:
apresentada nos grandes Textos Sapienciais como uma situam Jesus muito claramente entre os anjos e o Pai (Mc
personagem que goza da intimidade de Deus e preside 13,32) e notam como algo de muito singular Jesus cha
aos destinos do mundo. Os discípulos não tiveram grande mar a Deus «Abba» (meu Pai !), coisa que nenhum ju
dificuldade em identificar Jesus com estas figuras e em deu piedoso ousaria fazer, nessa altura. Seria preciso
compreendê-l’O a partir delas. reler também a bênção de Mt 11,25-27: os discípulos
percebem que existe entre Deus e Jesus uma relação úni
A filiação divina ca, e que, ensinando-os a chamar por Deus nos mesmos
termos em que Ele O chama, lhes revela que também
Como se chegou à designação de Jesus como Filho eles participam desta relação radicalmente nova. Têm
de Deus? Nos Actos, este título aplicado a Jesus ressus tal consciência desta oração que a atribuem ao Espírito
citado aparece en simultâneo com outros títulos igual Santo (GI 4,6; Rm 8,15).
mente prestigiantes: «Senhor» (2,36,10,36), «Príncipe O estudo dos dois pontos que acabamos de esboçar
da Vida» (3,15;5,31), «Salvador» (5,31 ;13,23), «Profe mostra como os discípulos chegaram à confissão do ca
ta» (3,22), «Santo» e «Justo» (3,14). Paulo, pelo contrá rácter único e transcendente da relação de Jesus com
rio e, depois, os Evangelhos, dão ao título «Filho de Deus. Ele não é somente o justo e exaltado à direita de
Deus» uma importância considerável; a ponto de poder Deus, mas é o Filho que, desde toda a eternidade, vive
designar, em João, o próprio mistério de Jesus na Sua a própria vida de Deus. Mais que o representante do povo
relação com Deus.
Lembremos, antes de mais, que este título não é re (2) E. Morin, L ‘événement Jésus, Paris, Cerf. 1978, p. 145.

48 49
eleito e da humanidade diante de Deus, Ele é o próprio Contentar-nos-emos com apontar três: o adopcionis
dom de Deus ao Seu povo e à humanidade. «Na plenitu mo, o modalismo e o patripassionismo. O adopcionis
de do tempo, Deus enviou o Seu Filho, nascido de uma mo concebe Jesus como um homem adoptado por Deus,
mulher» (GI 4,4). «Ele que era de condição divina não no baptismo ou aquando da Sua Ressurreição. O moda
reivindicou o direito de ser equiparado a Deus, mas lismo, ao contrário, vê em Jesus uma simples forma na
despojou-Se a Si mesmo assumindo a condição de ser qual o Pai Se manifesta: Jesus não passaria de um modo
vo, tornando-Se semelhante aos homens» (FI 2,6-7). de ser do Pai. O patripassionismo entende que não teria
sido Jesus mas o Pai a sofrer a Paixão na cruz.
B — CULTURA JUDAICA E CULTURA GREGA
Confrontação com o helenismo
O testemunho apostólico é único, já que repousa so
bre uma experiência privilegiada e intransmissível. Com Uma segunda confrontação vai produzir-se no con
o período dos «Padres da Igreja», inaugura-se o tempo tacto com o helenismo pagão e terá uma dureza invul
daqueles que não viram. A partir de então, ninguém po gar. Ao contrário do Judeu, que concebe a intervenção
derá contentar-se com proclamar a mensagem. Ao está de Deus na História de maneira concreta através de in
dio da pregação pura sucede-se o da «argumentação e termediários que Deus escolheu (os Patriarcas, Moisés,
mesmo da demonstração: Ele foi visto e nós podemos os Profetas, etc.), o Grego, que tem uma concepção hie
acreditar porque. » (3). Para testemunharem o mistério
. .
rarquizada do mundo (o mundo material é uma emana
cristão, os cristãos dos séculos II e III terão de argu ção degradada do mundo imaterial e invisível), estabelece
mentar numa dupla frente (a do judaísmo e a do hele uma nítida diferença por uma figura mais abstracta, que
nismo), os dois meios em que se desenvolvem as jovens se chama Lógos. Noção filosófica, usada pelos pensa-
Igrejas. dores gregos, será largamente usada a partir do Evan
gelho de João. Precisamos de medir bem toda a distância
Contacto com o judaísmo que existe entre este Lógos grego, Razão do Universo
e a Palavra de Deus, tal qual a concebe o Judaísmo, uma
Uma primeira confrontação foi a que se produziu en Palavra que conduz a História até incarnar nela. Para
tre cristãos que tinham vindo do judaísmo e cristãos a sabedoria grega, que concebe a carne como a prisão
oriundos do mundo pagão. Levantou-se, de facto, grande da alma, a incarnação é uma coisa difícil de conceber.
polémica pelo facto de as comunidades cristãs continua E neste contexto grego que se desenvolve um esforço
rem a viver segundo a Lei judaica. Que significado tem novo para pensar a unidade de Jesus com Deus.
esta referência? Os que vêm do judaísmo tentarão inter Mais afastados da sensibilidade bíblica, os cristãos
pretar o mistério do Ressuscitado a partir de figuras e
de cultura grega lançarão’ mão de outras esquemas de
mediações bíblicas. Será neste contexto que aparecerão explicação para exprimirem a unidade de Jesus com
alguns desvios. Deus. E muito cedo aparecerão os desvios. O gnosti
(3) J. Doré, As cristologias patrísticas e conciliares», em Initia cismo, de inspiração grega, tem uma concepção dualis
tion à la pratique dela théologie, tomo 2, Paris, Cerf. 1982, p. 194. ta do mundo (oposição ente matéria-má e espfrito-bom).
50 51
«Homem-Deus» (teantropos), expressão que irá
manter-se, na terminologia teológica. Desenvolveu
uma teoria completa sobre a preexistência da alma hu
Algumas grandes figuras mana de Cristo, procurando ligar a doutrina do Lógos
da cristologia antiga à doutrina do Jesus Incarnado.

INÁCIO DE ANTIOQUIA. Condenado às feras no ATANÁSIO (298-373). Patriarca de Alexandria,


reinado de Trajano (98-117), Inácio, Bispo de Antio tornar-se-á um ardente defensor da fé de Niceia con
quia, de quem nos ficaram Cartas, insistiu na novida tra os erros de Ano, cujos partidários conseguirão, por
de cristã, afirmando, face ao judaísmo, a realidade da cinco vezes, exilar o patriarca.
humanidade de Cristo.
CIRILO DE ALEXANDRIA (por volta de 380-444).
JUSTINO (por volta de 100-164/165). Filósofo ori Patriarca de Alexandria, vai defender com toda a ener
ginário da Palestina, mas domiciliado em Roma, este gia a fé católica contra Nestório. Vai ser o animador
apologista deixou um Diálogo com Trifão, que tem do concílio de Efeso, no qual a sua teologia triunfará.
como interlocutores os Judeus, bem como uma du
pla Apologia, dirigida ao imperador romano em defe LEÃO MAGNO (+ 461). Bispo de Roma (Papa) a
sa dos cristãos. Procurou conciliar a filosofia pagã e partir de 440, desempenhou um papel decisivo nas
o cristianismo, afirmando, para isso, que o Logos di controvérsias cristológicas, nos tempos que se segui
vino só na pessoa de Cristo apareceu plenamente. ram ao Concílio de Efeso. A sua Carta a Flaviano, pa
triarca de Constantinopla, foi aceite como norma de
IRENEU (por volta de 130-202). Originário da Ásia fé (449), ou seja, como expressão autêntica da fé ca
Menor, onde conheceu S. Policarpo e, através des tólica.
te, o próprio S. João, foi, mais tarde, Bispo de Lião.
O seu Adversus haereses é dirigido contra os Gnós
ticos. Nele, tenta descobrir, de uma maneira espe
culativa, a verdadeira relação entre o Filho e o Pai e Trata-se de um movimento religioso que propõe a sal
apresenta o Filho como Aquele que recapitula toda a vação através do conhecimento: para se salvar é preci
criação (Ver Anexo II). so evadir-se deste mundo mau. Um pensamento destes
contraria frontalmente a salvação cristã, inaugurada pela
TERTULIANO (155-220). Nascido em Cartago, é
o primeiro escritor cristão de língua latina. Escreveu
vinda de Deus na carne e que se completa na ressurrei
numerosas obras contra toda a espécie de adversá ção do corpo. Para os gnósticos, Cristo ter-Se-ia limi
rios. Na sua cristologia, dá realce especial — e isto tado a assumir a aparência de carne, o que levou a que
contra os docetas — ao carácter real e verdadeiro da a sua posição fosse qualificada de docetismo, do verbo
carne humana de Cristo e da ressurreição do corpo latino «docere», que quer dizer ensinar ou parecer.
resgatado por Cristo. A gnose encontrará um adversário terrível em S. Ire
neu de Lião. Se Cristo não assumiu uma carne verda
ORÍGENES (por volta de 185-252/253). Originá
rio de Alexandria, consagrou a vida ao estudo cientí
deira, nós não fomos salvos, porque só foi salvo o que
fico da Escritura. Foi o primeiro a utilizar a expressão foi assumido por Ele. «O Verbo de Deus fez-Se o que
53
52
nós somos, escreve ele no seu Tratado contra as here C — A FÉ DE NICEIA (325)
sias, para que nós fôssemos o que Ele próprio é» (Con
tra as Heresias, V. Prólogo). A crise rebentou em Alexandria. Ário, um sacerdo
te de Alexandria, propõe uma doutrina bastante simples,
segundo a qual era impossível que Cristo fosse Deus.
O esforço de Ano pode ser considerado como uma ten
Duas posições contrárias sobre o Mistério de Cristo tativa de helenizar o cristianismo: Deus, segundo ele,
não pode comunicar-Se ao mundo de uma forma autên
Mas Santo Ireneu não trava sozinho esta luta da fé. tica. Por isso mesmo o Filho não pode ser considerado
A sua argumentação será retomada constantemente pe como Deus que toma carne humana. E uma criatura hu
los Padres da Igreja. Mas, depois de Ireneu e para além mana, criada por Deus, que, desde o momento em que
dele, sobretudo no século IV, o debate cristológico vai é criada, não passa de uma substância criada. Por isso
conhecer ainda outros progressos. Vão surgir então duas Ano afirma que «houve um tempo em que Deus ainda
posições contrárias sobre o conhecimento do mistério não era Pai; depois é que Se tornou Pai. O Filho nem
de Cristo, posições essas que se vão desenvolver, uma sempre foi Filho (...) O próprio Verbo de Deus foi criado
em Alexandria e outra em Antioquia. do nada». Uma tal concepção põe em causa de uma for
ma radical a salvação cristã.
Em Alexandria, para apresentar a unidade de Cris
Reunidos em Niceia, lugar de residência de Verão

to com Deus, considera-se o mistério de Cristo a partir


do Imperador Constantino, 318 Bispos orientais vão res
da Sua origem divina, o Verbo, embora se corra o risco
ponder ao desafio ariano e propor uma definição da fé
de atenuar, senão de esquecer, a Sua realidade humana
elaborada a partir de um credo já existente. Adoptaram
(perspectiva «Verbo-carne»).
esse credo, ao qual acrescentaram algumas fórmulas des
—Em Antioquia, pelo contrário, põe-se a tónica na tinadas a suprimir a ambiguidade que surgira, ligada a
humanidade de Jesus. Esta cristologia do «Homem- certas passagens bíblicas, ao longo das controvérsias.
-Verbo», que privilegia a autenticidade humana de Je Eis o referido texto:
sus, não está suficientemente preparada para dar conta
da Sua união com Deus e da Sua divindade. Cremos em um só Deus-Pai, todo-poderoso, criador
O problema fundamental posto por estas duas posi de todas as coisas, visíveis e invisíveis.
ções contrárias é o da vinda de Deus à história dos ho E em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho de Deus,
único gerado do Pai,
mens para partilhar plenamente a condição carnal da
humanidade. Como é possível afirmar, a um tempo, a isto é, da substância do Pai,
transcendência de Deus em relação ao mundo, e a Sua Deus de Deus, luz de luz, Deus verdadeiro de Dus
verdadeiro,
imanênciana história, tal qual acontece pelo Verbo fei
to carne? E a crise ariana que vai obrigar a Igreja a pre gerado não criado, consubstancial ao Pai
cisar a sua linguagem a fim de salvaguardar uma fé (também se pode traduzir a palavra grega homoús
ameaçada pelo racionalismo grego. sios por «da mesma natureza»)

54 55
por quem todas as coisas foram feitas no céu absoluta de Deus em relação ao mundo, mas mantendo,
e na terra, em todo o caso, a compatibilidade desta transcendência
que por nós, os homens, e pela nossa salvação com a sua comunicação absoluta aos homens em Jesus
desceu e Se fez carne, tornou-Se homem, Cristo.
sofreu, ressuscitou ao terceiro dia,
e subiu aos céus, de onde virá julgar os vivos e os
mortos. 2. Os Concilios cristológicos
E no Espfrito Santo.
Não se deve limitar o trabalho de Niceia à questão
Sem pretendermos separar do resto o contributo deste cristológica. Mas nem por isso ela deixa de ser essen
Concilio, achamos importante reter alguns pontos fun cial. Na sequência do Concilio, desenvolveu-se, na Igre
damentais: ja, uma intensa reflexão sobre Deus e o conhecimento
que podemos ter d’Ele, sobre o estatuto trinitário do Es
A linguagem da Escritura, que exprime a salvação pírito Santo, etc. Sobre a pessoa de Cristo, restavam em
cristã sob a forma de relato das intervenções de Deus suspenso, depois de Niceia, dois pontos importantes:
na história dos homens revela-se insuficiente para ex
primir o dom da fé. Teve, por isso, de integrar vocábu • Se Jesus é Deus, como salvaguardar integralmen
los técnicos pedidos de empréstimos à cultura grega e te a Sua humanidade?
explicitar-se através de um «ou sei a» (4). • Como se conjugam n’Ele, sem se exclufrem, a rea
lidade divina e a realidade humana do Seu ser?
• Os Padres do Concilio completaram a linguagem
descritiva da Escritura acrescentando-lhe a linguagem
Sobre estas questões, Antioquia e Alexandria tinham
ontológica. Fixaram e basearam o que Deus fez por nós
visões diferentes, conforme vimos atrás. Por causa desta
por e em Jesus Cristo naquilo que Ele é em Si mesmo.
diferença de perspectiva irá ressurgir a questão cristo
Por outras palavras, na «relação ontológica» que liga o
lógica. Apolinário de Laodiceia assume a defesa da úni
Pai com o Filho. Desta maneira se salvaguarda a trans
dade de Cristo, recusando, porém, que Ele tenha urna
cendência de Deus em relação à história.
alma humana: «A natureza incarnada do Verbo Divino
• Os Padres conciliares quiseram, de uma vez por é uma só», proclamará ele. Irá ser denunciado por San
todas, face à ameaça ariana, afirmar, de forma clara, to Atanásio, no Concilio de Alexandria, (362) e conde
que Jesus, esse Homem que sofreu sob o poder de Pôn nado pelo Papa Dâmaso, em 377.
cios Pilatos, por nós e pela nossa salvação, faz parte do
próprio ser de.Deus, o que é expresso pela palavra «con CONCÍLIO DE ÉFESO (431)
substancial». Sublinham, déste modo, a transcendência
Da tendência de Antioquia (homem/Verbo), vai nas
(4) CÍ.B. Sesboüé, Jésus-Christ dans Ia tradition de 1 ‘Église, Pa cer uma outra posição radical por volta dos anos 428-429,
ris, Desclée, 1982, pp. 97-98. com Nestório, novo Patriarca de Constantinopla, que re
56 57
cusa dar a Maria o título de «Mãe de Deus» (teotókos).
Para Nestório, Maria não é «nem mãe apenas do homem,
nem mãe de Deus; é mais propriamente mãe de Cristo, Definição de Calcedónia
isto é, mãe do homem em quem Deus habita». Para ele, (Ler o texto segundo a ordem dos números)
o ser de Cristo não é verdadeiramente uno: se Ele é ho
mem, deve ser então uma pessoa humana; não pode, por Segundo os ensinamentos dos Padres da Igreja, confessamos e ensinamos unanimemente
isso, ser uma pessoa divina: a Sua humanidade é posta
em relação com o Verbo por uma graça particular, Não 1 um só e mesmo Filho,
chegando a pensar na unidade da humanidade e da di Nosso Senhor Jesus Cristo

vindade em Cristo, Nestório introduz um terceiro ele 2 o mesmo


3 perfeito em dMndade o mesmo 4 perfeito em humanidade
mento, ou seja, uma graça particular, encarregada de 5 verdadeiramente Deus e o mesmo 6 verdadeiramente homem
«negociar» esta unidade. (constituido) por uma
Será Cirilo de Alexandria que se tornará, face a Nes alma raclonai
e um corpo consubstancial
tório, o paladino da fé: em Cristo, não é o Verbo que
a nós
assume o homem, mas é o Verbo em pessoa que é ho
7 consubstanclal ao Pai 8 segundo a humanidade,
mem; é o próprio Deus que é encontrado. O Concilio segundo a divindade o mesmo em tudo semelhante a nós,
de Efeso (431), reunido para acabar com estas discus excepto rio pecado
sões que ameaçavam a unidade do império, não produ 9 gerado do Pai 10 mas nos últimos dias,
ziu nenhuma nova definição. Reforçou, porém, com a antes de todos os séculos, para nós e para a nossa
sua autoridade, certos escritos de Cirilo, condenando e segundo a divindade salvação gerado da Virgem
Maria, segundo a humanidade
depondo Nestório. Foi o triunfo da teologia de Alexan 11 um só e mesmo Criato
dria: em Jesus, o Verbo tornou-Se verdadeiramente ho Filho, Senhor, Monogénlo ( = Único)
reconhecido em duas naturezas
mem, e Deus aproximou-Se autenticamente dos homens.
12 sem confusão nem mudança 13 sem divisão nem separação

