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1. Título de artigo de Joel Birman (“Se eu te amo, cuide-se – Sobre a feminilidade, a mulher e o
erotismo nos anos 80”) em M.T. Berlinck (org.) Histeria.
2. Os biógrafos de Freud confirmam que o atendimento de Dora se deu em 1900, ainda que ele
tenha se enganado mais de uma vez imaginando que o ano tivesse sido 1899.
3. Bruchstück einer Hysterie-Analyse, em alemão.
4. Dora é um dos cinco grandes casos clínicos publicados por Freud, juntamente com Pequeno
Hans, Schreber, Homem dos ratos e Homem dos lobos.
5. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 15.
6. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 23.
7. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 24.
A transferência na histeria – um estudo no caso Dora de Freud 25
nos psiconeuróticos”8. A falta deste re- ... se desenrola inteiramente nessa rela-
conhecimento implicou um manejo de- ção sujeito a sujeito”12. A fala do pacien-
ficiente da transferência que levou, como te se constitui na presença do analista.
o próprio Freud reconhece, ao término Não é possível assim pensar o paciente
prematuro da análise. Escrevendo para como um objeto, como uma coisa com
Fliess em 1901 depois do término da características a serem examinadas por
análise, ele fala da importância na histe- um cientista devidamente distanciado. A
ria do conflito “desempenhado pela opo- psicanálise permanece como uma rela-
sição entre uma atração pelos homens e ção onde um sujeito está diante de ou-
outra pelas mulheres”9. Esta ambivalên- tro sujeito. Paciente e analista relacio-
cia de identificações masculina e femi-
nam-se e mutuamente influenciam-se.
nina na histeria, que descobriu em Dora,
Trata-se de um diálogo, de uma dialéti-
provocou profundamente o pensamen-
ca, diz Lacan: “A psicanálise é uma ex-
to de Freud. Muito tempo depois do tér-
periência dialética, e essa noção deve
mino do tratamento, Freud ainda conti-
nua pensando sobre os temas nele en- prevalecer quando se coloca a questão
volvidos10. O presente trabalho tem a in- da natureza da transferência.”13
tenção de iluminar a questão da transfe- É no caso Dora que Freud reconhece
rência na histeria a partir do estudo do claramente que o analista participa da
caso Dora.11 transferência e não só o paciente14. É
com esta experiência que fica claro para
A DUALIDADE TRANSFERENCIAL ele que sua escuta de Dora determina,
Jacques Lacan, em seu artigo “Interven- ao menos em parte, o que ela vai dizer.
ção sobre a transferência”, discute a Suas atitudes e interpretações podem
questão da transferência no caso Dora. abrir ou fechar a possibilidade do avan-
Afirma que “a experiência psicanalítica ço da análise. Freud ainda não tinha tanta
experiência clínica; é com este caso que que o analista pode atrapalhar. A técnica
percebe o fenômeno dual da transferên- fica menos diretiva: “... agora deixo que
cia. Ele reconhece “as severas exigên- o paciente determine o tema do trabalho
cias que a histeria faz ao médico e ao cotidiano”17. Dora se tornou tão funda-
investigador”. Percebe que estas exigên- mental para Freud porque foi com ela
cias “só podem ser satisfeitas pelo mais que percebeu pela primeira vez que a
dedicado aprofundamento, e não por análise não avançou por uma limitação
uma atitude de superioridade e despre- do próprio analista, no caso, ele mesmo
zo”. Por fim cita Goethe: “Nem só a – Freud.
Arte e a Ciência/ No trabalho há que
REVIRAVOLTAS DIALÉTICAS
mostrar paciência”15. Ele percebe que
está implicado no processo. Com hu- No já citado artigo de Lacan, o autor
mildade e paciência é que o analista des- francês diz ser possível pensar o caso
cobre em que lugar está colocado pelo Dora por meio de uma série de revira-
paciente ou em que lugar se coloca in- voltas dialéticas. A interpretação do ana-
conscientemente. lista produziria estas reviravoltas no re-
Até este caso, Freud estava acostuma- lato do paciente. Dora conta que a Sra. K.
