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ORGANIZACIONAL: TANGÊNCIAS
ÉTICAS E EPISTEMOLÓGICAS
Clóvis de Barros Filho*
Arthur Meucci**
Resumo: A pesquisa tem como objeto estudo realizado entre 2003 e 2005,
envolvendo uma pesquisa com 133 comunicadores organizacionais, tendo
como pauta a possibilidade da transparência e da neutralidade nas
comunicações dentro das organizações e suas questões éticas. No intuito
de um recorte espec í fico, decidimos trabalhar as quest õ es é ticas
tangenciando as perspectivas epistemológicas com os discursos dos
responsáveis pela divulgação e manutenção das normas e dos valores nas
organizações. Os resultados dessas entrevistas revelaram discursos
divergentes entre a pr á tica do comunicador organizacional e os
fundamentos teóricos de sua formação. Associado a um discurso ético-
identitário, encontramos uma sistemática referência a dois tipos de valores:
transparência e verdade. Baseado em dados empíricos, este artigo traça
uma reflexão filosófica e sociológica acerca do discurso ético utilizado nas
organizações, retratando o conteúdo dos valores propagados por esses.
Palavras-chave : comunicação organizacional; epistemologia; ética;
transparência; verdade.
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* Professor de Ética em Relações Públicas na Universidade de São Paulo (USP), coordenador do Programa de
Mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), e
pesquisador no Espaço Ética (EE-EPP). cbarrosf@usp.br
** Mestrando em filosofia e pesquisador no Núcleo de História e Filosofia da Ciência da Universidade de São
Paulo (USP), professor de filosofia no Colégio Santa Amália e pesquisador no Espaço Ética (EE-EPP).
meucci@usp.br
Conexão – Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 5, n. 9, p. 151-172, jan./jun. 2006 151
Abstract: This paper discusses a piece of research carried through between
2003 and 2005, involving a survey with 133 organizational researchers
on the topic of the possibility of transparency and neutrality in
communications within organizations, and their ethical questions. In order
to provide specific focus, we decided to work on ethical questions
tangencing the episthemological perspectives with the speech of those
responsible for divulging and maintaining norms and values within the
organizations. The results of these interviews reveal diverging kinds of
speech. There seems to be clear differences between the practice of the
organizational communicator and the theoretical foundations of his/her
formation. We have found sistematic reference to two types of values
associated with their ethical-identitary speech: Transparency and Truth.
Based on empirical data, the present article presents a philosophical and
sociological reflexion on the ethical speech used within organizations,
focusing on the content of values which underly them.
Key words: organizational communications; episthemology; ethics;
transparency; truth.
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a realidade. Acredita que os universais, os conceitos, as idéias, os gêneros, as teorias são
entidades reais, algo que existe na natureza das coisas, ou na mente. A origem
etimológica da palavra realismo está no substantivo grego rex (coisa), pois significa o
estudo da coisa.
Em outras palavras, a ciência avança na direção de uma realidade que pode
ser circunscrita ou não. No dizer de um de seus representantes, Karl Popper, quando
as hipóteses se confirmam, elas “corroboram” a idéia que se tem de realidade. (1975,
p. 275-311). E mesmo quando desmentidas, permitem um avanço na busca da
verdade, pela identificação de nossos erros. Confirmações e desmentidos aperfeiçoam,
portanto, nossa visão de mundo. Permitem a “descoberta” científica, ideal, realista,
que desvenda a realidade. A designação “descoberta” científica retrata o ideal realista
que visa a desvendar a realidade. Tira o véu que a esconde. Mostra a verdade para
todos. Assim, para os realistas, apesar de as leis e os enunciados científicos não
chegarem à verdade, tendem a dela se aproximar. Essa é uma visão de mundo
compartilhada por muitos dos filósofos modernos,3 e por alguns contemporâneos
como os marxistas4 e os popperianos.
