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Logic, Language and Knowledge.

Essays on Chateauriand’s Logical Forms


Walter A. Carnielli and Jairo J. da Silva (ed

CDD: 142.3

Kant e a Quantidade como Categoria do Entendimento


Puro 1

SÍLVIA ALTMANN

Departamento de Filosofia
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
PORTO ALEGRE, RS
saltmann@terra.com.br

Resumo: É lugar comum que, segundo Kant, a possibilidade da ciência depende da aplicação de certos
conceitos que são derivados do “modo de funcionamento” de nossa capacidade de pensar sobre objetos.
Também é lugar comum exemplificar tal afirmação pela noção de causalidade: como Hume fizera Kant
perceber, não podemos justificar a aplicação da noção de causalidade com base na experiência e, para Kant,
isso não é possível porque (i) a experiência já a pressupõe e (ii) a experiência já a pressupõe porque essa
noção é condição de possibilidade do nosso pensamento (que opera por juízos de certas formas) estar relacio-
nado às coisas. Segundo Kant, isso não vale só para a noção de causalidade, mas para doze categorias,
entre elas as categorias da quantidade. Da aplicação dessas categorias puras a um múltiplo temporal,
obtemos o conceito de número, e é a aplicação dessas categorias à forma dos objetos dados na experiência
possível (múltiplo espaço-temporal) que explica a possibilidade de seu tratamento matemático-geométrico.
Que o próprio conceito de número seja o resultado da aplicação de categorias derivadas do entendimento
puro implica, em última análise, que, se usamos o conceito de número na ciência, é em função de um modo
de pensamento finito como o nosso. O objetivo deste artigo é, em geral, indicar como podemos, a partir da
consideração da forma de um pensamento finito como nosso, chegar à necessidade da aplicação das categori-
as da quantidade. Em particular, gostaria de sustentar que, ao contrário do sugerido por muitos comenta-
dores, ao derivar as categorias da quantidade das formas do juízo quanto à quantidade, Kant não poderia
senão identificar as categorias da unidade e da totalidade às formas de juízo universal e singular respecti-
vamente. Por fim, gostaria de indicar também por que a relação entre as categorias da quantidade e nosso
modo de pensamento finito permite explicar que Kant, a partir de certo ponto, deixe de falar em “unida-
de”, “pluralidade” e “totalidade” e passe a tratar de, simplesmente, a categoria da quantidade.

Palavras-chave: Kant. Quantidade. Juízo. Categoria.

1Esse trabalho contou com o apoio de uma bolsa de produtividade em pes-


quisa do CNPq. Agradeço também especialmente aos professores Lia Levy e
Alfredo Carlos Storck pelos valiosos comentários a uma versão anterior deste
trabalho.

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 17, n. 1, p. 31-46, jan.-jun. 2007.
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É lugar comum que, segundo Kant, a possibilidade da ciência de-


pende da aplicação de certos conceitos que são derivados do “modo de
funcionamento” de nossa capacidade de pensar sobre objetos. Também é
lugar comum exemplificar tal afirmação pela noção de causalidade: como
Hume fizera Kant perceber, não podemos justificar a aplicação da noção
de causalidade com base na experiência e, segundo Kant, tal justificativa
não pode ser derivada da experiência pois (i) a experiência já a pressupõe
e (ii) a experiência já a pressupõe porque tal noção é condição para nosso
pensamento (que opera por juízos de certas formas) estar relacionado às
coisas. Segundo Kant, isso não vale só para a noção de causalidade, mas
para doze categorias, entre elas, unidade, pluralidade e totalidade. Da
aplicação de tais categorias a um múltiplo temporal, obtemos o conceito
de número, e é a aplicação dessas categorias à forma dos objetos dados
na experiência externa possível (múltiplo puro espaço-temporal) que
explica a possibilidade de seu tratamento matemático-geométrico. Que o
próprio conceito de número seja o resultado da aplicação de categorias
derivadas do entendimento puro implica, em última análise, que, se usa-
mos o conceito de número na ciência, isso ocorre em função de um mo-
do de pensamento finito como o nosso. 2
O objetivo deste artigo é, em geral, indicar como, a partir da con-
sideração da forma de um pensamento finito como o nosso, podemos
chegar à necessidade da aplicação das categorias da quantidade. Em parti-
cular, gostaria de indicar que, ao contrário do sugerido por muitos co-
mentadores, 3 ao derivar as categorias da quantidade das formas do juízo
quanto à quantidade, Kant não poderia senão identificar as categorias da
unidade e da totalidade às formas de juízo universal e singular respecti-

