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Este texto é correspondente ao impresso em:

KÖCHE, José Carlos. Pesquisa científica: critérios epistemológicos.


Petrópolis, J : Vozes; Caxias do Sul, RS : EDUCS, 2005, p. 117-145.

...
2.3 Concepção de experimento em Duhem

Para abordar a concepção de experimento em Duhem é necessário


compreender a crítica que desenvolve ao método científico indutivo, ou, como é
chamado, ao método newtoniano, um dos pilares fundamentais do mecanicismo.
Duhem, apesar da forte influência que houve em sua formação acadêmica, conseguiu
romper com o paradigma newtoniano e construir um novo referencial interpretativo para
a concepção de experimento. A idéia fundamental que serve de referência é que um
experimento físico é a interpretação teórica de um fenômeno e não simplesmente a sua
observação. Essa afirmação estabelece um confronto radical com a concepção de
experimento defendida pelos indutivistas, pelo mecanicismo e pelo positivismo,
conforme farei a exposição a seguir.
Inicialmente analisarei os elementos constitutivos da crítica para,
posteriormente, introduzir a proposta duhemiana de experimento.

2.3.1 Crítica ao método newtoniano e à concepção mecanicista e


indutivista de experimento

Duhem, apesar de no primeiro período de seus escritos adotar a postura


indutivista e mecanicista da física newtoniana, elabora uma crítica severa ao que
denomina método newtoniano, expressa claramente no cap. VI de Théorie Physique, ao
tratar sobre a teoria física e a experiência.
O método newtoniano, para Duhem, espelha o pensamento de Newton contido
na expressão Hypothesis non fingo. No Scholium generale, que está no final dos
Principia Mathematica, Newton afirma não aceitar nenhuma hipótese física que não
possa ser extraída da experiência pela indução (1987, p. 705)1.
Para Newton e seus discípulos, tais como Laplace, Fourier e Ampère2, estaria
claro que uma proposição física seria ou uma lei, obtida pela observação e generalização
indutiva, ou um corolário deduzido matematicamente desse tipo de lei. Em ambos os
casos, as teorias submetidas aos processos de confirmação experimental, sempre seriam
proposições confiáveis e destituídas de dúvida ou de arbitrariedade.
É justamente essa certeza experimental, obtida por observação e generalização
que Duhem ataca e destrói. O primeiro exemplo que Duhem utiliza para criticar o
método newtoniano está exposto em La Théorie Physique (1993, p. 289-96).
Segundo Newton, o princípio universal que afirma que “dois corpos quaisquer se
atraem mutuamente por uma força que é proporcional ao produto de suas massas e que
está na razão inversa do quadrado da distância que os separa” foi obtido pela
generalização indutiva das três leis de Kepler, que mostra a ação do Sol sobre um
planeta.
A primeira lei afirma que “o raio vetor que vai do Sol a um planeta percorre uma
área proporcional ao tempo durante o qual se observa o movimento do planeta”. Isso
teria mostrado a Newton que cada planeta está constantemente submetido a uma força
dirigida em direção ao Sol.
Na segunda lei Kepler afirma que “a órbita de cada planeta é uma elipse em que
o Sol é o foco” (centro). Isso ensinou-lhe que a força de atração de um planeta varia de
acordo com a distância desse planeta do Sol, e que está na razão inversa do quadrado
dessa distância.
A terceira lei, que afirma que “os quadrados das durações de revolução dos
diversos planetas são proporcionais aos cubos dos grandes eixos de suas órbitas”
mostrou-lhe que planetas, colocados à mesma distância do Sol, sofrem por parte dele
atrações proporcionais a suas respectivas massas.
Duhem se pergunta: esse aparente rigor e simplicidade que Newton se atribui,
mostrando ter retirado sua teoria das leis de Kepler, resiste a uma análise lógica um
pouco severa?

1
O método newtoniano está exposto no cap. 1, item 1.2.3, que versa sobre a abordagem newtoniana.
2
Ver em 1.2.3, afirmação de Ampère a respeito da indução.
Duhem inicia sua análise partindo do princípio que, em Mecânica, não se pode
falar da força que um corpo requer sob determinadas circunstâncias, sem antes
estabelecer a base, supostamente fixa, à qual se refere o movimento de todos os outros
corpos. Quando se muda a base de comparação muda também de direção e grandeza a
força que representa o efeito produzido sobre o corpo observado, de acordo com regras
que a Mecânica estabelece com precisão.
Ora, Newton estabelece o Sol como ponto imóvel que serve de referência básica
para analisar o movimento dos planetas, admitindo que esses movimentos são regidos
pelas leis de Kepler. A conclusão óbvia que Newton tira é que, se o Sol é o ponto de
referência para todas as forças, cada planeta se submete a uma força dirigida ao Sol,
proporcional à sua massa e ao inverso do quadrado de sua distância do Sol. O Sol, por
sua vez, nesse contexto, não se submete a nenhuma força.
Essa mesma análise Newton faz com relação aos satélites dos planetas,
aplicando as leis de Kepler: a Lua com relação à base fixa Terra e o mesmo com outros
planetas e seus satélites, tirando as mesmas conclusões individuais do exemplo do Sol.
A partir disso, Newton arrisca-se a afirmar generalizando: “Dois corpos celestes
quaisquer exercem um sobre o outro uma ação atrativa proporcional ao produto de sua
massa e na razão inversa do quadrado da distância que os separa”.
Como diz Duhem, esse enunciado está supondo que todos os movimentos e
todas as forças estejam relacionadas a uma mesmo ponto de comparação, que se
apresenta como referência ideal. Esse ponto, porém, não existe posicionado no céu de
uma maneira fixa e exata. Portanto, Newton não admite3, mas trabalha com
pressupostos hipotéticos.
De onde tira Newton esse princípio da gravidade universal? É produto da
generalização indutiva fornecida pelas leis de Kepler? Duhem responde: de modo
algum, pois há não apenas maior generalização do princípio universal em relação às
leis, como também contradição. Afirma Duhem:

3
Hypotheses non fingo era a atitude empirista correta para Newton. Tanto ele quanto Claude Bernard
propunham como ideal da postura científica a neutralidade do pesquisador, isento de influências teóricas,
deixando apenas as evidências falar. Duhem, na critica que endereça a Claude Bernard, afirma: "Mas
enquanto durar a experiência, a teoria deverá permenecer à porta do laboratório, severamente guardada,
deverá permanecer em silêncio e deixar, sem o perturbar, o pesquisador frente a frente perante os fatos.
Esses devem ser observados sem idéia pré-concebida, recolhidos com a mesma imparcialidade minuciosa,
quer confirmem as previsões da teoria, quer as contradigam. A relação que o pesquisador nos dará de sua
experiência deverá ser um decalque fiel e escrupulosamente exato dos fenômenos: ela não nos deixará
adivinhar qual é o sistema no qual o pesquisador deposita sua confiança, qual é aquele do qual desconfia
(...)" (1906, p. 274-275).
Bem longe, portanto, que o princípio da gravidade universal possa ser obtido, pela
generalização e pela indução, das leis da observação que Kepler formulou, ele contradiz
formalmente essas leis. Se a teoria de Newton é exata, as leis de Kepler são
necessariamente falsas (1993, p. 293).

