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MÁRCIA DE OLIVEIRA ESTRÁZULAS

A COMUNIDADE ESPIRITUAL “FIGUEIRA”: A


INFLUÊNCIA DE TRIGUEIRINHO SOBRE O “EU”
(SELF) DE SEUS SEGUIDORES

1 EDIÇÃO

2010
Copyright © 2011 by Márcia de Oliveira Estrázulas
Todos os direitos para o BRASIL e países de lingua portuguesa reservados e
protegidos pelas leis em vigor, em cada um deles, sobre DIREITOS AUTORAIS
a Márcia de Oliveira Estrázulas.
Nenhuma parte desse livro poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais
forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação
ou quaisquer outros.
A responsabilidade total e integral sobre o conteúdo deste livro é da autora.

Capa: Márcia de Oliveira Estrázulas


Impresso no BRASIL

Contato:
Márcia de Oliveira Estrázulas
marciest@terra.com.br

SOBRE A FORMAÇÃO DA AUTORA MÁRCIA DE OLIVEIRA ESTRÁZULAS:


- LICENCIADA EM ESTUDOS SOCIAIS
- LICENCIADA EM CIÊNCIA SOCIAIS
- BACHAREL EM CIÊNCIAS SOCIAIS
- ESPECIALISTA EM METODOLOGIA DO ENSINO SUPERIOR
- MESTRE EM CIÊNCIAS SOCIAIS
- EMPRESÁRIA DESDE 1989 NO RAMO DE PERFUMARIA
- ESPECIALISTA: EM CULTURA(ARTE E CIÊNCIA DOS PERFUMES);
- EM MARKETING(MERCADO DE LUXO DE PERFUMES);
- EM MERCHINDISING DE PERFUMES.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Dedico esta dissertação aos meus
pais, Daniel e Eny, aos quais devo tudo,
aos quais amo profundamente, e a meu
sobrinho e afilhado, Marcelo, na espe-
rança de despertar seu interesse pela
pesquisa.
AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. Roberto Ramos, professor do Doutorado da Facul-


dade de Comunicação Social - PUCRS (Famecos-PUCRS), que me re-
comendou ao Mestrado de Ciências Sociais – PUCRS;
À Profª. Dra. Merli Leal Silva, professora coordenadora do Cur-
so de Publicidade e Propaganda da Universidade Metodista – IPA,
da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e do PGCOM-
PUCRS, que me incentivou a fazer o mestrado e me indicou ao
PGCS-PUCRS;
Ao Prof. Me. Eduardo Pedro Corsetti, professor de Ciências
Políticas da UFRGS, que me recomendou ao PGCS;
Ao Prof. Dr. Glênio Nicola Povoas, professor da Famecos, pela
cópia do filme de Trigueirinho “Bahia de todos os Santos” (1960) e
pelas cópias da revista “Anhembi” de crítica de cinema editada pela
USP;
Ao Prof. Dr. Hélio R.S. Silva, professor convidado do PGCS, por
ter despertado em mim a admiração por Erving Goffman e pelo
interacionismo simbólico, além de suas ricas orientações extra-ofi-
ciais;
Ao Prof. Dr. João Luís Medeiros, ex-professor convidado do
PGCS, pelo incentivo, consideração e orientações;
Ao Prof. Dr. Ricardo Mariano, professor permanente do PGCS,
excelente ouvidor, mediador e coordenador;
Ao Prof. Dr. Édson Gastaldo, professor do PGCS–UNISINOS, pelas
orientações e por seu parecer sobre as alterações requeridas pela
Banca, mesmo sem termos nos conhecido pessoalmente;
Agradeço ao ex-colega, ex-vice reitor da UNISC, Me. Marcos
Moura Batista dos Santos, atual Coordenador do Departamento de
Antropologia da UNISC, por seu parecer sobre as alterações
requeridas pela Banca;
Agradeço ao ex-colega, Me. João Paulo Cunha, professor de
política da graduação da UFRGS, por seu parecer das alterações
sugeridas pela Banca;
À professora Dra. Mª Suzana Arrosa Soares, professora do
PGCS-UFRGS, pelo seu parecer e consultoria em relação as altera-
ções sugeridas pela Banca;
Ao Prof. Me. Celso Dias, professor da FACCAT, pela orientação
providencial e apoio emocional;
À Profª. Me. Ivone Bengochea, professora da Faculdade São
Judas Tadeu, por sua ajuda metodológica e didática na apresenta-
ção oral;
Ao Prof. Dr. José Rogério Lopes, professor do PGCS-UNISINOS,
pela disposição em contribuir, mesmo sem nos conhecermos pes-
soalmente até o momento da Banca. Ele é um mestre que não só
transmite conhecimento, mas ensina pelo próprio exemplo. Esta é
a verdadeira maestria, uma vocação que me re-encantou pelo ofí-
cio do educador;
Agradeço ao Professor Dr. Léo Peixoto Rodrigues, pela sua re-
orientação em relação as alterações sugeridas pela Banca;
Ao tempo, o melhor dos mestres, senhor da razão e da justi-
ça;
AO MEU MESTRE, MESTRE DOS MESTRES, MESTRE DOS AN-
JOS E DOS HOMENS.
NOTA DO AUTOR

Este livro é a publicação na íntegra da Dissertação apresenta-


da como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em
Ciências Sociais, pelo Programa de Mestrado em Ciências Sociais,
área de concentração “Organizações e Sociedade”, da Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católi-
ca do Rio Grande do Sul.
Como tal, este trabalho é uma pesquisa metodológica cientí-
fica cujo fim não é pessoal com relação à pessoas ou fatos, apenas
uma análise comportamental cinetífica.

MÁRCIA DE OLIVEIRA ESTRÁZULAS


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................ 13

2 A COMUNIDADE “FIGUEIRA” ..................................... 29


2.1 A COMUNIDADE FIGUEIRA E ASPECTOS DA TRAJETÓRIA
DE SEU LÍDER ............................................................... 30
2.1.1 A Fundação da Comunidade “Nazaré” ................. 34
2.2 A ESTRUTURA ORGANIZACIONAL DE “FIGUEIRA”,
ASPECTOS LOGÍSTICOS, MATERIAIS, ETC. .................... 37
2.2.1 Estrutura Física: Sede, Casas, Setores, Monastérios,
Redes de Serviço no Brasil e no Exterior ....................... 40
2.2.2 Organização Administrativa, Hierarquia, Categoria de
Membros, Atividades, etc. ............................................. 44
2.2.3 Forma de Subsistência, Trabalho Voluntário e Gratuito
..................................................................................... 47
2.3 CULTURA ESPIRITUAL DE “FIGUEIRA” ..................... 50
2.4 CONCLUSÃO ........................................................... 55

3 ERVING GOFFMAN - O INTERACIONISMO SIMBÓLICO


COMO MARCO PARA A ANÁLISE DOS RITOS DA INSTITUIÇÃO
E DOS RITOS DA INTERAÇÃO ........................................ 57
3.1 ERVING GOFFMAN - UMA VIDA MESCLADA COM SUA
VISÃO TEÓRICA ............................................................ 57
3.2 INTERAÇÃO SOCIAL ................................................ 68
3.1.1 A persuasão entre atores sociais .......................... 72
3.1.2 Instituições Totais ................................................ 75
3.1.3 Comunidade desviante ......................................... 84

4 MÉTODO DE GOFFMAN E SUA APLICAÇÃO NA INTERAÇÃO


SOCIAL DE “FIGUEIRA”.................................................. 89
4.1 PROCEDIMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS ...... 89
4.2 A PESQUISA DE CAMPO SEGUNDO O MÉTODO DE
GOFFMAN ..................................................................... 92
4.3 CATEGORIAS DE ANÁLISE DOS RITOS DA INSTITUIÇÃO
DIMENSIONADAS COMO categorias ABSORVENTES ..... 95
4.3.1 Anotações das observações de campo dos ritos da
instituição já categorizadas .......................................... 97
4.4 CATEGORIAS SOBRE OS RITOS DE INTERAÇÃO
DIMENSIONADAS COMO categorias CONVERGENTES 113
4.4.1 Roteiro dramático de uma instituição total ........ 115
4.4.2 Conclusão .......................................................... 126

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................. 127

REFERÊNCIAS ............................................................. 135


1 INTRODUÇÃO

Esta dissertação tem como objetivo apresentar o estudo da


comunidade “Figueira”. Para tanto foram organizados cinco capí-
tulos. A introdução é o primeiro.
No segundo há o histórico de “Figueira”. Traçamos a trajetó-
ria pessoal do fundador da comunidade, trazendo à luz alguns dados
da sua biografia, sua formação de diretor de cinema no Brasil e no
exterior, seus trabalhos e obras na área, seus sucessos e fracassos
profissionais até a desistência da carreira de cineasta e a posterior
fundação da comunidade “Nazaré”, de onde foi excluído pelo pró-
prio grupo devido à sua forma de administrá-la. Após sair da
“Nazaré”, Trigueirinho funda a comunidade “Figueira”, uma orga-
nização ainda mais fechada que a “Nazaré”. Concomitantemente à
administração de “Figueira”, Trigueirinho escreveu dezenas de li-
vros com profecias do fim do mundo e o resgate da terra com aju-
da de extraterrestres. Hoje vive isolado. 13
Depois, apresentamos a comunidade “Figueira”, propriamen-
te dita, sua localização geográfica, o número aproximado de resi-
dentes, objetivo principal, extensão territorial, sua fauna e flora,
um panorama geral das atividades cotidianas e os perfis das pes-
soas que podem participar das rotinas e tarefas.
A estrutura física da comunidade, a utilização do espaço geo-
gráfico tem relação com a organização espiritual e hierárquica. A
organização hierárquica segue o modelo de pirâmide. O líder vita-
lício Trigueirinho fica no topo (o profetismo tornou-se sua forma
de ascendência), os grupos externos e itinerantes na base e,
intermediando ambos, os coordenadores mais próximos do líder.
Descrevemos a sede, as atividades e funções das casas na área
urbana, dos setores e monastérios nas áreas rurais e dos grupos
itinerantes do Brasil e exterior que se hospedam e participam das
atividades da comunidade “Figueira”.
A divisão de trabalho, de tarefas e de atividades, descrita nes-
te trabalho, é conseqüência do desenvolvimento da organização.
Uma característica a se destacar são os conflitos decorrentes do
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choque de valores do grupo de residentes internos e do grupo


externo itinerante. Outro fator que desencadeia divergências é o
interesse do grupo estar acima das individualidades. Também o
modo como as tarefas devem ser executadas e o tempo de duração
das mesmas são previstos pelo grupo de coordenadores internos,
sem espaço para criatividade, liberdade de escolha e livre-arbítrio,
aos grupos de externos itinerantes.
Também apresentamos as formas de subsistência da comuni-
dade: produção agrícola para subsistência; troca do excedente;
doações de alimentos, remédios, equipamentos, roupas, dinheiro,
etc.; mão-de-obra voluntária e gratuita; venda de livros, fitas k-7,
cds, fitas de vídeo (VHS).
Descrevemos a cultura espiritual de “Figueira”, o eremitério,
onde vivem os eremitas em reclusão; seus monastérios femininos
e masculinos, reclusos e semi-reclusos; as regras, normas, discipli-
nas e hábitos advindos da atividade espiritual; a formação ou re-
quisitos dos monges, oblatos, zeladores, sacerdotes, seres-espe-
lhos, residentes, aspirantes e instrutores são outras peculiaridades
14 aqui esclarecidas.
Estivemos pessoalmente em “Figueira”, e constatamos que lá
residem mais ou menos trezentas pessoas. Sua base é a vida grupal,
há pessoas de todas as idades e nacionalidades com diferentes
vivências. “Figueira” tem como principal objetivo ser uma escola
de formação e instrução espiritual. Como um centro espiritual, cul-
tiva o serviço e a vida espiritual.
As terras de “Figueira” localizam-se na cidade de Carmo da
Cachoeira, interior de Minas Gerais, região sudeste do Brasil. Sua
área geográfica é, atualmente, uma fazenda de uns cem hectares.
“Figueira” possui fauna e flora abundantes, plantações para sub-
sistência, casas para alojamento dos visitantes, bibliotecas para
estudo, locais para curas alternativas, laboratórios artesanais e ofi-
cinas de trabalho, obras e manutenção. Os alojamento são sim-
ples, tanto nas casas da cidade, quanto nas da fazenda, e são dis-
tribuídos aos visitantes pela secretaria geral conforme a disponibi-
lidade e necessidades das tarefas internas.
Não era e não é permitido, no período em que nos hospeda-
mos ali, chamadas telefônicas e contatos externos considerados
desnecessários por parte da administração. Não são permitidos
telefones celulares, filmadoras, máquinas fotográficas ou gravado-
res. Os residentes optaram pelo celibato. Os hóspedes ou visitan-
tes são obrigados a assumir essa condição enquanto permanecem
no local. Enquanto os visitantes estão ocupando os quartos, são
proibidas visitas ao recinto íntimo. Em “Figueira” não se estimu-
lam intimidades e vínculos emocionais.
O alimento é disponibilizado, de acordo com as estações do
tempo, é plantado em “Figueira” organicamente e sem agrotóxicos.
Os frutos da terra não são comercializados e nenhum dos voluntá-
rios que participam dessas tarefas é remunerado. As refeições são
vegetarianas e integrais, sem laticínios, açúcar refinado, sal, alho,
cebola, temperos, café, bebidas alcoólicas ou refrigerantes. Não
são usadas bebidas alcoólicas, drogas ou fumo.
Os que se hospedam em “Figueira” devem levar roupas sim-
ples para trabalhos, agasalhos para trabalhos noturnos ou mati-
nais, relógio para cumprir a agenda de tarefas, despertador para
acordar cedo, lanterna para trabalhos noturnos e para falta de luz
e demais objetos pessoais. O vestuário deve ser discreto. 15
As tarefas compõem-se de limpeza de casa, preparo de ali-
mentos, desidratação de legumes e frutas, trabalhos na padaria,
lavanderia, marcenaria e manutenção, horticultura, jardinagem,
plantios e colheitas em geral. Mutirões para aberturas de estradas,
radioamadorismo para contatos de emergência, apicultura, edição
e difusão de livros, folhetos, boletins e gravações, recepção de
hóspedes, além de atendimento a pessoas necessitadas.
Todas as atividades são grupais, os estudos e as tarefas são
desenvolvidos nas áreas de trabalho. Aos semi-internos, hóspedes,
visitantes itinerantes são distribuídos tarefas que devem ser reali-
zadas nos seus devidos setores. As tarefas começam antes que o
dia amanheça e seguem até à tardinha. Bem cedo, o grupo todo
coopera na limpeza básica dos ambientes. Só depois é que é servi-
do o café da manhã. Há refeições ao meio-dia e à noite. O recolhi-
mento para o sono deve iniciar-se às 20h30min. O silêncio deve
ser respeitado a partir das 21h30min.
As palestras com Trigueirinho acontecem semanalmente, em
especial, no dia da vigília mensal, nos encontros de oração e nas
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reuniões dos monastérios. Os encontros do setor saúde (médicos e


terapeutas) realizam-se também semanalmente. Os encontros de
oração ocorrem três vezes ao ano.
Como fomos, por várias vezes, à “Figueira”, constatamos que
há uma organização física por setores. São duas áreas, uma urbana
e uma rural na fazenda. A urbana situa-se geograficamente na cida-
de de Carmo da Cachoeira, interior de MG. Encontra-se ali a Casa 1,
que foi a primeira sede no início em 1987. Ela é designada secreta-
ria geral de “Figueira”, coordena e distribui tarefas. Na área rural,
há uma fazenda de mais ou menos cem hectares e há um setor que
chama-se “Vida Criativa”, onde são feitos plantio de hortas, colhei-
ta e armazenamento.
Em “Figueira” há, atualmente, sete monastérios. Alguns são
reais, físicos, com localização geográfica precisa, onde vivem os
residentes internos; outros são virtuais, ainda não se materializa-
ram fisicamente, não têm localização geográfica, são considera-
dos um “modo de vida”, uma filosofia, sem precisar de um local
físico concreto propriamente dito:
16 O monastério 1 é feminino, semi-recluso. Localiza-se na fa-
zenda e é chamado Figueira 1 ou F1. Ali há o pátio com uma área
aberta e outra reclusa, sendo esta última o local onde residem
monjas, que são desestimuladas a ter qualquer contato social com
o grupo semi-interno e com o próprio grupo interno.
O monastério 2 é masculino, semi-recluso. Localiza-se na fa-
zenda e é chamado de Figueira 2 ou F2. Há uma área reclusa, onde
ficam os monges.
O monastério 3 é misto, eremítico (recluso).Figueira 3 ou F3
localiza-se na fazenda. É designado eremitério, onde atualmente
reside Trigueirinho e mais duas pessoas. Este trio vive como ere-
mita e não tem contato social com o grupo interno, muito menos
com o grupo externo ou semi-interno. Dos três, apenas Trigueirinho
pode transitar livremente por qualquer setor ou ter contato social
com quem bem lhe aprouver. São permitidos retiros eremíticos em
“Figueira”. O interessado deve levar uma barraca e sua própria ali-
mentação, pois ficará no eremitério sem contato com ninguém.
O monastério 4 é misto, externo. Localiza-se na casa 4, que
fica na cidade de Carmo da Cachoeira.
O monastério 5 é misto, externo. Localiza-se em F1 na fazen-
da.
O monastério 6 é misto, domiciliar. Localiza-se em cidades
distantes da fazenda “Figueira”.
O monastério 7 é misto, itinerante. Localiza-se em cidades
distantes da fazenda “Figueira”.
A organização “Figueira” está aberta para pessoas abnegadas
e úteis que formam grupos que poderiam ser denominados de semi-
internos ou itinerantes, hóspedes, visitantes, simpatizantes, cola-
boradores, adeptos, discípulos ou redes de serviço. Hospedam-se
em “Figueira” para ouvir as palestras de Trigueirinho. Compram
livros, executam tarefas, em troca, “Figueira” fornece comida para
o corpo e “alimento” para o espírito.
Percebemos, nas vezes em que visitamos “Figueira”, que
Trigueirinho, devido à sua personalidade forte e a seu carisma,
possui ascendência sobre o grupo, está, portanto, no topo da pirâ-
mide hierárquica. Trigueirinho, por ser cineasta, por viajar pelo
mundo, teve uma vida intelectual, uma cultura mais vasta que os
integrantes de seu grupo, adquiriu mais conhecimentos, mais po- 17
der intelectual. A “poder do saber”, de maior soma de conheci-
mentos, levou-o a se tornar líder, superior em relação às pessoas
do seu grupo, podendo assim atrair, em torno de si, quantidade
de simpatizantes e a organizar comunidades.
A grande profecia de Trigueirinho, hoje considerado um pro-
feta pelo seu grupo, fala sobre a “Operação Resgate” da raça huma-
na. Ela salvará o seu grupo do fim do mundo. Porém para que
essas pessoas sejam resgatáveis precisam passar por uma mudan-
ça de comportamento. Essa mudança de padrão de personalidade
têm como finalidade torná-lo humilde, sem liberdade de escolha,
sem livre-arbítrio. Dessa forma passam a aceitar, acatar ordens e
funções alheias à sua natureza individual egoísta e a atender aos
objetivos do coletivo, do grupo, e não aos da sua individualidade.
Percebemos que os internos de “Figueira” não lidam com di-
nheiro, nem conhecem o valor a moeda nacional. A organização
“Figueira”, por sua vez, dispõe de meios para a obtenção de recur-
sos para a consecução de suas metas. Uma das formas de arrecadar
recursos é através de mão-de-obra voluntária e gratuita, além de
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contribuições voluntárias. Outra maneira é o cultivo agrícola para


subsistência própria. A produção excedente é trocada na cidade de
Carmo da Cachoeira por gêneros alimentícios que estejam faltan-
do.
Há, atualmente, poucos residentes em “Figueira”. Não há um
número maior porque, segundo Trigueirinho, no atual momento
da civilização, poucas pessoas conseguem libertar-se, liberar-se do
compromisso com a sociedade. A estrutura, a engrenagem da pre-
sente civilização continua exercendo grande influência. Algumas
têm, portanto, que se despojar de encargos e desvincular-se de
tendências retrógradas e antiquadas, segundo Trigueirinho, para
corresponder ao que é exigido do residente. Esta postura emergirá
da renúncia das ambições e satisfações pessoais em função da co-
letividade.
Os que aspiram à vida no local são chamados aspirantes. Eles
devem ter uma disposição para seguir, sem reservas, com abnega-
ção, com desapego, de forma altruísta e impessoal, o caminho do
serviço. O aspirante deve deixar de lado o orgulho e o preconceito
18 para servir à humanidade. Deve aprender que a sujeição a uma
organização, a uma ordem, às regras, às normas, a determinadas
condutas é necessária para um trabalho evolutivo e que, impostas
num ambiente, servem de exemplo aos demais.
O terceiro capítulo tem o objetivo de contextualizar, compre-
ender e explicar a organização “Figueira”. Para tanto utilizamos,
como referencial teórico e metodológico, o interacionismo simbó-
lico. Neste viés estão as pesquisas de Erving Goffman, autor que
enfoca as interações entre atores sociais.
Num primeiro momento, há a biografia de Erving Goffman, o
explica e justifica temas e conceitos teóricos próprios. Assim, al-
guns dados biográficos ajudam a entender como a obra deste au-
tor reproduz o status social dele. Uma pesquisa científica nunca é
totalmente dissociada da formação de classe que lhe preexiste, de
tal maneira que a obra encerra sempre a marca da trajetória social
do seu autor.
Traçamos os princípios e paradigmas do interacionismo sim-
bólico, dando especial relevância aos conceitos teóricos do livro “A
representação do Eu na Vida Cotidiana”. A abordagem dinâmica
constitui uma preocupação dos sociólogos e antropólogos, por isto
optamos por embasar o presente estudo neste referencial teórico.
Joas (1999) sustenta que a teoria deve ser desenvolvida a partir
das observações das interações dos atores sociais na vida real. A
finalidade desta pesquisa é mostrar o que os atores sociais real-
mente fazem em determinados contextos, em processos observáveis
de interação.
O interacionismo simbólico é uma escola da microssociologia*
e introduz um objeto novo, a situação de interação. Dentro desta
visão, a sociologia das organizações sugere que o funcionamento
de uma organização torna-se viável com a existência de um pro-
cesso flexível e permanente de negociação entre os vários atores
sociais interessados na forma de divisão do trabalho. A principal
tarefa da sociologia das organizações, dentro da visão do
interacionismo simbólico, é a reconstituição dos processos
interacionais, definidos e desdobrados no tempo. A tese central
que o sustenta é a da conversação diplomática, o que mantém a
instituição contínua da sociedade. O que tem por objetivo manter
a continuidade da instituição da sociedade. (JOAS, 1999) 19
Segundo Joas (1999), a interação social é um processo que
condiciona o comportamento humano. O ator social tem um “eu”
(self), que se torna objeto para si mesmo, comunica-se consigo pró-
prio e age em relação a si. O “eu” (self) precisa de uma visão reflexi-
va; o ator social, através de um processo de self-interaction, interage
com o mundo e com outros. Nessa interação, define o significado
das coisas. Por isso há influência das pesquisas dessa corrente na
antropologia e na sociologia. Sua tarefa central é identificar o que
na sociedade condiciona os comportamentos individuais do ator
social, o que nele faz diferença para aspectos coletivos da socieda-
de. O quanto o comportamento individual, a interação social e o
ator social são afetados pela estrutura social e também como os
atores sociais podem, através de seus comportamentos, individual
* Referimo-nos à microssociologia para apontar diferentes vertentes teóricas que
surgem após a crise dos clássicos, sobretudo Durkheim e Weber nas primeiras déca-
das do século xx. A microssociologia desenvolveu-se sobretudo no interior da escola
de Chicago onde surgiram vertentes tais como o evolucionismo psicológico,
quantativismo, condutivismo.
Márcia de Oliveira Estrázulas

e coletivo, alterar as estruturas em que atuam. Não é possível con-


ceber o ator social sem a sociedade e a sociedade sem o ator social.
Os dois são gerados na interação. Há influência do ator social na
sociedade e vice-versa. A partir da interação, a natureza dual da
relação ator social e sociedade gera o processo de individualização
que é derivado da socialização (JOAS, 1991).
Goffman delimita um campo de estudo propriamente socioló-
gico centrado nas situações, na análise das relações sociais em ter-
mos de ações recíprocas. Em seu estudo sobre os rituais de
interação, examina o trabalho de construção da face (GOFFMAN,
1999). O termo face é determinado pelos valores percebidos numa
interação com o ator social. A face dá indícios da identidade, do self
formado por características sociais reconhecidas e aceitas pelo gru-
po de atores sociais. As regras do grupo determinam as faces apre-
sentadas em interação.
O livro “A Representação do Eu na Vida Cotidiana” serve de
orientação para estudar a vida social sob o ponto de vista da mani-
pulação da impressão aplicável a qualquer estabelecimento social
20 concreto, poderia servir como uma referência a ser utilizada no
estudo de casos da vida social institucional.
Um estabelecimento social é qualquer lugar no qual se reali-
za regularmente uma forma particular de atividade. Nesse espaço
há uma equipe de atores que, em conjunto, apresenta-se à platéia
utilizando regras de comportamentos social. Há uma região onde
é preparada a representação. Também há uma área onde essa ence-
nação é apresentada. A entrada nessas regiões é vigiada para evi-
tar que a platéia ou o auditório veja os bastidores. Entre os mem-
bros da equipe há certa conivência, fidelidade, lealdade, vigilância
para que os segredos que possam prejudicar a representação não
venham a público.
O ponto de vista do livro “A Representação do Eu na Vida
Cotidiana” é o de uma representação teatral, na qual se utilizam
premissas, axiomas, princípios de caráter dramatúrgico. No palco
se apresentam simulações. O ator social se apresenta sob uma
máscara de um personagem social para personagens sociais,
projetados por outros atores sociais, a platéia social.
Em quarto lugar, buscamos na obra de Goffman, publicada no
livro “Prisões, Manicômios e Conventos”, trazer à luz as categorias
de análises que poderiam definir as instituições totais. A caracte-
rística marcante de uma instituição total é o condicionamento da
vida dos indivíduos através da imposição de regras internas para
as interações. Neste ambiente institucionalizado, a face, o “eu”, o
self, a identidade é ameaçada ou deteriorada, podendo ser estig-
matizada por parte ou por todos os membros do grupo do qual o
ator social faz parte, mesmo que não apresente características físi-
cas que incentivem tais atitudes.
Em termos conceituais mais detalhados, limitam suas própri-
as atividades num único espaço físico, é um mesmo local de mora-
dia e trabalho, e as regras de comportamento condicionam a iden-
tidade ideológica e filosófica do grupo. Existe um fechamento em
relação à sociedade. Goffman (1999) diz que há importância socio-
lógica nas pesquisas das instituições totais, porque são locais de
condicionamento dos atores sociais. Normas coletivas e compulsó-
rias condicionam o comportamento interacional daqueles que per-
tencem ao grupo. 21
Também é um objetivo da instituição total transformar o ator
social num ser o mais próximo possível da perfeição idealizada.
Goffman (1999) explica que as normas culturais condicionam como
os atores sociais devem agir quando inseridos num determinado
grupo social.
Ao se fazer parte de uma instituição qualquer, um novo pro-
cesso de socialização é iniciado, porque começa um processo de
adaptação com caráter permanente a seus padrões de interação.
Podemos observar como um ator social condiciona sua conduta de
acordo com as circunstâncias. Isto se explica pelo fato de o ator
social ser flexível e ter a capacidade de se adaptar ao meio social e
cultural. O contexto e a conjuntura social condicionam a atitude e
até o pensamento, porque a instituição exerce domínio sobre o
“eu” (self) ou personalidade dos seus membros, condicionando sua
ideologia, cultura, costumes, hábitos, conduta e postura.
Por último, buscamos delinear, superficialmente, o perfil da-
queles que se identificam com comunidades desviantes, os estig-
matizados, divergentes, outsiders, liminares, retraídos, marginais,
Márcia de Oliveira Estrázulas

deslocados, rebeldes, perdidos, desenraizados, minorias, artistas,


etc. Durante a mudança do século XX para o XXI, houve um perío-
do de transição. Dentro desse contexto surgiu Trigueirinho re-anun-
ciando a Era de Aquário, um movimento tão diverso quanto a
contracultura da década de 1960, e com raízes na New Age.
Trigueirinho anunciava em suas profecias que a transição para o
milênio aquariano, de amor e fraternidade, seria plena de violên-
cia e riscos para os espiritualmente despreparados. Por outro lado,
os que estivessem em harmonia com a operação resgate, liderada
por ele, ingressariam numa nova era de iluminação espiritual e
seriam orientados por seres intra-terrenos, superiores e avança-
dos, emissários de uma civilização extra-terrestre, cujas espaçonaves
eram os OVNIS, ajudariam a criar uma nova civilização.
Contemporaneamente não existe mais a identificação física
do estigma, mas existem os estigmatizados. São aqueles que por
algum motivo não são aceitos em determinada comunidade, por-
que se afastam das expectativas sociais, culturais, econômicas, in-
telectuais, físicas, etc.Suas resignações sociais podem se manifes-
22 tar como um mecanismo de fuga e abandono da sociedade, con-
vergindo para comunidades desviantes (GOFFMAN, 1988), onde
entram em contato com seus semelhantes formando uma sub-cul-
tura.
Os desviantes sociais, descreve Goffman (1988), orgulham-se
de sua rebeldia e evitam as divergências (Velho, 1974), restringin-
do-se à proteção auto-defensiva de viverem isolados numa sub-
comunidade. Ali não se sentem mais deslocados como na socieda-
de aberta. Sentem-se melhores, superiores, exemplos e modelos
de vida para os atores sociais da sociedade aberta, assim atraem
mais simpatizantes. Turner (1974) diz que a communitas é formada
por um conjunto de atores sociais concretos e idiossincrásicos que,
apesar de serem diferentes quanto ao físico e às personalidades,
são iguais do ponto de vista da humanidade comum a todos. Bus-
cam uma transformação e encontram algo profundamente comunal
e compartilhado: sua alma ou humanidade, sua ‘comum unidade’.
No quarto capítulo, descrevemos o método de pesquisa, cria-
do por Goffman, para observar de forma participativa as interações.
Em primeiro lugar, descrevemos o procedimento teórico -
metodológico Goffminiano utilizado na pesquisa de campo em
“Figueira”. Em segundo lugar, tomamos ciência desta comunidade
por intermédio da cadeira de cinema, da Faculdade de Comunica-
ção Social da PUCRS (FAMECOS-PUCRS). Trigueirinho foi um diretor
premiado na fase do Cinema Novo brasileiro, em 1960, com o fil-
me “Bahia de todos os Santos”. Em terceiro lugar, é importante
ressaltar que esta pesquisa é pioneira. Não existiam estudos, en-
saios, artigos, textos acadêmicos anteriores sobre esta organiza-
ção. Tivemos, pois, que desbravar um novo caminho de pesquisa e
construir um novo saber, um novo conhecimento. O ineditismo
tornou-a trabalhosa. Levamos seis anos para realizá-la. Tivemos
paradas que foram muito frutíferas, pois procuramos pôr em práti-
ca o que o sociólogo Domenico de Masi chamou de ócio criativo,
isto é, utilizar o tempo de lazer, o tempo recreativo para criar, pro-
duzir sem pressão, sem estresse.
Por curiosidade, um exemplo do esforço que fizemos: Há um
livro chamado “Internados”, de Goffman, editado em Buenos Aires,
pela Amorrortu Editores. Na época, estava esgotado na editora,
não foi encontrado na Feira Internacional do Livro de Porto Alegre 23
em novembro de 2006. Não estava disponível na biblioteca da
PUCRS, UFRGS, Ulbra nem Unisinos. Nenhum dos professores do
PGCS, nem os sebos de Porto Alegre, RS, possuíam um exemplar
original ou cópia de tal livro. Somente encontramos um exemplar,
de 1972, em um sebo de São Paulo, SP, através da internet e envi-
ado via sedex.
Esperamos que esta dissertação possa servir de referência para
posteriores estudos e aprofundamentos sobre o mesmo tema. Po-
díamos ter optado pelo viés do ‘messianismo’, ou, pelo viés do
‘poder’, estudado por Foucault, ou, ainda, do mesmo autor , o viés
de ‘vigilância e punição’. Ainda, poderíamos ter optado, pelo pon-
to de vista do ‘líder carismático’, de ‘communitas e liminaridade’ es-
tudado por Victor Turner, pelo recorte do ‘desvio de divergência’
de Gilberto Velho, etc, mas escolhemos o Interacionismo Simbóli-
co e a trilogia de Goffman que trata das instituições totais, da re-
presentação do “eu” na vida cotidiana e do estigma.
Goffman, em sua tese de doutorado na comunidade das Ilhas
Shetland, construiu sua própria metodologia. Apresentou-se aos
Márcia de Oliveira Estrázulas

