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Resumo: O escritor Machado de Assis passeou por dois momentos literários, romantismo e
realismo, em sua fase realista, propõe-se, por meio de sua arte, retratar de maneira bastante
sutil, a sociedade burguesa do século XIX. Para tanto, ele dialoga com o leitor, deixando-o
à vontade para que junto com ele (o autor) seja construído o sentido para a obra literária. O
dialogismo na obra literária machadiana estudado aqui, estará voltado para o jogo entre o
cultural, o social e o psicológico, uma vez que tais elementos são imprescindíveis para a
formação do arquétipo do personagem Bentinho da obra “Dom Casmurro”. Em “Dom
Casmurro”, Bentinho é um ícone, uma vez que, mesmo o narrador dialogando com o seu
leitor, o último, tem dificuldade de atribuir sentido à obra, posto que, a narrativa avança
mais na sombra do que à luz, sugere mais do que revela. A força de sugestão possui uma
capacidade de penetração psicológica e tal penetração será analisada por meio da psicologia
jungeana.
1. Introdução
1
Graduada em Letras, Pós-graduada em História Regional e Pós-graduanda em Estudos
Comparados em Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade Estadual de Santa
Cruz. Docente da Escola Municipal do Banco da Vitória e Colégio Estadual Moysés
Bohana localizado no município de Ilhéus-Bahia.
O estudo ora apresentado, não se fecha aqui, é o início de um estudo que está sendo
desenvolvido a partir de uma árdua pesquisa baseada nos estudos comparados entre a
literatura machadiana e a psicologia jungeana.
A análise da Obra machadiana “Dom Casmurro” dar-se-á por meio da interpretação
do comportamento de Bentinho no âmbito social (dentro da instituição família e no
relacionamento dele com outras pessoas que fazem parte de seu meio social). Desse modo,
o consciente e inconsciente coletivo, símbolos, complexos na visão jungeana serão
estudados, a fim de traçar o arquétipo do referido personagem.
Em “Dom Casmurro”, Bentinho é um ícone, uma vez que mesmo o narrador
dialogando com o seu leitor, o último, tem dificuldade de atribuir sentido à obra, posto que,
a narrativa avança mais na sombra do que à luz, sugere mais do que revela. A força da
sugestão possui uma capacidade de penetração psicológica e tal penetração será analisada
por meio da psicologia jungeana.
Os referenciais teóricos aqui levantados serão as obras completas de Carl G. Jung,
arcabouço que revela a brecha existente entre o consciente e o inconsciente (pessoal e
coletivo). A pesquisadora Nise da Silveira, pois faz um estudo sobre a vida e obra de Jung,
traçando os vários tipos psicológicos, inconscientes, arquétipos e símbolos. Os teóricos
literários Afrânio Coutinho, João Pacheco, Marisa Lajolo, em suas abordagens fazem uma
reflexão acerca da obra machadiana.
Esta pesquisa é relevante porque pretende atuar em duas áreas importantes do
conhecimento a literatura e a psicologia. A partir do entrecruzamento desses saberes é que
o estudo do arquétipo de Bentinho, personagem polêmico da literatura machadiana, será
desenhado.
Dom Casmurro era parte desta sociedade carioca arcaica. Ele representava dentro da
narrativa o filho obediente que perdeu o pai cedo e fazia a vontade de sua mãe, mulher tão
religiosa. Bentinho ao contar a sua história no capítulo III, intitulado A denúncia, revela o
intento de dona Glória, colocá-lo em um seminário, no que diz respeito à vontade do rapaz
de quinze anos, pouco interessava. D. Glória, Tio Cosme, José Dias, prima Justina e o
Padre, todos traçavam o seu destino, o máximo que lhe cabia, era ouvir atrás da porta.
A sociedade do século XIX cultivava-se a tradição, no que concerne aos estudos dos
filhos, em uma família tradicional, normalmente, existia um médico, um advogado, um
padre, isso no que confere a educação masculina, pois às filhas reservavam-se o casamento,
o máximo que se permitia, no que concerne à vida pública era o magistério. Com Bentinho,
filho único, não foi diferente, D. Glória e o tio Cosme o queriam padre, uma vez que o
padre gozava de privilégio na sociedade oitocentista. Retomemos a fala de senhor José Dias
quando conversa com D. Glória e tio Cosme:
- Bem, uma vez que não perdeu a idéia de o fazer padre, tem-se ganho o
principal. Bentinho há de satisfazer o desejo de sua mãe. E depois a igreja
brasileira tem altos destinos. Não esqueçamos que o bispo presidiu a
Constituinte, e que o padre Feijó governou o império...” ( ASSIS, data e página)
Percebemos que no século XIX a igreja, como era tradição ainda possuía um papel
relevante dentro da sociedade. Dom Casmurro era de família tradicional, sua família
possuía propriedade e ele como padre iria satisfazer os desejos de sua mãe que fizera uma
promessa, ainda assim, estaria em posição de destaque na sociedade.