Duhem demonstra que a avaliação da validade da teoria de Newton requer que


se admita a correção de outros princípios da Física, tais como as leis da Ótica que
permitem estabelecer confiabilidade nas observações obtidas com o telescópio, a
estática dos gases, a teoria do calor e todos os princípios da dinâmica que dão um
sentido próprio aos conceitos de força e massa utilizados por ele. É necessário, diz
Duhem, identificar as perturbações existentes nos movimentos dos planetas e sugerir
observações previsíveis por necessidades teóricas, como o foi a previsão do planeta
Netuno. É a confiança plena nas leis da dinâmica que fornece legitimidade para as
observações experimentais e a avaliação de sua correspondência com as fórmulas
simbólicas em que se expressam as leis e as teorias. Duhem afirma que, quando se
submete ao controle dos fatos uma teoria física, “... com efeito, não pode mais ser uma
questão de deixar à porta do laboratório a teoria que se vai testar, pois, sem ela, não é
possível regular um só instrumento, interpretar uma só leitura” (1906, p.277). O físico
trabalha, no teste experimental, com instrumentos e aparelhos que concretizam os
instrumentos e aparelhos teóricos que estão na mente do pesquisador. Os dois sempre
estarão indissociavelmente ligados em sua inteligência. Duhem aponta uma
impossibilidade radical que impede de dissociar as teorias físicas dos procedimentos
experimentais destinados a testar essas mesmas teorias.
Newton, portanto, não utilizou o método newtoniano. Trabalhou com
observações e realizou experimentos quantificados, sim, mas para testar suas hipóteses,
quer intuídas, quer construídas à luz de pressupostos teóricos elaborados ao longo da
história da física4. Newton não pode desvencilhar-se da necessidade de admitir os pré-

4
Duhem deixa claro, em sua exposição no capítulo sobre Le choix des hypothèses, em La théorie
physique, que Newton levou cerca de vinte anos, de 1665 a 1682, de “incessante meditação” para concluir
o trabalho para o qual tantos físicos contribuíram. Neste capítulo Duhem faz uma exposição detalhada das
contribuições que, lentamente, foram aparecendo no decurso da história da ciência física até chegar na
teoria da atração universal apresentada por Newton. Diz Duhem: “As considerações as mais diversas, as
doutrinas mais discordantes vieram, sucessivamente, dar sua contribuição à construção da Mecânica
celeste: a experiência vulgar que nos revela a gravidade, como as medidas científicas de Tycho Brahe e
de Picar, como as leis da observação formuladas por Kepler; os turbilhões dos Cartesianos e dos
conceitos e as teorias já elaboradas ao longo da caminhada científica para construir o
seu caminho de acesso à realidade.

2.3.2 Inversão da base epistemológica: o experimento como interpretação


teórica

Nessa crítica ao método newtoniano Duhem deixa entrever as suas teses do


holismo teórico e do continuísmo histórico. A identificação e a exposição de quais
contribuições teóricas Newton retirou da história da ciência para construir sua teoria
sustenta a tese duhemiana de uma evolução histórica progressiva, lenta e complexa que
vai se processando na ciência.
Para Duhem não é o modelo empirista e indutivista newtoniano o que retrata a
idéia de experimento e de método para a física. Então, - o que é um experimento em
física? - pergunta-nos Duhem. No capítulo IV da Théorie Physique, Duhem responde a
esta pergunta e se propõe a estabelecer as diferenças que há entre a sua concepção de
experimento e a dos indutivistas. Reconhece que muitos se surpreendem com esta
pergunta, pois, sob a ótica indutivista e empirista, parece fácil respondê-la:

Produzir um fenômeno físico em condições tais que se se possa observá-los exata e


minuciosamente, por meio de instrumentos apropriados, não é a operação que todos
designam por esses termos: fazer uma experiência de Física? (1906, p. 218).

No entanto, se pergunta Duhem, o que faz um experimentador em um


laboratório? Apenas observa minuciosamente os fatos e relata o que vê? Na visão
indutivista e na do leigo parece ser isto. Mas não é o que acontece na ciência.
Há três idéias fundamentais que Duhem destaca em um experimento:
a) um experimento não é simplesmente uma observação de um fenômeno, mas
uma interpretação teórica;

Atomistas, como a Dinâmica racional de Huygens; as doutrinas metafísicas dos Peripatéticos, como os
sistemas dos médicos e as fantasias dos astrólogos; as comparações dos pesos, como as ações magnéticas,
como relações entre a luz e as ações mútuas dos astros. Ao longo de longo e trabalhoso parto, podemos
seguir as transformações lentas e graduais pelas quais o sistema teórico tem evoluído (...)” .
b) o resultado de um experimento da física, por ser o resultado de uma
interpretação teórica, é um juízo abstrato e simbólico;
c) o uso de instrumentos em um experimento está indissociavelmente ligado às
teorias.
Essas idéias fundamentais podem ser analisadas a partir do exemplo que Duhem
relata sobre o estudo da compressibilidade dos gases, feito por Regnault:

Regnault estuda a compressibilidade dos gases; toma uma certa quantidade de gás;
encerra-o num tubo de vidro mantendo a temperatura constante, mede a pressão que o
gás suporta e o volume que ele ocupa. Dir-se-á que temos aí a observação minuciosa e
precisa de certos fenômenos, de certos fatos. Seguramente, diante de Regnault, nas suas
mãos, nas mãos de seus auxiliares, fatos concretos se produzem. É o relato desses fatos
que Regnault consignou para contribuir com o avanço da física? Não. Em um visor
Regnault viu a imagem de uma certa superfície do mercúrio aflorar até um certo sinal.
Foi isto que ele escreveu no relatório de suas experiências? Não. Ele escreveu que o gás
ocupa um volume com um certo valor. Um auxiliar levantou e abaixou a lente de um
catetômetro até que a imagem de um outro nível de mercúrio chegasse a se nivelar com
a linha de uma retícula; ele observou, então, a disposição de certas marcas sobre a régua
e sobre o nônio do catetômetro. É isso que encontramos no relaltório de Regnault? Não.
O que lemos é que a pressão suportada pelo gás tem determinado valor. Um outro
auxiliar viu, num termômetro, o líquido oscilar entre dois sinais determinados. É isso
que ele consignou? Não. Registrou-se que a temperatura do gás havia variado de tal a tal
grau. Ora, o que é o valor do volume ocupado pelo gás, o valor da pressão que ele
suporta, o grau de temperatura ao qual ele é levado? São três objetos concretos? Não.
São três símbolos abstratos que somente a teoria física une aos fatos realmente
observados.
Para formar a primeira dessas abstrações, o valor do volume ocupado pelo gás, e para
fazê-la corresponder ao fato observado, isto é, ao nivelamento do mercúrio a uma certa
marca, é preciso aferir o tubo, isto é, fazer apelo não somente às noções abstratas da
geometria e aritmética, aos princípios abstratos sobre os quais repousam estas ciências,
mas, ainda, à noção abstrata de massa, às hipóteses da mecânica geral e da mecânica
celeste que justificam o emprego da balança na comparação de massas. É necessário
conhecer os pesos específicos do mercúrio à temperatura onde se faz essa aferição e, por
isso, conhecer os pesos específicos a 0º, o que não se pode fazer sem invocar as leis da
Hidrostática. Conhecer a lei da dilatação do mercúrio, que se determina por meio de um
aparelho onde figura uma lente, onde, por conseqüência, certas leis da Ótica são
supostas; de sorte que o conhecimento de uma lista de capítulos da Física precede
necessariamente a formatação dessa idéia abstrata: o volume ocupado pelo gás.
(...)
Assim, quando Regnault faz uma experiência, ele tem fatos diante dos olhos e observa
fenômenos, mas o que nos transmite dessa experiência, não é o relato dos fatos
observados, mas símbolos abstratos que as teorias admitidas lhe permitiram substituir
aos dados concretos que ele tinha recolhido (1906, p 219-221).

