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2010
1
AGRADECIMENTOS
2
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.........................................................................................................................6
CAPÍTULO 1............................................................................................................................ 7
PRESSUPOSTOS TEÓRICOS PARA UMA SOCIOLOGIA JUDICIÁRIA....................7
1.1 Contribuições de Max Weber para uma sociologia judiciária......................................... 7
1.1.7 Marcos destacados da sociologia de Weber para uma reflexão dos direitos
fundamentais hoje............................................................................................................. 17
1.2.1 Introdução................................................................................................................. 17
1.2.4 Herbert Hart e Ronald Dworkin entre o auge e a crise do positivismo jurídico .........25
1.2.4.2 A visão reformista do positivismo jurídico de Genaro Carrió a partir das teses de
Hart e Dworkin................................................................................................................... 26
3
1.3.1 A Escola de Frankfurt e Habermas........................................................................... 35
1.4 Conclusão preliminar e geral dos pressupostos teóricos de uma sociológica judiciária:
aspectos destacados de uma hermenêutica sociológica dos Direitos Fundamentais........40
CAPÍTULO 2.......................................................................................................................... 42
IMPORTÂNCIA, PROTAGONISMO E DESAFIOS DO PODER JUDICIÁRIO PARA
A DEMOCRACIA NA TRANSIÇÃO DE SÉCULO – COMENTÁRIOS AS ADINS
1351-3 e 1354-8 – CONSTITUCIONALIDADE DA CLÁUSULA DE BARREIRA........42
2.1 Considerações gerais sobre o tema............................................................................ 42
2.1.1 Introdução................................................................................................................. 42
CAPÍTULO 3.......................................................................................................................... 57
CONSTITUIÇÃO, DIREITOS FUNDAMENTAIS E DIREITO PRIVADO
TRANSVERSALIDADE, EXIGIBILIDADE E PROTEÇÃO NO RE 201.819...............57
3.1 Considerações preliminares sobre o ponto em questão.............................................. 57
3.1.6 O Direito internacional dos direitos humanos fundamentais como instância recursal
.......................................................................................................................................... 64
4
CAPÍTULO 4.......................................................................................................................... 77
PODER JUDICIÁRIO E NOVOS DIREITOS – CASOS DIFÍCEIS E
RESPONSABILIDADE CIVIL DE FUMAGEIRAS..........................................................77
4.1 Considerações preliminares sobre “casos difíceis”...................................................... 77
4.1.1 Introdução................................................................................................................. 77
4.1.2 Algumas ideias sobre “casos difíceis” e direito dos consumidores .......................... 77
CAPÍTULO 5.......................................................................................................................... 93
PODER JUDICIÁRIO E NOVOS DIREITOS II – PRINCÍPIOS DA PRECAUÇÃO E
DA INFORMAÇÃO NO DIREITO AMBIENTAL E NO DIREITO DO
CONSUMIDOR – DISCUSSÃO SOBRE TRANSGÊNICOS............................................93
5.1 Considerações gerais sobre o tema............................................................................ 93
5.1.1 Introdução................................................................................................................. 93
5.2.2 Discussão final sobre a doutrina geral básica, o sistema e a estrutura da área do
direito em questão........................................................................................................... 104
REFERÊNCIAS....................................................................................................................121
5
INTRODUÇÃO
Este livro contém ideias sobre sociologia teórica e aplicada ao direito, a qual se está
atribuindo o nome de sociologia judiciária. Sua confecção se deve ao interesse dos cursos de
Sociologia do Direito da Enfam – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento da
Magistratura –, vinculada ao STJ – Superior Tribunal de Justiça –, de possuir alguma base
inicial de discussão. Em síntese, trata-se de um estudo compreensivo e propositivo de
aspectos relevantes à realidade do direito, especialmente dirigidos para pensar e otimizar os
serviços de justiça (modernização, desburocratização, eficácia, hermenêutica, aplicação do
direito, etc.).
Por tratar-se de uma pretensão muito ampla e complexa 1, um estudo completo dessa
matéria demandaria muito tempo para ser integralmente realizado. Por isso, o que ora se
mostra intenta focar pelo menos dois ângulos importantes para um projeto como o referido: a)
os pressupostos teóricos da sociologia e do direito para se pensar uma sociologia judiciária, e,
b) realizar um exercício hermenêutico inicial com alguns “casos difíceis” no âmbito dos
direitos fundamentais.
Nosso estudo tem como marco teórico inicial Max Weber por esse autor pretender
enfrentar criticamente o tema da racionalização no mundo moderno e no direito em particular,
discussão essa que se aprofunda na denominada pós-modernidade. Desde Weber, o processo
formativo dos juristas tem se colocado como fundamental, quer nos termos de uma
preocupação de como a sociedade se vê no direito, quer como na direção de uma preocupação
de como o direito se vê ou realiza suas pretensões de validade no âmbito social. Um leque de
questões atinentes às discussões sobre o Estado Democrático de Direito, virá, certamente, à
tona, dentre as quais destacamos a importância do processo formativo, evolutivo e
transformador da “razão moderna”, que iremos discutir a partir de autores da envergadura de
Jürgen Habermas, John Rawls, Ronald Dworkin e Robert Alexy, entre outros.
Enfim, como se trata de realizar este estudo a partir da consideração de casos,
privilegiar-se-ão os ditos novos direitos, a exemplo do consumidor, ambiental e cultural
(multicultural – etnias, raças, gênero, deficientes, etc.).
1
Como é exemplo a proposta de “revolução democrática da justiça” de Boaventura de Souza Santos que inclui
os seguintes itens: a) As reformas processuais para o enfrentamento da morosidade; b) A ampliação do acesso à
justiça; c) Continuidade das inovações institucionais; d) A formação contínua dos magistrados em relação à
cultura jurídica; e) As relações dos tribunais com os media; f) Enfrentar corporativismos da cultura jurídica e
lutar pela independência judicial.
6
CAPÍTULO 1
PRESSUPOSTOS TEÓRICOS PARA UMA SOCIOLOGIA JUDICIÁRIA2
Fazendo uso aqui da excelente obra de Renato Treves sobre sociologia do direito 5, é
possível de se constatar que as preocupações sociológicas, sobretudo com Weber,
necessariamente não se resumem a estudar as consequências e, quiçá, tenham bastante a ver
com os fundamentos, assim como atravessam expressamente as questões relativas ao
exercício do poder e do direito na modernidade.
Procurando explicar o recém dito e tendo como companhia Treves, o saber
sociológico aplicado ao direito tem se apresentado, por um lado, como um conjunto de
preocupações macrossociais, e, por outro, com um conjunto de preocupações, por assim dizer,
micro-sociais. Nas palavras do professor italiano, preocupações com as grandes funções do
direito na sociedade e com as discussões a respeito de como a sociedade se vê no direito, ou,
então, o que mais especificamente poderia ser pensado para uma maior aproximação entre
realidade e direito.
Nesse ponto, gostaríamos de iniciar com o reforço de uma afirmação de Treves 16 que
parece didática para uma possível descrição fenomenológica da sociologia de Weber em
movimento: “Weber escreve transitando da visão global de análise das estruturas e
instituições à possibilidade de colher o significado do agir multiforme do homem, que cria
essas estruturas e instituições, e procura compreender a partir do interior como os homens
julgam, apreciam e utilizam as várias relações sociais.”
Na mesma direção, Hirst nos mostra que as categorias sociológicas weberianas
acarretam e produzem o conteúdo de uma central pressuposição transcendental: “o sujeito
humano como ser livre para projetar significados e buscar fins está na base da sociologia geral
de Weber. A natureza do objeto da sociologia deriva dos atributos desse sujeito humano livre”
17
.
13
Cfe. “Evolução social e categorias sociológicas”. Trad. Sônia B. Sales Gomes. Rio e Janeiro: Zahar Editores,
1977, p.53.
14
Cfe. “Evolução social...” op.cit.p. 53. Para uma crítica à metodologia weberiana, pode ser consultada a obra “O
direito na sociedade moderna”, de Roberto Mangueira Unger. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1979.
Ver especialmente o problema do método na teoria social, quando o autor diz que, para os fins de seu livro, o
que interessa sobre as teorias sociais clássicas é o que elas têm em comum, senão que o método dialético
desenvolvido por Marx, o tipo ideal desenvolvido por Weber e o estruturalismo contemporâneo são meras
tentativas de fugir ao incômodo dilema entre racionalismo e historicismo, p. 26.
15
“Sociologia…”, op.cit., p. 154.
16
Idem, op. cit., p. 154.
17
Cfe. Hirst, op.cit.p.75.
13
Assim, em “Economia e sociedade”, Weber define a “sociologia” “como uma ciência
que pretende entender, interpretando-a, a ação social para, dessa maneira, explicá-la
causalmente em seus desenvolvimentos e efeitos”18. Logo a seguir, assinala que, por “ação”,
“deve entender-se uma conduta humana (ainda que consista em um fazer externo ou interno),
sempre que o sujeito ou sujeitos da referida ação, tenha em conta um sentido subjetivo”.
Assim, por “ação social” “entende aquela na qual o sentido pensado pelo seu sujeito ou
sujeitos está referida a conduta de outros, orientando-se por estas em seu desenvolvimento”19.
Portanto, a ideia de “sentido”, entendido este como aquilo que é pensado e que integra a
dimensão subjetiva dos sujeitos da ação, o qual, além de variável, é extremamente elástico,
possui uma importância central para qualquer investigação que pretenda estudar, por exemplo,
a integração e a desintegração social, a classificação das condutas conduzidas por uma
razoabilidade ou simplesmente reativas, ou mesmo que queira estudar o que se encontra na
base das diversas formas de “leis” que vão sendo construídas social e historicamente.
Dada a complexidade e as possíveis confusões sobre o que entender, como se originam
e se propagam os sentidos, Weber assinala que a tarefa essencial da “compreensão” do sentido
da ação social equivale à captação interpretativa do sentido ou conexão de sentido: a) pensado
realmente na ação particular (na consideração histórica); b) pensado como uma média e de
modo aproximativo (na consideração sociológica de massa); c) construído cientificamente
(pelo método tipológico) para a elaboração do tipo ideal de um fenômeno frequente. Isso
possibilita, por exemplo, estabelecer como deveria se desenvolver uma conduta humana para
que, em determinadas condições históricas, alcançasse um determinado objetivo, atendendo a
um “motivo” que, como diz Weber, seria “a conexão de sentido que para o ator e o
observador aparece como fundamento com sentido de uma conduta”20.
Enfim, como diz Weber, para outros fins de conhecimento, pode ser útil ou necessário
conceber o indivíduo, por exemplo, como uma associação de células, ou como um complexo
de reações bioquímicas, ou sua vida psíquica construída por vários elementos (de qualquer
forma que se os qualifique). Agora bem, a captação da conexão de sentido da ação é
cabalmente o objeto da sociologia21.
Dito isso, cabe de imediato referir que a análise descritiva (ou mesmo empírica) das
sociedades históricas é realizada por Weber, como é de conhecimento acadêmico, a partir de
“tipos ideais” construídos pelo cientista. Conforme o autor, “o método científico consistente
18
“Economia...”, op.cit..p. 5.
19
Idem, p. 5.
20
Weber, “Economia...”, op.cit.p.10.
21
Idem, p. 12.
14
na construção de tipos que investigam e expõem todas as conexões de sentido irracionais,
afetivamente condicionadas, dos comportamentos que influem na ação, como desvios de um
desenvolvimento da mesma, construída como puramente racional com respeito a fins”.
A título de exemplo, a construção – tipológica – de uma ação rigorosamente racional
com respeito a fins serve, nesses casos, à sociologia – em razão dos méritos de sua evidente
inteligibilidade e, enquanto racional, de sua univocidade – como um tipo (tipo ideal) mediante
o qual (se torna possível) compreender as ações reais, quando influenciadas por
irracionalidades de toda a espécie (afetos, erros), como desvios do desenvolvimento esperado
da ação racional.
Com efeito, como diz Weber, somente em função dessas conveniências metodológicas
(tipos ideais) para a observação, é que se poderia denominar o método da sociologia
compreensiva como racionalista. Não há em Weber nenhuma pressuposição de que haja, por
exemplo, um predomínio do racional na vida cotidiana22. O método compreensivo e
individualizante de Weber, por sua vez, não significa nem uma valoração positiva do
racionalismo por parte do cientista, nem muito menos uma valoração do individualismo
enquanto tal; apenas que tal método, por exemplo, permite compreender que serviço presta
um rei, um funcionário, um empresário, para que se possa construir uma ação típica23.
Segue-se na obra de Weber, então, um aprofundamento de vários conceitos, dentre os
quais o de ação social e relação social. Sobre a ação social, tal como já foi dito, Weber a
define como aquela que se orienta pelas ações dos outros, passadas, presentes ou esperadas
como futuras (vingança por prévios ataques, réplica a ataques presentes, medidas de defesa
frente a ataques futuros). Os outros, diz Weber, podem ser entendidos como pessoas
individualizadas e conhecidas ou então como uma pluralidade de indivíduos indeterminados e
completamente desconhecidos. Cumpre lembrar, também, que nem toda ação é social,
sobretudo aquelas relacionadas tão somente com necessidades físicas, senão que mais
propriamente sociológicas são aquelas norteadas por finalidades e, nesse sentido, podendo
estar orientadas, além de outros sujeitos, também por bens materiais, como o dinheiro, etc.24
Numa de suas classificações mais gerais, Weber fala das seguintes formas de agir
social: a) o afetivo; b) o tradicional; c) o racional com relação ao valor; e, d) o racional em
relação a um objetivo.
Quanto à “relação social”, devemos entendê-la como uma conduta plural – de vários –
que, pelo sentido que encerra, se apresenta reciprocamente referida, orientando-se por essa
22
Idem, ibidem, op.cit. p.7.
23
“Economia…”, op.cit. p.15.
24
Idem, p. 18.
15
reciprocidade. Consiste, pois, plena e exclusivamente, na probabilidade de que se atuará
socialmente em uma forma (com sentido) indicada 25. Trata-se de um comportamento que
envolve mais de um indivíduo e, que se instaura reciprocamente de acordo com um conteúdo
de sentido e que pode ser orientado pelos participantes com base na representação da
subsistência de um ordenamento legítimo26.
Aliás, a ação e, em especial, a social e também singularmente a relação social, como diz
Weber, podem orientar-se pelo lado de seus partícipes na representação da existência de uma
ordem legítima. A probabilidade de que isso ocorra de fato se chama “validade” da ordem em
questão27. E aqui, aproveitando a interpretação de Treves28, a legitimidade dos ordenamentos à
qual Weber faz referência pode se dar ou ser garantida desde o interior ou do exterior. No
primeiro caso, trata-se de uma garantia que pode ser dada ou pelo afeto, ou de modo racional
com relação a valor, ou mesmo por crença numa religião. No segundo caso, podem-se ter dois
tipos de garantia, por um lado a convenção, cuja garantia consiste na desaprovação geral e
praticamente sensível em determinado círculo de homens, e, por outro, o direito, cuja garantia
é dada pela coerção e pelo aparato relativo a ela.
Cabe reforçar que, segundo Weber, é a sociologia que constrói suas próprias leis, tal
como assinala que as leis, como se costuma chamar a muitas das proposições da sociologia
compreensiva, são determinadas probabilidades típicas, confirmadas pela observação, de que,
dadas determinadas situações de fato, transcorram, na forma esperada, certas ações sociais
que são compreensíveis por seus motivos típicos e pelo sentido típico pensado pelos sujeitos
da ação29.
Sob essa óptica, Weber extrai suas conclusões de que sob a base das relações sociais
existe uma ordem legítima que as estrutura. Contudo essa suposição, muito antes de eliminar,
salienta o fato de que essas relações se estabelecem concomitantemente com relações de
poder, fenômeno esse que ele irá estudar em algumas de suas principais especificidades,
através do conceito de dominação. Com a leitura que Habermas faz de Weber e que veremos
em alguns dos seus aspectos que veremos um pouco adiante, compreenderemos melhor não só
o fenômeno da racionalização, como algumas de suas consequências, bem como o papel do
direito na tentativa de manutenção e, em muitos casos, de retomada da integração social.
25
Ibidem, op.cit.p.21.
26
“Sociologia...”, Treves, op.cit. p.155.
27
Weber, op.cit.p.25.
28
Treves, Sociologia do direito, op.cit.p.155.
29
Weber, “Economia...”, op.cit. p. 16.
16
1.1.7 Marcos destacados da sociologia de Weber para uma reflexão dos direitos
fundamentais hoje
1.2.1 Introdução
Neste subitem do capítulo primeiro, pretende-se dar uma visão geral (e não
completa) da reflexão sobre ciência do direito realizada por juristas em um período
denominado de modernidade em transformação (trânsito da modernidade para a pós-
modernidade). Pode-se dizer, de modo preliminar, que se trata de uma discussão da ciência do
direito no âmbito do denominado paradigma de filosofia do direito, “sucessor” da reflexão
jurídica no âmbito do denominado paradigma de direito natural30. Espera-se, com isso, poder
compreender o desenvolvimento disciplinar mais recente do saber jurídico. Assim, as
reflexões sobre a ciência jurídica podem ser entendidas como desdobramentos da filosofia do
direito, tratando ora de questões de fundamento (próprias dos filósofos), ora de exercício
(própria dos juristas), bem como de consequências (próprias dos sociólogos) da ordem social
e jurídica no período referido. Não obstante, tem por escopo principal realçar o papel da
sociologia na abordagem do direito quando do processo de determinação das fontes, da teoria
30
De imediato, consigna-se a importante orientação geral que os trabalhos do professor Celso Lafer imprimem
neste texto, orientação essa muito localizada em sua obra “A reconstrução dos direitos humanos, diálogo com o
pensamento de Hanna Arendt”, São Paulo: Cia. das Letras, 1988, e que pode ser consultada como
aprofundamento do nosso escrito.
17
geral, da hermenêutica e da aplicação do direito31. A oportunidade dessa discussão diz com os
avanços e insuficiências da reflexão científica no paradigma positivista moderno, cuja
epistemologia, por vezes reducionista, não permite a compreensão das sociedades complexas
em transformação e transição para a pós-modernidade. A centralidade das discussões sobre
dignidade humana tem conduzido a moral (institucional) moderna a profundos debates,
mormente em razão da diversidade cultural hoje reinante, assim como devido à imperiosa
necessidade de defesa coletiva dos interesses dos indivíduos, decorrente da hipossuficiência
dos sujeitos nas sociedades de massa, passando-se a ver o direito e a ciência jurídica para
além do paradigma liberal-individualista, no âmbito de outro mais coletivo, solidário e
engajado. Com efeito, o complexo e real processo de globalização tem feito do mundo um
grande mercado. Assim sendo, as reflexões sobre ciência jurídica devem avançar na direção
do que, nas palavras de Ronald Dworkin, denomina-se “um perfil caracterizadamente
metodológico e “processual”, para problemas de conteúdo e materialidade de princípios,
tais como é exemplo, o da “dignidade da pessoa humana””.
Com esse escopo, visa-se, neste texto, em primeiro lugar, (a) situar o grande debate
filosófico que conduziu do direito natural à filosofia do direito na modernidade. A seguir, (b)
tendo por base Hans Kelsen e Norberto Bobbio, analisar aspectos do debate e da evolução da
teoria do direito com as obras de Herbert Hart e Ronald Dworkin, incluindo-se, aí, alguns de
seus comentadores latino-americanos, dentre os quais, Cezar Rodrigues e Alberto
Casalmiglia. Além disso, (c) utilizando-nos das reflexões de Genaro Carrió, um dos
intérpretes da polêmica Hart e Dworkin sobre “princípios” no âmbito do direito positivo,
revelar o cuidado e mesmo o trabalho de ourivesaria dos juristas para construir uma ciência
jurídica superadora do positivismo, embora sem pretender negar essas raízes. Daí o rico
debate entre defensores de uma teoria pura e aqueles que consignaram sua impossibilidade,
bem como daqueles que defenderam o formalismo e os que se colocaram como
antiformalistas, etc. Percebidas as insuficiências da autossuficiência, (d) traz-se a obra de Neil
Macormick32 e breves comentários sobre a teoria da proporcionalidade de Robert Alexy para
os direitos fundamentais a fim de comprovar a tese de que a ciência jurídica não pode
dispensar a contribuição da sociologia do direito, isto é, não pode ser entendida e
31
Consultar trabalhos anteriores sobre o tema, tais como “Casos difíceis no pós-positivismo”. In Boucault,
Carlos E. de Abreu, e Rodrigues, José Rodrigo. “Hermenêutica plural”. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
32
Para uma visão geral – analítica e crítica - consultar Atienza, Manuel. “As razões do direito”. Trad. Maria
Cristina G. Cupertino. São Paulo: Landy, 2000. Não obstante, recomenda-se a leitura da principal obra de Neil
MacCormick, “Legal Reasoning and Legal Theory”.New York: Oxford University, 1978, e a nova edição de
1994, com um novo prefácio. Considere-se, também, o excelente trabalho de Aldo Schiavello sobre “Neil
MacCormick, teorico del diritto e dell’argomentazione giuridica”, in “Analisi e diritto”, a cura de P.Comanducci
e R. Guastini”. Torino: Giappichelli, 1998, p.307-345.
18
desenvolvida fora da cena fática (institucional)33. Por fim, (e) propõem-se breves caminhos
para uma metodologia sociológica para os procedimentos de decisão judicial.
Pode-se dizer, seguindo aqui certa visão pacificada na academia, qual seja, quando se
refere à passagem de um ponto de vista filosófico para uma visão científica do direito e da
ciência jurídica, assiste-se à construção de uma visão doutrinária preocupada em, por um lado,
aproximar o pensar o direito à realidade do direito existente, bem como, por outro lado,
trabalhar com a possibilidade do estabelecimento de um saber seguro nesse campo, capaz de
oferecer, sobretudo, confirmação ao que é apregoado como direito, como também
previsibilidade e regularidade ao funcionamento futuro desse conhecimento.
Considera-se que tal objetividade científica não seria possível através dos métodos
jusnaturalistas fundados em uma pseudouniversalidade da razão humana. Esse movimento,
amplo e complexo, que envolve diversos atores, pode ser localizado, conforme visto, na
transição de uma visão dos sujeitos segundo a razão iluminista que o vê como dotado de
condições universais para dizer o justo, para uma visão dos sujeitos, segundo uma razão
positivista, que afirma a possibilidade de se dizer o justo somente a partir da observação
concreta de sujeitos situados historicamente.
Em certo sentido, trata-se, nessa passagem, de um movimento de crítica fortemente
influenciado pelo empirismo inglês, de David Hume, e seu rechaço do direito natural racional
do século XVIII, debate esse que se sofisticará com a intervenção epistemológica de
Immanuel Kant objetivando salvar o caráter de universalidade da razão. Como se viu, os
sociólogos clássicos penetram de forma decisiva nessa discussão ao reafirmarem a condição
histórica e cultural da discussão acerca da identidade do homem. Contudo os sociólogos, ao
defenderam a cena fática como o lugar próprio de análise da sociedade e do poder, bem como
da razão, em muitos casos são acusados de metafísicos por suporem, ao modo dos
racionalistas clássicos, também uma capacidade intersubjetiva nos indivíduos, ao acreditarem
demasiadamente nas possibilidades objetivas da “consciência” dos sujeitos, expressa pelo
aumento da solidariedade social orgânica em face de outra dita “mecânica”. Isso pode ser
constatado em vários dos sociólogos clássicos, dentre os quais Émile Durkheim, quando
33
O capítulo terceiro, ao tratar do Conceito de Direitos Fundamentais, dará continuidade às discussões aqui
iniciadas sobre a importância da cena fática, salientando a importância do constitucionalismo para a
determinação do Direito contemporâneo.
34
Expressão tomada emprestada de Alfonso Ruiz Miguel em sua obra “Filosofia y derecho em Norberto
Bobbio”, Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1983, p.23.
19
afirmam que o “Direito é apenas a parte visível da moralidade social” e que, portanto, para ser
entendido, deve ser interpretado no âmbito dessa moralidade. Porém, atenção: o olhar dos
sociólogos não se dirige à moralidade “a priori” que, aliás, criticaram, mas àquela que pode
ser observada principalmente nos costumes e nos comportamentos.
Embora a força historicizante das assertivas dos sociólogos chegue até hoje, elas
portam, segundo os juristas, muitas dificuldades. Foi provavelmente da confusão que tal
abordagem pode gerar para o cientista do direito sobre qual o objeto da ciência jurídica, se
fatos, ou valores observados nos comportamentos, ou normas positivadas, ao terem que
distinguir o direito do não direito, é que se voltaram para o desenvolvimento de uma ciência
extremamente egocêntrica no século XX. Segundo eles, seria necessária uma depuração da
ciência jurídica em três direções: quanto ao método, objeto e função dessa ciência. E por ser
Hans Kelsen o jurista mais importante nessa tentativa, é que se dará prosseguimento e entrada
verdadeira no tema deste subitem a partir de sua obra.
Como se fez em trabalhos anteriores 36, para dar uma demonstração de aspectos
destacados da teoria jurídica, far-se-á uma incursão a partir de dois ângulos diferenciados,
mas intercambiáveis: primeiramente, um ângulo analítico e estrutural, no qual serão feitas
35
Pode-se dizer que os campos de reflexão jurídica, a partir da hegemonia da doutrina do positivismo jurídico,
vêm sendo delimitados por “juristas com interesses filosóficos”, dentre os quais Norberto Bobbio que, em sua
obra “Giusnaturalismo e positivismo giuridico”, trabalha o assunto em dois momentos: por ocasião do texto
sobre “a natureza e a função da filosofia do direito” e quando do texto “a filosofia do direito e seus problemas”.