2Bem entendido, não é só em função disso, já que o conceito de número é,


nas palavras de Kant, uma determinação transcendental do tempo (que é forma da
sensibilidade, não do pensamento).
3 Cf. Kemp Smith (1930), p. 192 e Allison (1983), p. 350, n. 33.

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vamente. 4 Por fim, gostaria de indicar também por que a relação entre as
categorias da quantidade e o nosso modo de pensamento finito permite
explicar que Kant, a partir de certo ponto, deixe de falar em “unidade”,
“pluralidade” e “totalidade” e passe a tratar de, simplesmente, a categoria
da quantidade. 5
***
Para examinar a relação de cada categoria da quantidade com a
forma do juízo correspondente segundo Kant, pressuporei como kantia-
nas as seguintes teses:
1) o que recebemos, via sensibilidade, é uma multiplicidade;
2) pensamos objetos dados (coisas individuais) ao unificar (sinteti-
zar) essa multiplicidade dada pensando objetos sob conceitos;
3) pensamos objetos por conceitos ao pensarmos reunidas certas
notas que são representações parciais dos objetos representados pelos
conceitos;

4 Manley Thompson (1989), além de apresentar razões para a identificação da

unidade com juízo universal e da totalidade com o juízo singular, discute passa-
gens kantianas que parecem, à primeira vista, sugerir o contrário. Creio, como
pretende mostrar Thompson, que a aparente plausibilidade da identificação
“juízo universal-totalidade” e “juízo singular-unidade” depende de uma confusão
entre, de um lado, a consideração da esfera de objetos ou conceitos sob um
conceito e, de outro, conceitos de objetos (não de conjuntos de objetos) e da
peculiaridade do resultado da aplicação das categorias da quantidade a um múlti-
plo homogêneo (multiplicidade espacial, por exemplo). O primeiro ponto será
retomado ao longo deste artigo. Por outro lado, Thompson defende a necessária
identificação da totalidade com o juízo singular apelando principalmente para o
papel da categoria da quantidade em uma síntese dinâmica (envolvida na apreen-
são de objetos existentes e não simplesmente construções na intuição pura,
como no caso da síntese matemática). Minha tentativa neste artigo é “recuar” na
discussão e, ao invés de examinar o que resulta da aplicação das categorias da
quantidade nas sínteses matemática e dinâmica, procurar justificar, exclusivamen-
te a partir do modo de operação de um entendimento finito como o nosso, a
relação entre cada categoria da quantidade e a forma do juízo correspondente.
5 O número, em particular, será o esquema para a categoria da quantidade.

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4) uma vez que é sempre possível que mais de um objeto conte-


nha como notas as representações pensadas num conceito, conceitos são
sempre representações gerais, isto é, por notas que podem ser comuns a
mais de um objeto;
5) como os possíveis objetos sob um conceito podem sempre ser
distinguidos por uma nota adicional, todo conceito contém sob si uma
esfera possível de outros conceitos mais específicos;
6) representar um objeto através de um conceito é julgar – é unifi-
car a representação de um, alguns ou todos os objetos pensados por um
conceito-sujeito sob a representação de um conceito-predicado; 6
7) pensar sobre os objetos através de juízos envolve pensá-los co-
mo determinados pelas categorias – isto é, é condição de possibilidade da
relação entre os nossos pensamentos e as coisas que pensemos as coisas
como estando sob certos conceitos: as categorias.
Assim, obtemos, pela Lógica Transcendental, conceitos de um objeto
em geral: qualquer coisa, para ser objeto de pensamento, é pensada como