CONCÍLIO DE CALCEDÓNIA (451) 14 não sendo a diferença 15 e juntando-se numa


das naturezas suprimida só pessoa e numa só
pela união; mas, pelo contrário, hipostase. não (um ser)
Apesar do pacto de unidáde assinado pelas duas par
ficando salvaguardadas partido ou dividido
tes, Antioquenos e Alexandrinos continuaram a opor- cada uma das duas naturezas em duas pessoas
-se entre si. Por volta de 448-449, um monge mais
teimoso, Eutiques, retomou, sem discernimento, certas 16 mas um só e mesmo Filho,
fórmulas de Cirilo e começou a defender que, após a Monógeno. Deus, Verbo. Senhor.
união da humanidade com a divindade, apenas se man Jesus Cristo
tém em Jesus a natureza divina. O problema que se pu
como os profetas, outrora, no-lo disseram acerca d’Ele,
nha era real: Se Jesus é Deus, como pretender que Ele
como Ele próprio, Jesus Crlsto, no-lo ensinou,
seja ainda um homem autêntico? Se Lhe reduzimos a como o simbolo dos Padres da Igreja no-lo deu a conhecer.
humanidade, comprometemos toda a mensagem cristã:

58 59
Deus não é realmente o «Deus connosco». Para salva
guardar a unidade da fé, o Papa Leão escreveu a famo só e mesma pessoa. Por outras palavras, toda a história
sa Carta a Flaviano, patriarca de Constantinopla, na qual humana de Jesus, incluindo a Sua morte, tem por agen
reafirma os grandes dados da cristologia. te o Filho Eterno. Na cruz, quem morre é realmente «um
Em 451, reúne-se um novo concilio, perto de Cons da Trindade» (Unus de trinitatepassus est, conforme afir
tantinopla, em Calcedónia, para realçar um novo enun mam os monges chitas dessa época). O que quer dizer
ciado da fé. A definição de Calcedónia é um modelo de que a incarnação de Deus não foi representação.
equilíbrio, como se pode notar pela disposição do texto
que acrescentamos em local próprio. Nele se afirma cla TERCEIRO CONCÍLIO
ramente a unidade de Cristo («um só e mesmo»), mas DE CONSTANTINOPLA (680-68 1)
insiste-se igualmente na distinção das naturezas, ou se
ja, na autentidade da divindade e.da humanidade de Cris As querelas, porém, não tinham acabado. Em Ale
to. Este texto continua a ser uma referência fundamental xandria, alguns recusaram os Concílios precedentes e
para todas as Igrejas, desde a ortodoxa, à católica e à começaram a professar que em Cristo não havia senão
uma natureza, a natureza divina: é o monofisismo. Por
protestante; isto, apesar de ter, de facto, certos limites.
Com efeito, ao insistir «exclusivamente na constituição espfrito reconciliador, certos teólogos orientais puseram-
íntima do sujeito divino-humano», conforme escreve W. -se então a proclamar que em Cristo só havia uma von
Kasper, ele «separa este problema de todo o conjunto tade, a vontade divina: é o monotelismo. Mas, ao recusar
do destino e da história de Jesus», e em particular da a Cristo a vontade divina, estes últimos punham em causa
relação que Ele tem com o «Seu Pai».( a autenticidade humana de Jesus, reduzida a um instru
)
5 mento passivo da Sua natureza divina. Um novo Concí
lio ecuménico, reunido em 680-68 1 (Constantinopla 111),
SEGUNDO CONCÍLIO
DE CONSTANTINOPLA (553) reafirma o dado de Calcedónia, mas alargando-o até às
vontades. «O mesmo e único Cristo tem uma vontade
Com o Concilio de Calcedónia, a cristologia dogmá divina e humana, que concorre em conjunto para a sal
tica atinge o auge. Faltava garantir a estabilidade, amea vação do género humano». Ao afirmar a liberdade hu
çada pelos Alexandrinos, que procuravam, a todo o mana de Jesus, o Concílio quer sublinhar que a nossa
preço, conciliar a definição de Calcedónia com as fór salvação, fruto da acção de Deus, é levada a cabo na
mulas de Cirilo. Convocou-se um Concflio, em 553 liberdade humana de Jesus e através dela.
(Constantinopla II), para dar uma interpretação autori Que é que está em jogo em todos estes debates? Os
zada das formulações de 451. Este Concilio reafirma com Concílios sempre tiveram a preocupação de definir com
vigor a unidade das naturezas na pessoa concreta de Je exactidão a identidade de Jesus: Ele é verdadeiramente
sus: o Filho eterno de Deus e o homem Jesus são uma Filho eterno de Deus (Niceia) e por Ele Deus tornou-Se
autenticamente «Deus connosco» (Efeso). Se há alguma
(5) W. Kasper.
Jésus le C’hrist, Paris, Cerf, 1976, pp. 356-357. diferença radical a manter entre Deus e a humanidade,
Para o texto da carta de Flaviano, ver P. Th. Camelot, Ephèse
cédoine, Paris, Orante, 1962, pp. 216-223.
et Chal ela não se opõe, em Deus, à comunicação com o ho
mem: Ele é verdadeiramente Deus e autenticamente ho
60
61
mem (Calcedónia). Na vida ena morte de Jesus, é Deus debates contemporâneos, precisamos de evocar ainda
em pessoa que actua (Constantinopla II) e a salvação que dois momentos que marcaram de forma decisiva a con
nos é oferecida n’Ele e por Ele, envolve também e ple frontação sobre o mistério de Cristo: a Reforma e o sé
namente a sua liberdade humana (Constantinopla III). culo das Luzes.
As duas contestações não são, porém, idênticas. A
*
* * Reforma, por exemplo, nunca rejeitou a fé cristã; quis
apenas renová-la. Quanto ao Século das Luzes, contes
Estes debates mostram até que ponto os Padres da tou toda e qualquer autoridade que não fosse a sua, a
Igreja tiveram o cuidado de exprimir a fé utilizando ex começar pela autoridade da fé. Estas contestações vão
pressões da sua própria cultura. A sua busca, porém, inaugurar os tempos modernos, nos quais lança raízes
foi sempre guiada pelo acolhimento do dado fundamen o nosso século. Percorrendo estes dois séculos, podere
tal da fé: tratou-se, para eles, de comunicar o dom da mos medir todo o esforço que uma verdadeira compreen
salvação, oferecido por Deus nesta singular figura de são da fé exige do crente.
Jesus de Nazaré, «crucificado por nós sob Pôncio
Pilatos».
Todavia, em comparação com as três dimensões re 1. Em nome da Escritura: Lutero (1483-1546)
feridas (ontológica, soteriológica e histórica), que nós
distinguimos, é, sobretudo, a dimensão ontológica que Lutero não é um contestatário da tradição cristoló
sai honrada. Teremos, porém, o cuidado especial de não gica; no entanto, a sua teologia tem uma tonalidade no
esquecer que o argumento da salvação foi o apoio cons va, que ressoa ainda muito fortemente na teologia
tante desta busca, já que um dos argumentos mais fre protestante dos nossos tempos. Para situar correctamente
quentes, nestes debates, era de natureza soteriológica: o seu contributo, convém recordar algumas traves mes
o que não foi assumido não ficou salvo. Desta maneira tras da sua teologia. A teologia de Lutero não aceita ou
se torna presente, de forma implícita, a dimensão histó tras fontes para além da Escritura: sola scriptura. Homem
rica, o facto Jesus Cristo. profundamente religioso (), Lutero colhe na Escritura
um acutilante sentido da transcendência e da glória de
Deus e, ao mesmo tempo, uma viva consciência da sua
condição de pecador. Dá-se conta, deste modo, da total
II. A Tradição contestada incapacidae do homem para alcançar por si próprio a
salvação. Ninguém pode consegui-la pelas obras. En
Não é propósito deste nosso livro expor toda a his quanto pecador, o homem só merece a cólera divina.
tória da fiem Jesus, mas proporcionar aos cristãos dos Se quiser ser salvo, só pela fé o pode conseguir, pela
nossos tempos a assunção da fé como coisa própria. Pa
(6) Ver M. Lienhard, Luther. témoin de Jésus-Christ. Les étapes
ra isso, é muito importante que entendamos o que está
em jogo nos momentos essenciais em que se foi cons et les thèrnes dela christologie du Réformateur, Paris, Cerf., 1973; bem
como D. Olivier, La foi de Luther. La cause de l’Evangile dans I’EgIi
truindo a regra da fé das Igrejas. Antes de abordar os se, Paris, Beauchesne. 1978. cap. 5.

62 63
fé em um Deus que o declara justo sem que para isso guns aspectos indispensáveis para compreender as
haja qualquer mérito da sua parte. problemáticas cristológicas actuais. Como poderemos ca
A partir de aqui são fáceis de compreender as orien racterizar esta época filosófica?
tações cristológicas de Lutero. Não rejeita as definições
conciliares; a sua contestação é, essencialmente, sote
Emancipação da razão
riológica. E conhecido o texto célebre: «Cristo tem duas
naturezas; e daí em que é que isto me diz respeito?» O De modo geral, esta «idade da razão» identifica-se
que Cristo é «em Si» pouco importa; importa tudo o que com o século das Luzes, o século XVIII, chamado, na
Cristo é «para nós»: o Seu amor, a redenção que Ele ga Alemanha, Aufkliirung. Esta filosofia nasce de várias
rante à humanidade. A cruz, que ocupa um lugar cen fontes: o Renascimento e a Reforma, as grandes desco
tral na sua teologia, é, ao mesmo tempo, a expressão bertas e o desenvolvimento do comércio, o nascimento
deste amor de Deus, o qual, apesar da cólera contra o da ciência, para não falarmos das guerras de Religião,
pecador, entrega o Seu Filho, e a expressão da solida que servem para desvalorizar a própria ideia de religião.
riedade de Cristo com os pecadores, já que toma sobre Em relação ao Mundo Antigo, assiste-se a uma verda
Si esta mesma cólera para também dela libertar os deira subversão coperniciana, no que diz respeito à vi
homens. são do mundo. Enquanto, no mundo antigo, o Universo
A teologia de Lutero é uma reacção contra a Esco era entendido como um cosmos organizado, reflexo de
lástica, que especula sobre o modo de incarnação e o um mundo imaterial e imutável, protegido por um de
modo da união das duas naturezas em Cristo, mas es sígnio de Deus, a que se dá relevo, o mundo moderno
quece a história concreta de Jesus e o Seu empenhamento concebe-se como um mundo autónomo em que o mun
na história dos homens. Lutero tem realmente em conta do tira a sua consistência e as suas leis de si mesmo e
a humanidade de Cristo, a Sua realidade corporal e psi depende única e simplesmente do homem. E é a este tí
cológica, a consciência que Ele tem da Sua missão (cf. tulo que pode tornar-se objecto de ciência. Já não é al
Anexo 11). Como em S. Paulo, o drama da cruz é de go para ser contemplado, mas para ser transformado.
novo situado no coração da cristologia: Deus não Se re
Deus não é necessariamente rejeitado neste mundo
vela no poder, mas na fraqueza. «Ele confunde a sabe
que tem o homem por centro. Mas, se a existência de
doria dos inteligentes» (lCor 1,18-31). Acontece ainda
Deus não é negada como tal, torna-se incompreensível
que, sem prestar muita atenção à dimensão ontológica
para a própria razão. Apenas sobrevive o Deus do co
(o que Cristo é em Si), a soteriologia corre o risco de
ração, da piedade, da emoção, um Deus que já não está
se evaporar por falta de fundamento. E um regresso aos
ao lado dos objectos mas na insondável profundidade
problemas dos Padres da Igreja.
humana; alguns, como Feuerbach, chegam mesmo a
pensar que Ele não é mais que a projecção desta pro
2. Em nome da Razão (século XVffl-XIX) fundidade. Quanto a Jesus Cristo, surgem então muitas
Dados os limites do nosso projecto, vamos contentar- e variadas rupturas cujos efeitos se fazem sentir até às
-nos com evocar, a propósito do século das Luzes, ai- problemáticas do século XX.
65
64 5
— Um primeiro divórcio aparece logo no fim do sé
culo XVII entre Escritura e Dogma. O estudo científico um devir; aceito, pelo contrário, este Cristo religioso,
mas mostro que este ser supra-humano não passa de um
da Bíblia aparece, com Baruch Spinoza (1632-1677) e
produto e um objecto dos sentimentos sobrenaturais do
Richard Simon (1638-1712), e pretende emancipar-se
homem». (7)
da tutela do dogmatismo: a interpretação da Escritura
não compete à autoridade eclesiástica, mas a discipli
nas científicas. Revalorização da história
— Um outro divórcio aparece com Lessing No século XIX, a teologia protestante, na Alema
(1729-1781) entre história e razão. A história deixou de nha, vai reagir a esta situação que socavava os alicerces
ser um lugar de verdade. Embora permitisse à razão pro da fé em Cristo; fá-lo-á através da reintrodução da di
gredir em direcção à verdade, a história não passou, no mensão histórica. Para dar conta do facto cristão e da
entanto, de um andaime, que a razão, uma vez alcança sua pretensão à universalidade, vai revalorizar a histó
da a sua própria maturidade, pode dispensar; deve mes ria, sem nada negar das exigências da razão. Chegará,
mo fazê-lo, já que os factos contingentes da história não por isso, a resultados bastante contestáveis. Para quali
podem ser fonte de verdades necessárias. De onde re ficativo deste esforço, prosseguido em nome da razão
sulta que a vida de Jesus, contingente, como toda e qual e à revelia de todo o dogmatismo, vai falar-se de «teo
quer vida humana, não pode tornar-se o lugar de logia liberal». Pensamos que basta referir três tentati
nenhuma verdade sobre Deus, que é, como se sabe, um vas neste sentido.
ser necessário. Nestas condições, Jesus é, no máximo,
um sábio, um mestre de moral (Kant). Schleiermacher (1768-1834): Schleiermacher con
— Dá-se então uma ruptura essencial: o mistério de siderava o cristianismo como «a mais eminente religião
Cristo é esvaziado do seu sentido. Enquanto Lutero en do mundo». Pensa reconduzir a ela a sua época e, para
fraquecia consideravelmente, sem, no entanto, a negar, isso, regressa à figura concreta de Jesus. «A especifici
a dimensão ontológica da fé em Cristo, a razão do sécu dade do cristianismo, escreve ele, consiste inteiramen
lo XVIII faz muito mais do que isso, faz desaparecer te no apego a Jesus de Nazaré e à salvação de que Ele
a dimensão soteriológica. A insistência unilateral de Lu é portador. A especificidade de Jesus, por sua vez, tem
tero na pessoa de Cristo «para nós» tinha como resulta a ver, toda ela, com a intensidade e eminência da Sua
do pensar o homem como determinado por Deus. Com «consciência de Deus». Estando em comunhão total e
o racionalismo, é Deus que é pensado como determina constante com Deus, Jesus foi salvo, por assim dizer,
do pelo homem, não passando mesmo de uma projec na Sua essência, e, não tendo necessidade de salvação
ção deste. Tal é a tese de Feuerbach (1804-1872), o qual para Si mesmo, pode ser salvador em benefício dos ou-
escreveu:
(7) L. Feuerbach, L ‘essence du Christianisme, Paris. Maspero,
«Não me pergunto o que foi ou o que pode ser por 1968. Prefácio da segunda edição. Ver ainda: X. Tilliette, La christo
ventura o Cristo real e natural oposto a este outro Cris logie idéaliste, Paris, Desclée, 1968 e Marcel Neusch, Aux sources de
to sobrenatural, que é o resultado de uma ficção ou de I’athéisme contemporain, em Cem anos de Debates sobre Deus, Cen
trurion, 1977; particularmente o capítulo sobre Feuerbach.
66 67
*
**
tros: não somente imagem ( Vorbild), como também ar
quétipo (Urbild). A quem aceitar seguir a via religiosa
por Ele aberta, Jesus revela como e porquê a essência No decurso do período em que se elabora a tradição
humana se realiza nesta unidade com Deus, que a reli dogmática da Igreja, os Padres tentaram exprimir o mis
gião tem por função servir». (8) tério começando por acolhê-lo como uma revelação e
vivendo-o, depois, como uma experiência salvadora.
• As Vidas de Jesus: Numerosos autores tentaram Com os tempos modernos, porém, o homem torna-se
reencontrar, através da história, os alicerces mais fun senhor do próprio mundo e toma consciência de si e
dos do cristianismo e, deste modo, verificar e fundamen das suas próprias possibilidades. Vêm, então, as reivin
tar o seu apego à personalidade de Jesus. Puseram-se dicações de uma razão que se pretende autónoma e re
então a estudar cientificamente, isto é, à margem das cusa toda e qualquer autoridade exterior. Já Lutero
interpretações doutrinais já propostas no Novo Testa deslocara a tónica para o homem e a sua salvação. Só
mento. Estes trabalhos trouxeram para o primeiro pia que a sua fé continuava viva e submissa à Palavra de
no a dimensão histórica rejeitada por Lessing. Deus. No século das Luzes, pelo contrário, Deus não
Fracassaram, porém, como iria demonstrar Alberto passa de uma palavra que recusa o homem. Deixa de
Schweitzer, na sua História da pesquisa sobre as vidas haver cristologia no sentido estrito, uma vez que a Pa
de Jesus (1913). Em boa verdade, cada autor criava pa lavra de Deus foi despojada de toda a autoridade.
ra si um rosto de Jesus. A partir de então, a dualidade inerente a todo o dis
curso sobre Jesus Cristo muda de lugar. Aparece uma
• Um mito concreto: D. F. Strauss (1800-1874) te dupla bipolarização, que opõe quer História (Jesus)/Ideia
ve o cuidado, na sequência de outros, de regressar à his (Deus), quer História/Senso (fé). Estas novas bipolari
tória. Não via, porém, nos Evangelhos senão a con zações exprimem-se, as mais das vezes, sob a forma de
cretização da ideia, obra da comunidade cristã, subli oposições: E a história ou a fé, o Jesus da História ou
nha o afastamento que há entre o Jesus histórico e o Cris o Cristo da fé. No decurso desta travessia da modei ni
to da fé, portador da Ideia. Ao passo que, na perspectiva dade, a cristologia foi sendo despojada, sucessivamen
anterior, era o autor a projectar a sua ideia sobre Jesus, te, de todas as suas dimensões: ontológica, soteriológica
agora, é a comunidade crente que se projecta; e a tarefa e histórica, A cristologia contemporânea irá esforçar-
da história consiste em reencontrar, através do estudo, -se por recompor este conjunto, tentando assumir a no
a situação desta comunidade. A escola da História das va cultura dominada pela Razão.
formas (Formgeschichtschule) virá confirmar esta toma Esta tarefa será assumida sobretudo pelo protestan
da de posição pelas comunidades na elaboração dos evan tismo. Enquanto o catolicismo, recusando o divórcio en
gelhos, mas sem, por isso, concluir que Cristo não passa tre a fé e a razão, perpetua as problemáticas centradas
de uma Ideia, um mito criado pelas comunidades. sobre o modo de união da divindade e da humanidade
do Verbo Incarnado, o protestantismo entra de rompante
(8) J. Doré, artigo Schleiermaeher no Dictionnaire des Religions, na problemática moderna, O catolicismo, que acumula-
Paris, Puf, 1984, p. 1547.
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68
ra atrasos sobre atrasos, sofre o verdadeiro choque da tinuarmos fiéis à tradição dos grandes Concflios cris
modernidade no começo deste século com a crise mo tológicos, apesar da diferença cultural que nos separa
dernista. deles? Estas perguntas devem merecer toda a nossa aten
A partir dos anos 60, a teologia católica entra em ção. Trataremos, no entanto e em primeiro lugar, das
diálogo permanente com a teologia protestante; e os gran vias actuais da cristologia, marcada pelo debate da teo
des teólogos protestantes (Bultmann, Pannenberg e ou logia liberal ao menos no Ocidente. Faremos, depois,
tros) não têm cessado de a influenciar. duas propostas, uma respeitante ao ser filial de Jesus,
e outra relativa ao conhecimento de Cristo, à Sua cons
ifi. Pesquisas contemporâneas ciência e à Sua liberdade, numa palavra, ao Seu agir
filial.
Como haveremos de assumir, hoje em dia, a confis
são de fé em Jesus, Filho de Deus? Será possível con
1. As vias da cristologia