Ver Edizioni Di Comunità – Milano, 1977, p. 37 a 73. Por outro lado, publicamos, com base na tese de
doutoramento, um livro intitulado “Bobbio e a filosofia dos juristas”, Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1994, tratando
dessas questões e que integra um projeto para uma segunda edição, revista e ampliada. Igualmente, uma obra que
já se tornou referência obrigatória no Brasil sobre os campos da reflexão jurídica que interessam à filosofia do
direito – considerados a partir da obra de Bobbio e de muitos outros autores – é “A reconstrução dos direitos
humanos”, de Celso Lafer, São Paulo: Cia das Letras, 1988, p.47-79. Enfim, sobre a utilidade da teoria do
direito, acreditamos serem oportunas algumas colocações da professora espanhola Fariñas Dulce: “um trabalho
na área da teoria do direito ou teoria jurídica, como é o caso deste, deve ser entendido como um esforço de
teorização reintegrante de todos os problemas que intentavam enfrentar as correntes jusnaturalistas e as do
positivismo jurídico, incluindo, ademais, outros problemas que haviam sido marginalizados ou rechaçados por
aquelas correntes filosóficas. Assim, a atual teoria do direito tem que ser colocada como uma teoria dirigida não
somente a juristas teóricos ou cientistas, senão o que é mais importante, aos juristas práticos, isto é, aos
operadores jurídicos ou juristas profissionais que participam, de uma forma direta ou indireta, no processo de
elaboração, interpretação e aplicação do direito ou, o que é o mesmo, no processo de desenvolvimento geral do
direito”. Consultar “Filosofia del derecho versus teoría del derecho”, de María José Fariñas Dulce. Anuário de
Filosofia del Derecho, Madrid: Ministério de Justicia, 1992, p. 222.
36
“Acerca da Teoria dos Casos Dificeis no Direito”, in “Teoria jurídica e novos direitos”, Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2000, p. 109-119; “Ronald Dworkin e a dissolução da oposição jusnaturalismo e positivismo jurídico”. In
Revista Jurispoiesis, Rio de Janeiro: Universidade Estácio de Sá, no. 4, 2000, p.81-85. “Casos Difíceis no Pós-
Positivismo”, in “Hermenêutica plural”, organizadores Carlos E. Boucault e José Rodrigo Rodrigues, São Paulo:
Martins Fontes, 2002, p. 203-227.
20
breves considerações sobre o aspecto disciplinar da ciência dos juristas para, logo, após, situar
suas teorias no âmbito da interpretação, da argumentação e da aplicação do direito,
problemáticas que em si mesmas já necessitam de uma aproximação do jurista puro com
algum tipo de teoria sociológica. De modo que o objetivo é mostrar o trânsito no interior de
suas obras de uma postura de auto-suficiência à autoconsciência das insuficiências
epistemológicas do positivismo-normativista.
37
Cfe. Bobbio e Lafer nas obras citadas anteriormente.
21
moral, assim como certamente o fato de o jurista continuar tendo que se enfrentar com
algumas discussões clássicas, tais como a do que se entende por “natureza das coisas”38.
Não obstante, desde um prisma de filosofia política, hoje há maior clareza de que a
defesa do direito positivo estatal não implica a defesa de apenas uma ideologia supostamente
dominante. O Estado condensa um jogo contraditório e complexo de forças e, dependendo da
existência de uma democracia realizada, exprime uma normatividade de caráter não só liberal,
mas também de caráter social.
Quanto à teoria geral do direito, pode-se dizer que nele Bobbio – um dos mais
importantes juristas italianos – desenvolveu alguns dos seus melhores trabalhos,
principalmente sobre antinomias e lacunas e que hoje recebem a partir do debate Hart versus
Dworkin o nome de casos difíceis. O que interessa destacar é que dentre os objetos da
disciplina teoria geral um, entre outros, continua nos colocando uma pergunta que não quer
calar: que é norma jurídica? Princípios são normas jurídicas? Qual o seu status? São mais
importantes que as regras? Sobre esse aspecto, Bobbio afirmou que princípios são normas, o
que, por si só, já foi importante; Hart, num primeiro momento do seu livro “Conceito de
Direito”, quase que ignorou por completo os princípios, recuperando-os, posteriormente,
como normas em um posfácio. De qualquer maneira, negar os princípios como possíveis
“veículos” transportadores de normas jurídicas é fazer teoria fora da realidade; por outro lado,
aceitá-los como uma realidade dos direitos realmente estabelecidos gera, é bem verdade, uma
insegurança que talvez os partidários de uma doutrina positivista e normativista clássica não
estejam dispostos a enfrentar, embora, segundo Carrió, isso não gere nenhuma
incompatibilidade estrutural39, ensejando, no entanto, problemas funcionais.
Mas é no âmbito da fenomenologia ou sociologia jurídica, assim como no de
deontologia ou filosofia política, que o tema dos casos difíceis aparece em sua plenitude
hermenêutica e pragmática, ao se ter de tratar de problemas de eficácia e de justiça do direito,
este último aspecto envolvido com a questão da função do direito, bem como com uma
discussão sobre o que seria essa função. Como a reflexão sociológica vem na esteira do
avanço da filosofia da linguagem e com ela se associa na exigência de correlação entre direito
posto e conduta efetiva, o papel da hermenêutica e da interpretação jurídicas é realçado, e é
38
Da discussão sobre natureza das coisas, podemos passar a outra tão ou mais importante sobre o que seja
natureza humana, pressuposição determinante do direito socialmente existente. Como pergunta Francis
Fukuyama, em “Nosso Futuro Pós-Humano”, Rio de Janeiro: Rocco, 2003, p.21, será que as consequências da
revolução da biotecnologia ao alterarem a ideia de natureza humana não conduzirão a uma necessária mudança
sobre o que se entende por regime político e mesmo por direito?
39
Cfe. Carrió, Princípios (...), op.cit.p. 59. Para esse autor, não existe uma diferença lógica entre regras e
princípios; ambos podem ensejar problemas de aplicabilidade.
22
nesse âmbito que emerge a discussão sobre a “textura aberta” das normas, e que faz
transparecer, explicitamente, o problema da discricionariedade levantado por Hart, textura
essa geradora dos casos difíceis e da necessidade de enfrentá-los40.
40
Para outros esclarecimentos, ver Lafer, op.cit.p.55 e segs.
41
Cfe. sua obra “Legal Reasoning and Legal Theory”.
42
Ver prólogo a “Los derechos en serio”, de Ronald Dworkin, Barcelona:Airel 1984 y 1989, p. 7 e segs.
43
Idem, p.22-23.
23
pragmáticas. E, de imediato, por interesse didático, passa-se a uma caracterização do que
sejam casos difíceis, utilizando-se aportes do jurista colombiano que organizou a publicação
do debate entre Hart-Dworkin naquele país, César Rodríguez44.
Em linhas gerais, consoante o autor colombiano, um caso é difícil quando os fatos e
as normas relevantes permitem pelo menos à primeira vista, mais de uma solução. Ainda
como segue o professor, o tipo mais frequente de caso difícil é aquele no qual a norma
aplicável é de textura aberta, ou contém uma ou mais expressões linguísticas vagas, como
diria Hart. Dá como exemplo a norma “está proibida a circulação de veículos no parque” e
pergunta se ela se aplica tanto aos automóveis como às bicicletas. Por outro lado, como
salienta Rodríguez, é possível que, mesmo que fosse clara a norma, é possível que exista mais
de uma alternativa razoável de solução. Mas a essa dificuldade podem-se agregar outras
quatro mais: 1) quando dois ou mais princípios colidam; 2) quando não existe nenhuma
norma aplicável ou então lacuna; 3) quando, mesmo que exista a norma e seja clara, ela é
injusta: 4) quando, mesmo que exista um precedente judicial, à luz de um novo caso se
considere necessário modificar45.
Por fim, interessa ressaltar o modelo da resposta correta de Ronald Dworkin que, não
só foi o sucessor de Hart, mas um de seus maiores críticos. Por uma série de razões,
Dworkin sustenta que o juiz não possui a discricionariedade aludida por Hart. Dentre vários
argumentos, afirma que o papel do juiz não é criar direito e, portanto, não é o de legislar. Caso
isso aconteça, certamente ele estará agredindo pilares básicos da democracia e do próprio
direito. Por um lado, rompe a teoria da separação dos poderes e, por outro, agride o princípio
da legalidade, procedendo a uma justiça “ex post facto”.
Mas o que parece essencial ressaltar é que Dworkin sustenta algo que hoje pode
parecer óbvio, mas que nem sempre foi bem assim, isto é, que os sistemas jurídicos são
conformados também por princípios. Em certo sentido, defende a tese de que os
ordenamentos jurídicos são integrados por normas que, por um lado, são regras em sentido
estrito e que, por outro, são princípios em sentido amplo e que se influenciam reciprocamente.
Assim, quando duas normas colidem, o que no dizer bobbiano se caracterizaria como uma
antinomia real, ou seja, para a qual há uma insuficiência de critérios resolutivos, Hart
denomina como um caso difícil, diante do qual o juiz pode agir de modo discricionário. Já
Dworkin com sua teoria dos princípios sustenta, com base em uma distinção entre princípios e
políticas, a existência de uma resposta correta ou pelo menos mais adequada para os casos
44
Cfe. Estudo preliminar na obra “La decisión judicial”, de H. Hart y Ronald Dworkin, realizado por César
Rodríguez. Santafé de Bogotá: Colômbia, 1997.
45
Idem, p. 68.
24
difíceis. Essa é a tese, em linhas gerais, de Dworkin. Embora fundamental para um Estado
democrático de direito, trata-se de uma afirmação polêmica e que vem recebendo muitas
críticas, tal como veremos com a obra de MacCormick.
Enfim, ressalte-se que o modelo quinto de decisões judiciais, proposto ao início e que
poderia ser composto também a partir dos estudos de Luigi Ferrajoli 46 ou de Jurgen
Habermas47, transcende os nossos interesses momentâneos, sendo que nos deteremos
unicamente em alguns pontos da proposta de MacCormick e posteriormente nos de Alexy,
como já anunciado.
1.2.4 Herbert Hart e Ronald Dworkin entre o auge e a crise do positivismo jurídico
Hart e Dworkin mantiveram uma polêmica sobre os ditos casos difíceis no âmbito da
teoria do direito que, embora já conhecida, ainda possui contornos importantes a serem
esclarecidos para a hermenêutica. Como assinala Otfried Höffe, Hart possui um “positivismo
suave”, porque, muito embora sustente a separação entre o direito e a moral, o fundamento de
seu sistema jurídico de regras repousa no que ele denomina de regra de reconhecimento, que
pode ser entendida para além de uma autorização formal como uma aceitação material por
parte da comunidade. Na leitura de Höffe, tal regra pode ser entendida como sendo um
“querer” além do “ter-que” clássico e explícito da teoria kelseniana 48. Embora aberta, a
postura de Hart segue sendo tipicamente positivista, pois essa regra de reconhecimento visa
justamente a uma clara distinção entre o direito e o não direito, e assim, no caso de duas ou
mais normas poderem ser aplicadas à uma mesma situação, poderia haver dificuldade em se
saber qual delas deveria ser aplicada. Inclusive, repita-se que as dificuldades poderiam surgir
também de normas com textura aberta, p.ex., diante das quais o juiz possuiria, tal como nas
situações de conflito, discricionaridade tanto no estabelecimento do conteúdo das normas,
quanto ao que diz respeito ao processo de escolha entre uma delas para aplicar.
Dworkin, para quem alguns atribuem o rótulo de neojusnaturalista” 49 e com o qual
não concordamos, entende que os sistemas jurídicos são compostos também por princípios
46
Sobre a teoria garantista de Luigi Ferrajoli, pode ser lido de sua própria autoria “O direito como sistema de
garantias”, in “O novo em direito e política” organizado por José Alcebíades de Oliveira Junior. Porto Alegre:
Livraria e Editora do Advogado, 1997.
47
Ver especialmente o seu “Direito e democracia. Entre faticidade e validade”. Rio de Janeiro: Biblioteca Tempo
Brasileiro, 1998.
48
Cfe. Otfried Höffe em seu “Justiça política”, Rio de Janeiro: Vozes, 1991, p.135.
49
Cfe. Casalmiglia, prólogo a “Los derechos en serio”, Barcelona: Ariel, 1989, p.11.
25
além de regras e que eles, ao final, articulam e delimitam o próprio campo de origem e
abrangência do sistema jurídico. Com isso, estabelece uma crítica de impossibilidade lógica e
de dispensabilidade técnica, por redundância, à ideia de regra de reconhecimento,
imaginando pois que os princípios delimitam mesmo o campo de abrangência das normas,
mesmo e sobretudo em relação àquelas que se apresentem em forma de regra. Com efeito, a
posição de Dworkin sobre os casos difíceis é a de que eles devem ser solucionados buscando-
se a resposta correta, oriunda da consideração dos princípios envolvidos, avaliados em seu
peso.
Em tese, tanto Hart quanto Dworkin têm a pretensão de que as decisões judiciais se
mantenham dentro do figurino da ciência jurídica, embora Hart, ao não privilegiar os
princípios, não obtenha uma solução para a insuficiência de um direito de regras, enquanto
Dworkin a teria justamente por entender que os princípios fazem parte do sistema jurídico.
Em obras posteriores, Dworkin inclusive esclarece o primarismo da visão que nega aos
princípios um caráter jurídico-positivo, afirmando que não há nenhum problema em assumir-
se que as decisões judiciais, mesmo que não sejam ações políticas em sentido estrito, possuem
essa coloração em sentido amplo em função dos valores envolvidos.
No que se refere a Hart, julga-se que seja possível considerar que a regra de
reconhecimento, ao ultrapassar a ideia de uma validez “a priori” e formal, busque, também,
sustentar sua obrigatoriedade na efetividade, politize a teoria e a operação jurídica. A
manutenção do princípio da autoridade para dizer o direito não impede que o direito aplicado
contenha valores morais ainda não positivados. Especialmente em Hart, para quem a
efetividade da norma pode acontecer de modo discricionário, tem-se a possibilidade de
inclusão de valores até então não expressos pelo ordenamento e, assim, a possibilidade de se
falar de um direito legislado por juízes.
1.2.4.2 A visão reformista do positivismo jurídico de Genaro Carrió a partir das teses de
Hart e Dworkin
50
Cfe. Seu “Introdução ao Estudo do Direito”, 2 ed. São Paulo:Atlas, 1994, p. 170.
51
Editora Martins Fontes, 2002.
26
difíceis quanto com a discussão inovadora sobre desobediência civil. Porém a falta de
consciência dos juristas sobre o que contém e determina a sua experiência prática, que, em
realidade, é atravessada por valores, ainda faz do assunto um importante alvo de discussão.
Considerando, então, o texto “Juízes Políticos e o Estado de Direito”, de Dworkin 52,
aí sim as teses de dissolução da oposição jusnaturalismo versus positivismo jurídico se
avolumam. Ruem as certezas e a segurança jurídicas prometidas pelo movimento sucessor do
jusnaturalismo, emergindo a consequente constatação de que as soluções jurídicas estão cada
vez mais politizadas, sobretudo quanto aos ditos casos difíceis ou controversos, existentes
hoje em grande quantidade devido aos constitucionalismo programático, aberto e reinante nas
principais democracias do mundo53.
O sistema jurídico estar constituído ou colmatado por princípios além de regras que
é, enfim, do que estamos tratando nesta discussão, já não era nenhuma novidade para Genaro
Carrió54 nos anos 70. E não é nenhuma novidade em realidades jurídicas como a brasileira, já
que a oposição jusnaturalismo versus positivismo jurídico não tem se sustentado na prática,
tal como pode ser observado no trabalho de Paulo Mendonça sobre o Supremo Tribunal
Federal55. Entretanto, não há uma consciência clara por parte dos juristas e juízes dessa
assertiva, pois se teria, então, que admitir que a atividade jurídica possua uma coloração
política. Recorrer a princípios ou mesmo expressões tópicas é lançar mão de valores ou
referências amplas que transcendem a legislação em sentido estrito, e isto poderia ser
entendido como politização, pois tal como diria Dworkin, isto poderia também ser entendido
como uma forma de se legislar nesses casos.
É bastante didática a forma como Carrió comprova a tese sobre os princípios ao
comparar o jogo do direito ao jogo de futebol. Em ambos, existem três tipos de normas: uma
que proíbe e sanciona uma conduta precisa, como, por exemplo, a proibição de colocar a mão
na bola no futebol e o homicídio no direito; uma outra, que proíbe e sanciona uma variedade
de condutas, a exemplo do jogo perigoso e da norma de responsabilidade civil do código civil;
e uma terceira, mais ampla e que funciona exatamente como um princípio, tal como a lei da
52
Cfe. “Uma questão de Princípio”, São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.3 a 39.
53
Cfe. “Teoria Jurídica e Novos Direitos”. Oliveira Junior, José. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 71-82.
Embora antigo, tomamos contato recente com um texto de Carlos Santiago Nino sobre “Dworkin y la disolucion
de la controversia positivismo vs. iusnaturalismo”, escrito para a Revista Latino-americana de Filosofia, vol.VI,
no.3 (noviembre 1980), que segue uma argumentação interessante mas diversa da nossa, que se detém em Carrió
e nº próprio Dworkin.
54
Carrió, Genaro. “Princípios juridicos y positivismo juridico”. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1970.
55
Cfe. “A tópica e o STF”, Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2002. Especialmente quando comenta o uso da
expressão “interesse geral” para justificar a não aplicação de lei especial sobre recursos e sim a aplicação de lei
geral contida no código de Processo civil, por essa lei privilegiar o poder público.
27
vantagem no futebol e aquela que diz, no direito, que “ninguém deve levar vantagem com sua
própria torpeza”.
Ora, essas últimas, que se dirigem mais às primeiras e às segundas, assim como aos
árbitros e aos juízes, sempre existiram, restando questionar se são jurídicas ou como se
tornaram jurídicas, etc. De qualquer maneira, ao proporcionarem possibilidades de exceções,
de introdução de outros elementos às normas jurídicas estritas, não há como negar que
politizem o direito, uma vez que permitem claramente o uso finalístico ou teleológico do
sistema, o que, ao fim e ao cabo, não é nenhum pecado, mas ataca certos mitos positivistas
como o de que o sistema jurídico possui um fim em si mesmo e que toda a aplicação que dele
se fizer estará imune a influências externas. Com efeito, o importante de ser constatado nesse
momento é que Genaro Carrió, após uma ampla análise do que seria princípio, bem como de
um confronto dessa ideia com a do positivismo jurídico de Hart, conclui que elas não são
excludentes, mas coincidentes em muitos de seus aspectos56.
56
Carrió, op.cit.p.60 e segs.
28
b) aquele que as ações de governo estão centradas nos direitos, isto é, aquele em que
ações, embora tomando em conta os textos legais, vão além deles, trazendo à baila também
outros direitos, como os morais, por exemplo.
Diante dessas concepções e considerando a linha de raciocínio de Dworkin,
certamente a visão mais pluralista da segunda concepção é a que mais se aproxima de seu
trabalho na busca da realização dos direitos fundamentais, objetivo principal de sua obra.
Entretanto, na medida em que lembram as antigas denominações de positivismo e
jusnaturalismo, e assim os paradoxos clássicos da filosofia do direito, tais como estabilidade e
equidade, certeza e justiça, são modelos que não podem mais ser pensados como hegemônicos
ou excludentes. Como vimos desde Hart, se fala na textura aberta do direito e, portanto, das
incertezas dos códigos. Inclusive o modelo centrado nos direitos oferece, como diz Dworkin,
a deficiência de o poder policial poder ser usado de outras maneiras que os especificados nos
livros de regras.
Embora a importância dessa base material de direitos fundamentais, preocupa, de
modo decisivo, a Dworkin o relacionamento dessas decisões judiciais com a democracia,
além da já manifestada preocupação com o Estado de Direito. E um argumento que poderia
ser visto como insuperável a favor da democracia, o da autoridade, que sustenta o dever dos
juízes de seguir as regras do livro de regras e não, por exemplo, as de um sábio sobre o que
seja direito (segunda concepção), se confrontam com outro que é também forte: o de o Estado
poder prometer aos seus cidadãos que regerá as suas relações de uma maneira justa.
Claramente, a proposta de Dworkin suplanta a ideia de uma democracia
procedimental tal como aquela sustentada por Bobbio em seu best-seller “O Futuro da
Democracia”, como uma defesa das regras do jogo. Com efeito, Dworkin assume a
responsabilidade de se ter que saber como se faz a opção entre valores conflitantes, tais como
entre argumentos de princípio e argumentos de política em conflito, defendendo, como é
conhecida, a prevalência dos primeiros, advindo daí alguns rótulos que lhe têm sido
atribuídos, tais como o de individualista, neojusnaturalista, etc.
Contudo, atenção: buscar a concretização de princípios como o de dignidade da
pessoa humana, para Dworkin, mais do que a realização de objetivos comuns substanciais
resultados de um entendimento dialógico entre os cidadãos, reside no respeito a valores tidos
como auto-evidentes ou frutos de uma autoconsciência universal, dentre os quais, para os
liberais, sobressaem-se os de liberdade e de autodeterminação.
29
1.2.5 O retorno aos fatos (e a importância da sociologia): o neoinstitucionalismo de Neil
MacCormick57
57
A leitura e o comentário do tema será realizada a partir do livro “As razões do direito”, de Manuel Atienza,
São Paulo: Landy, 2000, p. 169 – 232., exatamente o capítulo que analisa a obra de MacCormick.
58
Cfe. Schiavello, op.cit.307.
59
Uma tradução da principal obra de Viehweg, “Tópica e jurisprudência”, foi editada pelo Ministério da Justiça,
Departamento de Imprensa Nacional, em 1979, com tradução e apresentação de Tércio Sampaio Ferraz Junior.
Na apresentação, procurando explicar o pensamento do autor em referência, Tércio afirma que “as ciências
naturais e matemáticas constroem sistemas axiomáticos que constituem hipóteses genéricas que poderiam servir
de prognósticos para a ocorrência de fenômenos que obedecem às mesmas condições descritas teoricamente,
modelo esse que se procurou importar para a ciência jurídica. Viehweg detecta que esse modelo não serve ao
direito, porque as teorias das ciências humanas não só se prendem a determinadas épocas ou culturas, como
também têm de levar em conta uma variabilidade que acaba por afastá-las do modelo científico das demais
ciências”.
60
Como assinala Tércio, “a teoria jurídica, sobretudo em consequência das intenções dos séculos XVII e XVIII,
durante muito tempo, supôs que a estrutura formal do direito podia ser entendida, grosso modo, como uma
conexão dedutiva explicável, principalmente, pela lógica dedutiva. Esta concepção seria própria de uma época
que considerou o papel da interpretação não como principal, mas como secundário, pois, sem dúvida, é evidente
que a interpretação tende a perturbar sensivelmente o rigor do sistema dedutivo”. Op.cit. p. 2.
30
Em linhas gerais, como salienta Manuel Atienza, autor que utilizamos, dentre outros,
para a leitura de Neil MacCormick, “a argumentação jurídica pode estar centrada tanto na
lógica dedutiva como em sua rejeição, ou, ainda, na constatação dos seus limites, que é o que
de modo principal salienta a teoria de Viehweg. Desde o ângulo da teoria e da filosofia do
direito, a argumentação jurídica é um dos seus principais centros de interesse, tratando-se,
como diz o autor recém-referido61, de uma versão contemporânea da velha questão do método
jurídico, sobretudo no que diz respeito à reapresentação de uma visão revista do paradigma do
direito natural.
Partindo para algumas colocações acerca da teoria de MacCormick, pode-se dizer
que ele admite a existência tanto de casos fáceis quanto de difíceis no direito. Aos primeiros
se aplica de um modo mais tranquilo a lógica dedutiva, enquanto que para os segundos é
preciso ir além.
Entretanto, muitos dos casos no direito seriam tranquilos não fosse uma observação
importante de MacCormick: a lógica determina a obrigação de o juiz de sentenciar, num
determinado sentido, mas não a sentença do juiz como tal. Por quê? Porque a lógica apenas
orienta, não vincula, sendo tão somente o aspecto que molda formalmente o argumento, não
lhe determina o conteúdo.
Embora o argumento tido como lógico possa deter aspectos de aparente auto-
legitimação, oriundos de uma possível confusão entre o que seja lógica e o que seja justiça, o
que MacCormick deseja chamar a atenção, segundo Atienza62 e que precisa ser salientado, é o
fato de que tanto os argumentos jurídicos quanto os fatos envolvidos numa suposta
argumentação lógica podem variar em muitos dos seus aspectos, podendo, no âmbito de
silogismos, gerar verdadeiras falácias, embora com a vestimenta da lógica.
De aí que MacCormick entende ser preciso demarcar certos pressupostos atuais do
que se entende por lógica jurídica, dentre os quais aqueles que conformam a prática do direito
segundo a realidade atual, e que começam a conformar, segundo nosso entendimento,
fundamentos que demarcarão toda a sua argumentação jurídica:
a) o juiz tem o dever de aplicar as regras do direito válido, há um contexto subjacente
a esse dever, tais como a busca da certeza do direito, o respeito à divisão dos poderes, o
princípio da autoridade, etc.;
b) o juiz pode identificar quais são as regras válidas, o que implica aceitar a
existência de critérios de reconhecimento, compartilhados pelos juízes.
61
Cfe. “As Razões do Direito”, op.cit. p.170
62
Op.cit. p.176 e 177.
31
Entretanto, MacCormick tem presente o fato de que os pressupostos da lógica
dedutiva enfrentam problemas relativos aos seus limites, basicamente no sentido de que a
formulação das premissas normativas ou fáticas pode suscitar problemas 63, o que
exatamente viria a gerar os ditos casos difíceis.
