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Editorial

Tiago Santos

E m 2009, comemoram-se, em vida e o ensino deste grande homem


várias partes do mundo, sobretudo de Deus e talvez repare uma ou outra
no Ocidente, os 500 anos do nasci- distorção de seu pensamento e ensi-
mento de João Calvino. Nos últimos no desenvolvida em algum ponto da
séculos, muito tem sido dito e escri- história da igreja.
to sobre o francês que, de Genebra, Algo muito importante que de-
na Suiça, foi um dos principais pro- vemos ressaltar, quando lidamos
tagonistas da Reforma Protestante com a biografia de um homem de
no século XVI. Deus, é o fato de desejarmos ver
No bojo dessas comemorações, o Senhor Jesus Cristo por trás da
entendemos que seria instrutivo ofe- vida celebrada. Nosso desejo – e,
recer aos amados leitores nossa con- cremos, seria também o do próprio
tribuição, trazendo alguns artigos Calvino – é que Cristo cresça e ele,
que, escritos por homens preparados Calvino, bem como todos nós, dimi-
e experimentados no ministério cris- nuamos. Que vejamos nos ensinos
tão, destacam alguns temas da teolo- de Calvino a pessoa e a maravilho-
gia e da prática de Calvino, os quais sa obra do Senhor Jesus Cristo – na
abordam diversas esferas do papel redenção do homem, na vida cristã,
do cristão na sociedade. no mundo criado, no mundo porvir.
Em que pese as eventuais dis- Sempre é bom lembrar que a ênfase
cordâncias que o nome de Calvino dos escritos teológicos de Calvino é
possa suscitar, cremos ser oportuna a união de Cristo com o homem re-
uma edição como esta, que celebra a dimido, perdoado e salvo. Também
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vemos muito de sua preocupação em as suas faculdades, forças e talentos


glorificar a Deus e edificar a igreja, no serviço ao Senhor; que se ocu-
alcançando os homens perdidos por pem de buscar no estudo dedicado
meio de uma ousada ação missio- das Escrituras qual seja todo o con-
nária e evangelística; consolando selho de Deus para a vida do ho-
o povo de Deus em suas persegui- mem; que busquem a glória de Deus
ções, por meio de inúmeras cartas em todas as coisas e dediquem-se à
que enviava aos crentes da França expansão do Reino de Cristo; enfim,
e de muitos outros lugares; instruin- que sejam sempre prontos e sinceros
do o povo de Deus por meio de sua no trabalho do Senhor.
incansável ação pastoral, seu vasto A Palavra de Deus nos instrui a
trabalho de exposição das Escrituras honrar nossos pais na fé e a imitar-
e sua vigorosa produção de comen- mos seu procedimento e seu exem-
tários bíblicos. plo (Fp 3.17; 2 Tm 1.13; 1 Pe 5.3;
Esperamos que esta edição seja Hb 13.7). Somos também ensinados
útil à sua vida e ministério; que a a prestar honra a quem devemos
vida e obra do homem João Calvi- honra (Rm 13.7).
no sejam inspiração para o povo de
Deus hoje, a fim de que busquem, Prompte et sincere in opere do-
como Calvino o fez, empregar todas mini.

"A fé não permite que alguém se glorie


senão exclusivamente em Cristo. Segue-se
que aqueles que exaltam excessivamente
os homens, os privam de sua genuína
dignidade. Pois a mais importante de todas
as coisas é que eles sejam ministros da fé,
ou seja, que conquistam seguidores, sim,
mas não para si próprios, e, sim, para
Cristo".

João Calvino – 1 Cor. 3.5


João Calvino e a
pregação das Escrituras
Franklin Ferreira

Esta mensagem foi apresentada por Pr. Franklin Ferreira na


8ª Conferência Fiel para Pastores e Líderes em Portugal, em outubro de 2008.

De humanista a reformador Deus transformou-a e trouxe-a à do-


João Calvino nasceu em 10 de ju- cilidade”. No final desse ano, teve de
lho de 1509, em Noyon, na Província fugir de Paris sob acusação de ser co-
de Picardia (França), na fronteira dos autor de um discurso simpático aos
Países Baixos. Seu pai era um advo- protestantes, proferido por Nicholas
gado que trabalhou para o cônego Cop, o novo reitor da Universidade
desta cidade, e sua mãe, uma mulher de Paris. Refugiou-se na casa de um
muito piedosa. Foi enviado para es- amigo em Angoulême, onde come-
tudar filosofia em Paris, no Collège çou a escrever a sua principal obra
de Montaigu, mas em 1528, após se teológica. Em março de 1535, foi pu-
desentender com os líderes da igreja, blicada em Basiléia a primeira edição
seu pai o enviou para estudar direito das Institutas da Religião Cristã, que
em Orléans e grego em Bourges. Em seria “uma chave para abrir o cami-
1531, com a morte do pai, retornou a nho para todos os filhos de Deus num
Paris para dedicar-se ao seu interesse entendimento bom e correto das Es-
predileto, a literatura clássica. crituras Sagradas”.
Em 1533, converteu-se à fé evan- Em 1536, ao passar por Genebra,
gélica e a respeito deste fato disse: foi coagido por Guillaume Farel a
“Minha mente, que, a despeito de iniciar um trabalho ali. Calvino ficou
minha juventude, estivera por demais chocado com a idéia, pois se sentiu
empedernida em tais assuntos, agora despreparado para a tarefa. Ele po-
estava preparada para uma atenção deria fazer mais pela igreja através
séria. Por uma súbita conversão, de seus estudos e de seus escritos.
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Nesse momento, Farel trovejou a ira caram que Calvino retornasse à sua
de Deus sobre Calvino com palavras igreja. Ele retornou a Genebra no dia
que este jamais esqueceria – Deus 13 de setembro, viu-se nomeado pre-
amaldiçoaria o seu lazer e os seus gador da antiga igreja de St. Pierre
estudos se, em tão grave emergência, e foi “contemplado com um salário
ele se retirasse, recusando-se a aju- razoável, uma casa ampla e porções
dar. A primeira estadia de Calvino em anuais de 12 medidas de trigo e 250
Genebra durou menos de dois anos. galões de vinho”. Em 1548, Idelette
O seu primeiro catecismo e confissão faleceu, e Calvino nunca mais tor-
de fé foram adotados, mas ele e Farel nou a casar-se. O único filho que ti-
entraram em conflito com as autori- veram morreu ainda na infância. No
dades civis acerca de questões eclesi- entanto, Calvino não ficou inteira-
ásticas: disciplina, adesão à confissão mente só. Tinha muitos amigos, in-
de fé e práticas litúrgicas. clusive em outras regiões da Europa,
De 1538 a 1541, mudou-se para com os quais trocava intensa corres-
Estrasburgo, onde pastoreou a igreja pondência. Depois de grandes lutas,
de refugiados franceses. Um refu- conseguiu implementar seu progra-
giado que visitou a igreja de Calvino ma de reformas, mudando comple-
fez a seguinte descrição do culto: tamente toda a Genebra, tornando-a
“Todos cantam, um exemplo para
homens e mulhe- toda a cristandade,
res; e é um belo
Quem despreza a “a mais perfeita
espetáculo. Cada pregação despreza a escola de Cristo
um tem um livro Deus, porque ele não desde os dias dos
de cânticos nas fala por novas revelações apóstolos”, como o
mãos... Olhando
para esse pequeno
do céu, mas pela voz de reformador escocês
John Knox disse.
grupo de exilados, seus ministros, a quem Em 6 de feve-
chorei, não de tris- confiou a pregação da reiro de 1564, Cal-
teza, mas de ale- sua Palavra vino, muito enfer-
gria, por ouvi-los mo, foi transpor-
todos cantando tão tado para a igreja
sinceramente, enquanto agradeciam numa cadeira, pregando então com
a Deus por tê-los levado a um lugar dificuldade o seu último sermão. No
onde seu nome é glorificado”. Lá se dia de Páscoa, 2 de abril, foi levado
casou com Idelette de Bure e travou pela última vez à igreja. Participou
contato com Martin Bucer, que in- da ceia e, com a voz trêmula, can-
fluenciou profundamente sua teolo- tou junto com a congregação. Em
gia, principalmente acerca da doutri- 28 de abril de 1564, um mês antes
na do Espírito Santo e da disciplina de morrer, convocou os ministros de
eclesiástica. Genebra à sua casa. Tendo-os à sua
volta, despediu-se: “A respeito de
O erudito de Genebra minha doutrina, ensinei fielmente,
Em 1541, os genebrinos supli- e Deus me deu a graça de escrever.
João Calvino e a pregação das Escrituras 5

