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2.3 Concepção de experimento em Duhem
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O método newtoniano está exposto no cap. 1, item 1.2.3, que versa sobre a abordagem newtoniana.
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Ver em 1.2.3, afirmação de Ampère a respeito da indução.
Duhem inicia sua análise partindo do princípio que, em Mecânica, não se pode
falar da força que um corpo requer sob determinadas circunstâncias, sem antes
estabelecer a base, supostamente fixa, à qual se refere o movimento de todos os outros
corpos. Quando se muda a base de comparação muda também de direção e grandeza a
força que representa o efeito produzido sobre o corpo observado, de acordo com regras
que a Mecânica estabelece com precisão.
Ora, Newton estabelece o Sol como ponto imóvel que serve de referência básica
para analisar o movimento dos planetas, admitindo que esses movimentos são regidos
pelas leis de Kepler. A conclusão óbvia que Newton tira é que, se o Sol é o ponto de
referência para todas as forças, cada planeta se submete a uma força dirigida ao Sol,
proporcional à sua massa e ao inverso do quadrado de sua distância do Sol. O Sol, por
sua vez, nesse contexto, não se submete a nenhuma força.
Essa mesma análise Newton faz com relação aos satélites dos planetas,
aplicando as leis de Kepler: a Lua com relação à base fixa Terra e o mesmo com outros
planetas e seus satélites, tirando as mesmas conclusões individuais do exemplo do Sol.
A partir disso, Newton arrisca-se a afirmar generalizando: “Dois corpos celestes
quaisquer exercem um sobre o outro uma ação atrativa proporcional ao produto de sua
massa e na razão inversa do quadrado da distância que os separa”.
Como diz Duhem, esse enunciado está supondo que todos os movimentos e
todas as forças estejam relacionadas a uma mesmo ponto de comparação, que se
apresenta como referência ideal. Esse ponto, porém, não existe posicionado no céu de
uma maneira fixa e exata. Portanto, Newton não admite3, mas trabalha com
pressupostos hipotéticos.
De onde tira Newton esse princípio da gravidade universal? É produto da
generalização indutiva fornecida pelas leis de Kepler? Duhem responde: de modo
algum, pois há não apenas maior generalização do princípio universal em relação às
leis, como também contradição. Afirma Duhem:
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Hypotheses non fingo era a atitude empirista correta para Newton. Tanto ele quanto Claude Bernard
propunham como ideal da postura científica a neutralidade do pesquisador, isento de influências teóricas,
deixando apenas as evidências falar. Duhem, na critica que endereça a Claude Bernard, afirma: "Mas
enquanto durar a experiência, a teoria deverá permenecer à porta do laboratório, severamente guardada,
deverá permanecer em silêncio e deixar, sem o perturbar, o pesquisador frente a frente perante os fatos.
Esses devem ser observados sem idéia pré-concebida, recolhidos com a mesma imparcialidade minuciosa,
quer confirmem as previsões da teoria, quer as contradigam. A relação que o pesquisador nos dará de sua
experiência deverá ser um decalque fiel e escrupulosamente exato dos fenômenos: ela não nos deixará
adivinhar qual é o sistema no qual o pesquisador deposita sua confiança, qual é aquele do qual desconfia
(...)" (1906, p. 274-275).
Bem longe, portanto, que o princípio da gravidade universal possa ser obtido, pela
generalização e pela indução, das leis da observação que Kepler formulou, ele contradiz
formalmente essas leis. Se a teoria de Newton é exata, as leis de Kepler são
necessariamente falsas (1993, p. 293).
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Duhem deixa claro, em sua exposição no capítulo sobre Le choix des hypothèses, em La théorie
physique, que Newton levou cerca de vinte anos, de 1665 a 1682, de “incessante meditação” para concluir
o trabalho para o qual tantos físicos contribuíram. Neste capítulo Duhem faz uma exposição detalhada das
contribuições que, lentamente, foram aparecendo no decurso da história da ciência física até chegar na
teoria da atração universal apresentada por Newton. Diz Duhem: “As considerações as mais diversas, as
doutrinas mais discordantes vieram, sucessivamente, dar sua contribuição à construção da Mecânica
celeste: a experiência vulgar que nos revela a gravidade, como as medidas científicas de Tycho Brahe e
de Picar, como as leis da observação formuladas por Kepler; os turbilhões dos Cartesianos e dos
conceitos e as teorias já elaboradas ao longo da caminhada científica para construir o
seu caminho de acesso à realidade.