6Tenho consciência das dificuldades geradas pelas teses kantianas segundo as


quais (i) só pensamos por conceitos, (ii) conceitos só funcionam em juízos, (iii)
juízos são relações entre conceitos. Grosso modo, uma das dificuldades está em
explicar, em última análise, a aplicação do conceito-sujeito – parece que só pode-
ríamos sustentar que a aplicação de qualquer conceito depende da sua utilização
como predicado em juízos se aceitarmos uma representação inicial não-
conceitual no lugar da representação do sujeito. Uma segunda dificuldade análo-
ga surge se aceitarmos como kantianas indicações, por exemplo, da Lógica de
Jäsche, segundo as quais formamos conceitos por procedimentos judicativos a
partir da apreensão de indivíduos (apreensão essa que, por ser condição da for-
mação dos conceitos, não poderia, em última análise, depender sempre deles).
Embora acredite que essas dificuldades possam ser superadas se não identificar-
mos “operar em juízos” com “operar como predicado” e lembrarmos que, de
qualquer modo, dispomos, a priori, do conceito de objeto em geral, não tratarei
desses pontos aqui (por essa razão, afirmei que pressuporia como kantianas as
teses mencionadas). Meu objetivo aqui é simplesmente, supondo essas teses,
indicar a relação entre certas formas do juízo e as categorias da quantidade.

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determinada pelas categorias. Pelas categorias, determinamos objetos


eventualmente dados numa intuição como, por exemplo, quantidades.
Caso contrário, não poderíamos determinar nosso juízo verdadeiro em
função de tal objeto, 7 pois sua intuição não “serviria para julgar” 8 .

***
Se lembrarmos agora que as categorias são conceitos de um ob-
jeto em geral tais que algo não determinado por elas simplesmente não
poderia ser pensado por conceitos em juízos de três formas possíveis
quanto à quantidade, compreenderemos de que modo cada uma das
categorias da quantidade necessariamente determina um objeto pensado.

Unidade
Antes de considerarmos o uso universal de um conceito, é conve-
niente observar a relação de qualquer conceito com a unidade. Para tanto,
é útil um exemplo de Kant em A78/B104 9 . O conceito de dezena permi-
te a contagem quando de números mais altos porque permite ignorar
quaisquer outras diferenças entre grupos de dez objetos, considerando
somente, de cada um dos grupos, o que faz deles uma unidade – uma
dezena. Independente das peculiaridades do exemplo do conceito de
“dezena”, 10 o fato de podermos tratar dezenas como unidades chama
atenção para o seguinte: ser uma unidade é sempre relativo a um conceito

7 Cf. Prolegômenos, §39, Ak. iv 324.


8 Cf. Prolegômenos, §20, Ak. iv 300.
9 A referência à Crítica da Razão Pura (CRP) será sempre feita à paginação das

1a e 2a edições, A e B respectivamente. A tradução utilizada da segunda edição é


a de V. Rohden e U. Moosburger – In: Kant (Coleção Os Pensadores), Abril
Cultural, São Paulo, 1987 – Coleção "Os Pensadores" – Nova Cultural, 1987.
10 Em particular, não interessará aqui que se trata de um conceito não-

empírico.

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– tanto um soldado quanto um batalhão quanto um exército podem,


deste ponto de vista, ser considerados unidades.
Para chegarmos agora na especificidade da relação do uso univer-
sal de um conceito com a categoria da unidade, devemos observar o que
ocorre se consideramos, de coisas representadas como unidades relati-
vamente a um determinado conceito, somente aquilo em função do qual
dizemos que são representadas como unidades relativamente a esse con-
ceito. 11 Se consideramos, de diferentes coisas representadas pelo concei-
to-mesa, somente aquilo em função do qual as contamos como unidades
relativamente ao conceito-mesa, não fazemos referência a qualquer mesa
específica ou sequer a uma parte das coisas que estão sob o conceito-mesa.
Isso porque, ao consideramos somente o que as faz unidades relativamente
ao conceito-mesa, fazemos abstração de quaisquer diferenças entre elas.
Ora, é justamente essa possibilidade de considerar as coisas que
estão sob o conceito-mesa abstração feita de suas diferenças (isto é, abs-
tração feita daquilo que não é o que as qualifica como unidades relativa-
mente ao conceito-mesa) que torna possível o uso universal de um con-
ceito. No exemplo “Todos os corpos são pesados”, aplica-se o predicado
“ser pesado” a todas as coisas representadas por “corpo” porque, dos
corpos, só se leva em conta aquilo em função do qual se diz que são
unidades relativamente ao conceito-corpo.
É importante destacar que isso não torna necessariamente todo
juízo universal analítico. É possível, pela experiência ou com recurso a
princípios da ciência empírica, por exemplo, descobrir que uma determi-
nada característica das mesas “enquanto mesas” implica que todas te-
nham uma certa propriedade. Claro, isso implica que o que é pensado no

