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Osvaldo Emery
Editor do site
Ela desapareceu há muito tempo, mas em 1972 a 'Janela' ainda estava lá, espiando
através de cataratas leitosas de poeira, 10 metros acima do piso do velho Estúdio 7
da Samuel Goldwyn. Eu nunca teria reparado nela se Richard não tivesse parado de
repente enquanto pegávamos um atalho de volta do almoço.
"Isso! era quando o Som! era Rei!" disse ele gesticulando dramaticamente na
escuridão do Estúdio 7.
Demorou um momento, mas eu finalmente vi para o que ele apontava: algo junto
ao teto parecido com a janela de observação de um dirigível de 1930, embicado
para o estúdio.
Em 1972, 45 anos após sua alegre coroação, o Rei Som parecia estar vivendo em
circunstâncias consideravelmente mais modestas. O Homem Atrás da Janela já não
supervisionava a cena de cima. Em lugar disso, o técnico de captação de som ficava
geralmente enfiado em algum canto escuro com seu carrinho de equipamentos. A
simples idéia dele pedir "Corta!" era inconcebível: não apenas ninguém no estúdio
temia sua opinião, mas ninguém o consultava e ficavam freqüentemente
impacientes quando ele dava um palpite. Quarenta e cinco anos pareciam ter
transformado [o som] de rei em lacaio.
Será que a nostalgia de Richard era sem sentido? O que teria acontecido com a
Janela? E será que as desgraças do som eram tantas como pareciam ser?
Existe algo sobre o abraço fluido e abrangente do som que faz com que seja mais
adequado referir-se a ele como uma rainha ao invés de um rei. Mas será que ela
["A" som] foi uma rainha para quem a coroa era um peso, e que acabou preferindo
vestir uma touca de criada e se movimentar incógnita pelos corredores dos fundos
do palácio, cumprindo suas tarefas no anonimato?
Assim, todos começamos como seres ouvintes - nosso batismo de quatro meses e
meio em um mar de sons deve ter um efeito profundo e duradouro em nós - mas a
partir do nascimento a audição parece recuar para o segundo plano de nossa
consciência e passa a funcionar mais como um acompanhamento para o que vemos.
Porque isso acontece dessa forma, ao invés do contrário, é um mistério: por que o
primeiro dos nossos sentidos a ser ativado não mantêm um domínio vitalício sobre
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todos os outros?
O que de fato deu ao som seu breve reinado sobre a imagem do filme foi uma
inflexibilidade temporária e singular. Nos primeiros anos após a utilização comercial
do som nos filmes, em 1926, tudo tinha que ser registrado simultaneamente -
música, diálogo, efeitos sonoros - e uma vez registrados, nada podia ser mudado. A
velha piada de Mel Brooks sobre uma panorâmica da câmera para a esquerda
revelando uma orquestra no meio do deserto não estava distante da realidade.
O poder em um filme tende a girar em torno daqueles que controlam algum tipo de
gargalo. Estrelas têm esse tipo de poder, figurantes não; o diretor de fotografia
geralmente tem mais poder do que o designer de produção. O som do filme, em
seus primeiros anos, era um desses gargalos e, assim, o Homem Atrás da Janela
manteve o controle, temporariamente, com um poder imperial que nunca mais
possuiu depois.
De fato, a animação - dos tipos de "Steamboat Willie" e "King Kong" - teve um papel
mais significativo na evolução do uso criativo do som do que tem sido reconhecido.
No início da era do som era tão espantoso ouvir alguém falar e se mover e cantar e
atirar em outra pessoa em sincronia que quase qualquer som era mais do que
aceitável. Mas com personagens animados isso não funciona: elas são criaturas
bidimensionais que não fazem nenhum som a menos que a ilusão seja criada
através de som fora do contexto: som de uma realidade transposta para outra. O
exemplo mais famoso é a fina voz em falsete que o próprio Walt Disney deu a
Mickey Mouse, mas o segundo lugar em importância é o rugido que Murray Spivack
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deu a King Kong.
Existe uma relação simbiótica entre as técnicas que usamos para representar o
mundo e a visão que tentamos representar com essas mesmas técnicas: uma
mudança em uma resulta, inevitavelmente, em uma mudança na outra. A súbita
disponibilidade de pigmentos em tubos de metal flexível em meados do século 19,
por exemplo, possibilitou aos impressionistas pintar rapidamente ao ar livre com
luzes fugazes. E, face a face com a natureza, eles se deram conta de que existiam
sombras com muitas outras cores além dos tons de cinza, que era forma como os
quadros das gerações prévias, que pintavam no interior, haviam nos ensinado a ver.