Atomistas, como a Dinâmica racional de Huygens; as doutrinas metafísicas dos Peripatéticos, como os
sistemas dos médicos e as fantasias dos astrólogos; as comparações dos pesos, como as ações magnéticas,
como relações entre a luz e as ações mútuas dos astros. Ao longo de longo e trabalhoso parto, podemos
seguir as transformações lentas e graduais pelas quais o sistema teórico tem evoluído (...)” .
b) o resultado de um experimento da física, por ser o resultado de uma
interpretação teórica, é um juízo abstrato e simbólico;
c) o uso de instrumentos em um experimento está indissociavelmente ligado às
teorias.
Essas idéias fundamentais podem ser analisadas a partir do exemplo que Duhem
relata sobre o estudo da compressibilidade dos gases, feito por Regnault:
Regnault estuda a compressibilidade dos gases; toma uma certa quantidade de gás;
encerra-o num tubo de vidro mantendo a temperatura constante, mede a pressão que o
gás suporta e o volume que ele ocupa. Dir-se-á que temos aí a observação minuciosa e
precisa de certos fenômenos, de certos fatos. Seguramente, diante de Regnault, nas suas
mãos, nas mãos de seus auxiliares, fatos concretos se produzem. É o relato desses fatos
que Regnault consignou para contribuir com o avanço da física? Não. Em um visor
Regnault viu a imagem de uma certa superfície do mercúrio aflorar até um certo sinal.
Foi isto que ele escreveu no relatório de suas experiências? Não. Ele escreveu que o gás
ocupa um volume com um certo valor. Um auxiliar levantou e abaixou a lente de um
catetômetro até que a imagem de um outro nível de mercúrio chegasse a se nivelar com
a linha de uma retícula; ele observou, então, a disposição de certas marcas sobre a régua
e sobre o nônio do catetômetro. É isso que encontramos no relaltório de Regnault? Não.
O que lemos é que a pressão suportada pelo gás tem determinado valor. Um outro
auxiliar viu, num termômetro, o líquido oscilar entre dois sinais determinados. É isso
que ele consignou? Não. Registrou-se que a temperatura do gás havia variado de tal a tal
grau. Ora, o que é o valor do volume ocupado pelo gás, o valor da pressão que ele
suporta, o grau de temperatura ao qual ele é levado? São três objetos concretos? Não.
São três símbolos abstratos que somente a teoria física une aos fatos realmente
observados.
Para formar a primeira dessas abstrações, o valor do volume ocupado pelo gás, e para
fazê-la corresponder ao fato observado, isto é, ao nivelamento do mercúrio a uma certa
marca, é preciso aferir o tubo, isto é, fazer apelo não somente às noções abstratas da
geometria e aritmética, aos princípios abstratos sobre os quais repousam estas ciências,
mas, ainda, à noção abstrata de massa, às hipóteses da mecânica geral e da mecânica
celeste que justificam o emprego da balança na comparação de massas. É necessário
conhecer os pesos específicos do mercúrio à temperatura onde se faz essa aferição e, por
isso, conhecer os pesos específicos a 0º, o que não se pode fazer sem invocar as leis da
Hidrostática. Conhecer a lei da dilatação do mercúrio, que se determina por meio de um
aparelho onde figura uma lente, onde, por conseqüência, certas leis da Ótica são
supostas; de sorte que o conhecimento de uma lista de capítulos da Física precede
necessariamente a formatação dessa idéia abstrata: o volume ocupado pelo gás.
(...)
Assim, quando Regnault faz uma experiência, ele tem fatos diante dos olhos e observa
fenômenos, mas o que nos transmite dessa experiência, não é o relato dos fatos
observados, mas símbolos abstratos que as teorias admitidas lhe permitiram substituir
aos dados concretos que ele tinha recolhido (1906, p 219-221).