Nos começos do século XX, a cristologia estava, con


A crise modernista forme vimos, de algum modo deslocada. Podem assi
O cerne do Modernismo consiste no seguinte: nalar-se vários cortes mortais:
homens inquietos, com os atrasos acumulados pela — Corte entre o estudo bíblico e o estudo cristológi
Igreja, face ao progresso da ciência; homens (histo co, que vinha da Idade Média, que era resultado de uma
riadores, críticos, teólogos) impressionados com a fi certa hegemonia da reflexão metafísica e, mais tarde,
losofia alemã, sobretudo a de Kant, segundo a qual do aparecimento das ciências bíblicas, que, desde que
já não é possível atingir a ordem metafísica, e a dos apareceram, sempre se posicionaram de uma forma re
seus sucessores, discípulos e intérpretes, fundado
res do Idealismo alemão (Fichte, Schopenhauer, Shel lativamente autónoma.
ling, Hegel), também eles impressionados com os — Corte entre uma Revelação em que Deus Se dá
grandes textos místicos da India antiga, alimentados por e em Jesus Cristo e uma procura humana que não
também pela tradição neoplatónica...; homens muito aceita outra autoridade senão a sua e que tem tendência
ao corrente dos esforços do positivismo, que não ad para reduzir Deus a uma projecção que o homem faz
mite senão os factos da experiência e afasta a busca de si mesmo.
das causas; e as descobertas das ciências auxiliares — Corte, finalmente, entre o Jesus da história, Deus-
da História, que levam a pôr em causa o conteúdo his
tórico dos Livros Sagrados. Estes homens perguntam- -connosco e fonte de salvação, e o Cristo da fé, que tem
-se a si mesmos se o sobrenatural não teria sido uma significação universal e actual.
excluído pela filosofia e escorraçado pela história. Estes «cortes», porém, não devem ser interpretados
apenas num sentido negativo. E que eles puseram em
(Extracto de Y. Marchasson, art. Modernisme, in Dictionnaire des Re
ligions, Puf, 1984, p. 1123.
relevo alguns aspectos, que nenhuma cristologia pode
ignorar. Os debates da cristologia do século XX foram
suscitados pelas exigências da modernidade. Desenvol
70 71
veram-se, primeiro, em terreno protestante, mas, a partir outro, partindo da história das religiões; só partindo da
da década de cinquenta, atingiram também o mundo ca relação que a pessoa de Jesus Cristo exprime o pode
tólico. Por ocasião da celebração do 15.0 centenário do mos conseguir.» (10)
Concilio de Calcedónia, em 1951, a renovação da cris
tologia católica demonstrou estar em plena vitalidade, A busca do homem (Rudolf Bultmann)
embora viesse a ser preparada de longa data, sobretudo Enquanto Barth encara com alguma negligência as
pela renovação dos estudos bíblicos e patrísticos e, no vias humanas que nos conduzem a Deus, incluindo o per
terreno, pelas renovações missionária e litúrgica. curso histórico de Jesus, R. Bultmann (1884-1976) põe
em muito maior relevo a dimensão antropológica da fé.
A oferta de Deus (Karl Barth) A tal ponto que não faltou quem o acusasse de regresso
Pode ser considerado pioneiro desta renovação o teó à teologia liberal e racionalizante do século XIX. Mas,
logo Karl Barth (1886-1968). Logo a seguir à Primeira tanto em Bultmann como em Barth, a busca humana é
Guerra Mundial, começou a expurgar as pesquisas da de si incapaz de se apoderar da fé. Só que, diferente
teologia liberal e a trazer para primeiro plano a Palavra mente de Barth, que sublinha a objectividade da Pala
de Deus, opondo «a determinação teológica irreversí vra de Deus, Bultmann, pondo-se do lado do sujeito,
vel do homem por Deus à determinação filosófica libe ouvinte desta Palavra, faz esta pergunta: é possível ao
ral de Deus pelo homem». A Aufldirung nascida da razão homem do século XX crer nesta Palavra?
). A fé em Deus
opõe ele a Aufklãrung do Evangelho(
9 Este cuidado de apresentar a Palavra de Deus de tal
não tem outro fundamento que não seja a Palavra do mes maneira que possa ser compreendida pelos nossos con
mo Deus. Assim se proclama uma teologia que recusa temporâneos leva Bultmann a fazer uma dupla opera
todo o compromisso com o mundo ou com a razão hu ção: por um lado, julga ele que é preciso interpretar a
mana. E verdadeiramente Deus que retoma a Palavra. Escritura com novos cuidados, separá-la das reresen
Karl Barth escreve: tações demasiado ligadas a uma visão pré-científica do
«E a partir de Jesus Cristo e só d’Ele que podemos mundo: é !quilo a que ele chama a «desmitologização»;
tentar ver e compreender aquilo de que se trata na ópti por outro lado, acha que é preciso prestar uma enorme
ca cristã, quando abordamos o grande problema que —
atenção às condições da compreensão: o homem só po
não deixa nunca de nos espantar e que nós não pode de acolher a Palavra de Deus a partir da compreensão
mos formular sem correr os mais graves riscos de erro que tem da sua própria existência. E sobre o horizonte
— da relação entre Deus e o homem. Só temos uma res de uma vida confrontada com a morte e o absurdo que
posta: Jesus Cristo. Da mesma maneira não podemos a Palavra de Deus podé ter, para o homem, um sentido.
compreender a relação entre a criação, a criatura e a exis Estamos em presença de um esforço teológico que
tência, por um lado, e a Igreja, a redenção e Deus, por faz lembrar Lutero. Eo homem que interessa, não o Cris
to em Si, a Sua natureza ou até a Sua história concreta,
(9) P. Corset, Une Aufkhirung à Ia lumière de I’Evangile: K.
Barth», Recherches de Science Reiigieuse, 72 (1984), pp. 483-526, p. (10) Cf. Karl Barth, Esquisse d’une dogniatique, Genebra, Labor

495. et Fides, e Paris, Cerf, 1984, p. 101.

72 73
mas o «Cristo para mim». Por isso se realça uma oposi neste homem». (12) A análise exaustiva do facto históri
ção já descoberta no século XIX entre o Jesus da histó co Jesus Cristo deveria, em última análise, permitir o
ria e o Cristo da fé. Entre a história e a mensagem acesso directo à fé. Censuraram a Pannenberg ter atin
opera-se um divórcio. A dimensão salvífica, a única que gido a gratuidade da fé e a sua liberdade. E com toda
interessa realmente ao homem, elimina, de algum mo a razão. Mas a pesquisa teológica dá-lhe a sólida arti
do, a dimensão ontológica (o que Cristo é em Si) e a culação entre aquilo que Jesus viveu e o que viveu a co
dimensão histórica (o que Cristo fez e viveu em munidade apostólica. Estas duas dimensões são insepa
concreto). ráveis.
Do lado católico poderia encontrar-se um ensaio com E necessário que cada uma destas perspectivas con
parável na cristologia de Karl Rahner (1904-1984), ainda tinue aberta às outras. A primeirã (Karl Barth) tem o
que em contexto muito diferente. KarI Rahner também mérito de sublinhar a gratuidade e a liberdade absoluta
se preocupa, naturalmente, com o homem e a sua sal da oferta de Deus, que a segunda (a de Rahner) tem ten
vação e interroga-se sobre as condições que preparam dência para atenuar. Em compensação, Rahner introduz
o homem, enquanto tal, para acolher esta salvação. E uma ideia forte, na medida em que sublinha que Deus,
possível resumir deste modo a mais notável das suas in ao criar o homem, já inscreveu nele o desejo de conhe
tuições: «Antes de Se revelar na figura histórica de Je cer o Rosto divino. E por causa desta busca de sentido,
sus, Deus oferece-Se em silêncio como o absoluto, o que é a razão de ser da sua existência, que o homem
mistério sagrado. E esta presença silenciosa de Deus no pode reconhecer em Jesus o dom ou oferta de Deus.
homem que permite ao mesmo homem perceber a men O aprofundamento da existência concreta da figura de
sagem última ou definitiva sobre a existência, quando Jesus, que constitui preocupação da terceira perspec
ela, por fim, se manifesta em Cristo». (11) Teremos oca tiva (de Pannenberg), também é muito importante.
sião de reencontrar Karl Rahner, quando falarmos do E que é no contacto com a figura concreta de Jesus Cristo
ser filiar de Jesus. que o desejo desperta e Deus Se revela. Só nos falta
mostrá-lo.
A figura de Jesus
Faltava reintroduzir no cerne mesmo da reflexão cris 2. O ser filial de Jesus
tológica a história de Jesus. W. Pannenberg, protestan
te, é o teólogo que mais fez neste sentido, mesmo tendo Ao apresentar as definições conciliares, já sublinhá
em conta que foi demasiado longe, na medida em que mos que elas integram pouco a ordem do devir e a ex
parece pôr a fé na dependência da investigação históri periência de Jesus de Nazaré, atenuando, assim, pelo
ca. Para ele, «a tarefa da cristologia é apoiar na história menos ao nível da expressão, o empenhamento de Deus
de Jesus o verdadeiro conhecimento da sua significação, na história. Não se trata de um defeito. Só que o que
que pode resumir-se nestas palavras: Deus revelou-Se está em jogo é uma mudança de sensibilidade e de cul
(‘‘) Cf. Marcel Neusch. Aujourd’hui Dieu. Paris, Desclée de Brou (12) W. Pannenberg, Esquisse d’une christologie, Paris, Cert 1971,
wer, 1987, pp. 85-88. p. 26.

74 75
tura. Pelo que nos resta dizer de outro modo a mesma Esta maneira de compreender as coisas torna-se clara
verdade. Para exprimir o ser filial de Jesus, partiremos à luz da criação. Criando, Deus constitui o outro a
do empenhamento de Deus na história, tal qual o expri

criatura — como radicalmente distin.to d’Ele. Embora


me a teologia contemporânea. Este nosso propósito su este Outro esteja dependente d’Aquele que o criou, per
põe que entendemos o discurso actual acerca da manece todavia autónomo. Quanto mais radical é a de
«passibilidade» de Deus, a que convém regressarmos pendência em relação a Deus, como é o caso do homem
ainda. criado à imagem e semelhança d’Ele, mais a criatura é
Falar de passibilidade, a propósito de Deus, é admi autónoma e livre. Com a Incarnação, atingimos o ponto
tir que Ele pode, seja de que modo for, «sofrer», que mais alto da obra criadora: temos, ao mesmo tempo, pro
Ele pode ser «afectado» no Seu empenhamento na his ximidade radical já que Jesus é Deus, e, no entanto, au
tória humana no que ela tem de mais íntimo, em suma, tonomia não menos radical, dado que Jesus é um homem
que algo de novo Lhe pode ainda acontecer. Todas es livre que fala em Seu próprio nome: «Eu, porém,
tas expressões são tiradas de um documento da Comis digo-vos !»
são teológica internacional, cujo estatuto no seio da Igreja Desta maneira, na Incarnação, Deus constitui aqui
romana é mais que oficial. Deus é o Absoluto; mas é lo que é distinto d’Ele como a Sua própria realidade.
um Absoluto que pode sujeitar-Se, humilhar-Se e sofrer, Esta perspectiva, que nem vislumbrada foi pelos Padres
e isto por amor e com toda a liberdade. Tem a possibili da Igreja, demasiado presos à expressão da nião na pes
dade de sair de Si mesmo. Karl Rahner foi neste senti soa de Jesus do divino e do humano, tem o mérito de
do. (13) Partindo de João 1,14 («o Verbo fez-Se carne») reunir o que a teologia clássica separava, ou seja, a cria
e vendo a incarnação como o ponto mais alto da criação ção, a incarnação e a salvação. Permite exprimir, de uma
— Karl Rahner toma muito a sério o facto de Deus Se forma real, o «sofrer» de Deus bem como o Seu envol
ter tornado homem tira daí as consequências. Eis o

vimento na história da salvação. Voltando a ligar, deste
essencial. modo, criação e incarnação, Rahner abriu um caminho
Aquele que em Si mesmo é imutável, Deus, tem a que nos leva a uma melhor compreensão do devir de
capacidade de «Se tornar», estabelecendo o outro com Deus e da Sua «passibilidade»; o que, porém, não apa
a Sua própria realidade. Por um acto de livre despoja rece lá muito bem na sua teologia é a união concreta do
mento de Si, Deus constitui o que é distinto d’Ele (o ho Filho ao Pai, tal qual a evocam os Evangelhos. (14) So
mem) como sendo algo de Seu (Jesus homem é Deus). bre este ponto precisamos de aprofundar a sua reflexão.
(13) Para o documento da comissão teológica, ver: Thologie, chris Para evocar o mistério do Filho, tal qual Jesus o pô
tologie, anthropologie», in Doc. Catholique, número 1844, de 16 de de viver concretamente, podemos partir de uma intui
Janeiro de 1983, p. 121. Foi neste sentido que Karl Rahner tentou si ção de Karl Rahner, a qual estabelece uma correspon
tuar a incarnação do Filho na economia criadora e salvadora de Deus,
vista no seu conjunto. honrando assim a busca de uma leitura contem
porânea de Calcedónia. Ver, sobretudo: Ecrits théologiques 1, Paris, (14) CI. Ch. Duquoc.
(‘hristologie 1. L honlInc Jéus. Paris. Cerf.
DescléedeBrouwer, 1959,pp. 148-161: II, ibidem. 1963. pp. 81-101: 1968. p. 282: «Jesus homem é Deus porque é Filho: existe divinamente
Traité fondamental dela foi, Paris, Centurion, 1983, pp. 241-258: Ai sobre o modo filial. Jesus define-Se por referência a Alguém que Ele
nier Jésus. Paris. Desclée. 1985. pp. 40-54. chama Seu Pai’.