moradores das Ilhas como um estudante universitário que deseja-


va obter informação direta sobre a economia insular. Ele se colo-
cou no próprio espaço da pesquisa de campo, ou seja, no espaço
das interações dos moradores. Ali pôde perceber o infinitamente
pequeno, o evidente e o óbvio. Não utilizou questionários, grava-
dor, câmera de filmar. Tomava algumas notas escondidas. Mais tar-
de, já conhecido e mais “participante observador” do que “obser-
vador participante”, vai simplesmente reviver as interações e relatá-
las no seu diário elaborado à noite no silêncio do seu quarto.
Goffman teve a oportunidade de obser var as crises
interacionais que surgem, por vezes, no meio de pequenos grupos
de atores sociais. Ele participava de atividades mais informais e
observou as interações em forma de conversa. A interação, objeto
da atenção de Goffman, denominava-se conversacional. Goffman
observou a interação que ocorrem nos espaços cotidianos e ex-
cluiu a preocupação com as características macrossociológicas da
comunidade. Excluiu traços que distinguiam esta ilha de uma ou-
tra e examinou as interações que se assemelhavam às dos lugares
24 mais impessoais da vida moderna. Goffman rejeitou o tempo e o
espaço, anulou a tradição da história. Dessa forma isolou as carac-
terística do homem interacional puro. Ele observou as interações
mais impessoais das Ilhas Shetland, o resto não lhe interessava.
Isto justificava sua posição, de que o seu estudo se desenrolou na
comunidade das Ilhas Shetland, mas não era um estudo da comuni-
dade das Ilhas Shetland.
Através de indícios sutis das interações, Goffman captou a ló-
gica do ato de encenação, o conjunto de estratégias para exibir
uma imagem social que valorizava o ator, que causava uma boa
impressão, que distinguia um do outro, aspectos por vezes des-
percebidos pelos leigos e que não eram considerados relevantes
pela maioria dos sociólogos. No entanto, esses detalhes modifica-
ram o pensar sociológico no mundo.
Sua pesquisa etnográfica do hospital psiquiátrico para doen-
tes mentais Santa Elizabeth colaborou para deflagrar a luta
antimanicomial no mundo. A junção do sociólogo e do etologista
serviu como uma vantagem a mais para Goffman. A linguagem do
corpo ,em interação, que se observava nas ruas estava conectada
aos contextos antropológicos de todas as interações sociais e isso
se tornou um critério de julgamento das formas institucionais de
controle social e dos esquemas explicativos da socialização.
Este estudo das instituições totais e, particularmente, do
mundo dos atores sociais, denominados por nós como hóspedes e/
ou visitantes itinerantes da comunidade “Figueira”, tem como um
dos seus interesses principais avaliar, o mais possível, a versão so-
ciológica do “eu” (self) em interação na organização “Figueira”. Ao
contrário de Goffman, acentuamos nesta pesquisa o mundo do ator
social não-internado, dos hóspedes e/ou visitantes itinerantes que
se hospedam em “Figueira” e que, ao interagirem com os atores
sociais ou residentes permanentes – fazendo parte ou não da equi-
pe dirigente –, entram em conflito em função de diferentes perso-
nalidades, comportamentos, interesses, objetivos, hábitos, costu-
mes, usos, criando-se, assim, um clima constante de conflito, dis-
córdia, etc.
Apresentamo-nos como colaboradores e ficamos hospedados
como alguém que simpatizava com a cultura espiritual proposta
no local, mas evitamos a intimidade e a amizade, até porque esta 25
conduta é condenada. Colocamos-nos no próprio espaço das
interações, no campo de pesquisa propriamente dito, para fazer
uma observação participante das interações, para verificar como a
integração faz a vida social acontecer. Procuramos nos integrar à
vida cotidiana para observar as interações. Não pudemos usar gra-
vadores, filmadoras, nem fotografar. Estes instrumentos são proi-
bidos. Também não fizemos questionários, porque chamaria mui-
ta atenção e tiraria a espontaneidade, a naturalidade das pessoas
analisadas. Tomávamos, inicialmente, pequenas notas aqui e acolá
escondidas. Mais tarde, tomávamos notas, no quarto, mesmo es-
tando, quase sempre, em quartos coletivos. Hospedados e viven-
do no meio deles, tivemos a oportunidade e o privilégio de pre-
senciar comunicações, interações e conversas cotidianas interes-
santes e bastante elucidativas da sua cultura ímpar ou singular.
Queremos informar que fizemos uma observação participan-
te das interações que se passam na comunidade “Figueira”, por-
tanto não realizamos um estudo, propriamente dito, da comuni-
dade “Figueira.” Por esta razão, não pesquisamos as características
Márcia de Oliveira Estrázulas

macrossociológicas, não levamos em conta o tempo, a história,


mas somente estudamos o espaço e os traços que caracterizam
esta comunidade. Procuramos examinar as interações impessoais
que podem ocorrer por divergências nas relações de poder. Portan-
to, coletamos informações da organização “Figueira” seguindo,
passo a passo, o método criado por Goffman.
Foram seis observações participantes ao todo no campo de
pesquisa. O tempo de permanência é determinado por eles. A pri-
meira foi nas férias acadêmicas de verão, porque, obviamente, tí-
nhamos mais tempo e porque nesta época afluem mais atores so-
ciais à “Figueira”. Realizou-se no primeiro semestre de 2001, em
janeiro, por dez dias consecutivos; a segunda, nas férias acadêmi-
cas de inverno, também por termos mais tempo, e também por
irem mais pessoas para lá nessa ocasião, portanto realizou-se no
primeiro semestre de 2001, em julho, por quinze dias consecuti-
vos; a terceira observação foi no primeiro semestre de 2002, em
julho, também nas férias acadêmicas de inverno, por sete dias con-
secutivos; a quarta, no primeiro semestre de 2004, nas férias aca-
26 dêmicas de verão, em fevereiro, por quinze dias consecutivos; a
quinta foi no primeiro semestre de 2006, em fevereiro, nas férias
acadêmicas de verão, por sete dias consecutivos. A sexta e última
foi no primeiro semestre de 2006, em julho, por cindo dias. Além
disso, fizemos duas pesquisas de campo na comunidade Nazaré,
situada na cidade de Nazaré Paulista, interior do Estado de São
Paulo, as quais se realizaram nas férias de verão do ano 2003, mais
precisamente em janeiro, por uma semana, retornando novamen-
te em fevereiro por quinze dias.
Fizemos várias outras pesquisas de campo nos subgrupos ou
rede de serviço de Porto Alegre. Realizamos reuniões com atores
sociais do grupo e fizemos algumas observações participativas nas
audições públicas. Também pesquisamos a bibliografia, exclusiva-
mente utilizada para consulta interna, do grupo de “Figueira” e
das redes de serviço, pesquisamos a bibliografia das obras
publicadas por Trigueirinho, algumas indicações bibliográficas
apontadas pelo próprio Trigueirinho em seus escritos tais como:
‘Revistas de Sinais’, ‘Jornais de Sinais’, ‘Boletim de Sinais’, textos e
artigos na internet, seu filme “Bahia de todos os Santos”, seus VHS,
cds, fitas k-7, seus artigos críticos publicados na Revista “Anhembi”,
editada pela USP, algumas críticas especializadas em cinema sobre
sua obra. Quase todas as fontes citadas estão anexadas para futu-
ras consultas, já que seria muito dispendioso em termos de tempo
e muito oneroso deslocar-se até “Figueira”, além de toda uma bu-
rocracia para entrar lá.
Conforme Becker (1977) aconselha, esclarecemos que a pes-
quisa foi feita sob o ponto de vista de hóspedes e/ou visitantes.
Este autor enfatiza que a neutralidade ideal nas pesquisas científi-
cas dificilmente é atingida, tornando assim necessário informar de
qual ponto de vista nos situamos. A presente pesquisa, portanto,
foi feita buscando compreender os atores sociais denominados
hóspedes e/ou visitantes itinerantes que permanecem temporaria-
mente em “Figueira” e que, ao interagirem com os residentes ou
internos, sejam auxiliares ou coordenadores, entram em conflito
em função da sujeição hierárquica. Isto gera um clima de tensão
permanente, pois as disciplinas, normas, regras e tarefas impostas
pelo grupo de “Figueira”, liderado por Trigueirinho, condicionam
o seus “eus” (self) ou personalidades. 27
Quanto às instituições totais, Goffman (1999) salienta que há
um interesse sociológico no estudo delas, porque condicionam os
atores sociais. Regras e normas condicionam o comportamento e o
que devem pensar coletivamente em virtude de pertencerem ou
não àquele grupo específico. Nossa tese é que “Figueira” pode ser
classificada, parcialmente, como uma instituição total por possuir
muitas características inerentes a esse fenômeno. O mais impor-
tante é a percepção do seu condicionamento sobre o “eu” (self),
sobre o comportamento, o pensamento e até os sentimentos dos
que estão ligados a ela direta ou indiretamente.
Numa terceira instância, definimos as categorias de análise
dos ritos da instituição e dos da interação, as quais foram extraí-
das do referencial teórico. As categorias definidas na “representa-
ção dos atores sociais” são convergentes às categorias absorven-
tes das instituições totais. A seguir, fizemos um quadro de catego-
rias de análises fundamentadas no livro “A Representação do Eu na
Vida Cotidiana”, tais como: manipulação da impressão; represen-
tação; regiões e comportamento regional/estabelecimentos soci-
Márcia de Oliveira Estrázulas

ais; região frontal/região de fachada; região posterior/fundo/basti-


dores; equipe; platéia/observador; segredos; papéis discrepantes;
princípio norteador. As interações dos atores sociais foram exami-
nadas tomando por base a interpretação teatral, a representação,
o desempenho de um papel e/ou simulação de caráter dramatúrgico.
A “representação dos atores sociais” e as características da
instituição total, no contexto do Interacionismo Simbólico, pres-
supõem que a situação da interação, a circunstância, o espaço das
controvérsias (os quais têm muita importância para a sociologia)
não deveriam dissociar os ritos de interação e os da instituição. No
caso estudado da comunidade de “Figueira”, não se observou tal
dissociação entre os ritos. Alguns aspectos foram apresentados
separadamente apenas para fins analíticos.
Em quarto lugar, listamos o material empírico e o classifica-
mos em categorias. Por fim, analisamos as observações de campo
que estão divididas em ritos da instituição e ritos de interação e
fazemos algumas considerações finais em forma de análise do
material relacionado às categorias.
28 Mesmo conhecendo o fato de que existem muitas críticas às
instituições totais nesta contemporaneidade, a importância deste
estudo, vincula-se ao fato de que: ainda existem instituições totais
no âmbito das organizações sociais que podem ser consideradas,
mesmo que parcialmente, ou em alguma medida, em instituições
totais. Neste sentido, é o Interacionismo Simbólico de Erving
Goffman que pode e deve ser utilizado como referência teórica para
o conhecimento de tais instituições em detrimento dos estudos
contemporâneos sobre religião.
2 A COMUNIDADE “FIGUEIRA”

O presente capítulo tem como objetivo apresentar a comuni-


dade “Figueira”, para tanto foram organizados subcapítulos.
Primeiro, traçamos a trajetória pessoal do fundador, mostran-
do alguns dados da sua biografia, sua formação de diretor de cine-
ma no Brasil e no exterior, seus trabalhos e obras na área, seus
sucessos e fracassos profissionais até a desistência da carreira de
cineasta e a posterior fundação da comunidade “Nazaré”, de onde
foi excluído devido à sua forma absolutista de administrá-la. Após
sair da “Nazaré”, Trigueirinho funda a comunidade “Figueira”, uma
organização ainda mais fechada que a “Nazaré”.
Em segundo lugar, apresentamos a comunidade “Figueira”,
sua localização geográfica, o número aproximado de residentes,
seu objetivo principal, sua extensão territorial, sua fauna e flora,
um panorama geral de suas atividades, seu cotidiano, suas rotinas
e tarefas, quais são os perfis das pessoas que poderiam participar 29
dessas atividades diárias.
A estrutura física da comunidade e a utilização do espaço ge-
ográfico têm relação com a organização espiritual e hierárquica. A
organização hierárquica segue o modelo de pirâmide. O líder vita-
lício Trigueirinho no ápice (o profetismo tornou-se sua forma de
poder), os grupos externos e itinerantes na base e, intermediando
ambos, os discípulos, os adeptos e os coordenadores mais próxi-
mos do líder.
Descrevemos a sede, as atividades e funções das casas na área
urbana, dos setores e monastérios nas áreas rurais e dos grupos
itinerantes do Brasil e exterior que se hospedam e participam das
atividades da comunidade “Figueira”.
A divisão de trabalho, de tarefas e de atividades, descrita nes-
te trabalho, é conseqüência do aumento da organização. Uma ca-
racterística a se destacar são os conflitos decorrentes do choque de
valores do grupo de residentes e do grupo externo itinerante. Ou-
tro fator que desencadeia divergências é o interesse do grupo estar
acima das individualidades. O modo como as tarefas obrigatórias
Márcia de Oliveira Estrázulas

devem ser executadas e o tempo de duração das mesmas são im-


postos pela administração e pelo grupo de residentes aos grupos
de externos itinerantes sem espaço para criatividade, liberdade de
escolha e livre-arbítrio.
Também apresentamos as formas de subsistência de “Figuei-
ra”: produção agrícola para subsistência; troca do excedente; doa-
ções de alimentos, remédios, equipamentos, roupas, dinheiro, etc.;
mão-de-obra voluntária e gratuita; venda de livros, fitas k-7, cds,
fitas de vídeo (VHS).
Numa terceira parte, focalizamos a cultura espiritual de “Fi-
gueira”, o eremitério, onde vivem os eremitas em reclusão; seus
monastérios, feminino e masculino, reclusos e semi-reclusos; as
regras, normas, disciplinas e hábitos advindos da atividade espiri-
tual; a formação ou requisitos dos monges, oblatos, zeladores,
sacerdotes, seres-espelhos, residentes, aspirantes e instrutores. Por
último, apresentamos a conclusão.

2.1 A COMUNIDADE FIGUEIRA E ASPECTOS DA TRAJETÓRIA DE


30 SEU LÍDER

“Figueira” é uma organização liderada por José Hipólito


Trigueirinho Netto. Ele nasceu em São Paulo, no ano de 1929. Seu
pai era um coronel do exército e professor de português.
Segundo José Inácio de Melo Souza (2003), pesquisador da
Cinemateca Brasileira, Trigueirinho iniciou a carreira de diretor na
Companhia Vera Cruz como auxiliar do produtor Alberto Cavalcanti.
Costumava freqüentar a casa de Cavalcanti em São Bernardo do
Campo - SP, onde ele e vários intelectuais conversavam sobre o
destino do cinema brasileiro. Seu estudo de cinema foi no Centro
de Estudos Cinematográficos do Museu de Artes de São Paulo.
Trigueirinho auxiliou o diretor Adolfo Celi no filme “Caiçara”.
Foi crítico de cinema e escrevia artigos para a revista “Anhembi”
especializada em cinema (editada pela Faculdade de Comunicação
e Artes da USP). Nas críticas de cinema que escrevia para a revista,
sempre se colocava contra o imperialismo norte-americano e sua
indústria cinematográfica. Ajudou em roteiros de documentários;
escreveu um roteiro de propaganda para o Jockey Clube de São Pau-
lo. Em 1953, ganhou uma bolsa de estudos do Instituto Cultural
Ítalo-Brasileiro para o Centro Sperimentale de Cinematografia, em
Roma.
Trigueirinho morou na Itália de 1953 a 1958, cinco anos, por-
tanto, embora apenas três fossem suficientes para obter o diploma
de diretor de cinema. Em 1956, colaborou nos “argumentos cine-
matográficos” da equipe brasileira de produção internacional co-
ordenada por Joris Ivens, Die Windrose.
Escreveu um “argumento cinematográfico” para “Roma de
Notte”, outro para “Estate Romana”, e fez o roteiro de “Epoca Bella”.
O roteiro de “Bahia de todos os Santos” (1959/1960), seu longa-
metragem premiado, foi escrito nessa mesma época, concorrendo
ao Prêmio Fábio Prado, enquanto Trigueirinho realizava na Itália o
documentário “Nasce un Mercatto”.
Visando ao prêmio Fábio Prado, em 1958, para melhor rotei-
ro do filme “Bahia de todos os Santos”, Trigueirinho retornou ao
país para finalização do filme. No segundo semestre, trabalhou na
Rex Filme. “Bahia de todos os Santos” foi filmado com Jurandir
Pimentel (ator que cometeu suicídio após sua atuação em “Bahia”). 31
Em quatro de setembro de 1958, Trigueirinho solici-
tou financiamento de dois milhões de cruzeiros ao
Banco do Estado de São Paulo (Banespa), que foi nega-
do. Em quatorze de maio de 1959, foi pedido, direta-
mente ao presidente do banco Banespa, o reexame do
roteiro. A Comissão de Moral e Costumes da Confe-
deração das Famílias Cristãs, que era uma espécie de
comissão de censura, colaborou no reexame do rotei-
ro e concluiu que o mesmo não deveria ser censurado,
mas salientava o fato de o filme poder se tornar gros-
seiro se não fossem subtraídas algumas palavras tais
como: “Que merda; tem ainda bons peitos; as brancas
gostam de ir pra cama com negro; mas é virgem?; espe-
ra que eu vou mijar”. Para fazer essas modificações,
era necessária a concordância de Trigueirinho, a qual
se deu por carta em nove de junho de 1959:

Desnecessário seria dizer que, sendo a minha inten-


ção realizar um documento cinematográfico limpo,
despido de qualquer intuito menos limpo, capaz de
Márcia de Oliveira Estrázulas

vir a representar, em verdade, uma película de cunho


altamente social, estou disposto a exibir, de acordo
com a sugestão da Confederação das Famílias Cristãs,
os ‘rushes ’(tomadas), na proporção em que a fita for
rodada (TRIGUEIRINHO apud SOUZA, 2003, p. 7).

Uma semana após a carta de Trigueirinho, o Banespa conce-


deu-lhe o empréstimo de dois milhões de cruzeiros. Com o gover-
no da Bahia, Trigueirinho conseguiu passagens de avião gratuitas
para o elenco e técnicos, bem como a cooperação da Polícia Militar
para acomodação do grupo e, ainda, suporte nos translados na
cidade e arredores. As filmagens foram feitas em Salvador entre
novembro de 1959 e janeiro de 1960.
O custo final do filme foi quatro milhões de cruzeiros. Por
esse motivo foi necessário um pedido de empréstimo suplementar
de um milhão. A necessidade de mais recursos devia-se, também,
ao convite para exibição do filme na XXI Mostra Internacional de
Veneza, que começaria em agosto do mesmo ano. Esta participa-
ção em Veneza não se concretizou. Trigueirinho pretendia enviar o
32 filme para os festivais de São Francisco, Berlim e Karlovy-Vary, mas a
Divisão Cultural vetou sua participação no exterior. Em novembro
de 1961, o Banco do Estado enviou a Trigueirinho a cobrança do
título de dois milhões de cruzeiros, vencido em doze de setembro
de 1960. “Bahia de todos os Santos” somou-se à lista de emprésti-
mos insolventes da Carteira de Cinema Nacional. “Bahia de todos
os Santos” atraiu cerca de trezentos mil espectadores somente na
cidade de São Paulo, mas eram necessários novecentos mil para
não haver prejuízo. A demora para saldar a dívida com o banco era
conseqüência da espera por vaga nos cinemas para veiculação de
filmes não-comerciais, rotulados como cult pelos exibidores. “Bahia
de todos os Santos” estreou em setembro de 1960, em Salvador,
mas somente em março de 1961 entrou em cartaz em São Paulo.
No circuito de Belo Horizonte, seis meses depois.
Trigueirinho era tido no meio cinematográfico como um cine-
asta promissor, Alguns críticos cinematográficos, professores, pro-
dutores apostavam na sua carreira. Por anos, ele foi identificado
como um discípulo do mestre Cavalcanti. Os estudos de
Trigueirinho no Centro Sperimentale forneceram-lhe knowhow teóri-
co. Ele era um intelectual afinado com a vanguarda cinematográfi-
ca, o viés rosselliniano. Trigueirinho seguiu, no filme “Bahia de to-
dos os Santos”, as mesmas preocupações com a estética barroca de
Roberto Rossellini e Frederico Fellini. Segundo confirma em suas
palavras, em 1961:

[...] esses homens (Cavalcanti e Rossellini) contribuí-


ram para que eu me dedicasse de corpo e alma ao
cinema. Mas, se sua linguagem fosse reconhecida em
minha fita, isso significaria falta de perfeita assimila-
ção de minha parte. Cultura é exatamente aprender o
máximo, manifestando-se em seguida através de re-
cursos próprios. Seria absurdo imitar Rosselini e
Cavalcanti, já que, no que se propuseram exprimir,
eles foram completos (TRIGUEIRINHO apud SOUZA,
2003).

O roteiro transcorria no período ditatorial, salientando o can-


domblé, o sindicalismo, a greve e a questão racial. Tinha um cu-
nho sociológico ao captar o homem baiano em suas raízes, levan- 33
tando o problema da miscigenação, contextualizando a questão
do homem e do humanismo, desenvolvendo uma vertente do ci-
nema moderno: o documentário social (SALLES, 1988). Enquanto
filmando, criou um novo paradigma para alguns críticos e futuros
cineastas em Salvador, para os quais “Bahia de todos os Santos” se
tornaria inspiração.
O diretor Trigueirinho tende a um existencialismo. A busca
do homem rosselliniano de profundas raízes religiosas. Em termos
de religião, Trigueirinho não se declarava católico, tinha interesse
pelo hinduísmo. Foi administrador de um ashram (comunidade es-
piritual hinduísta formada em torno de um guru) do indiano Sri
Aurobindo, em Salvador. Também não era partidário dos cultos afro-
brasileiros.
Traduzia um realismo social na sua concepção do homem ilus-
trada em obras como “Francisco, Arauto de Deus” e “Romance na
Itália”. Também expressava uma modernidade em outros aspec-
tos. Seguia a escola neo-realista, a improvisação com atores não-
profissionais, o que favorecia uma maior criação artística. No rotei-
Márcia de Oliveira Estrázulas

ro, apareciam cenas de homossexualismo, relações ilícitas, diálo-


gos chulos, cenas realistas (Miss Collins em camisola). Eram filmes
proibidos para menores de dezoito anos. Para os adultos, talvez
fossem uma contribuição intelectual. Para os cultos, talvez forne-
cessem uma visão real da Bahia e para os incultos, mostravam a
problemática do mulato, da miscigenação.
Trigueirinho prometeu a filmagem do romance de Mário de
Andrade “Amar Verbo Intransitivo”, mas parou em um único longa-
metragem:

Com o abandono da carreira por Trigueirinho, várias


perguntas ficaram sem ser respondidas, como, por
exemplo, qual o papel do homossexualismo na cons-
trução de um personagem como Tonio, ator protago-
nista do filme “Bahia de todos os Santos”? O comple-
xo sexual poderia ser um sentimento de divisão na
identidade nacional do cineasta, dividido entre dois
países, o Brasil e a Itália... (SOUZA, 2003).

34 Após desistir do cinema, Trigueirinho gerenciou grupos de


recursos humanos em hotéis, onde foi treinador de ‘maîtres’ no
SENAC/SP, foi administrador do ashram-comunidade do guru india-
no Sri Aurobindo em Salvador. Trigueirinho ainda fundou comuni-
dades alternativas. Primeiro, a comunidade “Nazaré Paulista”, de-
pois “Figueira”. Concomitantemente, escreveu dezenas de livros
com profecias do fim do mundo e o resgate da terra com ajuda de
extraterrestres.

2.1.1 A FUNDAÇÃO DA COMUNIDADE “NAZARÉ”

Antes de fundar “Figueira”, Trigueirinho criou a comunidade


“Nazaré”, onde estivemos pessoalmente por duas vezes, na cidade
de Nazaré Paulista, interior de São Paulo.
Inicialmente, o centro da comunidade “Nazaré”, construído
em terreno doado a Trigueirinho em comodato, foi chamado de
Comunidade Nazaré (Anexo A) e era um local de retiro espiritual
(SILVEIRA, 2003).
Para organizar “Nazaré”, Trigueirinho utilizou como base o
mesmo modelo de organização da Fundação “Findhorn”, a qual fica
ao norte da Escócia. Ele convidou Sara Marriot, escritora america-
na, que residia em “Findhorn”, para conhecer a comunidade “Nazaré”.
Sara permaneceu mais uma temporada, somente em 1983, decidiu
fiar e morar na comunidade “Nazaré”. Assim, “Nazaré” passou a
contar com uma co-administradora que seguia também o modelo
de “Auroville”, comunidade criada por Sri Aurobindo na cidade de
Pondicherry, Índia. Organização esta que foi, também, co-adminis-
trada pela artista plástica francesa Mira Alfhassa.
A comunidade “Nazaré” é uma organização não-governamen-
tal (Ong). Conta com mão-de-obra e contribuições voluntárias
(GOHN, 2000). A Ong tem um centro de vivências onde se realizam
workshops e palestras terceirizados, parte do lucro destas
terceirizações serve para a auto-manutenção.
A comunidade “Nazaré” localiza-se numa área de proteção
ambiental(APA), porque havia problemas ambientais existentes na
região, esta era uma área de devastação permanente.Mas apesar
disso, pode-se encontrar uma variedade de animais e plantas. Há 35
poucos anos, a comunidade “Nazaré emprestou parte de suas ter-
ras para o Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ) objetivando con-
tribuir para a sustentabilidade ecológica local (PÁDUA, 2003).
“Nazaré” também é um centro ecumênico. Por lá circulam
pessoas de várias religiões, cor, raça, sexo, idade, status social ou
econômico e provenientes de várias cidades do Brasil e de várias
nacionalidades.
Na comunidade, há horta e pomar, onde são plantadas verdu-
ras, legumes e frutas sem agrotóxicos. A alimentação é vegetaria-
na e natural. Há um jardim de ervas com estufa para secagem das
mesmas que servirão para tinturas de chás medicinais. Nesta área,
há flores de diversas áreas geográficas do mundo e um jardim de
inverno. Na parte construída, há copa e cozinha industrial, uma
padaria que abastece o local, sala de vídeo, sala de artes e costura,
além de lavanderia. Também uma sala de cura para massagens,
uma sala de música e outra de estudos. Ainda há uma oficina de
ferramentas, uma despensa e um centro comunitário onde as pes-
soas se reúnem. Os quartos são individuais, alguns com banheiros
Márcia de Oliveira Estrázulas

privativos A maioria dos banheiros é coletiva. Há uma sala zen es-


pecial para meditações que são feitas em conjunto três vezes ao
dia e, finalmente, uma biblioteca esotérica com vários títulos em
inglês, pois a mesma foi organizada por Sara Marriot.
Segundo alguns integrantes antigos do grupo, houve uma
rebelião, com o apoio de Sara Marriot, contra a administração radi-
cal e centralizadora de Trigueirinho, não lhe restando outra opção
que a de se retirar. Assim, em 1987, Trigueirinho cria e funda a
comunidade”Figueira”, situada em Carmo da Cachoeira - MG, sai
definitivamente de “Nazaré”. Quem ficará à testa da administra-
ção de “Nazaré” será Sara Marriot até abril de 1999, quando esta
retorna ao seu país de origem, Estados Unidos da América. Em
dois de novembro de 2000, com noventa e cinco anos de idade,
faleceu.
Desde sua fundação, “Nazaré” recebe pessoas de várias cida-
des do Brasil e do exterior. A sua finalidade é ser uma escola de
educação informal. Hoje, a comunidade tornou-se uma Universida-
de da Luz, a Uniluz, e continua prestando serviços através de di-
36 versos workshops, cursos e vivência, a principal vivência é a de resi-
dência temporária, que possibilita experienciar, residir e estudar
no seu campus.
A Uniluz é um laboratório experimental de convivência grupal,
coletiva e cooperativa, a experiência de viver valores humanos no
cotidiano estimula o trabalho voluntário, exercitar-se a responsa-
bilidade social. A interação se dá de forma saudável, propiciando-
se uma vivência e experiência ecológica interna e externa. “Nazaré
Uniluz” é uma Ong que pratica a sustentabilidade do viver em
coletivo, em grupo. As interações se constroem e são
potencializadas nos encontros teóricos-experenciais, comprome-
tendo-se dessa forma com a sustentabilidade ecológica do planeta
(SILVEIRA, 2003).
2.2 A ESTRUTURA ORGANIZACIONAL DE “FIGUEIRA”, ASPECTOS
LOGÍSTICOS, MATERIAIS, ETC.

Estivemos pessoalmente em “Figueira” e constatamos que lá


residem aproximadamente trezentas pessoas, tendo como princi-
pal objetivo a formação e instrução espiritual.
As terras de “Figueira” localizam-se na cidade de Carmo da
Cachoeira, interior de Minas Gerais, região sudeste do Brasil. Sua
área geográfica era originalmente uma fazenda de uns cem hecta-
res. Recentemente, Trigueirinho adquiriu mais terras.
“Figueira” possui bosques, lagos, matas naturais, plantações,
casas para alojamento, estudos, cura, laboratórios artesanais e ofi-
cinas de trabalho. Não está ligada a doutrinas, seitas, religiões nem
instituições. Sua base é a vida grupal. Cultiva o serviço e a vida
espiritual. Lá encontramos pessoas de todas as idades e nacionali-
dades com diferentes vivências. As tarefas do dia-a-dia são vistas
como sagradas. Não era e não é permitido, no período em que nos
hospedamos ali, chamadas telefônicas e contatos externos consi-
derados desnecessários por parte da administração.
37
Não estimulam intimidades e vínculos emocionais. Por essa
razão, parentes e amigos, em geral, ficam hospedados em áreas
distintas. Existem pouquíssimas crianças, porque devem estar pron-
tas para cuidar de si mesmas sem a presença dos pais e sem dar
muito trabalho. São acompanhadas com atenção pelos encarrega-
dos das áreas. Eles até permitem que menores de idade hospe-
dem-se em “Figueira” e participem dos trabalhos, desde que com o
conhecimento e a autorização escrita dos responsáveis. Os resi-
dentes optaram pelo celibato. Os hóspedes ou visitantes são obri-
gados a assumir essa condição enquanto permanecem no local.
As acomodações são simples e rústicas, tanto nas casas da
cidade quanto nas da fazenda, e são designadas aos visitantes pela
secretaria geral de “Figueira” conforme as necessidades das tarefas
internas e a disponibilidade de alojamentos. Enquanto os visitan-
tes estão ocupando os quartos, proíbem-se visitantes ao recinto
íntimo.
O alimento servido é disponibilizado, de acordo com as esta-
ções do ano, é cultivado organicamente e sem agrotóxicos. As re-
Márcia de Oliveira Estrázulas

feições são vegetarianas e integrais, sem laticínios, açúcar refina-


do, sal, alho, cebola, temperos, café ou refrigerantes. Não são usa-
das bebidas alcoólicas, nem drogas, nem fumo. Os produtos da
terra não são comercializados e nenhum dos colaboradores que
compartilham de suas metas é remunerado. Come-se ao redor de
bufetes e senta-se fora da mesa em bancos ou cadeiras, em silên-
cio. Depois, cada um lava os utensílios utilizados.
Para solicitar uma temporada, participar de algum treinamen-
to ou seminário, ou em qualquer estudo, ou mesmo para uma sim-
ples visita é preciso seguir certa burocracia: avisá-los com antece-
dência prévia e aguardar resposta, pois não permitem a presença
de pessoas sem a devida autorização.
Os que se hospedam em “Figueira” devem levar roupas de
banho, roupas simples para trabalhos na lavoura, horta, pomar,
estradas, agasalhos para trabalhos noturnos ou matinais, relógio
para cumprir a agenda de tarefas, despertador para acordar cedo,
lanterna para trabalhos noturnos e para falta de luz e demais obje-
tos pessoais. O vestuário é sóbrio e discreto. Não se permitem
38 maquiagens, decotes, saias curtas, vestidos curtos, roupas trans-
parentes, shorts, calça de cintura baixa, miniblusa, saltos altos, etc.
Não se permite uso de perfumes, incensos, telefones celulares,
filmadoras ou máquinas fotográficas. Também não se podem usar
gravadores.
Todas as atividades são grupais, os estudos e as tarefas são
desenvolvidos nas áreas de trabalho. Aos semi-internos, hóspedes,
visitantes são distribuídos trabalhos compulsórios diversos, feitos
nos setores (serão explicados posteriormente). As tarefas começam
antes que o dia amanheça e seguem até 17h30min. Compõem-se
de limpeza de casa, preparo de alimentos, desidratação de legu-
mes e frutas, trabalhos na padaria, lavanderia, marcenaria e manu-
tenção, horticultura, jardinagem e plantios e colheitas em geral,
mutirões para aberturas de estradas, radioamadorismo para conta-
tos de emergência, apicultura, edição e difusão de livros, folhetos,
boletins e gravações, recepção de hóspedes, além de atendimento
a pessoas necessitadas. Às seis horas, o grupo todo em conjunto
coopera na limpeza básica dos ambientes. O café da manhã é às
7h30min. Há refeições às doze e dezoito horas. O recolhimento
para o sono tem início às 20h30min. O silêncio deve ser feito em
especial a partir das 21h30min.
Palestras com Trigueirinho realizam-se às quartas-feiras e aos
sábados, às dezessete horas; aos domingos, às 11h30min; no dia
da vigília mensal às dezessete horas; nos encontros de oração e
nas reuniões dos monastérios às seis horas e às 13h30min. Os
encontros do setor saúde realizam-se às quartas-feiras às nove ho-
ras pelos médicos e terapeutas. Os encontros de oração ocorrem
três vezes ao ano. Nestes encontros, há uma palestra com Arthur
(nome espiritual do “braço direito” de Trigueirinho), às seis horas.
As reuniões do monastério são feitas no segundo fim de semana
do mês. Às vezes, são realizados, durante o ano, treinamentos e
seminários na área da saúde, alimentação, socorro e sobrevivência
em momentos de catástrofes.
Há em “Figueira” uma vigília permanente, uma espécie de
meditação, que é feita dia e noite num bosque de eucaliptos. Os
participantes revezam-se de duas em duas horas. Também, uma
vigília mensal realizada por todo o grupo na última quarta-feira do
mês, ocasião em que se dedicam ao silêncio reflexivo. Neste dia, 39
acontece uma palestra às nove horas com Arthur e uma com
Trigueirinho às dezessete horas. Em ocasiões especiais, mantras
são entoados (Anexo B), sons sem lógica ou sentido. O único lazer
e atividade cultural é o coral (Anexo C), com execução de peças
criadas pelo próprio grupo. Criou-se um novo idioma, chamado
por eles de Irdin. É mântrico, sem significação, o que importa é o
som utilizado em repetições orais e no coral que há em “Figueira”.
Segundo Trigueirinho:

Irdin, idioma cósmico, usado nos universos confedera-


dos. Revestido de forma adequada ao estado de cons-
ciência do planeta onde se manifesta. Exprime a es-
sência criadora e arquétipos da evolução. Como vibra-
ção, está na origem e na base de todos os idiomas.
Palavras e símbolos em irdin unificam consciências,
mundos e ciclos evolutivos. Podem surgir espontane-
amente no interior do homem em decorrência da sua
sintonia com a Lei e com a supraconsciência. É uma
comunicação com a vida maior, a Vida Cósmica, e apre-
Márcia de Oliveira Estrázulas

senta-se a nós nesta época em especial à medida que


transcendemos as fronteiras da mente. Em “Figuei-
ra”, a maioria dos mantras foi concebida em irdin
(TRIGUEIRINHO, 1997, p. 220).