A outra postura ante o conhecimento é o nominalismo, principalmente o
contemporâneo. Nessa corrente, a ciência não leva os homens ao conhecimento das
coisas mesmas. Para o nominalismo, o conceito, bem como os relatos sobre a realidade,
são puros nomes, um flatus vocis.5 As leis científicas são encaradas pura e simplesmente
como uma tentativa objetiva de se descrever as causalidades entre os fenômenos,
abandonando a idéia de realidade e, principalmente, do conhecimento da coisa-em-si.
Consideram o conhecimento adquirido subjetivo, porém inscrito num objetivismo
possibilitado pelo social. Para céticos, positivistas, alguns neokantianos, empiristas
lógicos e outros paradigmas originados dessas correntes, o mundo não teria uma
verdade ou um valor em si e por si; as leis científicas possuiriam um mero uso
instrumental, e a crença de que essas leis, teorias ou conceitos existam em si é
considerada uma atitude metafísica, em que o sujeito passa por um processo de
fetichismo das leis que concebe, tornando as leis da física, da química, da sociologia e
de outros campos existentes, como objetos que existiriam na realidade ou na mente.
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3 Os filósofos modernos a que nos referimos são tanto intelectualistas quanto empiristas, entre os séculos XVII e
XVIII, até Kant. Uma geração que vai de Bacon e Descartes até Leibniz e Berkeley, tinha como crença a
possibilidade de se chegar à verdade por meio de um conhecimento certo, indubitável, por meio dos experimentos
(empiristas), ou de um sistema dedutivo eficaz (intelectualistas). Opositores do ceticismo, essa posição vigorará
até o aparecimento das críticas de Hume e do desdobramento da filosofia de Kant. (WESTFALL, R. S., The
construction of modern science. Cambridge: University Press, 1971).
4 Tomamos por marxistas aqueles que seguem o programa de pesquisa instituído por Marx. Excluem-se os
denominados “marxistas analíticos” que, em seu núcleo, compartilham do positivismo, rejeitando assim as
pretensões realistas, bem como a dialética. Além disso, possuem um sistema voltado ao indivíduo e não às forças
de produção ou classes sociais.
5 Do latim: pura “emissão fonética”.
6 O Compliance Office é um departamento, dentro de uma instituição, que tem como função monitorar suas
ações e negócios. Além disso, tenta assegurar que suas regras e valores sejam respeitados. O termo compliance
tem origem no verbo inglês to comply, que significa agir de acordo com uma regra.
7 Alunos de graduação em Administração e Comunicação que se manifestaram dispostos a trabalhar no campo da
CO. Nesse universo encontram-se alunos da USP, ESPM e Cásper Líbero. Demos preferência aos que estagiavam
na área.
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XERIFES DA MORAL: A ÉTICA COMO DEFINIDORA DA IDENTIDADE DO CO
Mas, afinal, o que Comunica o Organizacional? Indaga o trivial e sempre
“ é çã ” çã
concretos sobre a rela o da empresa e suas infinitas representa es poss veis, essa
çã çõ í
n o menor. Como dar aula, ou mesmo freq entar um curso ou uma especializa o,
ã é ü çã
uma exig ncia, uma f rmula l gica que ofere a recursos para se definir o que e o
ê ó ó ç é
que n o ; uma fronteira facilmente identific vel entre o dentro e o fora, uma unidade
ã é á
uma id ia como a de um tri ngulo abstrato,8 n o percebido, nunca visto, mas que
é â ã
etc. Procura-se id ia equivalente para o CO. Mas qual a dificuldade? Se essa car ncia
é é ê
1988, p. 31). O que permite construir um conceito a constata o de certas ocorr ncias é çã ê
outra? o que Wittgenstein denomina semelhanças de família (p. 39): signo constitu do
É í
de uma estrutura que liga estruturas aparentadas entre si. O que n s percebemos e “ ó
fam lia de estruturas mais ou menos aparentadas entre si. (p. 46).
í ”
No caso de CO, como em todas as outras profiss es, o que a define seu fazer õ é
em discurso, discurso sobre si. Cuja origem social. Um discurso que o profissional é
aprende no pr prio universo que freq enta, no qual trabalha: um discurso identit rio
ó ü á
profissional.