Esse exemplo é suficientemente claro para demonstrar, em primeiro lugar, que


a experiência física não pode ser reduzida a uma simples constatação de fatos. Duhem
afirma que um experimento comporta duas partes: a primeira é a observação de
determinados fatos, para a qual basta estar atento com os sentidos, o que pode ser feito
por qualquer pessoa. No exemplo da compressibilidade dos gases Regnault utiliza um
ajudante para observar e registrar aquilo que ele quer que seja observado e registrado. A
segunda parte é a interpretação desses fatos observados. Essa interpretação só é possível
ser feita por quem conhece as teorias e souber aplicá-las, isto é, por um físico. Os fatos
existem e são observados pelo cientista. Mas esta não é uma observação neutra,
destituída de pré-conceitos. Ao contrário, para que ocorra na observação a interpretação
ela necessariamente estará impregnada de pressupostos teóricos, que serão os
decorrentes das teorias admitidas pelo pesquisador. Para que se produza a interpretação,
a teoria conduz a observação. A teoria é que permite construir instrumentos para serem
utilizados na observação e é através dela que os sinais e as marcas assinaladas pelos
instrumentos são interpretados. É pela teoria que se estabelecem convenções que
funcionam como regras que possibilitam a passagem das manifestações empíricas dos
fatos e fenômenos às suas abstrações conceituais, teóricas e simbólicas.
Duhem distingue, portanto, a observação da interpretação. A observação é a
constatação pura e simples de determinadas características empíricas presentes em
certos fenômenos, produzida pela percepção sensorial com ou sem o uso de
instrumentos; a interpretação é a representação teórica dessas características empíricas,
é a determinação precisa, feita à luz das teorias admitidas, das grandezas que lhes são
atribuídas convencionalmente. É o que acontece no exemplo de Regnault. Para que ele
possa medir o volume do gás e utilizar a balança para a comparação de massas é
necessário que utilize os conceitos abstratos da aritmética e da geometria, às noções
abstratas de massa, aos fundamentos teóricos da mecânica. Para medir a pressão e força
Regnault teve que utilizar as leis matemáticas da hidrostática, a lei da compressibilidade
do mercúrio e a teoria da elasticidade. A medição do valor suportado pelo gás pressupõe
o conhecimento de conceitos mais complexos, como de pressão e de força de ligação e o
uso da fórmula de Laplace sobre o nível barométrico que, por sua vez, provém da
hidrostática. Regnault, à luz das teorias que ele admitia, transformou as manifestações
empíricas e concretas que observava em dados abstratos e em grandezas abstratas e
simbólicas, representativos da realidade observada. As abstrações criadas por Regnault
não foram apenas o volume, a pressão e a temperatura, mas também o valor da pressão e
o grau da temperatura.
Por isso afirma Duhem:

Uma experiência de Física é a observação precisa de um grupo de fenômenos


acompanhada da INTERPRETAÇÃO desses fenômenos; esta interpretação substitui os
dados concretos realmente recolhidos pela observação por representações abstratas e
simbólicas que lhes correspondam em virtude das teorias admitidas pelo observador
(1906, p. 222).

Em segundo lugar, o resultado de um experimento, como se constata na


afirmação anterior, não é um mero relato dos fenômenos, mas um juízo que utiliza
conceitos abstratos e simbólicos5 interligados entre si e que só adquirem significação
semântica à luz das teorias que os sustentam. Nenhum termo que se encontra em um
enunciado que apresenta as conclusões de um experimento expressa diretamente um
objeto visível e tangível, pois são abstratos e simbólicos e o seu "sentido não está ligado
à realidade concreta que por intermediações teóricas longas e complicadas" (1906, p.
223).
No segundo exemplo que Duhem utiliza para criticar o método newtoniano,
transcreve as afirmações de Ampère sobre o método:

Newton esteve longe de pensar que a lei da gravidade universal pudesse


ser inventada partindo de considerações abstratas mais ou menos
plausíveis. Ele estabeleceu que ela devia ser deduzida dos fatos

5
Duhem chama a atenção que os termos abstratos e simbólicos não podem ser confundidos com termos
técnicos e convencionais construídos para ter um sentido específico, tal como propunha Poincaré (1970).
O pesquisador, quando cria um conceito, não o faz para ter uma linguagem clara e concisa para poder
exprimir os fatos concretos, mas o faz fundamentado em e admitindo a existência de uma teoria física. O
pesquisador cria um conceito simbólico que, fundamentado em uma teoria, representa um fato ou uma
característica desse fato.
observados, ou melhor, de suas leis empíricas que, como aquelas de
Kepler, nada mais são do que resultados generalizados de um grande
número de fatos. Observar primeiramente os fatos, modificando suas
circunstâncias tanto quanto possível, acompanhar seu primeiro trabalho
de medições precisas para se deduzir as leis gerais, unicamente
fundamentadas na experiência, e deduzir dessas leis, independentemente
de toda a hipótese sobre a natureza das forças que produzem os
fenômenos, o valor matemático dessas forças, isto é, a fórmula que as
representa, tal é o caminho que Newton seguiu (apud DUHEM, 1906, p.
298).