Também há em “Figueira” tratamentos para revitalização e


cura por meio de medicamentos sutis, homeopatia, florais, chás de
ervas e procedimentos terapêuticos como compressas, enemas
(colonterapia), desintoxicação, cuidados com a coluna, etc. Esses
tratamentos são disponibilizados aos que necessitam de cuidados
médicos leves. Há uma unidade específica, chamada “abrigo”, que
atende pessoas traumatizadas ou excluídas pelo caos social, pes-
soas que procuram equilíbrio e paz. “Figueira” não é clínica médi-
ca, mas lá há médicos voluntários que também se hospedam e
prestam serviços com sua especialidade. “Figueira” não é um cen-
tro de reabilitação, por este motivo não aloja dependentes de ál-
cool, fumo ou drogas. Eles tampouco têm estrutura para atender
casos psiquiátricos (Anexo D).
40
2.2.1 ESTRUTURA FÍSICA: SEDE, CASAS, SETORES, MONASTÉRIOS, REDES DE SERVIÇO NO
BRASIL E NO EXTERIOR

Constatamos que existe uma organização física por setores, a


qual se divide em duas áreas, uma urbana, localizada na cidade de
Carmo da Cachoeira, interior de MG; e uma rural, na fazenda.
Na área urbana situa-se, geograficamente, a casa 1, primeira
sede em 1987 e chama-se secretaria geral, pois coordena e distri-
bui tarefas; a casa 2 é uma espécie de ambulatório; a casa 3 é um
local para hóspedes; a casa 4, ou central de atendência (Anexo E),
recebe e distribui doações de remédios, gêneros e roupas e coor-
dena o abrigo, que atende pessoas necessitadas; a casa 5 é o apiário.
Na área rural, há uma fazenda de aproximadamente cem hec-
tares. No setor da “vida criativa” são feitos o plantio e colheita, há
uma lavanderia, padaria, cozinha e marcenaria, setor de manuten-
ção, silo para armazenamento de alimentos, estufa para sementes
e setor de ferramentas para horta e pomar. Há também um labirin-
to de pedra, onde as pessoas fazem caminhadas reflexivas e tera-
pêuticas.
Em “Figueira” há, atualmente, sete monastérios, alguns são
reais, físicos, localizam-se gepgraficamente em “Figueira” mesmo,
onde vivem os residentes internos; outros são virtuais, não estão
materializados, não possuem uma existência concreta, não tem
localização física, nem geográfica, pois são um modo de vida,
uma filosofia, são um estado de consciência, segundo Trigueirinho,
sem precisar de um local físico e/ou geográfico propriamente dito:
O monastério 1 é feminino, semi-recluso. Ali há a prática do
yoga (significa religare ou religação na língua hindi) da entrega,
agrega personalidades com perfil espiritual ou linhagem dos se-
res-espelhos, seres que devem espelhar na matéria o arquétipo
espiritual puro. Localiza-se na fazenda e é chamado Figueira 1 ou
F1. Também no F1 existe, com a colaboração de médicos e dentis-
tas semi-internos, um laboratório que produz remédios homeopá-
ticos e florais, um consultório dentário e um ambulatório. Ali há
um pátio, tipo um jardim de inverno, com uma área aberta e outra
reclusa, sendo esta última o local onde residem monjas, que são 41
desestimuladas a ter qualquer contato social com o grupo semi-
interno e com o próprio grupo interno.
O monastério 2 é masculino, semi-recluso, onde se pratica o
yoga da igualdade. Agrega pessoas com o perfil espiritual ou linha-
gem dos sacerdotes. Localiza-se na fazenda e é chamado de Figuei-
ra 2 ou F2. Há uma área reclusa, onde ficam os monges do sexo
masculino e uma área aberta, onde se realiza plantio e colheita de
ervas aromáticas, temperos, verduras, leguminosas e cereais.
O monastério 3 é misto, eremítico (recluso). Neste pratica-se
o yoga da totalidade. Agrega pessoas com o perfil espiritual ou
linhagem dos contemplativos. ‘Figueira 3’ ou F3 localiza-se na fa-
zenda. É designado eremitério, onde atualmente reside Trigueirinho
e mais duas pessoas, uma ex-freira católica já acostumada com a
clausura e/ou vida reclusa e Arthur. Lá ninguém possui sobrenome,
todos foram rebatizados com novos nomes. Este trio vive como
eremita e não tem contato social com o grupo interno, muito me-
nos com o grupo externo ou semi-interno. Dos três, apenas
Trigueirinho pode transitar livremente por qualquer setor ou ter
Márcia de Oliveira Estrázulas

contato social com quem bem lhe aprouver. São permitidos retiros
eremíticos em áreas de silêncio, junto à natureza. A pessoa deve
levar uma barraca e sua própria alimentação, pois ficará no eremi-
tério sem contato com ninguém.
Arthur sai, esporadicamente, para dar palestras internas. Nin-
guém do grupo de internos pode entrar no eremitério. Se quise-
rem morar lá, deverão viver uma vida isolada do grupo principal.
O monastério 4 é misto, externo, pratica-se o yoga da ação
abnegada. Agrega pessoas com o perfil espiritual ou linhagem dos
guerreiros. Localiza-se na casa 4, que fica na cidade de Carmo da
Cachoeira.
O monastério 5 é misto, externo, pratica o yoga da cura. Agre-
ga pessoas com o perfil espiritual ou linhagem dos curadores. Lo-
caliza-se em F1 na área rural da fazenda.
O monastério 6 é misto, domiciliar, pratica o yoga do coração.
Agrega pessoas com o perfil espiritual ou linhagem dos instruto-
res. Localiza-se em cidades distantes da fazenda “Figueira”.
O monastério 7 é misto, itinerante, pratica o yoga do fogo.
42 Agrega pessoas com o perfil espiritual ou linhagem dos governantes.
Localiza-se em cidades distantes da fazenda “Figueira”. (Anexo F).
A organização “Figueira” está aberta para quem se comporte
de maneira adequada, dócil, obediente, abnegada, submissa, sub-
serviente, subalterna, subordinada e, ainda, mostre-se útil. Esses
grupos podem ser denominados semi-internos ou itinerantes. Eles
se hospedam para ouvir as palestras de Trigueirinho que são cha-
madas de partilha. Compram livros e, em troca, “Figueira” fornece
comida e “alimento” para o espírito. O grupo visitante executa ta-
refas compulsórias, na maioria braçais, designadas conforme as
necessidades e sem prévio acordo com a coordenação geral. “Fi-
gueira” conta com uma equipe de supervisores que coordena os
setores e zela pelo exato cumprimento (em tempo e perfeição) des-
sas tarefas (Anexo G).
O somatório dos grupos de visitantes ou itinerantes compõe
uma “Rede de serviços” no Brasil e no exterior que tendem a mul-
tiplicar-se. Para participar de uma, é necessário dedicar-se volunta-
riamente a assuntos práticos e operacionais. Trabalhos grupais dão
origem às redes que nas horas de caos e catástrofes estarão prepa-
rados para se defrontar com situações que os levarão a uma atua-
ção prática de socorro. Precisarão contribuir para a sobrevivência
coletiva, minimizar o sofrimento alheio e, segundo eles, auxiliar
muitos seres a passarem em harmonia para outros mundos ou pla-
nos de existência.
Os membros de uma “Rede de serviços” são das mais diversas
origens. São estimulados a interiorizar-se e a buscar conhecimento
através do estudo espiritual. Cada um tem tarefas específicas a cum-
prir como, por exemplo, a sintonização de mantras, etc., mas for-
ma com os demais um conjunto. Nem sempre devem se tornar
numerosas. Não são criadas para entrar em disputas, discussões
ou polêmicas. São campos de prática para autoconhecimento e para
transformações pessoais e, portanto, coletivas (Anexo H).
No Brasil, são extensões e/ou prolongamentos de “Figueira” e
estão subordinadas à administração da comunidade. É principal-
mente com a mão-de-obra, voluntária e gratuita desses grupos
externos, semi-internos ou itinerantes que “Figueira” se mantém
produtiva, pois seguidamente são convocados para mutirões e reu-
niões em regime de internato em Carmo da Cachoeira. As necessi- 43
dades internas são supridas com o dinheiro de doações destas pes-
soas. Com o excedente, eles ajudam pessoas carentes com doações
de remédios, roupas e alimentos.
A rede de serviços de “Figueira” tem prolongamentos e/ou
grupos no Céu Azul, Rua Astolfo Bueno, 20, em Belo Horizonte,
Minas Gerais - Cep 31545-350; Granja Vianna, Rua Otelo Zeloni,
333 - Cep 06351-160 Carapicuíba, SP; São Carlos, Rua Abrahão João,
1114, Jd. Bandeirantes, São Carlos, SP (Anexo H).
“Figueira” tem contatos para informações no Brasil em Atibaia
(SP); Belo Horizonte (MG); Brasília (DF); Campinas (SP); Campo Gran-
de (MS); Curitiba (PR); Fortaleza (CE); Gov. Valadares (MG); Jundiaí
(SP); Londrina (PR); Montes Claros (MG); Porto Alegre (RS); Recife
(PE); Ribeirão Preto (SP); Rio de Janeiro (RJ); Salvador (BA); São Carlos
(SP); São Paulo (SP); Vitória (ES).
Em Porto Alegre, há cinco grupos: a) grupo de audições públi-
cas quinzenal – às segundas-feiras, às 19h30min b) grupo de sintonia
(mantras) semanal – às terças-feiras, às 18h30min; c) grupo de
sintonia (atributos do monastério) semanal, às quartas-feiras, às
Márcia de Oliveira Estrázulas

15h30min; d) grupo de estudos semanal, às quintas-feiras, às 20h;


e) grupo de audições públicas quinzenal, aos sábados, às 14h30min.
O grupo principal em Porto Alegre situa-se na Rua São Benedito,
815, loja 05 - Bairro Jardim do Salso (Anexo I).
As redes de serviço no exterior estão localizadas em várias
cidades da Argentina – Ciudad de Buenos Aires; Buenos Aires, Mar
Del Plata; Chaco-Fontana; Corrientes; Córdoba; Mendonza; Formosa;
Misiones - Posadas; Rio Negro - Viedma; Santa Fé-Santo Tomé.
Há rede de serviços na Austrália – cidade de Sidney; Canadá –
cidade de Victória; as redes de serviço do Chile estão centralizadas
em Santiago; Equador –cidade de Quito; Espanha – cidade de Bar-
celona e Cáceres; Estados Unidos – cidade de Tahlequah e
Trumansburg; Inglaterra – cidade de Berks; Paraguai – cidade de
Assunção; Portugal – cidade de Colares, cidade de Oeiras, cidade
do Porto; Suécia – cidade de Estocolmo; Uruguai – cidade de Mon-
tevidéu; Venezuela – cidade de Caracas.

2.2.2 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA, HIERARQUIA, CATEGORIA DE MEMBROS, ATIVIDADES,


44 ETC.

Percebemos, nas vezes em que visitamos “Figueira”, que


Trigueirinho, devido sua personalidade forte e carisma que lhe
outorga poder (WEBER, 1979), alcançou ascendência sobre seu
grupo, portanto, está no topo da pirâmide hierárquica. Teve uma
vida mais variada que os integrantes de seu grupo, adquiriu maior
soma de conhecimentos, mais poder intelectual, mais oratória. Era
cineasta, viajou pelo mundo. A posse de mais conhecimentos le-
vou-o a se tornar líder, levou-o a um lugar superior ao comum das
pessoas do seu grupo, reunindo em torno de si simpatizantes e
organizando comunidades há vinte anos(desde 1987), como o caso
de “Figueira”. Já “Nazaré” tem vinte e cinco anos(desde 1982).
A grande profecia de Trigueirinho, hoje considerado um pro-
feta com vários livros escritos, fala sobre a operação resgate da
raça humana, que salvará o seu grupo do fim do mundo. Para que
essas pessoas sejam resgatáveis precisam passar por uma mudan-
ça de comportamento e sujeitarem-se a um ritual de passagem
(TURNER, 1974), a uma disciplina, a um treinamento, a um ades-
tramento, a um condicionamento, a uma subordinação, a uma re-
educação, a uma desconstrução, a uma desprogramação, a uma
despersonalização, a uma purificação, a uma mortificação, a uma
domesticação, a uma homogeneização, a um despojamento, a um
nivelamento, a uma modelagem, a uma uniformidade, a uma igual-
dade, até chegar à santidade, à perfeição moral do ser humano. O
resgate e mudança de padrão de personalidade têm como finalida-
de torná-los humildes, modestos, dóceis (FOUCAULT, 1979), úteis,
maleáveis, obedientes, submissos, subservientes, flexíveis, sem li-
berdade de escolha, sem livre-arbítrio, para que aceitem, acatem
ordens e funções alheias à sua natureza vocacional e atendam aos
objetivos do coletivo e não da sua individualidade.
As relações de Trigueirinho com o grupo que dirige estão es-
treitamente ligadas às suas qualidades carismáticas e proféticas
(QUEIROZ, 1977). Desse modo, consegue que os internos e exter-
nos de “Figueira” cumpram suas normas, regras quotidianas, e tra-
balhem em atividades gratuitas e voluntárias com o fim coletivo
de transformação dos que transitam por ali em seres humanos res-
gatáveis. São os colaboradores semi-internos, externos, itinerantes, 45
autoconvocados ou visitantes que fazem parte das redes de servi-
ço.
Os grupos externos, visitantes, itinerantes são supervisiona-
dos, vigiados (FOUCAULT, 1984), controlados por um grupo de
supervisores, por coordenadores de setores e por colaboradores
internos com o intuito de sujeitá-los, submetê-los, condicioná-los,
dominá-los para que sejam obedientes, dóceis e úteis às ativida-
des e tarefas necessárias à manutenção de “Figueira”. Obviamente,
há um permanente conflito (VELHO, 1989) entre os desejos, hábi-
tos, necessidades, características e comportamentos resultantes da
interação entre colaboradores internos e externos. O interesse do
grupo está acima das individualidades. O indivíduo encontra-se
subordinado a determinações coletivas, senão haverá sanções pri-
vando sua independência, seu livre-arbítrio.
Os supervisores ou colaboradores são os indivíduos mais che-
gados a Trigueirinho. Ajudam ativamente e, em geral, também são
dotados de certas virtudes carismáticas. Também ministram pales-
tras e servem de intermediários entre Trigueirinho e o restante do
Márcia de Oliveira Estrázulas

grupo, portanto dispõem de certo poder: são reconhecidamente


discípulos de Trigueirinho Dr. José Maria Clemente (médico) e Arthur.
Trigueirinho e os coordenadores procuram organizar os colabora-
dores internos e externos, constituindo-os em uma sociedade com
direitos e obrigações estabelecidos de acordo com as instruções
dadas por Trigueirinho, que modela, de certa forma, a comunidade
que o cerca.
A quantidade de funções impõe divisão de trabalho e, conse-
qüentemente, o aparecimento de uma série de colaboradores in-
ternos e externos. Como não pode assumir sozinho as múltiplas
tarefas do setor espiritual e temporal, Trigueirinho divide-as com
os coordenadores. Assim, há um tipo único de estrutura social,
com três camadas superpostas, com Trigueirinho no ápice, os ex-
ternos ou semi-internos ou redes de serviço na base. Intermediário
a ambos, está um grupo de coordenadores internos mais chega-
dos, escolhidos por Trigueirinho, pessoas de confiança. A divisão
do trabalho é condição indispensável para que a comunidade se
discipline e possa partir para o resgate do mundo, através da “Ope-
46 ração resgate”.
Os coordenadores dos setores de “Figueira”, por sua vez, es-
tão constantemente sendo mudados por Trigueirinho. Há uma
rotatividade, um rodízio de funções (GOFFMAN, 1999) com o intui-
to de evitar apego às tarefas, cultivar o desapego entre os colabo-
radores e não permitir a possível formação de clãs, como os que
surgiram na Comunidade Nazaré, resultando na exclusão de
Trigueirinho. A centralização (CROZIER,1981) das decisões de
Trigueirinho acarretam a falta de comunicação interna. Há uma
barreira entre Trigueirinho e o grupo menos próximo de forma a
não se desenvolver clãs que venham a se insurgir contra a lideran-
ça dele. Suas ordens não podem ser, portanto, criticadas e/ou con-
trariadas. Os colaboradores são condicionados a não se comunica-
rem. Uma das maiores regras em “Figueira” é o silêncio. Também
há um isolamento que priva os colaboradores de iniciativa e
criatividade, porque estão submetidos às regras impostas que re-
gulam a função, o comportamento, as operações e a forma de
realizá-la, seu modo operativo único ao qual devem conformar-se.
A ordem do seu desenvolvimento já está especificada. Tudo está
previsto com bastante exatidão, portanto não há espaço para a
iniciativa pessoal ou para o livre-arbítrio. Para Trigueirinho, o livre-
arbítrio gera um estado caótico, egoísta. Os colaboradores, para
serem salvos e resgatados, devem ceder e entregar seu livre-arbí-
trio à sua autoridade (HOBBES, 1974).
Trigueirinho torna os limites de “Figueira” muito precisos em
função de experiências negativas passadas que o excluíram da co-
munidade “Nazaré”. Por isso, os indecisos não podem ser aceitos.
Todos os membros devem manifestar zelo no desempenho dos
deveres. Se um membro recusa obediência, a salvação do grupo
todo é posta em perigo, em jogo. Assim, uma das grandes preocu-
pações de Trigueirinho é dar ênfase aos limites do grupo, preser-
vando os integrantes do contato nocivo com as pessoas com ideais
contrários. Isto, em parte, determina a segregação do grupo em
relação à sociedade global.
“Figueira”, sob a égide de um novo código cultural, subverte
a ordem social estabelecida, fazendo normas que contrariam a so-
ciedade estruturada. Com isso, o grupo interno, que possui idéias
que conflitam com os valores da sociedade maior, gera tensão e 47
discordância permanentes com o grupo de externos quando
interagem (JOAS,1999;MERTON,1968).

2.2.3 FORMA DE SUBSISTÊNCIA, TRABALHO VOLUNTÁRIO E GRATUITO

Percebemos, nas vezes em que visitamos “Figueira”, que os


internos não conhecem o valor do dinheiro, não lidam com ele,
nem conhecem a moeda nacional atual. Só alguns poucos adminis-
tram contas bancárias. São os que trabalham na secretaria, que fica
na Casa 1, na área urbana. Eles precisam, eventualmente, sair para
realizar compras para os que permanecem na fazenda, os quais
não podem sair nunca, nem em feriados, nem de férias, etc.
Embora os internos desconheçam valores monetários, a orga-
nização, por sua vez, dispõe de meios para a obtenção de recursos
para a consecução de suas metas. Uma das formas de arrecadá-los
é através de mão-de-obra voluntária e gratuita, além de contribui-
ções voluntárias. Outra forma são os cultivos agrícolas para subsis-
Márcia de Oliveira Estrázulas

tência própria. A produção excedente é trocada na cidade de Carmo


da Cachoeira por gêneros alimentícios que estejam faltando.
Para se manter economicamente “Figueira” tem, também,
como um de seus meios de vida, a venda de livros. Possui uma
editora própria – Irdin Editora Ltda. (Anexo J) - São Paulo - CGC
01303476/0001-64, sem fins lucrativos. Atualmente, estão em cir-
culação, dois milhões – segundo Trigueirinho – de exemplares no
Brasil, em Português, pelas editoras Pensamento, Nova Cultural,
Círculo do Livro e Irdin; e em espanhol, na Argentina, pela Editora
Kier. Parte dessa obra começa a ser lançada em inglês pela Irdin
Editora, e em francês pela Éditions Vesica Piscis. A Irdin também
comercializa 572 gravações feitas ao vivo de palestras de
Trigueirinho. Em todos os setores, há expositores e preços à mos-
tra, induzindo à compra por impulso de livros. Abaixo, está trans-
crito um pedido de colaboração para o setor de difusão de livros e
fitas (Anexo K):
O setor de Difusão de Livros e Fitas de “Figueira” tem
48 como meta (...) a venda de livros e fitas (...) Nossa
proposta para o corrente ano de 2001 é a seguinte:
levantar recursos para vendas por preços simbólicos
de 14.500 livros de Trigueirinho, cujo total é R$
64.000,00; 1.350 livros do Dr. José Maria Campos (Cle-
mente), cujo custo total é de R$15.000,00. Formas de
participar: comprar livros e doá-los por iniciativa indi-
vidual (...) Qualquer quantia é bem-vinda.

Também são vendidos em “Figueira” fitas de vídeo (VHS), cds,


fitas k-7 com gravações ao vivo das palestras de Trigueirinho para
divulgação da obra dele. Além disso, têm sido organizadas audi-
ções dessas fitas em outras cidades, complementando essa divul-
gação. Também há, às dezessete horas, aos domingos, uma parti-
lha de Trigueirinho numa rádio da internet, chamada Rádio Mun-
dial FM 95. 7 AM 660. Pode-se escutá-la no site
www.radiomundial.com.br (Anexo L).
Outra forma de “Figueira” manter-se produtiva dá-se pela pre-
sença dos meeiros (Anexo N). Os residentes internos e os grupos
de itinerantes não conhecem profundamente as técnicas de agri-
cultura. Os meeiros conhecem e fazem um trabalho cooperativo.
Os participantes dessas frentes de trabalho, em geral camponeses,
reúnem-se com os responsáveis pelo setor de plantios para o pla-
nejamento do ano agrícola. A partir daí, cada um assume a sua
parte. A maioria encontra nessa cooperação uma forma de comple-
mentar seus meios de subsistência, enquanto outros se colocam
como voluntários pela simples oportunidade de ajudar o próximo.
Usam técnicas naturais de cultivo e abastecem-se de alimentos sa-
dios, sem circulação de dinheiro. Devidamente processadas, frutas
da região são conservadas para consumo durante o ano todo. Par-
te do grupo de “Figueira” dedica-se ao trato das árvores frutíferas,
ao passo que as famílias dos meeiros elaboram os produtos e os
embalam para armazenagem. Grãos como arroz, milho e feijão são
semeados após o devido preparo da terra feito por tratores, en-
quanto mutirões formados por meeiros e membros do grupo de
residentes e visitantes encarregam-se das capinas e colheitas. Abó-
bora, amendoim, batata, inhame, mandioca e milho foram incluí-
dos nesses plantios a pedido dos próprios meeiros. Recentemente,
outras atividades são oferecidas a eles nos mesmos moldes, tais
como a produção de leite de soja e a confecção e conserto de rou- 49
pas. O setor de plantios e sementes, com a ajuda dos colaborado-
res, residentes ou visitantes que se apresentam, cuida do cultivo
de alimentos não apenas para hóspedes e moradores, mas tam-
bém para famílias carentes da região. O volume de tarefas realiza-
das por esse setor é considerável, e nelas procura-se preservar as
sementes originais, respeitar a vida do solo e da natureza em ge-
ral. Em 2002, foram produzidas 77 toneladas de grãos, além de
hortaliças e frutas de modo natural e sem agrotóxicos.
Ainda, para manter sua fazenda produtiva, “Figueira” conta
com a mão-de-obra voluntária de grupos urbanos de serviço. São
grupos rotativos provenientes de cidades próximas chamados tam-
bém de redes de serviço. Eles fazem mutirões para tarefas varia-
das, como construções e aberturas de estradas e produção orgâni-
ca.
Não há pagamento de taxas para nenhuma atividade nem para
hospedagem. Isso pode ocorre devido ao trabalho voluntário e
gratuito de todos os grupos que também fazem doações espontâ-
neas em dinheiro, roupas, gêneros alimentícios, remédios ou equi-
Márcia de Oliveira Estrázulas

pamentos, etc. Com relação às doações, apresentamos transcrição


de carta-aberta (Anexo N) dirigida aos colaboradores, solicitando
contribuições e/ou doações:
Aos colaboradores de “Figueira” (...) faz-se notar que
algumas providências devem ser tomadas para que a
água não venha a faltar em “Figueira” (...) A ampliação
do sistema de abastecimento de água pressupõe, en-
tre outros itens: a construção de um novo reservató-
rio com capacidade de 500 mil litros, para suprir F1
(Figueira 1 – monastério feminino) e F3 (Figueira 3 –
eremitério), no valor aproximado de R$ 80.000,00
(2001). A instalação de quatro rodas de água, com suas
respectivas barragens, para completar o bombeamento
sem uso de eletricidade. Bombas e 4.500 m de tubula-
ções e conexões, tanto para interligar a rede de abas-
tecimento das áreas recém-incorporadas com a já exis-
tente, quanto para redimensionar a rede atual. A
concretização desse importante projeto custará apro-
ximadamente R$ 250.000,00 (2001). Estamos, pois,
levando ao conhecimento de todo o grupo essas ne-
50 cessidades prementes. Qualquer colaboração é preci-
osa e pode expressar-se de várias formas: apoio inter-
no, participação na execução das tarefas do setor água,
apresentação de idéias e soluções técnicas ou ajuda
financeira. Para remessa de dinheiro, pode-se usar a
conta 01139-3, Banco Itaú, Agência 3204, de Carmo da
Cachoeira/MG, em nome de Berkman Mendonça San-
tos e/ou Vera Lúcia Pereira.

2.3 CULTURA ESPIRITUAL DE “FIGUEIRA”

Soubemos, a partir de entrevistas informais com Trigueirinho,


que o desenvolvimento dos monastérios (Anexo O) deveria passar
por três etapas distintas:

- A fase inicial, fundação para a energia espiritual se materiali-


zar em nível físico;
- A fase intermediária, expansão da energia espiritual já
estabelecida. Essa é a etapa vivida no momento, a de capta-
ção de novos colaboradores;
- A fase de realização, elevação da energia espiritual, que
translada a atividade espiritual para os planos interiores da
vida.

Estão previstos sete monges, sete oblatos e sete zeladores


para cada monastério. Na etapa inicial, foi criado o grupo de oblatos
(Anexo F), que prossegue colaborando na construção e no desen-
volvimento dos monastérios em todos os seus níveis. Os oblatos
praticam a vida espiritual em meio aos afazeres do mundo e na
vida cotidiana. Oblatos são leigos que se oferecem para servir em
ordem monástica, abnegadamente, sem se ater a estruturas rígi-
das, nem a formalizações supérfluas. Um oblato deve ter como
função colaborar diretamente na construção e no desenvolvimen-
to de um monastério. Oblato não é só um posto, título ou posição
dentro da divisão de trabalho grupal, é uma tarefa. Auto-afirma-
ção, orgulho, idiossincrasias e vaidade não devem interferir na sua
tarefa, cujas bases são o altruísmo, despojamento, o desapego e a
prontidão ao serviço impessoal para atender aos objetivos espiri-
tuais do grupo. Anonimato e silêncio são as características 51
requeridas à personalidade do oblato. Também o recato, a simpli-
cidade no falar e no agir e a alegria são qualidades que nele devem
ser incentivadas.
Na atual etapa intermediária, foi criado o grupo de zeladores
(Anexo P). Cada monastério contará com sete zeladores. Um zela-
dor pode servir a vários monastérios ao mesmo tempo. Ele é um
defensor do plano espiritual. De maneira especial, segue a via do
despojamento e dedica-se a suprir tudo e todos incondicionalmen-
te. O zelador deve inspirar-se nos que se devotam incondicional-
mente à vida de serviço. Na sua tarefa, descobre a diferença entre o
vazio humano e a palavra viva que provém da alma. Proferir a pa-
lavra é para ele um objetivo maior, o qual vai desenvolvendo ao
praticar a ação correta.
“Figueira” acolhe seres com vocação sacerdotal. A atividade
sacerdotal (Anexo Q), para eles, é interior e desvinculada de orga-
nizações cristalizadas e formalizadas. Por isso, quase sempre tra-
balham livre de instituições e raramente sua obra é percebida pe-
los sentidos externos dos demais. Ela é silenciosa e discreta. A
Márcia de Oliveira Estrázulas

ordenação sacerdotal não é um fato externo. Não se usa um hábi-


to, refere-se à vida do espírito. O sacerdócio não pode ser ensinado
em seminários espirituais da civilização profana e secular, tampouco
pode ser outorgado pelos homens.
Os denominados seres-espelhos (Anexo R) que ali se encon-
tram devem captar e refletir as energias e leis espirituais. O ser-
espelho capta os arquivos do akasha, o inconsciente coletivo, ima-
ginário ou arquétipos. Todo ser-espelho chega à revelação da exis-
tência desse arquivo. No akasha estão registradas as informações
sobre o universo. Teresa d’Ávila ou Santa Teresa de Jesus, carmelita
natural da cidade de Ávila na Espanha, fundadora dos carmelitas
descalças, é considerada, por Trigueirinho e pelo seu grupo, um
ser-espelho e nela muitos têm, em “Figueira”, se espelhado, se
inspirado, como modelo de um ser espiritual perfeito, um cami-
nho de perfeição como dizia ela em suas obras.
Há, atualmente, poucos residentes no local. Não há um nú-
mero maior porque, segundo Trigueirinho, no atual momento da
civilização poucas pessoas conseguem libertarem-se, liberarem-se
52 do compromisso com a sociedade. A estrutura, a engrenagem da
presente civilização continua exercendo grande influência sobre as
pessoas. Alguns têm, portanto, que se despojarem de encargos e
desvincularem-se de tendências retrógradas e antiquadas, segun-
do Trigueirinho, para ajudar no que é exigido ao residente de “Fi-
gueira”. Esta postura emergirá da renúncia a ambições e satisfa-
ções próprias em função da coletividade. O residente (Anexo S)
deve viver suas provas de renúncia, humildade, humilhação, abne-
gação em silêncio, sem tagarelice, sem choro, sem emoções, sem
dor. Ao cultivar o silêncio, perceberá que tanto as experiências po-
sitivas como as negativas são fontes de aprendizado e evolução. O
residente deve viver com simplicidade e em simplicidade. Também
deve ordenar e organizar-se no dia-a-dia de tal forma que não te-
nha dispersões de energia. Para o residente, as atividades diárias e
as provas que advêm do seu cumprimento são oportunidades de
transformação, por isso deve imprimir uma energia ou qualidade
de desapego e renúncia em tudo o que faz, realizando as tarefas
que lhe cabem com dedicação, abnegação e livre de preocupação
com os resultados. O residente deve ser um apoio. Trabalhando
em grupo, realiza o necessário à vida espiritual e presta serviços
em conjunto com muitos colaboradores. No grupo de “Figueira”,
amplo e diversificado, o residente representa um catalisador, uma
força conjunta voltada para o serviço ao mundo. Um residente deve
renunciar às delícias, ao conforto, aos prazeres da vida. Não deve
se envolver com as coisas materiais. Não deve se apegar ao sono.
Deve ser grato pelo alimento que recebe e pelo qual trabalha, por
pior que seja, e deixar de lado a murmuração, a queixa, a lamúria.
Deve empregar bem o seu tempo e prescindir de consolo.
Vários trabalhos grupais servem a todos os reinos (Anexo T),
seja animal, vegetal, mineral, humano, angelical, etc. Trabalhos de
plantios, cuidados com animais, atendimentos às pessoas necessi-
tadas, cura, publicações, entre muitos outros, realizam-se dessa
maneira altruística e abnegada. Essas atividades, em geral, são fei-
tas em rodízio, segundo as necessidades do momento. Colabora-
dores (Anexo U) que moram em diversos lugares vêm participar
delas. Médicos, dentistas e outros profissionais prestam assistên-
cia ao grupo de modo gratuito. Todos compartilham o mesmo rit-
mo diário de trabalho e estudos. 53
O “Abrigo” (Anexo V) está a cargo da coordenação da casa 4,
ou central de atendência. Presta serviço aos que foram excluídos
ou querem se excluir da sociedade comum. A energia do local pos-
sibilita prestar serviço altruístico, livre dos apegos que limitam o
trabalho em grupo. No “Abrigo”, deve-se trabalhar com dinamis-
mo, mas sem estresse e sem interferir no caminho dos outros. Tam-
bém não se deve buscar reconhecimento para não reforçar o egoís-
mo, porque esta atitude torna-se um obstáculo à vida grupal. A
colaboração é necessária, pois a tarefa deverá cumprir-se conforme
planejada pelo grupo. A função do “Abrigo” é ajudar todos a se
libertarem, desvencilharem-se, desapegarem-se da sociedade. Mui-
tos dos que se aproximam estão para se libertarem e necessitam
de coragem, ajuda e reforço. Os que servem devem estar prontos
para apoiar os que passam por tragédias coletivas, porque a conta-
minação do planeta se agrava, segundo Trigueirinho, e o efeito
das atuais explosões nucleares pode tirar o planeta de sua órbita
gravitacional não fosse a intervenção das tempestades e dos fortes
ventos. As forças da natureza se ativarão para facilitar o trabalho
Márcia de Oliveira Estrázulas

de transformação da Terra. Alto é o nível de radiação nuclear que a


envolve, e as cidades já estão se tornando inabitáveis.
Os que aspiram à vida em “Figueira” são chamados de aspi-
rantes (Anexo W). Eles devem ter disposição para seguir, sem reser-
vas, com abnegação e desapego, de forma altruística e impessoal,
o caminho do serviço. O aspirante deve deixar de lado o orgulho e
o preconceito para servir a humanidade. Deve aprender que a su-
jeição a uma organização, a uma ordem, às regras, às normas, a
determinadas condutas é necessária a um trabalho evolutivo e que,
imposta num ambiente, serve de exemplo aos demais. Perceber
que sem elas, o trabalho espiritual não pode sobreviver aos fre-
qüentes ataques de forças contrárias, destrutivas. O aspirante deve
reconhecer que o condicionamento a uma disciplina hierárquica
(Anexo X) é imprescindível para a transcendência do egoísmo e das
preferências de natureza mental e emocional individuais em detri-
mento das coletivas e grupais. Quando o egoísmo é transcendido
e as preferências individuais superadas, surge a disciplina grupal e
coletiva. As regras externas tornam-se então menos conflitantes.
54 Enquanto o egoísmo existir, o aspirante sabe que o abandono da
obediência em muito prejudicaria o seu serviço e colaboração. Or-
dem, disciplina e obediência devem fazer parte da vida do aspiran-
te, revelando uma maneira flexível, meiga e cordata de viver. Ele
deve tratar a natureza, as casas, os objetos e seres vivos com cui-
dado, mas sem objetivo de posse ou propriedade. Mesmo não sen-
do dono, não deve desperdiçar. Deve saber que cada coisa tem seu
lugar e valor e usá-las com bom senso. A desordem e a má utiliza-
ção são incorreções, imperfeições inaceitáveis.
A vigília (Anexo Y) é um ritual para promover a atitude de
meditação, reflexão ou contemplação. Períodos de vigília criam
intensa concentração de força que alinha o propósito da consciên-
cia ou personalidade com o da alma. Calma, paz, harmonia e rela-
xamento se estabelecem no ser em vigília, porque a ansiedade por
resultados desaparece, as dúvidas da mente dissolvem-se. Os resi-
dentes e colaboradores revezam-se voluntariamente de duas em
duas horas durante as 24 horas do dia para realizá-la. Na última
quarta-feira do mês, o grupo todo, durante o dia inteiro, dedica-se
à vigília, ao silêncio interno e externo. Nesse dia, há duas partilhas
reflexivas a cargo de Trigueirinho.
Em “Figueira”, há por parte de alguns poucos, Trigueirinho,
Arthur e Clemente, a tarefa de instrução (Anexo Z), que vem a ser
uma educação adequada às necessidades. Deve levar em conside-
ração a globalidade do ser e o universo em que ele se encontra
(Trigueirinho é considerado um instrutor). O instrutor deve saber
que o seu trabalho é ajudar os demais a realizarem seus potenci-
ais, suas vocações, suas capacidades latentes, seus propósitos exis-
tenciais, seus destinos. A cada instrutor corresponde um grupo que,
para evoluir, usufrui da energia que é canalizada por seu intermé-
dio. A instrução não é uma atividade acadêmica, restrita e limita-
da, mas diz respeito a todos os que querem evoluir transcendendo
os paradigmas impostos pela sociedade. Enquanto a educação diz
respeito aos níveis da personalidade, a instrução diz respeito à
alma e ao espírito. Instrução não é somente doutrinação, mas deve
estimular que cada um encontre o conhecimento dentro de si mes-
mo.

