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CDD: 142.3
SÍLVIA ALTMANN
Departamento de Filosofia
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
PORTO ALEGRE, RS
saltmann@terra.com.br
Resumo: É lugar comum que, segundo Kant, a possibilidade da ciência depende da aplicação de certos
conceitos que são derivados do “modo de funcionamento” de nossa capacidade de pensar sobre objetos.
Também é lugar comum exemplificar tal afirmação pela noção de causalidade: como Hume fizera Kant
perceber, não podemos justificar a aplicação da noção de causalidade com base na experiência e, para Kant,
isso não é possível porque (i) a experiência já a pressupõe e (ii) a experiência já a pressupõe porque essa
noção é condição de possibilidade do nosso pensamento (que opera por juízos de certas formas) estar relacio-
nado às coisas. Segundo Kant, isso não vale só para a noção de causalidade, mas para doze categorias,
entre elas as categorias da quantidade. Da aplicação dessas categorias puras a um múltiplo temporal,
obtemos o conceito de número, e é a aplicação dessas categorias à forma dos objetos dados na experiência
possível (múltiplo espaço-temporal) que explica a possibilidade de seu tratamento matemático-geométrico.
Que o próprio conceito de número seja o resultado da aplicação de categorias derivadas do entendimento
puro implica, em última análise, que, se usamos o conceito de número na ciência, é em função de um modo
de pensamento finito como o nosso. O objetivo deste artigo é, em geral, indicar como podemos, a partir da
consideração da forma de um pensamento finito como nosso, chegar à necessidade da aplicação das categori-
as da quantidade. Em particular, gostaria de sustentar que, ao contrário do sugerido por muitos comenta-
dores, ao derivar as categorias da quantidade das formas do juízo quanto à quantidade, Kant não poderia
senão identificar as categorias da unidade e da totalidade às formas de juízo universal e singular respecti-
vamente. Por fim, gostaria de indicar também por que a relação entre as categorias da quantidade e nosso
modo de pensamento finito permite explicar que Kant, a partir de certo ponto, deixe de falar em “unida-
de”, “pluralidade” e “totalidade” e passe a tratar de, simplesmente, a categoria da quantidade.
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 17, n. 1, p. 31-46, jan.-jun. 2007.
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vamente. 4 Por fim, gostaria de indicar também por que a relação entre as
categorias da quantidade e o nosso modo de pensamento finito permite
explicar que Kant, a partir de certo ponto, deixe de falar em “unidade”,
“pluralidade” e “totalidade” e passe a tratar de, simplesmente, a categoria
da quantidade. 5
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Para examinar a relação de cada categoria da quantidade com a
forma do juízo correspondente segundo Kant, pressuporei como kantia-
nas as seguintes teses:
1) o que recebemos, via sensibilidade, é uma multiplicidade;
2) pensamos objetos dados (coisas individuais) ao unificar (sinteti-
zar) essa multiplicidade dada pensando objetos sob conceitos;
3) pensamos objetos por conceitos ao pensarmos reunidas certas
notas que são representações parciais dos objetos representados pelos
conceitos;
unidade com juízo universal e da totalidade com o juízo singular, discute passa-
gens kantianas que parecem, à primeira vista, sugerir o contrário. Creio, como
pretende mostrar Thompson, que a aparente plausibilidade da identificação
“juízo universal-totalidade” e “juízo singular-unidade” depende de uma confusão
entre, de um lado, a consideração da esfera de objetos ou conceitos sob um
conceito e, de outro, conceitos de objetos (não de conjuntos de objetos) e da
peculiaridade do resultado da aplicação das categorias da quantidade a um múlti-
plo homogêneo (multiplicidade espacial, por exemplo). O primeiro ponto será
retomado ao longo deste artigo. Por outro lado, Thompson defende a necessária
identificação da totalidade com o juízo singular apelando principalmente para o
papel da categoria da quantidade em uma síntese dinâmica (envolvida na apreen-
são de objetos existentes e não simplesmente construções na intuição pura,
como no caso da síntese matemática). Minha tentativa neste artigo é “recuar” na
discussão e, ao invés de examinar o que resulta da aplicação das categorias da
quantidade nas sínteses matemática e dinâmica, procurar justificar, exclusivamen-
te a partir do modo de operação de um entendimento finito como o nosso, a
relação entre cada categoria da quantidade e a forma do juízo correspondente.
5 O número, em particular, será o esquema para a categoria da quantidade.
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Se lembrarmos agora que as categorias são conceitos de um ob-
jeto em geral tais que algo não determinado por elas simplesmente não
poderia ser pensado por conceitos em juízos de três formas possíveis
quanto à quantidade, compreenderemos de que modo cada uma das
categorias da quantidade necessariamente determina um objeto pensado.