Duhem afirma que não é necessário ser um crítico perspicaz para perceber que
as teorias de Ampère sobre a eletrodinâmica não foram obtidas seguindo o método que
ele pregava. Para Duhem, “Os fatos da experiência, tomados em sua brutalidade nativa,
não costumam servir ao raciocínio matemático. Para alimentar esse raciocínio, eles
devem ser transformados e colocados sob a forma simbólica. Ampère os submeteu a
esta transformação” (1906, p. 298). Ampère utilizou diversas noções abstratas que
retirou das teorias da física, além de criar hipóteses, como a que imaginava a corrente
elétrica composta por elementos infinitamente pequenos. Isso demonstra que o físico
tem a necessidade de traduzir simbolicamente os fatos da experiência antes de começar
a raciocinar com eles. E de onde retirou Ampère suas idéias? Para Duhem, apenas a
intuição tem a capacidade para decifrar a escolha da forma que deve ter uma teoria:

Muito ao contrário, portanto, de que a teoria eletrodinâmica de Ampere tenha sido


inteiramente deduzida da experiência: a experiência não teve que uma parte muito fraca
em sua formação. Ela foi simplesmente a ocasião que despertou a intuição do gênio do
físico, e essa intuição fez o resto (1906, p. 302).

E é esta elaboração intelectual complexa que se intercala entre os fatos


constatados pelo pesquisador em um experimento e a interpretação e as conclusões
expressas por conceitos abstratos e simbólicos. Em L’Évolution de la mécanique (1903,
p. 209-210), Duhem afirma que há três domínios distintos que estão presentes ao
mesmo tempo no espírito do físico: (a) o domínio dos fatos da experiência, constatados
pelos sentidos; (b) o domínio da teoria, como um conjunto de grandezas e de símbolos
cujas definições se encontram inseridas num sistema de proposições e de fórmulas
logicamente deduzidas de alguns postulados fundamentais, cujo objetivo é o de fornecer
um esquema, uma descrição simbólica do domínio dos fatos da experiência e (c) o
domínio dos instrumentos e dos procedimentos de mensuração, que funcionam como
uma espécie de “chave” que possibilita a tradução das fórmulas teóricas em fatos da
experiência, dos signos ao objeto significado, do símbolo à realidade. Isso justifica
porque esse símbolo abstrato não pode ser uma representação totalmente adequada do
fato concreto e porque o fato concreto não pode ser a exata realização do símbolo
abstrato6. Entre um símbolo abstrato e um fato não há eqüivalência, mas
correspondência, que é, por sua vez, indeterminada pela linguagem teórica. Para um
mesmo fato podem ser atribuídos diferentes enunciados simbólicos, bem como para um
mesmo enunciado diferentes fatos.
A terceira idéia se refere ao uso dos instrumentos. Não é apenas no resultado
final que se constata a presença das teorias. A criação e o uso dos instrumentos também
estão fundamentados nas teorias. Duhem afirma que, quando um físico desenvolve um
experimento, ele trabalha com duas representações bem distintas do instrumento: uma é
a imagem do instrumento que ele manipula concretamente; a outra é o esquema teórico
desse instrumento, elaborado por meio dos símbolos fornecidos pelas teorias. O físico
vê e observa com o primeiro instrumento, mas é com o segundo, o instrumento ideal e
simbólico, com que ele raciocina utilizando as fórmulas da física. Em função desse
terceiro aspecto, Duhem destaca que, à medida que há o progresso na física, os juízos
abstratos se aproximam mais dos resultados experimentais, não apenas por causa do
aperfeiçoamento dos instrumentos, mas, principalmente, em função de regras mais
satisfatórias que são fornecidas pelas teorias para estabelecer a correspondência dos
fatos com as idéias esquemáticas que servem para representá-los. Isso possibilita
desenvolver um sistema experimental apto a proporcionar correções constantes nos

6
Em L’évolution de la mécanique (1903) Duhem afirma: “Os símbolos matemáticos que a teoria utiliza
não têm sentido a não ser em condições bem determinadas. Definir esses símbolos, é enumerar essas
condições. A teoria não fará jamais uso desses signos fora dessas condições” (p. 210). Mais adiante, a
respeito da identidade entre a teoria e os fatos, diz: “Portanto, logo que no andamento das deduções pelas
quais a teoria se desenvolve, submete-se as grandezas utilizadas pela teoria a operações algébricas e a
cálculos, não se deve perguntar se essas operações e se esses cálculos têm um sentido físico. Falando de
forma mais clara, não se deve questionar se o emprego dos procedimentos de medida permitem traduzi-
los em linguagem concreta e se, assim traduzidos, correspondem aos fatos reais ou possíveis. Colocar-se
semelhante questão será conceber uma noção completamente errônea da estrutura de uma teoria física”
(p. 212).
instrumentos teóricos e concretos e nas interpretações. À medida, pois, em que as
teorias e as matemáticas, ao longo de seu desenvolvimento histórico, fornecerem regras
para representar os fatos de forma cada vez mais satisfatória, ocorrerão correções que
proporcionarão um nível cada vez maior de precisão experimental na aproximação dos
resultados. O progresso da ciência física ocorre pelas reformulações e aperfeiçoamentos
que se efetuam ao longo da história em suas teorias que, por sua vez, permitem criar e
corrigir instrumentos teóricos e concretos que são utilizados na observação dos fatos. É
óbvia que seria absurda e impossível essa correção se a experiência física fosse apenas a
simples constatação de fatos, produto de uma observação isenta de uma prévia
impregnação teórica.
Assim, o resultado de uma experiência que o físico apresenta não é o relato dos
fatos observados, mas sim a sua interpretação simbólica, um juízo abstrato e ideal,
elaborado à luz das teorias que ele aceita. Para poder compreendê-la é necessário ver
que teorias fundamentam essa interpretação. Como compreenderíamos, por exemplo,
onda eletromagnética, como a mediríamos e como interpretaríamos os sinais dos
instrumentos de medida, que confiança estabeleceríamos para esses instrumentos, sem o
conhecimento da teoria do eletromagnetismo? Os conceitos que a ciência utiliza não são
vinculados ao diretamente observado. São produto de uma elaboração abstrata e é
apenas dentro do seu quadro de referência teórica, condicionado historicamente, que se
pode estabelecer a correspondência que pode haver entre determinados conceitos e
determinadas manifestações da realidade. Diferentes teorias produzem diferentes
instrumentos, diferentes observações e diferentes interpretações. Por isso, para Duhem,
“(...) uma experiência física não é somente a constatação de um conjunto de fatos, mas
ainda a tradução desses fatos em uma linguagem simbólica, por meio de regras tomadas
emprestadas das teorias físicas” (1906, p. 236).
Aqui está a diferença fundamental do enfoque duhemiano e do indutivista. Para
os indutivistas os conceitos, que contêm imagens conceituais abstratas, são decorrentes
das imagens sensoriais empíricas provenientes dos fatos e que foram, pelos canais da
percepção sensorial, impressas no intelecto, tal qual um espelho que reflete as imagens
sensoriais de um objeto que está à sua frente. Ao contrário dos empiristas, Duhem
trabalha com a noção de construto teórico. A física, enquanto ciência, se diferencia do
senso comum. Os conceitos com os quais a física trabalha são elaborações teóricas,
construídas aprioristicamente de forma abstrata e simbólica, com o intuito de
representar determinadas manifestações empíricas. Para Duhem, o físico elabora as
ferramentas conceituais e operacionais para efetuar essa passagem das propriedades
empíricas percebidas pelos sentidos para os conceitos abstratos e simbólicos com os
quais trabalha a nível teórico. Afirma Duhem:

O resultado das operações às quais se dedica um físico experimental não é de nenhum


modo a constatação de um grupo de fatos concretos; é o enunciado de um julgamento
unindo entre eles certas noções abstratas, simbólicas, em que somente as teorias
estabelecem a correspondência com os fatos realmente observados (1906, p. 223).