do a pensar a resistência do lado do pa- e seu pai são amantes há muitos anos e
ciente. O analista sempre trabalha para dissimulam o relacionamento com ficções
levantar a resistência, pensava ele. A par- que beiram o ridículo. O terrível, anun-
tir de Dora, percebe que a resistência cia Dora, é que deste modo ela fica su-
pode estar do lado do analista também. jeita às insinuações do Sr. K. Seu pai fe-
Ele já sabia que uma relação de con- cha os olhos para evitar chamar atenção
fiança era necessária para vencer os sobre seu próprio relacionamento com a
“sentimentos de timidez e vergonha”16 Sra. K. Dora seria uma espécie de moe-
do paciente de forma que pudesse falar da de troca que compra o silêncio do Sr. K.:
tudo o que tem na consciência. Ele sa- Quando ficava com ânimo mais exaspera-
bia que a interpretação do analista era do, impunha-se a ela a concepção de ter
necessária para trazer à tona o material sido entregue ao Sr. K. como prêmio pela
inconsciente e recompor as lacunas de tolerância dele para com as relações entre
memória. Mas Freud pensava até aqui sua mulher e o pai de Dora; e por trás da
que o analista sempre ajudava a análise. ternura desta pelo pai podia-se pressentir
A esta época, no entanto, ele percebe sua fúria por ser usada dessa maneira.18
havia sacrificado sem um momento de he- tério da feminilidade para Dora. Ou seja,
sitação para que seu relacionamento com Dora precisaria da Sra. K. para poder
o pai de Dora não fosse perturbado. Essa reconhecer a sua própria feminilidade.
ofensa talvez a tenha tocado mais de per- Como ela não pode se aceitar como ob-
to e tido maior efeito patogênico... Creio
jeto de desejo, ela precisa da Sra. K. para
não estar errado, portanto, em supor que
a seqüência hipervalente de pensamentos
sustentar esta posição. Se Freud, em
de Dora, ... destinava-se não apenas a su- uma terceira reviravolta, tivesse podido
primir seu amor pelo Sr. K., que antes fora orientar Dora para o reconhecimento do
consciente, mas também a ocultar o amor que significava a Sra. K. para ela, um
pela Sra. K.22 mundo de novas informações sobre o
relacionamento das duas poderia ter apa-
O que move Dora é o ciúmes da Sra.
recido.
K. Quando não se vê amada por ela, Dora
Freud explica que não pôde apreciar a
ameaça suicídio e exige que o pai acabe
tempo o laço homossexual que unia Dora
o relacionamento com sua amante.
à Sra. K.:
A REVIRAVOLTA DIALÉTICA
Quanto mais me vou afastando no tempo
QUE FICOU FALTANDO
do término dessa análise, mais provável me
O que Lacan procura mostrar em seu parece que meu erro técnico tenha consis-
ensaio é que ficou faltando neste trata- tido na seguinte omissão: deixei de desco-
mento de Dora uma terceira e última re- brir a tempo e de comunicar à doente que
viravolta dialética, que Freud não pode a moção amorosa homossexual (ginecofíli-
fazer: “... aquela que nos mostraria o va- ca) pela Sra. K. era a mais forte das cor-
rentes inconscientes de sua vida anímica.
lor real do objeto que é a Sra. K, para
Eu deveria ter conjeturado que nenhuma
Dora”23. A Sra. K. se transformou para
outra pessoa poderia ser a fonte principal
Dora no mistério de sua própria femini- dos conhecimentos de Dora sobre coisas
lidade, mas especificamente no mistério sexuais senão a Sra. K., a mesma pessoa
de sua feminilidade corporal. que depois a acusara por seu interesse
Lacan chega aqui ao que considera o nesses assuntos... Antes de reconhecer a
cerne da questão. O problema para toda importância da corrente homossexual nos
mulher “é no fundo o de se aceitar como psiconeuróticos, fiquei muitas vezes atra-
objeto do desejo do homem”24. É por palhado ou completamente desnorteado no
esta razão que a Sra. K. se torna o mis- tratamento de certos casos.25
Lacan assevera que esta dificuldade em achava que Dora deveria se apaixonar
reconhecer a tendência homossexual en- por um homem. A transferência negati-
tre os histéricos se deve a um precon- va de Dora (que a levou a interromper
ceito de Freud. Ele sente simpatia pelo o tratamento) deve ser entendida então
Sr. K. e atração por Dora. Por ter se co- como uma resposta (raivosa) às dificul-
locado “um pouco demasiadamente no dades impostas ao tratamento pelo pró-
lugar do Sr. K.”26 ficou impedido de ver prio Freud. Devido ao seu preconceito,
a atração de Dora pela Sra. K. e de inter- Freud não pode ver a ligação de Dora
pretar esta atração. Por este motivo nar- com a Sra. K. Talvez, mais que isto, seja
císico contratransferencial, Freud se vol- necessário dizer que o que escapou à
ta ao amor que o Sr. K. inspiraria em Dora. compreensão de Freud foram as identi-
O que nem sempre Dora confirma. ficações masculinas de Dora. O preço a
Lacan pergunta ainda neste seu artigo o pagar por esta falta de percepção foi o
que de fato aconteceu na cena do lago término abrupto da análise.