Nem Richard Portman, nem eu, suspeitávamos, naquela tarde em que ele me
mostrou a Janela, que o sucesso recorde de "O Poderoso Chefão" alguns meses
mais tarde iria dar início a um renascimento no destino da indústria cinematográfica
em geral e do som em particular.
Três anos antes, em 1969, eu fora contratado para criar os efeitos sonoros e [fazer
a] mixagem de "The Rain People", um filme escrito, dirigido e produzido por Francis
Ford Coppola. Ele acabara de ser formar na escola de cinema, assim como eu, e
estávamos ansiosos para fazer profissionalmente filmes da mesma forma como
havíamos feito na escola. Francis achava que o som em seu filme anterior ("Finian's
Rainbow") havia se afundado na burocracia e na inércia técnica dos estúdios e não
queria repetir a experiência.
Ele também achava que se permanecesse em Los Angeles não seria capaz de
produzir os filmes baratos e independentes que desejava. Assim, ele e um amigo do
curso de cinema, George Lucas, e eu, e nossas famílias, nos mudamos para São
Francisco para fundar a American Zoetrope. O primeiro item da agenda foi a
mixagem de "The Rain People" no porão inacabado de um velho depósito na Folsom
Street.
Dez anos antes, isso seria impensável, mas a invenção do transistor havia mudado
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as coisas técnica e economicamente em uma tal medida que pareceu natural para
Francis, então com 35 anos, ir à Alemanha e comprar - praticamente na prateleira -
equipamentos de mixagem e edição da K.E.M. em Hamburgo e contratar a mim,
então com 26 anos, para usá-los.
Sentíamos que agora não havia razão - dados os equipamentos que se tornavam
disponíveis em 1968 - para que a pessoa que criasse a trilha sonora também não
fosse capaz de mixá-la, e que o diretor fosse capaz de falar com uma pessoa, o
sound designer, sobre o som filme da mesma forma que ele podia falar com diretor
de arte sobre a aparência do filme.
De qualquer forma, foi com esse background que o sucesso de "O Poderoso Chefão"
levou diretamente à realização de duas produções da Zoetrope: "American Graffiti",
por George Lucas, e "Conversation", de Francis Coppola - ambos com trilhas sonoras
muito diferentes, mas igualmente aventureiras, nas quais formos capazes de colocar
nossas idéias em prática.
"Tubarão", de Steven Spielberg logo suplantou "O Poderoso Chefão" nas bilheterias
e introduziu ao mundo a música de John Williams. O sucesso de "American Graffiti"
levou à "Guerra na Estrelas" (com música do mesmo John Williams), que, por sua
vez, suplantou "Tubarão". O formato de exibição Dolby 70mm de "Guerra nas
Estrelas" reviveu e reinventou a trilha sonora magnética com seis pistas e ajudou a
Dolby a obter uma posição estratégica crucial [nas áreas] de pós-produção e
exibição cinematográficas. O sucesso dos dois filmes de "O Poderoso Chefão"
possibilitaria a Francis fazer "Apocalypse Now", que abriu novos caminhos, no final
dos anos 1970, para o que se tornou agora o formato padrão do som para cinema:
três canais de som atrás da tela, [canais] ambientes esquerdo e direito atrás do
público e reforço das baixas freqüências.
A Janela se foi há muito tempo, e não retornará, mas o poder temporal autocrático
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que desapareceu com ela foi recompensado uma centena - um milhar - de vezes em
termos de poder criativo: a possibilidade de se reassociar livremente imagem e som
em diferentes contextos e combinações.
Em comparação, com os filmes parece que "está tudo lá" (não está, mas parece que
está), e, assim, a responsabilidade dos cineastas é achar nessa incompletude
formas que evitem que isso aconteça. Nesse sentido, o uso metafórico do som é
uma das formas mais proveitosas, flexíveis e baratas: escolhendo cuidadosamente o
que eliminar, e depois então adicionando sons que à primeira vista divirjam com a
imagem que lhe acompanha, o cineasta pode abrir um vácuo perceptivo para o qual
a mente do espectador deve, inevitavelmente se precipitar.
Cada reassociação bem sucedida é como uma espécie de metáfora, e cada metáfora
é vista momentaneamente como um erro, mas depois, subitamente, como uma
verdade mais profunda entre a coisa mencionada e nosso relacionamento com ela.