11Como veremos mais adiante, essa consideração somente daquilo em fun-


ção do qual algo conta como uma unidade relativamente a um conceito é uma
abstração: na verdade, para poder representar coisas sob conceitos, não bastará
representá-las como unidades, mas, mais propriamente, como unidades de plura-
lidades, isto é, como totalidades.

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conceito de mesa deverá ser revisto. Essa possibilidade permanente de


“revisão” de conceitos empíricos em função de juízos sintéticos explica
que não haja, para Kant, definições desses conceitos.12 Em suma, não é
simplesmente o fato de cada mesa ser uma unidade relativamente ao
conceito-mesa que nos permite estabelecer a relação entre conceito e
predicado, 13 mas é o fato de considerá-las como unidades relativamente
ao conceito-mesa que permitirá que essa relação (fundada seja lá como
for) possa ser pensada como valendo para todas as mesas. Suponhamos
que a biologia tenha determinado, por exemplo, pela experiência (não por
definição) que todo mamífero é vertebrado. Nesse caso, não foi sim-
plesmente o conceito “mamífero” que permitiu estabelecer a relação
conceito-predicado. Isto é, não foi a abstração de todas as propriedades
exceto as que fazem com que algo seja contado como uma unidade rela-
tivamente ao conceito mamífero que permitiu determinar a verdade da
ligação expressa pelo juízo. No entanto, para determinar a verdade dessa
ligação, foi necessário considerar o conjunto de todos os mamíferos e,
para essa consideração, foi necessário um uso do conceito “mamífero”
fazendo referência a todos os mamíferos. Ora, usar um conceito fazendo
referência a toda e qualquer instância sua é, pelo menos para estabelecer
o uso em referência a todos, desconsiderar as diferenças específicas entre
essas instâncias. Isso não significa que, uma vez estabelecida a relação
com todas essas instâncias, não passemos a levar em conta características
dos objetos que não aquelas que permitiram a referência universal, mas,
mais uma vez, o que permite o uso universal, o que permite a referência a
todos, é a abstração de tudo exceto o que faz deles unidades relativamen-
te ao conceito em questão.
A aparência de que o juízo universal envolveria a categoria da tota-
lidade ao invés da unidade provém de uma relação entre unidade, plurali-
dade e totalidade quando tais noções são compreendidas num sentido

12 Cf. Kant, Crítica da Razão Pura, B755-756.


13 Exceto, é claro, no caso de um juízo analítico.

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completamente diferente do da categoria da quantidade. É trivial dizer


que um juízo universal leva em conta todos os objetos, o particular, alguns,
e o singular, um. Como “Todo A é B” diz respeito a todos os objetos que
são A, tendemos a identificar a totalidade com o juízo universal. No en-
tanto, “todo”, “alguns” e “um” dizem respeito não a objetos como quanti-
dades, mas a quantidades de objetos. As categorias são conceitos de objetos.
Isto é, elas devem expressar não quantidades de objetos, mas objetos como
quantidades. Embora o juízo universal aplique o predicado a todos os
objetos representados pelo conceito-sujeito, aplica a todos porque os consi-
dera como unidades relativamente a esse conceito. Isto é, um juízo univer-
sal, quanto à quantidade de objetos, considera todos, mas faz isso porque os
objetos como quantidades são considerados como unidades.