Fiz isso do modo mais fiel possível realiza, pelo poder do seu Espírito,
e nunca corrompi uma só passagem em cooperação com os labores do
das Escrituras, nem conscientemen- homem”. Para Calvino, a leitura e
te as distorci. Quando fui tentado a a meditação privadas das Escrituras
requintes, resisti à tentação e sempre não substituem o culto público, pois,
estudei a simplicidade. Nunca escre- “entre os muitos nobres dons com os
vi nada com ódio de alguém, mas quais Deus adornou a raça humana,
sempre coloquei fielmente diante um dos mais notáveis é que ele con-
de mim o que julguei ser a glória de descende em consagrar bocas e lín-
Deus”. Ele faleceu em 27 de maio de guas de homens para o seu serviço,
1564. Calvino foi enterrado em um fazendo com que a sua própria voz
cemitério comum. Devido a seu pró- seja ouvida neles”. Por essa razão,
prio pedido, não se ergueu lápide al- argumenta Calvino, quem despreza
guma sobre o lugar de sua sepultura. a pregação despreza a Deus, porque
ele não fala por novas revelações do
A pregação como Vox Dei céu, mas pela voz de seus ministros,
Calvino definiu assim a comuni- a quem confiou a pregação da sua
dade cristã: “Onde quer que vejamos Palavra. Ao falar Deus aos homens,
a Palavra de Deus ser sinceramente por meio da pregação, Calvino iden-
pregada e ouvida, onde vemos se- tifica dois benefícios: “Por um lado,
rem os sacramentos administrados ele [Deus], por meio de um teste ad-
segundo a instituição de Cristo, não mirável, prova a nossa obediência,
se pode contestar, de modo nenhum, quando ouvimos seus ministros exa-
que ali há uma igreja de Deus”. tamente como ouviríamos a ele mes-
Como o Rev. Paulo Anglada de- mo; enquanto, por outro, ele leva em
monstra, o reformador francês ela- consideração a nossa fraqueza, ao
borou detalhadamente o tema da na- dirigir-se a nós de maneira humana,
tureza da pregação como “a voz de por meio de intérpretes, a fim de que
Deus”. Em seu comentário de Isaías, possa atrair-nos a si mesmo, em vez
ele afirma que na pregação “a pala- de afastar-nos por seu trovão”.
vra sai da boca de Deus de tal ma- A importância dada ao sermão se
neira que ela sai, de igual modo, da percebe no lugar que ele ocupa na
boca de homens; pois Deus não fala liturgia reformada – o lugar central.
abertamente do céu, mas emprega Isso não significa que Calvino te-
homens como seus instrumentos, a nha dado importância exagerada ao
fim de que, pela agência deles, pos- pregador; significa apenas que, para
sa fazer conhecida a sua vontade”. ele, o sermão tem de ser a fiel inter-
Comentando a Epístola aos Gálatas, pretação da verdade revelada nas
Calvino enfatiza a eficácia do mi- Escrituras, dirigida aos problemas
nistério da Palavra, afirmando: visto do momento. Assim como Calvino
que Deus “emprega os ministros e cria na presença espiritual de Cristo
a pregação como seus instrumentos na administração dos sacramentos,
para este propósito, apraz-lhe atri- também cria na presença espiritual
buir a eles a obra que ele mesmo de Cristo na pregação, salvando os
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eleitos, edificando e governando sua lo. Uma das mais claras ilustrações
igreja. Essa concepção sacramental de que a pregação seqüencial havia
da pregação é afirmada diversas ve- sido uma escolha consciente da par-
zes por Calvino nas Institutas. Por te de Calvino foi este fato: no dia da
exemplo, ao combater o emprego Páscoa, em 1538, depois de pregar,
de símbolos visíveis para represen- ele deixou o púlpito da igreja de St.
tar a presença de Pierre, banido pelo
Cristo no culto, A majestade das conselho da cida-
ele afirma que é de; quando retor-
“pela verdadeira Escrituras merece que nou, em setembro
pregação do evan- seus expositores façam- de 1541, mais de
gelho”, e não por na evidente, que tratem- três anos depois,
cruzes, que “Cristo na com modéstia e ele continuou a ex-
é retratado como posição no versícu-
crucificado diante reverência lo seguinte.
de nós” (I.11.7). Como John Pi-
Citando Agostinho per demonstra, no
(IV.14.26), que se referia às palavras auge de seu ministério em Genebra,
como sinais, Calvino entendia que Calvino pregava num livro do Novo
na pregação “o Espírito Santo usa as Testamento nos domingos pela ma-
palavras do pregador como ocasião nhã e à tarde (embora pregasse nos
para a presença de Deus em graça e Salmos em algumas tardes) e num
em misericórdia. Neste sentido, as livro do Antigo Testamento, nas
palavras do sermão são comparáveis manhãs, durante a semana. Desse
aos elementos nos sacramentos” modo, ele expôs a maior parte das
(IV.1.6; 4.14.9-19). Por isso, ele es- Escrituras. Ele começou sua série
creveu: “A igreja de Deus será edu- de pregações expositivas no livro
cada pela pregação autêntica de sua de Atos, em 25 de agosto de 1549
Palavra, e não pelas invenções dos e terminou-a em março de 1554,
homens [as quais são madeira, feno num total de 89 sermões. Depois,
e palha]”. ele prosseguiu para 1 e 2 Tessalo-
nicenses (46 sermões), 1 e 2 Co-
A prioridade da pregação ex- ríntios (186 sermões) e Efésios (48
positiva sermões), até maio de 1558, quando
Calvino escreveu: “A majesta- passou um tempo adoentado. Na pri-
de das Escrituras merece que seus mavera de 1559, começou a Harmo-
expositores façam-na evidente, que nia dos Evangelhos, série inacabada
tratem-na com modéstia e reverên- por conta de sua morte em maio de
cia”. Durante quase 25 anos de mi- 1564 (65 sermões). Durante a se-
nistério na igreja de St. Pierre, em mana, naquele período, pregou 174
Genebra, seu modelo de pregação sermões em Ezequiel (1552-1554),
foi o mesmo, do começo ao fim, 159 sermões em Jó (1554-1555),
pregando através da Escritura, livro 200 sermões em Deuteronômio
após livro, versículo após versícu- (1555-1556), 353 sermões em Isaías
João Calvino e a pregação das Escrituras 7

(1556-1559), 123 sermões em Gêne- 3. Ele acreditava que a Palavra de


sis (1559-1561), 107 sermões em 1 Deus era, de fato, a Palavra de
Samuel e 87 sermões em 2 Samuel Deus e que toda ela era inspirada,
(1561-1563), e assim por diante. Os proveitosa e fulgurante como a luz
livros que ele pregou do primeiro da glória de Deus: “Que os pas-
ao último capítulo foram: Gênesis, tores ousem corajosamente todas
Deuteronômio, Jó, Juízes, 1 e 2 Sa- as coisas pela Palavra de Deus...
muel, 1 e 2 Reis, Profetas Maiores Que contenham e comandem todo
e Menores, Evangelhos Sinóticos, poder, glória e excelência do mun-
Atos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Efé- do, que dêem lugar e obedeçam à
sios, 1 e 2 Tessalonicenses, 1 e 2 Ti- divina majestade dessa Palavra.
móteo, Tito e Hebreus. Por que este Que encarreguem o mundo todo
compromisso com a centralidade da de fazer isso, desde o maior até ao
pregação expositiva seqüencial? Pi- menor. Que edifiquem o corpo de
per sugere as seguintes respostas: Cristo. Que devastem o reino de
1. Calvino acreditava que a Escritu- Satanás. Que cuidem das ovelhas,
ra era a lâmpada que havia sido ti- matem os lobos, instruam e exor-
rada das igrejas: “Tua Palavra, que tem os rebeldes. Que amarrem e
deveria ter brilhado sobre todas as libertem trovões e raios, se neces-
pessoas como uma lâmpada, foi sário, mas que façam tudo isso de
retirada ou, pelo menos, suprimi- acordo com a Palavra de Deus”.
da de nós... E agora, ó Senhor, o
que resta a um miserável como eu Como Piper destaca, a ênfase
a não ser... suplicar-te sinceramen- aqui é “a divina majestade dessa
te que não me julgues de acordo Palavra”. Este sempre foi o assunto
com [meus] desertos, aquele ter- fundamental para Calvino. Como
rível abandono da tua Palavra em poderia expor, da melhor maneira
que vivi e do qual, na tua maravi- possível, a majestade de Deus? Sua
lhosa bondade, me livraste”. Cal- resposta foi dada com uma vida de
vino considerou que essa contínua pregação expositiva contínua. Não
exposição de livros da Bíblia era havia maneira melhor para manifes-
a melhor maneira de superar o tar a completa extensão da glória e
“terrível abandono da Palavra [de da majestade de Deus do que difun-
Deus]”. dir toda a Palavra de Deus no con-
2. Calvino tinha aversão a quem pre- texto do ministério pastoral.
gava suas próprias idéias no púlpi-
to: “Quando adentramos o púlpito, A estrutura do sermão
não podemos levar conosco nos- James Boyce escreveu: “Calvi-
sos próprios sonhos e fantasias”. no era antes de tudo um pregador e,
Acreditava que, expondo as Escri- como pregador, via-se a si mesmo
turas por completo, seria forçado a como um professor da Bíblia... Ele
lidar com o que Deus queria dizer, considerava a pregação o seu traba-
não somente com o que ele talvez lho mais importante”. Cerca de dois
gostaria de dizer. mil dos sermões de Calvino foram
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preservados. Expondo parágrafos e direta, consistindo de um breve co-