76
77
dência entre o facto de ser homem e o de ser filho. Ser sério a humanidade de Jesus. Ora a Escritura diz-nos
homem é receber-se do Criador como um ser diferente que Ele é «em tudo igual a nós, excepto no pecado» (Hb
e autónomo, mas reconhecendo esta origem. Do mes 4,15). Se alguma perfeição se pode procurar na huma
mo modo que ser filho é receber-se de um Pai como ser nidade de Jesus, essa perfeição não está certamente ao
autónomo. Ser criatura é assumir a relação de origem nível da Sua «natureza humana», como pensavam os es
procedente do Criador. E nesta relação que Jesus vive colásticos, já que não existe uma «natureza humana» per
como homem, que Ele vai exprimir a Sua relação eter feita; perfeito só Deus. A Sua perfeição está ao nível
na com o Pai. Para um homem, a relação com o Cria da Sua santidade, na perfeita obediência ao Pai. A este
dor manifesta-se na condição de criatura, que só pela respeito, há dois problemas que merecem atenção: a
morte atingirá a sua plenitude. O que Jesus é como Fi consciência de Jesus e a Sua liberdade.
lho eterno revela-se e realiza-se na Sua história de ho
mem e é na Páscoa que se manifesta definitivamente e A consciência de Jesus
em plenitude o Seu ser-filho. Este problema da consciência de Jesus é um proble
Não introduzimos estas perspectivas por pretender ma moderno, que deve distinguir-se do problema do co
mos procurar a novidade a qualquer preço. Trata-se, isso nhecimento de Jesus. Apenas este último interessou à
sim, de honrar as novas tentativas contemporâneas dando teologia clássica. (16) Deduzia ela a psicologia de Jesus
razão à história e à experiência de Jesus. Nasce de tudo da união hipostática. Pelo simples facto de que Jesus era
isto uma visão dinâmica da Incarnação. Incarnar, para de natureza divina logo O dotavam de um saber perfei
Deus, não é somente atingir a humanidade em determi to e atribuíam-Lhe, desde este mundo, a visão dos bem-
nado ponto; é assumir uma história, entrar no tempo hu -aventurados, criando, assim, o impasse sobre os limites
mano e participar no seu devir. «Como todo e qualquer da Sua humanidade. A teologia moderna, muito mais
homem, Jesus também está, no decurso da Sua vida, a modesta, pensa que, se queremos falar da consciência
caminho da realização efectiva do Seu ser de Filho, que e do conhecimento de Cristo, temos de basear-nos no
traz inscrito em Si... O ser-Filho de Jesus devia ter o testemunho evangélico. Ora dos Evangelhos podem tirar-
carácter de tornar-se-Filho». (15) -se dois dados:
A ignorância de Jesus. Os evangelhos mencionam
claramente esta ignorância de Jesus (Mt 24,36 e par.)
3. O agir filial de Jesus sobre o assunto da revelação da Sua missão, a saber,
«a hora da vinda do Reino». Embora seja o Filho, supe
As reflexões precedentes são um bom começo para rior aos anjos, Jesus não sabe tudo. E deve pôr-Se nas
abordarmos a questão relativa ao agir filial de Jesus, pro mãos de Deus numa obediência total (Fi 2,5-11; Hb
blema difícil, já que muitos cristãos continuam, impli 5,7-10; 2,10, bem como as narrativas da agonia). Se este
citamente, docetas, pois não tomaram inteiramente a
(16) Distinção que falta na obra de F. Dreyfus,
Jésus savait-iI qu’iI
(15) D. Wiederkehr, .Esquisse d’une théologie systématique. em était Dieu? Paris, Cerf, 1984. Ver a posição do Autor em Jésus-Christ
Mysreriurn saluris, XI. Paris, Cerf, 1975. pp. 123-125. chemin de notre foi, Paris, Cerf, 1981, pp. 106-1 15.

78 79
abaixamento de Cristo e a Sua morte na cruz são para
nós um escândalo, que prejudicam as nossas ideias acerca Quatro proposições
de Deus, devem também fazer-nos descobrir o verda
deiro rosto de Deus: um Deus-Amor. Jesus é umho da comissão teológica internacional
mem verdadeiro, que teve de enfrentar o fracasso: Ele sobre a consciência
próprio declara não poder efectuar certos milagres (Mc que Cristo tinha de Si mesmo
6,5) ou não poder reunir os filhos de Jerusalém (Mt (Dezembro de 1985)
23,37). Apesar do fracasso e no fracasso, permaneceu
fiel, homem de fé, respeitando a condição de homem
1. A vida de Jesus é testemunha da consciência
dependente de Deus, Seu Pai, a quem pertence o Reino
da Sua relação filial com o Pai. O Seu comportamen
e de quem depende e de mais ninguém o desígnio

to e as Suas palavras, que são as do «Servo» perfei


criador e salvador. to, implicam uma autoridade que ultrapassa a dos
A autoridade de Jesus. Este primeiro dado sobre a antigos profetas e que Lhe vem de Deus e de mais
ignorância e o fracasso de Jesus deve conjugar-se com ninguém. Jesus tirava esta autoridade incomparável
outra atitude do mesmo Jesus: a Sua extraordinária au da Sua singular relação com Deus, a quem chama
toridade. Se há momentos de ignorância na vida de Je «Meu Pai». Tinha consciência de ser o Filho único de
Deus e, neste caso, de ser Ele próprio Déus.
sus, também há nessa vida uma consciência segura de
estar acima de todas as mediações da Antiga Aliança (lei, 2. Jesus conhecia o objectivo da Sua missão:
Templo, Anjos). Sempre Se apresenta como O repre anunciar o Reino de Deus e torná-lo presente desde
sentante de Deus, O portador da sua Palavra, O privile logo na Sua pessoa, nos Seus actos, nas Suas palá
giado da Sua intimidade (abba). A ausência de conhe vras, de modo que o mundo se reconcilie com Deus
e se renove. Aceitou livremente a vontade do Pai e
cimento pode, portanto, coabitar perfeitamente com a deu a vida pela salvação dos homens; tinha consciên
consciência muito viva da Sua missão. Para ter uma cons cia de que o Pai O enviara para servir a multidão e por
ciência bem apurada dessa missão, Jesus não tem ne ela dar a vida (cf. Mc 14,24).
cessidade ser dotado de um conhecimento sobre-humano.
3. Com o objectivo de realizar a Sua missão salví
Estes dois aspectos contrastantes (ignorância e au fica, Jesus quis juntar os homens em vista do Reino
toridade), mesmo assim, não se opõem. E preciso e reuni-los à Sua volta. Foi em vista deste desígnio
considerá-los em conjunto, se queremos prestar justiça que Jesus realizou acções concretas, cuja única in
ao mistério de Jesus. Como Filho, Ele assume-Se como terpretação possível, tomada a coisa no seu conjun
procedente do Pai, mesmo na angústia e na noite (Get to, é a preparação da Igreja, a qual apenas será
sémani e Calvário). E isto porque Ele é o Filho. A este constituída definitivamente aquando dos acontecimen
título Jesus não recebe a Sua autoridade de nenhum me tos da Páscoa e Pentecostes. Pelo que se impõe a
afirmação clara de que Jesus teve intenção de fun
dianeiro humano. Sendo Pessoa divina, quando diz «Eu», dar a Igreja.
é verdadeiramente um «Eu» divino que Se exprime. Mas
este «Eu» divino incarnou de verdade, não escapa aos 4. A consciência que Cristo tem de ter sido en
condicionalismos do conhecimento e do querer huma viado pelo Pai com o objectivo de salvar o mundo e

80 81
convocar todos os homens na formação do povo de é preciso actualizar nos factos e nos gestos. Jesus não
Deus implica, de modo misterioso, o amor pelos ho conheceu o pecado. Sempre atento ao Pai e em comu
mens. De tal maneira que é possível dizer que «o nhão com Ele, realiza plenamente a vocação de Adão,
Filho de Deus amou-me e entregou-Se à morte por ou seja, a vocação de todo o homem, apesar do desmen
mim» (GI 2,20). tido dos factos. Por um lado, Ele é o homem diante de
Documentation Cathollque, n.° 1926, de 19 de Outubro, pp. 916-921.
Deus, na liberdade e no reconhecimento d’Aquele que
(o Documento é, no seu conjunto, um comentário a cada uma destas Lhe deu a vida; e, por outro lado, Ele é o homem total
proposições). mente filho, no qual todo o homem pode ler o que Deus
espera de cada um, a saber, que seja a imagem deste
Filho para «receber» a Sua plena humanidade. E desta
nos, com tudo aquilo que significa não só de possibili maneira que Jesus é o modelo acabado da salvação.
dades como também de obscuridade. Lucas diz-nos que
Ele «crescia em sabedoria e em estatura» (2,52), estatu *
*
*
ra esta que não tem a ver apenas com o corpo.
Deus assume um rosto na pessoa de Jesus. E este ros
A liberdade de Jesus to é o de um judeu no qual se realiza a vocação do povo
de Israel. Todas as nações são chamadas a reconhecer
Jesus é um homem plenamentê livre nas Suas deci
n’Ele a imagem do Deus invisível. Como poderemos ad
sões. E do maior interesse realçar que a extrema sub
mitir um tal paradoxo? Que o Deus invisível, fonte e
missão de Jesus a Deus harmonizou-se, na Sua vida, com
fim de todas as coisas, Se mostre neste homem de uma
uma soberana liberdade. Jesus não procura o apoio de
forma imediata, neste homem que viveu e morreu du
outras autoridades para sobre elas assentar a Sua; fala
rante o governo de Pôncio Pilatos, este é, de facto, o
como se Ele próprio decretasse a lei. E, ao mesmo tem
verdadeiro escândalo para os Judeus; eis o que não po
po, vive apenas da vontade do Pai. Este aparente para
dia deixar de ser, para os Gregos, uma loucura. Para
doxo mostra o que os Padres da Igreja tinham intuído
o cristão, porém, é um mistério que é preciso acolher.
já no Concílio de Constantinopla ifi: verdadeiro Filho,
Os discípulos acolheram-no e entregaram-lhe a vi
o Seu querer «recebe-se» totalmente do querer do Pai;
da, devotadamente. Prescrutando-o, a inteligência cris
mas, homem autêntico, goza também de plena e inteira
tã conseguiu «defini-lo», não para o encerrar numa
liberdade, tanto que um teólogo, Cristian Duquoc, pô
compreensão pretensamente exaustiva e irreformável,
de apresentar uma cristologia com o título de «Jesus, ho
mas para fixar as regras da linguagem destinadas a
mem livre». (17)
respeitá-lo e a salvaguardar a unidade da fé das diver
E no entanto esta extrema liberdade não faz com que
sas Igrejas. E tendência dos homens transformar o inau
Jesus hesite entre múltiplas escolhas possíveis. Enrai
dito no muito bem conhecido, quer se trate de regressar
zado na vontade do Pai, nunca hesita diante do caminho
à representação do mundo grego, em que os deuses ina
a tomar, de tal modo está presente n’Ele a Palavra que
cessíveis comunicam com a humanidade através de in
(17) Edições Paulistas, Lisboa, 2.a cd., 1979. termediários, meio deuses, meio homens, quer da

82 83
representação racionalista, para a qual só o verificível
é verdadeiro. Tanto num caso como no outro, apenas
temos um deus à imagem dos homens: não um ícone,
mas um ídolo, como muito bem presentiu Lutero.
O ícone do Deus invisível é o rosto de Jesus: o rosto
de um homem autêntico, no qual Se reflecte a ternura
de Deus, mas rosto desfigurado, porque foi rosto de cru
cificado. E este rosto que precisamos de contemplar, o
rosto do Salvador, que, na Sua própria morte, é consti
tuído fonte de salvação.
III

O MESSIAS CRUCIFICADO
Deus salva-nos em Jesus Cristo
Nós pregamos um Messias crucificado.
Aquilo que é fraqueza de Deus
é mais forte que os homens.
iCor 1,23-25

84
A dimensão da salvação, abordada nesta última eta
pa, já estava presente desde o princípio do nosso per
curso.A experiência pascal é, com efeito, na sua es
sência, uma esperiência de salvação. Com o dom do Es
pírito, temos a garantia de que aquilo que Cristo levou
a cabo, como nosso irmão mais velho, há-de
desenvolver-se em todos aqueles que O acolherem na
realização do Reino de Deus. A Igreja nasceu desta ex
periência, que continua a ser o melhor instrumento re
gulador de pesquisa da Igreja. Vimos, igualmente, que
o argumento da salvação era, para os Santos Padres, o
principal apoio, sempre que tentavam definir a identi
dade de Jesus na Sua relação com Deus.
Por isso a nossa atenção se vai agora concentrar num
aspecto essencial, que marca a diferença cristã. Com efei
to, a fé cristã pretende que a salvação veio para todos
os homens através da morte de Cristo. Esta linguagem
é «escândalo para os Judeus, loucura para os pagãos»,
mas, para os cristãos, expressão da sua mais profunda
fé: «Cristo morreu por nós quando ainda éramos peca-
dores» (Rm 5,8; iCor 1,18-25). Preocupados com dar
conta desta fé, a nossa reflexão vai desenvolver-se à volta
de três termos-chave, os quais exprimem a salvação: re
conciliação, redenção e revelação (Anexo II).