Essas afirmações invertem a base epistemológica do indutivismo, que afirma que


os conceitos, as hipóteses e as teorias são derivados de observações neutras e isentas de
preconceitos teóricos. Para Duhem, na física, a observação só é possível se estiver
impregnada de conhecimento teórico. Não é a teoria que é um produto resultante da
observação, mas a observação que é orientada pela teoria. O experimento para Duhem
não é apenas observação, tal qual acontece no senso comum, mas é a observação
acompanhada de interpretação. E para que ocorra essa interpretação é necessário
conhecimento aprofundado das teorias. Isso significa afirmar que o físico deve ter
elaborado as teorias antes da observação, com suas representações teóricas já
produzidas e desenvolvidas, trabalhadas como antecipações mentais que conduzem a
observação e que servem de referência para a interpretação. As hipóteses, os conceitos
que as compõem e a tradução desses conceitos do nível teórico para o empírico,
necessária para conduzir a observação, estão todos dependentes e condicionados pela
teoria que é admitida ou que foi produzida para esse fim. Mais ainda: sem pressupostos
teóricos é impossível produzir observações, pois observar, em ciência, é interpretar.
As pesquisas de história da ciência revelam a Duhem o quanto é errônea a
interpretação newtoniana e empirista de método científico. No Prefácio do Études sur
Léonard de Vinci (1906), ao falar sobre a continuidade que há na ciência e da
importância de se investigar na história da ciência como as teorias se desenvolvem,
Duhem, após estudar os manuscritos originais de Leonardo da Vinci, relata o processo
que com ele ocorria ao desenvolver as suas investigações, mostrando a importância da
germinação teórica que se produzia na mente do investigador antes da execução de
algum experimento:
Ora, entre os que iniciaram o espírito humano na compreensão de novas verdades, há
um que nos deixou esta descrição minuciosa dos passos de seu pensamento, que redigiu,
por assim dizer, o jornal de viagem das descobertas que fez em sua vida. À medida que
uma proposição nova se oferecia para sua meditação, ele a anotava com uma inteira
sinceridade, sem dissimular qualquer hesitação, qualquer tentativa, qualquer de seus
arrependimentos, pois ele não escrevia para ele mesmo, de sorte que estes preciosos
rascunhos nos permitem seguir, desde os primeiros esboços até o delineamento final e
detalhado, as formas diversas que uma invenção foi avaliada na razão genial de
Leonardo de Vinci. (...) Logo que uma idéia nova nascia no espírito de Leonardo de
Vinci, ela aí não se criava por ela mesma e sem motivos; ela aí era produzida por
alguma circunstância exterior, pela observação de um fenômeno natural, pela conversa
de um homem, [ou] mais comum ainda, pela leitura de um livro. Por outro lado, o
espírito onde vinha tombar esse germe de pensamento não era jamais semelhante a uma
terra rasa e nua; outros pensamentos, vigorosos e urgentes, já o ocupavam. Eles aí
tinham sido implantados pelas lições dos mestres que Leonardo tinha compreendido e,
sobretudo, pelos ensinamentos dos escritos que ele tinha meditado. Para germinar e
crescer, foi necessário que a semente nova viesse se servir dessa vegetação já
desenvolvida ou que lutasse contra ela (p. V – VI).

A questão fundamental, que modifica a visão epistemológica clássica, está no


fato de que transforma a natureza da base experimental, modificando o significado da
teoria e de experimento. A teoria não aparece mais como conseqüência e como uma
simples tradução dos dados experimentais, mas como uma interpretação desses dados,
sob a forma de representação, elaborada antes do teste experimental. O teste
experimental não é a fonte da teoria. Ao contrário, é a teoria que o orienta, que lhe
fornece os conceitos básicos e as definições que são utilizadas para produzir os
instrumentos ideais com seus esquemas simbólicos que permitem não apenas substituir
os dados concretos por enunciados abstratos como também a base para a interpretação
desses dados. No experimento, na visão de Duhem, não se observa para produzir
hipóteses e teorias mas para testar hipóteses e teorias já produzidas antecipadamente.
Para ele o físico deverá ter suas teorias já elaboradas antes de efetuar o confronto com a
experiência, como afirma: “O acordo com o ensinamento da observação não está, como
o exigiria o método newtoniano, na origem da teoria física: é no final que ele tem o seu
lugar ” (1913, p. 109).
A compreensão que Duhem tem de experiência física se sustenta, pois, em
pressupostos epistemológicos opostos aos do indutivismo. Ao passo que o indutivismo,
pressupõe um sujeito passivo perante a realidade, não admitindo que a observação seja
orientada pela teoria, Duhem, ao contrário, pressupõe um sujeito criativo, afirmando
que é a teoria que serve de base para a observação e a interpretação.
É esta diferença básica que há entre os indutivistas e mecanicistas e Duhem: não
se pode confundir a observação tal como é utilizada na maioria das vezes no senso
comum - na experiência vulgar, como a denomina Duhem - e a observação que é feita
por um cientista quando, em um experimento, analisa um determinado fenômeno7. Na
experiência vulgar se estabelece a relação entre dois fatos concretos sem se necessitar
de conhecimento teórico. Num experimento da física a observação está impregnada de
teorias, que se manifestam tanto no uso dos conceitos abstratos e simbólicos, quanto no
uso dos instrumentos que possibilitam a medição e a observação.
De uma experiência física obtém-se como resultado a avaliação de um
enunciado, que foi previamente expresso através de um conjunto de noções abstratas e
simbólicas, que manifesta um julgamento da relação entre os fatos. Essas noções,
contudo, não se reduzem ao produto de um simples convencionalismo técnico8, tal
como o propunha Poincaré9, mas são decorrentes de conceitos teóricos, totalmente
impregnados e dependentes das teorias. O resultado de um experimento é a avaliação de
um enunciado que apresenta uma interpretação teórica da realidade. Para Duhem, a
função do sábio não está limitada em criar uma linguagem clara e concisa para exprimir
os fatos concretos. mas em criar teorias a partir das quais explicita a linguagem. A
criação dessa linguagem pressupõe a criação da teoria (1906, p. 228). Sem teorias os
relatos se tornam sem sentido. A relação de sentido dos símbolos abstratos com os fatos
se dá por uma cadeia de intermediações teóricas longas e complexas. Não há uma
passagem direta dos dados aos conceitos abstratos ou vice-versa. As fórmulas
simbólicas só adquirem sentido dentro de uma teoria. É impossível reconhecer algum
sentido à conclusão do relato de um experimento, sem conhecer as teorias que o seu
autor admite como válidas. Duhem afirma, em Théorie physique:

7
Duhem cita o exemplo da rã que, mesmo tendo a sua cabeça decepada, tenta com uma pata tirar a agulha
que está espetada na outra pata. Segundo ele, não há necessidade de conhecer fisiologia para perceber a
relação de estranheza existente nesse fato.
8
No primeiro período de seus escritos Duhem ainda mantinha uma interpretação convencionalista
conforme já exposto na parte anterior.
9
Para Poincaré (1985) a linguagem matemática e simbólica que representava os conceitos atribuídos às
propriedades dos fenômenos era produto de uma tradução elaborada de forma convencional pelo físico,
desprovida, portanto, de referencial teórico.
Esta verdade salta aos olhos de qualquer um que refletir. Abri qualquer relatório de
Física experimental e lede as conclusões. Essas conclusões não são de modo algum a
exposição pura e simples de certos fenômenos. São enunciados abstratos, aos quais vós
não podeis atribuir nenhum sentido se vós não conheceis as teorias físicas admitidas
pelo autor. Vós aí ledes, por exemplo, que a força eletromotriz de tal pilha a gás
aumenta de tantos volts logo que a pressão aumenta de tantas atmosferas. Que significa
este enunciado? Não se pode lhe atribuir algum sentido sem recorrer às teorias as mais
variadas, como as mais importantes, da Física (1906, p. 223).

A atribuição de uma correspondência de sentido para os fatos, portanto,


contrariando os empiristas e os indutivistas, só é possível com o uso das teorias, que
fornecem os fundamentos teóricos para a construção do significado dos conceitos
abstratos e simbólicos, estabelecendo-lhes a correspondência com as aparências
sensíveis dos fenômenos.
Dessa forma, o elemento essencial, que distingue claramente a experiência física
da experiência vulgar é a interpretação teórica, que está excluída da experiência vulgar.
O físico, para poder observar os fenômenos e lhes atribuir sentido, deve adotar um olhar
interpretativo. O físico não é tão somente um exímio observador. Não trabalha apenas
com a pura observação, com o intelecto livre de qualquer preconceito, tal como
entendiam os indutivistas e empiristas. O físico constrói teorias que funcionam como
verdadeiras armadilhas com as quais capta os fatos. O físico teoriza sobre a realidade e é
essa teorização que lhe permite percebê-la e interpretá-la no decorrer de uma
experiência, utilizando uma elaboração intelectual muito complexa que substitui uma
relação de fatos concretos por um julgamento abstrato e simbólico (1906, p. 230).
Na crítica que Duhem desenvolve à indução, na análise das afirmações de
Ampére a respeito do método newtoniano, afirma:

Lá onde Newton havia falhado, Ampère, por sua vez, e mais rudemente ainda, acaba
tropeçando. É que dois obstáculos inevitáveis tornam impraticáveis ao físico o caminho
puramente indutivo. Em primeiro lugar, nenhuma lei experimental pode servir ao
teórico antes de ter merecido uma interpretação que a transforme em lei simbólica. E
esta interpretação implica adesão a todo um conjunto de teorias. Em segundo lugar,
nenhuma lei experimental é exata. Ela é somente aproximada. Ela é, então, suscetível de
uma infinidade de distintas traduções simbólicas. E por meio de todas essas traduções, o
físico deverá escolher aquela que fornecerá à teoria uma hipótese fecunda, sem que a
experiência guie de modo algum sua escolha (1906, p. 302).
É impossível pretender efetuar a separação entre a teoria e a observação de um
fenômeno físico. Em primeiro lugar, as teorias que o físico constrói lhe fornecem os
conceitos que lhe possibilitam atribuir, através das definições, uma correspondência
com as propriedades mensuráveis dos fatos. Essas definições não são nem uma simples
convenção arbitrária, nem uma definição retirada dos próprios fatos, mas uma
construção totalmente fundamentada em teorias. Não há, pois, entre um símbolo
abstrato e um fato concreto uma inteira paridade. Há apenas uma correspondência: “ ... a
fórmula abstrata e simbólica pela qual um físico exprime os fatos concretos que ele tem
constatado durante uma experiência não pode ser o equivalente exato, a relação fiel
dessas constatações” (1906, p. 228). Não há, portanto, uma adequação de identidade de
natureza entre um fato concreto, percebido pelas suas manifestações empíricas, com
contornos vagos e imprecisos, e um fato teórico, preciso e rigoroso. Esta disparidade é
que permite afirmar que, para um mesmo fato empírico, é possível construir uma
infinidade de fatos teóricos que podem ser incompatíveis entre si, bem como para um
mesmo fato teórico é possível fazer corresponder uma infinidade de fatos práticos
também discordantes entre si. A correspondência que é atribuída, e que permite a
tradução da manifestação empírica para o fato teórico, está atrelada ao fundo teórico
aceito pelo físico que o utiliza. Se mudar o fundo teórico se modificará o respectivo fato
teórico e, conseqüentemente, a representação do fato empírico.
Em segundo lugar, estas mesmas teorias lhe permitem, com o uso dos conceitos
e definições elaborados, construir e usar instrumentos para recolher os dados, mensurá-
los e interpretá-los10. Quanto mais uma ciência progride, mais cresce a importância e a
função da teoria para a elaboração e uso dos instrumentos e a interpretação dos fatos,
utilizando uma tradução simbólica mais abstrata e distante dos fatos11.
Um argumento forte que Duhem apresenta para demonstrar a presença das
teorias nas experiências da física é o que se relaciona com a necessidade das correções