2.4 CONCLUSÃO
55

“Figueira” rompeu com os princípios fundamentais da socie-


dade, abolindo a propriedade, o casamento e a família. Tornou-se
um espaço comunitário singular, indiferente ao Estado. É uma co-
munidade composta de indivíduos semelhantes que formam uma
subcultura. A comunidade evoluiu para um estado monástico com
o tempo e o aumento do número de residentes.
Em “Figueira” se confunde submissão com santidade, humi-
lhação com humildade, pois deve se sujeitar à autoridade de
Trigueirinho e demais coordenadores. O aspirante que deseja viver
em “Figueira”, portanto pelas suas regras, deve devotar-se intei-
ramente ao serviço pela autodisciplina, oração e trabalho. Devem
viver uma vida em comunhão, desapegar-se da família, condicionar-
se à pobreza, desapegar-se do dinheiro e da propriedade privada,
abster-se do sexo, conseqüentemente do casamento, e de alimen-
tos de origem animal. Obedecer aos superiores, restringir a con-
versa e observar o silêncio. A liberdade, o livre-arbítrio e a privaci-
dade são suprimidos em favor da coletividade.
Márcia de Oliveira Estrázulas

56
3 ERVING GOFFMAN - O INTERACIONISMO SIMBÓLICO
COMO MARCO PARA A ANÁLISE DOS RITOS DA INSTITUIÇÃO
E DOS RITOS DA INTERAÇÃO

O presente capítulo tem o objetivo de contextualizar, com-


preender e explicar a organização “Figueira”. Para tanto, utiliza-
mos, como referencial teórico e metodológico, o interacionismo
simbólico, porque neste viés situam-se as pesquisas de Erving
Goffman, autor eleito em função do seu foco nas interações entre
atores sociais.
Num segundo momento, há a biografia de Erving Goffman e
a sua criação de temas e conceitos teóricos próprios.
Em terceiro lugar, traçamos os conceitos, os princípios e
paradigmas do interacionismo simbólico, dando especial relevân-
cia aos conceitos teóricos da interação social escritos no livro “A
Representação do Eu na Vida Cotidiana”.
Em quarto lugar, buscamos na obra de Goffman “Prisões, Ma- 57
nicômios e Conventos”, trazer as categorias de análises que po-
dem definir as instituições totais: um mesmo local de moradia e
trabalho; fechamento em relação à sociedade; regras, normas; co-
ação, controle, vigilância; liberdade, livre-arbítrio; despojamento,
nivelamento; papel subalterno humilhante; incompatibilidade com
a vida familiar; desconstrução do eu (self); desculturação; purifica-
ção; acomodação, sujeição.
Por último, buscamos delinear, superficialmente, o perfil da-
queles que se identificam com comunidades desviantes, estigmati-
zados, divergentes, outsiders, liminares, retraídos, marginais, des-
locados, rebeldes, perdidos, desenraizados, minorias, artistas, etc.

3.1 ERVING GOFFMAN - UMA VIDA MESCLADA COM SUA VISÃO


TEÓRICA

O histórico da construção da personalidade de um autor é


fundamental para a compreensão da sua obra. Assim, alguns da-
dos biográficos ajudam a entender a formação intelectual de Erving
Márcia de Oliveira Estrázulas

Goffman: “(...) a reconstituição das ‘forças formadoras de hábitos’


de um autor é essencial para compreensão da sua obra” (WINKIN,
1999, p.7).
“A obra de Goffman é uma autobiografia” (WINKIN, 1999, p.
13), pois ele reproduz nos seus escritos o seu status social. Uma
pesquisa científica nunca é totalmente dissociada da formação de
classe que lhe preexiste, de tal maneira que uma obra científica
encerra sempre a marca da trajetória social do seu autor:
(...) pode-se considerar conjuntamente os recursos
retóricos característicos da obra de Goffman e os es-
quemas predominantes na sua recepção por um públi-
co científico. Essa consideração conjunta permitiria
ver mais de perto, no detalhe, o jogo das figuras do
autor que fazem sua aparição no lance de leitura. Tal-
vez essa atenção ao detalhe possa contribuir para com-
preendermos melhor as suposições que fazemos, na
nossa sociedade, sobre esse deus oculto, o autor, já
tantas vezes banido, mas que retorna sempre, com a
força redobrada dos mitos (MALUFE, 1992, p. 134).
58
A biografia de Goffman sugere um estudo de caso que
elucidaria a história da sociologia americana nos anos que sucede-
ram a Segunda Guerra Mundial. Inicialmente, é a história de um
outsider (Becker, 1977) geográfica e socialmente, de um intelectual
que na sua geração subiu ao topo da sua área, tanto institucional
(faculdades de renome, foi presidente da “American Sociological
Association”), quanto cientificamente. Esteve no rol, por anos, dos
dez autores mais citados do Social Science Citation Index: “A obra de
Goffman será, tal como a de Freud, a história autobiográfica de
uma ascensão social” (WINKINN, 1999, p.16).
Erving Goffman nasceu dia 11 de junho de 1922, em Mannville,
Alberta. Passou sua infância e os primeiros anos de adolescência
em Dauphin, ao norte de Winnipeg. Seus pais, Max e Ann, nasce-
ram na Rússia, Ucrânia. Dauphin é uma das primeiras colônias
ucranianas de Manitoba, constitui-se, na sua maior parte, de uma
comunidade de mercadores judeus que são, ao mesmo tempo, aco-
lhidos e discriminados. Goffman cresceu nesse ambiente de oposi-
ção camuflada.
A família de Goffman mantém relação com a comunidade ju-
daica da metrópole de Winnipeg. A irmã de Goffman, de nome
Frânces, destaca-se, em Winnipeg, na carreira teatral. Goffman reú-
ne-se a ela em 1936, com quatorze anos, quando é admitido na
“Saint John’s Technical High School”, uma escola progressista que
acolhia em seu estabelecimento os filhos de imigrantes judeus.
Goffman, na “Saint John’s”, é um brilhante e mau aluno,
concomitantemente. Em 1939 ele foi admitido na Universidade de
Manitoba, em Winnipeg. Como matéria principal, elege a química.
A sociologia ainda não existia na Universidade de Manitoba na-
quela época.
O que nos pareceu mais relevante na sua biografia foi sua
experiência de cinema, em 1943, na “National Film Board” (NFB),
produtora de documentários em Otawa, coordenada por John
Grierson. Nessa ocasião, ele aprendeu as técnicas dos especialistas
na arte de representar. Nesta fase, formam-se os primeiros hábitos,
a base intelectual do Goffman, observador de planos, sua compre-
ensão cinematográfica da realidade. Desvenda a arte de iludir, per-
cebe que a vida social não é tanto um teatro, mas uma cena 59
dramatúrgica, um filme em montagem. Assim ele decodificará a
vida cotidiana em cenas, em grandes planos de um detalhe, em
jogos de campo/cantracampo entre observador e observado, como
se estivesse realizando filmes documentais. Aliás, ele produziu,
através da escrita, documentários na sua vida restante.
Goffman tem uma forma de observar muito visual, baseada
no detalhe que revela o conjunto ou o todo. Faz-se necessário ter
um senso de observação, ter um “olho clínico” para praticar a soci-
ologia etnográfica, e a vivência no “National Film Board” lhe
oportunizou esse treinamento e conhecimento. Goffman baseia
todas as suas pesquisas, ensaios, estudos, inspirado pelo cinema.
Suas obras são, fundamentalmente, visuais.
Encontramos na obra, o Goffman do “National Film Board”,
aquele que adora ir ao cinema, o cinéfilo, que ilustra as suas pales-
tras com diapositivos que colecionou na sua vida cotidiana, quan-
tidades de fotografias, retiradas de revistas. Goffman revelou-se
cinéfilo, num longo artigo de 1975, o qual se tornou um livro em
1979: Gender Advertisements. O livro foi fundamentado num con-
Márcia de Oliveira Estrázulas

junto de fotografias de publicidade que mostram as posições nas


quais as mulheres são, sistematicamente, expostas ao consumidor.
A aprendizagem racional da profissão de sociólogo é uma se-
gunda vertente intelectual de Goffman, que se tornou amigo de
um jovem produtor do “National Film Board”, no decorrer do verão
de 44, Dennis Wrong. Este termina, na Universidade de Toronto, a
licenciatura em Sociologia. Ele convida Goffman para visitá-lo.
Goffman aceita o convite. Foi exatamente na época de início das
aulas. Aproveitou a ocasião e conseguiu uma autorização para fre-
qüentar disciplinas isoladas, com as quais, talvez, poderia obter
um diploma de sociologia.
Marcaram a sua vocação de sociólogo dois professores e uma
jovem estudante. O slogan de Charles William Norton Hart, “tudo é
socialmente determinável”, não mais o abandonará. Ele era coor-
denador dos cursos de sociologia da universidade, antropólogo
formado por Radcliff-Brown em Sidney, viveu entre 1928 e 1930,
numa tribo aborígene, os Tiwis, que habitavam a ilha Bathurst, norte
da Austrália. Ele era meio exótico e excêntrico, tinha uma unha
60 comprida no dedo mindinho direito, como sinal da sua iniciação
na comunidade tribal. Goffman o admirou. Não só a sua unha, mas
todo o seu estilo pedagógico fascinou o jovem Goffman.
Aprofundou-se, de 1944-1945, na leitura do “Suicido” de Durkheim,
que não estava ainda traduzido. É assim que Goffman se iniciou na
sociologia.
Ray Birdwhistell, o segundo professor, o inicia na antropolo-
gia. É um jovem antropólogo de vinte e seis anos que, após termi-
nar sua tese, deu o curso “Relação entre Cultura e Personalidade”,
na Universidade de Chicago. Ele incentivou os alunos a lerem mui-
tos livros. A singularidade da sua pedagogia estava na maneira
como ele lhes fazia compreender que a instância entre a cultura e a
personalidade é o corpo. A cultura é algo que se incorpora ao cor-
po nos trejeitos, no seu modo de portar e comportar.
Dessa forma, os alunos viam-no e ouviam-no andar, caminha-
va como um ator, imitava o modo de falar do sul, do norte, imitava
um cawboy do oeste. Ele fazia um show à parte da sua aula – com
o único intuito de ensinar e fazer com que os alunos compreendes-
sem que o social se infiltra, se imiscui nas mínimas atitudes, nas
ações corriqueiras, cotidianas. Por isso, até os gestos são suscetí-
veis de análise sociológica similar à das instituições.
A observação de índices corporais permitem classificar os seus
portadores segundo a tipologia warneriana, é isto o que ensinava
Birdwhistell aos estudantes, levando-os a um pub perto do campo
universitário e pedindo-lhes que determinassem a classe social dos
clientes através do modo como andavam e através da sua maneira
de beber e fumar. Goffman apaixonou-se por esta pedagogia didá-
tica.
Concomitantemente, a esta aculturação intelectual, Goffman
viveu uma vida boêmia e política intensa junto a um grupo de
estudantes vindos do oeste do Canadá. Neste meio conheceu
Elizabeth (Liz) Bott, uma estudante de psicologia que se interessava
por antropologia. Liz e Erving foram amigos inseparáveis. A fama
de intelectual de Goffman começou a repercutir no meio estudan-
til. Achavam-no um gênio estranho, surpreendente, também pela
inteligência vivaz de suas observações lógicas. Era uma pessoa
iluminada, com presença de espírito e, isso, por vezes, incomoda-
va muito, provocava ciúmes e inveja. 61
Uma outra característica presente na sua biografia: Goffman
lia bastante. Licenciou-se em junho de 1945, em sociologia, época
em que estava em desenvolvimento a etapa intelectual de Goffman,
a do aprendizado racional da profissão. Já estavam adquiridas as
motivações para a leitura intensiva, essencial para um futuro in-
vestigador. Os livros-fetiche apareceram: “Busca do tempo perdi-
do”, por exemplo. Surgiram os mestres do pensamento também:
Durkheim, Radcliffe-Brown, Warner. Mas, também, mais sutilmente,
Freud e Parsons.
Goffman não era casado, ainda, e seus pais financiavam-lhe
os estudos, não precisava trabalhar, ao contrário de muitos dos
seus colegas. Dessa forma, ele pôde entrar para a Universidade de
Chicago, para o departamento de sociologia, em setembro de 1945,
onde foi submetido a uma imensa quantidade de mais ou menos
duzentos estudantes.
A Universidade de Chicago centrava-se no mestrado e douto-
rado. Era essencialmente uma universidade de investigação. Os
cursos eram em forma de seminários. O objetivo proposto aos es-
Márcia de Oliveira Estrázulas

tudantes era passar nos exames gerais, para tanto, todos os meios
eram auxiliares: os cursos, no departamento ou fora, as conferênci-
as oferecidas aqui e ali, e, sobremaneira, as leituras pessoais e as
discussões entre colegas.
Os estudantes egressos, que foram à guerra e retornaram, in-
gressando na Universidade de Chicago, queriam queimar etapas.
Eram, na sua maior parte, de origem humilde, maduros, mais ve-
lhos e quase todos casados. Tinham anos a resgatar econômica e
intelectualmente.
Este meio ambiente, esse contexto e circunstâncias de traba-
lho desconcertaram o jovem Goffman que não tinha nenhuma ex-
periência da guerra e do mundo, tinha apenas 23 anos. Por isso, os
dois primeiros anos em Chicago foram muito duros para ele. Esta-
va angustiado, escrevia com muita dificuldade, entregava os seus
trabalhos fora de prazo e faltava às aulas. Os seus professores não
estavam muito satisfeitos com ele, alguns desejavam afastá-lo. No
entanto, ele pareceu ultrapassar a crise e impôs-se, pouco a pouco,
junto aos colegas e professores, a partir de 1947. Quase todos os
62 seus conhecidos eram judeus que, em quase sua totalidade, viriam
a se tornar nomes da sociologia americana conhecidos nacional,
senão internacionalmente.
Naquela época, seus colegas estavam ainda longe de prever
seu sucesso profissional, mas quando, durante um encontro, al-
guém perguntou: “Quem será célebre daqui a vinte anos?”, res-
ponderam, sem dúvida, com unanimidade: “Erving!” A frase quase
profética traduziu bem a impressão que os amigos tinham de
Goffman. O seu intelecto, aparentemente, impressionou-os de uma
maneira ou outra. Os amigos tornaram-se os primeiros professores
de Goffman em Chicago. Todos liam muito.
Gustav Ichheiser deu um curso de Sociologia da Religião em
Chicago e tornou-se uma das fontes de inspiração de Goffman, que
também se entusiasmou pelo filósofo Kenneth Burke, de quem apren-
deu o modelo “dramatúrgico” das relações humanas de que os
homens encarnam papéis, mudam-nos, participam neles. Goffman
referiu-se ao professor Everett Cherrington Hughes como tendo sido
o seu santo patrono em Chicago, uma das filiações intelectuais
dele. Com ele aprendeu a importância dos dados. Essas são mais
duas chaves para compreender a obra de Goffman.
Por volta de 1935, o professor Lloyd Warner estimulou Goffman
a ler e utilizar os estudos de Henry Murray, psicólogo junguiano
que construiu o Teste de Apercepção de Temas (TAT), o qual, com a
ajuda de antropólogos, tenta separar as variações culturais e soci-
ais dos determinantes da personalidade. No final de 1949, perce-
beu-se a clara influência desta bibliografia na tese de mestrado, de
Goffman, com o seguinte título: “Algumas características das res-
postas a experiências representadas por imagens”. Este foi o pri-
meiro trabalho escrito de Goffman.
Antes de tudo, na primeira parte da tese provou o seu conhe-
cimento sobre o TAT: história, objetivos, potencialidades e limites
do teste foram analisados num estilo sóbrio e denso. Explicou, na
segunda parte, como entrou em contato com os seus sujeitos por
telefone, segundo a técnica clássica da “bola de neve”: um nome
leva a outro. Na terceira parte havia uma surpresa: Goffman esbo-
çou a sua própria interpretação sociológica, pôs de lado o quadro
psicológico realista no qual se analisam habitualmente as respos-
tas às imagens do TAT, fundamentou-se em Whorf, Sapir, Burke e 63
Cassirer, entre outros.
Goffman pretendeu abarcar o “real”, com suas teorias de “pe-
queno alcance”, o momento no qual se diluem os conceitos, o real
que se encontra por trás das situações particulares que os dados
mostram, a realidade dos mecanismos e engrenagens que origi-
nam as condutas e comportamentos, que darão origem a ordem
social.
O ano de 1949 foi também o ano de partida para Edimburgo
e Ilhas Shetland. Lloyd Warner estava, de novo, por trás desta via-
gem. Na Universidade de Edimburgo, ainda em 1949, abriram um
departamento de antropologia social e seu diretor pediu a um dos
seu velhos conhecidos, que lhe enviasse um bom doutorando que
pudesse dinamizar a nova estrutura. Warner sugeriu o nome de
Goffman, que aceitou o convite e aí chegou em outubro de 1949.
Goffman desempenhou todas as tarefas que se esperava de
um assistente, oficialmente colocado como monitor em antropo-
logia social. Mais tarde, chegou à Universidade de Edimburgo um
sociólogo chamado Tom Burns que estava elaborando uma teoria
Márcia de Oliveira Estrázulas

das “relações de troca”, a hipótese era de que os membros de qual-


quer interação mantinham a polidez entre si para evitar choques.
Essa possibilidade seduziu Goffman, que pensando sobre ela diri-
giu-se às Ilhas Shetland, norte da Escócia, onde, entre dezembro de
1949 e maio de 1951, fez seu campo de tese de doutorado.
Percebeu-se, ainda, nesta pesquisa, a influência de Lloyd Warner,
seu orientador. Obviamente, porque o especialista das pequenas
comunidades semi-rurais americanas não tinha desistido do sonho
de qualquer antropólogo: estudar uma cultura insular tal como as
pesquisadas por Malinowski, as Ilhas Trobriand e, por Radcliffe-Brown,
as Ilhas Andaman.
Goffman construiu a sua própria metodologia. Ele se apresen-
tou aos moradores como um estudante universitário que desejava
apenas obter informações sobre a economia da agricultura insular.
Ele procurava tornar-se simpático, assim teve o privilégio de poder
observar os conflitos interacionais que surgiam, por vezes, no meio
desses grupos de atores sociais. Porém, os locais de observação
que escolheu não lhe proporcionaram entrar na estrutura social da
64 ilha, somente entrou nas atividades de lazer extracotidianas reser-
vadas a alguns privilegiados: a vida no hotel, as partidas de bilhar,
os serões. Mas é justamente aí, nessas atividades cotidianas, que
ele vai observar as interações em forma de conversa.
As atividades mais mundanas de um universo interacional
essencialmente familiar são o objeto da atenção de Goffman, as
quais ele chama de conversacionais: “...essa técnica estilística de
Goffman como a capacidade para fazer que um instante banal e
insignificante na vida de uma pessoa se transforme em uma expe-
riência memorável (para o leitor)” (ANDACHT, 2004, p.130).
O que Goffman fez foi observar o desenrolar da comunicação
interativa na atmosfera dos espaços. A expressão de si, que se tor-
nava a impressão para o outro, era passível de ser manipulada
propositalmente, com o fim de desinformar o seu interlocutor que
podia agir de modo similar.
Goffman pretendeu examinar as interações sociais que se as-
semelhavam mais às dos lugares mais impessoais da vida moder-
na. Assim, qualquer interação, torna-se um constante jogo de dis-
simulação e de enganar, demonstrando uma sintomatologia soci-
al:
O projeto de Goffman aparece, assim, como uma
sintomatologia social, como uma desmedicalização
destes sintomas, cujas raízes Freud mergulhara no
inconsciente deixando ver nelas os fundamentos soci-
ais e culturais. Quando Goffman invoca os lapsos
freudianos para dizer que ‘neste jogo quem descobre
é freqüentemente melhor do quem dissimula’, está a
dialogar com a psicanálise, reconhecendo-lhe o poder
de revelação, mas pensa acrescentar-lhe uma dimen-
são sociológica (...) Goffman fala do social onde Freud
fala do inconsciente (WINKIN, 1999, p. 70-71).

Em 1955 viveu ao ritmo dos acontecimentos quotidianos em


um enorme hospital psiquiátrico, Santa Elizabeth, com mais de sete
mil camas. De certa maneira retoma o processo utilizado na sua
tese de doutorado.
Em 1956, publicou uma primeira versão de “A Representação
do Eu na Vida Cotidiana”. Organiza o livro, que se torna um novo
alicerce conceitual: a famosa linguagem do teatro (cenário, repre- 65
sentação, papel, etc.) o qual tornou Goffman conhecido e que lhe
valeu a denominação de primeiro representante da análise
dramatúrgica. O livro popularizou-se e difundiu-se nas massas es-
tudantis. Em 1959, Goffman estava intelectualmente amadureci-
do; a sua intelectualidade e cultura estavam na sua plenitude. Pu-
blicou obras nas quais constatou que é na interação com o outro
que se situa a dificuldade, não na própria pessoa. Em 1961, publi-
cou “Asylums” e, em 1963, “Estigma”:
Goffman permite que os leitores ‘vejam por si mes-
mos’, que detectem por sua própria conta os padrões
que ele deseja tornar notáveis e salientes.Tais técni-
cas persuasivas ou de predisposição tornam fácil para
os leitores ‘chegar as suas próprias conclusões’ - con-
clusões inteiramente de acordo com aquelas
requeridas por Goffman. Esta é a qualidade sedutora
da prosa de Goffman; é muito fácil ler as coisas à sua
maneira (WATSON, 2004, p. 92).

Segundo Malufe (1992), Erving Goffmam desfrutou de um


privilégio de ser reconhecido em vida. Seus primeiros escritos fo-
Márcia de Oliveira Estrázulas

ram tidos como algo novo e valioso. Dentro e fora dos círculos
profissionais da sociologia, foi forte o impacto dos seus escritos.
Sua ascensão profissional foi rápida e esse próprio sucesso acabou
por transformar-se em problema para todos os críticos e
resenhadores, porque ele sempre foi polêmico ao longo dos seus
trinta e tantos anos de vida acadêmica.
Milhares de exemplares dos seus livros foram lidos em vários
idiomas. O seu sucesso popular veio, surpreendentemente, associ-
ado a um interesse acadêmico, um tipo de associação mais comum
de se ver no campo da literatura do que no das ciências humanas e
sociais:
Se a leitura de Goffman é, ao mesmo tempo, fascinan-
te e desconcertante é porque, sem jamais se afastar
dos princípios do ofício do sociólogo, ele convida a
comparar o incomparável, a mudar constantemente o
vocabulário descritivo para que se possa permanecer
o mais perto possível da experiência individual da vida
social (JOSEPH, 2000, p. 11).
66 Recebeu, em 1961, uma das maiores condecorações no meio
profissional, a MacIver Award. Foi autor de onze livros, dentre os
quais o maior best-seller da história da sociologia, “A Representação
do Eu na Vida Cotidiana”, traduzido em quinze idiomas, com ven-
dagem de mais de dois milhões de exemplares. A doença o vitimou
quando estava ocupando o mais alto posto na hierarquia da socio-
logia acadêmica - a presidência da “American Sociological Association”.
Morreu em 1982, aos sessenta anos e no apogeu da carreira.
Velho (2004) explica que as pesquisas de Goffman começaram
a ser mais divulgadas no Brasil por volta dos anos 60. A sociologia,
no país, possuía naquele momento o marxismo e o estruturalismo
como referência. O nacionalismo e o regime militar não estimula-
vam a divulgação de pesquisadores norte-americanos. Nos anos
que se sucederam ao golpe de 64, a tendência era discriminar a
produção norte-americana, tratada como empiricista.
Antropólogos e profissionais da área psicológica passam a se
interessar por Goffman mais para o fim da década de sessenta, a
partir de maio de 1968. Há uma mudança e a valorização de ou-
tros tipos de cultura. É a época da contracultura, de estilos alterna-
tivos, aumentando o interesse por uma análise política do cotidia-
no. Assim há uma abertura maior em relação a estudos classifica-
dos de forma pejorativa como microssociologia. Começam a ser
editados alguns de seus livros. Cresce o interesse por Goffman,
aumentando com isso a aproximação entre antropólogos e a área
psicológica. Goffman demonstrou um interesse pela vida cotidiana
e a análise do cotidiano em uma perspectiva sócio-antropológica e
das relações interpessoais, por isso incentivaram-se pesquisas e
investigações interdisciplinares... “Goffman e Becker (...) não viam
como barreiras os limites acadêmicos entre sociologia e antropo-
logia. Atravessavam-nos e consideravam-nos desnecessários ou até
fonte de mal-entendidos” (VELHO, 2004, p.41).
Goffman tinha interesse por situações humanas particularmen-
te penosas e empregava procedimentos não-convencionais de pes-
quisa ou rigor analítico. Na sua produção percebe-se a presença
marcante de um diálogo com os clássicos através de alusões. Sem
assumir uma postura erudita, possui uma linguagem acessível e
trabalhada:
67
A questão relativa aos costumes sociais da linguagem
foi importante para ele em todo o seu percurso (...) Se
a linguagem é, para ele, um objeto de estudo funda-
mental, é também o seu principal instrumento de tra-
balho. É que Goffman escreve de uma maneira requin-
tada, e este requinte irá aumentando à medida que a
sua obra se constrói. Ele esculpe literalmente os seus
textos, não por preocupação estética, mas para expri-
mir com a maior concisão possível, toda a complexida-
de da realidade social (WINKIN, 1999, p. 98).

O trabalho de Goffman, segundo Gastaldo (2004), evidencia-


va aspectos da vida rotineira que não eram relevantes para as ciên-
cias sociais, mas ofereceram uma contribuição valiosa. “Sua descri-
ção etnográfica de um hospital para doentes mentais deflagrou a
luta antimanicomial no mundo” (GASTALDO, 2004, p. 9).
O ponto de vista de Goffman passava despercebido para os
leigos, mas modificou o olhar e o pensar sociológico sobre as
interações, “sobre o deslocamento dos pedestres, sobre a ocupa-
ção social dos espaços públicos, sobre a atuação de vigaristas,
Márcia de Oliveira Estrázulas

mendigos, loucos, espiões e jogadores” (GASTALDO, 2004, p.9).


Sua obra contém força até os dias atuais. Vinte e quatro anos
depois de sua morte, os temas e os conceitos desenvolvidos por
ele ainda estão em voga: “(...) é pelo estudo das civilidades da vida
cotidiana que a sociologia de Goffman irrompe no debate das ciên-
cias sociais” (JOSEPH, 2000, p.14).
Através das interações sociais, ele percebia a lógica da repre-
sentação, captava as estratégias que os atores sociais simulavam
para moldar sua imagem social: os sujeitos sociais se exibiam, en-
cenavam, para impressionar, para se valorizar.
Bordieux (2004) afirma que a pesquisa de Goffman consistia
em olhar de perto a realidade social e de se colocar no próprio
espaço das interações. A totalidade perfaz a vida social. Ele fez
com que a sociologia valorizasse o infinitamente pequeno, o evi-
dente e óbvio, tornando-se, dessa forma, uma referência para soci-
ólogos, psicólogos, psicossociólogos e sociolingüistas.