1. Reconciliação
O cristianismo propõe-se, como aliás acontece com
outras religiões, fazer um percurso de salvação, isto é,
87
dar uma resposta às aspirações humanas mais fundamen te sublinhar isto, face à suspeita dos que vêem na ideia
tais. A salvação evoca, antes de mais, a libertaçãoe iãiima projecção dos sonhos humanos. Ao criar
um perigo grave. Supõe também a ipiejveçãp de um o homem, Deus dá-Se livremente e por amor a um com
outro, intervenção essa considejpda, porveze. mira parsa, que Ele convida a selar com Ele a Aliança que
culosa. Quem fala de salva ão fala - mente da ui lhe propõe. Desde logo, a aspiração irreprimível à trans
lquesa va como d’Aquele que salva. No entanto, a cendência e à plenitude pode ser compreendida como
noção de salvaçao cristã não se limita ao rimeiras sinal gravado no homem pelo acto criador de Deus de
Imp ica, sem duvida, a libertação de ai uma coi uma «vocação» à comunhão com Aquele cuja imagem
sa, mas, so re o, a 1 ertação através de Alguém. A ficou gravada no coração do ser humano (Gn 1,27-28).
salvação
— salvação no singular porque p1.- Para Se unir a esta humanidade, chamada a partici
é apreendida como uma realidade absoluta e inultrapas par da Sua vida divina, Deus abre um caminho para Si
sável — traz em si o desejo de uma plenitude tal que próprio, cujo percurso histórico o Antigo Testamento
o homem não a pode alcançar por si mesmo: donde o nos relata. Escolhe um povo determinado, dá-lhe uma
apelo a .um outro; mas não pode renunciar a essa pleni terra e um rei, cujadinastia se dirige, por pura escolha
tude sem se renegar a si próprio como ser de desejo e divina, para a vinda do Messias. Confia-lhe instituições,
de ultrapassagem. como um Templo e uma Lei, com as quais exprime, con
Estas aspirações humanas não estão, porém, livres cretamente, a Sua aliança. Através deste povo escolhi
de ambiguidade: um homem pode sonhar-se como um do, Deus quer fazer aliança com todos os homens, seja
«ser pleno», recusando a sua condição de «ser inacaba qual for a sua raça ou nação. Neste povo particular Deus
do», marcado pela finitude e pela morte. A salvação que abre um caminho para chegar a todos os povos.
ele espera pode depender deste sonho insensato, que o Esta oferta de Deus à humanidade vai «tomar cor
ateísmo contemporâneo não cessa de denunciar como po»ffnitivameniiiste homem Jesus de Nazaré. cujo
uma ilusão. Por outro lado, o recurso a um outro para nome significa «Deus salva». N’Ele se completam e se
se completar mesmo que pelo recurso à alteridade de
— ãbam todas as mediações, já que Ele é o dom de Deus,
Deus — comporta o risco de reduzir o outro a um ser a Sua comunicação sem reservas, a Sua Palavra (Ver
«utilitário», que o homem pretenderia manipular, numa bo), o Seu Filho, Aquele que recebe totalmente do Pai.
palavra, a uma espécie de ídolo. Estas ambiguidades de Jesus é, ao mesmo tempo, «Deus recebido» e «Deus co
vem ser reconhecidas no exacto momento em que pro municado», Emanuel (Deus connosco). Ao definir a au
curamos definir o lugar essencial que Cristo ocupa lá tenticidade da divindade e da humanidade de Jesus, os
bem no cerne da interrogação humana. Padres da Igreja quiseram dar conta da salvação como
um encontro com Deus em pessoa, neste ser de carne,
homem da nossa raça, Jesus de Nazaré.
1. Jesus, caminho de Deus para a humanidade Só que o encontro entre Deus e os homens não é ai
gp de automáfiëõPara que ele aconteça e préiiqiie
Na revlaçãojqdeo-cristã, o caminho da salvação não sejam suprimidos
parte do homem, começa no próprio Deus. Eimportan diniausejpëcãEffihiïgarsco
— —-

88 89
lher Deus, a humanidade pode recusá-l’O ou escolher e n’Ele recebe a resposta que espera da humanidade: urna
outras salvações diferentes da que Deus oferece. E é p6r resposta livre de um Homem que nada reserva para Si.
isso que o dom da salvação é ao mesmo tempo liberta Vivendo num mundo que recusa Deus, a resposta de
ção das escravidões e das cadeias que a humanidade pôs Jesus não será possível sem combate. A ilustração des
nos próprios pulsos. O êxodo do povo judeu, qe Deus ta luta em que teve de envolver-Se e que O levará ao
arrancaàservidão do Egpp, é a figura priiordjld Calvário é dada na narrativa das tentações. (1) O Seu sim
todas as libertações, levadas a cabo or Deus em favor a Deus contrasta com o não dos homens em favor dos
do homem e em vista e uma comunhão perfeita com quais Ele veio ao mundo e pelos quais oferece a Sua vi
Ele. Na vida de Jesus, este dom da salvação também to da, mas é seu advogado diante de Deus, manifestando,
ma forma: a forma de uma luta contra as alienações; e pelo perdão que concede, que não se quer dessolidari
será isso que O levará à cruz. zar dos homens. Até na renúncia e no despojamento mais
Assim se traça uma Drimeira linha, aliás fundamen absoluto Ele é solidário dos homens, enquanto «filho mais
tal, da salvação que Cristo trouxe à humanidade. velho de uma multidão de irmãos (Rm 8,29).
via «descendente», um caminho de abaixamento, de que E aqui que surge a outra linha da salvação, também
o hino da Carta aos Filipenses (2,5-11) é uma das mais esicial, e que vai do homem para Deus. percopçjp
belas expressões. Abaixando-Se, Deus «esvaziou-Se de aminho que o próprio Deus abriu. Na tradição, esta
Si próprio», como diz o hino, coisa que a teologia irá Viã «ascendente» no seguimento de Cristo, que morreu
exprimir com o termo «Kênose». Na tradição, este as por nós e em nosso nome, exprime-se em noções como
pecto da salvação aparece em variadas noções tais co sacrifício, mérito, satisfação, expiação, representação.
mo libertação, perdão, justificação, iluminação, divi Estes termos são particularmente frequentes na tradição
nização; esta última é particularmente cara à tradição ocidental e deverão ser esclarecidos, já que a sua me
oriental. mória está carregada de más interpretações. (2)

2. Jesus, caminho da humanidade para Deus 3. Aquele que nos reconcilia

O encontro entre Deus e a humanidade atinge o seu Estas duas vias, ascendente e descendente, exprimem
ponto culminante na existência de Jesus de Nazaré. Quan orTstério de Cristo verdadeiro Deus e verdadeiro ho
do Se faz carne, o Verbo de Deus torna-Se história, mo mem e no qual se efectua a reconciliação de Deus e da
mento decisivo da nossa história humana. Efectiva e
(1) Ver B. Rey. Les tentations ei le ehoix de Jésus. Paris. Cerf.
completa a salvação na medida em que realiza em ple
1986. A escolha de Jesus é a escolha do Pai, no seio de um mundo que
nitude a vocação de Adão: n’Ele se revela uma humani recusa a imagem de Deus proposta por Jesus. Isto explica que a morte
dade totalmente filia]. E verdadeiramente homem se de Cristo já se anuncia de algum modo nestes textos.
(2) As principais noções que moldaram a linguagem da salvação
gundo o coração de Deus e no qual Deus pode, por isso
cristã são apresentadas de forma sistemática por B. Sesboüé, em Notes
mesmo, pôr a Sua complacência (Mt 3,17). Toda a Sua sur Ia théologie de Ia Rédemption, Document Episcopal, no seu náme
vida é modelada pela Sua relação com o Pai que d’Ele ro 18 de Dezembro de 1983.

90 91
humanidade (2Cor 5,19). Deus concede ao homem o • Numprimeiro tempo, sublinham, sobretudo, ohia
&m de ir ao Seu encontro com uma liberdade renovada to entre a morte ea ressurreição. A. cruz scânda
pelo Seu perdão, uma liberdade tomada filial, animada lo, pois é a morte de um inocente; é vivida como um
pelo Espírito do Filho. Perdoando aos homens os seus fracasso do desígnio de Deus (Lc 24,19-2 1). Face a es
pecados, Deus livra-os também das escravidões, para ta morte, que os discípulos não compreendem, a ressur
que entre eles possa ser restaurada a reconciliação. reição surge como um protesto de Deus contra a injustiça.
Torna-os novamente irmãos no seio de uma criação li «Este Homem, que vós entregastes e eliminastes, Deus
bertada. A redenção diz respeito, igualmente, à criação, ressuscitou-O» (Act 2,24; 2,36; 13,30).
que os homens, na sua sede de poder, não cessam de
pilhar e degradar. Basta pensar nas armas nucleares. Em • Numa segunda etapa, a morte é integrada no de
Cristo, a redenção reencontra o seu destino original iZui sínide Deus. Foi-se, pouco a pouco, compreenden
do que, se Deus justifica Jesus desta maneira, é porque
,18-25).
dá razão à Sua mensagem e à Sua acção. Jesus é, sem
dúvida Aquele pelo qual o Reino de Deus vem. Por isso
II. Redenção a Sua morte não pode continuar a ser encarada como
«Redenção» é um termo medieval, que significa a um acidente, que apanhasse Deus desprevenido, mas de
mesma coisa que salvação ou libertação em linguagem ve ser integrada no desígnio de Deus. E o que faz Jesus
bíblica. Este termo, dominante na tradição latina, im no caminho de Emaús (Lc 24,27 e 44), mostrando co
pregnou profundamente a nossa cultura religiosa. Para. mo as grandes figuras da Torah, os Profetas (o Servo
lhe descobrir o significado exacto, é preciso começar sofredor) ou os Salmos (o justo perseguido, Salmo 22)
por lembrar a forma como foi compreendida pelas pri são anúncios antecipados do Cruçificado. «Não era pre
meiras comunidades cristãs a significação da morte de ciso que o Cristo padecesse e que entrasse na Sua gló
Cristo. ria?» A ressurreição deixa de ser uma coisa oposta (mas)
para estar associada (e) à morte de Jesus.

1. Morto pelos nossos pecados • Um derradeiro avanço seproduz, entretanto, quan


do os discípulos compreendem que esta morte eÏiína
Se as primeiras comunidades prestaram atenção, antes Tõgica da existência de Jesus. Não é, de facto, uma fa
de mais, à ressurreição de Cristo, também é verdade que iiade, mas o resultado das escolhas de Jesus, que ama
muito cedo começaram a interrogar-se acerca da Sua «até ao extremo» (Jo 13,1) e que entra «livremente na
nçii. Como é que os discípulos conseguiram Sua paixão». Vai-se assim criando, pouco a pouco, um
ultrpassar o escând?jo da cruz e compreender que era laço de causa a efeito entre a morte e a ressurreição.
obra de salvação? Na peugada de J. N. Besançon(
), po
3 «Humilhou-se a Si mesmo tornando-Se obediente até à
demos distinguir três etapas. morte de cruz; por isso Deus O exaltou» (Fl 2,8-9). A
(3) O autor inspira-se, para esta passagem, em J. N. Bezançon, Dieu expressão «por isso» une num todo o que o «e» da fór
sauve, Paris, Desclée de Brouwer, 1985, reedição, 1987. cap. 5. mula precedente se contentara com justapor.

92 93
Morte e ressurreição, assim associadas, são, a par ria dessa morte algo de abstracto, já que não dava a
tir de então, compreendidas como uma única fonte de devida importância às circunstâncias históricas nas quais
salvação. E assim se compreende que o Novo Testamento ela aconteceu. Correríamos, então, o risco de apresen
veja na cruz a mais sublime expressão da salvação hu tar o combate de Cristo-como um gigantesco drama em
mana. A cruz, para S. João, é uma árvore de vida de que lutariam Deus e o pecado, sem que esta realidade
que o Espfrito brota (Jo 19,34-37); Paulo e os outros fosse nomeada. E o papel de Deus na história lá se es
Evangelistas fazem dela o substituto do Templo, o lu fumava pura e simplesmente.
gar em que o próprio Deus nos garante a Sua presença. Para evitar estes dois extremos, a reflexão sobre a
O escândalo da cruz começa a ser vencido a partir do morte de Cristo deve tirar dela o seu sentido universal,
momento em que a morte de Jesus é assim inserida num mantendo-se o mais possível perto dos motivos que O
sistema explicativo, o qual, no entanto, mantém os olhos levaram à condenação; por outras palavras, tendo em
fixos no que foi historicamente a vida e a morte de Jesus. conta a Sua vida. Os primeiros cristãos tinham conse
guido conservar este equilíbrio. Na era patrística,
formulou-se a salvação alcançada por Cristo em dife
2. De uma vez por todas rentes proposições teológicas, as quais, na peugada de
H. Turner, podem resumir-se a quatro(
)
4
A teologia da redenção tenta explicar o carácter sal
vífico da morte de Jesus, tal qual aparece enunciada no A primeira é a de Cristo luz: Cristo salva-nos, co
Credo: «crucificado por nós sob Pôncio Pilatos», com mo mestre de sabedoria que é, mostrando-nos o cami
preendendo aquele «por nós» na sua dimensão univer nho, iniciando-nos no conhecimento do Pai. Esta
sal, ao passo que o «sob Pôncio Pilatos» chama a atenção perspectiva siblinha claramente o papel de Deus na sal
para a particularidade desta morte, que é um aconteci vação do homem e o papel do homem, que é convidado
mento datado e situado historicamente. Enquanto acon a acolher a salvação. A morte na cruz aparece aqui co
tecimento particular, a morte de Jesus não voltará a mo o supremo acto de amor, destinado a reconduzir a
repetir-se: «Morrendo, foi o pecado que Ele matou de Deus o coração endurecido do homem. Houve quem vis
uma vez por todas» (Rm 6,10; Hb 7,27; 9,12; 10,10). se nisto uma teologia de inspiração joanina.
Só que o seu alcance atinge todos os homens e todas as
épocas. Como pode um destino particular dizer respei • Uma outra figura da salvação é a de C’risto vítima.
to a toda a humanidade? Cristo é, aqui, compreendido como o Cordeiro, que as
Aqui temos nós um dado que desenha os contornos sume como Seus os pecados do mundo. Esta orienta
de toda a soteriologia cristã. Insistir exclusivamente na ção, muito realçada na teologia latina, insiste menos na
história de Jesus leva a que consideremos a Sua morte, acção dos homens do que na acção de Cristo. Inspira-se
pura e simplesmente, como a morte de um herói: uma em noções pedidas de empréstimo sobretudo a domínios
morte como outras ou o «fim de um coração generoso», como o do culto (sacrifício) e do direito (satisfação), etc.
como dizia Bultmann; Insistir exclusivamente no alcan
(4) H. Turner, Jésus le sauveur. Essai sur Ia doctrine patristique
ce universal da morte de Cristo seria outro exagero: fa de la Ródempdon, Paris, Cerf, 1965.