Dessa forma, para Wittgenstein, os conceitos nunca s o definitivos. Percebemos ã
efici ncia no que tange semelhança de família, tamb m indissoci vel de uma relativa
ê à é á
manuten o de certa rela o de for as no interior do universo social que os prop em.
çã çã ç õ
internos de domina o. Luta social pela imposi o do conceito leg timo, pela identifica o
çã çã í çã
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8 Veja-se LOCKE, J. Ensaio acerca do entendimento humano. S o Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 152. ã
Ou ainda,
Meu nome é XXX, e trabalho no setor de comunicação da indústria. Fui formada
pela Cásper Líbero, em 1982. A nossa principal função aqui é garantir a trans-
parência nas comunicações da empresa e para os nossos clientes. Garantir que todo
mundo fale, e que não se esconda nada. Fazer como o papel que produzimos, sem
“rasuras ou manchas”. 10
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detrimento do trabalho, a idéia em detrimento da práxis. “As idéias não podem
jamais levar além de uma fase antiga do mundo [...]. Além disso, as idéias nada
podem realizar. Para realizar as idéias, são necessários homens que ponham a
funcionar uma força prática.” (MARX; ENGELS, 2001, p.32).
Há uma ideologia por detrás da socialização que privilegia o ócio ao labor.
Desde o Gênesis, onde encontramos o trabalho como castigo pelo pecado, passando
por Aristóteles, que ligou a nobreza à gradativa ausência de esforços, consolidando-
se em Hegel, que postula a idéia como motivo último do trabalho, a cultura humana
se convence de que uma idéia ou valor é mais importante do que a cria. (POLITZER
et al., 1978, p. 170-183). O ideal é considerado mais importante do que a revolução.
Imerso nessa cultura, para o CO os ideais éticos são mais importantes do que sua
própria prática. Eis o objeto de nossa análise. Sem mergulhar numa visão marxista,
trataremos tanto da transparência nas comunicações organizacionais quanto do
que eles entendem por verdade.
Mas o que deve transparecer? Notícias que podem ser corroboradas pelo real.
Uma comunicação íntegra, informações verídicas, e nada que possa comprometer
o exercício do RRPP. Favorecer o diálogo e a discussão entre os componentes que
formam a organização com a qual ele trabalha. Como todo espaço social, uma
empresa é constituída por relações: ações em relação. Se a transparência dessas precisa
ser garantida é porque são, pelo menos em parte, opacas, pouco ou nada visíveis.
Sem a ação de um CO ético, algumas ações em uma empresa são mais nítidas do
que outras. Como observa nosso entrevistado,14 “a transparência é uma coisa que
não se dá sozinha”.
A questão da transparência não se limita, portanto, somente aos canais internos
e externos da empresa. Tomemos como exemplo alguns profissionais de Compliance
Officer. Ao se perguntar sobre um exemplo típico de transparência que envolve uma
instituição, como num banco, uma supervisora vê esse conceito de outra forma:
mais complexa.
Aumentar uma tarifa e o cliente não ser avisado, por exemplo. Pegá-lo de surpresa
com o valor de débito em conta corrente... Acho que, antes de aumentar, o cliente
deve ser comunicado com dez dias de antecedência. Até tem uma questão legal que o
Banco Central exige. Qualquer tarifa de conta corrente o cliente deve ser avisado
com trinta dias de antecedência. É assim que obtemos a transparência. Além disso, o
banco deve explicar o porquê desse aumento. É não surpreender o cliente, deixando-
o satisfeito com nosso serviço.15
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afirmação, citaremos dois casos. O primeiro é um CO formado em RRPP,
entrevistado no Banco (A).16 O segundo, formado em Propaganda, trabalha no
Banco (B). Seguem-se os relatos na ordem.
Banco (A)
No relacionamento, acho que a palavra que vem, que pode fechar perfeitamente,
porque é totalmente ligada à questão da ética, no relacionamento, é a transparência.