3.2 INTERAÇÃO SOCIAL


68
Com o objetivo de inserir o Interacionismo Simbólico na pers-
pectiva do campo organizacional e no contexto da pesquisa social,
utilizamo-no como referencial teórico, porque seu foco são os pro-
cessos de inter-ação social.
A abordagem dinâmica constitui uma preocupação dos soció-
logos e antropólogos. Segundo Joas (1999), o Interacionismo Sim-
bólico sustenta que a teoria deve ser desenvolvida observando-se
as interações dos atores sociais na vida real. A partir desse ponto
de vista, a finalidade da pesquisa será mostrar o que os atores
sociais realmente fazem em determinados contextos, em proces-
sos observáveis de interação entre eles:
Ao lado das entidades constitutivas da sociologia, que
são o coletivo (grupo, classe, população) e o indivíduo
(ator, agente, sujeito), a microssociologia introduz,
pois, um objeto novo, a situação de interação (JOSEPH,
2000, p.11).
Para esta teoria, as organizações não são regidas por regras
únicas. As ações que a organização realiza são passíveis da interfe-
rência do ator social. A reflexão e o diálogo são necessários para a
modificação de regras e normas e, também, para a sua manuten-
ção e reprodução.
A continuidade das organizações, para o interacionismo, está
estritamente ligada à sua reprodução na ação. Seus objetivos
organizacionais estão sujeitos a contradições, apresentam caráter
condicional, transitório e podem assumir muitas formas diferen-
tes: “A existência das organizações depende de sua contínua
reconstituição na ação; se reproduzem na ação e por meio dela”
(JOAS, 1999, p. 162).
Dentro desta visão, a sociologia das organizações sugere que
o funcionamento de uma organização torna-se viável com a exis-
tência de um processo flexível e permanente de negociação entre
os vários atores sociais interessados na forma de divisão do traba-
lho. “(...) o princípio geral proposto por essa sociologia das organi-
zações: elas devem ser concebidas como ‘sistemas de negociação
contínua’” (JOAS, 1999, p. 162). 69
A principal tarefa de uma sociologia das organizações é a
reconstituição dos processos interacionais, definidos e desdobra-
dos no tempo. A tese central é a da conversação diplomática, a
qual mantém a instituição contínua da sociedade. De outra forma,
esse processo encontraria o obstáculo de ser mal-entendido: “(...)
de maior alcance é a tese de que praticamente todos os tipos de
ordem social serão mal-interpretados se o papel dos processos de
negociação não for considerado.” (JOAS, 1999, p.163)
O ponto de vista teórico do interacionismo simbólico de Joas
(1999) é que a interação social é um processo que molda o com-
portamento humano. O ator social tem um “eu” (self) que se torna
objeto para si, se comunica consigo e age em relação a si: “O self
para Mead surge e se desenvolve no processo da experiência dos
indivíduos e suas ações, portanto no espaço das interações soci-
ais.” (BAZZILLI et al., 1998, p. 59).
O “eu” (self) precisa de uma visão reflexiva; o ator social, atra-
vés de um processo de self-interaction, interage com o mundo, com
outros e nessa interação define o significado de coisas: “Exige-se
Márcia de Oliveira Estrázulas

reflexão e diálogo não apenas para modificação de regras e nor-


mas, mas também para sua manutenção e reprodução” (JOAS, 1999,
p. 162).
Existem axiomas que definem a teoria do Interacionismo Sim-
bólico, quais sejam:

Os atores sociais interagem tendo por referencial o significado que as coisas


têm para eles (casa, carro), até mesmo pessoas (colega ou porteiro), categorias
de indivíduos (simpático, antipático), instituições (faculdade ou prefeitura),
virtudes (sinceridade, integridade);
O significado destas coisas surge da interação social entre atores sociais. O
mundo simbólico (o simbólico não é resultado nem do sujeito consigo, nem
do sujeito com o objeto) é construído nas interações entre dois ou mais atores
sociais. O momento no qual surge o “eu”, ou self, é um processo social que
envolve a interação de atores sociais, o “eu”, ou self, surge através da relação
com atores sociais. Os atores sociais se condicionam mutuamente. A individu-
alidade é baseada nas interações e aquilo que o “eu”, ou self, faz é condiciona-
do por aquilo que o ‘nós’ constrói socialmente;
Através de um processo interpretativo desenvolvido pelas pessoas em interação,
estes significados são modificados. Num primeiro momento, o ator social
estabelece para si mesmo os simbolismos com os quais tem relação, especifica
70 os significados que têm sentido para ele, depois seleciona, reagrupa e trans-
forma-os de acordo com o ponto de vista da situação na qual ele se encontra
e que está relacionado com suas ações;

Quadro 1 - Axiomas que definem a teoria do Interacionismo Simbólico

Essas premissas oferecem uma percepção da sociedade for-


mada por atores sociais que se engajam em atividades e/ou fun-
ções ao interagirem uns com os outros. Os atores engajados em
ações dão início à vida social. A sociedade é vista como existindo
em ação.
As premissas anteriormente elencadas configuram-se uma li-
nha de pensamento com um núcleo teórico comum, com uma iden-
tidade acadêmica: “Goffman (...) faz das interações sociais o objeto
da sociologia como ciência específica.” (JOSEPH, 2000, p. 17)
Por isso há relevância e influência das pesquisas dessa corren-
te na antropologia e sociologia, pois sua tarefa central é identificar
o que na sociedade causa influência nos comportamentos indivi-
duais do ator social, assim como o que no ator social faz diferença
para aspectos coletivos da sociedade. O quanto o comportamento
individual, a interação social e o ator social são afetados pela es-
trutura social e também como os atores sociais podem, através de
seus comportamentos, individual e coletivo, alterar as estruturas
em que atuam. Não é possível conceber o ator social sem a socie-
dade e a sociedade sem o ator social, os dois são gerados na
interação. Há influência do ator social na sociedade e vice-versa. A
partir da interação, a natureza dual da relação ator social e socie-
dade gera o processo de individualização, que é derivado da soci-
alização (JOAS, 1991).
Smith (2004, p. 56) delineia os axiomas sociológicos que
Goffman diz serem necessários para que a ordem social de interação
face a face ocorra (Quadro 2):

1º O ator social encontra-se na presença dos outros atores sociais, fornece


informações através da fala ou, de forma subjetiva, as transmite pela própria
pessoa, ou são incorporadas e evidentes para todos ou para alguns;
2º O ator social é um receptor e emissor ao mesmo tempo, delimitando a
capacidade de levar em consideração a atitude dos outros atores sociais pre-
sentes;
3º O ator social tentará filtrar a informação que fornece de forma a manipular,
influenciar e controlar a sua exibição. 71
Quadro 2 - Axiomas sociológicos da interação face a face

Conclui Smith (2004, p. 56) que para que haja interação face a
face, os atores sociais devem ser capazes de sondar, monitorar os
outros atores sociais, captar as atitudes dos outros atores sociais e
controlar as informações sobre si mesmos.
Em seu estudo sobre os rituais de interação, Goffman exami-
na o trabalho de construção da face (GOFFMAN, 1999). Face signi-
fica os valores percebidos numa interação com o ator social. A face
dá indícios da observação da identidade, do self, o qual é formado
por características sociais reconhecidas e aceitas pelo grupo de ato-
res sociais. As regras do grupo de atores sociais é que determinam
a aceitação das faces em interação. Numa instituição total, a face, o
“eu”, o self, a identidade é ameaçada ou deteriorada, podendo ser
estigmatizada por parte ou por todos os membros do grupo de
atores sociais, mesmo que a pessoa não apresente características
físicas que induzam tal estado. Os egressos de uma instituição to-
tal não estão em condições de recompor a face em função de uma
Márcia de Oliveira Estrázulas

situação psicológica pouco favorável que viveram e também pelas


condições sociais a que estavam submetidos.

3.2.1 A PERSUASÃO ENTRE ATORES SOCIAIS

O livro “A Representação do Eu na Vida Cotidiana” pode servir


como uma orientação. A partir dele é possível estudar a vida social
do ponto de vista sociológico da manipulação da impressão, apli-
cável a qualquer estabelecimento social concreto. Poderia ser uma
referência a ser utilizada no estudo de casos da vida social
institucional.
Um estabelecimento social é qualquer lugar no qual se reali-
za regularmente uma forma particular de atividade. Nesse espaço,
há uma equipe de atores sociais que, em conjunto, apresenta-se à
platéia utilizando regras de comportamentos sociais como decoro
e polidez. Há uma região onde é preparada a representação, cha-
mada de fundos. Também há uma onde essa encenação é apresen-
tada, chamada região de fachada. A entrada nessas regiões é vigia-
72
da para evitar que a platéia ou auditório veja os bastidores. Entre
os membros da equipe de atores sociais há certa conivência, fideli-
dade, lealdade, vigilância para que os segredos que possam preju-
dicar a representação não venham a público. Há certo consenso
entre a equipe de atores sociais e a platéia para manter certo nível
de concordância. Inconscientemente pode haver oposições,
discordâncias, aparecendo assim papéis discrepantes como atores
sociais ‘estranhos’ ao grupo. Eles são acolhidos como simpatizan-
tes, mas na realidade visam apenas obter informações comprome-
tedoras dos bastidores.
O ponto de vista do livro “A Representação do Eu na Vida
Cotidiana” é o de uma representação teatral, na qual se utilizam
premissas, axiomas, princípios de caráter dramatúrgico. No palco,
simulações são apresentadas. O ator social apresenta-se sob uma
máscara de um personagem social para personagens sociais,
projetados por outros atores sociais, a platéia social.
Um estudo sobre as manifestações dramáticas certamente
poderá sugerir um modelo de explicação sobre os momentos em
que se deve sorrir, chorar, entonar, gesticular, etc., como ato de
significação social. A expressão dramática, do ponto de vista soci-
al, não segue a norma da racionalidade, mas a de reconhecimento
mútuo dos atores sociais sobre formas de vestir, gesticular, entonar,
sorrir, chorar e assim por diante.
A ação dramatúrgica abrange os seguintes momentos: o pal-
co; ator (papéis sociais); o texto; as cenas; os meios de expressão.
Todos, atores sociais, platéia e estranhos utilizam-se de técnicas
para salvar o espetáculo, por essa razão é importante selecionar
membros leais, disciplinados, discretos e uma platéia sem
criticidade ou discernimento.
Interação para Goffman (1999) é a influência recíproca dos
atores sociais sobre as ações dos outros atores sociais. O papel
social pode ser definido como a promulgação de direitos e deveres
ligados a uma determinada situação social.
Para Goffman (1999), há duas fontes de informação sobre o
outro na representação. Uma é quando se tem alguma idéia de
quem é a outra pessoa. A outra vai depender da comunicação que
fluir na situação – a partir de sua conduta e aparência, supondo
base na experiência anterior, confiando no que ele diz ou em docu- 73
mentos.
Goffman (1999) diz, em seus estudos interacionistas, que todo
ator social, em qualquer interação social, representa um papel,
exibe-se aos outros atores sociais de forma estudada, planejada,
estratégica, domina as opiniões e conceitos que possam ter dele.
Para realizar esse intuito, utiliza-se de certos meios para represen-
tar sua performance, seu personagem diante de um público. Ele
conhece a arte da persuasão, do contrário seus objetivos verdadei-
ros se desmascaram, se desnudam, se desvelam.
Goffman (1999) diz que o método do diretor ou ator social
em questão, visa garantir o mínimo de deslizes durante a repre-
sentação como, por exemplo, a habilidade para encarnar o perso-
nagem e seu papel de forma espontânea, evitando gestos
involuntários, a presença de espírito e de palco, o saber incitar e
acolher brincadeiras da platéia, se resguardando emocionalmente,
essas são habilidades que servem para poder contornar as situa-
ções de interação dramatúrgica que, ocasionalmente, podem ocor-
rer durante a representação. O ator ou diretor social é também
Márcia de Oliveira Estrázulas

alguém que possui autocontrole dramatúrgico, com um método e/


ou metodologia que comanda a expressão do rosto e da voz, dissi-
mula a emoção real e simula uma emoção fictícia.
Goffman (1999) diz que a vida pregressa de um líder espiritu-
al, por exemplo, pode conter alguns segredos, mistérios, que se
forem expostos ao domínio público, desacreditariam ou, no míni-
mo, enfraqueceriam a representação do seu papel social de líder e,
conseqüentemente, as pretensões relativas à sua liderança, que
como ator social ou diretor estava tentando projetar. Esses segre-
dos podem envolver fatos escusos, bem dissimulados ou estigmas
que todo mundo percebe, mas aos quais ninguém se refere.
Segundo Goffman (1999), o ator social ou diretor prudente
seleciona, estrategicamente, o tipo de público crente, puro, sem
críticas, sem reflexão, sem consciência, sem informação, sem lógi-
ca, sem racionalizações, que não tenha pensamento livre e criati-
vo, enfim, que não provoque contrariedades em termos da apre-
sentação que o ator social ou diretor deseja encenar. Que não lhe
coloque em xeque, não o exponha ao ridículo, não o desmascare,
74 não o desmoralize, etc., só assim poderá ter êxito e iludir, do con-
trário, como diz Cohn, será desmascarado:
Se falha o êxito, seu domínio oscila (...) quando deca-
em (...) a fé dos que crêem em suas qualidades de
líder, então seu domínio também se torna caduco (...)
a autoridade carismática baseia-se na crença no profe-
ta (...) e com eles cai (COHN, 1979, p.136-7).

Goffman (1999) salienta que, se o público tiver que assistir a


apenas uma ligeira e breve palestra, apresentação, encenação, a
possibilidade de uma situação constrangedora será relativamente
pequena e será seguro, para o ator social ou diretor manter uma
fachada falsa.
Há uma técnica padronizada e defensiva de proteção. Ela neu-
traliza o risco ou probabilidade de se criar condições que favore-
çam a intimidade entre atores sociais que interagem (Goffman,
1999).
Os segredos são informações negativas. O ‘especialista num
serviço’, como um diretor social ou cineasta, por exemplo, infor-
ma-se do drama particular dos atores sociais. Ele tem uma visão da
coxia, dos bastidores, observa de camarote o que se passa, real-
mente, na vida íntima de cada um. Percebe o que eles tentam ca-
muflar, com máscaras sociais engendradas estrategicamente, até
como defesa dos seus pontos fracos e vulneráveis. Ele se informa
de tudo a respeito dos outros. Essa informação é um poder, porém
os outros não conhecem a sua real e verdadeira personalidade.
Goffman (1999) diz que qualquer tipo de representação terá
diferentes impactos, dependendo do modo como é dramatizada.
Para tanto, estará camuflada de meios eficientes de exibição. As-
sim, a forma mais objetiva de poder é, freqüentemente, um meio
eficiente de comunicação que funciona, principalmente, como uma
representação para iludir o público.

3.2.2 INSTITUIÇÕES TOTAIS

Goffman (1999) diz que há relevância sociológica nas pesqui-


sas das instituições totais, porque são locais de condicionamento
dos atores sociais, onde regras e normas de interação social coleti-
75
va e compulsória condicionam o comportamento interacional da-
queles que pertencem ao grupo em interação com os atores sociais
ou residentes permanentes. Também é um objetivo da instituição
total a transformação do ator social num ser mais próximo de um
ideal de perfeição... “Já se sugeriu também que um freqüente obje-
tivo oficial é a reforma dos internados na direção de algum padrão
ideal” (GOFFMAN, 1999, p. 70).
Segundo Goffman (1999), as normas culturais condicionam
como os atores sociais devem agir, socialmente, quando inseridos
num determinado grupo social. As instituições totais limitam suas
próprias atividades num único espaço físico, e as regras de com-
portamento garantem a identidade ideológica e filosófica do gru-
po:
A adoção das atitudes gerais de um grupo constitui
parte essencial da organização do self, em seu sentido
mais complexo, pois provoca no indivíduo o senti-
mento de pertencer a uma comunidade ao se apropri-
Márcia de Oliveira Estrázulas

ar, em sua experiência, de valores institucionalizados


por essa comunidade (BAZILLI et al., 1998, p. 68).

Ao se fazer parte de uma instituição qualquer, um novo pro-


cesso de socialização é iniciado, porque adere-se a seus padrões de
interação. Podemos observar como um ator social modifica sua
conduta de acordo com as circunstâncias. Isso se explica pelo fato
de o ator social ser flexível e ter a capacidade de se adaptar ao
meio social e cultural. O contexto, a conjuntura social influencia a
atitude e, até, o pensamento do ator social, porque a instituição
exerce seu domínio sobre o “eu” (self) ou personalidade dos seus
membros, condicionando sua forma de pensar, sua ideologia, sua
cultura, seus costumes, seus hábitos, sua conduta, sua postura:
Freqüentemente, pode-se observar como uma pessoa
muda de comportamento, de acordo com as diversas
situações dadas. Isto pode ser explicado pelo fato de
fazer parte do indivíduo assumir papéis ou condutas
adaptativas ao contexto social (BAZILLI et al., 1998, p.
63).
76
A instituição é organizada por grupos e constituída pelas rea-
ções dos atores sociais em reciprocidade com as reações idênticas
dos outros atores sociais, tal como a lei da física “uma ação provo-
ca uma reação na mesma intensidade e sentido contrário”. Elas
formariam as reações em cadeia entre atores sociais, os quais rece-
bem estímulos sociais e que, por sua vez, constituem as institui-
ções sociais.
Portanto, o domínio ou controle social numa instituição total
pode esmagar o “eu” (self) ou aniquilar sua personalidade, sua
autoconsciência, porque se utiliza de normas e regras reacionári-
as, opressivas, estereotipadas e ultraconservadoras. Possui uma
forma administrativa rígida e inflexível. Condiciona os “eus” (selfs)
submetidos à sua organização de maneira a inibir ou coibir qual-
quer indício de comportamento e pensamentos criativos diferen-
tes daqueles por elas instituídos. Somente as instituições totais
suprimem a divisão entre as diferentes facetas da vida social e
condicionam a participação do ator social sob uma única e mesma
autoridade.
Todas as instituições têm tendência ao isolamento, umas mais
que outras. Algumas estão abertas para quem se comporte de ma-
neira servil, outras restringem a freqüência. Algumas são mais fe-
chadas e nelas há uma obstaculização à interação social com o
mundo aberto, com proibições à saída dos seus membros. Tais lo-
cais Goffman (1999) denominou instituições totais:
Usando a linguagem neutra que constrói para discutir
as instituições totais, Goffman isola uma classe de
objetos sociais que têm características bem definidas
em comum, características essas que são
empiricamente observáveis e que podem ser
conectadas umas às outras em padrões verificáveis.
Ele sabe fazer ciência (BECKER, 2004, p. 109).

As instituições totais podem ser classificadas em cinco cate-


gorias, segundo Goffman (1999):

1º - As que têm por finalidade cuidar de pessoas incapazes e


que não apresentam uma ameaça à sociedade: casas para ce-
gos, velhos, órfãos e indigentes; 77
2º - As que têm por finalidade cuidar de pessoas incapazes
que são de maneira não-intencional uma ameaça à socieda-
de: sanatórios para hansenianos, tuberculosos, hospitais psi-
quiátricos;
3º - As que têm por finalidade isolar pessoas que intencional-
mente são uma ameaça à sociedade: cadeias, penitenciárias,
campos de prisioneiros de guerra, campos de concentração;
4º - As que têm por finalidade fundamentalmente
instrumentar, treinar para uma tarefa específica ou trabalho:
quartéis, navios, escolas internas, campos de trabalho, colô-
nias, kibutz;
5º - Por último, as que têm por finalidade instruir religiosos.
Servem, também, de refúgio do mundo: abadias, mosteiros,
conventos e outros claustros como monastérios, comunida-
des alternativas, etc.

Em todos os diferentes tipos, o ator social direcionado para o


trabalho na sociedade aberta será desmoralizado pelo sistema da
Márcia de Oliveira Estrázulas

instituição total, porque é incompatível com a estrutura básica de


trabalho e pagamento da sociedade aberta e/ou externa a ela:
Em algumas instituições, existe uma espécie de es-
cravidão, e o tempo integral do internado é colocado à
disposição da equipe dirigente. Neste caso, o sentido
do eu de posse do internado pode tornar-se alienado
em sua capacidade de trabalho (GOFFMAN, 1999, p.
21).

As instituições totais também são incompatíveis com a famí-


lia, um pilar fundamental da sociedade aberta. Há vida comunitá-
ria, mas não há vida doméstica, familiar:
Independentemente do fato de determinada institui-
ção total agir como força boa ou má na sociedade civil,
certamente terá força, e esta depende em parte da
supressão de um círculo completo de lares reais ou
potenciais (GOFFMAN, 1999, p. 2).

A instituição total suprime as distâncias físicas de locais apro-


78 priados e separados fisicamente para lazer, trabalho ou família.
Todas essas instâncias da vida cotidiana são realizadas num mes-
mo espaço e sob uma mesma e única autoridade.
As atividades cotidianas são feitas em companhia de grupos,
e as tarefas não permitem usar criatividade. Não se respeitam as
necessidades humanas individuais e todas as atividades são reali-
zadas em conjunto.
O desenvolvimento das tarefas é planejado e imposto, hierar-
quicamente, através de normas, regras, com o fim de atender às
necessidades da instituição. Como há um contingente muito gran-
de de atores sociais, faz-se necessário que haja supervisão e/ou
coordenação, com o intuito de coagir todos a realizarem, em tem-
po e qualidade, o que foi determinado pela autoridade mentora.
Por isso, as tarefas são examinadas, vistoriadas, avaliadas.
O ator social interno é comumente condicionado por um pro-
cesso sociológico de despojamento da identidade, para tanto sofre
constantes humilhações, degradações, profanações do seu “eu” (self).
A carreira, a vida familiar, as ocupações terapêuticas e a educação
do ator social interno são interrompidas, criando-se, assim, um
estado estigmatizado e não há alívio momentâneo de tensões,
como uma vida cultural (estudo, cinema, show, teatro, circo, espe-
táculo), social (bailes, reuniões, festividades), afetiva (família, ami-
gos, vizinhos, colegas), sexual (parceiro(a)), lazer (rádio, TV, internet,
telefone), viagens, passeios, livre-arbítrio, necessidades individu-
ais, cidadania, diretos humanos, dignidade, criatividade, comuni-
cação, interação:
Nas instituições religiosas, podemos encontrar teori-
as sofisticadas do ponto de vista sociológico quanto à
necessidade de purificação da alma e penitência atra-
vés da disciplina da carne (...) Nos conventos, encon-
tramos teorias sobre a forma em que o espírito pode
ser fraco e forte, e as formas em que seus defeitos
podem ser combatidos (GOFFMAN, 1961, p. 72-309).

Nas instituições totais há sempre um grupo de atores sociais


que tem contato restrito com o mundo externo. São os supervisores
que, parcialmente, por questões de trabalho, são obrigados a ter
contato superficial com o mundo externo. Até mesmo a interação
entre os grupos de atores sociais internos residentes e os 79
supervisores é restrita.
A lacuna, o vazio, o hiato entre os dois grupos de atores soci-
ais é um aspecto central da instituição total. No entanto, Goffman
(1961) diz que há uma permeabilidade entre os padrões sociais
das instituições totais e os da sociedade aberta, sendo que ambos
influenciam-se mutuamente.
Para se definir uma instituição como total, segundo Goffman
(1999), ela tem que ser local de residência e trabalho, ao mesmo
tempo, num único espaço físico. Deve abrigar e obrigar a convi-
vência entre atores sociais em posição de igualdade, por um espa-
ço de tempo razoável. Eles são confinados, enclausurados, inter-
nados, reclusos, fechados e isolados e não há quase interação soci-
al entre si e, muito menos, interação com o mundo aberto.
O normal na sociedade aberta é que os atores sociais tenham
diferentes locais para trabalhar, morem em locais diferentes do seu
trabalho e convivam com seus familiares em outros locais ainda
mais diferenciados, tenham seu lazer em locais específicos, onde
possam encontrar atores sociais diferentes. Mas na instituição to-
Márcia de Oliveira Estrázulas

tal, segundo Goffman (1999), esse espaço físico que divide ou se-
para essas diferentes esferas ou áreas da vida diária são suprimi-
dos. Todas as atividades são realizadas num mesmo local e sob
uma mesma administração, portanto essa é uma das característi-
cas que serve para defini-la. Segundo Goffman:
Uma instituição total pode ser definida como um local
de residência e trabalho, onde grande número de indi-
víduos com situação semelhante, separados da socie-
dade mais ampla por considerável período de tempo,
levam uma vida fechada e formalmente administrada
(GOFFMAN, 1999, p.11).

As tarefas diárias são obrigatórias e hierarquicamente impos-


tas. São realizadas em conjunto, ou seja, com um contingente de
atores sociais tratados de forma padronizada, sem levar em consi-
deração suas diferenças, criatividades e seus livres-arbítrios, além
de se estabelecer horários meticulosos para execução dessas mes-
mas tarefas, que são impostas com a finalidade de atender aos
80 objetivos e interesses planejados racionalmente pela direção da
instituição.
Através de seus estudos, Goffman (1999) percebeu que, habi-
tualmente, parece haver uma diferença entre as normas e regras
instituídas pela sociedade aberta e as restritivas instituídas pela
instituição total. Talvez, o ator social que não se adapte ao sistema
de regras instituídas por uma instituição total possa não ser consi-
derado inadaptado pela sociedade aberta, na qual ele agirá como
um ator social comum, porque as regras limitadoras instituídas
por uma instituição total qualquer não são comumente e/ou uni-
versalmente aceitas.
As relações nas instituições totais são sempre de superiorida-
de e subordinação, onde há a expectativa social que o ator social
superior exerça controle sobre o comportamento do ator social
subordinado (por ordens, proibição, etc). Assim, a desobediência
ao comando de uma autoridade, na instituição total, pode resultar
em sanções:
(...) fazer com que todos façam o que foi claramente
indicado como exigido, sob condições em que a infra-
ção de uma pessoa tende a salientar-se diante da obe-
diência visível e constantemente examinada dos ou-
tros (GOFFMAN, 1999, p. 18).

As normas e regras instituídas são aplicadas aos atores soci-


ais ligados a ela mais ou menos contra a sua vontade e sem o seu
consentimento. A capacidade de fazer regras e de aplicá-las a ou-
tros atores sociais representa essencialmente um poder, uma im-
posição, um domínio, um controle, porque são impostas, hierar-
quicamente, de cima para baixo.
Goffman (1999) diz que o controle, a vigilância, a fiscalização
a que são submetidos os atores sociais são características desses
organismos. Há uma coação ou coerção permanente nas interações
dos atores socais. Observa Goffman (1999) que estes são espaços
ímpares onde se criam formas de interações sociais ‘sui generis’,
adequadas exclusivamente a esse respectivo local: “O controle de
muitas necessidades humanas pela organização burocrática de gru-
pos completos de pessoas (...) é o fato básico das instituições to-
tais” (GOFFMAN, 1999, p. 18).
Ao contrário do que acontece na sociedade aberta, salienta
81
Goffman (1999), as comodidades ou conforto material como obje-
tos de consumo, um banho quente, uma cama macia, roupas de
qualidade, lavada e passada, preferências alimentares ou objetos
de higiene pessoal são suprimidos ao se residir, permanente ou
temporariamente, numa instituição total ou fechada. O ator social
não tem opção de escolha, não tem livre-arbítrio, porque não tem
poder para tanto:
Um conjunto de bens individuais tem uma relação
muito grande com o eu. A pessoa geralmente espera
ter certo controle da maneira de apresentar-se diante
dos outros. Para isso precisa de cosméticos e roupas
(...) em resumo, o indivíduo precisa de um ‘estojo de
identidade’ para o controle de sua aparência pessoal
(GOFFMAN, 1999, p. 28).

O residente de uma instituição total, segundo Goffman (1999),


tem sua interação social restringida ao mundo confinado, isolado,
enclausurado, recluso da instituição fechada. Ele se submete, as-
sim, a uma desprogramação, a uma despersonalização de sua iden-
Márcia de Oliveira Estrázulas

tidade anterior e é programado e reeducado pelo grupo de atores


sociais coordenadores que o supervisionam, vigiam, controlam,
fiscalizam. Há, como conseqüência, um despojamento, um
nivelamento, porque o ator social perde sua referência e identida-
de. Há um processo que obriga o residente a evitar problemas
maiores, os quais teria, certamente, se tentasse impor sua vonta-
de. Então ele se cala, abre mão dos seus direitos, vontades e prefe-
rências para se proteger de possíveis sanções e represálias.
Nas instituições totais, ainda observa Goffman (1999), há um
método, um processo, um sistema de coação ou coerção que cons-
titui formas para obrigar todos residentes realizarem tarefas servi-
çais como afazeres domésticos, obrigando-os a submeterem-se a
um papel indigno, subalterno, humilhante, subserviente, etc.
Outra característica das instituições totais é a abolição da vida
familiar. Turner (1974) ratifica essa idéia, pois sublinha que a vida
em comunidades fechadas rompe com as premissas, com os pila-
res da sociedade aberta, tais como o casamento, o sexo, a família,
a propriedade privada, etc.
82 Para Goffman (1999) há, nas instituições totais, um processo
de violação ao “eu” (self), no sentido de não se permitir liberdade,
privacidade, livre-arbítrio, preferência, escolha em relação a seus
bens. O ator social perde, assim, sua identidade, dignidade e cida-
dania, situação esta que tem, como conseqüência, um enfraqueci-
mento, até uma involução irrecuperável do seu processo de apren-
dizagem mental, da sua educação intelectual, da sua vida profissi-
onal, do seu amadurecimento emocional, da sua auto-estima, da
sua valorização e amor próprio:
Segundo a perspectiva ‘meadiana’, há instituições
sociais opressivas, estereotipadas e
ultraconservadoras. Essas instituições, em sua forma
rígida e inflexível, atuam sobre os selfs envolvidos com
ou submetidos a sua organização de maneira a inibir
qualquer expressão de condutas e pensamentos dife-
rentes daqueles por elas instituídos (BAZILLI et al.,
1998, p. 95).

O processo dessociativo ou de associalização do ator social,


diz Goffman (1999), é tão profundo que a interação com os atores
sociais do mundo aberto gera processos de pânico, estresse, an-
gústia, ansiedade, depressão e medo, dificultando sua readaptação
à sociedade, tornando-se, portanto, um ator anti-social.
Normalmente, as instituições, para alcançarem seus objeti-
vos, precisam impor certas normas e regras. O ator social, no de-
correr da sua vida, pode pertencer a várias instituições sociais for-
madas por atores sociais ligados por parentesco, por interesses
materiais ou por objetivos espirituais. Em todas as instituições
sociais, ele ingressa voluntariamente e delas se retira quando bem
desejar, sem que ninguém possa coagi-lo a permanecer, mas do
estigma de ter feito parte de uma instituição total, o ator social
não se libertará jamais, porque a influência sobre o seu “eu” (self)
torna-o substancialmente muito diferente dos demais atores soci-
ais da sociedade aberta. Pelo menos foi essa uma das constatações
de Goffman:
Podemos passar agora para uma consideração da an-
gústia da liberação (...) Um fator que tende a ser mais
importante é a desculturação, a perda ou impossibili-
dade de adquirir os hábitos atualmente exigidos na 83
sociedade mais ampla (GOFFMAN, 1999, p. 69).

Alguns atores sociais que seguem, por vocação, a vida religi-


osa e entram para uma instituição espiritual de clausura, subme-
tem-se, voluntariamente, às humilhações do “eu” (self), preferem
uma vida ascética de flagelação, de mortificação com fins de purifi-
cação espiritual e transcendência do ego.
Já os atores sociais que vivem na sociedade aberta se incomo-
dariam com o fato de terem seus cabelos raspados. Isso seria to-
mado como uma violação à sua integridade física. Mas o monge
pode se agradar disso, mesmo que seu corpo seja violado e sua
aparência fique desfigurada. Por este e muitos outros motivos, al-
guns atores sociais convergem para instituições totais que servem
de refúgio e fuga do mundo, como abadias, mosteiros, conventos,
claustros, ashrams (comunidade liderada por um guru - no oriente)
e monastérios:
(...) instituições religiosas que lidam apenas com aque-
les que acham que foram chamados e, destes voluntá-
Márcia de Oliveira Estrázulas

rios, tomam apenas aqueles que parecem os mais ade-


quados e mais sérios nas intenções. Em tais casos, a
conversão parece já ter ocorrido e apenas restará
mostrar ao neófito ao longo de que linhas poderá
melhor autodisicplinar-se (GOFFMAN, 1961, p. 328).

Numa sociedade aberta, quando um ator social tem que acei-


tar ordens que invadem sua individualidade, sua privacidade, li-
berdade e livre-arbítrio, ele tem certa autonomia para reagir e de-
fender-se, nem que seja só em termos de expressão facial. Ele tem
certa válvula de escape, pode externar mal-humor, reagir com
indelicadeza, mostrar má vontade, agir com fingimento, utilizar-
se de certa hipocrisia, tornar-se cínico, irônico, fazer caretas escon-
didas, sussurrar palavrões ditos em voz baixa. Nas instituições to-
tais, qualquer comportamento semelhante é passível de sanções e
represálias.
Este poder de pressão, coação, através da representação, é
dramatizado por meios eficazes para sua comunicação e terá dife-
rentes efeitos, dependendo do modo como é dramatizado. A for-
84 ma de poder mais direta atua, principalmente, como uma repre-
sentação para iludir a platéia e é, freqüentemente, uma forma de
comunicação.

3.2.3 COMUNIDADE DESVIANTE

Durante a mudança do século XX para o século XXI, houve


um período de transição (MORIN, 1996) e incertezas, quando sur-
giu a dialética entre o presente e o futuro, uma mudança de
paradigmas. Foi o fim das certezas até no campo científico, como
bem se refere Ilya Prigogine no título de um livro seu muito conhe-
cido nos meios científicos, “O fim das certezas” (PRIGOGINE, 1996):
“As pessoas necessitam de algo que as tranqüilize com relação às
incertezas da vida” (WEBER, 2000, p. 212).
Dentro desse contexto surgiu Trigueirinho re-anunciando a
era de Aquário num movimento tão diverso quanto a contracultura
da década de 1960, que tinha suas raízes na New Age.
Trigueirinho anunciava em suas profecias que a transição ao
milênio aquariano, de amor e fraternidade, seria plena de violên-
cia e riscos para os espiritualmente despreparados. Mas, por outro
lado, os que estivessem em harmonia com a operação resgate lide-
rada por ele ingressariam numa nova era de iluminação espiritual,
orientados por seres intraterrenos, superiores e avançados, emis-
sários de uma civilização extraterrestre, cujas espaçonaves eram
os ovnis, ajudariam a criar uma nova civilização:
Se dezenas de escatologistas mostraram estar erra-
dos, a resposta não é que um deles mostrará estar
certo um dia, mas que muitos deles revelaram-se in-
fluentes demais - destrutivos, construtivos,
inspiradores, consoladores - e que é tolice os histori-
adores rejeitá-los ou, pior ainda, não tomar conheci-
mento deles (WEBER, 2000, p. 248).