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Duhem chama a atenção que os termos abstratos e simbólicos não podem ser confundidos com termos
técnicos e convencionais construídos para ter um sentido específico, tal como propunha Poincaré (1970).
O pesquisador, quando cria um conceito, não o faz para ter uma linguagem clara e concisa para poder
exprimir os fatos concretos, mas o faz fundamentado em e admitindo a existência de uma teoria física. O
pesquisador cria um conceito simbólico que, fundamentado em uma teoria, representa um fato ou uma
característica desse fato.
observados, ou melhor, de suas leis empíricas que, como aquelas de
Kepler, nada mais são do que resultados generalizados de um grande
número de fatos. Observar primeiramente os fatos, modificando suas
circunstâncias tanto quanto possível, acompanhar seu primeiro trabalho
de medições precisas para se deduzir as leis gerais, unicamente
fundamentadas na experiência, e deduzir dessas leis, independentemente
de toda a hipótese sobre a natureza das forças que produzem os
fenômenos, o valor matemático dessas forças, isto é, a fórmula que as
representa, tal é o caminho que Newton seguiu (apud DUHEM, 1906, p.
298).
Duhem afirma que não é necessário ser um crítico perspicaz para perceber que
as teorias de Ampère sobre a eletrodinâmica não foram obtidas seguindo o método que
ele pregava. Para Duhem, “Os fatos da experiência, tomados em sua brutalidade nativa,
não costumam servir ao raciocínio matemático. Para alimentar esse raciocínio, eles
devem ser transformados e colocados sob a forma simbólica. Ampère os submeteu a
esta transformação” (1906, p. 298). Ampère utilizou diversas noções abstratas que
retirou das teorias da física, além de criar hipóteses, como a que imaginava a corrente
elétrica composta por elementos infinitamente pequenos. Isso demonstra que o físico
tem a necessidade de traduzir simbolicamente os fatos da experiência antes de começar
a raciocinar com eles. E de onde retirou Ampère suas idéias? Para Duhem, apenas a
intuição tem a capacidade para decifrar a escolha da forma que deve ter uma teoria:
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Em L’évolution de la mécanique (1903) Duhem afirma: “Os símbolos matemáticos que a teoria utiliza
não têm sentido a não ser em condições bem determinadas. Definir esses símbolos, é enumerar essas
condições. A teoria não fará jamais uso desses signos fora dessas condições” (p. 210). Mais adiante, a
respeito da identidade entre a teoria e os fatos, diz: “Portanto, logo que no andamento das deduções pelas
quais a teoria se desenvolve, submete-se as grandezas utilizadas pela teoria a operações algébricas e a
cálculos, não se deve perguntar se essas operações e se esses cálculos têm um sentido físico. Falando de
forma mais clara, não se deve questionar se o emprego dos procedimentos de medida permitem traduzi-
los em linguagem concreta e se, assim traduzidos, correspondem aos fatos reais ou possíveis. Colocar-se
semelhante questão será conceber uma noção completamente errônea da estrutura de uma teoria física”
(p. 212).
instrumentos teóricos e concretos e nas interpretações. À medida, pois, em que as
teorias e as matemáticas, ao longo de seu desenvolvimento histórico, fornecerem regras
para representar os fatos de forma cada vez mais satisfatória, ocorrerão correções que
proporcionarão um nível cada vez maior de precisão experimental na aproximação dos
resultados. O progresso da ciência física ocorre pelas reformulações e aperfeiçoamentos
que se efetuam ao longo da história em suas teorias que, por sua vez, permitem criar e
corrigir instrumentos teóricos e concretos que são utilizados na observação dos fatos. É
óbvia que seria absurda e impossível essa correção se a experiência física fosse apenas a
simples constatação de fatos, produto de uma observação isenta de uma prévia
impregnação teórica.