Pluralidade
Consideremos agora o papel da categoria da pluralidade em um
juízo da forma “Algum A é B”. O conceito de unidade (ser um A) não
basta para explicar o que se passa com, por exemplo, “Algumas mesas
são verdes”. Para poder aplicar “verde” a alguns objetos que são mesas e
não a outros, é preciso considerar as unidades que estão sob o conceito
“mesa” não simplesmente como unidades (relativamente a “mesa”). Do
ponto de vista do que faz de um objeto uma mesa, não há como distin-
guir entre diferentes mesas para aplicar um predicado somente a uma
parte da esfera do conceito-sujeito. Isto é, para um juízo particular, deve-
se poder levar em conta das mesas não só o que permite unificá-las como
mesas, 14 mas também que esses mesmos objetos têm outras característi-
cas que permitem distinguir uns dos outros e aplicar “verde” somente a
alguns deles. Nesse caso, deve-se (para o próprio uso do conceito-sujeito,
não só para estabelecer a relação sujeito-predicado) considerar que os
objetos não são caracterizados exclusivamente pelas propriedades em

Embora, é claro, também isso deva ser levado em conta para que o concei-
14

to-sujeito possa fazer referência aos objetos.

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função das quais os contamos como unidades relativamente ao conceito-


sujeito, mas também que têm propriedades em função das quais pode-
mos dizer que se tratam de vários objetos (possíveis) sob o conceito-
sujeito. Para tanto, deve-se determinar os objetos em questão como “plu-
rais”, isto é, como não sendo simplesmente uma unidade, mas contendo
outros aspectos que não os que os qualificam como mesa.
Que a boa identificação da categoria da pluralidade seja não com
pluralidades de objetos, mas como objetos como pluralidades – isto é, como
contendo em si uma multiplicidade em função da qual podem ser distin-
guidos de outros – é confirmado pela relação que Kant estabelece entre a
categoria da pluralidade e o conceito de “verum” na “filosofia transcen-
dental dos antigos”. 15 Não cabe aqui analisar em detalhe o §12 da Crítica
da Razão Pura, mas nele Kant claramente estabelece uma relação entre a
categoria da pluralidade (um conceito transcendental das coisas) com a
verdade (exigência lógica do conhecimento das coisas) e a pluralidade dos
caracteres que pertencem a um conceito.
Mais uma vez, analogamente ao que se passa com o uso univer-
sal do conceito e categoria da unidade, temos que fazer a distinção (e
perceber a relação) entre fazer referência a uma pluralidade de objetos e a
consideração de objetos como pluralidades: para fazer referência a somente
alguns objetos sob um conceito, tais objetos não podem ser unidades
absolutas relativamente a um conceito comum, mas devem ser represen-
tados como contendo em si uma pluralidade em função da qual poderiam
ser distinguidos entre si, de modo a tornar concebível a aplicação do
predicado a somente uma parte da esfera do conceito-sujeito.

Totalidade
Trata-se a seguir de explicitar a função da categoria da totalidade
em um juízo da forma “Este A é B”. O característico do juízo singular é

15 Cf. Crítica da Razão Pura, B113-114.

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atribuir um predicado a um e um único objeto, de tal modo que essa


atribuição não se estenda a outros objetos que, eventualmente, tenham as
mesmas notas conceituais do conceito-sujeito. É preciso considerar o
objeto como uma unidade, mas não simplesmente em função do que faz
dele uma unidade relativamente a um conceito, mas enquanto um indiví-
duo. Enquanto representada, essa unidade dessa individualidade não
pode ser absoluta – a representação do objeto deve ser o resultado de
uma síntese para poder ser representada pelo entendimento, mas deve
permitir considerá-lo como distinto de todos os outros.
Ora, levando em conta que, para Kant, o pensamento do objeto é
sempre por representações parciais gerais (isto é, não há apreensão de
uma essência individual enquanto individual), a “singularização” acaba
sendo explicada pela “totalização”. Como observa Manley Thompson,
para leitores familiarizados com Leibniz, a identificação entre individua-
ção e categoria da totalidade deveria ser natural. 16
Compreendemos assim a associação, mais uma vez no §12 da
Crítica, entre a categoria da totalidade como conceito das coisas e a perfei-
ção como exigência lógica do conhecimento: a perfeição, diz Kant, “con-
siste no fato dessa pluralidade em conjunto reconduzir à unidade do
conceito, concordando inteiramente com este e com nenhum outro”. 17 Isso só
é possível na medida em que essa pluralidade forma um todo. 18 Nas

16Para Leibniz, só a apreensão do infinito permitiria conhecer o princípio de


individuação de algo, justamente porque, para distinguir uma coisa de outra, seria
necessário considerar a totalidade das suas propriedades e somente a apreensão
de infinitas propriedades poderia distinguir uma coisa de todas as demais. Segun-
do Kant, Leibniz chega a essa conclusão errônea por não distinguir entre coisas
em si mesmas e aparências. Para Kant, ao contrário, tal individuação dependerá
do recurso a algo extra-conceitual (determinação espaço-temporal), mas não cabe
desenvolver esse ponto aqui.
17 Crítica da Razão Pura, B114, grifo meu.
18 Que, como todo, ao contrário da unidade relativamente a um conceito,

não “deixa nada de lado”.