Em relação a esses casos64, cabe aduzir ao que já foi dito anteriormente,
principalmente com base em Hart e Dworkin, que eles podem ser: a) relativos ao problema de
interpretação – existem quando não há dúvida sobre a norma aplicável, mas ela admite mais
de uma leitura.65; b) relativos ao problema de pertinência – existem quando a discussão não é
sobre a clareza da norma, mas se ela existe 66; c) relativos aos problemas de prova – surgem,
principalmente, quanto ao estabelecimento da premissa menor, ou seja, quando existem
dúvidas sobre os fatos; d) relativos aos problemas de qualificação – que se referem a “fatos
secundários e à existência de determinados fatos primários que se considerem provados e
sobre os quais se discute se integram ou não a previsão normativa.67
Com esse diagnóstico amplo sobre a ideia de casos difíceis também em
MacCormick, vejamos em uma síntese preliminar para futuros estudos como o autor escocês
constrói sua argumentação resolutiva desses casos.
Partindo da teoria de Hart de que o direito é um sistema de regras (ou normas) que
dependem de uma regra (ou norma) de reconhecimento, portanto aberto a princípios como o
entende Dworkin, e tal como posteriormente também Hart o aceitou, defende se a ideia de que
todo e qualquer entendimento sobre o direito não pode prescindir de uma interpretação que,
por seu turno, considere como fundamental os vários fatores que contribuem para o próprio
entendimento do que seja realidade jurídica ou existência jurídica68.
Assim, dentre os requisitos que chama de primeiro nível, está o da universalidade –
exigência de justiça formal. Aqui significa que a aplicação deve respeitar o passado e que
deverá ser mantida no futuro. Além disso, deve obedecer a requisitos de segundo nível que
englobem os conceitos de consistência e coerência – ainda relativos ao sistema e que
implicam a escolha da norma geral aplicável 69. Segundo MacCormick, uma norma satisfaz o
63
M. Atienza, op.cit.p.179.
64
Segundo Casalmiglia, no prólogo dos “Derechos en serio”, Barcelona:Editorial Ariel, 1984, p. 13, “un caso es
difícil si existe incerteza, sea porque existem varias normas que determinan sentencias distintas – porque las
normas son contradictorias -, sea porque no existe norma exactamente aplicable”. Ver também nosso texto
“Teoria jurídica e novos direitos”, p. 109/119.
65
Atienza, op.cit.p. 179/180.
66
Idem, op.cit.p.180.
67
Idem, op.cit.p. 180/182.
68
Schiavello, op.cit.p.345.
69
Nesse momento em que se readentra a questão da coerência e, portanto, as possíveis antinomias de normas,
deve-se trazer à colação o importante artigo da professora Cláudia Lima Marques, ” Diálogo entre o código de
defesa do consumidor e o novo código civil: do diálogo das fontes no combate às cláusulas abusivas” in Revista
32
requisito da consistência quando se baseia em premissas normativas que não entram em
contradição com normas estabelecidas de modo válido. E isto vale também para a premissa
fática. Esse requisito deriva da obrigação dos juízes de não infringir o direito vigente e, por
outro lado, na obrigação de se ajustar à realidade em termos de prova. Quanto à coerência,
que se trata de um requisito mais forte, significa dizer que, quando se quer defender um valor,
como por exemplo, o valor segurança no trânsito, devem-se estabelecer normas coerentes com
esse objetivo.
Por fim, além de uma decisão estar justificada internamente ou segundo suas relações
com o sistema, precisa ter sentido em relação ao mundo. Entende-se aqui que, além de
argumentos formais e sistêmicos, deve haver respeito a argumentos práticos de utilidade,
razoabilidade e proporcionalidade material, que seriam entendidos como argumentos
consequencialistas. E aqui um ponto que nos parece essencial: o que seriam argumentos
consequencialistas? Poder-se-ia falar de argumentos consequencialistas formais e materiais?
Seja qual for o entendimento, nosso texto pretende remeter, em definitivo, ao fato de que se
faz necessária uma compreensão adequada das bases atuais das sociedades pós-modernas e
multiculturais para se poder falar adequadamente de argumentos consequencialistas, pois
vivemos esse trânsito quer se queira ou não.
Como corolário, quanto à tese da única resposta correta de Dworkin, MacCormick a
critica em quatro pontos que, em essência, se referem ao fato de que as decisões jurídicas se,
por um lado, devem ter algo em comum, universalidade, consistência e coerência, por outro,
em virtude das razões práticas relativas a argumentos consequencialistas que podem ter sua
origem em crenças subjetivas, possuem diferenças. Portanto decisões que se referem a um
mesmo fato podem ser distintas, embora ambas válidas70.
A discussão da teoria jurídica hoje não pode deixar de atentar para a “teoria da
proporcionalidade” que Alexy elaborou para os Direitos fundamentais71.
do Direito do Consumidor, São Paulo:RT, jan./mar., 2003, p.71-99, no qual após longa e fundamentada
exposição, sustenta que “é necessário superar a visão antiga dos conflitos e dar efeito útil às leis novas e
antigas”, referindo-se a um necessário diálogo entre o novo Código Civil brasileiro e o já adolescente Código de
defesa do consumidor.
70
“As razões do direito”, op.cit. p.201.
71
Consultar, especialmente “Teoria dos Direitos Fundamentais”. Robert Alexy. Trad.Virgílio Afonso da Silva,
São Paulo: Malheiros, 2006. Ver também, “O novo em direito e política”, por nós organizado e contendo texto
sobre “Problemas da teoria do discurso”, da lavra de Robert Alexy. Porto Alegre: Livraria e Editora do
Advogado, 1997.
33
De imediato, Alexy se insere perfeitamente no debate de teoria jurídica sobre
discricionariedade no âmbito da ciência jurídica. Sua teoria dos Direitos fundamentais
almejou tratar exatamente da delimitação conceitual, analítica e hermenêutica desses direitos,
de vez que, ao integrarem as constituições modernas e vincularem o exercício dos poderes,
trazem consigo dilemas de “filosofia prática”, isto é, morais.
No que aqui interessa, o posfácio que escreveu em 2002 sobre a sua obra original de
Direitos fundamentais é bastante esclarecedor: “os Direitos fundamentais, independentemente
de sua formulação mais ou menos precisa, têm a natureza de princípios e são mandamentos de
otimização72.
Tendo isso presente, Alexy preocupa-se com a defesa de suas teses de otimização e
sopesamento de princípios, teses acusadas de conduzir a uma idealização e mesmo ao ponto
de vista que existiriam respostas corretas em casos difíceis.
Quanto à primeira, sustenta que por otimização não se deve entender a busca de
soluções extremas, mas tão somente maximizar a proporcionalidade, com suas três máximas
parciais – as máximas da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido
estrito. E mais, de que a recíproca também é válida, ou seja, que da máxima da
proporcionalidade decorre logicamente o caráter principiólogico dos direitos fundamentais73.
Com isso, procura defender-se também de outra crítica dirigida a sua obra referente à
incompatibilidade entre a ideia de otimização e a ideia de moldura, defendida pelo jurista
alemão dado que essa contradição traz consigo outra importante questão, a qual se refere à
substituição do Estado legislativo característico das democracias modernas, por um Estado
judiciário.
Em síntese, o que importa para os fins de nossa reflexão é assinalar de que, muito
embora a excelência e profundidade da proposta de Alexy, ela é insuficiente para a uma mais
sólida ou adequada solução judicial de casos difíceis nas sociedades complexas e em
transição. Tomando a ideia de proporcionalidade em sentido estrito, sustenta Alexy que ela é
idêntica à lei do sopesamento, que tem a seguinte redação: “quanto maior for o grau de não
satisfação ou de afetação de um princípio, tanto maior terá que ser a importância da satisfação
do outro”74. Em que pese a perfeição lógica do enunciado, quais seriam os parâmetros para se
aferir o grau de não satisfação ou de afetação e o grau de satisfação de um ou outro princípio?
72
“Teoria...op.cit.p.575.
73
“Teoria dos direitos fundamentais”, op.cit.p.588.
74
“Teoria dos direitos fundamentais”, op.cit. p. 593.
34
Diante das dificuldades ainda persistentes no âmbito de uma teoria jurídica em
sentido estrito, proporemos, de modo incipiente, alguns parâmetros de cunho sociológico e
filosófico que se entendem úteis para a fundamentação de decisões judiciais.
35
que o processo de “colonização” e “fragmentação” do mundo, já exprime, de algum modo, o
que Luhmann, dentre outros, viria denominar de sociedade do risco.
Segundo Habermas75, um dos pontos centrais considerados por esse autor nesse
processo é o fato das análises e estudos das sociedades se encontrarem centradas na razão
prática tradicional (regras morais e jurídicas) e, a partir delas pretender falar de certezas,
esquecendo-se da complexidade sistêmica da sociedade e da sobrecarga que esse pensar
representa sobre as regras e seu poder de organização da vida social (tal observação se dirige
tanto aos positivismos quanto aos moralismos desenvolvidos pelos juristas). Ora, nas
constatações do autor alemão, as regras não são essências universalizáveis capazes de orientar
de modo seguro comportamentos. Elas são apenas caminhos para se tentar obter certos fins.
De modo alegórico, as regras não conseguem aprisionar a moral de uma vez por todas.
Portanto, há incertezas onde se crê haver certezas, quer dos participantes, quer dos
observadores da sociedade a partir desse ponto de vista. Por outro lado, supondo que houvesse
alguma possibilidade de certeza, ainda assim haveria o problema do pluralismo das regras,
bem como de uma dificuldade em se pensar o interrelacionamento satisfatório entre
elas( regras). Com efeito, seria preciso rever esses aspectos, já detectados, de modo
significativo, tanto pela sociologia quanto pela filosofia e pela ciência clássicas.
De modo que o caminho em direção ao repensar o ponto realmente mais importante
da integração social da sociedade e do direito, diferentemente da sobrecarga colocada nas
estruturas morais, seria inevitável. Com efeito, a moral e o direito de base moral colaboram
para o entendimento e a integração, mas também podem ser responsáveis pelo
desentendimento e fragmentação. Tal diagnóstico conduzirá Habermas, então, ao ponto que,
segundo ele, em sua busca de uma recolocação do problema do entendimento, do diálogo
entre os membros da sociedade, é de fato fundante da sociedade, bem como possibilitador de
uma integração dos subsistemas sociais das sociedades modernas, o que o conduzirá, na certa,
à comunicação humana, portanto à linguagem, a qual se torna chave no seu pensamento. Com
efeito, não foi sem sentido, pois, a denominada guinada linguística na filosofia.
Embora as incertezas do mundo possam ser literalmente reais, o que demanda
amplíssimo debate, o fato é que a linguagem enquanto fato social também se apresenta
problemática. Disto se conclui que o paradigma das certezas e das essencialidades de um
75
Principalmente de suas seguintes obras: “Direito e democracia, entre faticidade e validade”. Trad. de Flávio
Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, “Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos”.
Trad. Flávio B. Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007. A singularidade ocidental como
aprendizado reflexivo: Jurgen Habermas e o conceito de esfera pública, de Jessé Souza, in “A modernização
seletiva”, Brasília; Edit.UnB, 2000, p-59-93.
36
mundo fundado em regras não se confirma logo a partir de uma análise dos meios de
comunicação humana. Ao contrário, o mundo e a sociedade são indeterminados, inconstantes,
contingentes, não somente porque realmente o são ou não, mas, sobretudo, devido à
linguagem. Há que se proceder, portanto, a uma refundação do processo de conhecimento em
geral e somente após uma releitura das dimensões específicas das várias áreas do saber, bem
como uma nova releitura das conexões (interações) possíveis entre as várias áreas. Parece ser
esta uma das empreitadas centrais de Habermas.
Como se viu, duas grandes linhas sobre ciência jurídica vêm se digladiando: uma
mais voltada para a lógica formal, e outra para a dimensão empírica do direito.
Em qualquer das hipóteses, a ciência jurídica é um processo decisório de escolha de
alternativas juridicamente fundamentadas, decisões de acordo com o direito.
Mas para se saber o que é o direito, depende-se de uma teoria jurídica, e aí existem
várias correntes sobre modelos de função judicial, como também foi visto. Assim, o estudo da
teoria jurídica desde uma perspectiva dinâmica ou desde o prisma da função judicial pode ser
proposto a partir de pelo menos cinco modelos:
silogístico;
realista;
discricionariedade judicial;
resposta correta;
outros – Ferrajoli, Habermas, MacCormick e Alexy
40
se reinterpreta ou se reutiliza a lei. Certamente uma decisão sociológica tem que sopesar
ambas as possibilidades, após a argumentação das partes.
Por outro lado, seguramente, a fundamentação das decisões jurídicas não pode se dar
unicamente pelos resultados científicos obtidos pela ciência jurídica em sentido estrito, senão
que ela deve encontrar seus argumentos em todas quantas ciências afins ao direito tiverem
pertinência. Exemplo: Homicídio cometido por pessoa que recém se acorda. Estaria ela na
plenitude de sua consciência? Certamente, várias outras ciências poderiam contribuir no
esclarecimento dessa situação, dentre as quais a psicologia e todas as suas mais recentes
descobertas.
A metodologia de abordagem sociológica, pois, visa recolocar a Ciência Jurídica no
interior da dinâmica do processo histórico. Ou, noutras palavras, é considerar as
transformações históricas e políticas mais importantes na modernidade e na pós-modernidade.
E dentre os aspectos mais importantes encontra-se a consideração das transformações
no âmbito da epistemologia do conhecimento, a qual pode ser subdividida em multicultural e
monocultural para os fins deste trabalho77, senão vejamos:
A epistemologia multicultural
- A realidade é uma construção; - as interpretações são subjetivas; - os
valores são relativos; - o conhecimento é um fato político.
A epistemologia monocultural
- A realidade existe independentemente das representações humanas; a
realidade existe independentemente da linguagem; a realidade é uma questão
de precisão de representação; o conhecimento é objetivo; uma redução do
sujeito às suas funções intelectuais e cognitivas; uma desvalorização dos
fatores culturais e simbólicos da vida coletiva; fenômenos holísticos e
dificilmente objetiváveis; a crença numa base biológica do comportamento;
orgulho pelas conquistas do pensamento.
77
Cfe. estudo da obra “Multiculturalismo”. Semprini, Andrea. Trad. Laureano Pelegim. São Paulo: Edusc,
1999.
41
CAPÍTULO 2
IMPORTÂNCIA, PROTAGONISMO E DESAFIOS DO PODER JUDICIÁRIO PARA
A DEMOCRACIA NA TRANSIÇÃO DE SÉCULO – COMENTÁRIOS AS ADINS
1351-3 E 1354-8 – CONSTITUCIONALIDADE DA CLÁUSULA DE BARREIRA
2.1.1 Introdução
Este capítulo parte de uma grande questão recentemente reproposta por Boaventura
de Souza Santos no Brasil78 e que sintetiza o protagonismo social e político do sistema
judicial e do primado do direito: “Por que razão estamos hoje tão centrados na ideia do direito
e do sistema judicial como fatores decisivos da vida coletiva democrática, do
desenvolvimento de uma política forte e densa de acesso ao direito e à justiça, enfim, na ideia
de levar a sério o direito e os direitos? Como é que chegamos até aqui? E até onde podemos ir
com os instrumentos que temos?”
78
“Para uma revolução democrática da justiça”, São Paulo: Ed.Cortez, 2007, p.11.
42
As exigências sociais, portanto, desde os anos 80, necessariamente contribuíram para
a abertura do conceito de direito à interdisciplinaridade, sobretudo àquelas advindas das
pesquisas dos sociólogos e politicólogos.
Passando a uma breve síntese das discussões do primeiro texto, pode-se dizer que os
assuntos foram tratados a partir de uma tese e de três hipóteses desafiadoras da mesma. A
tese procurou sustentar que o Judiciário, além de suas atribuições normais e mesmo por causa
delas, tem o importante papel de guardião constitucional e, como tal, de construtor da
democracia no Brasil. Como tenho assinalado em trabalhos anteriores, não de uma
democracia formal de base tão somente legal, mas de uma democracia substantiva, de
resultados concretos em relação à realização da dignidade da pessoa humana. Dito de outra
forma, a tese que propomos é a de que o Poder Judiciário carrega hoje as esperanças da
sociedade civil na realização das diversas gerações de direitos humanos constitucionalizados,
porém com muitos desafios a superar.
Para se compreender corretamente a expressão “Estado democrático de direito”, é
preciso considerar que o direito não pode mais ser entendido como a expressão de uma
metafísica dos costumes ou da tradição, pois passou a ser a expressão de acordos racionais
democraticamente firmados e expressos através de enunciados normativos postos através de
decisões políticas, formando um sistema que possui, em sua base ou em seu ápice,
dependendo do ângulo que se observe, regras e princípios de caráter constitucional.
Pois é esse caráter de constitucionalidade do direito moderno que oferece, muitas
vezes, dificuldades adicionais ao operador jurídico na construção de um Estado não apenas de
direito, mas democrático de direito. E as razões, como dissemos em textos anteriores, residem
no fato de que o direito, sob parâmetro constitucional, não se constitui em uma dogmática
expressa por um conjunto de regras claras e objetivas que não apresentam lacunas e não são
contraditórias. Ao contrário, o direito moderno exprime-se, além de regras, através de
princípios, que são normas abertas e amplas que, para serem plenamente aplicadas, requerem
uma hermenêutica finalística, de otimização. Com efeito, são normas que possibilitam reger
não apenas o presente e a estrutura jurídico-política dos Estados, mas as metas futuras
relativas aos direitos em geral e aos direitos fundamentais em particular, assumindo, essas
constituições, a característica de compromissórias e programáticas, em vez de dogmáticas.
Em decorrência do exposto, emerge a importante questão da eficácia das
constituições e de como obtê-la de modo legítimo e não apenas discricionário, na medida em
que elas tratam de interesses os mais diversos. Hoje em dia é comum existirem duas normas
43
aplicáveis a um mesmo caso concreto. Qual delas deveria ter preferência?79 Um
questionamento imediatamente cabível, diante do jogo contraditório de interesses, seria o de
nos perguntarmos com relação aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, qual deles
deveria ter maior peso na determinação final do direito a ser prestado. Em caso de se entender
ser o Judiciário essa instância, veríamos a confirmação de nossa tese inicial acerca da
importância e do protagonismo desse poder contemporaneamente.
Quanto aos desafios ao Poder Judiciário, sabemos que eles são muitos: faltam
prédios, faltam juízes, faltam computadores, enfim, falta dinheiro. Inobstante, começando
com o tema da lentidão, sem pretender reproduzir o que muitos vêm dizendo, gostaríamos de
opor e comentar duas soluções que vêm sendo bastante discutidas: de um lado, as Súmulas
Vinculantes; de outro, os Juizados Especiais. Antes, porém, caberia reproduzir algumas
colocações feitas por Maria Clara R. M. do Prado, em jornal de circulação nacional, 80 no
artigo O preço de recorrer à Justiça. Afirma a professora articulista que:
a) No Brasil, já se está tratando de algumas reformas básicas, previdência social,
tributária, etc., mas ainda não da reforma do Poder Judiciário (ainda não havia a Emenda
Constitucional 45);
b) Países com “boas instituições” (isto abrange não apenas o Judiciário, mas também
o sistema político) crescem três vezes mais rapidamente em termos per capita do que aqueles
com instituições mais frágeis;
c) Há evidências que a difusão de tecnologia tende a crescer quando o empresário
sente que a propriedade intelectual será devidamente protegida judicialmente em caso de
conflito;
d) Taxas de risco cobradas pelo Banco no Brasil estão diretamente relacionadas à
ineficiência do Poder Judiciário;
e) Em relação principalmente a este último comentário, está ligada a morosidade do
Judiciário, já que uma cobrança judicial para reaver as garantias pode levar de oito a dez
anos;
f) Há ainda o custo oculto da ineficiência resultante da lentidão, negócios e contratos
que deixam de acontecer porque o sistema é falho;
79
Aqui se tem discutido muito as teses de Herbert Hart e Ronald Dworkin. O primeiro defende a
discricionariedade do juiz diante de normas antinômicas; o segundo defende a tese da resposta correta, isto é, de
que sempre existiria uma solução melhor que a outra e, portanto, uma norma que deveria ser preferencialmente
aplicada.
80
Ver Gazeta Mercantil, de 3 de novembro de 1998, p.A-3.
44
g) Enfim criou fama a decisão judicial tomada em 1996 pela qual o time do Botafogo
pôde finalmente celebrar a vitória do campeonato de 1907; poucos torcedores da época
puderam celebrar.
Como se pode notar dos comentários feitos, a lentidão é um problema sério. A
eficácia do direito depende da efetividade do poder, que é justamente o que não tem ocorrido
no Brasil por causa da lentidão. Como disse Norberto Bobbio, o poder e a norma são as duas
faces de uma mesma medalha, a justiça. E poder sem obediência às normas é totalitarismo, e
normas sem a efetividade do poder é utopia. Por isso, em certo sentido, compreende-se a
posição de defesa das súmulas vinculantes por parte do professor Aurélio Wander Bastos 81 ao
afirmar que “o nosso sistema de recursos inviabiliza decisões rápidas”. Entretanto, a oposição
contra essas súmulas é muito maior. Eros Grau, também em jornal de circulação nacional, as
chamou de totalitárias.82 Conforme disse, “a atribuição de eficácia contra todos e de efeitos
vinculantes às decisões de que trata o Supremo, importa atribuir a ele função legislativa”. A
atribuição de efeito vinculante às decisões de que se trata implica a imposição de uma espécie
de censura ou limitação ao exercício das funções dos demais órgãos do Estado. Nenhuma
razão justifica essa manifestação de totalitarismo, também nenhuma lógica pode sustentar,
atropelar e sufocar a independência dos juízes. Com a Emenda 45, as súmulas se tornaram
realidade, muito embora a polêmica ainda permaneça.
Também afirmamos no texto sobre “A importância...” Seria interessante notar que
assim como existe uma quase total oposição às súmulas, existe um “endeusamento” dos
chamados “Juizados Especiais”. O Desembargador Thiago Ribas Filho, em artigo sobre esses
juizados, escreve: Um dos problemas que mais aflige a sociedade brasileira moderna é a falta
de acesso ao Judiciário. Algo em torno de 80% da nossa população é considerada carente, na
acepção social e jurídica do termo, já que não pode pagar as custas, honorários de advogado e
despesas de um processo sem prejuízo do sustento próprio ou da família. Porém agora o
Estado está dotado de um sistema apto a solucionar, de pronto, grande parte desse problema.
Basta que seja percebida essa realidade. São os Juizados Especiais Cíveis e Criminais,
previstos no artigo 98, inciso I, da Constituição Federal e regulados pela Lei nº 9.099/95. 83
Como segue entusiasmado o Desembargador, nos Juizados Especiais o acesso à Justiça existe:
a) Há gratuidade de todos os atos em primeiro grau;
81
Cfe. Jornal do Comercio, de 31/5/1998.
82
Folha de São Paulo, Tendências e Debates, novembro 1998.
83
Cf. seu artigo “Juizados Especiais e Democracia”, in Cidadania e Justiça, Revista da Associação dos
Magistrados Brasileiros, ano 2/nº 5, 2º semestre/1998, pp. 127-132.
45
b) O ingresso no Juizado é direito, sendo apenas facultativa, nas causas inferiores a
20 salários mínimos, a assistência de advogado;
c) A lei confere amplos poderes ao magistrado, inclusive para antecipar a tutela em
casos urgentes, podendo decidir por equidade;
d) O processo é absolutamente informal e simplificado (os depoimentos são tomados
com uso de gravador e não há lugar para perícia, substituída, se necessário, pelo depoimento
de técnicos), o que resulta em rapidez e eficácia da prestação jurisdicional;
e) Valorização da conciliação como forma de composição do litígio;
f) Há possibilidade de funcionamento noturno, fora dos horários normais de trabalho,
permitindo-se o comparecimento regular de reclamantes e testemunhas.
Assim, se por um lado as súmulas eram execradas, por outro, os juizados eram e são
até hoje “endeusados”. Muito embora ambos sejam vistos como instrumentos para agilizar o
Poder Judiciário, o primeiro é tido como inconstitucional, enquanto o segundo não. O que
poderia ser destacado é que também os juizados poderiam, em vários de seus aspectos, ser
vistos sob o prisma de inconstitucionalidade, fruto de antinomias da Lei nº 9.099 com outras
leis e a Constituição, senão vejamos:84
1 – A Lei nº 9.099, art. 59, que não permite ação rescisória, conflita com os artigos
da Constituição que permitem essa ação, bem como com o Código de Processo Civil arts.
485/495;
2 – A Lei nº 9.099 permite um único recurso à parte perdedora e dirigido à mesma
turma que julgou.
A Constituição Federal permite vários recursos, Especial, Extraordinário, em seu art.
105, III. Ora, a dupla jurisdição é previsão constitucional desde o Império, 1827.
Igualmente, os fundamentos dos recursos não podem ser simplesmente abordados
pelo menos por estes motivos:
a) Necessidade psicológica do vencido;
b) A falibilidade humana do julgador;
c) As razões históricas do próprio direito.
Em conclusão, poder-se-ia dizer que tal limitação fere o princípio da igualdade entre
os cidadãos que buscam tutela jurisdicional na Justiça comum e os que se socorrem dos
Juizados Especiais. A situação se agrava se considerarmos que em determinadas situações o
Juizado Especial é imposto, como nos acidentes de trânsito; que em alguns estados (Santa
84
Tomei esta ideia de um paper final de Valmor Vigne para a cadeira de Teoria Geral do Direito, tema casos
difíceis, oferecida na turma especial do CPGD em Chapecó, em setembro de 1998.
46
Catarina, por exemplo) são o caminho jurisdicional obrigatório. E o que dizer da ação
rescisória, vedada em nome da celeridade? Assim, em que os Juizados são menos
inconstitucionais que as súmulas vinculantes? Enfim, caberia dizer que os Juizados Especiais,
onde funciona mal ou não funciona a conciliação, tornaram-se Justiça comum.
Por outro lado, o segundo desafio, já aludido, ao Poder Judiciário é a globalização.