Assim, o resultado de uma experiência que o físico apresenta não é o relato dos
fatos observados, mas sim a sua interpretação simbólica, um juízo abstrato e ideal,
elaborado à luz das teorias que ele aceita. Para poder compreendê-la é necessário ver
que teorias fundamentam essa interpretação. Como compreenderíamos, por exemplo,
onda eletromagnética, como a mediríamos e como interpretaríamos os sinais dos
instrumentos de medida, que confiança estabeleceríamos para esses instrumentos, sem o
conhecimento da teoria do eletromagnetismo? Os conceitos que a ciência utiliza não são
vinculados ao diretamente observado. São produto de uma elaboração abstrata e é
apenas dentro do seu quadro de referência teórica, condicionado historicamente, que se
pode estabelecer a correspondência que pode haver entre determinados conceitos e
determinadas manifestações da realidade. Diferentes teorias produzem diferentes
instrumentos, diferentes observações e diferentes interpretações. Por isso, para Duhem,
“(...) uma experiência física não é somente a constatação de um conjunto de fatos, mas
ainda a tradução desses fatos em uma linguagem simbólica, por meio de regras tomadas
emprestadas das teorias físicas” (1906, p. 236).
Aqui está a diferença fundamental do enfoque duhemiano e do indutivista. Para
os indutivistas os conceitos, que contêm imagens conceituais abstratas, são decorrentes
das imagens sensoriais empíricas provenientes dos fatos e que foram, pelos canais da
percepção sensorial, impressas no intelecto, tal qual um espelho que reflete as imagens
sensoriais de um objeto que está à sua frente. Ao contrário dos empiristas, Duhem
trabalha com a noção de construto teórico. A física, enquanto ciência, se diferencia do
senso comum. Os conceitos com os quais a física trabalha são elaborações teóricas,
construídas aprioristicamente de forma abstrata e simbólica, com o intuito de
representar determinadas manifestações empíricas. Para Duhem, o físico elabora as
ferramentas conceituais e operacionais para efetuar essa passagem das propriedades
empíricas percebidas pelos sentidos para os conceitos abstratos e simbólicos com os
quais trabalha a nível teórico. Afirma Duhem:
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Duhem cita o exemplo da rã que, mesmo tendo a sua cabeça decepada, tenta com uma pata tirar a agulha
que está espetada na outra pata. Segundo ele, não há necessidade de conhecer fisiologia para perceber a
relação de estranheza existente nesse fato.
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No primeiro período de seus escritos Duhem ainda mantinha uma interpretação convencionalista
conforme já exposto na parte anterior.
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Para Poincaré (1985) a linguagem matemática e simbólica que representava os conceitos atribuídos às
propriedades dos fenômenos era produto de uma tradução elaborada de forma convencional pelo físico,
desprovida, portanto, de referencial teórico.
Esta verdade salta aos olhos de qualquer um que refletir. Abri qualquer relatório de
Física experimental e lede as conclusões. Essas conclusões não são de modo algum a
exposição pura e simples de certos fenômenos. São enunciados abstratos, aos quais vós
não podeis atribuir nenhum sentido se vós não conheceis as teorias físicas admitidas
pelo autor. Vós aí ledes, por exemplo, que a força eletromotriz de tal pilha a gás
aumenta de tantos volts logo que a pressão aumenta de tantas atmosferas. Que significa
este enunciado? Não se pode lhe atribuir algum sentido sem recorrer às teorias as mais
variadas, como as mais importantes, da Física (1906, p. 223).
Lá onde Newton havia falhado, Ampère, por sua vez, e mais rudemente ainda, acaba
tropeçando. É que dois obstáculos inevitáveis tornam impraticáveis ao físico o caminho
puramente indutivo. Em primeiro lugar, nenhuma lei experimental pode servir ao
teórico antes de ter merecido uma interpretação que a transforme em lei simbólica. E
esta interpretação implica adesão a todo um conjunto de teorias. Em segundo lugar,
nenhuma lei experimental é exata. Ela é somente aproximada. Ela é, então, suscetível de
uma infinidade de distintas traduções simbólicas. E por meio de todas essas traduções, o
físico deverá escolher aquela que fornecerá à teoria uma hipótese fecunda, sem que a
experiência guie de modo algum sua escolha (1906, p. 302).