A sociedade para Dom Casmurro resumia-se nele e Capitu. No mundo elaborado por
ele, existia um aspecto relevante e que marcava o seu discurso, a não crença na instituição
casamento, pois ao se referir ao casamento dos pais, descrevia a felicidade conjugal como à
sorte grande, o casamento feliz era comparado por ele ao bilhete premiado de uma loteria.
Segundo Jung (1964, 20), “uma palavra ou uma imagem é simbólica quando implica
alguma coisa além do seu significado manifesto e imediato. Esta palavra ou imagem tem
um aspecto “inconsciente” mais amplo, que nunca é precisamente indefinido ou de todo
explicado.” O personagem Bentinho criou uma imagem sobre a instituição casamento,
quando resolve assumir seus sentimentos por Capitu, casando-se, não consegue estabelecer
uma relação conjugal saudável, porque o fantasma da descrença em casamentos o persegue.
Até o meado do século XIX só havia o casamento religioso, de acordo com Pacheco
(1967), desde 1875 discute-se a necessidade da instituição do casamento civil, mas só em
1884 o governo propõe, no entanto, é em 1889 que esta necessidade se regulamenta.
Historicamente, é neste período (na segunda metade do século XIX) que existe uma
grande contradição entre o desejo de manter as tradições religiosas, ou seja, a Igreja impor
seus valores, e o Estado implementar a sua política, tudo isso causou um atrito entre as duas
instituições. Segundo Pacheco (1967, p. 8)
Acentuam-se os atritos entre a Igreja e o Estado, que sempre os houvera, em
virtude de conflito de jurisdição, ambos sempre discutiram a linha divisória de
suas atribuições. Com o crescimento da sociedade brasileira e a diversificação de
seus elementos, surgiram a diferenciação de credos religiosos, a criar problemas
de ordem civil, como a regularização do registro de nascimento, casamento e
óbito da população não católica.
4. Perfil de Bentinho
Alcunhado por Dom Casmurro, Bentinho era um jovem calado, de hábitos reclusos,
metidos consigo. Segundo o narrador que é o próprio personagem, o significado de
Casmurro não tem nada a ver com o do dicionário, no entanto, utilizando o dicionário
Aurélio do século XXI, pode-se definir como: “aquele ensimesmado, sorumbático, triste”.
Realmente, Bentinho possuía esses atributos. Bentinho ao casar-se com Capitu, mostra-se
um sujeito possessivo, incompreensivo, intolerante, ciumento.
No segundo capítulo o narrador-personagem mostra-se detalhista e preso as tradições
ao descrever a atual residência, e ao descrevê-la revela a semelhança entre a casa atual e o
local que morava na infância. O retorno à infância e o retorno à adolescência é bastante
significativo nesta obra é com sentido de atar as duas pontas da vida (velhice e
adolescência).
O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a
adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em
tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá;
um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu
mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui está é, mal comparando, semelhante à
pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito
externo, como se diz nas autópsias; o interno não agüenta tinta. Uma certidão que
me desse vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os
documentos falsos, mas não a mim. Os amigos que me restam são de data
recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos santos. Quanto às
amigas, algumas datam de quinze anos, outras de menos, e quase todas crêem na
mocidade. Duas ou três fariam crer nela aos outros, mas a língua que falam
obriga muita vez a consultar os dicionários, e tal freqüência é cansativa. (Assis,
data)
As reminiscências de Bentinho são tomadas pelo complexo 2 afetivo, pois o que Jung
define complexo como: “imagem de situações psíquicas fortemente carregadas de emoção e
incompatíveis com a atitude e a atmosfera consciente habituais. Essa imagem é dotada de
forte coesão interna, de uma espécie de totalidade própria e de um grau elevado de
autonomia” (Silveira, 2006, p. 32) A maior parte dos conteúdos do inconsciente pessoal é
formado por complexos desse tipo, e Bentinho foi tomado por este tipo de complexo,
embora não tenha dado conta desse processo.