Recepcionando Luigi Ferrajoli, professor da Universidade de Camerino, um dos pais do
denominado “direito alternativo”,85 assistimos, hoje, mesmo nos países de mais avançada
democracia, a uma crise profunda e crescente do direito que se manifesta sob várias formas e
em múltiplos níveis:
1) uma crise da legalidade;
2) uma inadequação estrutural das formas do Estado de Direito; e
3) uma crise do Estado de Direito ligada à crise do Estado de Bem-Estar Social. 86 Por
nossa parte, entendemos que todos esses ângulos da crise do direito de uma maneira ou de
outra tem a ver com a globalização.
Indiscutivelmente, quando o autor italiano fala de uma crise da legalidade,
sustentando a presença de máfias que tomam de assalto os Estados-nações, colocando em
crise seu aparato político-jurídico, por certo não devemos ser ingênuos e supor que ele está a
falar ainda do predomínio da cosa nostra, embora continue a existir. Não se trata aqui de uma
preocupação com forças ocultas dessa natureza, senão que com forças ocultas bem mais
poderosas, criaturas e criadoras da nova ordem internacional 87. Com efeito, a globalização não
é o efeito de um puro movimento autopoiético.88
Exemplo claro dessas forças pode ser percebido quando se difunde o discurso “o
Brasil não fez seu dever de casa”. Ora, aqui também, não sejamos ingênuos, é certo que o
déficit público é um problema de má gestão. No entanto, por que o dito “dever de casa” é tão
lembrado quando existe uma crise na Ásia ou uma queda do dólar? Será que o Brasil não tem
85
Cfe. escrevemos no prefácio ao livro Estado de direito e legitimidade, de Sérgio Cademartori, tivemos a
oportunidade de ouvir, de um dos pais do direito alternativo, o quanto o seu pensamento havia sido
malcompreendido em alguns lugares do mundo. Na verdade, a alternatividade era em face a um “direito”
oriundo de um Estado fascista, e não a um direito originado de um Estado de direito, pois o que preconizava era
justamente a defesa da constitucionalidade da ordem jurídica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.
86
Ver O novo em direito e política, vários autores. José A. de Oliveira Junior (Org.), p. 89 e segs.
87
As grandes organizações multinacionais, oligopólios, etc.
88
Expressão utilizada por Niklas Luhmann para falar dos sistemas fechados, autorreferentes. Etimologicamente,
o termo autopoiésis indica autoprodução, autocolocação ou, ainda, de forma mais clara, (re)produção a partir dos
próprios produtos. Ver o texto “Estrutura e função do direito na teoria da sociedade”, de Daniela Ribeiro Mendes
Nicola, in Paradoxos da auto-observação – percursos da teoria jurídica contemporânea, organizado por Leonel
Severo Rocha. Curitiba: JM Editora, 1997, p. 226. Seria como supor que a ordem internacional se auto-
organizasse sem qualquer intervenção de fora ou de alguém, atuando aí um conceito de complexidade
“indomável”.
47
que fazer um “dever de casa” para contribuir com o dólar para que ele possa fazer frente ao
euro?
De qualquer modo, a crise de legalidade de que fala Ferrajoli pode ser associada à
globalização quando se toma em conta o quanto poderes executivos comprometidos (com o
dever de casa) rompem o sistema de tripartição dos poderes, clássico no Estado de Direito,
basicamente com a execução de uma enxurrada de medidas provisórias. Assim, configura-se o
exercício do poder apenas com aparência formal de legalidade, de vez que a maioria das
medidas se traduz em uma imprópria forma de legislar que, em nome da urgência, coloca
decisões não discutidas pelos representantes eleitos para tal.
O aspecto da inadequação estrutural das formas do Estado de direito às funções do
Welfare State refere-se, por um lado, à inadequação da filosofia individualista que perpassa a
prática dos tribunais diante de um mundo com problemas sociais coletivos e massificados, e,
por outro, a uma falta de revisão de conceitos e ações que possam abarcar as questões
coletivas. Como diz Ferrajoli, “essa crise está associada a uma espécie de contradição entre o
paradigma clássico do Estado de direito, que consiste num conjunto de limites e de proibições
impostos ao poder público de maneira certa, geral e abstrata, para tutela dos direitos e
liberdades dos cidadãos, e o Estado social que, ao contrário, exige aos mesmos poderes a
satisfação de direitos sociais mediante prestações positivas, nem sempre predetermináveis de
forma geral e abstrata e, portanto eminentemente discricionárias ou contingentes subtraídas
aos princípios da certeza e da estrita legalidade e confiadas à mediação burocrática e
partidária”89.
Em outras palavras, como diria Enrique Zuleta Puceiro, vivemos uma lógica da
emergência sob a camisa de força de uma lógica da racionalidade burocrática que tudo
dificulta. De certo modo, isso até justifica a referida enxurrada de leggi-provvedimento
(medidas provisórias). E assim, lamentavelmente, quando a sociedade necessita de algo, em
função do sistemismo e da burocracia, busca caminhos alternativos à política e ao direito
tradicionais.
Enfim, a crise do Estado social em face das integrações regionais e a globalização
colocam bem claramente a crise do direito e do Estado-nação em face à nova ordem. Está
havendo perceptivelmente algumas alterações:
a) Um deslocamento dos lugares da soberania;
b) Uma alteração dos sistemas das fontes do direito;
89
Conforme “O direito como sistema de garantias”, in Oliveira Junior, José A.(org.) O novo em direito e
política, p. 90.
48
c) Um enfraquecimento do constitucionalismo;
d) Enfim, avança, além de um direito comunitário, um direito do mercado, da
produção, de ordem infra e supraconstitucional (direitos das favelas, arbitragem e mediação,
por exemplo).
Para concluir acerca das abordagens do primeiro texto, temos o terceiro desafio que
está ligado à emergência dos ditos “novos direitos” que, em grande parte, atravessam as
constituições contemporâneas. Como salienta o prof. Sílvio Dobrowolski, as denominadas
Constituições dogmáticas, que se caracterizavam pela livre iniciativa, pela segurança jurídica
e pelo respeito absoluto à propriedade, cederam espaço para as Constituições ditas
compromissórias, que se caracterizam por uma pluralidade de valores e princípios muitas
vezes conflitantes. Como exemplo, temos a defesa da propriedade privada x função social da
propriedade; a defesa da livre concorrência e do consumidor, e assim por diante.90
Pode-se concluir que o problema hermenêutico ligado à pluralidade e ao choque de
valores integrantes do ordenamento jurídico é o grande desafio de hoje. É preciso um critério
para o adequado uso do instrumento jurídico.91 E os problemas se agravam porque ainda hoje
questionamos sem chegarmos a um consenso, qual a matriz epistemológica mais adequada
para as ciências sociais, incorrendo-se, muito frequentemente, em respostas sociológicas e
judiciais reducionistas do problema que se pretende resolver. Na era da manipulação genética,
de descobertas microscópicas, o feito mais impressionante não é o da descoberta em si, mas o
aprofundamento da dominação discursiva, expressa em todas as áreas, aliás, como já havia
previsto Orwel.
92
Em prefácio à obra “O passado não está morto: nem passado é ainda”, in Democracia em pedaços, direitos
humanos no Brasil, Gilberto Dimenstein, São Paulo: Cia.das Letras, 1006, PP.7-45.
51
latinoamerica muchas críticas a las teorias jurídicas de corte dogmático. Ellas reinvindicaban
la importância de la dimension política de lo jurídico. Porém, esas teorias acabaron em um
gran esceso en el final de los años 80... Lo político pasó a adquirir um peso tan grande para la
concepcion del derecho, que llegó a anular el papel de la ley em la adminisracion de justicia
(Por quien cantan las sirenas).
De todos os modos, como dissemos, muito embora a lei seja um instrumento
fundamental para os direitos e para a cidadania, é insuficiente. É preciso vontade política para
fazê-la valer. E a fragilidade semântica da linguagem jurídica só pode ser superada pelas
condições intelectuais adequadas dos profissionais envolvidos, quer morais (pluralismo), quer
políticas.
Acreditamos ser por essas razões que desde sociólogos clássicos como Max Weber
até os atuais como Boaventura Souza Santos, a dimensão de respeito aos sujeitos possui
grande importância na configuração daquilo que se entende por sociedade democrática e
cidadã, na medida em que são eles os protagonistas da cultura e das instituições.
Enfim, para fechar os questionamentos iniciais, cabe considerar as propostas de
Boaventura em sua obra “Para uma revolução democrática justiça” se quisermos não fraudar a
expectativa que hoje a sociedade tem do direito, do sistema judicial e especialmente do Poder
Judiciário. Embora algumas mudanças já estejam em curso, é preciso prosseguir a
reformulação e implementação dos seguintes pontos:
- As reformas processuais para o enfrentamento da morosidade;
- A ampliação do acesso à justiça;
- Continuidade das inovações institucionais;
- A formação continua dos magistrados e em relação à cultura jurídica;
- As relações dos Tribunais com os media;
- Enfrentar corporativismos conservadores de parte da cultura jurídica e lutar pela
independência judicial.
52
Moraes93, por nós arguida na UNISINOS, em 26 de fevereiro de 2009, a qual tece
considerações sobre duas Adins referentes à denominada “clausula de barreira”, inserida essa
na Lei 9.096/95. Considerando-se dois momentos históricos diferentes, o primeiro, dia 7 de
fevereiro de 1996, quando foi julgada a medida cautelar (Adin 1354-8) e que terminou por
declarar a constitucionalidade dessa cláusula por unanimidade, sob a alegação de que o art. 13
não ofenderia os princípios consagrados na Constituição Federal, e o segundo, quando teceu
comentários sobre o julgamento da ação principal (Adin 1351-3) que, em 7 de dezembro de
2006, conduziu o STF a decidir por afastar a cláusula de barreira sob a alegação de que ela
atacaria o funcionamento parlamentar ao reduzir o tempo de propaganda partidária gratuita e a
participação no rateio do Fundo Partidário. Iniciemos com as soluções dadas pelo STF nas
duas decisões.
O plenário dessa Adin, relatada pelo Ministro Maurício Correa, em decisão unânime,
julgou o pedido de liminar, indeferindo-o sob o argumento de que o funcionamento
parlamentar deve estar subordinado ao que regulamentar a lei, já que os limites estão impostos
no art. 17 da Constituição Federal, e que não há afronta ao princípio da igualdade pelo art.13
da Lei dos Partidos Políticos, conforme a ementa in verbis:
94
Ana Paula, Dissertação p. 86-87 e segs.
54
votos obtidos, prejudicando o seu funcionamento parlamentar e reduzindo substancialmente o
seu tempo de propaganda partidária gratuita, bem como negar-se o rateio do Fundo Partidário,
nas palavras do Ministro relator, Marco Aurélio, seria restringir os direitos e liberdades
fundamentais de grupos minoritários de participarem plenamente da vida pública, mormente
através de lei infraconstitucional que afronte a Constituição.95
Ora, diante do exposto, caberia observar que, com efeito, a linguagem do direito é
vaga e ambígua, e como já disseram nobres escritores, o papel aceita tudo. Entretanto, o
interessante nessas Adins, para fins de nossa pesquisa, é confirmar que o direito possui, sim,
relações com a política e isso não deve espantar a ninguém. Indiscutivelmente, das decisões
pode restar a suposição de que o Supremo agiu, a cada momento, atendendo aos interesses
conjunturais do Poder Executivo. Como salientou também Ana Paula, é hoje voz corrente que
vivemos um presidencialismo de coalizão, o que significa que a governabilidade não tem
condições de existir ou sobreviver sem uma ampla base de sustentação partidária.
Com esse pano de fundo, cabe imediatamente a questão de se saber qual é mesmo o
papel do STF e, ainda, quais os limites para a interpretação constitucional? Certamente, tratar
com profundidade essa questão ultrapassa os limites do nosso trabalho. Contudo, tem restado
claro que a constituição não pode ser tratada com um texto amorfo. Como se viu, os
princípios requerem otimização. Entretanto, esse movimento revela um dos paradoxos mais
debatidos atualmente, que é o da presença de um ativismo judicial que, embora inevitável,
tem conduzido a reações as mais diversas, senão vejamos.
Em editorial do Jornal “O Estado de São Paulo”, de 9 de março de 2009, “A Justiça
muda a política”, lê-se que “há quem considere as cassações de governadores, levadas a efeito
pela Justiça Eleitoral, uma indevida judicialização da vida política brasileira, pois a vontade
dos eleitores dos Estados, expressa pelos votos que elegeram seus governadores e vices,
estaria sendo desrespeitada”. Contudo acreditamos, sem falso moralismo, que o processo
político de disputas deve ser o mais transparente e lícito possível. E, nesse sentido, essas
decisões têm sido pedagógicas. Bobbio já apontou para a não superação dos interesses
particulares na política e segue sendo um ideal lutar contra isso. Porém, não há como deixar
de concordar com o aspecto levantado por esse jornal de que o maior problema das cassações
de governadores não é a judicialização da política ou a politização do Judiciário, mas a
intempestividade das decisões. Em palavras do jornal referido, “uma coisa seria se, logo após
proclamados os resultados eleitorais ou mesmo logo depois da posse dos governadores eleitos,
o que houvesse de denúncias de irregularidade, nas campanhas eleitorais que os elegeram,
95
Ana Paula, Dissertação, p. 87 e segs.
55
fosse a julgamento com a maior celeridade possível. O ideal seria que tal ocorresse antes
mesmo da montagem das máquinas administrativas estaduais...” mas não é o que ocorre.
Lembra-se aqui Ação Penal contra o Sr. Paulo Maluf que tramita há mais de quatro anos e não
consegue encerrar a fase de instrução, pois não consegue colher depoimentos de testemunhas
de defesa.
Não obstante a realidade de ativismo judicial no Brasil de hoje, consoante José
Reinaldo Lima Lopes, em texto sobre “Moderação e Justiça constitucional tem tudo a ver”,
em clara posição de crítica não só ao ativismo judicial brasileiro, mas a certas indiscrições dos
ministros do STF que, em alguns casos, tem antecipado comentários sobre ações que
futuramente terão de julgar.
Como salienta o referido professor,
Dito isso, como ressalta o prof. José Reinaldo, a manifestação pública de alguns
ministros sobre casos conflituosos da sociedade brasileira, que posteriormente poderão chegar
ao Tribunal, tem sido verdadeira inovação, e sua contribuição para o fortalecimento das
instituições sociais e jurídicas é bastante duvidosa. O que podemos aprender com tudo isso?
96
Jornal o Estado de São Paulo, caderno A2, Opinião, 20 de março de 2009.
56
CAPÍTULO 3
CONSTITUIÇÃO, DIREITOS FUNDAMENTAIS E DIREITO PRIVADO
TRANSVERSALIDADE, EXIGIBILIDADE E PROTEÇÃO NO RE 201.819 97
97
Ideias inicialmente apresentadas em palestra proferida no Curso de Direito da ULBRA – Santa Maria –, em
26-9-2008, resultantes de pesquisas realizadas pelo Grupo “Direitos Fundamentais e Novos Direitos”, da
UFRGS, e do Grupo “Tutela dos Direitos e sua Efetividade”, da URI – Santo Ângelo/RS. Texto elaborado
especialmente para ser apresentado ao Grupo de trabalho “Direitos Fundamentais – Proteção e Exigibilidade”, no
XVII Encontro Preparatório do CONPEDI, Brasília, de 20 a 22 de novembro de 2008. Versão para este livro,
acrescida de ensaio sobre o Recurso Extraordinário 201.819, realizado por Bruno Leal, pesquisador voluntário de
IC, e membro do grupo Direitos Fundamentais e Novos Direitos.
98
Cfe. “A Filosofia dos Direitos do Homem”, Guy Haarscher, p.13 e segs.
57
Como salientam os guias “turísticos”, já na chegada todos passavam por uma
“desinfecção”, assim como por uma triagem de quem era velho, doente, criança, mulher e
jovem com saúde para o trabalho, sendo os mais debilitados conduzidos imediatamente à
morte.
Diga-se, também, que tudo se passou rigorosamente dentro de um grande plano -
Arbeit Macht Frei – o trabalho liberta. Brilhante dissimulação do que lá acontecia e ainda
viria acontecer de pior.
Mas trazemos esse fato novamente neste texto para enfatizar que o que lá aconteceu,
lamentavelmente, não está fora da esclarecedora linha de raciocínio de Luciano Oliveira 99
quando, em importante livro de 1994, alertava para o “eterno retorno”. Tal como afirmou esse
professor, tendo em conta execuções como as chacinas de Vigário Geral e da Candelária, bem
como o massacre do Carandiru, tudo após os muitos excessos do regime militar de 64, “parece
que estamos permanentemente condenados a exorcizar a tortura e as execuções clandestinas
numa radiosa sexta-feira de manhã para vê-las irromper de novo na calada da noite do dia
seguinte”100. Mas uma das mais intrigantes interrogações do autor, feita com base em
Friederich Nietzsche, é a de que “a perspectiva do eterno retorno traz consigo terríveis
consequências existenciais: se tudo está fadado a se repetir até o fim dos tempos, qual o
sentido das nossas ações?”101
Enfim, a conclusão que se deve tirar é a de que a lei, por si só, não é suficiente para
conter o arbítrio e a violência contra os DHF. O Nazismo transitou em base legal, de acordo
com a legislação vigente. E, assim, resta a grande questão: O que necessitamos, além da lei,
para conter o arbítrio contra os direitos humanos fundamentais?
102
Op.cit.p. p.29 e segs.
59
b) Legalidade: conhecimento da lei e vinculação a ela; nesse ponto, o importante é
que ao mesmo tempo em que a lei submete os governados, também submete os governantes,
que tem a liberdade de estabelecer o conteúdo da lei, mas, também, se obrigam a eles;
c) Juiz independente/separação dos poderes (Montesquieu); aqui o interessante é que
a partir da lei pode-se pensar uma conjunção das forças vivas da sociedade na medida em que
o Legislativo que faz a lei, em tese, não representa interesses corporativos, mas de toda a
soberania, e os eventuais conflitos com o Executivo, que deveria concretizá-los, devem ser
julgados por um Judiciário que, por seu turno, deve conduzir-se também com base na lei;
d) Irretroatividade das leis – temporalidade; a lei possibilita a estabilização do direito
no tempo, o que é fundamental para que não se instale o “1984”, de George Orwel, e seu
ministério da verdade que, ao afastar a memória, age como bem entender;
e) Publicidade; enfim, como é de domínio de todos, através da lei, se torna possível a
sociedade conhecer o que pensa e o que está sendo exigido pela ordem político-jurídica em
vigor.
Das conclusões possíveis, uma delas diz da importância dessas demandas, e outra diz
com os paradoxos quando da tentativa de realização das aspirações valorativas dos direitos
humanos fundamentais, de vez que podem existir ambiguidades, conflitos e mesmo lacunas
específicas quanto a valores a serem atingidos.
Lúmen Júris uma coletânea de artigos que se intitulou “Teoria jurídica e novos direitos”, e que procurou dar
prosseguimento às pesquisas anteriores.
104
Alguns autores, como Antonio Carlos Wolkmer, p.ex., embora criticando a ideia de geração e preferindo falar
em dimensão dos direitos assinala “haver clareza quanto à inter-relação e a indivisibilidade de todos os direitos
por parte daqueles que adotam a ordenação histórica dos novos direitos em cinco grandes gerações ou
dimensões” e cremos não haver dúvida de que nos incluímos entre eles. Cfe. “Os novos direitos no Brasil”,
Antonio Carlos Wolkmer e José Rubens Morato Leite organizadores. São Paulo: Ed. Saraiva, 2003.
105
Cfe.o seu “Filosofia dos direitos humanos”. Trad. Dankwart Bernsmüller. São Leopoldo: Unisinos, 2000, p.
88 e segs.
61
ambientação que vem sendo denominada de pós-moderna, e considerando-se as dificuldades
do Estado de bem-estar social e a queda do comunismo, dentre outros fatores, estamos diante
da necessidade de se pensar a evolução da problemática dos direitos humanos para além das
lutas contra o arbítrio estatal que, aliás, é o que tem feito Alain Touraine, sociólogo francês
dos mais respeitados. Qual é esse novo foco? Os direitos culturais, que podemos situar ainda
no rol dos de terceira geração.
Com a queda dos regimes fascistas, nazistas e, sobretudo, comunistas, cada vez mais
tem emergido um tipo de sociedade que busca encontrar seus laços de articulação em
argumentos de base cultural. Novos nacionalismos e fundamentalismos estão vindo em
substituição dos Estados arbitrários como valores prioritários de identidade social, o que
coloca um amplo espectro de novas discussões que transcendem os objetivos deste texto.
Enfim, estamos diante da necessidade de se tratar adequadamente a pluralidade
cultural que se exprime cada vez com maior força nas sociedades pós-modernas e que
apresentam a necessidade de uma interpretação constitucional que contemple o cidadão desde
os ângulos aparentemente contraditórios de sua identidade e diferença. Enfim, estamos a falar
do fenômeno do multiculturalismo, que reúne discursos de defesa das minorias em face de
culturas hegemônicas, na busca da inclusão e do reconhecimento.
Nesse sentido, vale enfatizar que o mundo atual tem se destacado como excludente
das “novas tribos”, como diria Michel Maffesoli, e, assim, a luta pelos direitos humanos passa
hoje também pela recusa tanto ao Direito “oficial” injusto quanto pela indignação de recusa
do direito oficial constitucionalizado de dar ouvido às novas aspirações coletivas. Trata-se de
um ficar atento aos autoritarismos que se estendem desde os grandes sistemas teóricos aos
intelectuais, dos políticos à mídia, a fim de se romper com o que esse pensador denomina “de
círculo virtuoso das análises óbvias”106. Tentando traduzir: se a modernidade se sobressaiu na
construção dos “sentidos” próprios e “adequados” para ação social, a pós-modernidade tem se
encarregado de despi-los de suas estratégias míticas, e o que se verifica por parte dos poderes
constituídos é ainda uma desesperada argumentação pela permanência e manutenção da
credibilidade daqueles sentidos modernos, mesmo que eles nada tenham que ver com o
cotidiano das pessoas de hoje.
Por tudo isso seria importante reprisar a citação que Maffesoli fez de Dostoievski ao
abrir o capítulo sobre as galerias do social no livro “O ritmo da vida”: “é preciso amar a vida
106
Cfe. Maffesoli, Michel. “O ritmo da vida - variações sobre o imaginário pós-moderno”. Trad. Clóvis
Marques. São Paulo: Record, 2007, p. 9-16.
62
mais que o sentido da vida”107 e, assim, darmos vazão aos novos sentidos, dos quais
decorrerão novos direitos, o que justifica a continuidade de estudos nessa perspectiva.
107
Idem, op.cit.p. 17.
108
“Os Mecanismos de Controle Penal em Processos de Lavagem de Dinheiro na Justiça Criminal Federal da 4ª.
Região”. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado
em Ciências Criminais, PUC/RS, 2007, orientada pelo professor Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo.
63
muitos autores a falar em um poder uno do Estado, distribuídas tão somente as tarefas, o que
não eliminaria a atuação complementar de um poder em relação a outro, de vez que os fins a
serem alcançados seriam os mesmos.
Enfim, quanto aos direitos culturais, hoje constitucionalmente estatuídos em vários
momentos de nossa Constituição e que defendem a diferença, os diferentes e clamam pelo
reconhecimento, caberia reforçar que apenas estamos diante da necessidade de se tratar,
materialmente, os iguais como iguais e os diferentes efetivamente como diferentes. Como
dissemos, considerar a igualdade na diferença e a diferença quando na discussão da igualdade.
Hoje em dia, felizmente, as discussões no âmbito dessa dimensão são muitas. Temos
casos em andamento sobre ações afirmativas sobre cotas nas Universidades, sobre as
possibilidades de adoção por casais formados por pessoas do mesmo sexo, o realce de antigas
e novas questões sobre direitos indígenas, sobre portadores de deficiência, etc., casos de
repercussão na mídia ocorridos com pessoas de orientação gay integrantes do exército, etc.
Enfim, as situações concretas de exigibilidade e proteção de direitos culturais são,
lamentavelmente, proporcionais ainda à grande resistência da sociedade ao reconhecimento
dos direitos constitucionais dessas pessoas.
111
A incidência dos direitos fundamentais (de estatura constitucional) nas relações
privadas (tradicionalmente regidas pela legislação infraconstitucional, máxime o Código civil)
vem sendo objeto de questionamentos jurídicos desde a metade do século XX.
Tanto em doutrina brasileira, quanto no direito comparado (mormente as doutrinas
norte-americana e alemã), debate-se a respeito de qual seria o efetivo alcance dos princípios
fundantes de um Estado Democrático de Direito (tais como o da dignidade da pessoa humana,
do devido processo legal, da liberdade e igualdade) nas relações privatísticas, nas quais,
prima oculi, seria predominante a autonomia individual. Na senda desses questionamentos,
uma das manifestações pioneiras a tratar diretamente dessa questão, no Brasil, foi o recente
julgamento do Recurso Extraordinário 201.819/RJ, julgado pela Segunda Turma do Supremo
Tribunal Federal, assim ementado:
67
3.2.2 Da “legalidade” da exclusão do sócio
113
Vide COGLIOLO, Pietro. Filosofia del diritto privato. 2.ed. Firenze: G.Barbèra, 1891. p. 231. (grifos nossos).
114
A expressão é de Pontes de Miranda, salientando que o direito é um, dentre vários processos de adaptação
social, sendo um dos mais racionais e que menos predispõe a reações adversas. Para extensos comentários a este
respeito, vide PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Introducção à sociologia geral. Rio de Janeiro:
Pimenta de Mello, 1926. p.229-48 passim.