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Lições de Metafísica, 19 Kant escreve que “muitos, na medida em que é


um, é a totalidade. Essa coisa, na qual há a totalidade de muitas coisas, é
um todo”. Escreve também que “qualquer composto pode ser conside-
rado um todo, por exemplo, uma maçã”. 20
Ora, para usar um juízo singular, a pretensão é que se possa consi-
derar o objeto enquanto singular, como indivíduo, sem de antemão dei-
xar de lado qualquer característica sua. É claro que isso não significa que
se possa representar em pensamento a totalidade das suas características.
No entanto, na medida em que uma representação intuitiva dá o objeto
como um todo, ela permite que, no juízo singular, se faça referência a um
indivíduo.
É a possibilidade de considerar um objeto não exclusivamente por
abstração, mas como indivíduo, isto é, de referir à totalidade das suas
propriedades (ainda que não pela totalidade das mesmas), que permitirá a
um juízo singular até mesmo atribuir corretamente um predicado a um
sujeito identificado (junto com recursos extra-conceituais) por um con-
ceito-sujeito inadequado ao objeto. O papel do conceito-sujeito, quando
dispomos desses recursos, é distinguir o objeto de outros para poder
pensá-lo, mas isso por si só não determina quais propriedades lhe podem
ser atribuídas. Tanto que, quando dispomos de recursos extra-
conceituais, podemos apresentar ao pensamento um objeto através de
um conceito que não é perfeitamente adequado. Suponhamos, por e-
xemplo, que, para referir-se a algo, alguém utiliza a expressão “aquele
homem que está vestido de azul” e aponta para um bosque no qual há
uma única pessoa que é de fato uma mulher. Ainda assim, em “homem”,
pensamos mais traços que distinguem o objeto em questão de árvores do
que de mulheres, e o conceito serve para fazer referência ao objeto.
É claro que o conceito-sujeito funciona (como qualquer conceito)
na medida em que faz abstração de certas propriedades, mas o juízo, ao

19 Lições de Metafísica, Metafisica L2, Ak. xxviii 560


20 Lições de Metafísica, Metafisica L1, Ak. xxviii 196

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contrário, pode funcionar sem fazer abstração das propriedades que são
particulares a, digamos, uma certa mesa singular – isto é, embora o con-
ceito seja sempre geral, o uso pode ser singular. Assim, o juízo singular
pode, para relacionar o conceito-predicado com objetos, levar em conta
propriedades que distinguem esta mesa de qualquer outra e predicar algo
não de todas as mesas, mas somente de uma entre elas. O juízo universal
aplica o predicado a todos os objetos representados pelo conceito-sujeito,
ao abstrair do que faz deles uma pluralidade. O particular aplica o predi-
cado a somente alguns desses objetos, levando em conta o que faz deles
uma pluralidade. Ora, o juízo singular não aplica o predicado a uma parte
da esfera, mas a um ponto na esfera. 21 Mas o ponto na esfera não pode
ser outro conceito (este teria extensão e vários objetos possíveis sob si).
Por outro lado, para poder ser pensado, esse “ponto” deve ser a unidade
de uma pluralidade. Assim, considerá-lo um ponto é considerá-lo como
distinto de todos os outros pelo fato de sua pluralidade formar uma tota-
lidade. Assim, o juízo universal aplica a todos em função de serem unida-
des relativamente a um conceito; o particular aplica a alguns em função de
conterem uma pluralidade em razão da qual podem ser distinguidos, e o
singular aplica a um em função de ser ele a totalidade de uma pluralidade. 22

Que, como um ponto numa linha, não é uma parte da linha.