Quanto maior o intervalo entre a "coisa" e sua "menção", maior a verdade potencial.
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filme produz uma "dimensionalidade" que a mente projeta de volta na imagem como
se ele tivesse vindo da imagem desde o início. O resultado é que, na realidade,
vemos na tela algo que existe apenas em nossa mente e é, em seus mais finos
detalhes, única para cada um dos espectadores. Nós não vemos e ouvimos um
filme, nós o vemos/ouvimos.
Aquele som de porta estava associado a uma imagem específica, e, dessa forma,
era "fundida" pelo público muito rapidamente. No entanto, os sons que não se
relacionam às imagens de uma forma direta funcionam em um nível ainda mais alto
de dimensionalidade, e levam mais tempo para serem resolvidas. O chiado metálico
estridente e penetrante imediatamente [que ocorre] antes de Michael Corleone
matar Solozzo e McCluskey em um restaurante em "O Poderoso Chefão" não está
vinculado a nada que se veja na tela e, assim, o público é levado a imaginar, pelo
menos momentaneamente, se não apenas subconscientemente, "O que é isso?" O
chiado vem de um trem fazendo uma curva fechada, e assim ele vem
presumidamente de algum lugar na vizinhança (a cena se passa no Bronx).
Mas, exatamente porque estar tão separado da imagem, esse chiado metálico
trabalha como uma pista para o estado mental de Michael naquele momento - o
momento crítico antes dele cometer seu primeiro assassinato e sua vida tomar um
outro rumo para sempre. É ainda mais eficiente porque a face de Michael se mostra
tão calma e o som é tocado tão anormalmente alto. Essa tensão crescente entre o
que vemos e o que ouvimos é finalizada abruptamente com os disparos de pistola
que matam Solozzo e McCluskey: a distância entre o que vemos e o que ouvimos se
desmorona subitamente no momento em que o destino de Michael é traçado.
Esse momento é espelhado ao inverso no final de "O Poderoso Chefão III". Ao invés
de uma face calma na tela, vemos uma face gritando em silêncio. Quando Michael
se dá conta de que sua filha Mary foi baleada, ele tenta gritar várias vezes - mas
não sai nenhum som. Na verdade, Al Pacino estava realmente gritando, mas o som
foi removido na edição. Lidamos aqui com a ausência de som e, ainda assim, se
criou uma tensão fértil entre o que vemos e o que esperávamos ouvir em função da
imagem. Finalmente, o grito estoura, a tensão é liberada e o filme - e a trilogia -
acaba.
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mas sua mente está em algum lugar na selva, para onde ele sonha retornar. Se os
espectadores podem ser levados a um ponto onde eles, com sua própria
imaginação, lancem uma ponte sobre uma distância tão grande entre imagem e
som, eles serão recompensados com uma experiência de dimensionalidade
proporcionalmente grande.
O risco, é claro, é que o fio conceitual que conecta a imagem e o som seja esticado
demais e a dimensionalidade desabe: o momento de maior dimensão é sempre o
momento de maior tensão.
A questão que permanece, em tudo isso, é por que nós geralmente percebemos o
produto da fusão da imagem e do som em termos de imagem. Por que o som
geralmente melhora a imagem, e não o contrário? Em outras palavras, porque o Rei
Visão ainda se senta em seu trono e a Rainha Som assombra os corredores do
palácio?
Em seu livro "AudioVision", Michel Chion descreve um efeito que ele chama
"acousmêtre", que depende do atraso da fusão do som com a imagem ao extremo
quando se fornece apenas o som - mais freqüentemente a voz - e se retém a
revelação da verdadeira fonte sonora até perto do final do filme. Apenas quando o
público usou sua imaginação ao máximo, a identidade da fonte é revelada. "O
Mágico de Oz" é um dos muitos exemplos, junto com a mãe de "Psicose", e Hall em
"2001, [Uma Odisséia no Espaço]" (e embora ele [Michel Chion] não mencione isso,
Wolfman Jack em "American Graffiti" e o Coronel Kurtz em "Apocalypse Now"). O
acousmêtre é - por várias razões ligadas à nossa percepção - um dispositivo
singularmente cinemático: a voz dissociada do corpo parece vir de todo lugar e
assim não tem limites claramente definidos para seu poder. E ainda assim...
A primeira, a mais poderosa fusão de som e imagem dá o tom de tudo que está por
vir.