115
Registra Sua Excelência: “Está se aplicando o devido processo legal e nós sempre afastamos essa alegação
ao argumento de que o devido processo legal se exerce em conformidade com a lei. Quer dizer, a ofensa direta,
se ocorrente, seria à lei. No caso, a ofensa direta seria ao Estatuto, o que não deixaria de ensejar a ação
própria, mas sob o ponto de vista da legalidade. Se formos aplicar o Código Civil, ainda assim continua no
campo da legalidade ou do contencioso infraconstitucional”. (fl. 631)
69
A observação do Ministro Joaquim Barbosa traz à baila conceito – state action
doctrine – que designa a postura da doutrina norte-americana, a qual, em relação à incidência
dos direitos fundamentais, em recíproca influência com os precedentes da Supreme Court,
adota uma visão bastante moderada, restringindo sua aplicação tão somente quando o polo
(indivíduo ou entidade) privado relacionar-se com algum órgão público ou que faça suas
vezes.
É praticamente um axioma do direito constitucional norte-americano, quase
universalmente aceito tanto pela doutrina como pela jurisprudência, a ideia de que os direitos
fundamentais, previstos no Bill of Rights da carta estadunidense, impõem limitações apenas
para os poderes públicos e não atribuem aos particulares direitos frente a outros particulares
com exceção apenas da 13ª Emenda, que proibiu a escravidão.116
A Suprema Corte norte-americana, contudo, sentiu-se pressionada pelos fatos da vida
real que mostravam que, contrariamente à teoria mais arraigada, também as entidades
particulares eram capazes de ameaçar determinados direitos. Em outras palavras, foram
enfrentados casos de cerceamento de direitos os quais, se fosse abstraído o toque de
“publicidade” que a teoria da state action exige, qualquer jurista americano reconheceria
como passível de proteção pela Constituição Americana. 117
Esta dilatação do conceito de poder público, a que se refere Bilbao Ubillos, pode ser
constatada mediante uma argumentação que se desdobra em dois núcleos fundamentais: (a)
118
por um lado, o exercício (indireto) de funções públicas; (b) por outro lado, o
reconhecimento de uma implicação estatal significativa. 119
116
TRIBE, Lawrence. American Constitutional Law. 2nd ed. Mineola: The Foundation Press, 1988. p. 1691.
(tradução livre).
117
UBILLOS, Juan Maria Bilbao. Los derechos fundamentales en la frontera entre lo público y lo privado.
Madrid: Mcgraw-Hill, 1997. p. XIV. Introducción.
118
Quanto à primeira hipótese (a), trata-se de reconhecer certas entidades que exercem poderes virtualmente
públicas – ou quase públicas (government-like powers), isto é, que desenvolvem funções que se consideram
públicas por natureza ou equiparáveis, ao menos, àquelas que tenham sido tradicionalmente exercidas pelo
Estado, podem incluir-se, tão somente para estes efeitos, entre os poderes públicos. Isto porque se parte da
premissa de que o Estado não pode liberar-se de suas limitações constitucionais mediante o artifício de
delegação de funções a entidades ou pessoas formalmente privadas, tampouco pode elidir sua responsabilidade
sobre as pessoas que tem sob sua guarda pelo fato de que os profissionais diretamente responsáveis sejam
privados contratados e não empregados públicos. Exemplo disto é o caso Marsh V. Alabama, julgado pela
Suprema Corte em 1946. Vide UBILLOS, Juan Maria Bilbao. Los derechos fundamentales en la frontera entre
lo público y lo privado. Madrid: Mcgraw-Hill, 1997. p.40.
119
No que tange à implicação de uma atividade estatal significativa, trata-se de argumentação algo mais
sofisticada: não se trata de discutir a natureza privada (ou não) dos que realizam a ação possivelmente ilícita,
senão de perceber, por detrás deste ato, induzindo-o e estimulando-o de certa forma, um poder público. Ante
estas situações – nas quais do grau de implicação do Estado resulte ficar virtualmente impossível reconhecer o
caráter meramente privado da conduta – seria possível admitir a incidência limitadora dos direitos fundamentais,
sem comprometer a teoria da state action. A sutileza desta outra perspectiva da “ação estatal” revela-se com
agudez em um de seus mais paradigmáticos exemplos, a saber, o caso Shelley V. Kraemer (1948), no qual se
abordou a questão das Racially Restrictive Covenants, isto é, as convenções privadas proibindo os proprietários
70
Esta doutrina, aliás, cujo arcabouço teórico foi recém-explorado, parece encontrar
respaldo na manifestação da ministra relatora Ellen Gracie quando esta afirma: “Não me
apercebi, Ministro Gilmar Mendes, de que houvesse um prejuízo econômico ou impedimento
de recebimento de direitos autorais, que poderiam, sim, continuar sendo recebidos por meio
do Ecad, entidade esta que o Plenário reconheceu como de natureza quase-pública, digamos
assim, mas não esta Associação de Compositores, que é apenas uma repassadora dos
recursos colhidos – estes, sim – pelo Ecad. Por isso considerei-a entidade de caráter
eminentemente privado, que deve ser regida – e os seus sócios – pela norma estatutária, a
qual foi respeitada no caso.” (fl. 614, grifos nossos).
Em análise combinada com a manifestação já referida do Ministro Carlos Velloso, a
respeito da única possibilidade de um conflito (inexistente, in casu, segundo a perspectiva de
Sua Excelência) da atuação da UBC com o Código civil ou com o Estatuto, nunca com a
Constituição, é que achamos ter encontrado síntese da opinião minoritária na expressão:
legalidade da expulsão do sócio, a justificar o título deste item.
Esclarecidos os aspectos julgados mais relevantes no que concerne à minoria
vencida, na proposta de um quadro comparativo entre as duas orientações ventiladas na
Segunda Turma, resta passar-se ao exame da orientação vitoriosa no julgamento em análise.
de vários imóveis de uma região de aliená-los a pessoas integrantes de minorias raciais UBILLOS, Juan Maria
Bilbao. Los derechos fundamentales en la frontera entre lo público y lo privado. Madrid: Mcgraw-Hill, 1997. p.
76.
71
moldada não só em função de uma abstrata determinação das “regras do jogo’, senão para
balizar o comportamento dos que a ela estão submetidos; faz gravitar em torno de si todo o
sistema jurídico, não só formal, como materialmente.
A noção de uma influência cada vez maior dos direitos fundamentais nas relações
privatísticas deve-se, igualmente, em grande parte, à mudança de uma ideologia, de um
120
Estado Liberal, para um Estado Social, como nos esclarece André Rufino. A teoria mais
radical – defendida, entre outros, por Nipperdey, Leisner e Zippelius – considera que os
direitos fundamentais teriam eficácia direta (ou imediata) nas relações privadas (unmittelbare
Drittwirkung der Grundrecht), dispensando qualquer intermediação legislativa..121
122
A despeito dos fundados receios das críticas que se fizeram a esta teoria , é mister
que não se olvide que a referida teoria não é fruto de pendor irrefletido para esta ou aquela
ideologia: trata-se de desenvolvimento que não nega a existência de especificidades nesta
incidência, nem a necessidade de ponderar o direito fundamental em jogo com a autonomia
privada dos particulares envolvidos no caso. Não se trata, portanto, de uma doutrina radical,
que possa conduzir a resultados liberticidas, ao contrário do que sustentam seus opositores,
pois ela não prega a desconsideração da liberdade individual no tráfico jurídico-privado. 123
Uma outra teoria pode ser denominada de teoria da eficácia indireta (ou mediata, ou
mittelbare Drittwkirkung), a qual foi originariamente desenvolvida por Günter Dürig, trata-se
de construção intermediária, que entende que a proteção constitucional da autonomia privada
pressupõe a possibilidade de os indivíduos renunciarem a direitos fundamentais no âmbito das
relações privadas que mantêm, o que seria inadmissível nas relações travadas com o Poder
Público. Por isso, certos atos, contrários aos direitos fundamentais, que seriam inválidos
quando praticados pelo Estado, podem ser lícitos no âmbito do direito privado. E, por outro
120
Vide VALE, André Rufino do. Eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. Porto Alegre:
SAFE, 2004. p. 100.
121
Em síntese significativa, tem-se: “la obligación de respectar los derechos fundamentales por los ciudadanos
surge y emana directamente de la Constitución y no sólo de las normas de desarrollo de ésta, no es por lo tanto
un mero reflejo del ordenamiento que puede sufrir las alteraciones, modificaciones y supresiones que el
legislador decida, sino que hay un núcleo esencial que se deduce directamente de la Constitución y que se
impone a todos los ciudadanos”. QUADRA-SALCEDO, Tomás. El recurso de Amparo y los derechos
fundamentales en las relaciones entre particulares. Madrid: Civitas, 1981. p.70. No mesmo sentido, AGUIAR.
Las garantías constitucionales de los derechos fundamentales en la Constitución española. In: Revista de
Derecho Politico. v.10. 1981.
122
Vide CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Civilização do direito constitucional ou constitucionalização do
direito civil? A eficácia dos direitos fundamentais na ordem jurídico-civil no contexto do direito pós-moderno.
In: GRAU, Eros Roberto e GUERRA FILHO, Willis Santiago (orgs.). Direito constitucional: estudos em
homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001. p.113.
123
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 246.
72
lado, certas práticas podem ser vedadas pelo direito privado, embora se relacionem ao
exercício de um direito fundamental. 124
Para os adeptos da teoria da eficácia indireta cabe, antes de tudo, ao legislador
privado a tarefa de mediar a aplicação dos direitos fundamentais sobre os particulares,
estabelecendo uma disciplina das relações privadas que se revele compatível com os valores
constitucionais. Competiria ao legislador proteger os direitos fundamentais na esfera privada,
mas sem descurar-se da tutela da autonomia da vontade, procedendo a uma ponderação entre
interesses constitucionais em conflito, na qual lhe é concedida certa liberdade para acomodar
os valores contrastantes, em consonância com a consciência social de cada época.
Destarte, retirar-se-ia tamanha responsabilidade – e, assim, diminuindo o risco de
arbitrariedade – do Poder Judiciário, ao qual sobraria o papel de preencher as cláusulas
indeterminadas criadas pelo legislador, levando em consideração os direitos fundamentais,
bem como o de rejeitar, por inconstitucionalidade, a aplicação das normas privadas
incompatíveis com tais direitos. Porém, quando o Judiciário resolvesse os conflitos privados,
interpretando as normas ordinárias sem levar em consideração os direitos fundamentais, ele
tornar-se-ia responsável por uma lesão a direitos, sujeitando-se à censura, como aconteceu nos
casos Lüth e Blinkfüer125.
Assentadas estas linhas fundamentais, é possível passar à análise dos votos
proferidos, os quais sustentaram o desprovimento do recurso, e, por fim, o reconhecimento de
que a expulsão do sócio, dando-se à revelia do direito fundamental à ampla defesa, revolvia
um fundo de (in)constitucionalidade – e não tão somente de legalidade, como propugnou a
tese minoritária.
A argumentação dos três Ministros indicam, todos – com maior ou menor ênfase -,
um pensamento voltado aos pressupostos que se expôs no início deste item segundo, quais
sejam, o influxo da Constituição e dos princípios que dela dimanam sobre os demais ramos do
direito, designadamente o direito civil. Trata-se de uma revisão hermenêutica dos institutos
mais clássicos, redimensionando o conceito de “autonomia privada”, reconhecendo-lhe
balizas constitucionais, situando-a em um universo que gravita derredor à Carta Magna de
1988.
A disposição de ideias neste sentido visa à construção de um complexo de razões
para que se reconheça a inconstitucionalidade – e não ilegalidade – da expulsão do sócio da
124
Ibidem, p. 238.
125
Para extensos comentários, debruçando-se sobre cada um destes casos, vide CANARIS, Claus-Wilhelm.
Direitos fundamentais e direito privado. Traduzido por Ingo W. Sarlet e Paulo M. Pinto. Coimbra: Almedina,
2006. p.83 et seq.
73
UBC, já que se reconhece a incidência – de alguma forma – do direito fundamental à ampla
defesa na relação privada.
O Ministro Celso de Mello ainda invocou, em seu voto, a lição de Ingo Sarlet,
quando afirmou que “uma opção por uma eficácia direta traduz uma opção política em prol
de um constitucionalismo da igualdade, objetivando a efetividade do sistema de direitos e
garantias fundamentais no âmbito do Estado social de Direito, ao passo que a concepção
defensora de uma eficácia apenas indireta encontra-se atrelada ao constitucionalismo de
inspiração liberal-burguesa”. 126
Com estes argumentos, os três Ministros integrantes da orientação vencedora no
julgamento invocaram precedentes, através dos quais pretendiam reconhecer a existência de
relativa tradição do Supremo Tribunal Federal em reconhecer a referida incidência horizontal
dos direitos fundamentais. 127 Além dos precedentes, o Ministro Celso de Mello, em seu voto,
registrou, à guisa de exemplificação de como a incidência dos direitos fundamentais se dá –
inclusive e mormente no plano do legislador privado -, apontando artigos do Código civil que,
regulando semelhante matéria, fizeram expressa referência ao atendimento de requisitos que
derivam do direito fundamental ao devido processo legal. 128
A inclinação desta corrente majoritária, vencedora no julgamento sob análise, estaria,
prima facie, claramente subsumível a uma teoria que preconiza a eficácia direta (ou imediata)
dos direitos fundamentais às relações privadas, visto que, inexistindo qualquer previsão
legislativa que regule o caso em tela, os Ministros dessumiram, diretamente, do texto
constitucional o direito fundamental à ampla defesa para exigir sua aplicação no caso
concreto.
Tal conclusão restaria razoavelmente pacífica a partir da análise global da situação,
não fosse a referência expressa, em alguns trechos dos votos que compuseram a maioria, ao
chamado “caráter público” da instituição. Assim se expressa o relator para o acórdão,
Ministro Gilmar Mendes: “afigura-se-me decisivo, no caso em apreço, tal como destacado, a
singular situação da entidade associativa, integrante do sistema ECAD, que, como se viu na
126
SARLET, Ingo Wolfgang. A constituição concretizada: construindo pontes entre o público e o privado. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p.147.
127
Entre outros, o RE 161.243/DF, Rel. Min. Carlos Velloso, 1997.
128
“Art. 57. A exclusão do associado só é admissível havendo justa causa, assim reconhecida em procedimento
que assegure direito de defesa e de recurso, nos termos previstos no estatuto” e “Art. 1.085. Ressalvado o
disposto no art. 1.030, quando a maioria dos sócios, representativa de mais da metade do capital social,
entender que um ou mais sócios estão pondo em risco a continuidade da empresa, em virtude de atos de
inegável gravidade, poderá excluí-los da sociedade, mediante alteração do contrato social, desde que prevista
neste a exclusão por justa causa. Parágrafo único. A exclusão somente poderá ser determinada em reunião ou
assembleia especialmente convocada para esse fim, ciente o acusado em tempo hábil para permitir seu
comparecimento e o exercício do direito de defesa.”
74
ADI n.º 2.054-DF, exerce uma atividade essencial na cobrança de direitos autorais, que
poderia até configurar um serviço público por delegação legislativa. Esse caráter público
ou geral da atividade parece decisivo aqui para legislar a aplicação direta dos direitos
fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (Art.
5º, LIV e LV da CF) ao processo de exclusão de sócio da entidade. Estando convencido,
portanto, de que as particularidades do caso concreto legitimam a aplicabilidade dos
direitos fundamentais referidos já pelo caráter público – ainda que não estatal –
desempenhado pela entidade, peço vênia para divergir, parcialmente, da tese apresentada
pela eminente relatora” (fls. 612-3. grifos nossos). Da mesma forma manifestou-se o
Ministro Joaquim Barbosa. 129
Ora, a referência salientada nos trechos dos votos causa certo estranhamento, pois faz
alusão expressa ao argumento mais recorrente, justamente na teoria da state action doctrine,
qual seja, alguma espécie de manifestação do Poder Público na relação como condição para a
incidência dos direitos fundamentais. 130
Diante de tais fatores, à guisa de conclusão de uma análise do acórdão, a validade de
uma distinção entre dois “blocos de votação” não se encontra fragilizada; pelo contrário, o seu
critério, tão somente, é que não pode ser aferido mediante uma dicotomia entre a state action
doctrine e a Drittwirkung der Grundrechte. Neste sentido, parece mais apropriada a
denominação que se propôs: tratar a questão da expulsão do sócio (1) no plano da legalidade
ou (2) no plano da constitucionalidade.
As premissas aduzidas até aqui conduzem a uma conclusão que se aproxima da
brilhante expressão de Torres e Jimenez-Blanco quando escrevem que “La Drittwirkung, lo
hemos dicho, no es un resultado de un proceso interpretativo normal, sino la elección de un
horizonte hermenéutico, la libre posición de un proyecto de sentido. La elección de
horizontes de sentido es la Gran Elección porque difícilmente pueden ser ‘controladas por el
texto’, antes bien constituyen la condición de posibilidad del sentido del texto. Y aquí está la
cruz del asunto.” 131
129
“Assim, na linha do que foi sustentado no voto divergente, e em virtude da natureza peculiar da associação
em causa (que tem natureza ‘quase-pública’), peço vênia à ministra Ellen Gracie para dela divergir,
concordando com o entendimento de que os princípios constitucionais da ampla defesa e do devido processo
legal no caso têm plena aplicabilidade para fins de exclusão do sócio da sociedade” (fl. 627. grifos nossos).
130
Deveras, o próprio Ministro Gilmar Mendes referiu: “Não estou preocupado em discutir no atual momento
qual a forma geral de aplicabilidade dos direitos fundamentais que a jurisprudência desta Corte professa para
regular as relações entre particulares. Tenho a preocupação de, tão-somente, ressaltar que o Supremo Tribunal
Federal já possui histórico identificável de uma jurisdição constitucional voltada à aplicação desses direitos às
relações privadas”. (fl.607)
131
TORRES, Jesús García. JIMÉNEZ-BLANCO, Antonio. Derechos fundamentales y relaciones entre
particulares. Madrid: Civitas,1986. p. 143.
75
A cruz parece ainda muito pesada para a doutrina brasileira, por enquanto, hesitante,
a despeito dos trabalhos de excelente qualidade produzidos. Tampouco a jurisprudência, como
se constatou na análise deste acórdão, definiu-se por uma matriz única de ação. Trata-se,
deveras, de uma escolha – la gran elección -, a qual não encontrou terreno seguro suficiente,
ainda, para fixar raízes, temerosa de que a chuva da primeira arbitrariedade venha a profligar
os esforços feitos.
Fica a lição, contudo, do imortal Victor Hugo, quando dizia que “il n’y a rien de
plus fort qu’une idée dont temps est arrivé”. A ideia da eficácia horizontal já foi semeada; seu
tempo parece ter chegado. O que é necessário é mais debate e construção científica, objetivo
que, em suma, serviu de norte a este ensaio.
76
CAPÍTULO 4
PODER JUDICIÁRIO E NOVOS DIREITOS – CASOS DIFÍCEIS E
RESPONSABILIDADE CIVIL DE FUMAGEIRAS
4.1.1 Introdução
135
Ver “Uma questão de princípio”, de Ronald Dworkin. Trad. Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes,
2000.
136
Alexy, op.cit., e MacCormick, Neil. “Legal Reasoning and Legal Theory”. New York: Oxford University
Press Inc, 1994, p 265-274. Ver também de Robert Alexy, “Teoria de la argumentacion juridica”. Trad. Manuel
Atienza. Marid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1989.
137
Cfe. Op.cit. e Atienza, Manuel. “As razões do direito”. Trad.Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo:
Landy, 2000,169-232.
79
que, segundo nosso entendimento, além de atenderem ao comando dos princípios, envolvam-
se numa complexa inter-relação de meios e fins. Talvez seja correto se falar, como o faz
Humberto Ávila138, que as decisões, além dos princípios, dependem de critérios operativos
denominados de postulados, dentre os quais se destacariam igualdade, utilidade, razoabilidade
e proporcionalidade.
Não obstante, o fato é que as decisões tomadas desde um ponto de vista
consequencialista conduzem o processo de legitimação do direito e de suas sentenças para
além de uma perspectiva interna do sistema jurídico, passando-se mesmo a habitar o mundo
da moralidade intersubjetiva vigente que, ao final das contas, compõe o subsolo ou alicerce
sobre o qual se ergue, desde Kant, a estrutura jurídica. Inobstante, há que serem consideradas
as diversas transformações pelas quais têm passado a realidade e a consciência sobre o papel
do Estado moderno e suas relações com a sociedade civil, desde o liberalismo aos Estados de
bem-estar social, atualmente superados pela ideia de Estados democráticos com forte
preocupação ecológica139.
Dito isso e passando a algumas considerações sobre sociedade de consumo e direito
do consumidor, pano de fundo da problemática aqui tratada, e utilizando-nos do espírito de
Max Weber, o direito do consumidor é um dos mais significativos produtos da racionalização
do direito. Julien Freund, procurando expressar o pensamento de Weber, assinala que “foram
as condições materiais da existência das coletividades, tais como a complicação dos
intercâmbios econômicos e o desenvolvimento da prática contratual (...), que levaram à
superação de formas mais primitivas de direito baseadas num formalismo divinizado que em
nada se comunicava com a sociedade, bem como à superação de preocupações sociológicas
assentadas unicamente no conceito de classe social140.
A ideia de consumidor e a importância do direito do consumidor, por outro lado,
talvez possam ser medidas com as palavras de Jean Braudrillard para quem “vivemos a
sociedade de consumo, pois, a nossa volta, existe hoje uma espécie de evidência fantástica do
consumo e da abundância, criada pela multiplicação dos objetos, dos serviços, dos bens
materiais, originando como que uma categoria de mutação fundamental na ecologia da
espécie humana. Para falar com propriedade, os homens da opulência não se encontram
138
Cfe. Seu “Teoria dos princípios”. São Paulo: Malheiros, 2003.
139
Lembre-se que José Gomes Canotilho tem falado de um possível Estado Ambiental.
140
Cfe. “Sociologia de Max Weber”. Trad. Luis Cláudio de Castro e Costa. Rio Janeiro:Forense Universitária,
1975. pp. 189-190.
80
rodeados, como sempre acontecera, por outros homens, mas mais por objetos” 141. Talvez por
um bom charuto ou cigarro, acrescentaríamos!
Ora, para o bem ou para o mal, o consumo persegue o ser humano como a sombra o
corpo, decorrendo, dessa situação, várias possíveis interpretações éticas sobre as sociedades
de consumo. Em interpretação “livre” de Baudrillard, poderíamos nos perguntar o quanto a
nossa sombra não se confunde com a sombra dos outros ou o quanto a sombra dos outros não
poderia estar ocupando o lugar da nossa, como que roubando o nosso corpo, ampliando
nossos desejos de consumo, considerando-se a perspectiva hegemônica das sociedades como
sociedades de consumo.
Certamente também pelos argumentos acima e por outros aqui não expressados, seja
interessante trazer a afirmação de Nestor Canclini142, a de “que vivemos a condição de
consumidores do séc. XXI, embora cidadãos do séc. XVIII”, demonstrando que o que nos faz
cidadãos é a nossa capacidade de consumo, e não necessariamente a atenção que o Estado tem
conosco, principalmente no que diz com aspectos que conduzissem a um desequilíbrio na
relação com nossa economia interna, bem como em relação a um equilíbrio entre produção e
meio ambiente. De modo que é preciso inverter essa situação em face ao emergente e
crescente direito do consumidor, passar a contar com uma atuação do Estado que nos conduza
à superação desse déficit de cidadania, justamente a partir do respeito à dignidade da pessoa
humana, estrela guia das mais atuais concepções de direitos fundamentais.
O caso específico que se deseja tratar por certo tem a ver com todos esses pontos
levantados. Satisfazer o vício ou o hábito de fumar coloca em movimento toda uma situação
comercial, de saúde e ambiental. E entendê-la e enquadrá-la dentro de adequadas
preocupações jurídicas implica ter-se preocupações individuais e coletivas, privadas e
públicas, embora o entendimento geral ainda esteja longe de perceber essa ambivalência, isto
é, de que estamos diante de um problema social, público, situação a ser enquadrada no Código
de defesa do consumidor (CDC) e não apenas no Código civil, pré-compreensão que cresce a
cada dia, com os efeitos transversais dos direitos fundamentais, além do que a complexidade
141
Cfe. “A sociedade de consumo”, Jean Baudrillard. Trad. Artur Morão. Rio de Janeiro: Elfos Edit.;
Lisboa:Edições 70, 1995, p. 15.
142
Em seu “Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização”. Trad. Maurício Santana Dias. 5.
ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005.
81
do caso em pauta deve-se à leitura multifacetada a ser feita de princípios como o da “boa-fé” e
“dever de informar”.
Para melhor acercarmo-nos de certas particularidades sobre responsabilidade civil
dos fabricantes de cigarro, nada melhor do que dialogar com as professoras Judith Martins-
Costa e Cláudia Lima Marques143, especialistas na questão. Através de seus trabalhos,
podemos iniciar uma discussão conceitual importante sobre aspectos que norteiam as
discussões existentes especialmente sobre “boa-fé”, “o dever de informar” e o “dever de
indenizar”, princípios que têm embasado o debate sobre responsabilidade no âmbito desse
caso difícil.
Em parecer que elegemos considerar, a professora Judith Martins-Costa parte da
seguinte indagação: “os deveres informativos decorrentes do princípio da boa-fé, tal como
hoje o compreendemos, vigoravam no ano de 1946, ano em que o autor começou a fumar?”
Ao procurar responder essa questão, assinala que “(i) o princípio da boa-fé sempre vigorou no
ordenamento; porém, como toda a hermenêutica é, inafastavelmente, contextual, (ii) que em
1946 o princípio vinha embalado em diversa pré-compreensão, da qual então não derivava
(como dever jurídico) o dever de informar sobre os riscos.