Unidade
Antes de considerarmos o uso universal de um conceito, é conve-
niente observar a relação de qualquer conceito com a unidade. Para tanto,
é útil um exemplo de Kant em A78/B104 9 . O conceito de dezena permi-
te a contagem quando de números mais altos porque permite ignorar
quaisquer outras diferenças entre grupos de dez objetos, considerando
somente, de cada um dos grupos, o que faz deles uma unidade – uma
dezena. Independente das peculiaridades do exemplo do conceito de
“dezena”, 10 o fato de podermos tratar dezenas como unidades chama
atenção para o seguinte: ser uma unidade é sempre relativo a um conceito
empírico.
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Pluralidade
Consideremos agora o papel da categoria da pluralidade em um
juízo da forma “Algum A é B”. O conceito de unidade (ser um A) não
basta para explicar o que se passa com, por exemplo, “Algumas mesas
são verdes”. Para poder aplicar “verde” a alguns objetos que são mesas e
não a outros, é preciso considerar as unidades que estão sob o conceito
“mesa” não simplesmente como unidades (relativamente a “mesa”). Do
ponto de vista do que faz de um objeto uma mesa, não há como distin-
guir entre diferentes mesas para aplicar um predicado somente a uma
parte da esfera do conceito-sujeito. Isto é, para um juízo particular, deve-
se poder levar em conta das mesas não só o que permite unificá-las como
mesas, 14 mas também que esses mesmos objetos têm outras característi-
cas que permitem distinguir uns dos outros e aplicar “verde” somente a
alguns deles. Nesse caso, deve-se (para o próprio uso do conceito-sujeito,
não só para estabelecer a relação sujeito-predicado) considerar que os
objetos não são caracterizados exclusivamente pelas propriedades em
Embora, é claro, também isso deva ser levado em conta para que o concei-
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Totalidade
Trata-se a seguir de explicitar a função da categoria da totalidade
em um juízo da forma “Este A é B”. O característico do juízo singular é
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contrário, pode funcionar sem fazer abstração das propriedades que são
particulares a, digamos, uma certa mesa singular – isto é, embora o con-
ceito seja sempre geral, o uso pode ser singular. Assim, o juízo singular
pode, para relacionar o conceito-predicado com objetos, levar em conta
propriedades que distinguem esta mesa de qualquer outra e predicar algo
não de todas as mesas, mas somente de uma entre elas. O juízo universal
aplica o predicado a todos os objetos representados pelo conceito-sujeito,
ao abstrair do que faz deles uma pluralidade. O particular aplica o predi-
cado a somente alguns desses objetos, levando em conta o que faz deles
uma pluralidade. Ora, o juízo singular não aplica o predicado a uma parte
da esfera, mas a um ponto na esfera. 21 Mas o ponto na esfera não pode
ser outro conceito (este teria extensão e vários objetos possíveis sob si).
Por outro lado, para poder ser pensado, esse “ponto” deve ser a unidade
de uma pluralidade. Assim, considerá-lo um ponto é considerá-lo como
distinto de todos os outros pelo fato de sua pluralidade formar uma tota-
lidade. Assim, o juízo universal aplica a todos em função de serem unida-
des relativamente a um conceito; o particular aplica a alguns em função de
conterem uma pluralidade em razão da qual podem ser distinguidos, e o
singular aplica a um em função de ser ele a totalidade de uma pluralidade. 22
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Dada a relação entre categorias da quantidade e pensamento (por
representações gerais de indivíduos singulares), acabamos por perceber
que, na verdade, são sempre as três categorias da quantidade que estão
envolvidas em qualquer uso dos conceitos para pensar objetos dados. Ou
seja, para que um juízo de qualquer uma das formas quanto à quantidade
faça referência a objetos, é necessário que esses sejam determinados pelas
três categorias da quantidade. A razão é, ao fim e ao cabo, que em qual-
quer juízo, em qualquer pensamento relacionado às coisas, precisamos
pensar indivíduos por conceitos. Em primeiro lugar, dada a relação entre
conceito e unidade, percebe-se que qualquer uso de um conceito envolve
tratar os objetos aos quais se pretende fazer referência como unidades
relativamente ao conceito utilizado. No entanto, a unidade não basta para
referir um conceito a uma coisa singular. Não basta justamente porque o
só conceito não é suficiente para a referência a singulares, já que singula-
res não são meras unidades, mas totalidades. Isto é, se objetos não fos-
sem determinados como totalidades, jamais poderiam ser referidos por
um conceito. Como a totalidade envolve também a pluralidade, aplicar
qualquer conceito é determinar o objeto como unidade, pluralidade e
totalidade. Daí que Kant poderá, adiante, falar sempre na aplicação das
categorias da quantidade como aplicação da categoria da quantidade. Para
uma coisa, ser uma quantidade é ser uma coisa idêntica a outras (cf.
B288). Nessa formulação, o papel de cada uma das categorias é claro: ser
uma coisa (totalidade) idêntica (unidade) a outras (pluralidade).
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Referências Bibliográficas
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