10
Em La théorie physique (1906, p. 231), Duhem afirma: “Será, de fato, impossível usar instrumentos
que se encontram nos laboratórios de Física, se não se substituir os objetos concretos que compõem esses
instrumentos por uma representação abstrata e esquemática que torne possível o raciocínio matemático, se
não se submeter esta cominação de abstrações a deduções e a cálculos que impliquem adesão às teorias”.
11
Duhem cita como exemplo o uso da bússola de tangentes. O seu uso não se reduz à descrição dos fatos
observados, mas a uma avaliação numérica dos símbolos que foram criados pela teoria.
dos erros. As correções se dão graças aos aperfeiçoamentos produzidos em dois níveis:
no nível teórico, através de teorias que fornecem regras mais satisfatórias para construir
a apreensão dos fatos e para aumentar a precisão da interpretação teórica da experiência;
no nível da observação, com a construção de instrumentos mais precisos para a
observação e medição.
Duhem afirma que, quando um físico faz uma experiência, tem duas
representações simultâneas do instrumento que utiliza: uma é a imagem do instrumento
concreto que está manipulando; a outra é a do instrumento ideal, que é um tipo
esquemático e simbólico sobre o qual aplica as leis e fórmulas da física teórica. É com
esse último que ele raciocina, estabelecendo uma relação indissociável entre teorias e
instrumentos de observação12. O físico, quando entra em um laboratório e manipula o
instrumento concreto, usa representações abstratas e simbólicas que tornam possível o
raciocínio matemático, representações essas que implicam numa total adesão às teorias.
Duhem mostra que a correção ocorre essencialmente pela operação que designa como se
efetua a passagem de um certo instrumento esquemático para outro que simboliza
melhor o instrumento concreto (1906, p. 237). O aperfeiçoamento do instrumento
concreto depende e está diretamente relacionado com o aperfeiçoamento do instrumento
ideal e teórico13. As correções ocorrem não porque o instrumento possibilita ao físico
perceber com maior acuidade as manifestações dos fatos, mas porque ele aperfeiçoou o
instrumento ideal, esquemático e que utiliza as fórmulas da física, que simboliza melhor
o instrumento concreto. A reelaboração teórica permite que cresça a aproximação dos
dados experimentais e que se corrijam as próprias teorias. A falha em não perceber um
erro sistemático, por exemplo, faz com que o físico omita uma correção que poderia ser

12
Duhem apresenta como exemplo do instrumento real, manipulado pelo físico, e do instrumento ideal e
simbólico sobre o qual ele raciocina o do manômetro utilizado por Regnault. Segundo Duhem, apesar de
os dois instrumentos serem essencialmente distintos, estão indissoluvelmente ligados um ao outro. Um
constitui-se de tubos de vidro bem interligados cheios de um metal líquido e forte, o mercúrio; o outro é
uma coluna de um ente racional chamado de fluído perfeito dotado em cada ponto de uma certa densidade
e de uma certa temperatura e definido por uma certa equação da compressibilidade e da dilatação. Apesar
de o ajudante de Regnault manipular o primeiro, é com o segundo que Regnault trabalha as leis da
hidrostática (1906, p. 236, 237)
13
Duhem descreve a correção que Regnault faz de seu primeiro manômetro ideal: o primeiro, é formado
por um fluído não compressível, supondo a mesma temperatura em todas as partes e com a mesma
pressão atmosférica em qualquer ponto, independente da altura. Esse esquema apresenta uma imprecisão
muito grande, pois tem uma diferença acentuada entre ele e a realidade. O novo manômetro ideal,
contudo, apesar de mais complexo representa melhor o manômetro concreto e aumenta a precisão da
experiência: compõe esse novo manômetro com um fluído que pode ser comprimido, admite que a
temperatura varia de um ponto a outro e que a pressão barométrica se modifica quando se eleva a
atmosfera.
feita e que poderia aumentar a precisão de um experimento e o avanço do conhecimento
(1906, p.238). Por isso, em uma experiência em física “... resulta, com efeito, que o
físico compare sem cessar os dois instrumentos entre si, o instrumento real que ele
manipula, e o instrumento ideal e simbólico sobre o qual ele raciocina” (1906, p. 236.
Estabelecendo uma das diferenças fundamentais que o distingue dos indutivistas,
Duhem mostra como o físico, em uma experiência, trabalha com os dois instrumentos, e
não apenas com o concreto como eles supunham. Para os indutivistas o uso de
instrumentos em uma experiência servia exclusivamente para a constatação dos fatos,
para aumentar a precisão e o poder da percepção sensorial para perceber melhor os
detalhes do fenômeno ou objeto analisado, não identificando e não reconhecendo o
valor e a função das teorias presentes no instrumento teórico que determina o
instrumento concreto. Porém, para Duhem, se uma experiência em física fosse apenas a
simples constatação de fatos feita por instrumentos concretos, seriam absurdas e
impossíveis as correções. As correções acontecem porque a experiência em física é
previamente “iluminada” pelo conhecimento teórico e expressa a tradução dos fatos em
uma linguagem simbólica por meio de regras que são tiradas das teorias. O progresso
experimental é acompanhado por um progresso teórico. O aperfeiçoamento das teorias e
dos instrumentos permite aperfeiçoar a precisão experimental e a interpretação teórica
das experiências. Por isso, “o que o físico enuncia como o resultado de uma experiência,
não é a relação dos fatos constatados, [mas] é a interpretação desses fatos, é sua
transposição no mundo ideal, abstrato, simbólico, criado pelas teorias que ele vê como
estabelecidas” (1906, p. 240).
Sem conhecer as teorias que foram utilizadas por um cientista, os pressupostos
teóricos sobre os quais fundamentou suas experiências, é impossível avaliar o que ele
afirma, verificar que sentido ele atribuiu a seus enunciados e discutir o mérito de seu
experimento e a veracidade ou falsidade de seus resultados. É falsa a idéia da existência
de um testemunho irrecusável dos fatos. A discussão científica não se sustenta nesse
pseudo testemunho. A avaliação das provas empíricas depende do referencial teórico
aceito pelo pesquisador e utilizado para a sua interpretação. Não há concordâncias ou
contradições entre as observações: “A contradição não está na realidade, sempre de
acordo com ela mesma, [mas] está entre as teorias pelas quais cada uma das duas
defensoras exprime esta realidade” (1906, p. 243). A avaliação, portanto, dos resultados
de uma teoria se torna uma operação complexa. Duhem deixa claro que todo o processo
de investigação tem uma relação direta com as teorias que servem de base14. A teoria
está presente tanto na fundamentação das hipóteses, quanto na construção dos
instrumentos de observação e na interpretação dos dados observados, estipulando as
definições e as regras que conduzem todo o processo de investigação. Para poder se
julgar o mérito de um resultado é necessário conhecer essas teorias. Na realidade, para
Duhem, não se avaliam resultados: avalia-se o acordo entre determinados resultados
com uma determinada teoria, ou um determinado conjunto de teorias, a pertinência ou
não do referencial teórico que foi produzido, a sua eficácia e utilidade enquanto
instrumento mais ou menos adequado de descrição e de representação da realidade. Diz
Duhem: “O enunciado do resultado de uma experiência implica, em geral, um ato de fé
em todo um conjunto de teorias” (1906, p. 278).
Os experimentos, incluindo também a fase dos testes experimentais que
confronta as hipóteses com os fatos, são, portanto, produto de um processo de
elaborações teóricas altamente desenvolvidas, no qual as teorias desempenham um
papel fundamental. Os resultados de um experimento, produto da avaliação do
confronto das conseqüências experimentalmente verificáveis de uma teoria com a
experiência, são, por isso, conseqüências de um processo que foi antecipadamente
planejado a partir do sistema teórico previamente admitido e que, por isso, inclui a
própria teoria que está sob teste. Experimento e teoria são, para Duhem, inseparáveis.
Duhem, por isso, não fala em verdade. Tomou consciência e explicitou o grau
da dependência e da inseparabilidade que há entre teoria e experimento, nos seus
elementos constituintes de elaboração de hipóteses, conceitos simbólicos, instrumentos,
observação e interpretação. Percebe que o pesquisador, ao executar um experimento
está preso, limitado, enclausurado na própria armadilha teórica que criou, sem poder
dela se distanciar para encontrar uma base neutra e segura que sirva de ponto de