É impossível pretender efetuar a separação entre a teoria e a observação de um
fenômeno físico. Em primeiro lugar, as teorias que o físico constrói lhe fornecem os
conceitos que lhe possibilitam atribuir, através das definições, uma correspondência
com as propriedades mensuráveis dos fatos. Essas definições não são nem uma simples
convenção arbitrária, nem uma definição retirada dos próprios fatos, mas uma
construção totalmente fundamentada em teorias. Não há, pois, entre um símbolo
abstrato e um fato concreto uma inteira paridade. Há apenas uma correspondência: “ ... a
fórmula abstrata e simbólica pela qual um físico exprime os fatos concretos que ele tem
constatado durante uma experiência não pode ser o equivalente exato, a relação fiel
dessas constatações” (1906, p. 228). Não há, portanto, uma adequação de identidade de
natureza entre um fato concreto, percebido pelas suas manifestações empíricas, com
contornos vagos e imprecisos, e um fato teórico, preciso e rigoroso. Esta disparidade é
que permite afirmar que, para um mesmo fato empírico, é possível construir uma
infinidade de fatos teóricos que podem ser incompatíveis entre si, bem como para um
mesmo fato teórico é possível fazer corresponder uma infinidade de fatos práticos
também discordantes entre si. A correspondência que é atribuída, e que permite a
tradução da manifestação empírica para o fato teórico, está atrelada ao fundo teórico
aceito pelo físico que o utiliza. Se mudar o fundo teórico se modificará o respectivo fato
teórico e, conseqüentemente, a representação do fato empírico.
Em segundo lugar, estas mesmas teorias lhe permitem, com o uso dos conceitos
e definições elaborados, construir e usar instrumentos para recolher os dados, mensurá-
los e interpretá-los10. Quanto mais uma ciência progride, mais cresce a importância e a
função da teoria para a elaboração e uso dos instrumentos e a interpretação dos fatos,
utilizando uma tradução simbólica mais abstrata e distante dos fatos11.
Um argumento forte que Duhem apresenta para demonstrar a presença das
teorias nas experiências da física é o que se relaciona com a necessidade das correções
10
Em La théorie physique (1906, p. 231), Duhem afirma: “Será, de fato, impossível usar instrumentos
que se encontram nos laboratórios de Física, se não se substituir os objetos concretos que compõem esses
instrumentos por uma representação abstrata e esquemática que torne possível o raciocínio matemático, se
não se submeter esta cominação de abstrações a deduções e a cálculos que impliquem adesão às teorias”.
11
Duhem cita como exemplo o uso da bússola de tangentes. O seu uso não se reduz à descrição dos fatos
observados, mas a uma avaliação numérica dos símbolos que foram criados pela teoria.
dos erros. As correções se dão graças aos aperfeiçoamentos produzidos em dois níveis:
no nível teórico, através de teorias que fornecem regras mais satisfatórias para construir
a apreensão dos fatos e para aumentar a precisão da interpretação teórica da experiência;
no nível da observação, com a construção de instrumentos mais precisos para a
observação e medição.
Duhem afirma que, quando um físico faz uma experiência, tem duas
representações simultâneas do instrumento que utiliza: uma é a imagem do instrumento
concreto que está manipulando; a outra é a do instrumento ideal, que é um tipo
esquemático e simbólico sobre o qual aplica as leis e fórmulas da física teórica. É com
esse último que ele raciocina, estabelecendo uma relação indissociável entre teorias e
instrumentos de observação12. O físico, quando entra em um laboratório e manipula o
instrumento concreto, usa representações abstratas e simbólicas que tornam possível o
raciocínio matemático, representações essas que implicam numa total adesão às teorias.
