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Resumo: A proposta do presente trabalho está centrada na discussão acerca das noções de
sujeito, discurso e poder em Foucault, as quais são constitutivas de toda e qualquer prática
discursiva. Partindo do conceito foucaultiano de discurso enquanto um conjunto em que podem
ser determinadas a dispersão do sujeito e sua descontinuidade em relação a si mesmo,
enquanto um espaço de exterioridade em que se desenvolve uma rede de lugares distintos
(1997: 62), pretendo mostrar como o sujeito-jornalista, na prática discursiva da divulgação
científica, se subjetiva e, por sua vez, constitui sua identidade, estando duplamente afetado: pelo
poder/pela verdade da mídia e pelo poder/pela verdade da ciência. Qual é, afinal, o lugar
discursivo que esse sujeito ocupa? E esse lugar reflete na constituição da sua identidade?
Abstract: The aim of the present text is centered on the discussion of the notions of subject,
discourse and power, constitutive of any discursive practice according to Foucault. Departing
from the foucaultian concept of discourse as a totality, in which the dispersion of the subject and
his discontinuity with himself may be determined, also as a field of exteriority in which a set of
distintc positions is ruled (1997:62), my intention is to focus on the process of subjectivation
and identification of the journalist-subject in the discursive practice of scientific release, taking
into account its double determinination: by the power/truth of media and by the power/truth of
science. What is the dicursive position that this subject occupies? How does this position reflects
the constitution of his/her identity?
Tais noções perpassam toda a obra de Foucault, principalmente a noção de sujeito que,
conforme declarou o próprio autor, constitui o tema geral de sua pesquisa. E o modo como
Foucault trata a questão do sujeito não está desvinculada nem da noção de discurso, nem da
noção de poder. Ao contrário, a abordagem foucaultiana desloca o sujeito de um viés
estruturalista, no qual era eliminado da prática discursiva, para um viés discursivo, no qual o
sujeito e o sentido são da ordem da constituição do discurso. Por isso, tanto o sujeito quanto o
discurso são tomados enquanto dispersão, o que rompe com a idéia de continuidade, até então
dominante no campo do saber.
E, como uma possibilidade para descrever essa dispersão, Foucault propõe o conceito de
Formação Discursiva (FD doravante) na sua obra Arqueologia do Saber [1]. Para Foucault
(1969), uma FD relaciona um sistema de dispersão no qual vai ser possível observar uma
regularidade em relação aos objetos, tipos de enunciação, conceitos e escolhas temáticas. Um
enunciado, então, pertence a uma FD, assim como uma frase pertence a um texto. E um
conjunto de enunciados, apoiados numa mesma Formação Discursiva, constitui o que Foucault
chamou de discurso. Nesse conjunto, “podem ser determinadas a dispersão do sujeito e sua
descontinuidade em relação a si mesmo. É um espaço de exterioridade em que se desenvolve
uma rede de lugares distintos” (Ibidem: 62). Portanto, o discurso não é a manifestação de um
sujeito que pensa e tem autonomia sobre o seu dizer. O que se materializa no discurso são as
posições de sujeito que se definem, conforme Foucault, “pela situação que lhe é possível ocupar
em relação aos diversos domínios ou grupos de objetos” (1997: 59).
Dessa forma, a manifestação da dispersão do sujeito se dá nos “diversos status, nos diversos
lugares, nas diversas posições que pode ocupar ou receber quando exerce um discurso, na
descontinuidade dos planos de onde fala” (1997: 61). Tais lugares, posições, etc, são construídas
no interior de uma determinada formação social e determinam, assim como são determinadas
pelas práticas discursivas. Ora, configurar o discurso como um espaço que abriga distintos
lugares/distintas posições significa apontar para a heterogeneidade que é inerente a todo e
qualquer discurso. E o discurso de Divulgação Científica - objeto de interesse do presente artigo
- é um bom exemplo de uma prática discursiva na qual se desenvolve uma rede de lugares
discursivos. Há, no mínimo, três distintos lugares discursivos que são da ordem do já-lá e, como
tal, fazem parte da constituição desse discurso. Quais sejam: o lugar do cientista, o lugar do
jornalista e o lugar do leitor.