A confusão, a incerteza e a insegurança nas relações sociais,


segundo Gilberto Velho (1974), fez com que alguns atores sociais
se sentissem perdidos. Eles poderiam ter optado por um compor-
tamento de adaptação aos valores culturais, que no entender de
Merton (1968) chamava-se ‘retraimento’. Eram atores sociais que
se adaptavam mal aos objetivos culturais da sociedade, não com- 85
partilhavam e repudiavam a escala comum de valores, os objetivos
culturalmente preestabelecidos. Estavam à margem. ‘Outsider’ de
acordo com Becker (1977). Os seus comportamentos não se ajusta-
vam às normas sociais:
(...) os desviantes intra-grupais, desviantes sociais, os
membros de minorias e as pessoas de classe baixa
algumas vezes, provavelmente, se verão funcionando
como indivíduos estigmatizados, inseguros sobre a
recepção que os espera na interação face a face, e
profundamente envolvidos nas várias respostas a esta
situação (GOFFMAN, 1988, p. 157).

O termo estigma na Grécia descrevia os sinais no físico utili-


zados para identificar o escravo, o traidor ou o criminoso.
Contemporaneamente não existe mais a identificação física do es-
tigma, mas existem os estigmatizados. São aqueles que por algum
motivo não são aceitos em determinada comunidade, porque se
afastam das expectativas sociais, culturais, econômicas, intelectu-
ais, físicas, etc. Os sentimentos destes são de fracasso e derrota.
Márcia de Oliveira Estrázulas

Suas resignações sociais podem se manifestar como um mecanis-


mo de fuga e abandono da sociedade, convergindo para comuni-
dades desviantes (GOFFMAN, 1988), onde entram em contato com
seus semelhantes formando uma subcultura. “Teoricamente, uma
comunidade desviante poderia vir a desempenhar para a socieda-
de em geral algumas das funções desempenhadas por um desviante
intragrupal para o seu grupo” (GOFFMAN, 1988, p. 156).
Segundo Goffman (1988), os que se juntam numa
subcomunidade podem ser classificados como desviantes sociais e
sua vida em comum, em conjunto, pode ser denominada comuni-
dade desviante ou destoante. Atores sociais que negam a ordem
social e se engajam coletivamente numa subcomunidade formam
uma subcultura. Estes atores não possuem motivação de progredir
segundo os valores aprovados pela sociedade. Por exemplo, um
ator social solteiro que não deseja constituir família pode ingres-
sar numa subcomunidade que se rebela contra o sistema familiar:
“(...) optaram fugir da ordem social ligada ao status e adquiriram
os estigmas dos mais humildes (...) e subalternos em qualquer ocu-
86 pação casual de que se incumbam. Valorizam mais as relações pes-
soais do que as obrigações sociais” (TURNER, 1974, p. 138):
O estresse da vida industrial induz um número cada
vez maior de cidadãos a acalentar a idéia de um retor-
no ao ritmo lento da sociedade rural, sem o tráfego e
as corridas frenéticas entre a casa, o escritório, os
cursos e supermercado (DOMENICO DE MASI, 2006,
p. 66).

Os desviantes sociais, descreve Goffman (1988), orgulham-se


de sua rebeldia e evitam as divergências (Velho, 1974), restringin-
do-se à proteção autodefensiva de viverem isolados numa
subcomunidade. Ali não se sentem mais deslocados como na soci-
edade aberta. Sentem-se melhores, superiores, exemplos e mode-
los de vida para os atores sociais da sociedade aberta e angariam
simpatizantes e adeptos:
Os profetas e os artistas tendem a ser pessoas
liminares ou marginais, ‘fronteiriços’ que se esforçam
com veemente sinceridade por libertar-se dos clichês
ligados às incumbências da posição social e à repre-
sentação de papéis (TURNER, 1974, p. 155).

Turner (1974) diz que a ‘communitas’ era formada por um con-


junto de atores sociais concretos e idiossincrásicos que, apesar de
serem diferentes quanto aos seus físicos e personalidades, eram
iguais do ponto de vista da humanidade comum a todos. Busca-
vam uma transformação profunda, onde encontravam algo profun-
damente comunal e compartilhado: sua alma ou humanidade, sua
‘comum unidade’.

87
Márcia de Oliveira Estrázulas

88
4 MÉTODO DE GOFFMAN E SUA APLICAÇÃO NA INTERAÇÃO
SOCIAL DE “FIGUEIRA”

Num primeiro momento, descrevemos o método de pesquisa


criado por Goffman, para observar de forma participativa as
interações.
Em segundo lugar, descrevemos o procedimento teórico-
metodológico utilizado na pesquisa de campo em “Figueira” de
acordo com a metodologia Goffminiana.
Numa terceira instância, definimos as categorias de análise
dos ritos da instituição e dos ritos da interação extraídas do
referencial teórico.
Em quarto lugar, listamos o material empírico e o classifica-
mos em categorias. Por fim, fazemos algumas considerações finais.

4.1 PROCEDIMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS


89
Tomamos ciência da comunidade “Figueira” por intermédio
da cadeira de cinema da Faculdade de Comunicação Social da PUCRS
(FAMECOS). Trigueirinho é conhecido neste meio, porque foi um
diretor premiado na fase do Cinema Novo brasileiro, em 1960, com
o filme “Bahia de todos os Santos”.
É importante ressaltar que esta pesquisa sobre “Figueira” é
pioneira. Não existiam estudos, ensaios, artigos, textos acadêmi-
cos anteriores sobre esta organização. Desbravamos um novo ca-
minho de pesquisa e construímos um novo saber, um novo conhe-
cimento. O ineditismo tornou-a trabalhosa. Levamos seis anos para
realizá-la. Tivemos paradas que foram muito frutíferas, pois procu-
ramos pôr em prática o que o sociólogo Domenico de Masi chamou
de ócio criativo, isto é, utilizar o tempo de lazer, o tempo recreati-
vo para criar, produzir sem pressão, sem estresse. Esperamos que
todo esse trabalho sirva para amenizar posteriores estudos e
aprofundamentos sobre o mesmo tema. Talvez por ser uma pes-
quisa pioneira, ela sirva de referência.
Poderíamos optar pelo viés do ‘messianismo’ estudado pela
Márcia de Oliveira Estrázulas

Maria Queiroz, pelo recorte do ‘poder’ ou ‘vigilância e punição’,


estudado por Foucault, pelo viés do ‘líder carismático’ pesquisado
por Max Wever, pelo recorte de ‘comunidade’ e ‘liminaridade’ estu-
dado por Victor Turner, pelo viés do ‘desvio de divergência’,
pesquisado por Gilberto Velho, pelo recorete das organizações não-
governamentais (ongs), estudas pela Maria da Glória Gohn, pelo
viés da psicologia ou teologia, etc., mas optamos pelo
Interacionismo Simbólico e pela trilogia de Goffman que trata das
instituições totais, da representação do “eu” na vida cotidiana e do
estigma.
Procuramos, então, seguir a metodologia de pesquisa utiliza-
da por Goffman. WINKIN (1999) disse que Goffman, em sua tese de
doutorado na comunidade das Ilhas Shetland, construiu sua pró-
pria metodologia.
No trabalho de análise, a abordagem dramatúrgica é
um meio de ordenar as informações (...) Método que
possibilita descrever as técnicas de manipulação da
impressão, com suas várias inter-relações dentro do
90 ambiente, observando os possíveis problemas de iden-
tidade (BAZILLI et al., 1998, p. 126).

Goffman apresentou-se aos moradores das Ilhas Shetlands como


um estudante universitário que desejava obter informação direta
sobre a economia insular. Ele se colocou no próprio espaço da pes-
quisa de campo, ou seja, no espaço das interações dos moradores.
Ali pôde perceber o infinitamente pequeno, o evidente e o óbvio.
Procurou tornar-se tão aceitável quanto possível aos habitantes
das ilhas, não lhes colocando muitas questões e não os observan-
do com os olhos arregalados. Não utilizou questionários, grava-
dor, câmera de filmar. Tomava algumas notas escondidas durantes
alguns acontecimentos públicos.
Mais tarde, já conhecido e mais participante observador do
que observador participante, vai simplesmente reviver as interações
e relatá-las no seu diário elaborado à noite no silêncio do seu quar-
to. Goffman teve a oportunidade de observar as crises interacionais
que surgem, por vezes, no meio desses pequenos grupos de atores
sociais. Ele participava das atividades mais informais. Durante es-
tas atividades, observou as interações em forma de conversa.
A interação, que é objeto da atenção de Goffman, denomina-
se conversacional. Ele observou o desenrolar da comunicação na
atmosfera dos espaços cotidianos e afastou toda a preocupação
com as características macrossociológicas da comunidade. Elimi-
nou todo interesse pelos traços que distinguiam esta ilha de uma
outra e começou a examinar as interações sociais que se asseme-
lhavam às dos lugares mais impessoais da vida moderna. Rejeitou
o tempo e o espaço, anulou a tradição da história, evitando a inti-
midade e a amizade. Com isto, criou as condições do homem soci-
al puro, do homem interacional puro. Verificou as condutas mais
impessoais das Ilhas Shetland. O resto não lhe interessava. Isto jus-
tificava sua posição de que o estudo se desenrolou na comunidade
das Ilhas Shetland, mas não era um estudo da comunidade das Ilhas
Shetland.
Através de indícios simples nas interações, este pesquisador
captou a lógica do ato de encenação, o conjunto de estratégias
para exibir uma imagem social que valorizava o ator, que causava
uma boa impressão, que distinguia um do outro. Ele tinha especi-
al predileção pelas interações humanas no cotidiano, aspectos por 91
vezes despercebidos pelos leigos e que não eram considerados re-
levantes pela maioria dos sociólogos. No entanto, esses detalhes
modificaram o pensar sociológico no mundo.
“Goffman emprega procedimentos não-convencionais de pes-
quisa ou rigor analítico, possui uma linguagem acessível e traba-
lhada literariamente” (MALUFE, 1992, p. 16). Pelo menos sua des-
crição etnográfica sobre o hospital psiquiátrico de doentes men-
tais Santa Elizabeth colaborou para deflagrar a luta antimanicomial
no mundo:
Ele descreve e analisa práticas sociais de
encarceramento e degradação que repelem e mesmo
enojam muitos leitores, e que nos provocam senti-
mentos de vergonha, por vivermos em uma sociedade
na qual tais coisas aconteceram e continuam a aconte-
cer. Suas descrições detalhadas e completas tornam
impossível ignorar a existência continuada dessas ati-
vidades organizadas e socialmente aceitas, e têm,
ocasionalmente, instigado tentativas de reformá-las
(BECKER, 2004, p. 103).
Márcia de Oliveira Estrázulas

“Goffman realizou um duplo trabalho: o do etnógrafo e o do


sociólogo” (JOSEPH, 2000, p. 35). A fusão do sociólogo e do
etologista serviu como uma vantagem a mais para o sociólogo,
uma vez que a linguagem do corpo que via nas ruas estava
conectada com os contextos antropológicos de todas as interações
sociais. Tornava-se, assim, um critério de julgamento das formas
institucionais de controle social e dos esquemas explicativos da
socialização:
A proposta de Goffman é que se examine a organiza-
ção da experiência social, em termos de certos princí-
pios básicos que estejam simultaneamente presen-
tes, tanto na organização dos próprios eventos como
na organização do nosso envolvimento subjetivo ne-
les - princípios básicos aos quais nós recorremos sem-
pre que procuramos uma resposta para a pergunta: ‘O
que é isto que está acontecendo aqui?’ (MALUFE, 1992,
p. 21).

92 4.2 A PESQUISA DE CAMPO SEGUNDO O MÉTODO DE GOFFMAN

Este estudo das instituições totais e, particularmente, do


mundo dos atores sociais, denominados por nós como hóspedes e/
ou visitantes itinerantes da comunidade “Figueira”, tem como um
dos seus interesses principais avaliar, o mais possível, a versão so-
ciológica do “eu” (self) em interação nesta organização.
Ao contrário de Goffman, acentuamos o mundo do ator social
não-internado, dos hóspedes e/ou visitantes itinerantes que se
hospedam em “Figueira” e que, ao interagirem com os atores soci-
ais ou residentes permanentes – fazendo parte ou não da equipe
dirigente –, entram em conflito em função de diferentes personali-
dades, comportamentos, interesses, objetivos, hábitos, costumes,
usos, criando-se, assim, um clima constante de conflito, discórdia,
etc.
Apresentamo-nos como colaboradores e ficamos hospedados
em “Figueira” como alguém que simpatizava com sua cultura espi-
ritual, mas evitamos a intimidade e a amizade, até porque estas
condutas são condenadas. Colocamos-nos no próprio espaço das
interações, no próprio campo de pesquisa propriamente dito, para
fazer uma observação participante das interações, para verificar
como a integração faz a vida social acontecer. Procuramos nos inte-
grar à vida cotidiana sem chamar a atenção e acompanhar o óbvio,
o corriqueiro, o pequeno, o evidente, o cotidiano, etc. Não pude-
mos usar gravadores, filmadoras, nem fotografar. Estes instrumen-
tos são proibidos. Também não fizemos questionários, porque cha-
maria muita atenção e tiraria a espontaneidade, a naturalidade das
pessoas analisadas. Tomávamos, inicialmente, pequenas notas aqui
e acolá escondidas. Mais tarde, já mais acostumados com a rotina,
tomávamos notas à noite, no quarto, mesmo estando, quase sem-
pre, em quartos coletivos.
Hospedados e vivendo no meio deles, tivemos a oportunida-
de e o privilégio de presenciar comunicações, interações e conver-
sas cotidianas interessantes e bastante elucidativas da sua cultura
ímpar ou singular.
Queremos informar que fizemos uma observação participan-
te das interações que se passam na comunidade “Figueira”, por-
tanto não realizamos um estudo, propriamente dito, da comuni- 93
dade “Figueira.” Não pesquisamos as características
macrossociológicas da comunidade, não levamos em conta o tem-
po, a história, mas somente estudamos o seu espaço e traços ca-
racterísticos. Procuramos examinar as interações impessoais que
podem ocorrer numa comunidade por divergências nas relações
de poder. Portanto, coletamos informações da organização “Figuei-
ra” seguindo, passo a passo, o método criado por Goffman.
A comunidade “Figueira” localiza-se na área rural e urbana,
na cidade de Carmo da Cachoeira, Estado de Minas Gerais. Foram
seis observações participantes ao todo no campo de pesquisa. O
tempo de permanência em “Figueira” é determinado por eles. A
primeira foi nas férias acadêmicas de verão, porque, obviamente,
tínhamos mais tempo e porque nesta época afluem mais atores
sociais ao local. Realizou-se no primeiro semestre de 2001, em
janeiro, por dez dias consecutivos; a segunda, nas férias acadêmi-
cas de inverno, por termos mais tempo e por irem mais pessoas
para lá nesta época, portanto realizou-se no primeiro semestre de
2001, em julho, por quinze dias consecutivos; a terceira observa-
Márcia de Oliveira Estrázulas

ção foi no primeiro semestre de 2004, em julho, também nas férias


acadêmicas de inverno, por sete dias consecutivos; a quarta, no
primeiro semestre de 2005, nas férias acadêmicas de verão, em
fevereiro, por quinze dias consecutivos; a quinta foi no primeiro
semestre de 2006, em fevereiro, nas férias acadêmicas de verão,
por sete dias consecutivos. A sexta e última foi no primeiro semes-
tre de 2006, em julho, por cindo dias. Além disso, fizemos duas
pesquisas de campo na comunidade Nazaré, situada na cidade de
Nazaré Paulista, interior do Estado de São Paulo, as quais se reali-
zaram nas férias de verão do ano 2003, mais precisamente em
janeiro, por uma semana, retornando novamente em fevereiro por
quinze dias. Fizemos várias outras pesquisas de campo nos
subgrupos ou rede de serviço de Porto Alegre. Realizamos reuni-
ões com atores sociais do grupo e fizemos algumas observações
participativas nas audições públicas. Também pesquisamos a bibli-
ografia, exclusivamente utilizada para consulta interna, do grupo
de “Figueira” e das redes de serviço, pesquisamos a bibliografia
das obras publicadas pelo Trigueirinho, algumas indicações bibli-
94 ográficas apontadas pelo próprio Trigueirinho em seus escritos tais
como: ‘Revistas de Sinais’, ‘Jornais de Sinais’, ‘Boletim de Sinais’,
textos e artigos na internet, seu filme “Bahia de todos os Santos”,
seus VHS, CDS, fitas k-7, seus artigos críticos publicados na Revista
‘Anhembi’, editada pela USP, algumas críticas especializadas em ci-
nema sobre sua obra. Quase todas as fontes citadas estão anexa-
das. Consideramos necessária sua anexação para futuras consultas
de pesquisadores que não disponham de tempo ou condições fi-
nanceiras para ir até “Figueira”.
Conforme Becker (1977) aconselha, esclarecemos que a pes-
quisa foi feita como hóspedes e/ou visitantes. Este autor enfatiza
que a neutralidade ideal na pesquisa dificilmente é atingida, assim
se torna necessário dizer em qual ponto de vista nos situamos:
Na verdade seria possível fazer uma pesquisa que não
seja contaminada por simpatias pessoais e políticas?
Proponho argumentar que isso não é possível e, por-
tanto, que a questão não é se devemos ou não tomar
partido, já que inevitavelmente o faremos, mas sim de
que lado estamos nós (BECKER, 1977, p. 122-36).
A presente pesquisa foi realizada buscando compreender os
atores sociais denominados hóspedes e/ou visitantes itinerantes
que permanecem temporariamente em “Figueira” e que, ao
interagirem com os residentes ou internos, sejam auxiliares ou
coordenadores, entram em conflito em função da sujeição hierár-
quica. Isto gera um clima de tensão permanente, pois as discipli-
nas, normas, regras e tarefas impostas pelo grupo de “Figueira”,
liderado por Trigueirinho, interferem no “eu” (self) ou personalida-
de deles.
Goffman (1999) salienta que há um interesse sociológico nas
pesquisas sobre instituições totais, porque nestes espaços, as re-
gras e normas condicionam, obrigatória e compulsoriamente, como
os atores sociais devem pensar, comportar-se e interagir coletiva-
mente, em virtude de pertencerem ou não àquele grupo específi-
co.
Nossa hipótese é que “Figueira” possa ser classificada parcial-
mente como uma instituição total por possuir muitas característi-
cas semelhantes às das instituições totais. O mais importante é a
percepção de que essa sua forma de administrar pode condicionar 95
o “eu” (self), o comportamento, o pensamento e até os sentimentos
dos que estão ligados a ela direta ou indiretamente.

4.3 CATEGORIAS DE ANÁLISE DOS RITOS DA INSTITUIÇÃO


DIMENSIONADAS COMO CATEGORIAS ABSORVENTES

As categorias absorventes das instituições totais tendem a


absorver em si os sujeitos por processos de socialização, aparta-
ção, inclusão, identificação, etc. Estas categorias absorventes ba-
seiam-se em interações que anulam a intersubjetividade nas
interações.
(...) toda institución absorbe parte del tiempo y del
interés de sus miembros (...) la tendencia absorbente
o totalizadora está simbolizada por los obstáculos que
se oponen a la interacción social con el exterior y al
éxodo de los miembros (GOFFMAN, 1972, p. 17-18).
Márcia de Oliveira Estrázulas

As instituições totais podem ser classificadas em cinco cate-


gorias, segundo Goffman (1999):

1ª - As que têm por finalidade cuidar de pessoas incapazes e que não apresen-
tam uma ameaça à sociedade: casas para cegos, velhos, órfãos e indigentes;
2ª - As que têm por finalidade cuidar de pessoas incapazes que são de maneira
não-intencional uma ameaça à sociedade: sanatórios para hansenianos,
tuberculosos, hospitais psiquiátricos;
3ª - As que têm por finalidade isolar pessoas que intencionalmente são uma
ameaça à sociedade: cadeias, penitenciárias, campos de prisioneiros de guer-
ra, campos de concentração;
4ª - As que têm por finalidade fundamentalmente instrumentar, treinar para
uma tarefa específica ou trabalho: quartéis, navios, escolas internas, campos
de trabalho, colônias, kibutz;
5ª - Por último, as que têm por finalidade instruir religiosos. Servem, tam-
bém, de refúgio do mundo: abadias, mosteiros, conventos e outros claustros
como monastérios, comunidades alternativas, etc.

Quadro 3 – Categorias das Intituições Totais-Goffman

96 ANÁLISE

A comunidade “Figueira”, que serve de objeto para esta


pesquisade para sua operação;, pode ser enquadrada tanto na quar-
ta, quanto na quinta das categorias. Na quarta, pelo fato de se
organizar como uma fazenda com produção própria, que conta
com mão-de-obra voluntária e gratuita para sua operação, isto é,
semelhante ao que acontece em um kibutz. Enquadra-se de manei-
ra mais enfática na quinta, na medida em que nesta há um
monastério (um masculino e um feminino, um eremitério misto,
com a finalidade de instruir religiosos, também de servir de refú-
gio do mundo) sendo, ao mesmo tempo, uma comunidade alter-
nativa.
a.As instituições totais limitam suas próprias atividades, funções e tarefas
dentro de um mesmo espaço físico, e as normas de conduta garantem a
identidade do grupo.
b.As instituições totais são espaços de condicionamento de atores sociais,
onde regras e normas de interação social, seguidas de forma coletiva e com-
pulsória, modelam o comportamento interacional daqueles que fazem parte
do grupo.
c.Ao fazer-se parte das instituições totais, adere-se a novos padrões de interação.
Um novo processo de socialização é iniciado. O ator social assume o novo
código de comportamento, porque se adapta ao novo conceito interacional.
d.As instituições totais influem na conduta do ator social, exercem seu con-
trole sobre o comportamento, tornando-se um fator determinante no pensa-
mento do ator social.
e.As instituições totais são reacionárias, opressivas, estereotipadas,
ultraconservadoras. Através do controle podem esmagar o ator social ou
aniquilar sua individualidade, podendo vir a perder sua consciência reflexiva.
f.Existem instituições totais como abadias, mosteiros, conventos, claustros,
monastérios, comunidades religiosas que têm por finalidade instruir religio-
sos, servem de refúgio do mundo.
g.Nas instituições totais, há uma invasão ao “eu” (self) do residente, que é
desprogramado, despersonalizado de seu “eu” (self) anterior, reprogramado e
reeducado pelo grupo de residentes que o supervisionam, vigiam, fiscalizam
e controlam. 97
h.Nas instituições totais, há um processo de desconstrução do “eu” (self). Não
se permite ao ator social ter uma vida individual. Ele é despojado de seus
bens, de suas preferências, de seus gostos, de suas escolhas, de seu livre-
arbítrio, de sua liberdade, de sua identidade, de sua personalidade, de seus
direitos humanos, de sua cidadania, ocasionando uma involução no seu de-
senvolvimento educacional, profissional, emocional, de sua auto-estima,
autovalorização e amor próprio.

Quadro 4 - Categorias de análise dos ritos da instituição

4.3.1 ANOTAÇÕES DAS OBSERVAÇÕES DE CAMPO DOS RITOS DA INSTITUIÇÃO JÁ CATEGORIZADAS

1ª ANOTAÇÃO DE OBSERVAÇÃO PARTICIPATIVA

Observamos uma hóspede visitante, de nacionalidade Argen-


tina, afirmar que ficou em “Figueira” durante vinte dias. Tentou
sair antes do tempo acordado, mas não conseguia passagem de
retorno. Disse que não sentia mais seu corpo, que ele não respon-
dia mais ao seu comando de tão cansada que estava. Já não tinha
Márcia de Oliveira Estrázulas

mais reflexos, porque era obrigada a acordar, algumas vezes, às


quatro horas para ir trabalhar na horta e pomar com frio e chuva.
Ela afirmou, também, que dos vinte argentinos que a acompanha-
ram em “Figueira”, todos saíram antes do tempo acordado com o
setor de hospedagem, porque não agüentaram o regime de traba-
lho e horários estabelecidos.
Essa observação pode ser classificada, de acordo com a
taxonomia anteriormente apresentada na categoria “e”, a qual diz
o seguinte: “As instituições totais são reacionárias, opressivas, es-
tereotipadas, ultraconservadoras. Através do controle podem es-
magar o ator social ou aniquilar sua individualidade, podendo vir
a perder sua consciência reflexiva.”

ANÁLISE

Em “Figueira”, conforme foi observado, e em sintonia com as


categorias de Goffman, pode-se perceber uma rigidez em termos
de horários, normas e regras impostas, hierarquicamente, pelo gru-
98
po dirigente. Este grupo é composto pelos residentes auxiliares e
pelos residente-coordenadores, objetivando atender às necessida-
des de “Figueira”.

2ª ANOTAÇÃO DE OBSERVAÇÃO PARTICIPATIVA

Observamos no dia da vigília mensal – um dia dedicado ao


silêncio externo e interior, que todos eram obrigados a participar –
, Trigueirinho falar sobre a necessidade de lavar os pecados no
ritual de lava-pés. Também se observou uma visitante dizer que
estava entusiasmada, a qual falou ao Trigueirinho que desejava
lavar não só os seus pés, mas todo seu corpo e todos os seus peca-
dos. Pretendia fazer isto na cachoeira que existia na zona rural da
cidade de Carmo da Cachoeira. No mesmo dia, porém mais tarde,
uma das coordenadoras, ex-professora universitária do Rio de Ja-
neiro, disse-lhe que não era permitido, ir tomar banho na cachoei-
ra ou ir à cidade, e fazer atividades independentes do grupo.
Essa observação pode ser enquadrada na categoria “a” das
classificação apresentada, a qual diz o seguinte: “As instituições
totais limitam suas próprias atividades, funções e tarefas dentro
de um mesmo espaço físico e as normas de conduta garantem a
identidade do grupo”.

ANÁLISE

Além das regras estabelecidas pela coordenação, o próprio


grupo atua como um fator de condicionamento de comportamen-
to em “Figueira”. Isto se deve ao fato de que o interesse do grupo
está acima das individualidades, portanto o ator social encontra-se
subordinado ao condicionamento coletivo, do contrário teria con-
flitos passíveis de sanções que restringiriam sua independência,
liberdade e livre-arbítrio. Os supervisores de “Figueira” tentam di-
rigir as atividades dos atores sociais subalternos por meio da per-
suasão, manipulação, punição, coerção e ameaça. Demonstram o
que querem impor como padrão, e mostram, sutil e ameaçadora-
mente, o que farão caso isto não seja cumprido em tempo, quali-
dade e quantidade.
99
3ª ANOTAÇÃO DE OBSERVAÇÃO PARTICIPATIVA

Percebemos, em determinado momento, uma colaboradora


falar que já não afluíam mais pessoas, em “Figueira”, como antiga-
mente. A maioria desistia de retornar, porque não suportava tantas
normas, regras, horários, trabalhos pesados e alguns tratamentos
humilhantes por parte dos residentes.
Essa observação pode ser classificada na categoria “g”: “Nas
instituições totais, há uma invasão ao “eu” (self) do residente, que
é desprogramado, despersonalizado de seu “eu” (self) anterior,
reprogramado e reeducado pelo grupo de residentes que o super-
visionam, vigiam, fiscalizam e controlam.”

ANÁLISE

Há em “Figueira” a adoção de regras e normas que são mais


restritivas em relação às da sociedade aberta. Isto se expressa, como
Márcia de Oliveira Estrázulas

já foi destacado, em horários e tarefas que conflitam com o ritmo


da vida fora da comunidade. Além da rigidez das normas, observa-
se uma dinâmica, previamente estabelecida, que impede a
flexibilização da forma de realizar as coisas de forma criativa. Como
nas demais instituições totais, estas estratégias objetivam
condicionar os partícipes, submetendo-os à vontade coletiva.

4ª ANOTAÇÃO DE OBSERVAÇÃO PARTICIPATIVA

Observamos uma visitante dizer que achou a comida horrí-


vel, não tinha sal, açúcar, tempero. O caldo do feijão era aguado, o
arroz integral era grudado, o pão integral era duro, alguns legu-
mes não eram cozidos e servidos crus e com casca, o café da ma-
nhã era um caldo de polenta aguada, não serviam leite, manteiga,
iogurte, queijo, nada de origem animal. Serviam apenas no café da
manhã: chá verde, pão integral com uma pasta de soja salgada,
chamada missô. A dieta de “Figueira” é vegetariana, sem sal, sem
açúcar, sem temperos, sem óleo, sem carne, ovos, laticínios e café
100
preto. Não se pode beber bebida alcoólicas ou fumar. Como não
mastigavam, alguns tiveram, em função disto, seus dentes afrou-
xados. Os participantes faziam as refeições em silêncio, sentados
fora da mesa e com os pratos apoiados nas pernas.
Essa observação pode ser inserida na categoria “h”, que des-
creve o seguinte: “Nas instituições totais, há um processo de
desconstrução do “eu” (self). Não se permite ao ator social ter uma
vida individual. Ele é despojado de seus bens, de suas preferênci-
as, de seus gostos, de suas escolhas, de seu livre-arbítrio, de sua
liberdade, de sua identidade, de sua personalidade, de seus direi-
tos humanos, de sua cidadania, ocasionando uma involução no
seu desenvolvimento educacional, profissional, emocional, de sua
auto-estima, autovalorização e amor próprio.”

ANÁLISE

O ambiente nas refeições coletivas difere bastante do das nos-


sas refeições rotineiras. Em “Figueira”, as pessoas não interagem,
não se cumprimentam, não se olham, não conversam, não se co-
municam, ou seja, não confraternizam. Comem sentados em ban-
cos fora da mesa, apoiando os pratos nas pernas, sem a opção de
escolha do tipo de dieta e da forma de prepará-la.

5ª ANOTAÇÃO DE OBSERVAÇÃO PARTICIPATIVA

Uma outra visitante relatou que estava saindo da casa 1, (lo-


calizada na cidade de Carmo da Cachoeira, onde fica a secretaria
geral), em direção à casa 4 (prédio da central de atendência, os
dois prédios localizam-se na esquina do mesmo quarteirão), quan-
do deparou-se com uma visão chocante, segundo o ponto de vista
dela: viu um caminhão estilo pau-de-arara, com residentes vesti-
das com roupas rurais de trabalho, em silêncio, de cabeça baixa,
enfileiradas nos bancos laterais da carroceria do caminhão coberto
por lona. Assemelhavam-se, segundo ela, àqueles caminhões do
exército que carregam soldados para manobras militares. Estavam
rumando para o campo. Para a hóspede visitante, pareciam ir para
um ‘campo de concentração’ e de ‘lavagem cerebral’. Ela afirmou
101
que nunca esqueceu a imagem, a qual ficou gravada na sua retina.
Imagem que a fez se dar conta do que ocorreria em relação ao seu
futuro se ficasse ali como residente.
Enquadramos esta observação na categoria “g”, a qual diz o
seguinte: “Nas instituições totais, há uma invasão ao “eu” (self) do
residente, que é desprogramado, despersonalizado de seu “eu” (self)
anterior, reprogramado e reeducado pelo grupo de residentes que
o supervisionam, vigiam, fiscalizam e controlam.”

ANÁLISE

Os atores sociais de “Figueira”, em quase todos os momentos


se movimentam em grupos. Eles são coordenados por uma equipe
supervisora, que não se preocupa somente em auxiliar ou orientar,
mas controlar, vigiar, intimidar para a realização de tarefas com-
pulsórias. Este comportamento de passividade pode ser observa-
do não só nas atividades laborais, como em muitos outros mo-
Márcia de Oliveira Estrázulas

mentos do cotidiano.

6ª ANOTAÇÃO DE OBSERVAÇÃO PARTICIPATIVA

Percebemos que, em “Figueira”, os internos e os visitantes


não vêem televisão, não assistem a peças de teatro, espetáculos
ou shows, não lêem jornais ou revistas, não freqüentam uma esco-
la formal, não convivem com parentes ou amigos. Devem observar
o silêncio, portanto não costumam conversar entre si ou comuni-
car-se com o grupo de semi-internos e colaboradores externos. Não
ganham salário, por isso não podem comprar roupas ou objetos
de higiene pessoal. Ganham-nos por doações sem opção de esco-
lha. Não têm férias, não têm acesso à comunicação por fax, telefo-
ne celular ou internet (esses aparelhos são restritos à secretaria e
não podem ser usados particularmente). Não têm feriados, mas
têm folga uma vez por semana. Apesar de terem um único dia de
folga, mesmo assim são convocados neste dia para fazer plantões.
Acrescido a isto, este dia é destinado ao estudo obrigatório, qual
102
seja, participar das palestras de Trigueirinho pela manhã e outra à
tarde à cargo do setor de cura.
Essa observação pode ser classificada na categoria “c”, a qual
diz o seguinte: “Ao fazer-se parte das instituições totais, adere-se a
novos padrões de interação. Um novo processo de socialização é
iniciado. O ator social assume o novo código de comportamento,
porque se adapta ao novo conceito interacional”.