94 95
• Outro tema é este: o Cristo vitorioso sobre os po ço exorbitante, E, nessa altura, as noções tradicionais
deres do mal. Esta figuração, que assume, por vezes, da teologia da redenção ficam falseadas: o sacrifício de
certo ar mitológico, com a insistência, por exemplo, na Cristo é, então, entendido como uma oferenda expiató
vitória sobre os demónios, tem o mérito de sublinhar ria, exigida, aliás, por um Deus irritado; o mérito ape
que a salvação é alcançada através de um combate, o receria como um direito, adquirido pelo esforço do
qual retomando a história de toda a humanidade, a «re homem; e a satisfação não passaria do apaziguamento
capitula» para a salvar (Santo Ireneu). A teologia me reclamado pela ira de um Deus vingador.
dieval, que põe a tónica nos méritos de Cristo, sentiu Ora estes desvios não podem fazer com que esque
grande atracção por esta maneira de encarar o proble çamos o essencial, a saber, o dom que Cristo fez aos
ma. Ainda hoje lhe é sensível a teologia da libertação. homens, o da Sua própria vida. Grandes teólogos sou
beram, através desta teologia da redenção, verter toda
• Uma última forma de exprimir a salvação é a divi a seiva evangélica, sem pactuar com quaisquer desvios.
nização. Comparado com os temas precedentes, este tem E na sua peugada que nós devemos reexaminar as três
a vantagem de orientar o olhar para a perspectiva da sal noções-chave de sacrifício, mérito e satisfação, consti
vação, isto é, para a libertação da escravidão, com o ob tuintes indispensáveis de uma teologia da redenção.
jectivode nos tornarmos filhos. Esta vida de filhos é
uma vida natural com Deus, que transfigura o homem • Sacrifício: O sacrifício, que supõe o dom radical
pecador com o sopro recriador do Espírito. por parte de quem o faz, é sempre orientado para o ou
tro, como muito bem viram Santo Agostinho e S. To
más de Aquino; mas não confere, em si mesmo, essa
3. Em nosso nome comunhão, que só pode vir do Outro, Aquele a quem
o sacrifício se destina. Toda a vida de Jesus foi uma ofe
A tradição latina valorizou sobretudo a segunda pers renda absoluta de Si aô Pai e, neste sentido, foi um sa
pectiva. que pensou a salvação como redenção, parti crifício. Ele «esvaziou-Se» e fez-Se servo, não
cularmente sob a influência de Santo Anselmo reivindicando a Sua igualdade com Deus. Quando Cris
(1033-1109). Este, de facto, estabeleceu um rigoroso laço to morre, dizendo um último «sim» a Seu Pai, o véu do
entre a incarnação e a redenção: se o Filho veio para Templo pode rasgar-se de alto a baixo, porque o lugar
o meio dos homens, foi para pagar, em Seu nome e em da comunicação entre o céu e a terra passa, a partir daí,
Seu lugar, a dívida que eles tinham contraído, pelo pe por Aquele que Se fez, em todo o Seu ser, próximo do
cado. Uma vez que os homens não podiam pagar, o Fi homem. E neste sentido que se deve ler a parábola do
lho ocupou o lugar deles. bom Samaritano, em que aparecem, opostos, o serviço
Vulgarizada de forma desajeitada, esta teoria que
— do Templo e o serviço da caridade (Lc 10e também Rm
marcou profundamente a cultura ocidental, que é a nos 12).
sa — poderia resultar numa verdadeira caricatura de O sacrifício de Cristo salva-nos, porque a Sua exis
Deus, pois faria d’Ele um monarca ciumento, cioso dos tência abre na história dos homens um espaço em que
Seus direitos, que reclama que se faça justiça a um pre Deus é reconhecido como Deus de maneira absoluta, sem
96 97
a menor recusa, sem o menor pecado. «Desta maneira.
o sacrifício está ligado à confissão da alteridade divina.
à declaração que o fiel faz de ir por ele a Deus e de que. Redenção e Libertação
todavia, tudo repousa sobre a gratuitidade soberana de
). Do lado do discípulo, o sacrifício, entendido
5
Deus( Tem pouco sentido opor entre si as noções de re
no sentido de dom radical de si mesmo ao outro, é ‘ denção e libertação. Redenção é um termo medieval, que
resposta ao dom que, em Seu Filho, Deus Lhe fez, tan significa resgate. Traduz as palavras bíblicas de raiz he
to a Ele como a todo o homem. E neste caminho que braica g’l e pdh, que querem dizer tirar da servidão. Li
Cristo compromete os Seus discípulos: onde quer que bertação é, por vezes, suspeita, já que traz consigo
conotações políticas. Mas também está presente na re
o homem dê lugar ao outro, abre um espaço para o Ou denção e nos seus antecedentes hebraicos. E é tudo o
tro que é Deus (Mt 25,3 1-46). que sabemos!
Que uma noção de salvação traga consigo cono
tações políticas é mais um sinal de boa saúde cristã. Sig
• Mérito: como entender a noção de mérito, que tam nifica muito simplesmente que a salvação tem uma
bém faz parte da constelação de uma teologia da reden dimensão colectiva: trata-se da salvação do povo eleito,
ção, sem cair na perspectiva mercantilista? Com este prometida às multidões, à humanidade e à criação. Que
conceito corremos o risco de desenvolver um cristianis há de espantoso que as noções que exprimem tudo isto
mo comercializado, já denunciado por Lutero, e levar tenham sido tiradas do vocabulário social e político?
Claro que a salvação cristã tem um âmbito mais vasto
os fiéis a acumular méritos ou a fazer colheitas nos mé e é de uma natureza diferente da das libertações hu
ritos dos Santos, A noção do mérito é de muito difícil manas. Mas nem por isso podemos recusar o vocabu
utilização em teologia, já que é uma ameaça que pode lário social e político. Preferir palavras aparentemente
atingir a gratuitidade divina. Tentemos, por isso, com mais «neutras» não é menos «perigoso»: nessa altura,
preendê-la de uma maneira correcta. mesmo sem o dizer, daríamos a entender que a salvação
não passa de uma coisa pessoal e reduzir-se-ia a sal
Quando falamos de mérito, estabelecemos um laço vação de Deus à salvação do indivíduo. Lembremo-nos
sobre a base de um contrato, entre um acto determina do velho cântico «Só tenho uma alma, que é preciso
do e um fim conseguido. O trabalhador merece o seu salvar»...
Em 1974, os Bispos franceses propuseram esta as
salário por causa do contrato entre ele e o empregador sunto à reflexão dos cristãos. Cf. Libérations humaines
este contrato estabeleceu uma relação entre o valor do et salut en Jésus-Crist, Paris, Centurion, 1975, e os es
trabalho prestado e a remuneração devida. Recorrendo tudos bíblicos aparecidos nos Cadernos «Evangile», n.°’
a esta noção de mérito para falar de salvação, a teologia 7 e 8. Hoje, são os cristãos de outros continentes que
da redenção sublinha que a salvação é fruto de uma ac dizem aos cristãos dos países ricos que descobriram
o Deus salvador através da sua própria luta contra a
tividade e de um combate humano travado por Jesus. injustiça. Para uma primeira documentação, ver: Le
E neste sentido que lemos o «por isso» (FI 2,9), que reo onardo e Clódovis Boff em Que é a Teologia da Li
bertação? Para uma visão mais ampla de todos os
continentes, ver Bruno Chenu, em Théologies chré
(5) P. Valadier. Jósus-chris ou Dionysos. La ti chrétienne
en con tiennes des tiers mondes, Paris, Centurion, 1987.
fronlation avec Nietzsche, Paris. Desclée, 1979, p. 101.

98 99
nhece um laço semelhante entre a vitória da ressurrei nos salvar, não para aplacar a justiça vingadoura de
ção e o preço pago para a conseguir. Deus, mas por arnor(
)
6
Na existência cristã, a noção de mérito não deve ser Dizendo que os cristãos devem «satisfazer» pela sua
desjua1ificada apriori. Claro que nenhum homem tem salvação, não se sugere de forma nenhuma que Deus é
direito à salvação. Mas idoutrina católica fãIëfa Alguém que exige que Lhe paguemos as dívidas. A sa
iiFueus dá aos homens a possibilidade de - tisfação sublinha o facto de que a salvação é onerosa e
ticipar na sua salvação. Se há uma relação entre as ac que é preciso «pôr-lhe um preço». E isto porquê? Por
ções humanas e a recomp&i esta relação é estabelecida que Deus respeita o hrnm. Ele não exige do ecador
que adquira a sua salvação e o re o ço
mente por Deus. Nãose co nete por isso,nenhurnaten so re- umano, mas dá-lhe o poder de reconstruir oqe
taiti
r
7 atuitidade da salvação. Vê-se isso muito destruiu através da sua recusa. Deus respeita suficien
bem na Parábola do Juízo Final (Mt 25). O destino de temente o homem para o tratar como um ser respon
finitivo de cada um está ligado à sua maneira de viver vel. A satisfação, na obra da salvação, é, por isso,
e de se dar aos outros. E, no entanto, o facto de se de •‘bérn ela, um fruto da graça e uma expressão do amor
votar ao serviço dos outros não dá qualquer direito. Mas, de Deus. Pela satisfação, Deus dá ao homem o poder
por causa de Cristo, Deus estabelece um laço entre a de «inverter a história que Ele próprio criou» (Ch. Du
nossa forma de viver hoje e a vida que Ele nos oferece quoc), tomando parte na libertação alcançada por Cris
em Cristo para sempre. E sobre a base da solidariedade to na cruz.
de Cristo connosco que nós cremos que a i5 liberda
*
di, também ela um dom de Deus, pode particjpa * *
construção do nosso ser .e filhos de Deus.
• Satisfação: Esta terceira noção é, muitas vezes, Sacrifício, mérito, satisfação três noções ititerli
compreendida como uma compensação que Deus exigi gadas no processo da redenção alcançada por Cristo.O
ria como contrapartida da salvação que nos oferece e Deus da Aliança concede ao homem o dom de se voltar
que o Filho, «oferecendo-Se em resgate pela multidão» converter a Ele, radicalmente (sacrifíciol concede-lhe
(Mc 10,45), Se teria oferecido em nosso lugar. Uma tal o dom de tomar parte no seu destino eterno a partir des
interpretação precisa de ser rectificada. No Antigo Tes mundo (mérfto); concede-lhe o dom de inverter, des
tamento, o «resgate» não designa o preço a pagar pela te modo, a histórdoeu pecado (satisfação). Jesus faz
remissão dos pecados; não é uma compra nem uma pa iiexista um eS aço para Deus nesta nossa histó
ga; evoca, simplesmente, a grande quantia de dinheiro ria, que, por si mesma, se cons 1 ui sem eus, quan o
que era preciso pagar para que fosse poupada a vida a (6) Sobre este ponto, ver A. Schenker «Substitulion du châtiment
um condenado. Trata-se, portanto, não da exigência de OU prix de la paix? Le don de la vie du Fils de I’homme en Mc 10.45
um juiz, mas do dom livremente consentido para que et par. à Ia Iumière de I’A.T.», em La Pâque du christ mystêre du Sa
o outro viva. Dizer que Cristo deu a Sua vida em «res lur. Paris, Cerf. 1982. pp. 75-90. E ainda: C’hemins bibliques dela non
-violence. Chambray-Ies-Tours. CId. 1987. Uma busca rigorosa sobre
gate» quer dizer que Ele Se entregou livremente para
as noções de expiação. satisfação, substituição, resgate e outras.

100 101
não contra Ele. É o dom de Deus feito ao homem em 1. O Filho abandonado
Jesus Cristo, Seu Filho, que torna possível o dom do
homem a Deus, pelo caminho que Jesus abriu.
Tanto Mateus como Marcos sublinharam o facto de
Jesus ter gritado, na cruz, o Seu abandono, usando para
isso as palavras do Salmo 22: lamentação do justo per
III. Revelação seguido. Vários teólogos do nosso tempo, na peugada
de Lutero, interpretam este grito no sentido literal: Je
A cruz resulta do cruzamento de dois caminhos: o sus, identificado com os pecadores, aceita o castigo que
caminho de Deus para ÕTiomem e o caminho do hom Deus lhes destinou e assume o silêncio dos condenados.
para Deus. E o eixo a partir do qual a história da huma E cá teríamos nós a expressão extrema do amor de Deus,
nidade pode voltar para Deus, seu criador. Mas porque que Se humilha até ao lugar onde Ele não habita,ito
é também a expressão por excelência do dom de Deus é, os internos, habitados pelos pecadores e os d
aos homens e o objectivo da incarnação, a cruz não é perados.
so a «lingua em da salva ão dos homens»; tam Não achamos aceitável esta maneira de dramatizar.
ém reve a eus, o Deus de Jesus Cristo. A mensagi o silêncio de Deus. Primeiro, porque dá importância de
da cruz não consiste apenas numa pa1vra sobre al nasiada, exclusiva mesmo, à citação de um salmo, es
ro do homem; deve ser entendida como uma pala 4uecendo as outras palavras do Crucificado, como, por
viacerca de Deus, que vem corrigir todas as palavras exemplo, a Sua oração confiante (Lc 23,46). Depois,
que os homens religiosos podem dizer acerca de Deus. porque o salmo em si não quer dizer isso. Jesus retoma
E é por isso que é uma prova para os que crêem emEus a prece de um justo perseguido; em parte alguma Se iden
(lCor 1,18-25). tifica com o pecador, sendo sempre o inocente tortura
Mas será digno de fé o Deus que Se revela na cruz? do, abandonado por todos. E há outras razões mais
Seja corno for, é um Deus embaraçoso. Vamos dividir teológiças pinda, que nos impedem de concluir gueJe
a nossa tentativa em três questões diferentes: como é pos qide facto, abandonado por Deus. Se isso aconte
ir ísj que Deus tenha deixado morrer o Seu Filho? Por cesse por Jesus ter assumido os pecados do mundo, era
frtjw’ que é que,$e calou no alto do Gólgota? Será que a cruz porque Deus continuava a ser o Deus do castigo. Será
dá um sentido ao Seu sofrimento? Estas questões são me este porventura o Deus anunciado por Jesus?
(Ivitáveis. E são de agora como de todos os tempos. i: A vida de Jesus revela um rosto de Deus bastante
atingido pelo mal, sem razão aparente parajsso; ps Ju diferente. Pelo perdão e misericórdia, que sempre pra
deus tragados pelos campos nazis (ou a choá) fazem com ticou, Jesus revela um Deus de uma extrema ternura.
que o vejamos em toda a sua crueza. Face a tanto sofri «Quem Me vê, vê o Pai» (Jo 14,9). Os gestos e i vida
mento e a este mal, cego ou cruel, Je Jesus fazem vislumbrar um Deus totalmente incapaz
Deus não tem mais resposta que o silêncio? E o rnisté le abandonar o Seu Filho no exacto momento da Sua
rio do sofriiiento, que surge, nu e cru, ante o mistério maior angústia. Poderá Q Deus de Jesus, que Se põe à
de Deus. procura de quem se perdeu, rejeitar o Seu Filho, no trá
102 103
gico momento em que Este não passa de um agonizante tante, D. Bonhoeffer, executado pelos nazis em 1945,
mergulhado em trevas? E uma perspectiva que se não dá a dimensão exacta desta fraqueza. «Perante Deus e
pode aceitar.Ç, v,s com Deus vivemos sem Deus, Deus deixa que O epul
sem do mundo e que O cravem numa cruz. Deus éim
2. O silêncio de Deus potente e fraco no mundo e só assim está connosco e
fiãs_ajuda.:. Cristo não nos ajuda pela Sua omnjp2n-
Partamos do princípio que Deus não podia abando cii, mas pe1iífiiqueza e pelos Seus sofrimentos». (8)
nar o Seu Filho. Então porque Se fecha num defensivo Estar diante de Deus e com Deus e viver sem Deus sig
silêncio? Atingimos ás fronteiras do mistério. Para o Ju nifica aceitar a nossa condição humana e não esperar que
deu que viveu a experiência de Auschwitz(
), o Deus
7 Deus ocupe o nosso lugar. «O Deus que está connosco
de Jesus Cristo aparece, como nunca, como um Deus nos abandoni», escreve ainda Bonhoef
silencioso. Limitar-nos-emos, neste capítulo, ao silên fer; «deixa-nos viver no mundo sem termos a hipótese
cio de Deus no Monte Calvário. Será que Deus podia de Oencontrar».
desfazer esse silêncio e mostrar, face aos pecadores que Ao dizer isto, Bonhoeffer está a assumir a posição
condenaram o seu Filho, a Sua «temível força»? Deus teológica de Lutero: a fraqueza do Crucificado é a con
não costuma proceder desta maneira. dição da Sua revelação. Um Deus fraco não corre o ris
Um Deus que interrompesse o silêncio do Calvá.rio co de ser confundido com um Deus fabricado pela mão
deixaria de ser o Deus que Cristo manifestou. E que Deus do homem. Quando os homens inventam deuses para si
manifesta-Se gratuitamente, sem condições e sem nada mesmos, faih-nos omni tentWëinflexíveis. A ciii
exigir em troca. Não o faz para que a Sua justiça ou a e esus e, por isso mesmo, bem revel4pçlopç-
Sua honra seja salvaguardada. Já em Belém Se mani
homens que que
festou num Menino pobre e recusado (Lc 2,12). Nada m chgáiwveus segumdo sem re as suas rs tivas.
há mais desarmado que o amor, porque o amor não po cruz e o ugar em que Deus diz o Seu verdadeiro no
de deixar de se expor à liberdade daquele que se ama. me, que em nac1se contunde com outrosdeuses; o seu
Ainda que isso lhe custe, Jesus, na cruz, dá testemunho me é amor, amor que se faz próximo, Deus-connosco,
da gratuitidade de Deus. E por isso mesmo o Pai não até no abandmais absoluto. (9)
intervém. E nem após a ressurreição o Filho ensina aos
Seus inimigos o que devem fazer; os próprios discípu
los se admiram com esta discrição. Se Deus guardou si 3. Deus habita o sofrimento
lêncio no Calvário, fê-lo para não contradizer o
testemunho de Seu Filho, o qual, desta maneira, reve O sofrimento é chocante e desde o princípio que os
lava um Deus que Se oferêce e entrega. cristãos têm tentado dissipar-lhe a sombra. E têm gasto
Esta aparente fraqueza de Deus remete para a liber (8) Résistance er soumission. Leures de prison, Genebra, Labor et

dade e responsabilidade do homem. Um teólogo protes Fides, 1963, p. 162.


(9) Cf. J. Sobriflo, ..La mort de Jésus eL la libération de l’histoire»’,
(7) Ver E Fackenheim, Penser après Auschwitz, Paris, Cerf, 1976. emJésus et Ia libération en Arnérique latine, colect. Paris, Desclée, 1986,
cap. 3. p. 275.