Duhem mostra que a correção ocorre essencialmente pela operação que designa como se
efetua a passagem de um certo instrumento esquemático para outro que simboliza
melhor o instrumento concreto (1906, p. 237). O aperfeiçoamento do instrumento
concreto depende e está diretamente relacionado com o aperfeiçoamento do instrumento
ideal e teórico13. As correções ocorrem não porque o instrumento possibilita ao físico
perceber com maior acuidade as manifestações dos fatos, mas porque ele aperfeiçoou o
instrumento ideal, esquemático e que utiliza as fórmulas da física, que simboliza melhor
o instrumento concreto. A reelaboração teórica permite que cresça a aproximação dos
dados experimentais e que se corrijam as próprias teorias. A falha em não perceber um
erro sistemático, por exemplo, faz com que o físico omita uma correção que poderia ser
12
Duhem apresenta como exemplo do instrumento real, manipulado pelo físico, e do instrumento ideal e
simbólico sobre o qual ele raciocina o do manômetro utilizado por Regnault. Segundo Duhem, apesar de
os dois instrumentos serem essencialmente distintos, estão indissoluvelmente ligados um ao outro. Um
constitui-se de tubos de vidro bem interligados cheios de um metal líquido e forte, o mercúrio; o outro é
uma coluna de um ente racional chamado de fluído perfeito dotado em cada ponto de uma certa densidade
e de uma certa temperatura e definido por uma certa equação da compressibilidade e da dilatação. Apesar
de o ajudante de Regnault manipular o primeiro, é com o segundo que Regnault trabalha as leis da
hidrostática (1906, p. 236, 237)
13
Duhem descreve a correção que Regnault faz de seu primeiro manômetro ideal: o primeiro, é formado
por um fluído não compressível, supondo a mesma temperatura em todas as partes e com a mesma
pressão atmosférica em qualquer ponto, independente da altura. Esse esquema apresenta uma imprecisão
muito grande, pois tem uma diferença acentuada entre ele e a realidade. O novo manômetro ideal,
contudo, apesar de mais complexo representa melhor o manômetro concreto e aumenta a precisão da
experiência: compõe esse novo manômetro com um fluído que pode ser comprimido, admite que a
temperatura varia de um ponto a outro e que a pressão barométrica se modifica quando se eleva a
atmosfera.
feita e que poderia aumentar a precisão de um experimento e o avanço do conhecimento
(1906, p.238). Por isso, em uma experiência em física “... resulta, com efeito, que o
físico compare sem cessar os dois instrumentos entre si, o instrumento real que ele
manipula, e o instrumento ideal e simbólico sobre o qual ele raciocina” (1906, p. 236.
Estabelecendo uma das diferenças fundamentais que o distingue dos indutivistas,
Duhem mostra como o físico, em uma experiência, trabalha com os dois instrumentos, e
não apenas com o concreto como eles supunham. Para os indutivistas o uso de
instrumentos em uma experiência servia exclusivamente para a constatação dos fatos,
para aumentar a precisão e o poder da percepção sensorial para perceber melhor os
detalhes do fenômeno ou objeto analisado, não identificando e não reconhecendo o
valor e a função das teorias presentes no instrumento teórico que determina o
instrumento concreto. Porém, para Duhem, se uma experiência em física fosse apenas a
simples constatação de fatos feita por instrumentos concretos, seriam absurdas e
impossíveis as correções. As correções acontecem porque a experiência em física é
previamente “iluminada” pelo conhecimento teórico e expressa a tradução dos fatos em
uma linguagem simbólica por meio de regras que são tiradas das teorias. O progresso
experimental é acompanhado por um progresso teórico. O aperfeiçoamento das teorias e
dos instrumentos permite aperfeiçoar a precisão experimental e a interpretação teórica
das experiências. Por isso, “o que o físico enuncia como o resultado de uma experiência,
não é a relação dos fatos constatados, [mas] é a interpretação desses fatos, é sua
transposição no mundo ideal, abstrato, simbólico, criado pelas teorias que ele vê como
estabelecidas” (1906, p. 240).
Sem conhecer as teorias que foram utilizadas por um cientista, os pressupostos
teóricos sobre os quais fundamentou suas experiências, é impossível avaliar o que ele
afirma, verificar que sentido ele atribuiu a seus enunciados e discutir o mérito de seu
experimento e a veracidade ou falsidade de seus resultados. É falsa a idéia da existência
de um testemunho irrecusável dos fatos. A discussão científica não se sustenta nesse
pseudo testemunho. A avaliação das provas empíricas depende do referencial teórico
aceito pelo pesquisador e utilizado para a sua interpretação. Não há concordâncias ou
contradições entre as observações: “A contradição não está na realidade, sempre de
acordo com ela mesma, [mas] está entre as teorias pelas quais cada uma das duas
defensoras exprime esta realidade” (1906, p. 243). A avaliação, portanto, dos resultados
de uma teoria se torna uma operação complexa. Duhem deixa claro que todo o processo
de investigação tem uma relação direta com as teorias que servem de base14. A teoria
está presente tanto na fundamentação das hipóteses, quanto na construção dos
instrumentos de observação e na interpretação dos dados observados, estipulando as
definições e as regras que conduzem todo o processo de investigação. Para poder se
julgar o mérito de um resultado é necessário conhecer essas teorias. Na realidade, para
Duhem, não se avaliam resultados: avalia-se o acordo entre determinados resultados
com uma determinada teoria, ou um determinado conjunto de teorias, a pertinência ou
não do referencial teórico que foi produzido, a sua eficácia e utilidade enquanto
instrumento mais ou menos adequado de descrição e de representação da realidade. Diz
Duhem: “O enunciado do resultado de uma experiência implica, em geral, um ato de fé
em todo um conjunto de teorias” (1906, p. 278).