A promessa que a D. Glória que objetiva colocar Bentinho em uma igreja,
incomodava-o, mas o que fazer, se o projeto foi feito antes dele ser concebido? O
2
Segundo Jung os complexos eram descritos como conteúdos psíquicos originados de
conflitos vividos na área da problemática individual. Tinha suas raízes nos conflitos
emocionais da primeira infância e também nos conflitos do presente, em qualquer idade.
personagem vivia esta angústia, embora quando criança a idéia de ir para o seminário já
fazia parte de sua vida, até despertar para um novo mundo, o da sexualidade. Isso o
martirizava.
Tijolos que pisei e repisei naquela tarde, colunas amareladas que me passastes à
direita ou à esquerda, segundo eu ia ou vinha, em vós me ficou a melhor parte da
crise, a sensação de um gozo novo, que me envolvia em mim mesmo, e logo me
dispersava, e me trazia arrepios, e me derramava não sei que bálsamo interior. Às
vezes dava por mim, sorrindo, um ar de riso de satisfação, que desmentia a
abominação do meu pecado. E as vozes repetiam-se confusas:
“Em segredinhos...”
“Sempre juntos...”
“Se eles pegam de namoro...” (Assis, data)
O despertar de Bentinho relacionava-se a um mergulho para o interior de si mesmo.
Ao reconhecer-se não mais menino e sim um homem com vontades e desejos de homem.
Bentinho como sonhador, interpretava no silêncio de Capitu o que o que para ele
parecia ser amor. Na verdade Dom Casmurro constrói a imagem da moça e desenha os
sentimentos dela. O personagem demonstra-se inseguro ao falar que não iria para o
seminário, à medida que Capitu explode no que concerne a atitude de D. Glória para com
Bentinho, adjetivando-a de Beata, carola e papa-missas, o personagem se mostra
amedrontado com a reação de Capitu. Faz parte do perfil do protagonista a insegurança, o
medo, a falta de posicionamento, caracterizando-se assim, como uma pessoa cujo tipo
psicológico volta-se para o tipo sentimento introvertido. Conforme Silveira (2006, p. 56)
“Pessoas desse tipo, normalmente, apresentam-se calmas, retraídas, silenciosas. São pouco
abordáveis e difíceis de compreender porque, sendo dirigidas por forças subjetivas, suas
verdadeiras intenções permanecem ocultas. Daí algo enigmáticos envolvê-las.” Os
sentimentos de Bentinho embora secretos, são bastante intensos, isso o faz uma pessoa com
sentimentos introvertidos.
Bentinho quando criança foi tomado por complexos afetivos, antes de falar de que
maneira, ou melhor, como ele foi arrebatado, explicarei a definição de complexo afetivo de
acordo com Jung.
(...) A verdade não somos nós que temos o complexo, o complexo é que nos tem,
que nos possui. Com efeito, o complexo interfere na vida consciente, leva-nos a
cometer lapsos e gafes, perturba a memória, envolvendo-nos em situações
contraditórias, arquiteta sonhos e sintomas neuróticos. O complexo obriga-nos a
perder a ilusão de que somos senhores absolutos em nossa própria casa.”
(SILVEIRA, 2006, p. 30)
O complexo afetivo tomou Bentinho, e ao contar toda a sua história, ele não
percebeu que foi acometido pelo complexo, porém continua mantendo o “equilíbrio
emocional”, desse modo, não consegue exteriorizar por intermédio de descargas
emocionais os seus sentimentos, tornando-se assim, um “neurótico”.
A relação de Bentinho com o mundo exterior e interior é meio conturbada. Bentinho
apresenta-se na infância, principalmente na adolescência como uma pessoa introvertida, a
relação dele com o objeto desejado é mantida dentro de limites bem medidos, toda
manifestação emocional exuberante lhe desagrada, provocando assim, reações de repulsa.
Por isso o tipo psicológico do protagonista associa-se ao sentimento introvertido.
A fim de melhor compreender os tipos psicológicos de indivíduo extrovertido ou
introvertido é de fundamental importância conhecer a função psíquica que o indivíduo usa
preferentemente para adaptar-se ao mundo exterior. As funções psíquicas definidas por
Jung são quatro:
A sensação constata a presença das coisas que nos cercam e é responsável pela
adaptação do indivíduo à realidade objetiva. O pensamento esclarece o que
significam o objeto. Julga, classifica, discrimina uma coisa da outra. O
sentimento, faz a estimativa dos objetos. Decide o valor que têm para nós.