Em forçada síntese, é possível deduzir das colocações da professora que o efetivo
dever de informação passou a ser consagrado somente quando da emergência, no universo
jurídico brasileiro, na década de 80, da Constituição Federal de 88, do código de defesa do
consumidor de 90, da Lei Federal 9.294/96 e de diversos atos administrativos de competência
do ministério da saúde. Portanto, como diria a professora, mais do que a discussão sobre a
presença ou não de uma normatividade explícita sobre boa-fé, é importante considerar o
caráter histórico e situado do conhecimento e do processo hermenêutico, pois o caráter
cultural do direito não permite visualizá-lo de modo ahistórico e abstrato. Segundo suas
palavras, “conquanto guardando idêntico valor facial – expresso pelo emprego, através dos
séculos, de um mesmo sintagma: boa-fé – ele muda de feição e de significado consoante a
diacronia, consoante as concretas possibilidades de compreensão prevalecentes em cada
momento espaço-temporalmente considerado”.
143
Cfe. Pesquisa de Cláudio A. Rodrigues Filho, especialmente nos artigos (pareceres) “Ação indenizatória –
dever de informar do fabricante sobre os riscos do tabagismo”, de Judith Martins-Costa, in RT/Fasc.Civ. ano 92
v.812, jun. 2003 p. 75-99; e “Violação do dever de boa-fé de informar corretamente. Atos negociais omissivos
afetando o direito/liberdade de escolha. Nexo causal entre a falha/defeito de informação e defeito de qualidade
nos produtos de tabaco e o dano final morte. Responsabilidade do fabricante do produto, direito à ressarcimento
dos danos materiais e morais, sejam preventivos, reparatórios ou satisfatórios.” De Cláudia Lima Marques, in
RT/Fasc. Ano 94 v.835 maio 2005, p.75-133.
82
Por outro lado, sobressaem as considerações da professora Judith Costa em termos de
que, embora o cigarro faça mal à saúde e que isso deva ser objeto de informação, estamos
diante de um fato notório, e fatos notórios não são, habitualmente, objeto desse dever – de
indenizar (como ocorre, v.g, no CC com os vícios aparentes que não são objeto de redibição –
apenas os vícios não aparentes). Porém, como prossegue a professora, hoje em dia não há o
que contestar sobre o dever de informar nesses casos, em razão de imposição legal e
administrativa, o que já ocorre, afastando, pois, falar-se em “legítima confiança ou não hoje
expressa pelo CDC”.
Ainda consoante Martins-Costa ao referir a aspectos técnicos do conceito de
defeituosidade do produto, outra das razões pelas quais se poderia invocar possível
responsabilização, há que se distinguir entre inerência da periculosidade e a periculosidade
como defeito, para sustentar que, no caso dos cigarros, o risco é inerente e não adquirido, de
modo que o risco, por si só, não constitui “defeito” para as consequências previstas no artigo
12 do CDC. Isso conduz à possibilidade de se admitir, em uma responsável doutrina
consumerista, de que os riscos à saúde e à segurança dos consumidores são aceitáveis desde
que “normais e previsíveis”, conforme art. 8º do referido diploma.
Por último, considera que, nos casos de uso do tabaco, o dever de responsabilidade,
enquanto correlato ao direito de liberdade, deve ser também aplicado ao consumidor. De
modo que o que nos é possível apreender deste aspecto do parecer da professora, quem
continua a fumar, mesmo que ciente dos riscos à sua saúde, está agindo de forma negligente e
imprudente, não estando a cumprir com o seu dever de boa-fé, contribuindo com os danos que
supõe terem sido resultados de um hábito originado somente pela propaganda irresponsável e
enganosa da companhia de cigarros.
Por outro lado, segundo Cláudia Lima Marques em parecer à causa que entendemos
similar à considerada por Judith Martins-Costa, qual seja, “a de que se existiria ou não o dever
de informar o risco (conhecido ou não?) do fabricante de cigarros Philip Morris do Brasil
durante o período (cerca de quarenta anos) em que a vítima consumiu seus produtos e, caso
não o fizesse, se haveria ou não dever de indenizar, vejamos o seguinte: sustenta Cláudia
Marques a responsabilidade do fabricante devido ao dever de informar consoante o princípio
da boa-fé, mesmo antes da entrada em vigor do CDC.
Invocando Clóvis do Couto e Silva, em tese publicada em 1976, salienta que, mesmo
não estando explícito o preceito da boa-fé, um ordenamento jurídico não poderia basear-se na
má-fé, “não poderia permitir a má-fé subjetiva, seja no contrato, nos direitos reais ou
83
igualmente na relação extracontratual (ou pré-contratual), onde a segurança e a confiança no
afirmado deve ser a regra a evitar o dano futuro: neaminen laedere!”.
Igualmente, afirma a referida professora, que a confiança criada pela massiva
publicidade dos cigarros gera responsabilidade quando nada pelas legítimas expectativas pré-
contratuais do consumidor, geradas pelo fabricante. Com numerosos exemplos, sustenta haver
responsabilidade de quem presta informação errada ou incompleta (falha da informação),
principalmente no caso dos fabricantes e fornecedores (aqueles que detêm a informação, que
são profissionais, diferentemente do consumidor), e que por isso devem indenizar pelos danos
causados. Isso sem contar a lesão causada a um elemento essencial na liberdade de escolha do
consumidor, que é a informação. Reforçam suas teses, segundo a professora, o sucesso de
numerosas ações contra fumageiras nos EUA e em outros países, confirmando a existência,
mesmo que no exterior, de vítimas concretas da omissão massiva do marketing dessas
empresas.
Alega também que o reduzido número de ações judiciais condenando a indústria do
tabaco se deve às dificuldades de se provar esse dano e da comum prática de se resolver essas
questões através de acordo entre as partes nos EUA, com vistas a evitar a publicidade
negativa de uma condenação judicial. Não se pode esquecer também da enorme quantidade de
informações sobre os riscos do cigarro a que as fumageiras tinham acesso e que mantiveram
longe do alcance público, tanto quanto possível, numa clara violação da obrigação de boa-fé
com o consumidor.
Dentre os vários comentários possíveis após as considerações das professoras, o caso
da responsabilidade civil das fumageiras é emblemático como típico exemplo de caso difícil
para o direito pelas dificuldades tanto para o estabelecimento de premissas normativas,
quanto fáticas. Por um lado, nota-se uma insegurança quanto à qual norma aplicar à situação e
mesmo se esta norma existe. É importante frisar, no entanto, que as duas professoras
consideram fundamental extrair a realidade jurídica de um conceito de direito vigente, o que
se enquadra dentro das justificações internas apontadas por MacCormick. Contudo restam
dúvidas sobre a situação fática, isto é, sobre os nexos causais do uso do cigarro e todas as
doenças que lhe possam ser atribuídas, aliás, nexo esse tão caro às versões mais clássicas de
responsabilidade civil. Embora a literatura médica já possua dados gerais comprovadores
desse mal, existem poucas descrições ligando o uso do tabaco a doenças específicas, como
tem sido o caso de algumas ações interpostas.
Com efeito, estamos diante, também, nessas ações, de mais um exemplo de colisão
de direitos fundamentais, o que leva o intérprete a ter que precisar quais os valores que estão
84
em oposição. Nas teses da professora Judith Martins-Costa, aparece claramente uma
preocupação com o respeito à autodeterminação (valor liberdade), quer do fabricante, que se
encontraria dentro de um quadro de licitude, quer e sobretudo do fumante, que, em tese,
estaria também exercendo sua autodeterminação e realizando seus prazeres. De outra banda,
nas teses da professora Cláudia Lima Marques transparece a necessidade da defesa de
interesses de indivíduos hipossuficientes, quer individual, quer coletivamente, por parte do
Estado (valor igualdade). De toda a sorte, uma solução com base em Dworkin poderia
conduzir a um paradoxo acerca dos direitos preferenciais. Se, por um lado, o fabricante possui
seu direito de liberdade, por outro, devido à condição de risco de seu produto, deveria,
também, em função do direito à saúde, conduzir o Estado a ter de intervir nessa liberdade. Por
isso, talvez fosse mais apropriado seguir as teses de Robert Alexy segundo as quais, em caso
de colisão, a decisão proporcional deve ser buscada em três aspectos fundamentais: a)
adequação; b) necessidade (ou exigibilidade); c) proporcionalidade em sentido estrito. Antes,
porém, vejamos o que estão dizendo os tribunais a respeito do caso.
144
Apelação cível – Responsabilidade civil (70012335311). Participaram do julgamento Desa. Marilene
Bonzanini Bernardi (Relatora), Des. Odone Sanguine (Revisor) e Dr. Miguel Ângelo da Silva.
85
Por outro lado, no afastamento das preliminares, a Desembargadora relatora
Marilene Bernardi sustentou que a inversão do ônus da prova se deu nos estritos termos do
Código de defesa do consumidor, tendo sido considerada a hipossuficiência do autor, bem
como de que ela ocorreu em momento processual adequado, já que permitiu à ré prazo hábil
para efetivamente produzir provas. Ademais, em se tratando de demanda que objetiva a
responsabilização por danos decorrentes do fato do produto, o ônus da prova já recai
naturalmente sobre a ré, consoante o art. 12 do CDC.
Em outro ponto, os desembargadores sustentaram que o livre arbítrio não serve para
afastar o dever de indenizar das companhias fumageiras pelas mesmas razões que não se
presta para justificar a descriminalização das drogas. O homem precisa ser protegido de si
mesmo, mormente “porque lidamos com produtos que podem minar a capacidade de
autodeterminação”.
No que tange à alegação da reclamada de exercício regular de um direito, segundo os
desembargadores, o exercício do amplo e vago poder de agir, decorrente de ausência de
proibição legal, não confere senão uma frágil presunção de licitude do ato praticado. Destarte,
como disse o Des. Coelho Braga, “para que haja responsabilização civil, a conduta não
precisa ser necessariamente ilícita, deve ser uma conduta que causa dano a outrem. O que está
em jogo não é a natureza jurídica da conduta das empresas fabricantes de cigarro, mas sim os
danos causados por essa conduta, seja ela lícita ou não”.
A título de enriquecimento, sustentaram também que em caso de amputação de parte
do corpo, como na hipótese, seria desnecessária a comprovação dos danos morais sofridos
pela vítima, visto que o dano moral existe in re ipsa e decorre da gravidade do ato ilícito.
Contudo não se pode deixar de considerar, consoante a Corte, a parcela de culpa do autor para
que a doença atingisse a gravidade e proporções atuais. Mesmo quando já padecia da doença,
em desobediência às ordens médicas, permaneceu fumando. A concorrência de culpas,
quando se der entre o autor da ação e a vítima, deve influir quando da fixação do quantum
indenizatório.
Enfim, tendo em vista que a indenização a título de reparação de dano moral deve ter
em conta não apenas a mitigação da ofensa, mas também atender a um cunho de penalidade e
coerção, a fim de que funcione preventivamente, evitando novos acontecimentos, mas sem
olvidar de que não pode dar margem ao enriquecimento sem causa e de que na hipótese houve
concorrência de culpas, o quantum foi reduzido de R$ 500.000,00 para R$ 300.000,00, sendo
a apelação parcialmente provida.
86
Outro caso rumoroso foi proposto por Tânia Regina dos Santos Pinto contra a Souza
Cruz145. Trata-se de ação de indenização por danos morais e patrimoniais em desfavor da
Souza Cruz. É alegado na inicial que o marido da autora teria começado a fumar ainda jovem,
com 12 anos de idade, induzido pela propaganda enganosa da demandada, atualmente vedada
pelo CDC. Disseram os requerentes que, em virtude do vício pelo cigarro, o marido (e pai) foi
acometido de câncer de pulmão, doença que o levou à morte em 2000. Aduziram que o
sofrimento e a consequente morte do Sr. Luiz causaram à família intensos danos psíquicos,
pelos quais deve ser indenizada. Também nesse caso se decidiu unanimemente em favor do
autor, com base no princípio da boa-fé objetiva, havendo inclusive menção à decisão anterior
da mesma Câmara sobre o assunto, ficando a reclamada condenada a pagar danos morais no
valor de 1.700 salários mínimos e as custas hospitalares do falecido. Citam textos médicos
sobre o cigarro e seus malefícios onde se evidencia que “As evidências indicam que as
diferentes doenças que estão relacionadas ao uso do tabaco podem ser causadas, pelo menos
em parte, pelos diferentes componentes do tabaco ou da fumaça do tabaco...”.
O Des. Coelho Braga em seu relatório, considerando o que expressara o Des. Adão
Cassiano, no julgamento da Apelação Cível n. 70000144626, de 29/10/03, afirmou que,
quanto ao nexo causal, o mesmo restou comprovado quando da ocorrência da morte em
função do hábito de fumar, pois o atestado de óbito demonstra a relação das doenças
causadoras da morte com o cigarro, droga da qual era dependente. Prossegue o
desembargador com diversas citações que reforçam o entendimento a respeito da matéria “sub
judice” no sentido de que, independentemente da tipificação do caso concreto, as regras de
experiência demonstram que a ré Souza Cruz não agiu com lealdade referentemente a seus
clientes no que tange ao mal que o cigarro realmente causa ao ser humano, sendo que, ainda
hoje, apesar de todas as exigências do Governo Federal com relação à propaganda, os
malefícios do fumo não estão bem esclarecidos e que as fórmulas do cigarro, constantes nas
carteiras, não são suficientes para impedir o consumo e, consequentemente, o vício que advirá
após o uso continuado do ato de fumar, bem como as doenças resultantes.
Mencione-se, também, que, segundo os magistrados, não é pelo fato de uma
atividade ou produto serem considerados lícitos pelas leis do Estado que os cidadãos
consumidores que forem vítimas de malefícios ou tiverem prejuízos causados por tal atividade
ou produto devam ficar desamparados juridicamente, nem tampouco esse fato da licitude da
145
Apelação Cível – Responsabilidade Civil (70007090798). Participaram do julgamento Des. Luis Augusto
Coelho Braga (Relator), Des. Adão Sergio do Nascimento Cassiano (Revisor) e Des. Nereu José Giacomolli
(Vogal).
87
atividade do produto torna os promotores da atividade ou produtores do bem isentos de
responsabilidade. Não obstante, embora afastem o dolo no agir da ré, vislumbram a culpa
Aquiliana, prevista no art. 159 do CCv/16, caracterizando-se por omissão na ação. O des.
Braga, enfim, num duro e corajoso pronunciamento, sustenta que, se omitindo e
negligenciando, com a conivência do Estado, que dá incentivo fiscal à produção de cigarros e
assemelhados, o produtor deve responder na modalidade de culpa por omissão e, no presente
caso, pelo resultado morte da vítima. Portanto, aplica-se também o princípio da boa-fé
objetiva, justificado aqui com argumentos semelhantes aos utilizados pela Professora Cláudia
Lima Marques.
Para terminar, o Des. Nereu Giacomolli compara a questão ao caso dos transgênicos,
inclusive utilizando o termo “novos direitos” para referir-se aos novos desafios do direito que
necessitam de perspectiva diferenciada para serem enfrentados com sucesso146.
Passando a um terceiro e último caso, analisa-se o pedido de Noeli Francisca da Silva
de Morais versus Philip Morris Brasil147. Único caso não unânime, mas que a maioria (2x1)
acabou por decidir também em favor do autor. Não havendo comprovação de que o “de
cujus” consumisse os cigarros fabricados pela corré Souza Cruz, foi reconhecida, no caso
concreto, a ilegitimidade passiva desta.
Por outro lado, é fato notório, cientificamente demonstrado, inclusive reconhecido de
forma oficial pelo próprio Governo Federal, segundo os desembargadores Cassiano e Coelho,
que o fumo traz inúmeros malefícios à saúde, tanto à do fumante como à do não fumante,
sendo, por tais razões, de ordem médico-científica, inegável que a nicotina vicia, por isso que
gera dependência química e psíquica, e causa câncer de pulmão, enfisema pulmonar, infarto
do coração, entre outras doenças igualmente graves e fatais. A indústria de tabaco, em todo o
mundo, desde a década de 1950, já conhecia os males que o consumo do fumo causa aos seres
humanos, de modo que, nessas circunstâncias, a conduta das empresas em omitir a
informação é evidentemente dolosa, como bem demonstram os arquivos secretos dessas
empresas, revelados nos Estados Unidos em ação judicial movida por estados norte-
americanos contra grandes empresas transnacionais de tabaco, arquivos esses que se
contrapõem e desmentem o posicionamento público das empresas – revelando-o falso e
doloso, pois divulgado apenas para enganar o público – e demonstrando a real orientação das
146
Sobre novos Direitos, ver nosso livro “Teoria jurídica e novos direitos”. Rio de Janeiro:Lúmen Júris, 2000.
147
Apelação Cível (70000144626)- Participaram do julgamento Dra. Ana Lúcia Carvalho Pinto
Vieira(Relatora), Des. Adão Sergio do Nascimento Cassiano (Relator para o acórdão) e Des. Luis Augusto
Coelho Braga (Presidente e revisor). Apenas como reforço de entendimento, este caso foi objeto do parecer da
professora Cláudia Lima Marques traduzido neste artigo.
88
empresas, adotada internamente, no sentido de que sempre tiveram pleno conhecimento e
consciência de todos os males causados pelo fumo.
Assim, consoante os desembargadores, o agir culposo da demandada evidencia-se na
omissão e na negligência, caracterizando-se a omissão na ação. A conduta anterior criadora do
risco enseja o dever, decorrente dos princípios gerais de direito, de evitar o dano, o qual, se
não evitado, caracteriza a culpa por omissão. Como acentua a doutrina, esse dever pode
nascer de uma conduta anterior e dos princípios gerais de direito, não sendo necessário que
esteja concretamente previsto em lei, bastando apenas que contrarie o seu espírito. Não
obstante ser lícita a atividade da indústria fumageira, esta mesma indústria sempre teve
ciência e consciência de que o cigarro vicia e causa câncer, de forma que a omissão da
indústria beira as fronteiras do dolo.
Em voto dissonante, pesa a Des. Ana Lúcia Carvalho Pinto Vieira que o cultivo do
fumo, sua industrialização, comercialização e publicidade são atividades lícitas e amplamente
regulamentadas, insuscetíveis de gerar a responsabilidade da ré, sendo que a publicidade que
gravita em torno do consumo (e aquisição) de cigarros jamais poderá ser taxada de enganosa
ou abusiva. Clama não haver qualquer prova de que o falecido iniciou o consumo de cigarros
porque sucumbiu à maciça propaganda desse, defendendo haver culpa exclusiva do
consumidor, que assumiu voluntariamente o risco de desenvolver doenças pulmonares e/ou
outras moléstias a partir do hábito de fumar. Examinando a questão da força da propaganda
que, segundo alguns, elimina a liberdade individual e, portanto, a responsabilidade pelos
próprios atos, citou trabalho da Professora Judith Martins-Costa para defender a tese oposta.
“É certo que não existe ‘liberdade no vazio’”, fazendo lembrar que “Inúmeros
condicionamentos psíquicos, físicos, sociais, culturais e econômicos circundam a existência
de cada um de nós e, muitos – notadamente os condicionamentos culturais – são estimulados
pela propaganda, já que essa é uma de suas funções. Porém, muito embora se deva admitir a
existência de condicionamentos, não se pode, mesmo no âmbito da tutela dos consumidores,
abdicar totalmente do exercício do sapere aude”. Passemos, pois, as observações críticas do
que até aqui foi visto.
Como visto anteriormente neste capítulo, estamos diante de um caso tido como
difícil e que se apresenta como uma colisão de direitos fundamentais. Considerando o quadro
teórico geral sobre casos difíceis, é possível de se constatar que as soluções desses casos
89
conduzem obrigatoriamente o intérprete e/ou aplicador do direito para além do direito em
sentido estrito, tendo mesmo que “transitar” por caminhos talvez reservados às tensões entre
direito e moralidade.
No âmbito de uma proposta hermenêutica que conjugue direito dos consumidores e
direitos fundamentais, tal como dito no início, o que este trabalho propõe é que esse lugar de
tensões e de difícil sistematização no mundo pós-moderno possa ser decifrado e encontre seus
caminhos hermenêuticos a partir de uma “filosofia dos direitos humanos”148 que, ao discutir o
núcleo desses direitos, contribua com uma linha de raciocínio o mais próxima das
expectativas sociais.
Assim sendo, caberia assinalar de imediato que no núcleo dos direitos humanos
modernos encontramos uma fascinante discussão sobre a “autonomia moral” do homem e que
se apresenta sobre o tríplice aspecto da liberdade, igualdade e responsabilidade. Contudo, tal
como consignado por Norberto Bobbio e mais recentemente por Costas Douzinas 149, embora o
primado filosófico dessa autonomia moral, os homens são sujeitos e sujeitados no processo
histórico, decorrendo das transformações históricas do Estado a prevalência de uma ou de
outra das dimensões aludidas.150. Daí, falar-se em gerações históricas dos direitos
fundamentais151.
De modo que diante das possíveis colisões materiais de direitos fundamentais no
plano histórico, é perfeitamente possível e aceitável que os direitos fundamentais de todos em
certas circunstâncias se transformem em direitos de uns em face aos deveres de outros e vice-
versa. Como assinala Heiner Bielefeldt, o necessário caráter social do direito implica
concomitantemente uma correspondência de direito e dever. Não há direito sem dever e vice-
versa152.
Tendo isso presente, é possível de se constatar que os casos de responsabilização
civil trazidos procuraram discutir aspectos de respeito à igualdade formal e abstrata da lei
concomitantemente os aspectos condizentes com uma possível desigualdade material própria
das sociedades. Pré-compreensão de conceitos tópicos utilizados é fundamental, mas requer a
consideração dos sujeitos historicamente situados.
Robert Alexy traz uma grande contribuição para a interpretação de casos difíceis,
embora acreditemos que esse autor, devido a seu marco teórico muito rígido sobre o que se
148
Cfe. “Filosofia dos direitos humanos”. Heiner Bielefeldt. Trad. Dankwart Bernsmüller. São Leopoldo: Edit.
Unisinos, 2000.
149
“O FIM dos direitos humanos”, São Leopoldo, Edit. Unisinos, 2009.
150
Cfe. L`età dei diritti. Torino:Einaudi, 1992.
151
Cfe. “Teoria jurídica e novos direitos”, op.cit.
152
Op.cit.p.198.
90
entender por ciência jurídica, o impede de dar uma solução cabal para o problema, senão
vejamos a seguinte fórmula por ele proposta: o intérprete ao ponderar deve procurar aferir o
grau de intensidade da não satisfação ou afetação de um dos princípios em confronto, por
um lado, e o grau de importância da satisfação do princípio, em oposição, por outro. assim,
quanto maior é o grau de não satisfação ou de afetação de um princípio, tanto maior tem de
ser a importância da satisfação do outro.
No caso em questão, importaria em saber o que lesaria mais os direitos fundamentais
em confronto, se a decisão que responsabiliza a indústria e se torna exemplar sobre os riscos
do cigarro à saúde humana e ao meio ambiente, conduzindo a suspensão de tais atividades,
ou, se o cerceamento dessa atividade industrial ao afrontar seriamente o princípio da liberdade
econômica não geraria insegurança e consequências econômicas e trabalhistas também
bastante séria aos direitos fundamentais.
Com efeito, a resolução das colisões necessita de uma ponderação material realizada
a cada caso, na medida em que boa-fé e dever de informar, por exemplo, por serem topoy, não
possuem conteúdo semântico atemporal.
E não tem sido outra a linha de raciocínio que se observa com as decisões do
Tribunal de Justiça do RS. Embora não sendo tendência majoritária, começam a ter força
argumentativa decisões no sentido de condenar a indústria tabageira a arcar com os danos
materiais e morais sofridos pelos consumidores de cigarro que venham a desenvolver doenças
relacionadas ao seu uso, bem como dos seus parentes mais próximos. E, dentre as
justificações, está a da responsabilidade correspondente a um direito, mesmo que objetiva, de
quem exerce sua autonomia da vontade, mesmo que de forma lícita, em atividades de risco.
Cremos que uma decisão italiana forneça bem o quadro a partir do qual
paulatinamente se forma uma tendência em prol da prevalência dos princípios relativos à
saúde e a ecologia. Em novembro de 2004, sentença da Corte D, Appello Di Roma, decidiu
que: “ chi produce e vende tabacchi esercita un`attività periculosa, ai sensi dell´articolo 2050
del códice civile, per la ragione Che i tabacchi contengono in sé uma potenziale carica di
nocività per il bene salute, ossia per um bene primário dell´uomo, tutelato dalla Carta
costituzionale(articolo 32) come diritto fondamentale, sicché – anche in mancanza di norme di
legge Che prevedono specifici adempimenti – lo stesso é obbligato a usare ogni cautela per
evitare que il rischio si tramuti in danno concreto”153.
153
Agradecemos ao Des. Adão Cassino que nos fez chegar essa decisão, retirada do site:
http://www.consumerlaw.it/giurisprudenza/corte_appello_roma_07_03_05.html, acesso em 11/04/2005. Em
tradução livre, para a Corte Italiana, restou claro que a produção de cigarros oferece risco e que por isso ou a
empresa (estatal ou privada) toma todos os cuidados necessários para que não se concretize o dano, ou terá de
91
Finalizando, reprisamos que dentre outras coisas, o caso em análise e as soluções
propostas demonstram que o direito se envolve com dificuldades já há muito apontadas
relativas aos clássicos “topoy” da argumentação, isto é, com conceitos abertos tidos como
produtores de sentidos únicos, mas que, na verdade, possibilitam sentidos múltiplos, tal como
é o caso do conceito de boa-fé154. Para dizer o óbvio, em que pesem os esforços de sua
definição no âmbito do Direito positivo vigente, trata-se de um conceito com uma carga
semântica bastante aberta que, como se viu, permite que ele seja aplicado, estando ou não
positivado, a favor ou contra a empresa fabricante, a favor ou contra a suposta vítima.
Por isso mesmo, nestas considerações finais, insistimos quanto ao fato de que tanto
Alexy quanto MacCormick contribuem para a organização estrutural do raciocínio jurídico.