14
No capítulo entitulado La théorie physique et l’expérience Duhem afirma: “Aqui, com efeito, não se
discute mais a questão de deixar à porta do laboratório a teoria que se quer testar, pois, sem ela, não é
possível regular um só instrumento, interpretar uma só leitura. Nós já o temos visto, ao espírito do físico
que experimenta, dois aparelhos estão constantemente presentes: um é o aparelho concreto, em vidro, em
metal, que ele manipula; o outro é o aparelho esquemático, abstrato e teórico que substitui o aparelho
concreto e sobre o qual o físico raciocina. Estas duas idéias estão indissociavelmente ligadas em sua
inteligência. Cada uma delas chama necessariamente a outra. O físico não pode mais conceber o aparelho
concreto sem lhe associar a noção de aparelho esquemático [da mesma forma] que um francês não pode
conceber uma idéia sem lhe associar o termo francês que ele exprime. Esta impossibilidade radical, que
impede de dissociar as teorias da Física dos procedimentos experimentais próprios para controlar essas
mesmas teorias, complica singularmente esse controle e nos obriga a examinar minuciosamente o seu
sentido lógico” (1906, p. 277).
referência absoluta do qual emanem princípios ou critérios universais para avaliar,
julgar e decidir sobre a verdade ou falsidade dessas teorias. Para Duhem, a história da
física desmente o indutivismo e o mecanicismo empirista. Ele constata, no
desenvolvimento histórico da física, que ela é uma tentativa constante de um processo
de correção de teorias, de reelaboração contínua de seus quadros teóricos de
representação e de interpretação e de reformulação dos seus instrumentos.
Duhem demonstra que o físico não tem onde se fundamentar a não ser nas
próprias teorias que foram criadas e na utilização de um critério, necessário mas não
suficiente para sustentar as garantias da certeza ou da verdade na ciência: a coerência de
todo o processo experimental, incluindo suas hipóteses, seus instrumentos, a
consistência das regras estabelecidas para a interpretação dos dados empíricos, com
essas teorias. Mesmo assim, não é possível aceitar como verdadeiros os resultados de
um experimento, porque, por mais precisas e determinadas que estejam as proposições
abstratas e matemáticas e por mais ajustados que estejam os instrumentos concretos a
esses instrumentos ideais teóricos, mesmo assim, “aos mesmos fatos podem
corresponder uma infinidade de proposições diferentes, às mesmas medidas uma
infinidade de avaliações expressas por números diferentes (1906, p 245). E acrescenta:
“O resultado de uma experiência Física não tem uma certeza da mesma ordem que um
fato constatado pelos métodos não científicos, pela simples constatação ou pelo simples
toque de um homem são de corpo e de espírito” (1906, p. 246). Pode-se avaliar e
discutir o grau de aproximação de uma experiência descrita pelo pesquisador, que
depende do grau de indeterminação das proposições matemáticas que são utilizadas.
Essa avaliação deve levar em conta dois fatores: a acuidade do senso do observador e a
presença de erros sistemáticos que não puderam ser corrigidos. No entanto, esse
processo, como o afirma Duhem, é extremamente complexo e difícil de ser alcançado
por uma ordem inteiramente lógica. Na realidade, a avaliação de um resultado de uma
experiência em física “permanece sempre subordinado à confiança que inspira todo um
conjunto de teorias” (1906, p. 246).
Percebe-se, aqui, como Duhem modifica também a orientação indutivista
utilizada nos testes experimentais, que se sustentava em uma direção confirmabilista,
isto é, na busca de provas positivas e que manifestavam seu acordo com as
conseqüências da teoria testada. A orientação de Duhem está no sentido de um
experimento refutador, isto é, que procura por em evidência provas e argumentos que
possam se transformar nas razões que justifiquem a rejeição da teoria. Duhem, contudo,
apesar de assumir essa direção refutadora, ou de falseabilidade, como a denomina
posteriormente Popper15, chama atenção às limitações metodológicas do uso da busca
da contradição experimental que conduza à condenação irremediável de uma teoria. O
fato de as teorias impregnarem todo o processo de elaboração, execução e interpretação
de um experimento, limita epistemologicamente o alcance lógico do processo de
refutação, pois o subordina irremediavelmente ao conjunto teórico escolhido e utilizado
para sustentar essa interpretação. Duhem demonstra que as conclusões a que chega um
pesquisador, após submeter uma teoria a um teste experimental, não dependem
exclusivamente dos dados empíricos obtidos em um experimento, mas também das
teorias que ele utiliza para interpretar esses dados.
Destaca-se aqui, o rompimento com a postura indutivista e positivista que
acreditava na possibilidade da confirmação experimental. O indutivismo, ao negar a
presença das teorias como condutoras do experimento, tanto no contexto de descoberta
quanto no de justificação ou de confirmação dos resultados, excluía o elemento
problematizador da verificação experimental, pois eliminava a presença dos elementos
teóricos determinantes e ao mesmo tempo filtrantes da experiência. O contato do
investigador com os fatos se processava, segundo os indutivistas, de forma direta, sem a
intermediação das teorias. A não problematização do acesso ao real, característica do
indutivismo e do empirismo, admite que há um canal direto de recepção das imagens
empíricas entre o sujeito conhecedor e o objeto conhecido.
Duhem, ao enfatizar a dependência que todo o processo experimental tem para
com as teorias, questiona todo o modelo da ciência física expressa na visão dogmática
do paradigma newtoniano, proporcionando a abertura para a busca de outros critérios
que rompem com os da racionalidade positivista. Esses critérios Duhem os
fundamentará na historicidade, que passarei a analisar no próximo capítulo.

15
Conforme Popper (1975), em A lógica da pesquisa científica. Esses elementos apontados por Duhem
são a base da argumentação central utilizada também por Lakatos (...) quando critica o falseacionismo
ingênuo de Popper. Popper fundamenta o seu critério que distingue a ciência da não-ciência, a
falseabilidade, no modo tollendo tollens, que admite como correto o raciocínio que repassa a falsidade do
particular para o universal. Uma evidência de prova falseadora seria suficiente para demonstrar a
falsidade de uma hipótese. No entanto, o que Popper não problematiza é essa dependência insolúvel,
apontada por Duhem, que há entre teoria-observação-interpretação que torna impossível a refutação
definitiva e conclusiva de uma hipótese ou teoria, tendo como referência apenas os dados obtidos no
processo experimental.

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