Vimos, portanto, como a noção de sujeito em Foucault não pode estar dissociada da noção de
discurso, já que é nas/pelas práticas discursivas, as quais são determinadas pelas práticas
sociais, que o ser humano se transforma em sujeito do discurso. E, ao se discursivizar, passa do
lugar de sujeito empírico/individual para a posição discursiva, carregando consigo marcas do
histórico e do social. Segundo Foucault (1970), cada um de nós, enquanto sujeito, é o resultado
de uma fabricação, é um efeito, uma construção de poder. São os dispositivos e suas técnicas de
fabricação - de que a disciplinariedade é um forte exemplo - que instituem o que chamamos de
sujeito. Nesse sentido, cada um faz não o que quer, senão aquilo que pode, aquilo que lhe cabe
na posição de sujeito que ele ocupa num dado momento, inserido numa determinada ordem
disciplinar.
O sujeito do discurso de Divulgação Científica, por exemplo, ao ocupar o lugar de jornalista, está
submetido a outras ordens disciplinares (o dizer da ciência, da mídia e do leitor). Logo, ele não é
totalmente livre para dizer "o que bem entende". Mas esses lugares, ocupados pelos sujeitos do
discurso, são móveis, pois a rede está sempre se rompendo, aqui e ali, de modo que o ponto que
cada um ocupa está sempre sujeito a variações, as quais não estão, no entanto, destituídas das
determinações das relações de poder.
Em sua aula inaugural no Collège de France (1970) [2], ao tratar sobre os procedimentos de
controle (interno e externo) e delimitação do discurso, Foucault já lançava, no meu entender,
questionamentos para pensar a questão do poder. Ora, ao explorar tais procedimentos, ele
buscava resposta para compreender a maneira como a realidade enquanto norma
institucionalizada de uma sociedade interfere nas práticas discursivas, ou seja, como esses
procedimentos refletem no discurso, controlando-o, organizando-o. E essa forma de controle
nada mais é do que uma das formas de exercício do poder, legitimada por um “modelo
institucional”. Esse modelo institucional impõe ao discurso e ao sujeito que o produz
determinadas regras, as quais Foucault (op. cit) vai chamar de “polícia” discursiva. No caso do
discurso de Divulgação Científica, a mídia e a ciência, enquanto lugares institucionais
legitimados socialmente, entram em cena para administrar as regras, isto é, para controlar o que
da exterioridade deve ser dito nesse discurso. É preciso que a prática discursiva da Divulgação
Científica mantenha os efeitos de verdade difundidos tanto pela ciência quanto pela mídia. Por
isso, o jornalista científico, ao produzir esse discurso, está duplamente afetado: pelo poder/pela
verdade da ciência e pelo poder/pela verdade da mídia. Como ele se subjetiva nessa prática, a
partir dessas determinações, é o que pretendo mostrar nas análises de algumas seqüências
discursivas.
Para Foucault (1979) [3], a verdade e o poder são constitutivos do saber científico, já que “a
verdade não existe fora do poder ou sem poder” (2000: 12). Logo, a concepção tradicional de
verdade científica, neutra e objetiva, não se sustenta, já que as relações de poder não estão
separadas do campo do saber científico e a verdade está em constante confronto nessas relações.