versículos, ele seguia através de um mentário que lembrava a congrega-
profeta, de um salmo, de um evan- ção o que a passagem anterior dizia,
gelho ou de uma epístola. Como colocava os próximos versículos no
Boyce descreveu: “Ele começava no contexto ou mostrava o argumento
primeiro versículo do livro e tratava central da passagem pregada, rela-
de seções contínuas, de quatro ou cionando-a ao contexto da estrutura
cinco versículos, até que chegava ao do livro que estava sendo exposto.
fim e, neste ponto, dava início a ou- Por isso, pode-se perceber que há
tro livro”. Não havia uma palavra de uma ordem e um arranjo lógico e
discordância com as Escrituras, nem um desenvolvimento progressivo
uma inferência depreciativa, nem nas suas mensagens.
uma fuga das dificuldades, embora Seus sermões não são exemplos
ele evitasse as especulações infun- de beleza e estilo por duas razões:
dadas: “Visto que revelar a mente ele pregava sem esboço, pois tinha
do autor é a única tarefa do intérpre- de pregar quase diariamente; e tinha
te, ele erra o alvo ou, pelo menos, um profundo respeito para com a Pa-
desvia-se de seus limites quando lavra de Deus, a ponto de pensar que
afasta seus leitores um estilo excessi-
do propósito do vamente elaborado
autor... É... presun- O verdadeiro significado poderia prejudicar
ção e quase blasfê- das Escrituras é aquele a clareza da men-
mia distorcer o sig- sagem. Neste caso,
que é natural e óbvio
nificado das Escri- a pregação sem
turas, agindo sem anotações era uma
o devido cuidado, reação ao costume
como se isso fosse um jogo que es- daquela época, quando os sermões
tivéssemos jogando”. Por isso, ele eram lidos e se tornavam frios, sem
enfatizou: “O verdadeiro significado entusiasmo e sem energia. Por outro
das Escrituras é aquele que é natu- lado, de acordo com Lawson, ainda
ral e óbvio”. Ele renunciou tudo que que pregasse sem anotações, seus
pudesse trazer-lhe notoriedade, co- sermões testemunham um uso im-
locando toda sua formação a serviço pressionante de frases curtas com-
da fé cristã. postas de sujeito, verbo e predicado
Não é possível descobrir nos e fáceis de assimilar, palavras sim-
sermões de Calvino o arranjo ho- ples e expressões coloquiais, figuras
milético segundo as normas atuais de linguagem, perguntas retóricas,
de pregação. Em muitos casos, Cal- paráfrases e repetições, ironia mor-
vino tomava o texto, analisava-o e daz e linguagem instigante.
aplicava-o sucessivamente durante Carl G. Kromminga afirmou que
cerca de uma hora, o que conferia à Calvino viveu e trabalhou como se
mensagem um tom livre e informal. estivesse na presença de Deus. Por
Como Steven Lawson nota, a intro- isso, o empenho de Calvino era tra-
dução do sermão era curta, sucinta e zer os homens à presença de Deus.
João Calvino e a pregação das Escrituras 9

Isto é ainda mais evidente em seus metessem ao Senhor, em arrepen-


sermões, que eram sempre cruciais e dimento, obediência e humildade.
decisivos. T. H. L. Parker escreveu: Finalmente, ele concluía com uma
“A pregação expositiva consiste oração, confiando seu rebanho a
na explanação e aplicação de uma Deus.
passagem das Escrituras. Sem ex- Precisa ser ressaltado que Calvi-
planação, ela não é expositiva; sem no acreditava que Paulo havia provi-
aplicação, ela não é pregação”. Por denciado um modelo para o minis-
isso, Calvino escreveu que os ou- tério da Palavra, quando falou sobre
vintes do sermão deveriam cultivar como ele, Paulo, não cessava de ad-
um “desejo de obedecer a Deus de moestar tanto “publicamente” quan-
forma completa e incondicional”. E to de “casa em casa”. Por ter uma
acrescentou: “Não assistimos à pre- verdadeira preocupação pastoral
gação meramente para ouvir o que por aqueles para quem estava pre-
não sabemos, mas para sermos en- gando, Calvino procurou visitá-los
corajados a fazer nossa obrigação”. em seus lares. “O que quer que os
Por isso, seus sermões partiam das outros pensem”, Calvino escreveu,
Escrituras para a “não julgaremos o
situação concreta nosso ofício como
e presente em Ge- A igreja de Deus será algo que possui li-
nebra, incluindo educada pela pregação mites tão estreitos,
exortação pastoral,
exame pessoal, re-
autêntica de sua Palavra, que, terminado o
sermão, possamos
preensão amoro- e não pelas invenções descansar achando
sa, confrontação, dos homens que concluímos a
usando muitas ve- nossa tarefa. Aque-
zes pronomes na les cujo sangue
primeira pessoa do plural. será requerido de nós, se os perder-
Nem sempre Calvino usou ilus- mos por causa de nossa preguiça,
trações, e, quando as usava, elas devem receber cuidado mais íntimo
eram raramente de fora da Escritura. e mais vigilante”. Portanto, a pre-
No entanto, ele estabelecia compa- gação requer ser suplementada com
rações com o quadro da vida diária uma entrevista pastoral. “Não é sufi-
para tornar bem accessível ao seu ciente que, do púlpito, um pastor en-
ouvinte a mensagem da Palavra de sine todas as pessoas conjuntamen-
Deus. Kromminga aponta as metá- te, pois ele não acrescenta instrução
foras, as exclamações e outros re- particular de acordo com a necessi-
cursos da oratória que contribuíram dade e as circunstâncias específicas
para tornar efetiva a sua mensagem. de cada caso”. Calvino insistiu que
E, na conclusão de cada sermão, ele o pastor precisa ser um pai para cada
fazia primeiramente um resumo da membro da congregação.
verdade que explicara num parágra-
fo curto; depois, instava de forma O papel do pregador
direta seus ouvintes a que se sub- O centro da atenção de Calvino
10

era a vontade de Deus, era a reve- corajem os que se deixam ensinar;


lação da face de Deus e o empenho acusem, repreendam e convençam
em trazer o ouvinte à presença do os rebeldes dos seus pecados – mas
Senhor. Ou na pregação da mais tudo pela Palavra de Deus.
profunda doutrina, ou em algum Se alguma vez eles se apartarem
tema ligado à vida prática, Calvi- dessa Palavra, para seguirem as
no chamava continuamente os seus fantasias e invenções da sua própria
ouvintes à face de Deus. Em 1537, cabeça, daí em diante não devem
aos 29 anos, num de seus primeiros ser recebidos como pastores; ao
livros, Breve Instrução Cristã, ele contrário, são lobos perniciosos que
escreveu: devem ser postos fora! Pois Cristo
Como o Senhor desejou que estabeleceu que não devemos dar
tanto a Sua Palavra como as Suas ouvidos a ninguém, exceto àqueles
ordenanças fossem dispensadas ou que nos ensinam o que extraíram de
administradas por meio do minis- Sua Palavra.
tério de homens, é necessário que
haja pastores ordenados nas igrejas, Não será disso que necessita-
para ensinarem ao povo a sã doutri- mos com urgência hoje? Porventu-
na, pública e privadamente; admi- ra, será que não precisamos hoje de
nistrarem as ordenanças e darem a uma revitalização da mensagem ao
todos o bom exemplo de uma vida estilo de Calvino, de modo a colo-
pura e santa... Lembremo-nos, con- car a comunidade cristã face a face
tudo, que a autoridade que as Es- com Deus?
crituras atribuem aos pastores está
plenamente contida nos limites do
ministério da Palavra, pois o fato é Obras consultadas e sugeridas para aprofun-
que Cristo não deu esta autoridade damento do assunto:
a homens, e sim à Palavra da qual
Ele faz esses homens servos. Anglada, Paulo. Introdução à pregação
reformada. Ananindeua: Knox, 2006.
Portanto, que os ministros da Calvino, João. A verdade para todos os
Palavra se disponham a fazer todas tempos: um breve esboço da fé cristã. São
as coisas por meio dessa Palavra Paulo: PES, 2008.
que eles foram designados a apre- Ferreira, Franklin. Gigantes da fé. São
Paulo: Vida, 2006. p. 160-170.
sentar. Que eles façam com que to- Ferreira, Wilson C. Calvino: vida, influên-
dos os poderes, todas as celebrida- cia e teologia. Campinas: LPC, 1986.
des e todas as pessoas de alta posi- George, Timothy. Teologia dos reformado-
ção no mundo se humilhem, a fim de res. São Paulo: Vida Nova, 1993. p. 163-
249.
obedecerem à majestade dessa Pa- Lawson, Steve J. A arte expositiva de João
lavra. Por meio dessa Palavra, que Calvino. São José dos Campos: Fiel, 2008.
eles dêem ordens a todo o mundo, McGrath, Alister. A vida de João Calvino.
do maior ao menor; que edifiquem São Paulo: Cultura Cristã, 2005.
Piper, John. O legado da alegria soberana.
a casa de Cristo, ponham abaixo o São Paulo: Shedd, 2005. p 123-152.
reino de Satanás, pastoreiem as ove- Wallace, Ronald. Calvino, Genebra e a
lhas, matem os lobos, instruam e en- reforma. São Paulo: Cultura Cristã, 2003.
João Calvino
falando português
Valter Graciano Martins