21
22Como será sempre o recurso extra-conceitual que permite a referência a
essa totalidade e como a lógica geral abstrai da relação com objetos, de um juízo
singular como “Caio é mortal”, ela só poderá levar em conta o que é pensado no
conceito “Caio”, o que não permitirá determinar um ponto na esfera. Como
escreve Kant, “ainda que tenhamos um conceito que apliquemos imediatamente a
indivíduos, sempre pode haver ainda relativamente a ele diferenças específicas
que ou bem não observamos ou bem desconsideramos” (Lógica, §11, Ak. ix 97).
No entanto, como um ponto não tem “partes”, do ponto de vista da lógica geral,
aplicar o predicado a um ponto ou a esfera toda sob um conceito dará na mesma
e, do ponto de vista da lógica geral, o juízo singular pode ser tratado como um
universal (cf. Crítica da Razão Pura, A71-B96).

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Mais uma vez, o que devemos compreender é a relação entre a


quantidade do juízo e o objeto como quantidade. É verdade que, no juízo
singular, fazemos referência a um único objeto. Mas para poder fazer
referência a um, é necessário determinar isso a que se faz referência como
uma totalidade: só essa totalidade é um singular, uma coisa.

***
Dada a relação entre categorias da quantidade e pensamento (por
representações gerais de indivíduos singulares), acabamos por perceber
que, na verdade, são sempre as três categorias da quantidade que estão
envolvidas em qualquer uso dos conceitos para pensar objetos dados. Ou
seja, para que um juízo de qualquer uma das formas quanto à quantidade
faça referência a objetos, é necessário que esses sejam determinados pelas
três categorias da quantidade. A razão é, ao fim e ao cabo, que em qual-
quer juízo, em qualquer pensamento relacionado às coisas, precisamos
pensar indivíduos por conceitos. Em primeiro lugar, dada a relação entre
conceito e unidade, percebe-se que qualquer uso de um conceito envolve
tratar os objetos aos quais se pretende fazer referência como unidades
relativamente ao conceito utilizado. No entanto, a unidade não basta para
referir um conceito a uma coisa singular. Não basta justamente porque o
só conceito não é suficiente para a referência a singulares, já que singula-
res não são meras unidades, mas totalidades. Isto é, se objetos não fos-
sem determinados como totalidades, jamais poderiam ser referidos por
um conceito. Como a totalidade envolve também a pluralidade, aplicar
qualquer conceito é determinar o objeto como unidade, pluralidade e
totalidade. Daí que Kant poderá, adiante, falar sempre na aplicação das
categorias da quantidade como aplicação da categoria da quantidade. Para
uma coisa, ser uma quantidade é ser uma coisa idêntica a outras (cf.
B288). Nessa formulação, o papel de cada uma das categorias é claro: ser
uma coisa (totalidade) idêntica (unidade) a outras (pluralidade).

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Assim, para relacionar qualquer conceito a um objeto, é necessário


determiná-lo como uma coisa entre outras. O que pode mudar é o uso do
conceito. Em função de uma diferença de uso do conceito-sujeito, faze-
mos referência a todos, alguns ou só um desses objetos. Em razão disso,
uma das três categorias expressará o aspecto determinante para o juízo
ser determinado verdadeiro em função dos objetos dos quais ele, o juízo,
num certo uso do conceito-sujeito, trata. As três categorias, juntas, permi-
tem que se aplique o conceito-sujeito a objetos da intuição. As três são,
pois, necessárias para qualquer juízo: aplicar qualquer uma é aplicar todas.
A diferença entre os juízos quanto à quantidade acarreta uma diferença
quanto a qual aspecto da categoria é determinante para o uso do conceito
no juízo em questão. Do fato de pensarmos através de juízos de três
formas possíveis quanto à quantidade, segue-se que a categoria da quan-
tidade envolve necessariamente os três aspectos: unidade, pluralidade,
totalidade.
***
A relação entre a quantidade dos juízos e suas categorias evidencia
a explicação dos Prolegômenos, segundo a qual as categorias são conceitos
necessários para que objetos sirvam para julgar. 23 Para que um juízo da
forma “Todo A é B” seja verdadeiro (ou falso) em função de objetos, é
necessário que os objetos sejam unidades (relativamente ao conceito A).
Para um juízo da forma “Algum A é B”, é necessário que os objetos
contenham uma pluralidade, possam ser distinguidos por propriedades
que não as reconhecidas em A. Finalmente, para um juízo da forma “Es-
te A é B”, é necessário poder considerar uma pluralidade como unidade –
isto é, determinar algo como uma reunião de pluralidades que é uma
unidade não pela abstração do que não está contido no conceito utilizado
para pensá-lo, mas por ser uma totalidade. Para qualquer uma dessas
formas, é necessário que um conceito determine uma totalidade (unidade