Dessa forma, assim como o poder está relacionado às formas de verdade, estas estão
relacionadas a uma determinada formação social. Deixemos claro, no entanto, seguindo o
pensamento de Foucault, que tais relações de poder são historicamente constituídas. Por isso,
não podemos pensar no poder como uma forma única, global, totalitária; mas sim como uma
prática social que só funciona e se exerce em rede, isto é, para que o poder e/ou as relações de
poder se constituam, é preciso que alguém detenha, comande e domine tais relações, assim
como se faz necessário alguém que se submeta, assujeitando-se às ordens impostas e
determinadas por aqueles que estão no topo dessas relações. Conforme afirma o próprio
Foucault, em seu ensaio sobre O sujeito e o Poder [4], “só há poder exercido “uns” sobre os
“outros”; o poder só existe em ato, mesmo que, é claro, se inscreva num campo de possibilidade
esparso que se apóia sobre estruturas permanentes” (1995: 242), já que as relações de poder se
incorporam e cristalizam nas instituições. Por isso, o sujeito não pode ser concebido fora das
relações de poder e, conseqüentemente, fora das práticas discursivas e sociais (incluídos aí os
espaços institucionais).
O sujeito, para a AD, é assujeitado ideologicamente e afetado pelo inconsciente. Logo, ele não
tem pleno domínio sobre o seu dizer, mas possui a ilusão de ser a fonte do sentido. Também, em
Foucault, o sujeito não é autônomo e empírico, mas ele não sofre as determinações da ideologia
nem a afetação do inconsciente. O que perpassa o sujeito foucaultiano, conforme já mostrei, são
as relações de poder, as quais contemplam o histórico e o social.
Embora Foucault não trabalhe com a noção de ideologia, marcando o seu atravessamento/a sua
determinação no discurso, ele aborda a questão do poder, relacionando-o ao discurso da
verdade, o que marca também uma determinação, vinda do exterior, na constituição do
discurso. Ao trabalhar os tipos de sujeição do sujeito ao poder, afirma que as forças de
produção, a luta de classe e as estruturas ideológicas determinam a forma de subjetividade (cf.
Foucault, 1995, p. 236). Ora, o fato de contemplar em suas reflexões, ainda que não de forma
central, a determinação do ideológico na forma como o sujeito se subjetiva, abre sim uma
possibilidade de diálogo com o modo como concebemos o sujeito na AD, conforme o que
explicitei há pouco.
Dessa forma, é possível pensar numa articulação entre o conceito de formação social e formação
ideológica, cunhadas por Pêcheux, e as relações de poder, abordadas por Foucault. Para
Foucault, o poder, conforme já destaquei, é algo que só funciona em cadeia, isto é, ele “funciona
e se exerce em rede” (2000: 183). Por isso, a escolha pelo termo relações de poder, as quais “têm
essencialmente por base uma relação de força estabelecida, em um momento historicamente
determinável” (2000: 176). Então, a história intervém, de forma decisiva, nas relações de poder,
que não estão centralizadas num único lugar social, mas estão dispersas, capilarizadas nos mais
diferentes lugares sociais, através das práticas discursivas, podendo tanto representar uma
posição de dominante como de dominado. Vejamos, então, essa possibilidade de articulação.
A formação social está relacionada com as diferentes formações ideológicas, as quais, por sua
vez, estão materializadas nas diferentes relações de poder que perpassam instituições como a
mídia e a ciência. É, então, no conflito de F.I.s e relações de poder, que acontece a
disciplinarização dos saberes, sustentados pelos efeitos de verdade. Assim, o sujeito do discurso,
ao mesmo tempo em que ele é interpelado/assujeitado ideologicamente pela formação social, ele
se inscreve/ocupa um dos lugares sociais que lhe foi determinado. É o espaço do empírico. Na
passagem para o espaço teórico, no nosso caso, para o espaço discursivo, o lugar social que o
sujeito ocupa numa determinada formação social e ideológica, que está afetada pelas relações de
poder, vai determinar o seu lugar discursivo, através do movimento da forma-sujeito e da
própria formação discursiva com a qual o sujeito se identifica.
O sujeito sempre fala de um determinado lugar social, o qual é afetado por diferentes relações de
poder, e isso é constitutivo do seu discurso. Então, é pela prática discursiva que se estabiliza um
determinado lugar social/empírico. No caso do jornalista científico, é o modo como ele
discursiviza os diferentes saberes institucionais (tanto os vindos da ciência, quanto os que
circulam na ordem do senso comum) que sustenta e legitima socialmente o seu lugar (empírico)
de jornalista, comprometido tanto com a verdade da ciência quanto com a verdade da mídia e
com os saberes do leitor.