S em a menor sombra de dúvida, zo os comentários e tratados de Cal-


este é o tempo em que João Calvino vino, encheria um volume massudo.
se põe a falar nosso idioma, através Como conto com pouco espaço, ten-
da tradução de suas obras. Após tarei sintetizar ao máximo as minhas
um século e meio de fé evangélica impressões, visando à edificação dos
no Brasil, em apenas duas décadas leitores.
suas obras proliferam de modo inu- Durante todo o tempo em que
sitado, quando antes pouquíssimos estou traduzindo suas obras, minhas
criam na validade de tal empreen- emoções correm a mil. Vale dizer
dimento. Duas versões evangélicas que só o contato com esse homem já
das Institutas, uma versão secular deixa o leitor em sobressalto. A be-
delas, dezenas e mais dezenas de leza de seu estilo, a profundidade de
comentários e tratados, já traduzidos seu pensamento, a sinceridade com
e em preparação, e um volume de que aborda os grandes temas do cris-
suas correspondências. Certamente, tianismo, a preocupação com o bom
se os vários tradutores de suas obras preparo de ministros e do povo, bem
escrevessem sobre a experiência que como com a evangelização mundial,
tiveram enquanto mergulhados no sua austeridade em confrontar o erro
pensamento do Reformador, todos com a verdade, seu raciocínio lógico
teriam muito a nos contar. em desbaratar o erro doutrinário, a
No que me diz respeito, em par- abrangência de seu pensamento te-
ticular, o que tenho a dizer sobre a ológico, seu cuidado meticuloso em
minha experiência, enquanto tradu- não ultrapassar os limites da reve-
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lação divina – tudo isso causa uma vação que ele nos deu em Cristo é
profunda impressão naquele que também absoluta, isto é, sua compe-
se põe a perscrutar os meandros da tência é inteiramente dele e não do
interpretação bíblica de Calvino. A homem. O que cumpre ao homem é
impressão que se tem é que seu co- abraçar seu Ser absoluto e, nele, sua
nhecimento era ilimitado. salvação plena, vivendo nesta a sua
Por exemplo, um dos pontos vida prática; e mesmo esse abraçar
que mais me causaram impacto no é dado por graça. O grande “pro-
enfoque teológico do Reformador blema” de Calvino, para o homem
foi a sua profunda reverência pela moderno, em relação ao sinergismo
Bíblia. É uma reverência tal que já humano, é que ele não deixava nada
quase nem vemos hoje. Ele abraçou ao homem, senão o dever de abraçar
a Bíblia de modo incondicional. Ele toda a revelação divina sem questio-
a via como a Palavra do Deus eter- nar nem especular. Estudar, sim, po-
no, que no-la deu como padrão, para rém não questionar o decreto eterno
nela haurirmos a verdade que ele quis de Deus. Além de pecaminoso, nada
que conhecêssemos sobre seu eterno vale questionar a sua verdade.
plano para todo Perscrutar os
o universo, espe- escritos de Calvi-
cialmente para sua Um dos pontos que mais no causa espanto
Igreja. Toda a vida me causaram impacto e pasmo, porque,
de Calvino consis- no enfoque teológico do embora, logica-
tiu em extrair da mente, ele não
Palavra de Deus Reformador foi a sua fosse infalível, fa-
tudo que o Espíri- profunda reverência pela lhando em detalhes
to gravou nela pela Bíblia periféricos, isso
pena dos patriarcas, nada detrai de seu
profetas e apósto- valor como teólo-
los. Ele nutria o receio de escorregar go e pensador. Porque a grandeza do
para a direita ou para a esquerda, in- todo nos causa profunda admiração:
ventando o que o Espírito não queria como foi possível que um homem
revelar; também temia deixar de fora ainda tão jovem e inserido na proble-
algo importante que o Espírito quis mática social, política, econômica e
que sua Igreja soubesse. cultural de seu próprio tempo, com
Outro ponto que me tem causado uma atividade múltipla e envolto de
profunda impressão é a reverência tanta controvérsia, achasse tempo
de Calvino para com o Deus trino. para caminhar pelas gloriosas ave-
A força da teologia de Calvino es- nidas da santa Bíblia, expondo-a
tava no fato de que ele via a Deus teologicamente, confrontando-a po-
como absolutamente soberano. Seu lemicamente, usando-a para plasmar
direito é absoluto. Sua reivindicação os problemas sociais e políticos de
é absoluta. Sua liberdade é absoluta, seus dias, com tanta perseverança e
nada carecendo de tudo que criou. persistência? Caminhando com ele
Ele é completamente Outro. A sal- por todo o Novo Testamento (menos
João Calvino falando português 13

Apocalipse e 3 João), todos os Sal- ter santa convivência com o Refor-


mos, Daniel e vários tratados, espan- mador, chega à conclusão de que o
ta-me que ele confrontasse todo o seu Senhor da Igreja predestinou e aben-
conteúdo com os problemas reais de çoou aquele homem para uma obra
seus dias, não superficialmente, e sim ímpar e perene na Igreja, depois dos
com a máxima profundidade que um apóstolos. Ele continua desafiando a
ser humano pode alcançar. todos: ou a permanecer do lado es-
Sou grato ao Senhor da Igreja querdo do supremo Juiz, ou a aceitar
por me haver dado o privilégio da o desafio do reino de Cristo e pagar
companhia de João Calvino atra- o preço de abraçar a pura verdade
vés de suas obras. Eu sei que mui- revelada na santa Bíblia. Creio que
tos me vêem como um amante de João Calvino ainda fala hoje e in-
obras antigas, ou porque não se dão fluencia milhares de cristãos à pu-
ao trabalho de lê-las, ou porque des- reza da doutrina e da Igreja e que
prezam-nas, preconceituosa e negli- a partir de hoje surgirá uma grande
gentemente, crendo que o antigo já multidão que se voltará às páginas
está ultrapassado, ou porque acre- da Bíblia pela ótica de João Calvino
ditam que nosso mundo moderno é e dará sua contribuição para mudar
superior ao mundo de então. O fato os rumos ora desnorteados da Igreja,
é que quem faz como eu, passando a para a glória do Senhor que vem!

“É certamente verdade que somos justificados


em Cristo tão somente pela misericórdia
divina, mas é igualmente verdade e correto que
todos quantos são justificados são chamados
pelo Senhor para que vivam uma vida digna
de sua vocação. Portanto, que os crentes
aprendam abraçá-lo, não somente para a
justificação, mas também para a santificação,
assim como ele se nos deu para ambos os
propósitos, para que não venham a mutila-lo
com uma fé igualmente mutilada”.