104 105
somas enorme de sabedoria humana para o conseguir. justiceiro). Só o perdão de Jesus quebra o silêncio de
Conhecemos os discursos dos amigos de Job, que ten Deus. A morte de Jesus naquele extremo despojamento
tam justificar o sofrimento humano. E, no evangelho, não explica o mal nem o sofrimento; mas mostra um
nota-se a mesma atitude (cf. J 0 9,1-4): pretende-se ex Deus que aceita sujeitar-Se ao sofrimento. E, a partir
plicar o sofrimento como castigo dos nossos pecados. de então, ficamos a saber que não há miséria humana
E, ao longo da história, sempre se retomaram as mes que Deus não possa visitar e partilhar.
mas explicações, que se tornaram um lugar-comum. (10) A ressurreição não vem dar solução aos dramas que
Ora Jesus, em vez de justificar o sofrimento, fez tu afligem a condição humana, como se Deus exigisse so
do o que pôde para o minorar. Tem uma atitude prática frimento e morte para fazer deles brotar a vida. Ela ma
e sente pressa de aliviar os que sofrem. Enquanto ou nifesta, sim, que onde houver sofrimento, Deus pode
tros procuram o culpado, Ele cura o doente (lo 9; Lc fazer com que nasça a vida e nasça com abundância. Foi
13,2-6). E, deste modo, descobre e denuncia uma asso o que fez na Páscoa, pela Sua graça.
ciação que se apossara da consciência humana: o sofri
mento era o preço a pagar pela falta cometida; uma ***

espécie de salário da culpabilidade. A cruz rompe o cer


co. Jesus, que morre na cruz, é inocente, é o homem «Deus amou de tal maneira o mundo que lhe entre
sem pecado. Se é esmagado, não é certamente por cau gou o Seu Filho único para que todo aquele que acredi
sa dos Seus pecados. Assim se vê como é preciso afas ta n’Ele não mais pereça, mas tenha a vida eterna» (Jo
tar a ideia de que sobre Ele, o Crucificado, pesa a cólera 3,16). Estas poucas linhas resumem toda a mensagem
de Deus. Uma perspectiva destas levará, fatalmente, às da Páscoa. Deus fez-Se solidário com aquilo que estava
velhas explicações, que viam no castigo uma vingança perdido, desesperado. Pelo que a cruz, mais do que men
de Deus. sagem trágica, é uma mensagem de amor. Criando a hu
Cristo morto na cruz não sofre de facto a cólera de manidade, o Deus de aliança correu o risco de apostar
Deus; não é castigado por ser culpado de culpas pró na liberdade humana: o risco da recusa. O Filho, na cruz,
prias ou das nossas culpas. Os que sustentam estas ideias assume este risco. Solidário com todos, Cristo não po
e se exprimem nesta linguagem são precisamente os ini dia consentir que o homem fosse desfigurado, já que o
migos de Cristo. Se sofre e morre, é como vftima de Seu Pai é o Deus da vida, é o criador.
uma violência que procede dos homens e não de Deus. E assim Jesus continua a ser, até à morte, o «Deus
A cruz de Jesus bem como o perdão que Ele concede connosco»: Deus que Se entrega aos homens, sem con
ao morrer são a clara denúncia desta violência. O silên dições prévias nem outra qualquer razão, pois o Seu no
cio de Deus não é cumplicidade com a violência, mas me é amor. Tornando-Se homem, este Deus, para quem
exprime a recusa de participar no círculo infernal o homem está bem cotado, rasga para a humanidade um
violência-repressão (violência do culpado-repressão do caminho de vida, que é a sua vida divina posta à dispo
sição dos homens (ver Anexo IV.
(lO) Ver J. Delumeau, Le péché et Ia peur. La culpabilitó
en Occi
dent (séculos XIII-XVIII), Paris, Fayard. 1983, pp. 331-338.

106 107
Conclusão

CRISTO ESTÁ VIVO


Como redescobri-1’O?
No termo deste percurso através de todas as épocas
da história, ficou bem claro que Jesus Cristo ocupou,
ocupa e ocupará sempre um lugar central, na vida dos
homens. Quando se trata de esclarecer problemas essen
ciais da condição humana, como a vida, o sofrimento,
a morte, a salvação, o amor, ainda é junto de Cristo que
os cristãos procuram, como sempre procuraram e en

contram a indispensável luz. Atentos à tradição, apren


demos que a fé em Cristo, que lhes dinamiza a vida,


não é coisa que se invente. Tem como base o testemu
nho dos Apóstolos, e cada geração a recebe da geração
imediatamente anterior. E levanta se, então, um proble
ma inevitável: como poderemos, nós que não vimos nem
ouvimos Jesus Cristo, encontrarmo-nos com Ele?
Certo dia, dois discípulos, que iam de longada até
Emaús, falavam um com o outro sobre os factos suce
didos; «Jesus em pessoa aproximou-Se e seguiu com eles;
só que os olhos deles estavam impedidos de O reconhe
cer» (Lc 24, 15-16). E esta a situação do crente. A pre
sença de Jesus Cristo não lhe falta; só que ele não tem
os olhos suficientemente abertos nem tem uma fé sufi
cientemente forte para O reconhecer ao longo do cami
nho. Deus está ausente, mas não está longe. Uma vez
que na tradição bíblica o número sete é o número per
feito, vamos marcar as sete maneiras pelas quais Jesus
Cristo, afastando-Se dos nossos olhos carnais, para nos

111
deixar entregues à nossa própria responsabilidade, ga «pregação», muito valorizado pelos Protestantes, englo
rante a Sua presença na vida do crente. Trata-se de uma ba, a um tempo, o anúncio de Cristo (Kerigma) e o en
última etapa do nosso percurso, para nós essencial, se sino da doutrina (Didaké). A pregação é algo de urgente:
é que o Nome de Jesus continua a ser hoje a razão da <(Ai de mim se não pregar o Evangelho!» (iCor 9,16).
nossa vida. Consiste, essencialmente, na transmissão, aqui e ago
ra, da fé recebida dos Apóstolos: «Eu vos transmiti o
1. A ESCRITURA. Houve um tempo em que os que eu mesmo recebi» (iCor 15,3). E um verdadeiro
cristãos liam pouco a Escritura. Ora a Escritura é a Pa encontro com Cristo: «Quem vos escuta escuta-Me a
lavra de Deus. Nela se conserva a memória das passa Mim» (Lc 10,16).
gens de Deus na história dos homens. Ela conserva os
vestígios dos feitos e gestas de Deus em favor da Sua 3. OS SACRAMENTOS. Para o cristão, há unia rea
criação, muito embora nem tudo ali venha relatado. Pa lidade sagrada, que é o corpo de Cristo, novo Templo,
ra tudo contar em miúdo pormenor, (<penso que o mun conforme sublinhámos em várias ocasiões. Mas esta rea
do não bastaria para conter os livros que se escreveriam» lidade do Seu corpo, subtraído ao nosso olhar após a
(Jo 21,25). A acção de Deus no mundo ultrapassa os Ascensão, continua a existir sob a forma de Sacramen
limites das folhas de um livro. Mas o livro que nós te to. Jesus Cristo é o Sacramento fundamental, Aquele em
mos diz-nos o essencial: a saber, que Deus está «com que Deus assumiu rosto e pelo qual Se tornou visível,
o homem», não como espectador, mas como actor, mis e os Sacramentos que nós celebramos são outros tantos
turado com ele na mesma história, assumindo também sinais que remetem para o Seu corpo de crucificado/res
a condição humana. E meditando na Escritura, indivi suscitado. «Fazei isto em memória de Mim» (Lc 22,19).
dualmente ou em grupo, que o nosso olhar se pode abrir, A Eucaristia, e também os outros Sacramentos, são um
pouco a pouco, ao verdadeiro rosto de Deus, já que ((nun acto de «memória», que não deve entender-se como sim
ca ninguém viu a Deus; o Filho único, que está no seio ples recordação de uma lembrança conservada nos ar
do Pai, Esse foi que O revelou» (Jo 1,18). quivos de uma biblioteca, mas como a re-actualização
de uma presença viva.
2. A PREGAÇÃO. Não basta ter uma Bíbliá para
descobrir a Cristo. S. Paulo escreve: «A fé nasce da pre 4. A iGREJA CORPO DE CRISTO. «Saulo, por
gação, e o instrumento da pregação é a Palavra de Cris que Me persegues?» (Act 9,4). No caminho de Damas
to..;» (Rm 10,17). O eunuco da rainha da Etiópia deixava co, Paulo compreendeu que Cristo constituía um só
Jerusalém e seguia para Gaza; levava consigo a Escri «corpo» com a comunidade daqueles que, crendo n’Ele,
tura, mas lia e não entendia. ((Porventura compreendes davam testemunho dessa mesma fé. Logo a seguir a es
de verdade o que lês? E como poderei compreender,
— ta experiência, Paulo desenvolveu toda uma teol6gia da
se ninguém no explica?» (Act 8,30-3 1). Foi o diácono Igreja como «Corpo de Cristo»: Deus «constituiu-O acima
Filipe que o instruiu. Para bem compreender a Escritu de tudo como Cabeça de toda a Igreja, que é o Seu Cor
ra, é necessária a pregação da Igreja, já que é a Igreja po» (Ef 1,22). Um corpo que tem a garantia da presen
que faz nascer da letra o espírito e a verdade. O termo ça de Cristo: «Eu; por meu lado, estarei COflVOSCO todos
112 113

‘1
a
os dias até ao fim do mundo» (Mt 28,30). Santo Agosti 9,29). Cristo ressuscitado «está presente sempre que
«quari
nho vai tirar daqui as suas conclusões: «A cabeça e o Igreja ora e canta os Salmos»; Ele, que prometeu:
reunidos em Meu nome, Eu
corpo constituem um só Cristo... pois Cristo quis dar- do dois ou três estiverem
Está também pre
-Se-nos e estar connosco todo inteiro». (1) Explicitando estarei no meio deles» (Mt 18,20)().
no
esta identificação, que não é conclusão, o Concílio Va sente da mesma maneira junto daquele que, retirado
ticano II irá dizer: «Comunicando o Seu Espírito aos Seus seu quarto, de porta fechada, ora em segredo (Mt 5,5).
vo-la
irmãos, que reunira de todas as nações, fez deles, mis «Se Me pedirdes alguma coisa em Meu nome, Eu
concederei» (Jo 14,13). A oração, porém, seria falsa,
ticamente, como que o Seu Corpo». (2) condição
se fosse dissociada da vida. Cristo põe uma
que
5. OS MINISTÉRIOS. Cristo torna-Se visível não para que seja autêntica qualquer oração: o perdão
ir
somente através de sinais, como também por meio de se concede. «Vai, primeiro, reconciliar-te com o teu
mão; vem, depois, apresentar a tua oferenda» (Mt 5,24).
homens escolhidos para serem os ministros da Sua pre horizon
sença e a garantirem. O ministério eclesial, que é um O eixo vertical da oração cruza-se com o eixo
nunca está
serviço (Jo 13,1-17), não é para colocar ao lado de Cris tal da relação sincera com os homens. Cristo
to. Quandõ o ministro perdoa, é Cristo que baptiza». (2) apenas num destes eixos.
De onde se conclui que o ministro nada tem a dar que É
seja próprio; tudo o que dá, dá-o «em nome de Cristo». .7. TODO E QUALQUER ROSTO HUMANO.
presença de Cristo não
Enquanto Jesus age em Seu próprio nome («Jovem, Eu preciso alargar os horizontes. A
Ninguém
te ordeno, levanta-te! (Lc 8,54), Pedro diz: «Eneias, Je se deixa encerrar em fronteiras muito estreitas.
res
sus Cristo vai curar-te!» (Act 9,34). O ministério ecle O pode monopolizar. Nem sequer na Igreja. Nem
sial não mais pode ser colocado ao lado ou acima da tringir a Sua acção a um espaço previameflte delimita
discípulos,
comunidade eclesial. Desenvolve-se no seio dela como do. Já noutros tempos, entre o grupo dos
existiu tal tentação: querer delimitar o espaço da Sua pre
um seviço. «Bispos, não somos Bispos para nós próprios,
sença e da Sua acção. «Mestre, vimos alguém a expul
diz Santo Agostinho, mas para aqueles a quem servi
mos a palavra e o sacramento do Senhor». (4) sar demónios em Teu nome e quisemos impedir-lho,
para
porque não anda connosco» (Lc 9,49). Cristo veio
exclui seja quem for. Ele, o
6. A ORAÇÃO. Foi na oração que Jesus viveu mais todo o ser humano e não
dos muros da cidade
intensamente a Sua relação com o Pai e era na oração excluído, que foi crucificado fora
ex
que se podia ver no Seu rosto o resplendor da glória: santa, identifica-se de modo particular com todos os
conhe
«enquanto orava, o aspecto do Seu rosto mudou» (Lc cluídos, todos os recusados. Gosta de Se dar a
(Escritura e
cer, não somente no caminho de Emaús
de tudo, no caminho que
(1)Santo Agostinho, Sermão 341,9. fracção do pão), mas, antes
todos os feridos
(2)Lumen Gentium 7, Concilio Vaticano II. vai de Jerusalém a Jericó, onde jazem
vir um
(3) De sacra liturgica n.° 7, ibidem: é uma passagem que evoca
da vida (Lc 10,29-37; Mt 25,31-46). «Se alguém
várias presenças de Cristo das que a nossa conclusão indica. Ver ainda
La foi des catholiques, Paris, Centurion, 1984, pp. 562 e ss.
(4) Santo Agostinho. Contra Cresconium X. 13. (5) De sacra liturgica n.° 7, op. cit.
115
114
irmão em necessidade e lhe fechar o seu coração, como
estará com ele o amor de Deus?» (iJo 3,17).
Este último aspecto leva-nos ao que foi a nossa preo
cupação constante ao longo deste percurso: uma fideli
dade plena à Palavra de Deus, mas uma fidelidade que
requer uma intensa atenção aos nossos contemporâneos,
pois Jesus Cristo continua a caminhar entre eles. A Sua
Palavra é uma Palavra para todas as nações, uma Pala
vra que questiona todo e qualquer homem. Esta Palavra
deve ser proclamada e já o é agora na cultura dos ho-
mens do nosso tempo, para que cada um possa desco
ANEXOS
brir nela a resposta mais ajustada .às suas buscas de
sentido e salvação. E esta a responsabilidade da Igreja
e de todo o cristão. Mas esta responsabilidade deve ser
acompanhada de um enorme respeito pela liberdade de
cada ser, uma vez que o próprio Deus respeita esta li
berdade mesmo naqueles que se fecham na recusa.
Para sermos exaustivos, muitas mais páginas tería
mos de escrever. Os dados bibliográficos e outras pis
tas de trabalho permitirão a cada um prosseguir o labor
e progredir na compreensão da sua fé em Jesus Cristo.
O essencial daquilo que nos propusemos terá sido con
duzir a fé cristã ao seu centro de gravidade, Jesus de
Nazaré, Filho de Deus, morto e ressuscitado, salvação
oferecida a todo o homem. Aí está o núcleo «indivisí
vel», a chave da abóbada de todo o edifício. Claro que
há outros aspectos no cristianismo, que são importan
tes, como os Sacramentos, a Igreja ou o compromisso
dos cristãos nas lides do mundo. Mas todas estas coisas
só têm sentido a partir do centro, que é Jesus Cristo,
e devem, de um modo ou de outro, remeter para Ele.
Quer o homem o saiba, quer não, «não há debaixo do
céu outro nome dado aos homens pelo qual possamos
ser salvos» (Act 4,12).

116
1

E PARA MIM,
QUEM É
JESUS CRISTO?

Muitas confissões de fé redigiram e publicaram, em que cren


tes e não-crentes assumem o risco de dizer o que era para eles
esse homem que os cristãos reconhecem como Filho de Deus.
Dizer a própria fé não é coisa fácil; mas escrevê-la é bem
mais difícil. Talvez ajude o método progressivo a seguir
enunciado:

1. Procurar, primeiro, os episódios evangélicos que consi


deramos os mais significativos, sobre quem é Jesus, esse Jesus
que me taz viver.

2. Tentar, depois, a partir e com base em cada um desses


episódios, qualificar Jesus. Exemplo: perante o centurião, Jesus
aparece-me como um homem que se alegra com este aconteci
mento de fé e que o oferece a Deus, Seu Pai.

3. Recordar as grandes afirmações do Credo referentes ao


mistério de Cristo: em relação a Deus, Ele é o Seu Filho ánico;
em relação a nós, Ele «morreu pelos nossos pecados», é, por
tanto, salvador, razão da nossa esperança, etc. Acrescentar este
termo, corrigir aqueloutro, e por aí adiante.

E, finalmente, depois de termos examinado e ruminado bem


as propostas de trabalho sobre cada um dos três pontos supra,
decidirmos então: «para mim, Jesus...»

119
2

A HUMANIDADE
DE CRISTO
E A SALVAÇÃO

Conforme sublinhámos na segunda parte deste nosso livro,


os teólogos aprofundaram de diferentes maneiras, ao longo da
história, o seu entendimento de Jesus Cristo. Já na antiguidade,
como no tempo da Reforma protestante, tiveram de insistir so
bre a verdadeira humanidade de Cristo, condição por excelên
cia da salvação. Seleccionámos dois textos, um de Ireneu e o
outro de um teólogo contemporâneo, Marc Lienhard, intérprete
de Lutero; tanto um como o outro põem a tónica na natureza
humana de Cristo.