Em qualquer coisa que o banco faça, que eu busque, que eu ofereça, e qualquer forma
de comunicação de alguma coisa, a comunicação vendedora de algum produto, ou a
operação de alguma coisa dentro do banco, que dá acesso ao cliente, eu acho que o
principal é a transparência.17
Banco (B)
Então, tem a transparência. Este é um produto complicado de vender. Depende
muito da situação dos negócios que envolvem. No caso do empréstimo do
aposentado, é um exemplo de como a coisa é complicada de se passar. Temos de
vender um empréstimo de 3,5% de juros, sendo que o anunciado é a partir de 1,7%.
Sabemos que temos de trabalhar o assistente de telemarketing com base na propa-
ganda. A pessoa procura 1,7%, empurramos 3,5%, sendo que, na verdade, ela acaba
pagando 7,01%. A Hebe fez a parte dela, agora o atendente tem de mostrar que
1,7% são para pagamentos em 3 vezes, e que mais do que isso é 3,5%. Tem de ter esta
postura de transparência. Mas ele não pode deixar a pessoa perceber que, com as
taxas adicionais que o banco coloca, ele fica na casa dos 7%.18
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A tica do CO, ao menos a preconizada pelo seu c digo, sup e a possibilidade
é ó õ
de uma den ncia imparcial, neutra e desinteressada. Mesmo que existisse esse agente
ú
CO tenta inscrever as normas ticas numa perspectiva a-histórica, dando a apar ncia é ê
de uma evid ncia natural e universal. isso o que chamamos amnésia da gênese.21
ê É É
fazer com que os par metros ticos escondam uma l gica hist rica por detr s de
â é ó ó á
isso, revelar o que se esconde desnudar as causas de sua cria o, a l gica em que os é çã ó
dos funcion rios sejam informadas a eles com transpar ncia e rapidez. Este um dos
á ê é
funcion rios, tamb m sofrem o processo de transpar ncia. Como os dos diretores,
á é ê
ou dos clientes da organiza o, por exemplo. Melhor do que isso: os funcion rios çã á
funcion rios? A quem interessa reificar os trabalhadores? Ao sindicato? Aos patr es?
á õ
A transpar ncia pressuporia n o s revelar tudo, mas tamb m revelar para todos.
ê ã ó é
tenta associar a sua práxis como coerente com a id ia leg tima do sistema democr tico. é í á
Passa a ser o xerife leg timo que garante os ideais democr ticos de liberdade, igualdade
í á
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19 Bourdieu explica o efeito da amnésia da gênese, como algo que favorece, neste dom nio como nos outros, o “ í
acordo imediato entre o subjetivo e o objetivo , entre as disposi es e as posi es, entre as antecipa es e as
‘ ’ ‘ ’ çõ çõ çõ
hip teses . As estruturas sociais da economia Lisboa: Instituto Piaget, 2001. p. 18.
ó ” .
20 Profissional de CO atua como RRPP na ger ncia de comunica o. Entrevista concedida em 15/10/03. ê çã
21 Profissional de CO. Entrevista concedida em 20/10/03.
22 A idéia de que a democracia é o melhor sistema de governo, pois é baseada na manifestação dos desejos mais
particulares de cada indivíduo, tem sua origem doutrinária em Rousseau. O conceito de Vontade Geral expressa
essa operação que, para ele, é a única forma legítima de se estabelecer qualquer contrato entre os homens. Do
contrato social. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 37.