Nesse sentido, é ilustrativa a orientação de MacCormick de que “o raciocínio jurídico é, como
o raciocínio moral, uma forma da racionalidade prática, embora – também como a moral –
não seja governado apenas por essa racionalidade (...) Dito de outro modo, “o raciocínio
moral não é um caso mais pobre de raciocínio jurídico, e sim que o raciocínio jurídico é um
caso especial, altamente institucionalizado e formalizado, de raciocínio moral” 155. Assim
sendo, embora padrões morais se conservem durante longo tempo, a moral não é nem eterna,
nem fixa, muitas vezes é antagônica, e o direito tem de respeitar esse princípio pluralista de
“razão prática moral”.
5.1.1 Introdução
159
“Segurança...”, op.cit.p. 8.
160
“Segurança e rotulagem...”,op.cit.p.15.
94
Como vimos brevemente no início, as chamadas plantas transgênicas são aquelas que
tiveram introduzido entre seus genes um novo gene ou fragmento de DNA pelo processo do
DNA recombinante ou engenharia genética161.
É interessante acentuar, com base em Lajolo e Nutti 162, que “normalmente as
características desejadas, como, por exemplo, resistência a insetos, tolerância a herbicidas ou
produção de um nutriente, são obtidas pela introdução de um gene novo. Em certos casos,
porém, genes pré-existentes podem ser removidos ou bloqueados”. E dão como exemplos o
que ocorreu com o arroz transgênico, que teve reduzida a expressão de um gene produtor de
uma proteína alergênica, e o que aconteceu com um tipo de tomate, para que mantivesse a
firmeza por mais tempo, mesmo maduro.
Como já comentado brevemente a partir das pesquisas de Roberta Jardim, Lajolo e
Nutti reforçam o entendimento de que “a soja normal, por exemplo, não é resistente ao
herbicida glifosato, usado para controle de pragas, porque tem uma enzima (EPSPS) que é
inibida por ele, tal como o é a enzima de outras plantas. O que se fez então foi obter o gene de
uma enzima de outro organismo, uma bactéria, e provocar alteração molecular correspondente
a um aminoácido, tornando-a muito mais resistente ao herbicida, o que em termos
bioquímicos significa uma alteração na cinética da enzima. Esse gene modificado
(CP4EPSPS) é o que foi introduzido no DNA da soja, gerando resistência ao glifosato, por
expressar uma enzima mais resistente e muito próxima estruturalmente da original” 163. No
caso do milho164, “transferem-se genes que produzem na planta proteínas tóxicas para a larva
do inseto, as proteínas inseticidas conhecidas por siglas como Cry1Aa, etc., podendo-se
transferir mais de um gene, tal como também já foi feito com arroz”.
Esse é um tema polêmico, pois “diz respeito ao uso de tecnologias restritivas de
certas características da planta, e que ocorre quando se introduz um gene “terminador”, com a
finalidade de interferir no processo reprodutivo da planta, gerando sementes cuja fertilidade
passa a ser controlada por genes específicos também ativados ou inibidos por indutores
químicos”165.
Também como debatem os autores citados, “a polêmica se instala porque se a planta
fica estéril”, o que também ocorre com as sementes híbridas hoje em uso obtidas por outra
técnica de melhoramento, os agricultores restam sem as sementes necessárias para as
161
Cfe. Franco Maria Lajolo e Marília Regini Nutti na obra “Transgênicos: bases científicas de sua
biossegurança”, p.19.
162
Idem, op.cit. p. 22.
163
Lajolo e Nutti, op.cit.p.22 e 23.
164
Idem, op.cit. p.23.
165
Idem, ibidem, p. 24.
95
plantações futuras. Estando protegida a patente das companhias produtoras de sementes, isto
torna os setores produtivos dependentes dos setores detentores das patentes. Porém tal
dependência, é preciso reconhecer, talvez possa não ser total caso os governos desenvolvam
políticas públicas voltadas para dar apoio à pesquisa e à produção de sementes, tal como,
aliás, vem ocorrendo com a Embrapa em relação aos transgênicos.
É ilustrativo comentar também que o milho, diferentemente da soja, quando
transgênico, pode conduzir, pela polinização, outras lavouras à transgenia. Em outras
palavras, plantações não transgênicas próximas de plantações transgênicas podem se
transformar em transgênicas pela polinização, o que agrava a situação de perigo e risco de tais
organismos.
Portanto o desenvolvimento da transgenia pela moderna biotecnologia é que tem
conduzido as autoridades a pensar sobre leis de proteção e precaução aos perigos e riscos
desse avanço científico. A legislação, no Brasil, pois, tem como escopo estudar e monitorar os
riscos desses alimentos modificados para a saúde humana e animal, assim como para o meio
ambiente.
E é diante disso que o estudo de Roberta Jardim de Morais 166 traz uma importante
contribuição elucidando as formas de se avaliar a segurança alimentar que poderia percorrer
uma das seguintes possibilidades: a) o estudo histórico – acompanhamento de um período de
consumo que, por óbvio, não se aplica aos transgênicos por ser uma situação nova; e, b) testes
e análises de segurança alimentar – o que implica uma metodologia de avaliação do risco em
diversas etapas167. Tal afirmação, por si só, já demonstra o quão complexo é o tema da
transgenia. Primeiramente, nos perguntemos junto com essa autora o que seria avaliação do
risco? E imediatamente veremos que se trata de um procedimento científico que envolve
vários aspectos, dentre os quais – identificação do perigo (agente nocivo); – caracterização do
perigo (natureza do efeito adverso); – avaliação da exposição (ingestão /exposição); –
caracterização do risco (natureza qualitativa e quantitativa dos efeitos adversos na população).
Por outro lado, como ressalta Roberta, há que se pensar no gerenciamento do risco,
que corresponde à busca de políticas e medidas de regulamentação e controle; no caso dos
AGM, a detecção, rastreabilidade e monitoramento pós-comercialização.
Por último, tem-se o aspecto da comunicação (informação do risco), que corresponde
à necessidade de informação da sociedade e à comunicação entre os segmentos envolvidos,
166
“Segurança e rotulagem...”, op.cit.p. 15.
167
Op.cit. p.16-19.
96
tais como governo, população e institutos científicos. Isso corresponde, no caso do AGM, à
rotulagem, serviços de informação ao consumidor e uso da mídia.
Roberta Jardim em seu amplo estudo168 faz referência ainda a certa ferramenta guia
utilizada para a avaliação do risco e que diz respeito ao conceito de “equivalência
substancial”, formulado pela OECD em 1993, que possui como objetivo verificar se o novo
produto é tão seguro quanto o alimento convencional. Mas, na verdade, a sociedade não faz
ideia da complexidade que é essa comparação. Ela envolve uma gama infinita de
possibilidades que inclui, por exemplo, efeitos intencionais, efeitos não intencionais,
avaliação de toxinas, avaliação do potencial alergênico, etc. Pode-se deduzir disso que é
necessário um imenso (gigantesco) banco de dados, e alguns autores já falam numa nova
ciência, denominada de bioinformática169.
Enfim, pode-se deduzir do que até aqui foi dito, que a sociedade depende de uma
complexa estrutura político-jurídica para a sua proteção. Uma estrutura administrativa capaz
de desenvolver tais avaliações (CTNBio), um Poder Legislativo ágil e descomprometido com
interesses mais imediatos e um Poder Judiciário eficaz caso seja necessário precaver a
sociedade de modo urgente diante de riscos desconhecidos.
168
Idem, op.cit.p. 27.
169
Idem, op.cit. p.21. Também cfe. Lajolo e Nutti, “Transgênicos: bases científicas...”p. 26 e segs.
170
Cfe. “A era dos direitos”, p.5, 6 e segs.
171
Cfe. “Teoria jurídica e novos direitos”, p. 97-108.
97
Como muito bem demarcou Luiz Guilherme Marinoni, em sua obra “Técnica
processual e tutela dos direitos”172, os direitos transindividuais e individuais homogêneos (da
terceira geração em diante) têm exigido a remodelação dos antigos conceitos de legitimidade
para a causa e de coisa julgada material ligados ao processo civil estruturado para dar solução
aos conflitos individuais, que concebia o legitimado como o titular do direito material, e a
coisa julgada material como algo que diz respeito somente às partes. Conceitos desse tipo,
como segue Marinoni, não servem para os direitos transindividuais (difusos e coletivos)
simplesmente porque eles são indivisíveis e, em razão disso, devem ser reivindicados por
entes que tenham idoneidade e capacidade para protegê-los, quais sejam, entidades coletivas
em melhores condições que os cidadãos comuns. Daí a extensão da coisa julgada material a
todos os titulares do direito em litígio.
Ainda como salienta o autor paranaense, com a Lei da Ação Civil Pública 7.347/85 e
o CDC 8.078/90, instituiu-se um completo e eficiente sistema para a proteção dos direitos
difusos e coletivos, que nada mais são que os novos direitos ou aqueles típicos da sociedade
de massa. Com efeito, é importante salientar também com base em Marinoni 173 e em Morato
Leite em seu “Direito ambiental na sociedade de risco” 174 que no título III do CDC foi
instituída regra (art.84) que possui praticamente a mesma redação da insculpida no art. 461 do
CPC, permitindo que o juiz imponha um fazer ou um não fazer mediante ordem, sob pena de
multa ou por meio de medidas executivas – as chamadas medidas necessárias, em decisão
interlocutória (tutela antecipada), ou na sentença (tutela final), sem a necessidade de ação de
execução – a chamada tutela inibitória, com o objetivo de impedir a prática ilícita ou danosa,
agindo-se de forma preventiva na proteção, por exemplo, a tudo que há de mais caro à
biodiversidade.
Embora o texto de Roberta Jardim evolua para a discussão dos mecanismos jurídicos
de prevenção e precaução em face dos transgênicos, desenvolvendo um estudo detalhado e
minucioso no qual procura descrever todas as fases do seu licenciamento, gostaríamos de
contribuir agora na direção de fornecer um quadro razoavelmente sistemático da
institucionalização do direito ambiental no Brasil, procurando chamar a atenção para aspectos
importantes da nova lei de biossegurança sobre o tema.
172
“Técnica processual e tutela dos direitos”, p.100.
173
“Técnica processual...”, op.cit. p.102.
174
“Direito ambiental na sociedade de risco”, escrito em conjunto com Patryck de Araújo Ayala, p.153 e segs.
98
Antonio Hermann Benjamin, nos Cadernos da Pós-Graduação da Ufrgs, edição
175
especial sobre o tema harmonização da legislação ambiental, no. , afirma que podemos
identificar três regimes na evolução legislativo-ambiental brasileira. Nos períodos Colonial,
Imperial e Republicano, até a década de 60, tivemos uma fase de “exploração” desregrada ou
do laissez-faire ambiental, na qual a conquista de novas fronteiras (agrícolas, pecuárias e
minerarias) era tudo que importava na relação homem-natureza. Num segundo momento,
tivemos a fase “fragmentária”, que significa o legislador, já preocupado com várias categorias
de recursos naturais, não possui ainda uma visão global com o meio ambiente. São dessa
época vários códigos isolados, tais como o florestal, o de caça, de pesca e de mineração, etc.
Finalmente, indicando uma reorientação radical de rumo, aparece a lei de política nacional do
meio ambiente de 1981, iniciando a fase “holística”, na qual o ambiente passa a ser protegido
de maneira integral, enquanto sistema ecológico integrado. Tratou-se da lei 6938/81 que,
como explana Benjamin, “não só estabeleceu os princípios, objetivos e instrumentos da
política nacional do meio ambiente, como ainda incorporou, de vez, no ordenamento jurídico
brasileiro o estudo de impacto ambiental, instituindo, ademais, um regime de responsabilidade
civil objetiva para o dano ambiental, sem falar que lhe coube conferir ao Ministério Público,
pela primeira vez, legitimação para agir nessa matéria”176.
Pois foi em meio à vivência desse último período, tal como referido anteriormente,
que, em termos de legitimação e proteção dos direitos difusos relativos ao meio ambiente,
marcou época a Lei de Ação Civil Pública 7.347/85, cujos 20 anos foram completados em
2005 com uma importante obra coletiva coordenada por Edis Milaré177.
Logo a seguir, o acontecimento marcante nessa área se deu com o texto
constitucional de 1988 quando, no seu artigo 225 e incisos, estabeleceu a norma básica em
relação ao ambiente: “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem
de uso comum do povo e essencial à qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à
coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
Como se vê, e tomando aqui observações de Maria Auxiliadora Minahim 178, “a
disciplina jurídica de questões decorrentes do emprego da biotecnologia, no Brasil, está
vinculada a mandamentos constitucionais relativos ao meio ambiente”. Como prossegue a
professora., “de fato, a Constituição Federal, no art. 225, ao tratar do direito de todos ao meio
175
Op.cit. p. 97.
176
Idem, op.cit. p. 98. Sobre essa lei, existe o competente e minucioso estudo realizado por Paulo Bessa Antunes,
referido na bibliografia ao final.
177
“Ação civil pública após 20 anos: efetividade e desafios”.
178
“Direito penal e biotecnologia”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.109.
99
ambiente equilibrado, dispõe sobre a preservação da diversidade e integridade do patrimônio
genético nos incisos II e V do parag.1º. daquele dispositivo, estabelecendo, como recurso para
efetividade desse direito, o controle sobre o emprego de técnicas que comportem risco para a
vida, a qualidade de vida e o meio ambiente.
Ora, como também diz a professora e é do domínio acadêmico especializado, a
regulamentação desses dispositivos foi implementada pela lei 8.974/95, que, posteriormente,
foi revogada pela Lei 11.105/05, que trouxe vários esclarecimentos importantes em seus
artigos, tais como no art. 1º. sobre o princípio da precaução, no art. 3º. fornecendo uma série
de definições importantes, dentre as quais a de OGMs, no art. 8º. criando a CTNBio, no 9º.
determinando a composição desse conselho por doutores com destacada atuação na área, e,
por fim, no art.11º. tratando das competências, bem como no seu inciso V -, estabelecendo
que a análise da avaliação de risco deve ser feita caso a caso.
Consoante Paulo Afonso Leme Machado, em palestra na PUC/RS em 19/4/2005, os
riscos dos quais trata essa lei perpassam os animais, as pessoas e as plantas. Muito embora
isso, hoje (2005) a situação dos transgênicos é a de estarem liberados por medida provisória,
portanto sem o estudo prévio de impacto ambiental. Inclusive, depois de várias peripécias,
existe uma liminar proibindo os mesmos, mas que não está sendo respeitada, disse o professor
naquela ocasião. Ressaltou, também, dentre muitas coisas, o problema para a CNTBio criada
por essa lei, é o fato de ela não possuir personalidade jurídica, tal como o IBAMA, p.ex.,
integrando, então, a pessoa jurídica da União, o que acarreta muitas dificuldades para a
cobrança de sua atuação. Mas, enfim, como o disse o referido professor, ela trouxe como
positivo o fato de expressar explicitamente o princípio da precaução como fundamental,
embora venha apresentando, como negativo, a pouca visibilidade e transparência das suas
decisões.
Foi dentro do contexto da lei anterior que os transgênicos relacionados à soja
“Roundup Ready” foram liberados. Cabe indagar, agora, como o assunto será tratado no
contexto da nova lei, os novos desafios.
A título de ilustração, segundo o texto da professora Lavínia Davis Rangel Pessanha
179
, é possível observar que a liberação da soja RR foi em reunião fechada e sem quorum. Que,
em que pesem ser as decisões judiciais contrárias ao plantio e à comercialização, o Poder
Executivo editou medida provisória 113 afirmando que a safra de 2003 não estaria sujeita à lei
8.974. Posteriormente essa medida foi transformada na lei 10.688, lei esta que foi entendida,
179
. “Transgênicos, recursos genéticos e segurança alimentar: uma análise da judicialização do conflito sobre a
liberação da soja RR no Brasil”. Artigo publicado no Vol. IX/2002 da Revista Cadernos de Debate, uma
publicação do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação da UNICAMP, p.69-92.
100
por muitos juristas, como um incentivo à desobediência civil. Conclusão: em pouco tempo
veio a cobrança dos royalties, isto ao final de 2003.
É bem verdade, como segue essa autora, que em setembro de 2003 a Embrapa
divulgou comunicado de que havia começado um projeto de biossegurança – no fundo para
discutir eventuais dependências com empresas multinacionais, o que, por si só, é muito
importante. Contudo parece acertada a tese da referida professora no sentido de que tem
havido uma “judicialização do conflito sobre a liberação da soja RR no Brasil”. Não obstante,
acredita-se, como já escrevemos em 2000, existir uma tendência, sobretudo em casos difíceis,
no Brasil, de ocorrer o que, por outro lado, se poderia denominar de uma politização do
jurídico. Daí a pergunta, o que seria mais adequado, uma judicialização da política ou uma
politização do direito?180
De qualquer maneira, no contexto da nova lei de biossegurança, lei 11.105/95, seria
importante considerar os alertas do prof. Rubens Onofre Nodari 181, para quem é preciso tirar
lições do passado. Como diz o prof. Nodari, o glifosato é um dos herbicidas mais utilizados
comercialmente, e só recentemente estudos cruciais foram feitos, tendo sido verificados que
eles têm a capacidade de interferir e desregular o sistema endócrino dos mamíferos, tendo
sido verificado, também, que eles afetam espécies aquáticas, chegando mesmo a eliminar
certos anfíbios.
Como segue o referido professor, sobre o conceito de equivalência substancial, ele
pode ser útil à industria, mas é inaceitável do ponto de vista do consumidor e da saúde
pública. Os testes de equivalência substancial não requerem, p.ex., testes de longa duração, o
que é um equívoco, e deveriam ser substituídos por testes biológicos, toxicológicos e
imunológicos mais aprofundados e eficazes182.
Diante de tudo o que foi dito, resta constatar, como fizemos em conversa com o
professor de direito ambiental, Jackson Cervi, da URI, Santo Ângelo, de que estamos diante,
sobretudo no âmbito da transgenia, de pensarmos conjuntamente não só o princípio da
precaução da lei 11.105/05 mas, especialmente, o princípio de informação à sociedade sobre
essas situações do Código de defesa do consumidor de 1990.
180
Cfe. “Teoria jurídica e novos direitos”. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000, cap.VI.
181
“Biossegurança, transgênicos e risco ambiental: os desafios da nova lei de biossegurança”. In “Biossegurança
e novas tecnologias na sociedade de risco: aspectos jurídicos, técnicos e sociais”, p. 17-43, especialmente p.
37,38 e 39.
182
Idem, op.cit. p.39 e 40.
101
Daí a passagem, ou pelo menos a interligação entre Direito ambiental e direito do
consumidor. Tomando aqui o trabalho de Edgar Moreira183, é possível ver com clareza que o
Código de defesa do consumidor, seguindo orientação consubstanciada na Carta Magna, art.
1. III, e art. 5. caput, XXXII, arts. 8.º e seguintes preconiza:
“Que os produtos colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde
ou segurança dos consumidores, exceto os considerados previsíveis em razão de sua natureza
e fruição, estando os fornecedores, em qualquer hipótese, obrigados a dar as informações
necessárias e adequadas a seu respeito, cujas informações devem ser claras, ostensivas e
inteligíveis, atendendo o princípio da transparência que norteia as relações de consumo”.
Assim, como segue o referido professor, no art. 6, I e 10 do CDC, está a vedação à
colocação no mercado de produtos que apresentem alto grau de nocividade e assim por diante.
E, ainda, que o problema maior diz respeito à inexistência de informações precisas, testes
concretos e estudos profundos que possam demonstrar os exatos perigos e riscos.
Segue prelecionando, também, no sentido da importância do princípio da
transparência, cfe. o art. 4º. do referido código, caput, que impõe o dever de informar, sob
pena de vício de informação, art. 18, caput. Não basta um rótulo ou símbolo, é preciso estar
escrito. Ressalte-se, por fim, cfe. esse autor, que haveria também o problema dessas situações
serem enquadradas como publicidade enganosa caso não contenham as informações devidas
e, portanto, crime cfe. art. 67 do CDC.
Retomando o texto de Lajolo e Nutti 184, é possível de se ver alguns aspectos
comparados de como funciona a rotulagem em outras partes do mundo: na União Europeia - a
transgenia deve ser superior a 1% para haver a necessidade de rotulação; no Japão, o nível de
5% para a soja; na Austrália e na Nova Zelândia, até 1% não necessita de rotulagem. Mas,
fundamentalmente para o nosso estudo, caberia assinalar que nos EUA não existe nenhum
requerimento obrigatório para a rotulagem. O FDA (Food and Drug Administration) mantém
a posição de que se os produtos modificados são substancialmente equivalentes aos seus
análogos convencionais, nenhum tipo de rotulagem é requerida. Porém, ressalte-se que lá os
testes necessários e os devidos estudos prévios são efetivamente realizados, o que não está
ocorrendo no nosso país. Enfim, no Brasil o Decreto n. 4.680, de 24 de abril de 2003,
estabelece obrigatoriedade da rotulagem para alimentos acima de 1% de modificação em seus
genes originais.
183
Cfe. “Alimentos transgênicos e proteção do consumidor”. In “Biodireito. Ciência da vida, os novos desafios”,
Maria Celeste Cordeiro Leite Santos (org.), São Paulo: RT, 2001, p.231-245.
184
“Transgênicos...”, op.cit.p. 75 e segs.
102
Retomando agora o trabalho de Roberta Jardim, cabe reafirmar que a polêmica
central dos OGMs surge, pois, no momento da comercialização desses alimentos, ou seja
quando é necessário identificar a sua origem transgênica185, e aí sempre existe interferência
externa. Com efeito, do conjunto das afirmações desses autores estudados, é possível dizer
que a rotulagem de alimentos transgênicos ou que contenham transgênicos depende de muitos
fatores, dentre os quais razões econômicas, pressões de grupos de interesse, predominância de
crenças religiosas, valores culturais e direitos constitucionalmente garantidos.
Como assinala precisamente Roberta Jardim186, dentre as várias situações existem
aquelas nas quais não interessam ao mercado divulgar informações sobre produtos por
inúmeros motivos. Nesses casos, o governo deverá proceder a uma análise aprofundada para
verificar se uma intervenção será necessária. O problema está no como fazer e a quais custos.
Por outro lado, quando governos optam por adotar uma política de informação obrigatória que
gere muitos custos para certos setores da economia, não estarão causando um desequilíbrio na
relação custo-benefício?
De todo modo, Roberta Jardim187 defende três escopos principais da rotulagem de
alimentos:
- assegurar o fornecimento de informação adequada sobre saúde e segurança;
- proteger consumidores e indústrias de embalagens fraudulentas e ilusórias;
- promover concorrência justa e comercialização do produto.
Quanto ao rótulo dos alimentos geneticamente modificados, dois sistemas são
defendidos188:
1) que o rótulo deveria conter informações sobre o processo ou o procedimento
utilizado para produzir ou elaborar o produto (adotado na União Europeia e no Japão); 2) que
a rotulagem deveria ser adotada somente quando o produto final obtido através da aplicação
da biotecnologia diferisse significativamente da contraparte convencional, quer quanto à
composição, quer quanto ao valor nutricional.
Enfim, o trabalho de Roberta Jardim dá continuação a uma série de outras
informações importantes sobre aspectos econômicos relacionados com o direito nessa área.
De nossa parte, o que foi dito já é suficiente para demonstrar a interdisciplinaridade e a
transversalidade dos ditos “novos direitos”, e como diz a professora Cláudia Lima Marques
quando trata do tema do diálogo das fontes, um encontro entre esses direitos é fundamental se
185
Roberta Jardim de Moraes, op.cit.p.97 e segs.
186
Idem, Op.cit., p. 100.
187
Idem, ibidem, p. 110.
188
Idem, ibidem, p. 111 e segs.
103
quisermos dar conta da complexidade atual do mundo. Portanto, o estudo do princípio da
precaução requer o estudo concomitante do princípio da informação. Dado que o assunto
recém dá seus primeiros passos no Brasil sob a égide da nova lei de biossegurança, muitas
considerações ainda serão necessárias sobre o tema, ensejando, pois, maiores e mais
aprofundadas pesquisas.
5.2.2 Discussão final sobre a doutrina geral básica, o sistema e a estrutura da área do
direito em questão
Neste final, cabe alertar, em primeiro lugar, que vivemos o que autores como Leonel
Rocha, dentre outros, denominam de sociedade de risco189. A globalização, o avanço da
biotecnologia, da informática, a velocidade da vida, representada pela passagem de um tempo
diferido para um tempo real, etc., nos colocam diante da necessidade de nos precavermos
quanto às surpresas de diferentes origens.
E é diante desse quadro teórico e das experiências práticas frustradas quanto à devida
precaução de riscos desconhecidos no Brasil que optamos, mesmo sabendo dos óbices
econômicos, pela defesa da obrigatoriedade da rotulagem dos produtos transgênicos. Essa
precaução informativa é o mínimo que a cidadania pode esperar, e isto não significa apenas
aumento de número de “bits” disponíveis para a sociedade, senão que “bits” organizados e
capazes de serem compreendidos e autorefletidos pelos consumidores. E isto nos conduz ao
velho e surrado chavão, porém ainda válido e essencial, de que “a cidadania se constrói com
educação”.
No caso dos transgênicos, a situação se complica por estarmos em meio a
informações muito técnicas. Como bem alertou Andréia Loguércio, professora da UERGS –
Universidade Estadual do RS –, no seminário que deu origem a este artigo, “a sociedade não
conhece nem mesmo o símbolo da transgenia”, o que não significa nenhum absurdo em si
mesmo. Em pesquisa realizada pela professora, observou-se que muitos atribuíam ao triangulo
com um “T” no seu interior, símbolo da transgênia, o entendimento equivocado de que ali
estaria um organismo radioativo.
189
Esse professor fala desse tema a partir do sociólogo Niklas Luhmann. Ver de Leonel Rocha, “Epistemologia
jurídica e democracia”. Pode-se ver, também, o tema do risco em Morato Leite e Patryck Ayala, “Direito
ambiental na sociedade de risco”, capítulo I e seguintes, no qual pode-se encontrar também uma discussão sobre
o tema da informação na área ambiental.