que colocou Dora doente e necessitada Se Freud tinha uma transferência com
de ajuda. A resposta está no próprio tex- Dora que toldou sua percepção, esta
to. O Sr. K. teve apenas tempo de dizer transferência deve ser analisada. Dora
algumas palavras: “Sabe, não tenho nada está identificada a um personagem mas-
com minha mulher”27. Como resposta a culino, o Sr. K., de maneira que ela pode
estas palavras, Dora lhe dá uma bofeta- facilmente se identificar com Freud.
da. Deste modo se rompe o feitiço de Freud percebeu o deslocamento pai de
Dora em relação ao Sr. K. Se ele não se Dora/Sr. K./o analista Freud, mas ima-
interessa por sua mulher, então Dora ginou que as figuras masculinas eram
também não se interessa ele. O interes- objeto de amor e não de identificação.
se de Dora pelo Sr. K. só se sustenta na A identificação viril de Dora, cuja ma-
medida em que ele está ligado à Sra. K. triz infantil pode ter sido sua identifica-
No momento em que ela percebe que ção com o irmão mais velho, não teve
não há ligação real entre ele e sua mu- uma apreensão mais completa da parte
lher, o triângulo se desfaz. de Freud.
Podemos relacionar o discurso histéri-
A TRANSFERÊNCIA DE FREUD
co de Dora ao desejo de Freud, como
Lacan declara em outro artigo que Freud quer Serge Cottet29. A transferência de
tentou modelar o ego de Dora28. Ele Dora se modula pelo desejo freudiano de
direção. O que parece estar em jogo efe- caracteriza a ligação de Dora com a Sra.
tivamente são os complexos mecanis- K. como homossexual. Quando, reco-
mos de identificação histéricos que va- menda André, o melhor seria falar em
cilam entre uma bipolaridade sexual. “uma homossexuação do desejo de Dora,
Dora, por um lado, se identifica com o homossexuação ligada aos desvios das
Sr. K. (identificação masculina), com seu identificações pelas quais ela deve pas-
pai e com Freud para poder desejar a sar para interrogar sua própria feminili-
Sra. K. Por outro lado também se iden- dade”34. A histérica se colocaria no lu-
tifica com a Sra. K. (identificação femi- gar masculino para apreciar o valor que
nina), desejando ser amada pelo Sr. K. a mulher recebe do desejo masculino.
e por seu pai à maneira pela qual a Sra. Dora não forma um par sexual com a
K. é amada por esse último. Esta com- Sra. K., pelo contrário. Tendo demarca-
plexidade identificatória só encontrará al- do a posição da Sra. K., do ponto de vis-
guma tematização em Freud em seus ar- ta do homem, Dora conclui que gosta-
tigos no final de vida, especialmente os ria de ser amada por um homem como
artigos sobre a feminilidade32. Freud en- a Sra. K. é amada por seu pai.
tão se aperceberá da profunda assime- O que à luz de Mais, Ainda se pode di-
tria do Édipo feminino e se dará conta zer é que para Dora, a Sra. K. é objeto
de que tanto menino como menina têm do amor de seu pai para além dela pró-
como primeiro objeto de amor a mãe. O pria, quer dizer, como suplemento de
chamado Édipo completo não está de- feminilidade da qual ela mesma se sente
senvolvido à época de Dora. em falta. O mesmo vale em relação ao
Serge André nos mostra em seu livro O Sr. K., Dora pode aceitar seus galan-
que quer uma mulher?33, que no Semi- teios desde que permanece um mais além
nário Mais, Ainda, Lacan fala da mulher da Sra. K. Neste sentido, o processo
como um mais além do desejo masculi- todo vai denunciar nem tanto a homos-
no. Neste seminário a feminilidade é vista sexualidade de Dora, como o lugar super-
além da condição de desejada pelo sexo valorizado que a Sra. K. ocupa para ela
masculino. Trata-se de um acréscimo de como encarnação da feminilidade.
Lacan que não descarta o anteriormen- Recolocando então a questão transferen-
te dito sobre Dora e a feminilidade. Sem cial, o que se precisa dizer é que o que
este desenvolvimento, Lacan também Dora está fazendo é colocar a questão
38. Conferir a seção “Um eu insatisfeito” in J.D. Nasio. A histeria – Teoria e clínica psicanalítica,
pp. 15 e 16.