João Calvino – Rm. 8.13


João Calvino
e a Universidade
Dr. Augustus Nicodmus Lopes

Breve Histórico de Calvino tantismo. Após breve permanência


João Calvino cursou filosofia e ali, viveu por três anos em Estras-
humanidades no Collège de Mon- burgo (1538-1541), no Sul da Ale-
taigu, ligado à universidade daquela manha, junto ao reformador Martin
cidade. Bucer (1491-1551). Nesse período,
Sentiu-se atraído pelo humanis- pastoreou uma igreja constituída
mo, ou seja, a apreciação pela antiga basicamente de franceses exilados
cultura greco-romana. Dedicou-se e lecionou na academia de Johannes
ao estudo do latim, do grego, da Sturm (1507-1589).
teologia e dos autores clássicos, Em 1541, regressou a Genebra e
além de fazer cursos na área do di- ali passou o restante de sua vida. Em
reito. Através de parentes, amigos 1559, tornou-se cidadão de Genebra,
e professores, recebeu influências publicou a edição definitiva das Ins-
do novo movimento protestante, titutas e fundou a Academia de Ge-
convertendo-se à fé evangélica por nebra, embrião da futura universida-
volta de 1533. Dedicou-se, então, ao de. Faleceu em 1564, aos 55 anos.
estudo sistemático e aprofundado da Alister McGrath demonstrou, em
Bíblia, publicando em 1536 a pri- sua biografia sobre Calvino, como
meira edição de sua obra mais famo- o mito de “o grande ditador de Ge-
sa, As Institutas da Religião Cristã. nebra” está enraizado em conceitos
No mesmo ano, passou a residir em populares difundidos especialmente
Genebra, na Suíça, cidade que re- por afirmações sem fatos históricos
centemente havia abraçado o protes- que as apoiassem, mas que acaba-
João Calvino e a Universidade 15

ram por moldar a visão de Calvino de Genebra que incluía uma esco-
que hoje prevalece em muitos meios la para todas as crianças, na qual
acadêmicos. as crianças pobres teriam ensi-
No aspecto religioso, Calvino é no gratuito. Era a primeira esco-
considerado o pai da tradição protes- la primária obrigatória da Europa.
tante reformada, que engloba pres- Em uma delas as meninas eram
biterianos, congregacionais, parte incluídas junto com os meninos.
dos batistas e parte do anglicanismo. Calvino tinha um alvo muito cla-
Seus seguidores ficaram conheci- ro quanto à educação. Ele desejava
dos, em geral, como reformados. que os alunos das escolas de Gene-
Um quadro mais próximo aos bra fossem futuros cidadãos da cida-
registros históricos mostra que Cal- de, bem preparados “na linguagem
vino era um pastor atencioso, que e nas humanidades”, além de terem
visitou pacientes terminais de doen- formação cristã e bíblica. O currí-
ças contagiosas no hospital que ele culo que ele ajudou a elaborar tinha
mesmo havia estabelecido, embora ênfase nas artes e nas ciências, além
fosse advertido dos perigos de con- da ênfase nas Escrituras. Conforme
tato. Além disso, tomou diversas ati- nos diz Moore, “o principal propósi-
tudes que mudaram a vida social da to da universidade [de Genebra] era
cidade. Foi ele quem instou o conse- eminentemente prático: preparar os
lho municipal de Genebra a afiançar jovens para o ministério ou para o
empréstimos a juros baixos para os serviço no governo.” 
pobres. Genebra foi o primeiro lugar Essa preocupação de Calvino
na Europa a ter leis especiais que com a educação decorria de sua vi-
proibiam: jogar detritos e lixo nas são cristã a respeito do mundo. En-
ruas; fazer fogo ou usar fogão num tre os pontos de sua teologia que o
cômodo sem chaminé; ter uma casa impulsionavam à missão como edu-
com sacadas ou escadas sem que as cador, havia a concepção  do ser hu-
mesmas tivessem grades de prote- mano criado à imagem e semelhança
ção; alugar uma casa sem o conheci- de Deus, conforme análise de Héber
mento da polícia; sendo comercian- Carlos de Campos:
te, cobrar além do preço permitido Em sua teologia sobre a imagem
ou fraudar no peso e estocar merca- de Deus no homem, Calvino viu o
dorias para fazê-la faltar no merca- ser humano como um ser que apren-
do e, assim, encarecê-la (e isso se de inerentemente. Deus depositou
estendia aos produtores). no ser humano “a semente da reli-
Assim como Lutero e outros gião” e o deixou exposto à estrutura
reformadores, Calvino defendeu a total do universo criado e à influên-
educação universal para todos os ha- cia das Escrituras. Por causa des-
bitantes da cidade. sas coisas, qualquer homem poderia
aprender, desde o mais simples cam-
Calvino e a Educação ponês ao indivíduo mais instruído
Em 1536, Calvino apresentou nas artes liberais.
um plano ao conselho municipal
16

Outro ponto das convicções reli- eram pequenos para isso. Assim, ele
giosas de Calvino era o entendimen- se limitou à criação da Academia de
to de que todo conhecimento vem Genebra (1559), que o historiador
de Deus, quer seja o conhecimento Charles Bourgeaud (1861-1941),
“sagrado”, quer seja o “profano”. antigo professor da Universidade
Calvino tinha uma visão ampla de Genebra, considerou como “a
da cultura, entendendo que Deus primeira fortaleza da liberdade nos
é Senhor de todas as coisas e que, tempos modernos”.
por isso, toda verdade é verdade de No currículo, incluía-se o ensino
Deus. Essa perspectiva amparava-se da leitura e da escrita e cursos mais
no conceito da “Graça Comum” ou avançados de retórica, música e ló-
“Graça Geral” de Deus sobre todos gica. Conforme Campos nos diz em
os homens. Ele disse: sua pesquisa, os alunos passavam do
Visto que toda verdade procede alfabeto à leitura do francês fluen-
de Deus, se algum ímpio disser algo te, gramática latina e composição
verdadeiro, não devemos rejeitá- em latim, literatura grega, leitura de
lo, porquanto o mesmo procede de porções do Novo Testamento grego,
Deus. Além disso, visto que todas as juntamente com noções de retórica e
coisas procedem de Deus, que mal dialética, com base nos textos clás-
haveria em empregar, para a sua sicos. Não é sem razão que, diante
glória, tudo que pode ser correta- de sua capacidade no latim, se dizia
mente usado dessa forma? que os meninos de Genebra falavam
como os doutores da Sorbonne.
Calvino defendia que Deus havia O currículo da Academia enfo-
agraciado todas as pessoas com inte- cava não somente as artes e a teo-
ligência, perspicácia, capacidade de logia, como igualmente as ciências.
entender e transmitir, indistintamen- Na mente do Reformador, não havia
te de sua fé e crença. Assim, despre- conflito entre fé e ciência na univer-
zar a mente secular era desprezar os sidade. Ao contrário da visão educa-
dons que Deus havia distribuído no cional escolástica medieval, Calvino
mundo, até mesmo aos incrédulos, considerava que o estudo da ciência
mediante a graça comum. física tinha como propósito descobrir
a natureza e seu funcionamento, pois
A Academia de Genebra Deus se revelava à humanidade por
Não devemos estranhar que, à meio das coisas criadas, da natureza.
luz das convicções teológicas de Estudando o mundo, o ser humano
Calvino, ele tivesse seu coração vol- acabaria por conhecer mais a Deus.
tado para a educação da população A Academia veio a se tornar modelo
de Genebra e da Europa em geral. para outras escolas da Europa.
Desde 1541 encontramos registros
da sua preocupação diária em como A Reforma e a Educação
dar a Genebra uma universidade. Ele Os cristãos reformados, a exem-
desejava criar uma grande universi- plo de Calvino, dedicaram-se igual-
dade, mas os recursos da República mente a promover a educação, as artes
João Calvino e a Universidade 17