ANÁLISE

O interno de ‘Figueira’ parece tornar-se mais vulnerável e frá-


gil por não ter interação com a sociedade aberta. Fica solitário e
isolado do que acontece no mundo, sem apoio da família e paren-
tes, sem contato com seu bairro, vizinhos, ambiente de trabalho,
amigos, etc.
Esta forma de vida, marcada pela reclusão, sintetiza a total
ausência de cidadania. Os internos não possuem relações traba-
lhistas e, assim sendo, não podem fazer greve, não têm seguro-
desemprego, não recebem hora extra ou aposentadoria. Também
não possuem propriedade privada, dormem em quartos comunitá-
rios e são celibatários. Mais do que isso, algumas práticas, sob o
ponto de vista dos direitos humanos, são desconsideradas.

7ª ANOTAÇÃO DE OBSERVAÇÃO PARTICIPATIVA

Uma visitante informou-nos que permaneceu trinta dias em


“Figueira” e que quase enlouqueceu sem poder falar, sem dialogar,
sem sexo. Disse que quando retornou à sua casa, quase não conse-
guia se comunicar com sua própria família.
Podemos classificar esta observação na categoria “d”, que afir-
ma o seguinte: “As instituições totais influem na conduta do ator
social. Exercem seu controle sobre o comportamento, tornando-se
um fator determinante no pensamento do ator social”.

ANÁLISE
103
A maior regra em “Figueira” é fazer silêncio interno e externo.
A interação entre membros é totalmente desestimulada. Assim sen-
do o próprio diálogo – como forma de compreensão das coisas do
mundo – é terminantemente reprimido. Outra forma de interação
fundamental para o crescimento humano, o sexo, é proibido e
mesmo o afeto não é incentivado. Enfim, a comunicação entre os
membros não é estimulada.

8ª ANOTAÇÃO DE OBSERVAÇÃO PARTICIPATIVA

Também observamos uma outra visitante dizer que tentou


várias vezes morar em “Figueira”, mas não conseguiu se adaptar.
Afirmou não estar preparada, psicologicamente, para tanto, pois
alguns mudam de nome, são rebatizados. Também não comemo-
ram datas históricas, feriados cristãos, aniversários, etc.
Esta observação pode ser classificada na categoria “f ”, a qual
diz o seguinte: “Existem instituições totais como abadias, mostei-
ros, conventos, claustros, monastérios, comunidades religiosas que
Márcia de Oliveira Estrázulas

têm por finalidade instruir religiosos, servem de refúgio do mun-


do”.

ANÁLISE

“Figueira” exige um comprometimento de seus simpatizan-


tes ou aspirantes maior que o normal nas instituições comuns,
restringindo-lhes a interação social existente internamente e com
o restante da sociedade aberta.
Como prova da renúncia a sua personalidade, identidade so-
cial, eles são rebatizados, recebendo a partir de então um novo
nome. Outras marcas da vida social são negligenciadas, pois não
comemoram datas históricas, feriados cristãos, aniversários, etc.

9ª ANOTAÇÃO DE OBSERVAÇÃO PARTICIPATIVA

Em relação a esta colaboradora, acima referida,observou-se


104 que ela era muito lenta ao movimentar-se, falava baixo e muito
pouco. Percebia-se no seu comportamento e no dos demais, uma
maneira singular de ser. Muitas vezes, no ônibus que se viajava de
São Paulo a Carmo da Cachoeira, onde os passageiros em geral não
se conheciam, que os atores sociais que iam para “Figueira” se
reconheciam entre si, apenas pela forma de se comportar, pelas
atitudes, pelo modo de falar, andar, vestir, etc.
Essa observação pode ser classificada na categoria “c”, a qual
diz o seguinte: “Ao fazer-se parte das instituições totais, adere-se a
novos padrões de interação. Um novo processo de socialização é
iniciado. O ator social assume o novo código de comportamento,
porque se adapta ao novo conceito interacional”.

ANÁLISE

A finalidade de “Figueira”, juntamente com a instrução espiri-


tual, é fazer com que o simpatizante ou aspirante à vida espiritual
desfaça-se das suas origens culturais e sociais e assuma, total e
integralmente, a cultura do grupo. Isto transparece na forma de
pensar, falar, agir, trajar dos simpatizantes da ideologia.

10ª ANOTAÇÃO DE OBSERVAÇÃO PARTICIPATIVA

Observamos um residente, que há seis anos vivia na primeira


comunidade fundada por Trigueirinho, “Nazaré”, afirmar ter sido
monge zen-budista. Morou por um tempo num mosteiro zen com
um sistema muito rigoroso. Disse que esteve, por uns dias, em
“Figueira”, e que o colocaram para limpar calhas, telhados, colher
goiabas. Essas tarefas não o incomodaram. Achou a comida horrí-
vel e gostou das palestras, ou melhor, partilhas de Trigueirinho.
Essa observação pode ser classificada na categoria “f ”, a qual
diz: “Existem instituições totais como abadias, mosteiros, conven-
tos, claustros, monastérios, comunidades religiosas que têm por
finalidade instruir religiosos. Servem de refúgio do mundo”:

ANÁLISE
105
A informalidade de regras que existiam no início de sua fun-
dação, tal como em “Nazaré”, foi se alterando com o aumento do
grupo e com a criação de um monastério. Com o tempo e aumento
de números de simpatizantes, “Figueira” tornou-se uma institui-
ção mais estruturada que “Nazaré”.
Assim “Figueira” não representa um lugar de privações para
as pessoas que já viveram em instituições semelhantes. A adapta-
ção a este ambiente, como de “Figueira”, é mais fácil para as que já
tiveram outras experiências em outras comunidades fechadas ou,
então, apresentam predisposição para este modo de vida.

11ª ANOTAÇÃO DE OBSERVAÇÃO PARTICIPATIVA

Através de pesquisa de campo realizada, no grupo de “Figuei-


ra”, em Porto Alegre, uma colaboradora itinerante disse-nos que a
primeira e última vez que foi à “Figueira”, colocaram-na para pe-
gar lenha empilhada no chão e depois colocá-la num caminhão.
Isso durante uma jornada de dez dias consecutivos, por um perío-
Márcia de Oliveira Estrázulas

do de oito horas por dia. Ela disse que não se sentiu humilhada
por ser uma tarefa menor, mas ficou preocupada pelas conseqüên-
cias físicas, uma vez que não estava condicionada àquele tipo de
atividade. Não era má vontade sua, mas apenas precaução no sen-
tido de não provocar dores musculares, o que poderia ser uma
conseqüência natural. Então comunicou à coordenação, do setor
responsável pela tarefa, que pretendia ir embora (para tanto era
necessário autorização, não se podia simplesmente sair), tendo em
conta que não era bem visto solicitar troca de tarefa, fato este que
poderia parecer um ato de rebeldia. Surpreendentemente, eles re-
cusaram sua saída antecipada e a colocaram em outras tarefas do-
mésticas, tais como limpar latrinas. Em poucos dias, trocaram-na
de vários setores. Ela cumpriu todas as suas outras obrigações, e
achou que tudo havia se normalizado e que o incidente da troca
havia sido esquecido. Porém, este fato foi usado como argumento
posterior para negar-lhe novos períodos de hospedagem, alegan-
do que a mesma não se adaptava ao sistema.
Essa observação pode ser classificada na categoria “b”, a qual
106 diz o seguinte: “As instituições totais são espaços de condiciona-
mento de atores sociais, onde normas e regras de interação social,
seguidas de forma coletiva e compulsória, modelam o comporta-
mento interacional daqueles que fazem parte do grupo”.

ANÁLISE

Os atores sociais ligados ao grupo são privados de iniciativa e


criatividade em “Figueira”. Estão submetidos às regras impostas
que regulam sua função, seu comportamento, sua
operacionalização, sua forma de realização. Já estão especificados
o modo operativo único, ao qual têm que se conformar, e a ordem
do seu desenvolvimento. Tudo está previsto com bastante exati-
dão. Não há espaço para iniciativa pessoal, criatividade ou o livre-
arbítrio.
Outro aspecto, enfatizado por esta informante, é a imposição
de tarefas físicas pesadas, bem como de tarefas consideradas hu-
milhantes como, por exemplo, limpar as latrinas de uso coletivo.
Com a imposição destas tarefas, procura-se cultivar a humildade e
a subserviência.

12ª ANOTAÇÃO DE OBSERVAÇÃO PARTICIPATIVA

Observamos uma visitante dizer que estranhou o ambiente


afetivo frio e resolveu, numa certa manhã, não tomar o café. Ficou
no quarto choramingando. Surpreendeu-se com a entrada,
intempestiva, da coordenadora no seu quarto, dizendo que ali não
havia espaço para emocionalismos, nem para manifestações de
caráter individualizado. Todas as atividades eram obrigatórias e
feitas em grupo. A visitante achou aquela atitude, da coordenado-
ra, uma invasão à sua privacidade, ao seu livre-arbítrio, à sua liber-
dade de escolha e uma falta de sensibilidade em relação aos seus
sentimentos.
Essa observação pode ser classificada na categoria “h”, a qual
diz o seguinte: “Nas instituições totais, há um processo de
desconstrução do “eu” (self). Não se permite ao ator social ter uma
vida individual. Ele é despojado de seus bens, de suas preferênci-
as, de seus gostos, de suas escolhas, de seu livre-arbítrio, de sua
107
liberdade, de sua identidade, de sua personalidade, de seus direi-
tos humanos, de sua cidadania, ocasionando uma involução no
seu desenvolvimento educacional, profissional, emocional, de sua
auto-estima, autovalorização e amor próprio.”

ANÁLISE

Na sociedade aberta, os atores sociais têm o direito de esco-


lher o que querem tomar no café da manhã, ou até liberdade de
não tomá-lo. Em “Figueira”, segundo nossas observações, até esta
simples escolha pessoal é problematizada. Ou seja, até nas mais
rotineiras atividades, as preferências e gostos pessoais devem ser
sublimados em prol do coletivo. Teoricamente, tal procedimento é
compreensível, mas para tanto é necessário um exercício de entre-
ga, de aprendizado, e de prática cotidiana, por um largo período
de tempo.
Márcia de Oliveira Estrázulas

13ª ANOTAÇÃO DE OBSERVAÇÃO PARTICIPATIVA

Observamos Trigueirinho dizer, em várias partilhas, que é


muito simples trabalhar em grupo. É fácil se há desapego do con-
flito. Os conflitos são diluídos em função do serviço, que o grupo
presta, de transmutação dos conflitos planetários.
A forma de escrever, em “Figueira”, é grupal. O grupo espiri-
tual pode suportar mais energia que um indivíduo. O grupo espiri-
tual não é horizontal. O apego dentro do grupo espiritual pode
impedir o indivíduo de contatar uma energia superior impessoal,
por isso há que se viver, sem conflito, uns com os outros. Isto é
consciência grupal. O cumprimento das tarefas, num grupo espiri-
tual, precisa de um indivíduo que coopere sem crítica, sem resis-
tência, sem rejeição. Para o grupo funcionar, é preciso que todos
estejam afinados com o propósito do grupo. Ninguém deveria es-
tar num grupo coagido. Deve estar por livre vontade, e cumprir
assim integralmente a proposta.
Para que um grupo como “Figueira” realize suas tarefas é pre-
108 ciso evitar contatos físicos, alimentação carnívora, contato com
pessoas que não estejam afinadas com a purificação do grupo. Deve-
se preservar o grupo da curiosidade e atenção dos outros, porque
a atitude, das pessoas do grupo, torna-se estranha para os que
vêm de fora visitá-lo. A maior chave para essa preservação é o si-
lêncio. Há um esforço para que uma nova consciência, espiritual
futura, vá se implantando na Terra. Consciência esta que inspirou a
construção de “Figueira”.
Leva muitos anos para trabalhar e viver grupalmente. É preci-
so não ter senso de posse individuais, sem necessidades, ser flexí-
vel, ajustável. “Figueira” é para ser um laboratório para todo esse
processo de transcender o livre-arbítrio. Livre-arbítrio é uma carac-
terística puramente mental e racional. Com a escolha, a mente vai
aprendendo a discernir. Só depois de bem desenvolvida a mente é
que ela vai abrir mão do livre-arbítrio, para ser regida por uma
vontade superior, impessoal e transcendental.
Essa observação pode ser classificada na categoria “h”, a qual
diz o seguinte: “Nas instituições totais, há um processo de
desconstrução do “eu” (self). Não se permite ao ator social ter uma
vida individual. Ele é despojado de seus bens, de suas preferênci-
as, de seus gostos, de suas escolhas, de seu livre-arbítrio, de sua
liberdade, de sua identidade, de sua personalidade, de seus direi-
tos humanos, de sua cidadania, ocasionando uma involução no
seu desenvolvimento educacional, profissional, emocional, de sua
auto-estima, autovalorização e amor próprio.”

ANÁLISE

Conflitos em função de divergências fazem parte da natureza


humana, porém em “Figueira”, esta natureza humana é lapidada
diariamente com o intuito de condicionar o caráter individual,
objetivando homogeneizá-lo. Eles pretendem uma mutação gené-
tica; a criação de uma nova raça sem livre-arbítrio, segundo profe-
tiza Trigueirinho na “Operação resgate”.

14ª ANOTAÇÃO DE OBSERVAÇÃO PARTICIPATIVA


109
Observamos uma hóspede visitante dizer que, em seu horá-
rio livre das tarefas de “Figueira”, foi para a biblioteca. Os residen-
tes não lêem livros que não sejam espirituais, os quais já foram,
previamente, selecionados por Trigueirinho na montagem da bi-
blioteca, que se localiza na área urbana, na casa 1, onde fica a
secretaria e a recepção. Lá havia um tapete com almofadas para
que os hóspedes se deitassem e lessem relaxadamente. Também
havia um outro hóspede visitante, do sexo oposto, heterossexual,
consultando livros, lendo, etc. Esta hóspede disse que se deitou de
bruços, no tapete, ficando com as nádegas voltadas para cima. Era
uma posição sensual, embora sua roupa fosse discreta. Ela estava
ao mesmo tempo recostada nas almofadas. Para sua surpresa, per-
cebeu que o coordenador (homossexual) da casa 1 entrou e perma-
neceu lá até ela sair. Ele parecia ter o intuito de vigiá-los, no senti-
do de não permitir uma aproximação de caráter, aos olhos dele,
sexual.
Essa observação pode ser classificada na categoria “g”: “Nas
instituições totais, há uma invasão ao “eu” (self) do residente, que
é desprogramado, despersonalizado de seu “eu” (self) anterior,
Márcia de Oliveira Estrázulas

reprogramado e reeducado pelo grupo de residentes que o super-


visionam, vigiam, fiscalizam e controlam.”

ANÁLISE

Em relação à biblioteca, só podem ser encontrados livros es-


pirituais esotéricos previamente selecionados por Trigueirinho,
evitando assim a pluralidade de pensamento e opiniões.
Na atmosfera de “Figueira”, há certa repressão do desejo se-
xual. Neste sentido, há um comportamento que busca homogeneizar
os sexos, evitando qualquer manifestação que possa despertar o
desejo e o erotismo.

15ª ANOTAÇÃO DE OBSERVAÇÃO PARTICIPATIVA

Um dentista, homossexual, que sentou ao nosso lado no ôni-


bus, de volta de Carmo de Cachoeira para São Paulo, contou-nos
110 que era constantemente vigiado no quarto, nas tarefas, nas vigíli-
as, nas partilhas, nas horas livres, nas refeições. Ele percebeu que
havia uma repressão, de forma a evitar contatos, de ordem afetiva
ou sexual.
Essa observação pode enquadrada na categoria “g”: “Nas ins-
tituições totais, há uma invasão ao “eu” (self) do residente, que é
desprogramado, despersonalizado de seu “eu” (self) anterior,
reprogramado e reeducado pelo grupo de residentes que o super-
visionam, vigiam, fiscalizam e controlam.”

ANÁLISE

Alguns sentimentos mais íntimos dos colaboradores, visitan-


tes ou itinerantes são incompreensíveis ao grupo de residentes.
Parece haver um conflito permanente entre os desejos, hábitos,
necessidades, características e comportamentos dos colaborado-
res visitantes ou itinerantes e os interesses dos auxiliares residen-
tes e coordenadores residentes de “Figueira” que reprimem as
manifestações emocionais dos colaboradores visitantes ou
itinerantes.
Parece haver um controle, inclusive, dos hábitos higiênicos
dos residentes. Dentro dos sanitários, há regras escritas sobre não
dar descarga à noite, para não fazer barulho; juntar os fios de cabe-
los que caem no ralo do box do banheiro; passar rodo no chão do
box do banheiro, após utilizar o chuveiro; não colocar absorvente
ou papel no vaso sanitário. Parece que nem mesmo na hora de
satisfazer suas necessidades biológicas, o residente de tem total
privacidade, livre-arbítrio ou liberdade. Não tem privacidade, não
fica a sós relaxadamente.

16º DEPOIMENTO DE UM MÉDICO PSIQUIATRA QUE TINHA UMA


PARENTE QUE FOI AMIGA ÍNTIMA DE TRIGUEIRINHO

“Minha tia o conheceu na Associação Palas Athena em São


Paulo. Ele era contra o homossexualismo e até mesmo criticava
essa opção sexual”.
Esse depoimento pode ser classificado na categoria “h”, a qual
diz o seguinte: “Nas instituições totais, há um processo de
111
desconstrução do “eu” (self). Não se permite ao ator social ter uma
vida individual. Ele é despojado de seus bens, de suas preferênci-
as, de seus gostos, de suas escolhas, de seu livre-arbítrio, de sua
liberdade, de sua identidade, de sua personalidade, de seus direi-
tos humanos, de sua cidadania, ocasionando uma involução no
seu desenvolvimento educacional, profissional, emocional, de sua
auto-estima, autovalorização e amor próprio.”

ANÁLISE

Os residentes de “Figueira” demonstram atitudes e compor-


tamentos dominadores, enquanto nos visitantes há um compo-
nente de submissão ao se sujeitarem a algumas condutas impos-
tas pelos residentes. Estes, por sua vez, também sofrem humilha-
ções impostas pelos coordenadores que se sujeitam a Trigueirinho.
As humilhações representam, simbolicamente, um ritual de des-
truição do “eu” (self), uma purificação preparatória à entrada em
“Figueira”.
Márcia de Oliveira Estrázulas

17ª ANOTAÇÃO DE OBSERVAÇÃO PARTICIPATIVA

Ouvimos Trigueirinho aconselhar, em uma de suas partilhas,


que os homossexuais, que visitam “Figueira”, deveriam deixar de
ter relações sexuais e aderir ao celibato. Os internos são celibatári-
os. Todos ficam em quartos coletivos com pessoas do mesmo sexo,
o que reprime intimidades e atividades sexuais entre atores sociais
ou solitárias, pois não há privacidade.
Essa observação pode ser classificada na categoria “h”, a qual
diz o seguinte: “Nas instituições totais, há um processo de
desconstrução do “eu” (self). Não se permite ao ator social ter uma
vida individual. Ele é despojado de seus bens, de suas preferênci-
as, de seus gostos, de suas escolhas, de seu livre-arbítrio, de sua
liberdade, de sua identidade, de sua personalidade, de seus direi-
tos humanos, de sua cidadania, ocasionando uma involução no
seu desenvolvimento educacional, profissional, emocional, de sua
auto-estima, autovalorização e amor próprio.”
112
ANÁLISE

Dentro de um único e mesmo grupo espiritual, como o de


“Figueira”, o residente perde o poder de pensar com vigor,
criatividade e originalidade. Ele é forçado a configurar-se a um
âmbito estreito, privado dos resultados estimulantes da vida no
mundo. Não pode ter desejo, nem vontade de sair dos limites im-
postos pelo seu próprio grupo de atores sociais, avaliar outras idéias
e experimentar outros ideais. Também não pode beneficiar-se de
outros insights. Há certa aceitação, sem crítica, das idéias e ideais
do grupo. Suas idéias ficam congeladas em dogmas, e o grupo
espiritual começa a gerar certo fanatismo e sectarismo.

18ª OBSERVAÇÃO PARTICIPATIVA

Observamos que as mulheres, residentes de “Figueira”, não


pintam as unhas, não usam vestidos, saias, bermudas, shorts,
miniblusas ou calças de cintura baixa. Não depilam as axilas ou
pernas, não se maquiam, não usam bijuterias, não se perfumam,
não arrumam o cabelo, o qual não têm brilho pela ausência de
cosméticos. Usam o cabelo curtíssimo, quase zero.
Essa observação pode ser classificada na categoria “c”, a qual
diz o seguinte: “Ao fazer-se parte das instituições totais, adere-se a
novos padrões de interação. Um novo processo de socialização é
iniciado. O ator social assume o novo código de comportamento,
porque se adapta ao novo conceito interacional.”

ANÁLISE

Os residentes e os colaboradores, itinerantes, de “Figueira”


não possuem status, propriedades, roupa indicativa de classe soci-
al ou papel social. Não há nada que possa distingui-los uns dos
outros.
Assim, há um nivelamento, homogeneidade, uniformidade e
igualdade. O que torna seus comportamentos submissos, subser-
vientes. Devem obedecer e acatar a ordens e funções arbitrárias.
Perdem seu “eu”, seu self, sua identidade, sua personalidade.
Morrem para a vida material e deverão renascer, para o espírito,
113
com novos valores.

4.4 CATEGORIAS SOBRE OS RITOS DE INTERAÇÃO DIMENSIONADAS


COMO CATEGORIAS CONVERGENTES

As categorias definidas na representação dos atores sociais


são convergentes às categorias absorventes das instituições to-
tais. As categorias da interação face a face, dentro do projeto de
pesquisa, convergem em torno das categorias da instituição. As
categorias convergentes das interações face a face são resultantes
dos processos de interação e constituem fatos de socialização, por-
que tendem a aproximações, a produzir sentidos.
A seguir fizemos um quadro de categorias de análises, funda-
mentadas no livro “A Representação do Eu na Vida Cotidiana” tais
como: manipulação da impressão; representação (fachada pessoal,
realização dramática, idealização, manutenção do controle expres-
sivo, mistificação, atributos e práticas defensivas); regiões e com-
portamento regional/estabelecimentos sociais; região frontal/região
Márcia de Oliveira Estrázulas

de fachada; região posterior/fundo/bastidores; equipe; platéia/ob-


servador; segredos (indevassáveis, estratégicos, íntimos); papéis
discrepantes (delator, farol/cúmplice do ator, agente, intermediá-
rio/mediador); princípio norteador (ruptura na interação social, rup-
tura na estrutura social, ruptura na personalidade do indivíduo).
As categorias advindas das interações dos atores sociais tive-
ram por base a interpretação teatral, uma representação, um de-
sempenho de um papel e/ou simulação, de caráter dramatúrgico.

1. Manipulação da impressão: controle do ator social sobre as impressões que


os outros possam ter dele.
2. Representação: atividade, exercendo influência, de um ator social nos obser-
vadores.
2.1. Fachada pessoal: cenário em torno do ator social.
2.2. Realização dramática: exagero na representação, objetivando impressio-
nar a platéia.
2.3. Idealização: tentar parecer melhor do que se é.
2.4. Manutenção do controle expressivo: controle dos gestos involuntários que
possam qualificar a representação como falsa, atos falhos, gafes.
114 2.5. Mistificação: proteger o ator, criando distância social e uma ‘aura ‘ de
mistério.
2.6. Atributos e práticas defensivas: a) fidelidade dramatúrgica, não revelar
segredos da equipe; b) disciplina dramatúrgica, autocontrole, domínio da voz
e rosto, distância emocional; c) circunspeção dramatúrgica, prudência na esco-
lha da platéia, na escolha de membros da equipe social de atores.
3. Regiões e comportamento regional/estabelecimentos sociais: lugar ou espa-
ço onde se realizam atividades de forma regular.
3.1. Região frontal/região de fachada: onde ocorre a representação do ator/
equipe social de atores.
3.2. Região posterior/de fundo/bastidores: local que o público não tem acesso,
e o ator pode ser informal e relaxar, sem representar um papel.
4. Equipe: qualquer grupo de atores sociais que contracenam uma rotina
particular.
5. Platéia/observador: grupo de observadores da atuação dos atores sociais.
6. Segredos: informações destrutivas.
6.1. Indevassáveis: fatos incompatíveis com a imagem que quer passar.
6.2. Estratégicos: revelado em hora apropriada de forma a surpreender a pla-
téia.
6.3. Íntimos: marca ou estigma ou carimbo ou rótulo que o identifica como
ator diferente da platéia.
7. Papéis discrepantes: atores sociais com informações destruidoras e compro-
metedoras ao espetáculo.
7.1. Delator: finge ser membro, tem acesso aos bastidores e a informações
negativas, podendo revelar a trama do espetáculo à platéia.
7.2. Farol/cúmplice do ator: atores sociais que fingem ser platéia, mas fazem
parte realmente da equipe de atores sociais.
7.3. Agente: crítico que qualifica o nível da representação.
7.4. Intermediário/mediador: um ator social que finge ser fiel à platéia e, ao
mesmo tempo, fiel à equipe de atores sociais, mas só é fiel aos seus interesses
próprios.
8. Princípio norteador: acordo tácito, um consenso entre atores e platéia.
8.1. Ruptura na interação social: embaraço nas interações das equipes sociais,
criando um clima insustentável.
8.2. Ruptura na estrutura social: comprometimento na representação social
do ator que compromete toda equipe social a qual pertence.
8.3. Ruptura na personalidade do indivíduo: descrédito na sua personalidade.

Quadro 5 - Categorias de análise dos ritos da interação dimensionadas como categorias


convergentes

4.4.1 ROTEIRO DRAMÁTICO DE UMA INSTITUIÇÃO TOTAL 115

Dada a escolha do nosso referencial teórico, bem como o tipo


de observação que realizamos na nossa pesquisa de campo, estamos
preferindo – neste sentido, seguir mais adequadamente, o ponto
de vista de Goffman – chamar as anotações da nossa observação
de campo de “cenas de interação”.

1ª CENA DE INTERAÇÃO:

Quando vão assistir às palestras de Trigueirinho, os residen-


tes adotam uma circunspeção dramatúrgica: fecham os olhos en-
quanto ele fala, demonstrando que suas palavras têm prioridade
sobre a imagem, ou seja, têm poder; ficam de cabeça abaixada por
todo o tempo da sua palestra em sinal de humildade; não conver-
sam entre si ou com os visitantes itinerantes, oferecem um modelo
de conduta a ser seguido, de silêncio, de circunspeção, ou melhor,
de introspecção. Eles poderiam ser considerados co-atores, coad-
juvantes, coniventes ou comparsas sociais.
Márcia de Oliveira Estrázulas

Essa observação pode ser classificada nas seguintes categori-


as: “1.”: “Manipulação da impressão: controle do ator social sobre
as impressões que os outros possam ter dele.”; “2.5.”: “Mistifica-
ção: proteger o ator criando distância social e uma aura de misté-
rio.”; “2.1.”: “Fachada pessoal: cenário em torno do ator social.”;
Outro enquadramento possível é na categoria “2.6.”: “Atributos e
práticas defensivas: a) fidelidade dramatúrgica, não revelar segre-
dos da equipe; b) disciplina dramatúrgica, autocontrole, domínio
da voz e rosto, distância emocional; c) circunspeção dramatúrgica,
prudência na escolha da platéia, na escolha de membros da equipe
social de atores.”

ANÁLISE

Com o intuito de transformar o mundo com a operação resga-


te, Trigueirinho e o grupo de atores sociais de “Figueira” precisam
contar com o esforço de seus simpatizantes, por isso desempe-
nham um papel ativo. Como são responsáveis pelo sucesso, são
116
co-atores sociais, coadjuvantes.

2ª CENA DE INTERAÇÃO:

Em “Figueira”, observamos que há atitudes diferentes dos


atores sociais nos bastidores e na região de fachada. Uma diferen-
ça comportamental na região dos bastidores. De um lado, há a
situação que é ensaiada e por outro, a que é encenada. A entrada
para as regiões mais íntimas é proibida.
Essa observação pode ser enquadrada na categoria “3.1.”:
“Região frontal/região de fachada: onde ocorre a representação do
ator/equipe social de atores. Também diz respeito à categoria “3.2.”:
“Região posterior/de fundo/bastidores: local que o público não tem
acesso, e o ator pode ser informal e relaxar, sem representar um
papel”.
ANÁLISE

A finalidade, provavelmente, é impedir que os expectadores


vejam os atores sociais em atitudes espontâneas e compartilhem
uma intimidade que “Figueira” não deseja estimular. Há um con-
trole, um domínio dos bastidores, além do domínio, óbvio, da re-
gião de fachada.

3ª CENA DE INTERAÇÃO:

Ainda observamos, nas regiões de bastidores, que entre os


atores sociais residentes de “Figueira” prevalece a familiaridade e
a solidariedade.
A categoria “6” descreve essa situação: “Segredos - informa-
ções destrutivas.” A “6.1.” explica esse comportamento:
“Indevassáveis - fatos incompatíveis com a imagem que quer pas-
sar”. A observação também pode ser classificada na categoria “6.3.”,
a qual diz o seguinte: “Íntimos - marca ou estigma ou carimbo ou
117
rótulo que o identifica como ator social diferente da platéia.”

ANÁLISE

Os residentes de “Figueira” guardam segredos, que são parti-


lhados de comum acordo entre si, que poderiam enfraquecer, des-
valorizar e menosprezar sua representação. Estes segredos são o
suporte das crenças que mantêm a existência e o funcionamento
de “Figueira”, conferindo-lhe uma aura de mistério.

4ª CENA DE INTERAÇÃO:

Observamos que Trigueirinho, talvez, evita o constrangimen-


to com possíveis críticas ao selecionar, previamente, as perguntas
que deseja responder. Elas são colocadas, estrategicamente, num
escaninho antes de Trigueirinho iniciar sua palestra, que se desen-
rola sempre por um mesmo período de uma hora apenas.
Essa observação pode ser classificada na categoria “2.3.”, a
Márcia de Oliveira Estrázulas

qual diz: “Idealização: tentar parecer melhor do que se é”. A obser-


vação pode também ser classificada na categoria “2.4.”, que afir-
ma: “Manutenção do controle expressivo: controle dos gestos
involuntários que possam qualificar a representação como falsa,
atos falhos, gafes. A observação também pode ser classificada na
categoria “2.5.”, a qual menciona: “Mistificação: proteger o ator
criando distância social e uma aura de mistério”. A observação tam-
bém pode ser classificada na categoria “2.6.”, que afirma: “Atribu-
tos e práticas defensivas: a) fidelidade dramatúrgica. Não revelar
segredos da equipe; b) disciplina dramatúrgica, autocontrole, do-
mínio da voz e rosto, distância emocional; c) circunspeção
dramatúrgica, prudência na escolha da platéia, na escolha de mem-
bros da equipe social de atores”.

ANÁLISE

Uma representação breve e perguntas previamente


selecionadas pode evitar o descrédito dos líderes carismáticos ou
118
messiânicos, cujas crenças e fé dos seus adeptos dependem. Elas
não podem oscilar, têm que ser inabaláveis. Esta forma de repre-
sentação impede qualquer tipo de dissonância que poderia abalar
a credibilidade e a sustentabilidade da sua encenação.

5ª CENA DE INTERAÇÃO:

Uma visitante confidenciou-nos ter visto dois coordenadores


de setores diferentes de “Figueira” conversarem descontraidamente
entre si. Esboçavam expressões de gracejo. Porém, quando perce-
beram sua presença não consentida, automaticamente retomaram
suas posturas formais e reassumiram seus papéis com ares de cir-
cunspeção. À noite, quando todos estavam dormindo, os residen-
tes iam sorrateiramente até a cozinha para comer e conversar. Ati-
tudes contrárias às regras aplicadas aos atores sociais visitantes ou
itinerantes de silêncio, de respeitar e observar os horários das re-
feições.
Esta observação pode ser enquadrada nas seguintes categori-
as “3.1.”: “Região frontal/região de fachada: onde ocorre a repre-
sentação do ator/equipe social de atores”; “3.2”: “Região posterior/
de fundo/bastidores: local onde o público não tem acesso, e o ator
pode ser informal e relaxar sem representar um papel; “2.4”: “Ma-
nutenção do controle expressivo: controle dos gestos involuntários
que possam qualificar a representação como falsa: atos falhos, ga-
fes; “6.”: “Segredos: informações destrutivas”; “6.1.”:
“Indevassáveis: fatos incompatíveis com a imagem que quer pas-
sar”; “6.3”: “Íntimos: marca ou estigma ou carimbo ou rótulo que
o identifica como ator diferente da platéia”; “7.”: “Papéis discre-
pantes: atores sociais com informações destruidoras e comprome-
tedoras ao espetáculo.”

ANÁLISE

É bem nítida a separação entre o local onde é representado o


drama, a peça, quer dizer, o palco das ações e o local da coxia,
onde há um relaxamento na representação de um papel formal.
Nos momentos em que a observação externa não é visível, a ence-
nação se desfaz, e até mesmo os coordenadores podem ser surpre-
119
endidos em atitudes informais.

6ª CENA DE INTERAÇÃO:

Em várias incursões à “Figueira”, observamos que a coorde-


nação dos setores está constantemente mudando. Há um rodízio
de pessoas na coordenação, nas funções, nos locais de dormitório.
Isto ocorre com o intuito de evitar o apego às tarefas, a proximida-
de entre as pessoas, o relacionamento, a integração, a comunica-
ção, a intimidade entre os residentes e os itinerantes e, ao mesmo
tempo, cultivar a impessoalidade e o desapego às pessoas.
As seguintes categorias explicam este comportamento: “1.”:
“Manipulação da impressão: controle do ator social sobre as im-
pressões que os outros possam ter dele”; “6.”: “Segredos: informa-
ções destrutivas”; “7.”: “Papéis discrepantes: atores sociais com
informações destruidoras e comprometedoras ao espetáculo”; “7.1”:
“Delator: finge ser membro, tem acesso aos bastidores e a infor-
mações negativas, podendo revelar a trama do espetáculo à pla-
Márcia de Oliveira Estrázulas

téia”.