23 Cf. Prolegômenos, §20, Ak. iv 300.

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 17, n. 1, p. 31-46, jan.-jun. 2007.
Kant e a Quantidade como Categoria do Entendimento Puro 45

de pluralidade), vale dizer, é necessário que os objetos dos quais o juízo


trata sejam quantidades.
***
Conclusão: por que as coisas são quantidades? Porque, como coi-
sas singulares da experiência possível, são a “totalização” de uma multi-
plicidade. E que todo objeto seja uma unidade relativamente a um conceito
e contenha uma pluralidade que forma uma totalidade é conseqüência do
fato de pensarmos sempre coisas singulares por representações gerais
(conceitos), cuja aplicação a indivíduos depende de esses indivíduos se-
rem determinados como a totalização de uma pluralidade para poder ser
pensados pelos nossos conceitos. Portanto, as coisas são quantidades
(totalidades de uma pluralidade) porque pensamos por conceitos – te-
mos, assim, o fundamento na forma do pensamento da noção das coisas
como quantidades.
A conseqüência disso é que a própria legitimidade desse “tratar as
coisas como quantidades” dependerá de provar, como Kant pretende
fazer na Dedução Transcendental, a necessária adequação das coisas que nos
são dadas às condições do pensamento. Grosso modo, para Kant, isso
dependerá de mostrar que a unidade do dado não é outra senão a do
entendimento. Qualquer que seja a multiplicidade dada, ela será dada na
forma da intuição pura do tempo e, no caso de um objeto do sentido
externo, na forma da intuição pura do espaço. Essa forma, enquanto
forma pura, é uma multiplicidade homogênea, e a aplicação das noções
de quantidade a um múltiplo homogêneo é a aplicação do conceito de
número. Como qualquer objeto experimentado é dado nessa forma pura
e não tem, enquanto objeto da experiência, outra unidade que não a con-
ferida pela aplicação das categorias, todo objeto da experiência poderá,
legitimamente, ser tratado matematicamente. Mas, uma vez que a aplica-
ção da própria noção de quantidade é derivada não da experiência dos
objetos, mas das condições de operação do nosso entendimento, essa

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 17, n. 1, p. 31-46, jan.-jun. 2007.
46 Sílvia Altmann

legitimidade depende da prova da adequação do dado às nossas condi-


ções de representação, e essa prova só pode ter por ponto de partida as
condições de representação – isto é, só pode ser resultado de uma inves-
tigação transcendental no sentido kantiano. Essa conclusão é conseqüên-
cia simplesmente da seguinte consideração: se tratamos as coisas como
quantidades porque esse é o único modo pelo qual podemos pensá-las,
que sentido faz dizer que assim as tratamos porque as experimentamos
como quantidades? Dizer que as tratamos como quantidades porque
percebemos que o são dependeria de mostrar que poderíamos pensá-las de
outro modo (em suma, para que a coisa fosse a medida da representação,
a representação deveria ser, nos termos de Wittgenstein, bipolar). Mas
parece difícil ver como isso seria possível aceitando que pensamos por
conceitos que representam, por notas gerais, coisas singulares.

Referências Bibliográficas

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don: MacMillian and Co., 1930. (2.ed.)
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KANT, I. Prolegômenos. Trad. por T. M. Bernkopf. São Paulo: Abril
Cultural, 1980. (Coleção Os Pensadores)
KANT, I. Crítica da Razão Pura. Trad. por V. Rohden e U. Moosburger.
São Paulo: Abril Cultural, 1987. (Coleção Os Pensadores)
KANT, I. Lógica. Trad. por Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro:
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Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 17, n. 1, p. 31-46, jan.-jun. 2007.

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