e as ciências. Nunca viram a fé cristã Nassau, um dos centros de difusão


como inimiga do avanço do conheci- da fé calvinista, sendo aluno do te-
mento científico e do saber humano. ólogo calvinista Johann H. Alsted
Alister McGrath cita a pesquisa (1588-1638). Em 1613, foi admiti-
feita por Alphonse de Candolle sobre do na Universidade de Heidelberg
a participação de membros estrangei- (Alemanha), onde estudou teologia.
ros na Academie des Sciences Pari- Aqui também havia forte influência
siense, durante o período de 1666 a calvinista. Comênio ficou conhecido
1883, os primeiros séculos posterio- por sua obra Didática Magna, publi-
res à Reforma protestante. Segundo cada há 300 anos. Produziu, além
McGrath, Candolle verificou: disso, uma obra vastíssima ligada
Os protestantes excediam em mui- especialmente à educação (mais
to a quantidade de católicos. Toman- de 140 tratados). Sua obra Didáti-
do como base a população [de Pa- ca Magna é considerada o primeiro
ris], Candolle estimou que 60% dos tratado sistemático de pedagogia,
membros [da Academie] deveriam de didática e de sociologia escolar.
ter sido católicos, e 40%, protestan- Nessa obra, Comênio defende que
tes; as quantias reais acabaram por a educação, para ser completa, deve
ser 18,2% e 81,8%, respectivamente. contemplar três áreas: instrução,
Embora os calvinistas fossem consi- virtude e piedade. Sua visão educa-
deravelmente uma minoria, na parte cional, influenciada pela Reforma,
Sul dos Países Baixos, durante o sé- atinge a dimensão intelectual, moral
culo XVI, a vasta maioria dos cien- e espiritual do ser humano.
tistas naturais dessa região foi pro- No período que antecedeu a
veniente desse grupo. Guerra Civil nos Estados Unidos, os
reformados que para lá tinham ido,
A mesma pesquisa mostrou que, partindo da Europa, haviam constru-
na composição primitiva da Royal ído dezenas de colégios e universi-
Society de Londres, a maioria dos dades. E isso numa época de poucos
seus membros era composta de re- recursos financeiros e econômicos.
formados. Tanto as ciências físicas Não podemos deixar de citar que
quanto as biológicas foram influen- muitas das maiores e melhores uni-
ciadas fortemente pelos calvinistas versidades do mundo foram funda-
durante os séculos XVI e XVII. To- das por reformados. A Universidade
dos esses pesquisadores e cientistas, Livre de Amsterdam, por exemplo,
por sua vez, haviam sido influencia- uma das melhores do mundo, foi
dos pela Reforma Protestante, espe- fundada em 1881 pelo reformado
cialmente pela obra de João Calvino. holandês Abraão Kuyper, que mais
Na área da educação, especifi- tarde se tornou Primeiro Ministro da
camente, destaca-se a obra de João Holanda. A princípio, a universidade
Amós Comênio, um morávio que era aberta somente aos cristãos re-
recebeu influência reformada em formados e financiada por doações
sua educação. Em 1611, ingressou voluntárias. Mais tarde, em 1960,
na Universidade de Herborn, em abriu-se ao público em geral e pas-
18

sou a ser financiada como as demais tados Unidos, foi fundada na déca-
universidades holandesas, embora da de 1640 por pastores reformados
ainda retenha as suas tradições e va- da colônia recém-estabelecida, que
lores reformados. desejavam preservar a tradição da
A Universidade de Princeton, educação cristã da Europa. Essa é
também considerada uma das me- a universidade americana que mais
lhores do mundo, foi fundada em formou presidentes dos Estados
1746 como Colégio de Nova Jersey. Unidos. Seu alvará de funcionamen-
Seu fundador foi o governador Jona- to concedido em 1701 diz:
than Belcher, que era congregacio- ...que [nesta escola] os jovens
nal, atendendo ao pedido de homens sejam instruídos nas artes e nas
presbiterianos que desejavam pro- ciências e através das bênçãos do
mover a educação juntamente com Todo-Poderoso sejam capacitados
a religião reformada. Atualmente, para o serviço público, tanto na
é reconhecida como uma das mais Igreja quanto no Estado.
prestigiadas universidades do mun-
do, oferecendo diversas graduações Ainda hoje existem nos Estados
e pós-graduações, bem como, mais Unidos centenas de escolas de ensi-
notavelmente, o grau de Ph.D. Está no superior confessionais, associa-
classificada como a melhor em mui- das a instituições credenciadoras.
tas áreas, incluindo matemática, físi- No Brasil, os reformados trouxeram
ca e astronomia, economia, história importantes contribuições para a
e filosofia. educação, com a fundação de esco-
A famosa Universidade de Har- las e universidades e a influência nos
vard foi fundada em 1643 pelos meios educacionais.
reformados, apenas seis anos após
a chegada deles na baía de Massa- Conclusão
chussets, nos Estados Unidos. Sua As iniciativas pioneiras de Calvi-
declaração quanto à missão e pro- no, em Genebra, na área da educa-
pósito da educação, sobre a qual ção lhe valeram, conforme destaca
Harvard foi erigida, foi redigida da o historiador Philip Schaff, o título
seguinte maneira: de “fundador do sistema escolar co-
Cada estudante deve ser instruí- mum”.
do e impelido a considerar correta-
mente que o propósito principal de
sua vida e de seus estudos é conhe- _____________
cer a Deus e a Jesus Cristo, que é a
Copiado e abreviado (com permissão) de “Cal-
vida eterna (João 17.3). Conseqüen- vino e Educação: Carta de Princípios 2009”
temente, colocar a Cristo na base é (Universidade Presbiteriana Mackenzie).
o único alicerce do conhecimento e Colaboram para o seu conteúdo:
do aprendizado sadios. Dr. Alderi Souza de Matos
Dr. Hermisten Costa Pereira
Pr. Franklin Ferreira
A Universidade de Yale, uma das
mais antigas universidades dos Es-
O Calvinismo e o
Governo Civil
Solano Portela

C alvino, francês de nascimen- as Institutas da Religião Cristã, no


to, viveu, pastoreou e trabalhou na Livro IV, Capítulo 20 (o último ca-
Suíça. Ele é um dos teólogos que pítulo desse seu livro), encontramos
mais escreveu sobre o governo civil. uma grande exposição do tema, sob
Em suas idéias, firma-se a tradição o título Do Governo Civil, em 32
reformada sobre a política. Sua atu- seções. Na terminologia de Calvi-
ação na cidade de Genebra não foi no, os governantes são chamados de
somente teológica e eclesiástica. “magistrados” ou de “magistrados
Seguindo o entrelaçamento com o civis”, seguindo a própria termino-
Estado que ainda prevalecia naque- logia paulina de Romanos 13.1-7.
les tempos, Calvino teve intensa
atuação na estruturação da socieda- 1. O Governo Civil – esfera es-
de civil daquela cidade. Participou, pecífica e legítima ao cristão
igualmente, da administração e dos Grande parte do que Calvino es-
detalhes operacionais do dia-a-dia creveu foi dirigida aos anabatistas,
da cidade, inclusive em seus aspec- contradizendo os argumentos destes
tos sociais. que diziam ser o governo civil uma
Os escritos de João Calvino re- área de atuação ilegítima ao cristão.
velam uma percepção incomum à Calvino exalta o ofício do magistra-
época, traçando claramente os limi- do civil e extrai da Palavra de Deus
tes de atuação do Estado e especifi- definições e parâmetros que, mais
cando com clareza a esfera da Igre- tarde, fariam parte da tradição refor-
ja. Em seu mais famoso trabalho, mada.
20

Logo na seção 1, Calvino indica que a primeira conseqüência dessa


que o governo civil é algo diferente aprovação é a grande responsabi-
e separado do reino de Cristo, uma lidade que os próprios governantes
questão que ele diz não ter sido com- têm consigo mesmo perante Deus.
preendida pelos judeus. Ele aborda Existe, pois, a necessidade de um
a separação entre Igreja e Estado, auto-exame constante, para aferirem
dizendo: “Aquele que sabe distin- se estão sendo justos e se estão se
guir entre o corpo e a alma, entre a enquadrando, com toda propriedade,
vida presente efêmera e aquela que na categoria de ministros de Deus.
é eterna e futura não terá dificulda- Calvino escreve, sobre os gover-
de em entender que o reino espiri- nantes: “Se eles cometem qualquer
tual de Cristo e o pecado, isso não é
governo civil são apenas um mal re-
coisas completa- É evidente que aquela lei alizado contra pes-
mente separadas”. de Deus que chamamos soas que estão sen-
Na seção 2,
entrando na tercei-
de moral nada mais é do do perversamente
atormentadas por
ra, ele afirma que, que o testemunho da lei eles, mas repre-
mesmo restrito à natural e da consciência senta, igualmente,
esfera temporal, que Deus fez gravar na um insulto contra
o governo civil é o próprio Deus, de
área legítima ao
mente dos homens... quem profanam o
cristão. Calvino Assim [esta lei] deve sagrado tribunal.
chama de “faná- ser o objeto, a regra e Por outro lado,
ticos” os que se o propósito de todas as eles possuem uma
colocam contra a admirável fonte de
instituição do go-
leis. conforto quando
verno. Entre as refletem que não
funções primordiais do governo, ele estão meramente envolvidos em
relaciona: “…que a paz pública não ocupações profanas, indignas de um
seja perturbada; que as proprieda- servo de Deus, mas ocupam um ofí-
des de cada pessoa sejam preserva- cio por demais sagrado, porque são
das em segurança; que os homens embaixadores de Deus”.
possam exercer tranqüilamente o
comércio uns com os outros; que 2. Exame de formas de governo
seja incentivada a honestidade e a Na seção 8, Calvino examina três
modéstia”. formas de governo: monarquia, aris-
Nas seções 4 a 7, Calvino fala tocracia e democracia. Ao fazer isso,
sobre a aprovação divina do go- ele adentra a política em toda a sua
vernante, ou seja, o ofício do ma- extensão. Ele classifica de futilidade
gistrado civil, ancorando suas ob- as discussões que pretendem provar
servações em Provérbios 8.15-16 e conclusivamente que uma forma de
Romanos 13, respondendo também governo é melhor do que outra. Para
a objeções. Entretanto, ele insiste Calvino, as três formas são passíveis
O Calvinismo e o Governo Civil 21