ANÁLISE

A força de trabalho, de “Figueira”, só é possível se os atores


sociais estiverem presos no seu sistema de sujeição, e os seus cor-
pos se tornem servis e submissos. As necessidades, atividades e
tarefas são instrumentações políticas cuidadosamente organizadas,
calculadas e utilizadas de forma a mascarar a realidade. A sujeição
é obtida pela ideologia religiosa estrategicamente pensada, agin-
do sobre os seus corpos, sobre as suas personalidades e até mes-
mo nas suas almas, no seu íntimo, sem, no entanto, fazer uso de
violência ou de armas. Assim, os residentes condicionam os visi-
tantes para que ajam de forma igual. Os seus comportamentos são
previamente decididos e há, portanto, uma flexibilidade adaptativa
dos corpos.
Variação contínua, mudança constante, rotativa, periódica e
permanente de tarefas, funções, coordenações, setores, atividades,
120
etc., evitando, com isso, propiciar meios que induzam à intimida-
de, à interação, à comunicação, à amizade, ao relacionamento dos
residentes com os visitantes e itinerantes. Há uma rotatividade do
público itinerante, das tarefas e atividades designadas, das ocupa-
ções, das funções da coordenação e de espaços ou setores físicos
tanto para residentes, como para os itinerantes. A mudança cons-
tante das funções e locais de atuação dos coordenadores se deve à
intenção de que estes não criem cumplicidade entre si e com os
visitantes. Isto poderia condicionar um relaxamento nas relações
que devem ser pautadas pela austeridade.

7ª CENA: COMENTÁRIO DE ARTIGO ACESSADO EM JUNHO DE 2003

A seguir comentário do Cipfani, um site de pesquisas


ufológicas, sobre o artigo publicado em seu próprio site,
“Trigueirinho explora a credulidade alheia”, de autoria do histori-
ador com título de Mestre pela Faculdade de Ciências e Letras de
Assis, campus local da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Cláu-
dio Tsuyoshi Suenaga, onde editores do Cipfani identificam a téc-
nica de proteção defensiva para evitar perguntas de cunho crítico:
Por duas ocasiões tivemos contato pessoal com o
“Picaretólogo” Trigueirinho. Em uma das vezes, du-
rante suas palestras, proferida no Minascentro, en-
chemos duas folhas com “dúvidas”, pois ele respon-
deria a elas no final. As perguntas deveriam ser por
escrito, colocadas em uma cesta. Para nossa surpresa,
NENHUMA das perguntas foi respondida. Tentamos
perguntar oralmente, mas ele se recusou a responder.
Tentamos abordá-lo pessoalmente no final da pales-
tra, e fomos repelidos pelos “fiéis” gorilas que o acom-
panhavam (SITE DO CIPFANI, 17/06/2003).

Esse artigo enquadra-se em várias categorias, a saber: “2.5”:


“Mistificação: proteger o ator criando distância social e uma aura
de mistérios”; “2.4”: “Manutenção do controle expressivo: contro-
le dos gestos involuntários que possam qualificar a representação
como falsa: atos falhos, gafes; “2.6”: “Atributos e práticas defensi-
vas: a) fidelidade dramatúrgica; não revelar segredos da equipe; b) 121
disciplina dramatúrgica, autocontrole, domínio da voz e rosto, dis-
tância emocional; c) circunspeção dramatúrgica, prudência na es-
colha da platéia, na escolha de membros da equipe social de ato-
res”.

ANÁLISE

Alguns líderes espirituais, carismáticos, messiânicos, não se


predispõem a tratar com diferenças de comportamento e pensa-
mento. Eles tendem a encarar a divergência como um perigoso
ataque às suas convicções. Este tipo de liderança não aceita a di-
versidade e a democracia. Por esta razão, evita o diálogo, a crítica
e o questionamento sobre suas convicções e pregações.

8ª CENA: ARTIGO ACESSADO EM JUNHO DE 2003

Cláudio Tsuyoshi Suenaga, em seu artigo publicado no site do


Cipfani, intitulado “Trigueirinho Netto explora a credulidade alheia”
Márcia de Oliveira Estrázulas

denuncia a persuasão de Trigueirinho para cooptar mão-de-obra


voluntária e obter lucro com isto:
A idéia de explorar a credulidade mística e a falta de
senso crítico da massa só veio mais tarde, quando já
havia abandonado o cinema. Não obstante, os conhe-
cimentos adquiridos com a técnica cinematográfica
certamente lhe foram úteis para que fraudasse todas
as fotos de discos voadores que ilustram seus livros.
Sim, porque suas naves espaciais não passam de fon-
tes de luz convencionais, fotografadas com longo tem-
po de exposição ou mediante movimentos aleatórios
de câmera. Trigueirinho manipula os fiéis com a mes-
ma habilidade com que manipula os negativos das suas
fotos falsas (ANEXO AAF) (SUENAGA, 2003).

Dentre as categorias de análise, este artigo enquadra-se nas


seguintes: “1.”: “Manipulação da impressão: controle do ator soci-
al sobre as impressões que os outros possam ter dele”; “2.1.”: “Fa-
chada pessoal: cenário em torno do ator social”; “2.”: “Representa-
ção: atividade, exercendo influência de um ator social nos observa-
122 dores”; “2.2”: “Realização dramática: exagero na representação
objetivando impressionar a platéia”; “2.5”: “Mistificação: proteger
o ator criando distância social e uma aura de mistério”; “6.2”: “Es-
tratégicos: revelado em hora apropriada de forma a surpreender a
platéia.”

ANÁLISE

Trigueirinho, tendo sido diretor e cineasta, disse que os mes-


mos conhecem muito bem a necessidade de satisfazer a exigência
de um público desorientado, e o meio mais fácil e rápido para isto
seria o da criação de mitos. Portanto, um especialista, um expert,
um connaisseur, um diretor, um cineasta conhece as ferramentas e
técnicas de autocontrole dramatúrgico, de domínio da expressão
do rosto, de domínio da voz, de dissimulação, de como esconder a
emoção verdadeira e simular uma representação falsa, de como
manipular e persuadir as impressões dos expectadores da platéia.
9ª CENA: ARTIGO ACESSADO EM JUNHO DE 2003

Prof. Cláudio Suenaga percebeu a técnica de persuasão de


Trigueirinho:
Trigueirinho continua arrebanhando milhares de fiéis
que, através de seus livros, chegam a formar grupos
que se dedicam a propalar seus ensinamentos ou pre-
gações. Nada mais do que uma mistura barata de lite-
ratura mística, teosófica e esotérica devidamente
distorcidas para que atendam a seus propósitos, ou
seja, continuar arrebanhando milhares de fiéis que
compram mais livros, formam novos grupos e propalam
seus ensinamentos que irão continuar atraindo mais
incautos engordando sem parar a conta bancária do
guru (SUENAGA, 2003).

As categorias que explicam a opinião acima sobre Trigueirinho


são as seguintes: “1.”: “Manipulação da impressão: controle do
ator social sobre as impressões que os outros possam ter dele”;
“2.1”: “Fachada pessoal: cenário em torno do ator social”; “2.5”: 123
“Mistificação: proteger o ator criando distância social e uma aura
de mistério”; “4.0”: “Equipe: qualquer grupo de atores sociais que
contracenam uma rotina particular.”

ANÁLISE

A idéia de fim de mundo que Trigueirinho profetiza não é


nova. Foi imortalizada na obra de Tomas Morus, “Utopia”. Na
concretização da cidade santa e sagrada de “Figueira”, inicia-se um
paraíso terreno, uma ilha paradisíaca, uma sociedade perfeita. Po-
rém uma comunidade perfeita precisa contar com atores sociais
perfeitos. Por isso os que aspiram a esse mesmo ideal devem se
submeter, se sujeitar a um condicionamento de purificação, uma
santificação, uma transformação pessoal. Segundo Trigueirinho, se
apenas 10% da humanidade aceitar se sacrificar voluntariamente
através da “Operação resgate”, profetizada por ele, então a huma-
nidade, como um todo, será salva, resgatada.
Márcia de Oliveira Estrázulas

10ª CENA: ARTIGO DO MESTRE SUENAGA SOBRE A TÉCNICA DE


PERSUASÃO DE TRIGUEIRINHO ACESSADA EM OUTUBRO DE 2006

(...) afirma Trigueirinho, que se diz contatado por ets e


escolhido para uma missão importante: conscientizar
a humanidade a respeito de seus vizinhos(...)Os
ufólogos ortodoxos torcem o nariz e têm argumentos
para não crer nas predições de Trigueirinho, mas isso
não o impede de continuar suas
afirmações(...)Trigueirinho foi duramente criticado por
ufólogos de todo país, em especial os da revista UFO,
em 1995. Nessa ocasião, no auge de sua fama como
escolhido de ets, já tinha vários livros publicados e um
vasto esquema mercadológico de palestras por todo o
Brasil, onde apresentava suas teorias. Seus livros fo-
ram objeto de suspeita principalmente por trazerem,
em suas capas, fotos com luzes noturnas não
identificadas que Trigueirinho descrevia como sendo
extraterrestres e pertencentes aos seus amigos de
outros planetas. As imagens não resistiram a uma mera
124 análise e resultaram em falsificações grosseiras de
pontos de luz urbanos, flagrados com lentes especiais
e em circunstâncias extraordinárias. As capas de seu
livro são bonitas, mas não são ufos, declarou o ufólogo
paulista e também co-editor de UFO Marco Antônio
Petit (ANEXO AA) (SUENAGA, 2006).

Esse artigo pode ser classificado na categoria “2.3”:


“Idealização: tentar parecer melhor do que se é”; e na “2.5” que
menciona: “Mistificação: proteger o ator criando distância social e
uma aura de mistério.”

ANÁLISE

Historicamente, muitos profetas são emocionalmente instá-


veis, e este desequilíbrio contribuiu, em grande parte, para seu
sucesso. Muitos deles revelaram-se influentes demais, tal como
Antônio Vicente Maciel, o “Conselheiro”. Sua imagem foi imortali-
zada por Euclides da Cunha no célebre livro “Os Sertões”, onde ele
descreve o líder de “Canudos” como um demente, um desequili-
brado, um manipulador, que arrebanhou um exército de gente aves-
sa ao trabalho. Também em sua versão romanceada de “Canudos”,
“A Guerra do Fim do Mundo”, o peruano Mario Vargas Llosa pinta
imagem semelhante, a do beato enlouquecido, porque o “Conse-
lheiro”, de “Canudos”, começou a pregar depois da desilusão com
a esposa, que o abandonou para morar com um cabo de milícia.

11ª CENA: ENQUETE PUBLICADA NA INTERNET, NO SITE


GEOCITIES.COM/VITALUXBRASIL/REL ATÓRIO, EDITOR ALDO
NOVAK, EDIÇÃO Nº 2000, ACESSADO EM 06 DE OUTUBRO DE
2006; E, TAMBÉM, NO SITE VIGILIA.COM.BR/
SESSÃO.PHP°CATEG=0&ID=342, EDITADO PELA REVISTA VIGÍLIA,
EDITORIAL NOVA ONDA COMUNICAÇÃO, ACESSADO EM 06/10/006

Uma enquete realizada pelo Grupo de Estudos Ufológicos da


Baixada Santista (GEUBS) revela a opinião dos pesquisadores dedi-
cados à ufologia no Brasil a respeito do grau de credibilidade de
alguns dos casos mais famosos de contatos com ovnis e extrater-
restres da ufologia mundial. Foram consultados cinqüenta pesqui-
sadores, 10% do total de ufólogos considerados ‘ativos’ no Brasil.
125
Na enquete, os pesquisadores deram notas de 0 a 10.
Escore de 0,00 a 1,99: casos sem nenhuma credibilidade, con-
siderados as grandes fraudes da ufologia mundial. Segundo a pes-
quisa, não existe absolutamente nada que seja digno de
confiabilidade nestes casos. Os casos que receberam nota zero até
1,99 não são considerados sérios.
Trigueirinho afirma estar em contato com seres intraterrenos
e extraterrestres de universos paralelos. Ele teve um escore final
de 1,36.
Essa enquete pode ser classificada na categoria “6.”: “Segre-
dos: informações destrutivas”; também pode ser classificada na
categoria “6.1.”: “Indevassáveis: fatos incompatíveis com a ima-
gem que quer passar”; categoria “7.”: “Papéis discrepantes: atores
sociais com informações destruidoras e comprometedoras ao es-
petáculo.”
Márcia de Oliveira Estrázulas

ANÁLISE

A enquete apresentada ,e que atribui à ufologia de Trigueirinho


os mais baixos escores, prende-se ao fato de a ufologia deste ser
considerada mística, isto é, não se enquadra nos parâmetros míni-
mos do rigor científico.

4.4.2 CONCLUSÃO

O elo entre o viés da “representação dos atores sociais” e o da


“instituição total”, no contexto da teoria do interacionismo simbó-
lico, é que a situação da interação, a circunstância, o espaço das
controvérsias (os quais têm muita importância para a sociologia)
não deveriam dissociar os ritos de interação dos ritos da institui-
ção.
No caso estudado da comunidade de “Figueira”, não se obser-
vou tal dissociação entre os ritos de interação e os da instituição.
126 Alguns aspectos foram apresentados separadamente apenas para
fins analíticos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O tema desta pesquisa é pioneiro, inédito e dessa forma espe-


ramos que possa servir de ponto de partida para posteriores estu-
dos e aprofundamentos sobre temas afins. Este estudo da comuni-
dade “Figueira” como exemplo de uma instituição total e, particu-
larmente, o mundo dos atores sociais tinha como um dos seus
interesses principais apresentar uma versão sociológica do “eu”
(self) em interação.
Diferentemente de alguns pontos de vista de Goffman, acen-
tuamos o mundo do ator social não-internado que se hospeda em
“Figueira”. Estes, ao interagirem com os internos, entram em con-
flito em função de diferentes condicionamentos, criando-se, assim,
um clima constante discórdia. Eles entram em divergência em fun-
ção da sujeição hierárquica do grupo de “Figueira”, por sua vez,
liderado por Trigueirinho. Elas geram uma atmosfera de divergên-
cia permanente pela interferência ao “eu” (self) de cada um. 127
Portanto, há um interesse sociológico nas pesquisas sobre
instituições totais, porque nestes espaços, as regras e normas
condicionam como os atores sociais devem interagir coletivamen-
te em virtude de pertencerem a um grupo específico.
O funcionamento de “Figueira” confirma nossa hipótese de
que esta comunidade pode ser classificada, parcialmente, em algu-
ma medida, como uma instituição total por possuir algumas ca-
racterísticas similares àquelas estudadas por Goffman. Também se
verificou que a forma como é administrada “Figueira” condiciona o
“eu” (self), o comportamento, o pensamento e até os sentimentos
dos que estão ligados a ela direta ou indiretamente.
As categorias definidas na “representação dos atores sociais”
são convergentes às categorias absorventes das instituições to-
tais. As categorias das instituições totais convergem com as das
categorias da interação face a face, sobretudo porque, as tendênci-
as absorventes destas instituições, funcionam nas interações e anu-
lam a intersubjetividade por processos de apartação ou isolada-
mente principalmente. O elo entre elas é que a situação da
Márcia de Oliveira Estrázulas

interação(a qual têm muita importância para a sociologia) não de-


veria dissociar os ritos de interação dos ritos da instituição. No
caso estudado da comunidade de “Figueira”, não se observou tal
dissociação entre os ritos de interação e os da instituição. Alguns
aspectos foram apresentados isoladamente apenas para fins analí-
ticos. As categorias convergentes nas interações face a face são
resultantes dos processos de interação e constituem fatos de soci-
alização. São convergentes, porque possibilitam aproximações.
Todas as instituições tendem a atrair para si os sujeitos por proces-
sos de socialização, apartação, inclusão, identificação e outros. Nas
instituições totais, essa absorção é mais acentuada.
Dentro desse contexto da transição do século XX para o sécu-
lo XXI, surgiu Trigueirinho re-anunciando a Era de Aquário. Esta
transição passoupor uma fase em que a insegurança nas relações
sociais fizeram com que alguns atores sociais ficassem perdidos,
fracassados, derrotados e suas resignações sociais podiam se ma-
nifestar em fuga e abandono da sociedade, quando convergiam
para comunidades desviantes. Ali entravam em contato com seus
128 semelhantes formando uma sub-cultura. Os desviantes sociais evi-
tavam as divergências, restringindo-se à proteção auto-defensiva
de viverem isolados numa sub-comunidade, onde não se sentiam
mais deslocados como na sociedade aberta. Sentiam-se melhor que
os da comunidade aberta, superiores, exemplos e modelos de vida,
angariando simpatizantes.
Trigueirinho anunciava em suas profecias que a transição ao
milênio aquariano seria plena de riscos para os espiritualmente
despreparados. Mas, por outro lado, os que estivessem em harmo-
nia com a operação resgate, liderada por ele, ingressariam numa
nova era de iluminação espiritual, uma nova civilização.
Em relação à “Operação resgate”, como já dito anteriormen-
te, tinha por objetivo salvar o grupo de “Figueira” do fim do mun-
do. Porém para que cada um deles fosse resgatável, precisaria pas-
sar por uma mudança de comportamento, isto é, teria que se sujei-
tar a um condicionamento. Esse resgate e condicionamento da
personalidade teriam como finalidade torná-lo sem livre-arbítrio,
para que acatassem ordens e funções alheias à sua natureza
vocacional e atendessem aos objetivos do coletivo e não aos da
sua individualidade.
Concluímos que Trigueirinho exerce poder, devido à sua per-
sonalidade e carisma, o que desperta o fascínio e o deslumbre nos
simpatizantes. Assim adquiriu ascendência sobre um grupo de sim-
patizantes que agruparam em torno dele e consegue com que os
grupos de pessoas internas e externas de “Figueira” trabalhem em
atividades e tarefas gratuitas e voluntárias com o fim coletivo de
transformação e resgate dos seres humanos que transitam por “Fi-
gueira”.
Nessa “Operação resgate”, oss supervisores ou coordenado-
res são os indivíduos mais próximos de Trigueirinho. Ajudam ati-
vamente e em geral também são dotados de certas virtudes
carismáticas. Ministram palestras e servem de intermediários en-
tre Trigueirinho e o restante do grupo, portanto dispõem de certo
poder. Procuram organizar os colaboradores internos e externos,
constituindo-os numa sociedade com direitos e obrigações esta-
belecidos de acordo com as instruções que condicionam a comuni-
dade.
A quantidade de tarefas fez com que surgisse a divisão de 129
trabalho e, conseqüentemente, a necessidade do aparecimento de
uma série de colaboradores internos e externos. Trigueirinho não
pode assumir sozinho a comunidade, por isto divide as tarefas com
os coordenadores. Assim desenvolveu-se em “Figueira uma hierar-
quia, um tipo único de estrutura social, com três camadas
superpostas. Trigueirinho no topo, os externos ou redes de serviço
na base, e intermediando a ambos um grupo de coordenadores
internos mais próximos: os escolhidos por Trigueirinho. A divisão
do trabalho é uma condição necessária para que a comunidade se
desenvolva e possa partir para o resgate do mundo.
Os coordenadores dos setores estão constantemente sendo
mudados por Trigueirinho. Há uma rotatividade, um rodízio de
funções com o objetivo de evitar apego às tarefas, cultivar o desa-
pego entre os colaboradores e impedir a possível formação de fo-
cos de rebeldia, como surgiram na Comunidade Nazaré, resultan-
do na exclusão de Trigueirinho.
A centralização das tomadas de decisões em Trigueirinho acar-
reta uma falta de comunicação interna. Trigueirinho torna os limi-
Márcia de Oliveira Estrázulas

tes de “Figueira” muito precisos em função de experiências negati-


vas do seu passado que o excluíram da Comunidade Nazaré, por
isso os indecisos não podem ser aceitos. Todos os membros devem
manifestar zelo no desempenho dos deveres. Se um membro recu-
sa obediência, a salvação do grupo todo é posta em perigo, em
jogo. Uma das grandes preocupações de Trigueirinho é dar ênfase
aos limites do grupo, preservando os integrantes do contato noci-
vo com pessoas com ideais contrários. Isto, em parte, condiciona a
segregação do grupo em relação à sociedade global. Assim, em
“Figueira”, há uma permanente divergência resultantes da interação
entre colaboradores internos e externos, porque o interesse do
grupo está acima das individualidades. O indivíduo encontra-se
subordinado a uma determinação coletiva, agindo em contrario a
elas, poderia haver sanções privando sua independência, liberda-
de, livre-arbítrio.
Os colaboradores são condicionados a não se comunicarem,
como já foi dito anteriormente, uma das maiores regras em “Fi-
gueira” é o silêncio interno e exterior. Por isso, há um isolamento
130 que priva os colaboradores de iniciativa e criatividade, porque es-
tão submetidos às regras, às operações e a forma de realizá-las que
condicionam o seu comportamento. Seu modo operativo único ao
qual devem condicionar-se e a ordem do seu desenvolvimento já
estão especificados. Tudo está previsto com bastante exatidão,
portanto não há espaço para a iniciativa pessoal ou para o livre-
arbítrio. Para Trigueirinho, o livre-arbítrio gera um estado caótico.
Os colaboradores, para serem salvos e resgatados, devem entre-
gar-se à sua autoridade.
Vários trabalhos grupais realizam-se dessa maneira abnega-
da: oblatos são leigos que se oferecem para servir no grupo de
“Figueira” abnegadamente. Auto-afirmação, orgulho, idiossincrasias
e vaidade não devem interferir na sua tarefa, cujas bases são o
despojamento, o desapego e a prontidão ao serviço impessoal para
atender aos objetivos coletivos do grupo.
O zelador segue a via do despojamento e dedica-se a suprir
tudo e todos incondicionalmente. O zelador deve se inspirar nos
que se devotam incondicionalmente à vida de serviço.
Há, atualmente, poucos residentes em “Figueira”, porque,
segundo Trigueirinho, no atual contexto social, poucas pessoas
conseguem liberar-se do compromisso com a sociedade. A estrutu-
ra, a engrenagem da sociedade continua exercendo grande atração
sobre as pessoas. Alguns devem, portanto, se despojarem de en-
cargos e desvincularem-se da sociedade, segundo Trigueirinho, para
ajudar no que é exigido aos residentes de “Figueira”. Esta postura
resultará da renúncia a ambições, desejos e satisfações próprias
em função da coletividade.
O residente deve vivenciar suas provas de renúncia, humilda-
de, humilhação, abnegação em silêncio, sem tagarelice, sem cho-
ro, sem emoções, sem dor. Para o residente as provas, que advêm
do cumprimento das tarefas diárias, são oportunidades de trans-
formação, por isso, devem cultivar a virtude ou qualidade de desa-
pego e renúncia em tudo o que faz, realizando as tarefas que lhe
cabem com abnegação. Um residente deve renunciar às delícias,
ao conforto, aos prazeres da vida. Deve deixar de lado a murmura-
ção, a queixa, a lamúria, deve prescindir de consolo.
Há em “Figueira” uma atividade chamada de abrigo que pos- 131
sibilita prestar serviço livre dos apegos que limitam o trabalho em
grupo. Também não se deve buscar reconhecimento para não re-
forçar o egoísmo. Esta atitude torna-se um obstáculo à vida grupal.
A colaboração é necessária, pois a tarefa deverá cumprir-se confor-
me planejada pelo grupo. A função do abrigo é de ajudar todos
libertarem-se, desvencilharem-se e desapegarem-se da sociedade.
Muitos dos que se aproximam do abrigo estão para se libertarem e
necessitam de coragem, ajuda e reforço.
Os que aspiram à vida em “Figueira” são chamados de aspi-
rantes e devem ter uma disposição para seguir, sem reservas, com
abnegação, com desapego, de forma impessoal, o caminho do ser-
viço. O aspirante deve deixar de lado o orgulho e o preconceito
para servir à humanidade. Deve aprender que a sujeição a uma
organização, a uma ordem, às regras, às normas, a determinadas
condutas são necessárias a um trabalho evolutivo e que, impostas
num ambiente, servem de exemplo aos demais. O aspirante deve
reconhecer que o condicionamento a uma disciplina hierárquica é
imprescindível para a transcendência do egoísmo e das preferênci-
Márcia de Oliveira Estrázulas

as de natureza mental e emocional individuais em detrimento das


coletivas e grupais. Só quando o egoísmo é transcendido e as pre-
ferências individuais superadas surge a disciplina grupal e coleti-
va. Ordem, disciplina e obediência devem fazer parte da vida do
aspirante, revelando uma maneira flexível, meiga e cordata de vi-
ver.
“Figueira” como já foi dito anteriormente, é um híbrido soci-
al, uma organização formal que administra uma comunidade alter-
nativa. Os monges nunca devem entrar em interação com o grupo
de colaboradores itinerantes e/ou visitantes que se hospedam em
“Figueira” e, em hipótese alguma, estabelecem interação com o
restante da sociedade aberta. Há um monastério feminino e outro
masculino, são semi-reclusos. Vivem separados fisicamente sem
muita interação com o grupo de residentes. Mais afastados e sem
interagir com os itinerantes ou visitantes que se hospedam em
“Figueira”. Estão sem nenhuma interação com a sociedade aberta.
Eles só têm interação com o grupo de residentes em raras reuni-
ões, excepcionalmente têm interação com o grupo itinerantes ou
132 visitantes e jamais têm interação com a sociedade aberta. Essa fal-
ta de interação só vêm ratificar o enquadramento em parte, em
alguma medida, de “Figueira” como uma instituição total, onde
quase inexiste interação.
Os atores sociais que almejam morar em “Figueira” devem
viver em comunidade, separados da família, desapegados do di-
nheiro, sem posses ou propriedade privada. Devem condicionar-se
à pobreza, sublimar o sexo e, conseqüentemente, abrir mão da
instituição casamento, abster-se de alimentos de origem animal,
ser obedientes aos seus superiores, observar o silêncio e restringir
a conversa ao estritamente necessário para o andamento das tare-
fas. Essas são características similares às das instituições totais es-
tudadas por Goffman.
A seguir, algumas considerações breves sobre a influência dos
atores sociais de “Figueira” no condicionamento “eu” (self) dos sim-
patizantes. O efeito dá-se sobre a reprodução dos seus valores es-
pirituais, padronizando gestos, expressões e linguagem.
Os valores culturais dos atores sociais de “Figueira”
condicionam em detalhe o modo como os residentes pensam, apa-
rentemente, em relação a muitos assuntos, até mesmo estabele-
cem um quadro de referências, de parâmetros, de paradigmas.
Os atores sociais estão alicerçados numa ideologia que mol-
da o comportamento dos que entram em contato mais diretamen-
te com ela, tornando-os servis. Essa marca ou estigma transparece
nas atitudes dos seus atores sociais, na sua maneira de interagir,
de sentar, de andar, na sua forma de comer, de falar, porque estão
condicionados por uma cultura espiritual que submete o corpo à
purificação moral, cultura baseada nas virtudes do tipo ideal de
caráter cristão sobre as quais diz o filósofo Nietzsche serem virtu-
des do escravo.
“Figueira” tem como objetivo principal a espiritualidade e está
alicerçada numa ideologia que condiciona um comportamento servil
que transparece na forma de interagir (self-interaction), de sentar,
de andar, nos gestos, nas expressões, na linguagem e até na forma
de comer dos atores sociais, os quais representam um “eu” (self)
cotidiano humilde e modesto.
Através da imposição de regras, normas e disciplinas, “Figuei-
ra” reproduz seus valores nos mínimos gestos, expressões e lin- 133
guagem de forma a padronizar e homogeneizar os comportamen-
tos, não permitindo que as pessoas vivam como quiserem, com
liberdade de escolha, com livre-arbítrio, etc., criando, assim, uma
comunidade de atores sociais condicionados, automatizados, fe-
chados e segregacionistas, tal como a ficção científica do livro “O
Admirável Mundo Novo”.
“Figueira” rompeu com os princípios fundamentais da socie-
dade abolindo a propriedade, o casamento e a família. Tornou-se
um espaço comunitário singular, indiferente ao Estado. É uma co-
munidade composta de indivíduos semelhantes que formam uma
subcultura. A comunidade evoluiu para um estado monástico com
o tempo e o aumento do número de residentes. Hoje lá se confun-
dem submissão com santidade. Todos devem se sujeitar à autori-
dade de Trigueirinho. Os que desejam viver pelas regras de “Fi-
gueira” devem querer devotar-se inteiramente ao serviço pela
autodisciplina, oração e trabalho. Devem viver uma vida em comu-
nhão, desapegar-se da família, condicionar-se à pobreza, desape-
gar-se do dinheiro e da propriedade privada. Devem abster-se do
Márcia de Oliveira Estrázulas

sexo e conseqüentemente do casamento, devem obedecer aos su-


periores, devem abster-se de alimentos de origem animal, devem
restringir a conversa e observar o silêncio. A liberdade, o livre-
arbítrio e a privacidade são suprimidos em favor da coletividade.
“Figueira”, sob a égide de um novo código cultural, subverte
a ordem social estabelecida, criando normas que contrariam a so-
ciedade aberta. Com isso, o grupo possui idéias que conflitam com
os valores da sociedade na qual se insere, gerando uma divergên-
cia permanentes entre o grupo de externos e o dos internos.

134
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Editorial, 2004.

WEBER, Max. Os três tipos puro de dominações legítimas. In: COHN,


Gabriel (org). Weber: sociologia. São Paulo: Ática, 1979.

WEBER, Eugene. Após o apocalipse, crenças de fim (e recomeço) de


mundo. São Paulo: Editora Mercuryo, 2000.

WINKIND, Yves.Os momentos e os seus homens. Lisboa: Editora Relógio


D´água, 1999.
138 ______. Erving Goffman: o que é uma vida? In: GASTALDO, Édison
(org) Erving Goffman - desbravador do cotidiano. Porto Alegre: Tomo
Editorial, 2004.
LISTA DE ANEXOS

A. Folder “Nazaré Paulista”


B. Mantras de “Figueira”
C. Folder Coral
D. Folder de “Figueira”
E. Panfleto “A Sustentação da Central de Atendência”
F1. Opúsculo “Oblatos”
F. Opúsculo “Redes de Serviço” + Boletim de “Sinais” de nº 10
c/a programação dos encontros das “Redes de Serviços” em 2006
G. Boletim de “Sinais” de nº 10, pg.2.
H. Mosquitinho 2006 + dois cartazes divulgando as audições
de Trigueirinho em Porto Alegre, RS
I. Folder de publicações da Editora Irdin + Catálogo da Edito-
ra Irdin
J. Panfleto do setor de “Difusão de Livros e Fitas”
K. Rádio Mundial 139
L. Cadernos de Sinais nº 2 (1998) e Boletim de Sinais (2003)
sobre Meeiros
M. Carta Aberta(circular)dirigida aos colaboradores
N. Opúsculo “Monastérios”
F2. Opúsculo “Oblatos”
P. Opúsculo “Zeladores”
Q. Opúsculo “Sacerdotes”
R. Opúsculo “Espelhos”
S. Opúsculo “Residentes”
T. Opúsculo “Reinos”
U. Opúsculo “Colaboradores”
V. Opúsculo “Abrigo”
W. Folder “Aspirantes”
X. Opúsculo “Hierarquia”
Y. Opúsculo “Vigília”
Z. Opúsculo “Instrução”
AA.Artigo da Internet + cópias xerox de capas de alguns livros de
Trigueirinho sobre ovnis
A. Folder “Nazaré
Paulista”
B. Mantras de “Figueira”
C. Folder Coral
D. Folder de “Figueira”
E. Panfleto “A
Sustentação da Central
de Atendência”
F. Opúsculo “Oblatos”
G. Opúsculo “Redes de
Serviço” + Boletim de
“Sinais” de nº 10 c/a
programação dos
encontros das “Redes
de Serviços” em 2006
H. Boletim de “Sinais”
de nº 10, pg.2, Relação
de Endereços no Brasile
no exterior dos Grupos
das “Redes de Serviço”.
I. Mosquitinho 2006 +
dois cartazes
divulgando as audições
de Trigueirinho em
Porto Alegre, RS
J. Catálogo da Editora
IRIDIN e Folder da
Editora IRIDIN
K. Panfleto do setor de
“Difusão de Livros e
Fitas”
L. Programação da
Rádio Mundial
M. Cadernos de Sinais
nº 2 (1998) e Boletim de
Sinais (2003) sobre
Meeiros
N. Carta
Aberta(circular)dirigida
aos colaboradores
O. Opúsculo
“Monastérios”
P. Opúsculo “Zeladores”
Q. Opúsculo
“Sacerdotes”
R. Opúsculo “Espelhos”
S. Opúsculo
“Residentes”
T. Opúsculo “Reinos”
U. Opúsculo
“Colaboradores”
V. Opúsculo “Abrigo”
W. Folder “Aspirantes”
X. Opúsculo
“Hierarquia”
Y. Opúsculo “Vigília”
Z. Opúsculo “Instrução”
AA. Artigo da Internet
+ cópias xerox de capas
de alguns livros de
Trigueirinho sobre
ovnis

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