Estabelece julgamentos como o pensamento, mas a sua lógica é toda diferente. É
a lógica do coração. A intuição é uma percepção via inconsciente. É apreensão da
atmosfera onde se movem os objetos, de onde vêm e qual o possível curso de seu
desenvolvimento. (Silveira, 2006, p. 48)
Conforme Jung, todos nós possuímos as quatro funções, no entanto, uma delas
sempre se apresenta mais desenvolvida que as outras três. A que se destaca é chamada de
função principal. A luta pela existência do indivíduo está intimamente ligada a utilização da
função principal. O ideal seria se todas as funções se exercessem na mesma proporção, isto
levaria o indivíduo a conhecer satisfatoriamente o objeto sob os quatro aspectos,
distribuindo de maneira equivalente a carga energética necessária à atividade de cada
função, mas não é isso que acontece. Quando uma função sobrepõe-se às outras,
conseqüentemente, o sujeito é acometido de perturbações neuróticas. Foi isso que
aconteceu com Bentinho.
O personagem Dom Casmurro fora prometido desde pequeno à igreja por sua mãe,
uma mulher bastante religiosa. Quando seu primeiro filho morreu D. Glória fez a promessa
de entregar o seu segundo filho à vida religiosa, isto é, ao seminário. Bentinho descobriu o
porquê do interesse da mãe em deixá-lo cada vez mais próximo das questões relacionadas à
igreja. Durante toda a sua adolescência Bentinho viveu angustiado.
Bentinho descobre-se apaixonado por Capitu no momento em que José Dias levanta
essa possibilidade para D. Glória que não acredita, mas por segurança resolve o mais rápido
colocá-lo em um seminário. É nesse momento que a cabeça de Bentinho dá um “nó”, pois
traz do inconsciente à consciência o amor que ele sente por Capitu, que estava até então
adormecido. É a partir desse momento que o arquétipo 3 de Bentinho na visão jungeana será
percebido.
Jung apontava que para o homem não ser tragado pelo inconsciente ele deve manter-
se firmemente enraizado na realidade externa, ocupar-se de sua família, de sua profissão,
isso não aconteceu com Bentinho. O personagem sente a lacuna e reconhece que perdeu
uma parte de si. Esta parte é Capitu, que era tudo que ele queria ser e não era, uma vez que
não conseguia ser o que ele pensava odiar.
Na literatura, personagens normalmente são baseados em arquétipos, já que podem
ser interpretados como símbolos que representam uma idéia universal do homem. Utilizar
personagens-arquétipos confere a história maior aceitabilidade, visto que os personagens
personificam imagens que fazem parte da psique do leitor. Jung consegue identificar alguns
arquétipos presentes na literatura: o herói; o mentor; o guardião; a Sombra; o Pícaro; a
Grande-Mãe; a Criança; o Si-Mesmo; o Homem-Cósmico; o Artista-Cientista.
3
Jung define arquétipo como possibilidades herdadas para representar imagens similares,
são formas instintivas de imagina.
De acordo com a visão jungeana, Bentinho se encaixa em dois deles: a Sombra e o
Si-Mesmo. Entendendo que arquétipo é o resultado de inúmeras experiências típicas da
série de ancestrais. Os instintos são manifestações dos arquétipos, ou melhor, impulsos
criadores provenientes do inconsciente. Bentinho é o resultado da sociedade do século XIX,
onde mudanças sociais, políticas e científicas aconteciam. No âmbito familiar, perdera seu
pai ainda menino e admirava sua mãe, pois ela era uma mulher que se mostrava forte,
decidida, pois a postura dela diferia muito da dele, bem como, diferente do comportamento
de Capitu.
O comportamento de Capitu para Bentinho assemelhava-se ao de sua mãe,
normalmente, Bentinho não questionava nem o que era colocado por sua Capitu e muito
menos por sua mãe. É difícil de decifrar se o que ele tinha pelas duas era respeito ou medo.
E o medo na concepção de Jung, nada mais é do que um desejo reprimido. E havia muitos
desejos reprimidos em Bentinho.
7. Considerações finais
8. Referências bibliográficas
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. 7ª ed. rev. E atual. São Paulo: Global,
2004.
JUNG, Carl Gustav. Fundamentos de psicologia analítica. Tradução de Araceli
Elman. 10ª ed. Petrópilis. Vozes, 1985.
JUNG, Carl Gustav. O Homem e seus Símbolos. Tradução Maria Lúcia Pinto. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira. 1964.
LAJOLO, Marisa. Machado de Assis. São Paulo: Abril, 1980. Literatura comentada.
PACHECO, João. O Realismo: a literatura brasileira. Vol. III. 2ª ed. São Paulo.
Cultrix. 1967.
SILVEIRA, Nise da. Jung: vida e obra. 16ª ed. Ver. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
www.dominiopublico.com.br /Dom Casmurro, acesso em 12 de junho de 2008.