de críticas: a monarquia tende à tira- exatamente essa linha de pensamen-


nia; na aristocracia, a tendência é a to. Calvino faz referência a várias
regência de uma facção de poucos; passagens bíblicas que conclamam
na democracia, ele vê uma forte ten- os governantes a exercer os princí-
dência à quebra da ordem. Ao dizer pios divinos de justiça, como Jere-
isso, ele se revela um defensor da mias 23.2 e Salmos 82.3-4. Mas não
aristocracia – como a forma menos é somente nessa abrangência que ele
danosa de governo. O raciocínio de enxerga a atuação do governo. Ele
Calvino é que a história não favore- afirma que a esfera de autoridade se
ce a monarquia, pois reis e impera- “estende a ambas as tábuas da lei”.
dores despóticos marcam essa forma Ou seja, os primeiros quatro man-
de governo. No entanto, Calvino não damentos (a primeira tábua da Lei),
se sente confortável em uma demo- como falam dos deveres dos ho-
cracia, sob o temor de que as massas mens para com Deus, legitimaria o
não saibam conter seus “vícios e de- governo não somente em promover
feitos”.1 No governo de alguns sobre o exercício da religião verdadeira,
muitos (aristocracia), ele vê a pos- como também em punir os que não
sibilidade de controle de uns sobre a seguissem. Esse pensamento seria
os outros, de aconselhamento mútuo posteriormente refinado por vários
e de preservação desses “vícios e outros pensadores e documentos
defeitos”. A essência de qualquer reformados, que, diferentemente de
forma de governo, para Calvino, é a Calvino, considerariam a esfera le-
liberdade. Ele escreve: “Os gover- gítima de atuação no governo como
nantes [magistrados] devem fazer situada apenas na segunda tábua da
o máximo para impedir que a liber- Lei (os mandamentos que regulam
dade, à qual foram indicados como as atividades e os relacionamentos
guardiões, seja suprimida ou viola- com o nosso próximo). Na seção 10,
da. Se eles desempenham essa tare- Calvino trata desse assunto, respon-
fa de forma relaxada ou descuidada, dendo a objeções colocadas contra
não passam de pérfidos traidores do esse ponto de vista, especialmente
ofício que ocupam e de seu país”. as que surgiam dos anabatistas.

3. Deveres dos governantes 4. Prerrogativas dos Governos


para com a religião Da seção 11 até a 13, Calvino fala
Calvino reflete ainda a visão da de várias prerrogativas dos gover-
época, de que um dos deveres dos nos, começando com a de envolver-
governantes era a promoção da re- se em guerras. Ele não é um incenti-
ligião verdadeira. Essa compreensão vador do estado beligerante, mas vê
se tornaria parte, inclusive, do texto como uma realidade o fato de que os
original da Confissão de Fé de West- governos terão de pegar em armas
minster, quase 100 anos depois, em para defenderem seus governados e
1648, tendo sido, depois, modificada seus territórios. Nessa linha de pen-
significativamente, em 1788, nos Es- samento, o governo deve ser forte e
tados Unidos. A seção 9 desenvolve se armar para garantir a vida pacífica
22

de seus governados, reprimindo pela 6. Os governados e a lei – re-


força os criminosos. Em todas essas lacionamentos de uns para com os
seções, citando Agostinho para fun- outros
damentar sua posição, Calvino faz Cinco seções são utilizadas (17
várias referências à restrição neces- a 21) para tratar de um tema que
sária aos governantes, para que não é sempre controvertido – como os
abusem da prerrogativa da força. A governados podem usar as leis para
segunda prerrogativa, tratada na se- ajustarem seu comportamento de
ção 13, é a de cobrar impostos. Nes- uns para com outros? Calvino tra-
se sentido, Calvino propõe a legiti- ta da questão explorando até onde
midade de os governantes cobrarem é legítima uma demanda judicial
impostos e taxas até para seu próprio entre governados. Uma de suas pre-
sustento – isso não deveria espantar, ocupações era a de refutar os ana-
nem confundir os cristãos. batistas, que condenavam qualquer
forma de procedimentos judiciais.
5. Os governos e as leis Em seu tratamento, ele responde
Calvino apresenta um extenso especificamente a duas objeções. A
tratamento da lei de Deus nas se- primeira, a indicação de que Cristo
ções 14 a 16. Ele introduz a distin- nos proíbe resistir ao mal (Mt 5.39-
ção entre a lei religiosa, a lei civil 40); a segunda, a de que Paulo con-
e a lei moral – encontrada nas Es- dena toda e qualquer ação judicial
crituras. Reconhecendo os dois pri- (1 Co 6.6). Na visão de Calvino,
meiros aspectos como temporários, os crentes são pessoas que devem
pertinentes apenas ao Antigo Testa- suportar “afrontas e injúrias”. Isso
mento, ele reafirma a permanência contribui para a formação do cará-
da Lei Moral. Diz Calvino: “É evi- ter e produz uma geração que não
dente que aquela lei de Deus que se fixa em retaliação – o que carac-
chamamos de moral nada mais é teriza os descrentes. No entanto,
do que o testemunho da lei natural ele não chega a dizer que o cristão
e da consciência que Deus fez gra- nunca deve levar um caso à justiça.
var na mente dos homens... Assim Paulo, em 1 Coríntios 6, aborda uma
[esta lei] deve ser o objeto, a regra situação em uma igreja que tinha o
e o propósito de todas as leis. Em litígio como característica de vida
qualquer lugar que as leis venham e com o envolvimento de estranhos
a se conformar com esta regra, di- à comunidade. Tudo isso causava
recionadas a este propósito e res- grande escândalo ao evangelho. As-
tritas a esta finalidade, não existe sim, afirma Calvino, devemos estar
razão porque sejam reprovadas por até predispostos a sofrer perdas,
nós”. Calvino cita Agostinho (A mas ele complementa: “Quando
Cidade de Deus, Livro 19, c. 17) alguém vê que a sua propriedade
como apoio à sua exposição e ter- imprescindível está sendo defrau-
mina examinando as leis de Moisés dada, ele pode, sem nenhuma falta
– quais podem ser aplicadas e quais de amor [caridade], defendê-la. Se
foram ab-rogadas. ele o fizer, não estará ofendendo, de
O Calvinismo e o Governo Civil 23

maneira nenhuma, esta passagem tos. Calvino faz referência a passa-


de Paulo” (seção 21). gens como Daniel 2.21, 37; 4.17, 20;
5.18-19; Jeremias 27.5-8 e 12, que
7. Os governados e a lei – res- ele classifica como um dos trechos
peito e submissão aos governantes mais impressionantes.
As dez últimas seções (22 a 32) Calvino responde às objeções
ocupam-se com a questão da sub- mais comuns a essa postura de obe-
missão dos governados. Calvino diência (seção 28) e passa a traçar
trata do respeito e da obediência algumas considerações para que
devidos aos governantes (22 e 23), consigamos exercitar paciência,
passando a examinar a questão da quando submetidos à tirania (seções
submissão aos tiranos (24 e 25). Ele 29 e 30). Ele ensina três posturas:
demonstra que as Escrituras consi- (1) devemos nos concentrar não na
deram o ofício do regente civil na pessoa do que oprime, mas no ofí-
mais alta conta, e não resta ao cristão cio que aquela autoridade recebeu
senão ter a mesma visão que a Pala- de Deus; (2) quando estamos sendo
vra de Deus tem. Baseando-se em alvo de opressão, devemos nos lem-
Romanos 13, Calvino reforça que a brar de nossos próprios pecados e (3)
desobediência civil é desobediência devemos confiar que Deus é justo
a Deus. Calvino não dá abrigo aos juiz e executará justiça no seu devi-
pensamentos de revolta contra as au- do tempo, vingando o oprimido. No
toridades, nem mesmo contra os ti- entanto, Calvino admite que, às ve-
ranos. Ele diz: “Insisto intensamen- zes, Deus levanta corporativamente
te em provar isto, que nem sempre é uma nação para controlar a tirania e
perceptível aos homens: mesmo um o mal exercidos por outra (seções 30
indivíduo do pior caráter – aquele e 31). Calvino insiste que há uma di-
que não é merecedor de qualquer ferença entre a postura individual (o
honra –, se estiver investido de au- dever de submissão e obediência) e
toridade pública, recebe aquele po- a corporativa (que pode ser contesta-
der divino ilustre de sua justiça e de tória, sempre baseada nos princípios
julgamento que o Senhor, pela sua divinos de justiça).
palavra, derramou sobre os gover- Calvino encerra a sua exposi-
nantes. Assim, no que diz respeito ção (seção 32), traçando os limites
à obediência pública, ele deve ser da obediência e da submissão – os
objeto da mesma honra e reverência governantes não podem ordenar
que recebe o melhor dos reis”. ações que sejam contrárias à Pala-
Nesse sentido, Calvino passa a vra de Deus. A resistência a essas
fazer referência a vários textos da ordens não pode ser classificada
Palavra de Deus (seções 26 e 27), como insubmissão, e sim como de-
alguns dos quais demonstram que monstração de lealdade a Deus. Cal-
os reis ímpios não estão fora do vino mostra a resistência de Daniel
plano soberano de Deus, mas ser- (6.22) e ressalta como a submissão
vem de braço vingador do próprio do povo, sob o governo de Jeroboão,
Deus, cumprindo os seus propósi- que os levou à adoração de bezerros
24