Os experimentos, incluindo também a fase dos testes experimentais que
confronta as hipóteses com os fatos, são, portanto, produto de um processo de
elaborações teóricas altamente desenvolvidas, no qual as teorias desempenham um
papel fundamental. Os resultados de um experimento, produto da avaliação do
confronto das conseqüências experimentalmente verificáveis de uma teoria com a
experiência, são, por isso, conseqüências de um processo que foi antecipadamente
planejado a partir do sistema teórico previamente admitido e que, por isso, inclui a
própria teoria que está sob teste. Experimento e teoria são, para Duhem, inseparáveis.
Duhem, por isso, não fala em verdade. Tomou consciência e explicitou o grau
da dependência e da inseparabilidade que há entre teoria e experimento, nos seus
elementos constituintes de elaboração de hipóteses, conceitos simbólicos, instrumentos,
observação e interpretação. Percebe que o pesquisador, ao executar um experimento
está preso, limitado, enclausurado na própria armadilha teórica que criou, sem poder
dela se distanciar para encontrar uma base neutra e segura que sirva de ponto de
14
No capítulo entitulado La théorie physique et l’expérience Duhem afirma: “Aqui, com efeito, não se
discute mais a questão de deixar à porta do laboratório a teoria que se quer testar, pois, sem ela, não é
possível regular um só instrumento, interpretar uma só leitura. Nós já o temos visto, ao espírito do físico
que experimenta, dois aparelhos estão constantemente presentes: um é o aparelho concreto, em vidro, em
metal, que ele manipula; o outro é o aparelho esquemático, abstrato e teórico que substitui o aparelho
concreto e sobre o qual o físico raciocina. Estas duas idéias estão indissociavelmente ligadas em sua
inteligência. Cada uma delas chama necessariamente a outra. O físico não pode mais conceber o aparelho
concreto sem lhe associar a noção de aparelho esquemático [da mesma forma] que um francês não pode
conceber uma idéia sem lhe associar o termo francês que ele exprime. Esta impossibilidade radical, que
impede de dissociar as teorias da Física dos procedimentos experimentais próprios para controlar essas
mesmas teorias, complica singularmente esse controle e nos obriga a examinar minuciosamente o seu
sentido lógico” (1906, p. 277).
referência absoluta do qual emanem princípios ou critérios universais para avaliar,
julgar e decidir sobre a verdade ou falsidade dessas teorias. Para Duhem, a história da
física desmente o indutivismo e o mecanicismo empirista. Ele constata, no
desenvolvimento histórico da física, que ela é uma tentativa constante de um processo
de correção de teorias, de reelaboração contínua de seus quadros teóricos de
representação e de interpretação e de reformulação dos seus instrumentos.
Duhem demonstra que o físico não tem onde se fundamentar a não ser nas
próprias teorias que foram criadas e na utilização de um critério, necessário mas não
suficiente para sustentar as garantias da certeza ou da verdade na ciência: a coerência de
todo o processo experimental, incluindo suas hipóteses, seus instrumentos, a
consistência das regras estabelecidas para a interpretação dos dados empíricos, com
essas teorias. Mesmo assim, não é possível aceitar como verdadeiros os resultados de
um experimento, porque, por mais precisas e determinadas que estejam as proposições
abstratas e matemáticas e por mais ajustados que estejam os instrumentos concretos a
esses instrumentos ideais teóricos, mesmo assim, “aos mesmos fatos podem
corresponder uma infinidade de proposições diferentes, às mesmas medidas uma
infinidade de avaliações expressas por números diferentes (1906, p 245). E acrescenta:
“O resultado de uma experiência Física não tem uma certeza da mesma ordem que um
fato constatado pelos métodos não científicos, pela simples constatação ou pelo simples
toque de um homem são de corpo e de espírito” (1906, p. 246). Pode-se avaliar e
discutir o grau de aproximação de uma experiência descrita pelo pesquisador, que
depende do grau de indeterminação das proposições matemáticas que são utilizadas.