104
Enfim, este pequeno artigo procurou, também, no que se refere aos ditos “novos
direitos”, demonstrar que eles, além de não se excluírem, tal como supunham alguns 190, se
complementam, realizando o que a professora Cláudia Marques tem denominado de
necessário diálogo das fontes no direito pós-moderno 191. Consoante ressalta a professora
Cláudia na apresentação da obra de Leonardo Bessa referida na nota anterior, “O código de
defesa do consumidor (Lei 8.078/90), em razão do corte horizontal nas mais diversas relações
jurídicas, é significativo exemplo da necessidade atual de convivência com diversos outros
diplomas”192.
É preciso dizer, também, neste final, que a judicialização do conflito dos
transgênicos tal como se revela no caso da soja RR não é mal em si, e pode mesmo ser visto
como fruto do desenvolvimento de uma autoconsciência da sociedade que, através do
Ministério Público ou de entidades representativas, tem procurado por seus direitos,
precauções e informações muitas vezes escamoteadas. Portanto, dentro de um marco ético
explicitado pelo constitucionalismo contemporâneo, não há porque julgar como “atrofia dos
poderes” tanto a judicialização dos conflitos sociais e da política, quanto a politização das
decisões judiciais, sobretudo em casos difíceis e polêmicos. Porém não dá para se conceber
racionalmente que o desenvolvimento econômico possa ser entendido como prioridade ante a
saúde e a proteção do meio ambiente.
Não obstante tudo o que foi dito, é de se lamentar, neste final, que no caso em pauta
e na discussão dos transgênicos (até o primeiro semestre de 2007) encontramos o que os
sociólogos do direito denominam de grave ineficácia e inefetividade do direito que, no mais
das vezes, termina por ser atropelado por soluções políticas “ex post facto”. Não há como
deixar de ver que tais situações contribuem para a deslegitimação da ordem jurídico-estatal da
qual tanto se espera em tempos de globalização.193
190
É possível ver que alguns autores ainda veem a luta pela liberdade como excludente da igualdade e vice-versa,
como demonstra Heiner Bielefeld em sua obra “Filosofia dos direitos humanos”, p. 110-120.
191
Ver apresentação dessa professora ao livro “Aplicação do código de defesa do consumidor”, de Leonardo
Roscoe Bessa. Brasília: Brasília Jurídica, 2007, p. 15-25.
192
Idem, op.cit.p. 18.
193
Outro exemplo interessante que pode ser estudado na área ambiental é o trazido pelo pesquisador voluntário
de IC Eduardo Preto Mossmann sobre a Arguição de descumprimento de preceito fundamental nº. 101. Em
síntese, a argüição de descumprimento de preceito fundamental nº. 101, argüida pelo Presidente da República,
Luis Inácio Lula da Silva, no Supremo Tribunal Federal, teve como ponto focal a solução de conflito surgido no
âmago do ordenamento jurídico brasileiro com relação à importação de pneus usados e remoldados. Esse
conflito estabelecido entre o Poder Executivo e a iniciativa privada, e com seguidas irritações provocadas no
sistema judiciário, tem ocasionado lesões a dois preceitos fundamentais: o direito à saúde e o direito a um meio
ambiente equilibrado, considerando-se a natureza imbricada desses direitos.
O interessante é que as decisões do próprio Poder Judiciário são os atos lesivos aos preceitos fundamentais
constitucionalmente protegidos (direito à saúde e a um meio ambiente equilibrado), e a arguição visa obter
provimento do Supremo Tribunal Federal para varrer essa lesão do seio do ordenamento jurídico brasileiro.
105
CAPÍTULO 6
DIREITO, MOVIMENTOS SOCIAIS E MULTICULTURALISMO – O CASO
ELLWANGER194
6.1.1 Premissas
Este texto integra e revisa estudos exploratórios que estamos fazendo acerca das
relações entre direito e multiculturalismo195, ou, em outras palavras, de como pensar o Direito
em um marco multicultural, entendido, aqui, dentre outras possibilidades, como uma
discussão sobre as condições e possibilidades de coexistência de diferentes culturas em um
mesmo país, continente ou mesmo na sociedade global, sem que ocorram submissões e
degradações de quaisquer delas196. Tal preocupação tem sido alvo de estudos no contexto do
Mestrado em Direito da URI – Santo Ângelo, que tem procurado discutir esse necessário
caráter interdisciplinar do direito para poder dar conta dessas sociedades plurais referidas197.
Como dissemos nos trabalhos anteriores, este tema se inscreve no âmbito das por
assim dizer denominadas “metamorfoses da cultura contemporânea”, na feliz denominação de
seminário internacional realizado na UFRGS198, pretendendo discutir o que, nas palavras de199,
poderia se traduzir como “desafios do pluralismo cultural à universalidade dos direitos
humanos”, que colocam em xeque conceitos como o de “identidade cultural”, das pessoas e
dos grupos, em face aos de “diferença” e de “diversidade”, dessas mesmas pessoas e grupos.
194
Texto resultante de pesquisas realizadas no âmbito do Mestrado em Direito da URI, Santo Ângelo, Grupo
Tutela dos Direitos e sua efetividade. Vinculado ao projeto de pesquisa “Os novos direitos e as novas formas de
solução de conflitos nas sociedades pós-modernas”.
195
Referimo-nos, em especial, ao artigo publicado na Revista Direitos Culturais do Mestrado em Direito da URI-
Santo Ângelo, intitulado “Multiculturalismo: o olho do furacão no direito pós-moderno, a apresentação que
fizemos no 23 Congresso Mundial de Filosofia do Direito e Filosofia Social, em Cracóvia, na Polônia, de 1º. a
6º. de agosto de 2007, intitulado “Multiculturalism’s Challanges in Human Rights”, e ao artigo publicado na
Revista “Estudos Jurídicos” da Unisinos, em dezembro de 2007, intitulado “Cultura Democrática para Direitos
Humanos Multiculturais”.
196
Cfe. Vicente Barreto, “Multiculturalismo...”, 2005; Nestor Canclini, “Diferentes...”, 2005, p.17.
197
Cfe. Cláudia Lima Marques, “Conferência...”, 1999; José Alcebíades de Oliveira Junior, “O novo em...”,
1997, p. 115-121; Gaston Bachelard, “A formação do...”, 1996. Cláudia Lima Marques, em “A crise científica do
direito na pós-modernidade e seus reflexos na pesquisa”, também mostrou a necessidade dessa
interdisciplinaridade. Sobre o tema, nós mesmos apresentamos, em 1997, quando integramos o GT/Pesquisa do
CONPEDI – Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em direito, um trabalho sobre “A pesquisa
jurídica e suas indefinições”. Ainda sobre pesquisa científica, gostaríamos de fazer referência à primorosa obra
de Gaston Bachelard, “A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento”,
na qual esmiúça o conceito de “obstáculo epistemológico” no progresso da ciência.
198
Cfe. Fernado Shüller e Juremir Machado Silva “Metamorfoses da cultura...”, 2006.
199
Cfe. Heiner Bielefeldt, “Filosofia dos direitos humanos”, 2000, p. 21.
106
O multiculturalismo não só se encontra no núcleo das discussões sociológicas atuais,
como contém um grande número de questões filosóficas (normativas) e políticas, o que torna
difíceis certezas “a priori” sobre o futuro dessa discussão, incertezas que, aliás, podem ser
confirmadas com as radicalizações de ambos os lados, isto é, dos que não aceitam a ideia de
que existem “diferenças”, e do lado, dos que radicalizam essa ideia, tornando-se a
convivência digna difícil em ambos os casos, em meio ao que se convencionou denominar de
pós-modernidade200.
6.1.2 Multiculturalismo
200
Cfe. Erik Jayme, “Direito internacional privado...”, 2003. Pós-modernidade não é, definitivamente, um termo
unívoco, mas de sentidos vários e polêmicos. Para um esclarecimento mínimo, porém adequado, tomamos Erik
Jayme, pensador canadense naturalizado alemão, que apresenta a cultura pós-moderna como possuindo alguns
valores em comum com o direito, dentre os quais o pluralismo, a comunicação, a narração e o que ele chama de
um retorno aos sentimentos.
201
Cfe. Nicolas López Calera, “Anales de la Cátedra…”, 2005.
202
Cfe. Tomasz Gizbert Studnicki e Jerzy Stelmach, “Law and Legal Cultures in the…”, 2007, p. 133-147.
203
Cfe. Michael Walzer, “Da tolerância...”, 1999, p.21-47.
107
nos quais vivemos, dentre os quais “os impérios multinacionais” (Pérsia, o Egito ptolemaico,
Roma), “a dita sociedade internacional”, “as consociações”, os “Estados-nações”, e, ainda, as
“sociedades de imigrantes”. Diante disso, percebe-se que os movimentos multiculturalistas
nasceram para chamar a atenção da diversidade cultural e da necessidade de um cuidado com
as diferenças204.
Por certo, os movimentos multiculturalistas não são desinteressados. Como disseram
os membros da Escola de Frankfurt em outro contexto, não há conhecimento sem interesse 205.
Talvez por isso os críticos de cinema Robert Stam e Ella Shohat, autores de “Crítica da
imagem eurocêntrica”, afirmem no jornal “Estado de São Paulo” que “a ideia do
multiculturalismo não significa apenas a constatação de que existem “muitas culturas”, mas
um projeto ao mesmo tempo político e epistemológico”.
Uma tal afirmação sugere uma outra: no caso de movimento político estaria a favor
de quem? Para Pierre Bourdieu, importante sociólogo francês 206, o multiculturalismo trata de
um produto da hegemonia anglo-americana, um instrumento da globalização e do
imperialismo norte-americano. Contudo, para Charles Taylor, como veremos adiante neste
trabalho, e para o próprio crítico Robert Stam citado e outros, um movimento que vem das
minorias, de países como a Indonésia, dos latinos, dos asiáticos, do índio americano, etc. Na
polêmica Stam X Bourdieu no “Estadão”207, o primeiro afirma que “países que praticaram a
escravidão têm dificuldades de falar em multiculturalismo, exatamente o caso da França com
suas colônias”, o que não deixa de ser uma verdade extensiva a outros países.
Uma interessante metodologia para se compreender o multiculturalismo é aquela
adotada por Robert Stam que, no jornal aludido, fala do cinema como instrumento para
interpretação da realidade multicultural, ao comentar vários filmes brasileiros e norte-
americanos sobre o assunto. No Brasil, os exemplos seriam “Orfeu” e “Cidade de Deus” que,
justo pela névoa ideológica que recobre a negação do multiculturalismo, falam de
emancipação como uma possibilidade unicamente através da arte, a música no primeiro deles,
e a fotografia no segundo.
Na mesma direção, os “faroestes” americanos servem de paradigma explicativo das
relações entre primeiro e terceiro mundo, sobretudo com os exemplos dos assaltos dos índios
204
Cfe. Charles Taylor, “A política de...”, 1994; Stuart Hall, “A identidade...”, 1999; Tomaz Tadeu da Silva,
“Documentos...”, 2004; Renata Malta Vilas Boas, “Ações afirmativas...”, 2003; Michael Walzer e David Miller,
“Pluralismo, justicia e igualdad”, 1996; Will Kymlicka, “Ciudadanía multicultural”, 1996.
205
Cfe. Jürgen Habermas, “Conhecimento e Interesse”, 1982.
206
Cfe. Antonio Gonçalves Filho, “Jornal o Estado de São Paulo”, 2006 e Pierre Bourdieu, “A reprodução,
elementos...”, 1975.
207
Cfe. Antonio Gonçalves Filho, “Jornal o Estado de São Paulo”, 2006.
108
às “diligências” dos brancos208. Diante desses filmes, não seria de nos perguntarmos por que
os índios são sempre os bandidos e os brancos os mocinhos? Como muitos de nossa idade,
tivemos a oportunidade de testemunhar que os auditórios nesses filmes no máximo se
compadeciam com os pobres índios por empunharem “arco-e-flecha” contra os rifles de fogo
dos brancos. Enfim, Stam entende, em franca oposição ao eurocentrismo, “o
multiculturalismo como o reconhecimento da alteridade (o ser outro, o colocar-se ou
constituir-se como outro), e não como algo para fazer às vezes de um “shopping center” de
culturas do mundo, no qual o europeu ocuparia a loja mais cara e exclusiva”209.
Procurando enquadrar as principais propostas multiculturalistas dentro dos caminhos
atuais do debate em termos de filosofia político-social, tomemos a apresentação de José
Eduardo Faria ao livro de Gisele Cittadino, “Pluralismo, direito e justiça distributiva” 210, para
enunciar que é possível de se falar de multiculturalismo a partir de pelo menos quatro
correntes: (1) - os libertários, como Robert Nozick e Friedrich Hayek; (2) - os liberais
contratualistas, como John Rawls e Ronald Dworkin; (3) - os comunitaristas, como Michael
Walzer, Charles Taylor, Michael Sandel e Alasdair MacIntyre; e, (4) - e os crítico-
deliberativos, como Jürgen Habermas e outros, formados na tradição hegeliano-marxista.
Nessa perspectiva, são esclarecedoras as digressões de Carla Faralli sobre a
polêmica liberais X comunitaristas. Segundo essa autora, a filosofia político-social dos anos
80 foi atravessada por essa dialética, que contém como um dos seus núcleos, segundo os
liberais, “a emancipação do indivíduo das “concepções de bem” socialmente fortes, e na
exigência, observada pelos adeptos do pensamento comunitário, de limitar o divórcio entre
identidade individual e valores socialmente transmitidos”211.
Como prossegue a autora, o ideal multicultural retoma e coordena ambas as
instâncias mencionadas por entender que a proteção e o reconhecimento das tradições
culturais dos grupos presentes nas modernas sociedades pluralistas é fundamental para a
liberdade do indivíduo e suas possibilidades de desenvolvimento pleno212.
Ao explicar as origens do pensamento liberal, Carla nos mostra que a rígida
separação entre esfera pública e esfera privada e que coloca a questão da identidade como um
problema particular de cada um, não competindo ao Estado intervir, é o grande mote da crítica
208
Cfe. Antonio Gonçalves Filho, “Jornal o Estado de São Paulo”, 2006.
209
Idem. Nicola Abbagnano, em seu “Dicionário de filosofia”, São Paulo: Mestre Ju, 1987, explicita que
“alteridade se trata de um conceito mais restrito do que diversidade e mais extenso do que diferença”, o que daria
um bom debate.
210
Cfe. Gisele Cittadino, “Pluralismo,...”, 1999.
211
Cfe. Carla Faralli, “A filosofia contemporânea do direito”, 2006, p. 79.
212
Cfe. Carla Faralli, “A filosofia contemporânea do direito”, 2006, p.79.
109
de Charles Taylor, por exemplo. Segundo esse autor, a “observação da realidade social em
países de composição mista, principalmente os anglo-saxões, permitiu compreender que o
sentimento de pertencer a um grupo e a uma tradição cultural deve ser considerado também
como um bem primário, porque não existe cidadania sem base cultural”. Ora, se a base
cultural é fundamental para a formação da identidade do indivíduo, cabe a pergunta pelo que
ocorre quando a cultura que fornece essa base ocupa uma posição marginal numa sociedade
dominada por outras culturas?213
O desfecho de Carla com base em Taylor é o de “que os cidadãos pertencentes a essa
cultura serão prejudicados, porque no processo de desenvolvimento de sua identidade, terão
de lidar com a imagem depreciativa de si mesmos, reflexo da escassa apreciação social por
sua cultura de base”214. E a conclusão é a de que “os indivíduos têm interesse essencial num
reconhecimento público da sua própria cultura, como aplicação do princípio da igual
dignidade de todos os cidadãos perante o Estado e as instituições públicas. Daí as ações
afirmativas”215.
Por outro lado, uma das mais importantes fontes de discussão multicultural têm sido
as tensões e diferenças entre Oriente e Ocidente que apareceram inicialmente no livro clássico
de Edward Said “Orientalismo”216 e que hoje aparecem na obra “Ocidentalismo”, de Ian
Buruma e Avishai Margalit217. Em síntese, esta última, de modo análogo à obra de Said, que
se originou nos anos 60 e 70, guardados os interesses de cada autor, busca retratar através de
escritores, filósofos, cidades, guerras, religiões, etc., “a morfogênese dessas civilizações”,
tornando possível a percepção do fosso que separa ocidentais de orientais e vice-versa. O
neologismo empregado por cada autor retrata o caráter desumano como cada civilização vê a
outra. Enfim, na proposta desses autores, que mereceria um espaço mais amplo para ser
discutida, procura-se entender os porquês da emergência de ódios recíprocos, quer em relação
às cidades, ao tipo de comércio, quer ao perfil das mentes, contra um tipo de espiritualidade,
dentre outras coisas.
222
Idem, ibidem, p. 207.
223
Idem, p. 207.
224
Idem, p. 210.
114
Neste final, temos a certeza de que existem mais perguntas do que respostas sobre as
relações entre direito e multiculturalismo. Indiscutivelmente, trata-se de um tema de
sociologia e filosofia geral próprio das sociedades modernas e pós-modernas essencial para os
estudos do Direito. Esse assunto recoloca em novos tons as relações entre direito e justiça,
direito e moral, direito e instituições, direito e formas clássicas e alternativas de solução de
conflitos, direito e operadores jurídicos, dentre outros aspectos, colocando em xeque, por
certo, as visões extremistas tanto de liberais quanto de socialistas ou comunitaristas.
Certamente, visões do direito desconectadas e distantes dessa realidade cambiante conduzirão
a maniqueísmos que beiram ou a intencionalidade perversa e/ou simplesmente o
obscurantismo.
Por isso, gostaríamos de focar dois tipos de preocupações futuras. A primeira, no
âmbito do Político, que se entende como a instância adequada para se pensar o diferente e as
diferenças, e a partir do qual toda a articulação da convivência deveria ser pensada. E aí nos
perguntarmos com Touraine: “poderemos viver juntos”? 225 E, para tal, dentre outras coisas é
urgente repensar o papel que joga a democracia na concretização dos direitos humanos
multiculturais no mundo hoje. Certamente necessitamos de várias redefinições, desde a
postura clássica de democracia como “a defesa das regras do jogo” (Norberto Bobbio), até as
questões de sua função e finalidades, com autores como Perry Anderson e Jurgen Habermas,
entre outros. Há uma tensão entre DH e democracia que talvez possa ser expressa através da
necessidade de uma relativização do princípio da maioria que, classicamente, se impôs
quando da hegemonia burguesa, assim como também, embora polêmico, se deva repensar as
ideias de “representação” e “participação popular”, tornadas dominantes no mundo moderno,
tanto nas esferas do liberalismo como com a emergência do socialismo real.
A segunda, no âmbito do Jurídico, enquanto lugar para se pensar a moralidade que se
deseja e os critérios para o estabelecimento da repressão que se julgar necessária em busca de
determinados fins, que nunca estão ou estarão suficientemente claros e definitivamente
estabelecidos. E essa discussão, que poderá ser interna nos países, não poderá deixar de passar
pela comunidade internacional, em que pesem os interesses antagônicos e divergentes e que
são de domínio público.
Desde uma perspectiva que talvez possa parecer modesta e que se refere ao direito a
ser utilizado como meio/fim para se realizar a dignidade da pessoa humana, temos defendido
uma ampla rediscussão do ensino jurídico, que teria passado já por duas etapas importantes e
necessitaria passar por uma terceira. Em síntese, inspirados pela obra “Documentos de
225
Alain Touraine, “?Podremos vivir juntos?”, 1996.
115
identidade, uma introdução às teorias do currículo”, de Tomaz Tadeu da Silva226, concebemos
que a educação jurídica, desde sua criação no Brasil, atendeu, primeiramente, à formação de
técnicos voltados a servir à burocracia do Estado aos negócios da comunidade emergente;
num segundo e recente momento, voltou-se para a discussão das relações do direito com o
poder e o seu caráter político, situação denunciada por vários pensadores, dentre os quais
destaque-se Roberto Lyra Filho e Luis Alberto Warat, e que redundou na Portaria 1886/94; e,
agora, num terceiro momento, precisaríamos de novas mudanças para se passar da crítica e da
denúncia para a valorização do processo formativo dos profissionais dessa área, tomando em
conta os diversos ângulos da atual discussão multicultural, com o que se pretenderia, dentre
outras coisas, chamar a atenção para a necessidade de se enfrentar, sem rodeios e
escamoteações, as diferenças étnicas e raciais, de sexualidade e gênero, de credos e religiões,
etc., na produção, interpretação e aplicação do direito.
6.2 CASO 1
O caso Ellwanger, como se tornou conhecido, já não é nenhuma novidade para quem
labuta no mundo jurídico brasileiro. Vários são os trabalhos já existentes sobre o assunto. De
nossa parte, tomaremos emprestada a pesquisa do professor Celso Lafer sobre o assunto227.
Em outubro de 1996, Sigfried Elwanger, um editor e autor de Porto Alegre, foi
condenado pelo Tribunal de Justiça do RS pela prática do racismo. Habeas Corpus em seu
favor foi impetrado no STJ em novembro de 2000 sob o argumento de que no máximo o que
fazia poderia ser entendido como incitamento contra judeus e não racismo, almejando com
isso afastar a imprescritibilidade. A solicitação foi denegada em dezembro de 2001.
Em 2002, Elwanger entrou no STF com novo HC e os mesmos argumentos.
Concluído em 2003, foi indeferido pela maioria de oito votos.
Como é possível de se constatar, ao ter de decidir sobre o HC, o STF teve de se
enfrentar com dois grandes temas: a) a abrangência do crime da prática de racismo, e b) um
eventual conflito entre princípios constitucionais, b.1. liberdade de manifestação, e b.2. crime
da prática de racismo.
226
Cfe. José Alcebíades de Oliveira Junior, 2005, “Repensando o ensino do Direito...”, p. 109-120.
227
Para mais e novos aprofundamentos sobre o caso, ver “Análise e interpretação do art. 5º., XLII, da
Constituição de 1988: sobre o alcance e o significado do crime da prática do racismo, uma discussão do caso
Ellwanger e da decisão do STF no HC n.82424/RS. In “A internacionalização dos direitos humanos”, Celso
Lafer, São Paulo: Manole, 2005, p. 93-120.
116
Tomando inicialmente o debate sobre a abrangência do crime de prática do racismo,
verificam-se posições restritivas e minimalistas de interpretação por um lado, e posições
menos restritivas e que entenderam pela inclusão da prática de antissemetismo como racismo,
tese esta majoritária.
Em síntese, a tese restritiva, sustentada por Moreira Alves e Marcos Aurélio,
fundamentou-se nos seguintes aspectos: seria aberrrante imprescritibilidade em matéria penal;
uma rigorosa interpretação constitucional leva à ideia de o que se deve coibir é o racismo
contra a raça negra; tal inclusão poderia conduzir ao risco de um tipo penal aberto.
Por seu turno, da interpretação majoritária, merecem destaque as teses defendidas por
Maurício Correa e Nelson Jobim, que continham os seguintes argumentos: raça seria um
conceito cultural e não biológico; antissemitismo é racismo; a correta interpretação da
constituição incluiria os judeus; a imprescritibilidade é uma política do direito.
No que diz com o conflito de princípios, crime de racismo versus liberdade de
manifestação de pensamento e a livre expressão da atividade intelectual e de comunicação, as
principais teses foram as seguintes:
O Ministro Marco Aurélio, integrante da posição minoritária, defendeu: crítica a todo
tipo de censura; não se pode impedir ninguém de receber ou difundir informações e ideias de
toda índole; citou Stuart Mil dizendo não existir verdade absoluta que justifique limitações à
liberdade de expressão.
O Ministro Maurício Correa, integrante da posição majoritária, defendeu: os direitos
de liberdade de expressão não são incondicionais – vejam-se os tratados internacionais.
O Ministro Celso Mello confirmou a condenação.
O Ministro Gilmar Mendes confirmou o caráter de execração de uma raça no caso.
O Ministro Sepúlveda Pertence lembrou alguns acontecimentos históricos: a
condenação de Caio Prado Junior por escrever sobre marxismo, por exemplo; mas sustentou
que, no caso desses últimos livros, a leitura o convenceu do racismo.
Por fim, o professor Celso Lafer traz o voto do Ministro Carlos Ayres de Brito, que
considerou como surpreendente: defendendo a tese da absolvição, sustentou que haveria falta
de tipicidade da conduta; não reconheceu o preconceito feito ação; defendeu o caráter da obra
como sendo de pesquisa científica e, por fim, de que o objetivo do seu autor seria o
revisionismo.
Diante das teorias que vimos e das questões históricas que o nosso trabalho
relembrou ao longo do texto, o que se poderia acrescentar a esta análise?
117
Independente das muitas reflexões possíveis, coincidentemente com as nossas
pesquisas, chegou-nos às mãos um trabalho inédito de um Juiz Federal do RS e mestrando em
direito na Uri de Santo Ângelo, Moacir Camargo Baggio, que tocou em um dos mais
importantes aspectos da questão reproduzida: o problema da tolerância – qual o limite a ser
tolerado, como evitar o paradoxo de se combater a intolerância com a intolerância?
Resgatando alguns trechos da pesquisa de Moacir, pode-se verificar o entendimento
de que, em alguns momentos, o combate à intolerância poderia ser justificado pelo emprego
de algum grau de intolerância, mormente em momentos históricos nos quais se verifica o
crescimento mundial de propagandas pró-intolerância. Nesse sentido, colemos 228 o seguinte
trecho do trabalho de Moacir:
Muito embora adotada em vários casos levados aos Tribunais brasileiros, a teoria da
proporcionalidade tem sido muito debatida nas academias brasileiras a partir das críticas de
Jürgen Habermas a natureza da ideia de princípio, mas que por transcender nossos interesses
momentâneos deixamos de comentar.
120
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