Logo, o ideológico, o histórico e o social, que é onde estão inscritas as relações de poder, não
podem ser tratados separadamente, tampouco como algo exterior à prática discursiva. Por isso,
tais questões não são alheias ao discurso Científico e, por sua vez, a prática discursiva da
Divulgação Científica. Ao contrário, a ideologia, a história e o social constituem essa prática
discursiva, na qual as relações de poder encontram-se em confronto. Imbuído nessas relações de
poder e resistência, as quais estão inscritas numa determinada conjuntura histórica-social e
ideológica, está o sujeito jornalista, autor do discurso de Divulgação Científica, o qual é afetado
por essas relações, justamente por pertencer a uma determinada formação social. Dele é
cobrado a responsabilidade da unidade do texto, da clareza, da não-contradição, entre outras
coisas.
Para analisar o modo como o sujeito jornalista se subjetiva no discurso de Divulgação Científica
e, assim, constrói sua identidade, selecionei algumas seqüências discursivas de reportagens da
Revista Superinteressante. Eis as seqüências selecionadas:
SD2: “ Índice glicêmico” é a medida do nível de glicose que o alimento gera no sangue.
Carboidratos como grãos integrais e frutas têm índice glicêmico baixo - eles são ricos em
fibras, que retardam a absorção de açúcar. Outros, como pão e arroz brancos, batata e açúcar
têm índices altíssimos. Eles elevam rapidamente a taxa de glicose no sangue e forçam o corpo
a armazenar o excesso dentro das células. Quem faz o trabalho de armazenamento é a
insulina . Quando comemos alimentos de alto índice glicêmico, produzimos muita
insulina de uma só vez. O excesso do hormônio diminui o nível de glicose no sangue e a queda
faz o corpo pedir mais, gerando a sensação de fome. Ou seja, consumir muita comida com alto
índice glicêmico pode aumentar a compulsão alimentar. E não é só isso: está ficando mais claro
que esses altos e baixos na produção de insulina podem levar a diabetes tipo 2, uma doença
séria, cuja incidência está explodindo (In: A CIÊNCIA DE COMER BEM - Saúde -
Superinteressante/setembro/2004).
Tais posições também representam formas de resistência às coerções que o jornalista científico
sofre ao falar desse lugar, ou seja, são diferentes modos de se subjetivar. Produzindo diferentes
gestos de interpretação - comentários, avaliações, etc - o jornalista vai inscrever o seu dizer no
intervalo entre a ordem da ciência, da mídia e do senso comum. Assim, constitui uma identidade
própria - de alguém que está sob a coerção da mídia e da ciência, mas que, ao mesmo tempo,
está autorizado por essas mesmas instituições a produzir efeitos de verdade.
Para finalizar, ocupando o lugar de analista de discurso, gostaria de enfatizar que os gestos de
interpretação que produzi para as seqüências analisadas só foram possíveis a partir das noções
teóricas que mobilizei, tanto em Foucault quanto em Pêcheux. Os efeitos de sentido que
emergiram desses gestos de interpretação estão atravessados pelas noções teóricas, as quais
norteiam todo o processo analítico. Para melhor entender as formas de subjetividade, o espaço
discursivo em que se movimenta o sujeito jornalista na prática de Divulgação Científica, o olhar
que lancei sobre as noções de discurso, sujeito e poder em Foucault foi fundamental, já que tais
noções se mostraram extremamente produtivas no diálogo com algumas noções da teoria da AD
e na análise que realizei, a qual mostrou que, apesar das determinações, das relações de poder
institucionais a que está submetido, sempre é possível ao sujeito resistir. Pois, como diria
Foucault, onde há poder, há resistência.