23 Profissional de CO trabalha no Serviço de Atendimento ao Cliente. Entrevista concedida em 12/7/05.
24 Profissional de CO é analista de comunicação empresarial. Entrevista concedida em 3/11/03.
25 Ibidem.
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Assim, a seleção das informações pressupõe uma atividade de hierarquização
a partir de critérios definidos pelo profissional e, portanto, incompatível com os
atributos de “transparência” em regra aludidos. Essa incompatibilidade parece não
constranger nossos entrevistados, sequer a percebem. Isso porque o valor das
informações é considerado imanente, apenas constatado por aquele que com elas
trabalha. Como observam alguns COs em sua práxis,
[...] atualmente cuido da compilação e fornecimento da parte mais relevante dessas
informações, passando-as posteriormente a nossa assessoria. Não cabe a mim decidir
sobre o que é importante. Tenho me empenhado em imprimir um ritmo de clareza,
transparência e objetividade em todas elas.26
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qual se tenha uma verdade incontestável no final, e assim garantir a transparência. É
vender algo que se tem. Assim garantimos a verdade.29
A análise dos dois discursos confunde num primeiro momento. O primeiro diz
ter consciência em se forjar a verdade. O segundo declara que a identidade de um CO
(no caso, o RRPP) se cruza com o conceito de verdade. E esse conceito está intimamente
ligado com a questão da “transparência”. Esse último relato seria fruto de cinismo ou
de ingenuidade? Ou a diferença reside no fato de o primeiro ser um jornalista que
trabalha com assessoria, e o segundo um relações públicas que trabalha com marketing?
Com quem o publicitário que vende chocolate, citado no início desta parte, tenderia
a concordar? Qual é a face do que chamamos organização, que reúne administradores
e diferentes tipos de comunicador, trabalhando em sintonia, mas com discursos
ambíguos sobre a verdade? Parafraseando Wittgenstein: Não pense, mas veja!
Tomemos um outro caminho, neste imenso labirinto que são as concepções de
mundo, no que tange à nossa questão. E se pensarmos que, em vez de um recurso
identitário, o discurso da transparência, e principalmente o da verdade, seja um
discurso que vise a sua autoproteção? Um meio pelo qual o CO tente expressar
confiança, dada a sua possibilidade de mentir e de manipular? Afinal, poderíamos
argumentar que as pessoas tendem muito mais a desconfiar do outro em vez de
aceitar prontamente o que lhe é dito. Será que a maioria das pessoas realmente
acredita em tudo o que um CO diz? Será que de “guardião da moral” o CO não se
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Percebemos, ao analisar, que o profissional não deixa muito claro seu real papel
na empresa. As empresas podem mentir ou omitir. Porém, para se autopoliciarem,
elas instauram um “superego”. Nesse caso, um comunicador. Mas qual é o seu interesse?
O que nos garante que o comunicador é pago para desmascarar os enganos da empresa
que recebe? Com todas essas inquietações, transportamos nossa discussão para um
âmbito relativo.
A “verdade” à qual se referem tanto o administrador quanto o comunicador,
é vista de diversos ângulos e objetivos, como se a verdade pertencesse a um jogo.
Nesse caso, o jogo do campo das COs, o que constitui um campo. Jogo e campo
que, por vezes, constituem uma illusio. Essa implica a adesão e o respeito a regras do
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campo que são interiorizadas. Regras de classificação e de agir sobre o mundo. Isso
explica por que discursos tão dissonantes entre os COs, no que diz respeito à
“transparência” e principalmente à “verdade”, participam da negação e ao mesmo
tempo da constituição do jogo e do campo. A “verdade” pode ser vista como motor
de um movimento “dialético”. Um componente dinâmico do campo. Podemos
encontrar a comparação entre a “verdade” e o “jogo” nas considerações de Gadamer
sobre o conceito de verdade. Para ele, a “verdade” participa de um esquema que não
deve ser visto no âmbito das subjetividades, mas numa mecânica que engloba seus
“jogadores”, guiando-os para uma ilusão que ela (a verdade) ajuda a criar.
Por isso vale a pena recorrer aqui [sobre a verdade] às nossas constatações sobre a
essência do jogo, segundo as quais o comportamento do jogador não deve ser
entendido como um comportamento de subjetividade, já que é, antes, o próprio jogo
que o joga, na medida em que inclui em si os jogadores e se converte desse modo no
verdadeiro subjectum do movimento lúdico. (GADAMER, 1997, p. 707).