Essa avaliação deve levar em conta dois fatores: a acuidade do senso do observador e a
presença de erros sistemáticos que não puderam ser corrigidos. No entanto, esse
processo, como o afirma Duhem, é extremamente complexo e difícil de ser alcançado
por uma ordem inteiramente lógica. Na realidade, a avaliação de um resultado de uma
experiência em física “permanece sempre subordinado à confiança que inspira todo um
conjunto de teorias” (1906, p. 246).
Percebe-se, aqui, como Duhem modifica também a orientação indutivista
utilizada nos testes experimentais, que se sustentava em uma direção confirmabilista,
isto é, na busca de provas positivas e que manifestavam seu acordo com as
conseqüências da teoria testada. A orientação de Duhem está no sentido de um
experimento refutador, isto é, que procura por em evidência provas e argumentos que
possam se transformar nas razões que justifiquem a rejeição da teoria. Duhem, contudo,
apesar de assumir essa direção refutadora, ou de falseabilidade, como a denomina
posteriormente Popper15, chama atenção às limitações metodológicas do uso da busca
da contradição experimental que conduza à condenação irremediável de uma teoria. O
fato de as teorias impregnarem todo o processo de elaboração, execução e interpretação
de um experimento, limita epistemologicamente o alcance lógico do processo de
refutação, pois o subordina irremediavelmente ao conjunto teórico escolhido e utilizado
para sustentar essa interpretação. Duhem demonstra que as conclusões a que chega um
pesquisador, após submeter uma teoria a um teste experimental, não dependem
exclusivamente dos dados empíricos obtidos em um experimento, mas também das
teorias que ele utiliza para interpretar esses dados.
Destaca-se aqui, o rompimento com a postura indutivista e positivista que
acreditava na possibilidade da confirmação experimental. O indutivismo, ao negar a
presença das teorias como condutoras do experimento, tanto no contexto de descoberta
quanto no de justificação ou de confirmação dos resultados, excluía o elemento
problematizador da verificação experimental, pois eliminava a presença dos elementos
teóricos determinantes e ao mesmo tempo filtrantes da experiência. O contato do
investigador com os fatos se processava, segundo os indutivistas, de forma direta, sem a
intermediação das teorias. A não problematização do acesso ao real, característica do
indutivismo e do empirismo, admite que há um canal direto de recepção das imagens
empíricas entre o sujeito conhecedor e o objeto conhecido.
Duhem, ao enfatizar a dependência que todo o processo experimental tem para
com as teorias, questiona todo o modelo da ciência física expressa na visão dogmática
do paradigma newtoniano, proporcionando a abertura para a busca de outros critérios
que rompem com os da racionalidade positivista. Esses critérios Duhem os
fundamentará na historicidade, que passarei a analisar no próximo capítulo.
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Conforme Popper (1975), em A lógica da pesquisa científica. Esses elementos apontados por Duhem
são a base da argumentação central utilizada também por Lakatos (...) quando critica o falseacionismo
ingênuo de Popper. Popper fundamenta o seu critério que distingue a ciência da não-ciência, a
falseabilidade, no modo tollendo tollens, que admite como correto o raciocínio que repassa a falsidade do
particular para o universal. Uma evidência de prova falseadora seria suficiente para demonstrar a
falsidade de uma hipótese. No entanto, o que Popper não problematiza é essa dependência insolúvel,
apontada por Duhem, que há entre teoria-observação-interpretação que torna impossível a refutação
definitiva e conclusiva de uma hipótese ou teoria, tendo como referência apenas os dados obtidos no
processo experimental.