Ireneu: Homem para nossa salvação

No seu tratado Contra as heresias (cf. ed. du Cerf, 1984),


escrito contra os gnósticos, que negavam a real incarnação de
Cristo, Ireneu argumenta assim a favor da verdadeira incarna
ção: se Cristo não incarnou realmente, então o homem não está
salvo de facto. E o que se chama o argumento da salvação. Da
mos a seguir um trecho, que explicita de modo perfeito o seu
pensamento:
«Era necessário que Aquele que devia matar o pecado e res
gatar o homem, que merecia a morte, Se fizesse aquilo que o
próprio homem era, isto é, homem sujeito à escravidão do peca
do e escravizado ao poder da morte, para que o pecado fosse
morto por um homem e, desta maneira, o homem se libertasse
da morte. E que, da mesma maneira que, «pela desobediência
de um só Homem», que foi o primeiro, modelado a partir de
uma terra virgem (Gn 2,5), «muitos se tornaram pecadores», e

121
perderam a vida, assim também era conveniente que, «pela obe condições de historicidade acima indicadas, o ser profundo de
diência de um só homem», que é o primeiro, nascido da Vir Deus.
gem, «muitos fossem justificados e recebessem a salvação». Por «Mas, numa outra perspectiva, o que se encara é nem mais
isso o Verbo de Deus Se tornou homem desta maneira de acor nem menos que o drama da salvação levado a cabo por Jesus,
do com aquilo que diz também Moisés: «A obra de Deus é per Filho de Deus. Aqui, Lutero descreve Cristo, confrontado com
feita» (Dt 32.4). Se não se tivesse feito homem e apenas tivesse a cólera do Pai, a suportar o castigo merecido pela humanidade
assumido a aparência da carne humana, a Sua obra não teria si pecadora e reconciliando Deus com os homens. Fala também,
do perfeita. Mas Ele era realmente aquilo que parecia ser, ou numa outra perspectiva, do combate glorioso travado por Cristo
seja, Deus, que recapitulava em Si mesmo esta antiga obra re contra a lei, o pecado, o diabo e a morte, esses poderes que su
modelada, que é o homem, para matar e destruir a morte e dar jeitavam os homens por causa da cólera de Deus. Ora como po
vida ao homem; por isso mesmo é que as Suas obras eram ver deria o Filho assumir de verdade o pecado dos homens e suportar
dadeiras» (111,18,7). assim a cólera de Deus, como poderia Ele triunfar da lei da morte,
«A glória de Deus é que o homem viva e a vida do homem se não Se tivesse tornado homem? Poderia, sem dúvida, ter sal
é a visão de Deus; sejá a revelação de Deus pela criação conce vo os homens como os criou, ou seja, sem participar da Sua con
de a vida a todos os seres que vivem na terra, quanto mais a dição humana; mas não foi esse o caminho que Deus quis seguir.
manifestação do Pai pelo Verbo não há-de conceder a vida àqueles já que resolveu fazer apelo à fé dos homens».
que contemplam a Deus» (IV,20,7).

Lutero: Solidário com os homens para revelar o amor do Pai


e reconciliar o homem com Ele

Para Lutero, Deus é perfeitamente livre e poderia, por isso,


ter salvo os homens de uma outra maneira que não a Incarna
ção. Se incarnou, foi porque quis participar plenamente da his
tória dos homens e permitir-lhes, através da história de Jesus,
apreender o verdadeiro rosto de Deus, não de um Deus impassí
vel, como os filósofos O tinham imaginado, mas de um Deus
que revela, desta maneira, o Seu ser eterno, trinitário, que é o
amor. Resumindo o pensamento de Lutero, Marc Lienhard es
creve (cf. Luther, témoin de Jésus-Christ, Cerf, 1973, pp.
387-388):
«O Filho incarna para revelar o amor do Pai aos homens su
jeitos à cólera de Deus. E uma primeira perspectiva de Lutero,
a que se poderia chamar joanina. «Quem Me viu, viu o Pai» (Jn
14,9). O homem-Jesus, que é também o Filho eterno tornado
carne, revela, deste modo, numa linguagem humana, através de
gestos e actos humanos, o amor eterno do Pai, que subsiste mes
mo quando a cólera de Deus submerge o Filho. A humanidade
é, deste modo, instrumento da divindade, a fim de revelar, nas

122 123
3

«DIZER» A SALVAÇÃO
COM AS NOSSAS PALAVRAS

Este exercício é mais para grupos. Trata-se, agora e mais uma


vez, de propor um caminho, cujo ponto de chegada é exacta
mente a elaboração de um texto. Esta etapa, em que se trabalha
sobre as palavras, é, na verdade, passagem obrigatória.

1. Fazer um breve inventário de todas as palavras do campo


vocabular da fé, que exprimam, directa ou indirectamente, o te
ma da salvação:
Quais são essas palavras? Provocam ou não a vossa rejeição?
Por que razões?
Deixam-vos indiferentes? Porquê?
Interpelam-vos ou entram em ressonância com a vossa expe
riência? Em quê?

2. Através das experiências humanas fundamentais, que mar


caram a vossa vida, podereis dizer:
• em que é que estas experiências vos ajudaram a ver mais
claro o tema da salvação?
• em que é que o tema da salvação tornou mais claras estas
experiências?

3. Finalmente, de quê, de quem, por quê e por quem, para


quê fostes vós (já) salvos ou desejais sê-lo?

Trata-se, agora, de assumir o risco de produzir um texto, por


imperfeito, incompleto e mal redigido que seja. E que este texto
é o vosso compromisso numa obra comum.

a) que cada um escreva as coisas essenciais que quer dizer


acerca das coisas da salvação e tendo em conta a sua experiência.

125
b) Confrontem todos estes textos pessoais, tentando desco
brir os elementos comuns, os elementos particulares deste ou da 4
quele, mas que alcançaram o consenso do grupo, as posições
opostas ou as formulações diferntes de elementos que não estão
em contradição, bem como os pontos de divergência.
c) Poderão, eventualmente, redigir, a partir da proposta de JESUS CRISTO
um ou dois elementos, um texto que seja a expressão dos ele
mentos comuns e das posições divergentes não contraditórias. — UM SENTIDO
Depois, poderão ainda, se for caso disso, formular as diver
gências.
PARA A NOSSA
CAMINHADA
Em todas as épocas, tiveram os teólogos de exprimir a sal
vação concedida ao homem em Jesus Cristo. A terceira Parte
tentou pesquisar as diferentes linguagens, através das quais a Igre
ja exprimiu esta salvação e procurou torná-la crível. Os nossos
contemporâneos, sensíveis, sobretudo, aos problemas existen
ciais, retiveram, sobretudo, o sentido que Cristo introduziu na
nossa existência e na nossa condição humana. Entre as figuras
que queremos evocar, retocemos Teilhard dc Chardin
(1881-1955) e Albert Carnus (1913-1960), acrescentando o tes
temunho de um teólogo da teologia da libertação, John Sobrifio,
que aparece como uma réplica indirecta a Camus.

Teilhard de Chardin:
Só Cristo pode marcar o ritmo da nossa caminhada

Ao interrogar-se sobre a Incredulidade moderna (1933), Tei


lhard descobriu a causa principal da descrença no divórcio exis
tente entre «crer em Deus» e «crer no mundo». Mas este mundo
não lhe parece «radicalmente descrente ou arreligioso», mesmo
tendo em conta o facto de o seu «poder natural de adoração’> se
ter desviado, momentaneamente para o Universo e «aparecer co
mo oposto ao Deus cristão». O «melhor» que os homens espe
ram só pode vir de Cristo. Escreve Teilhard:

«Se a análise precedente é exacta, isto é, se a descrença mo


derna é devida, como parece certo, a uma espécie de ocultação
do «Deus revelado», substituído pelo «Deus-mundo>, o meio de
corrigir directamente o mal de que hoje sofremos surge com da

126 127
reza. Trata-se, para nós, de estabelecer que, longe de eclipsar Albert Camus: o divino Resignado
o Deus cristão, o Universo, no estado actual das investigações,
opti
apenas está à espera de ser transfigurado e completado por Ele. Camus é um descrente. A sua visão do mundo é menos
Sentimo-lo chocado, sobretudo com o
Queremos que os Homens regressem a Deus, transportados pe mista que a de Teilhard.
e com a morte do Inocente. Olhando para o Crucifi
la mesma força que, na aparência, os afasta d’Ele? Abramos, sofrimento
mas.
então, nós próprios, com generosidade, o espírito e o coração cado,. Camus reconhece que não é possível acusar a Deus;
assume totalmente a Sua con
às perspectivas e aspirações novas; tomemos posse delas e na realidade, o Crucificado, que
realmente. E mais uma vítima, que
cristianizemo-las. dição humana, não a muda
«Primeiro, apoclererno-nos delas. Façamos, aqui, o nosso exa torna mais escandaloso ainda o silêncio de Deus.
me de consciência. Não temos continuado a ser, nós os cristãos, «Cristo veio resolver dois problemas principais: o problema
grandes
pessoas que, na verdade, se mantêm estranhas ao espírito da Hu do mal e o problema da morte, que são precisamente os
consistiu, antes de mais.
manidade, que temos obrigação de salvar? (...) Não temos dei problemas dos revoltados. A sua solução
própria. O Deus-homem sofre com
xado (e estou a citar) «hipertrofiarem-se, na nossa religião, as em assumi-los como coisa
nem a morte Lhe pode ser imputável seja
noções de pecado e de salvação individual»? Não é verdade que paciência. Nem o mal
for, já que também Ele é dilacerado e morre. A
irradiamos, demasiadas vezes, a sombra da cruz, em vez do seu de que modo
história dos ho
brilho?... noite do Gólgota tem a importância que tem na
abando
«Decerto que nem tudo é mau nesse sopro de optimismo con mens exa.ctamente porque. nestas trevas, a divindade,
privilégios tradicionais, viveu até
quistador que move a massa humana; porque haveremos então nando ostensivamente os Seus
inclusivamente, a angústia da morte.
de defender-nos dele? Não será o Evangelho um fermento que ao fim, até ao desespero,
Cristo
é preciso pôr lá muito dentro do coração do mundo?» Non veni Tentam explicar o «Lamá sabactani» e a dúvida atroz de
contar com a es
sol vere, sed adimplere». na agonia. Esta seria muito ligeira, se pudesse
homem é necessário
«Consumar é cristianizar. Para operar esta transformação, não perança eterna. Para que Deus sejam um
pode bastar e sentimo-lo bem — uma crítica puramente inte
— que desespere». (2)
lectual ou negativa, que elimine os falsos materialismos e os fal
sos panteísmos. A nossa missão é voltar a vestir (induere), na
sua plenitude natural, a alma religiosa do Mundo actual e vivê Um Deus credível através da cruz
-la, plena e sinceramente, no plano cristão. As aspirações reli
giosas do Humanismo moderno são, tristemente, vagas e ina Se, para o ateu, a cruz é mais um escândalo, para o crente.
parti
cabadas. A nós compete mostrar, verbo et exemplo, que só a ela revela um Deus que não seria credível se não tivesse
humana até à morte, e morte de cruz (FI 2,6-11).
realidade concreta de Cristo tem condições para as tornar fir lhado a condição
América
mes, centrá-las e salvá-las. Quando, exactamente em virtude do E isto mesmo que sublinha muito veementemente, na
Libertação, John Sobrifio:
seu Cristianismo, pela actividade construtiva da sua caridade, Latina, um teólogo da Teologia da
pela riqueza operante da sua renúncia, pelo arrojo confiante das
cruz de Jesus
suas perspectivas sobrenaturais, os cristãos se mostrarem os pri «A impotência de Deus, que se manifesta na
credível o poder de Deus, que vai manifestar-se na
meiros entre os Homens a espiritualizar os valores terrestres e (...). torna da Sua
ressurreição. E que a impotência de Deus é a expressão
a caminhar ao encontro do Futuro, então, nessa altura, a me de-
lhor, isto é, a mais perigosa parte da descrença humana ficará absoluta proximidade dos pobres, a participação no destino
desarmada até ao âmago». (1)
(2)Extracto de L’homme révolté, Paris. Gallimard, 1961, p. 40.
Cerf
(i) Extracto de Science et Christ, Obras de Pierre Teilhard de Char Ver o comentário de Jürgen Moltmann, Le Dieu Crucifié, Paris.
din, 9, Paris, Seuil 1965, pp. 152-153. -Mame, 1974, p. 259.
129
128
les até às últimas consequências. Se Deus estava na cruz de Je Índice
sus, se Ele conheceu dessa maneira os horrores da história, então
a Sua acção na ressurreição é uma acção credível, pelo menos
para o crucificado. O silêncio de Deus na cruz, que escandaliza
tanto a razão natural e a razão moderna, não é escandaloso para
os crucificados porque o que interessa aos crucificados é saber
se Deus estava ou não na cruz de Jesus. E se Ele estava, a apro
ximação de Deus em relação aos homens, iniciada na Incarna
ção, anunciada e tornada um facto por Jesus, ao longo de toda
a Sua vida, consuma-se aqui. O que a cruz diz em linguagem
humana, é que, na História, nada foi capaz de impedir que Deus
Introdução 5
Se aproximasse dos homens’. (3)
Quem dizem os homens que Eu sou
7 6
E vós, quem dizeis que Eu 9
sou 8

Primeira Parte
«NÓS VIMOS A SUA GLÓRIA»
A experiência pascal dos Apóstolos

Estrutura do anúncio pascal 17

1. O tempo das promessas 19


1. Escuta, Israel’ 19
2. «Deus reclama a Tua vida na tumba» (Salmo
103,4) 20
3. Um tempo de crise 21

II. O TEMPO DE JESUS 22


1. O reino de Deus estó no meio de vós 22
Os milagres de Jesus 23
O modo de viver de Jesus 24

2. As pretensões de Jesus 25
A relação de Jesus com os pecadores 25
A relação entre Jesus e a Lei 25
Jesus e o Templo 26
(3) Extracto de .‘Le Ressuscité et le crucifié. Lecture de la réssur 28
3. Então quem é Jesus
9
rection de Jésus a partir des crucifiés du monde’., em Jésus et Ia Iibtra
tion en Amérique Ititine (Colectj, Paris, Desclée, 1986, pp. 298-299. 4. A esperança de Jesus 30

130 131
III. RECONHECER O CRUCIFICADO . 31 Definição de Calcedónia 59
1. As componentes da experiência pascal 32 Segundo Concilio de Calcedónia (553) 60
Uma revelação divina 32 Terceiro Concilio de Constantinopla
Um reconhecimento 33 (680-681) 61
Uma tarefa da fé 33
Uma experiência missionária 34 II. A TRADIÇÃO CONTESTADA 62
1. Em nome da Escritura: Lutero (1483-1546) 63
2. Vestígios históricos do Ressuscitado 34 64
2. Em nome da Razão (séc. XVIJI-XIX)
Emancipação da razão 65
Será a ressurreição de Jesus um acontecimento 67
histórico’ 35 Revalorização da história
Schleiermacher 67
As Vidas de Jesus 68
IV. A MENSAGEM PASCAL 36 68
O terceiro dia ou o tempo do Espfrito 36 Um mito concreto
1.
2. Subiu aos céus 37 A crise modernista 70
3. Há-de vir julgar os vivos e os mortos 39
ifi. PESQUISAS CONTEMPORÂNEAS 70
1. As vias da cristologia 71
Segunda parte A oferta de Deus (Karl Barth)
A busca do homem (Rudolf Bultmann) 73
IMAGEM (OU ICONE) DO DEUS INVISIVEL 74
A fé em Cristo, Filho de Deus A figura de Jesus
2. O ser filial de Jesus 75
I.AFÉDAIGREJA 46 3. O agir filial de Jesus 78
1. De Jerusalém a Niccia 47 A consciência de Jesus 79
A o testemunho apostólico 47
Quatro proposições da Comissão Teológica inter

A preexistência 47
nacional sobre a consciência que Cristo tinha de
A filiação divina 48 81
Si mesmo (Dezembro de 1985)
B — Cultura judaica e cultura grega 50 A liberdade de Jesus 82
Contacto com o judaísmo 50
Confrontação com o helenismo 51
Algumas grandes figuras da cristologia antiga 52 Terceira parte
O MESSIAS CRUCIFICADO
Duas posições contrárias sobre o Misté Deus salva-nos em Jesus Cristo
rio de Cnsto 54
C — A FÉ DE NICEIA (325) 55 1. RECONCILIAÇÃO 87
2. Os Conciios cristológicos 57 1. Jesus, caminho de Deus para a humanidade 88
Concilio de Efeso (431) 57 2. Jesus, caminho da humanidade para Deus 90
Concilio de Calcedónia (451) 58 3. Aquele que nos reconcilia 91

132 133
II. REDENÇÃO 92
1. Morto pelos nossos pecados 92
2. De uma vez por todas 94
3. Em nosso nome 96
Redenção e Libertação 99

ifi. REVELAÇÃO 102


1. O Filho abandonado 103
2. O silêncio de Deus 104
3. Deus habita o sofrimento 105

Conclusão
CRISTO ESTÁ vivo
Como redescobri-l’O?

1. A Escritura 112
2. A pregação 112
3. Os Sacramentos 113
4. A Igreja Corpo de Cristo 113
5. Os ministérios 114
6. A oração 114
7. Todo e qualquer rosto humano 115

ANEXOS

1. E para mim, quem é Jesus Cristo


7 119
2. A humanidade de Cristo e a salvação 121
3. «Dizer» a salvação com as nossas palavras 125
4. Jesus Cristo um sentido para a nossa cami

nhada 127

134

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