Nos discursos dos profissionais, encontramos relação com o que foi esclarecido
na introdução deste capítulo. Entre as estratégias desse “jogo” está fazer o conceito de
verdade convergir com o conceito de realidade. Postura realista. Procuramos a verdade,
e a verdade só pode ser encontrada por meio da transparência. E a transparência,
obviamente, desnuda o real. Para esses comunicadores, o real tal como ele é. Como
bons realistas, estipulam que um dos critérios de verdade é a obtenção da realidade.
Fatos e verdade passam a ter correlação. Na perspectiva de se definir, ou na outra, de se
proteger, a verdade aparece correlacionada com “o que é”, com as “coisas”, os “fatos”.
Quando o CO fala sobre sua práxis, a definição do espaço (tida como realidade)
é tarefa fundamental. Não é outro o discurso-padrão dos COs. A organização é a
realidade que deve ser mostrada aos diversos públicos. Como destaca outro
entrevistado,
nas empresas do grupo CPFL existe um Código de Ética que orienta as nossas ações,
inclusive prescrevendo, para a área de comunicação, a rigorosa obrigatoriedade de
transparência nos nossos relacionamentos com diversos públicos. É preciso que
nossos públicos saibam o que a empresa realmente é.33
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mais a questão da segregação de interesses. O conflito de interesses entre o que é bom
para o cliente e o que é interessante para o banco.34
Se acompanharmos o relato de outros gerentes, ou de outros funcionários,
veremos que as questões ligadas aos reais interesses da organização não serão levadas
em consideração. Se a regra que eles pregam fosse cumprida à risca, deveriam assegurar
que a transparência desvendasse interesses, estratégias, objetos de luta específicos de
cada espaço e seus processos de socialização. Se o CO é transparente no que concerne
aos conflitos sociais, ele tem de ser opaco em relação à missão da empresa. Se é
transparente quanto à missão da empresa, será necessariamente opaco em relação
aos seus conflitos. Temos aqui um possível relato do real. Relato esse ignorado pela
maioria dos COs. É nesse processo que o conceito de ética e de verdade, no campo,
não mais se relacionam. Constatação de interesses que não passa despercebida entre
os funcionários da empresa.
Meu nome é XXXX, sou gerente regional da Aimoré Investimentos, da financeira, e
lido diretamente também com a área comercial. Eu sinto que hoje em dia a ética é
inversamente proporcional ao aumento da competitividade interna e externa, e
bastante na área comercial.35
A verdade, como mostramos, está circunscrita num processo dinâmico que
envolve todos os agentes de uma organização. Ela ora envolve os espaços, as relações,
determinados fatos, mas raramente os reais interesses em questão. Compreender o
que se chama verdade não é irrealizável. Muito menos simples. Entender o que os
vários profissionais de comunicação, que trabalham com CO, entendem por verdade
– mesmo que discordantes – só se torna possível dentro de um contexto no qual se
joga o jogo do campo e da organização. Os interesses em questão só se revelam a
partir dos sentidos que os agentes atribuem dentro do campo em questão. Eis a
verdade escorregando por entre os dedos.
Portanto, a compreensão é um jogo, não no sentido de que aquele que compreende
se reserve a si mesmo como num jogo e se abstenha de tomar uma posição vinculante
frente às pretensões que são colocadas. [...] Aquele que compreende já está sempre
incluído num acontecimento, em virtude do qual se fez valer o que tem sentido
(GADAMER, 1997, p. 708).
no que diz respeito s suas pr ticas profissionais. Afinal, os COs n o gozam da mesma
à á ã
discurso da transpar ncia usado em larga escala pelos profissionais e acad micos da
ê – ê
insepar veis dos espa os sociais no qual s o concebidos, assim como o conceito de verdade.
á ç ã
Sobre a verdade difundida pelo CO, vimos que, inicialmente, em seus discursos,
“ ”
est em rela o com os demais agentes da organiza o. Cada conceito encontra-se ligado
á çã çã
REFERÊNCIAS
BAKER, G. P.; HACKER, P. M. S. An analytical commentary on Wittgenstein s philosophical ’
GADAMER, H.-G. Verdade e m todo: tra os fundamentais de uma hermen utica filos fica.
é ç ê ó