de ouro (1 Reis 12.28) é condenada bem identificadas no desenvolvi-


em Oséias 5.11. Além de referir-se a mento da tradição reformada.) To-
Atos 5.29 (a declaração de Pedro in- davia, Calvino não deixa de classi-
dicando a importância de obedecer ficar as esferas de cada um – Estado
a Deus acima dos homens), Calvino e Igreja, agindo em áreas e situações
menciona 1 Coríntios 7.23, mos- diferentes. Acima de tudo, ele colo-
trando que não devemos subjugar a ca tanto governantes como governa-
liberdade recebida em Cristo às im- dos responsáveis diante de Deus por
piedades e desejos depravados dos suas ações ou omissões. Em nossos
homens. dias, a visão clara e precisa de Cal-
vino a respeito desses diversos as-
Síntese do pensamento de Cal- pectos da regência terrena de nossas
vino vidas deveria ser estudada, aplicada
O pensamento de Calvino tem, e defendida tanto pelos governantes
portanto, uma visão elevada da im- como pelos governados.
portância dos governantes. Ele não
“abre brechas” para focos de insub-
missão ou de insurreição. Apresenta _____________
um aspecto muito ligado ao seu tem- Notas:
po – colocar o Estado como “prote- 1. É importante notar que “democracia”, na for-
tor” da Igreja. (Essa posição seria ma como a entendemos hoje, não era um
depois mais bem examinada pelos conceito praticado ou discutido amplamen-
te; isso só começou a acontecer alguns sé-
teólogos, e as áreas de atuação, mais culos depois de Calvino.

Paciência no levar a cruz


Jerry Bridges

Embora a auto-renúncia seja bastante desafiadora,


Calvino ensina que: “É conveniente que o cristão fiel
suba a um nível mais elevado, quando Cristo chama
todo discípulo a ‘tomar a sua cruz’”. A auto-renúncia
é algo que praticamos ou uma atitude que mantemos.
Para Calvino, levar a cruz significava aceitar das
mãos de Deus as circunstâncias difíceis, árduas e
dolorosas da vida como meios pelos quais podemos ser
conformados à imagem de Cristo (Rm 8.29).
Calvino e a Estética
Gilson Santos

M uitos entre nós quando ou- que é belo. Assim como todos nós
vem a palavra “estética” logo a as- temos concepções do que é verda-
sociam a salões de beleza, cirurgias deiro e do que é bom, assim também
plásticas, dietas de emagrecimento e possuímos concepções sobre o que
outras coisas do gênero. As razões é belo. Portanto, todo ser humano
para isso são bem óbvias e ampla- tem um senso estético, quer tenha
mente debatidas. Alguns sugerem refletido ou não sobre esse senso.
que este fenômeno crescente e es- Podemos dizer que neste sentido
magador da “neura estética” parece mais amplo todo ser humano é um
refletir, entre outras coisas, um es- esteta, pois reage de alguma ma-
forço de construção da identidade, neira à beleza, projeta sua idéia de
uma saída do anonimato e busca beleza em situações concretas, tem
pela visibilidade, numa sociedade suas emoções e sentimentos desper-
em que tudo é um espetáculo e na tados pela beleza; enfim, a sua vida
qual visibilidade e empoderamento e criatividade expressam inevitavel-
andam de mãos dadas. Esta discus- mente suas noções estéticas. Isso se
são é certamente ampla e abrangente vê em todo o tempo: desde atitudes
e possui várias nuanças que não te- triviais (como, por exemplo, esco-
mos o propósito de abordar aqui. lher uma roupa para vestir) àquelas
Para os que não foram introduzi- de maiores impactos em nossa vida
dos a este campo de estudo, precisa- diária (como a planta e o projeto da
mos dizer que a palavra estética tem casa em que moramos). Atinge tam-
a ver com as nossas concepções do bém aquelas decisões mais cruciais
26

da vida (como, por exemplo, a esco- santidade” ou quando diz que pediu
lha de nosso cônjuge). Talvez você ao Senhor: “Que eu possa morar na
replique dizendo que, em algumas Casa do Senhor todos os dias da mi-
dessas escolhas, nos orientamos nha vida, para contemplar a beleza
mais por critérios práticos, prag- do Senhor”; ou quando o profeta
máticos, utilitários ou por valores Isaías, antecipando o estado de hu-
morais e espirituais. Você está certo, milhação de Cristo, diz: “Olhamo-
até certo ponto. Entretanto, precisa- lo, mas nenhuma beleza havia que
mos dizer que, se de alguma maneira nos agradasse”. Creio que todos os
você toma uma decisão que prioriza, que se lembram do relato da criação,
por exemplo, o moralmente bom em no livro de Gênesis, podem recordar
lugar do corporalmente belo, você que, ao final de sua obra de criação,
está, em tal decisão, expressando “viu Deus tudo quanto fizera, e eis
necessariamente um valor estético. que era muito bom”. Uma consulta
Isso logo nos diz que a Estéti- ao adjetivo no original hebraico nos
ca é uma área da Filosofia em que informa que, nesse versículo, a idéia
as reflexões sobre o belo e a beleza de bom expressa (ou no mínimo
acontecem. Alguns inclui) uma idéia
filósofos separam estética. Cada por-
uma seção da sua Podemos saber que menor dessa obra
obra para tratar na simetria das obras de Deus foi decla-
desse tópico, deci- rado como “bom”,
didamente; outros,
de Deus há suprema e o conjunto todo,
não o fazem. Po- perfeição. como “muito
rém, mesmo nesse bom”. Em seu
último caso, quase comentário des-
sempre é possível estudar a estética se versículo, João Calvino diz que
daquele pensador de forma dispersa “podemos saber que na simetria das
no conjunto de sua obra. obras de Deus há suprema perfeição,
Avançando um pouco mais, po- à qual nada pode ser adicionado”. O
demos dizer que os ensinos de Jesus salmista expressa musicalmente o
Cristo, assim como todo o ensino seu encanto pela criação de Deus
e literatura bíblica, expressam uma quando exclama: “Que variedade,
estética. Quando se diz no livro de Senhor, nas tuas obras! Todas com
Provérbios: “Enganosa é a graça, e sabedoria as fizeste”.
vã, a formosura, mas a mulher que A Estética analisa o complexo
teme ao Senhor, essa será louvada”; das sensações e dos sentimentos,
ou quando o sábio recomenda ao seu investiga sua integração nas ativi-
filho não cobiçar no coração “a for- dades físicas e mentais do homem,
mosura da mulher vil”, temos nessas debruçando-se sobre as produções
declarações um valor estético refle- (artísticas ou não) da sensibilidade,
tido claramente. O mesmo aconte- a fim de determinar suas relações
ce quando o salmista nos exorta a com o conhecimento, a razão e a
adorar o Senhor “na beleza da sua ética. O estudo da estética tem sido
Calvino e a Estética 27

particularmente importante quando cósmica preestabelecida. Pela época


se considera as artes, pois a disci- da queda de Roma, Agostinho podia
plina é a base teórica da crítica da orar: “Eu te invoco, Deus Verda-
arte. As artes refletem as noções ou de, em quem, por quem e mediante
valores estéticos de seus criadores. quem é verdadeiro tudo que é ver-
Na arquitetura, pintura, cinema, mú- dadeiro. Deus Sabedoria, em quem,
sica, enfim, nas artes em geral, vê-se por quem e mediante quem têm sa-
uma busca pela retratação da beleza, bedoria todos os que sabem... Deus
ou uma renúncia formal dela, ou um Bondade e Beleza, em quem, por
posicionamento do artista em rela- quem e mediante quem é bom e belo
ção a um modelo estético vigente. tudo o que tem bondade e beleza”.
Nesse sentido, a obra de arte nunca Ele se indagava na Confissões: “Que
é neutra, esteja ou não o artista cons- amamos nós que não seja belo? Que
ciente desse fato. A história da arte, é o bem? E que é a beleza? Que atra-
seccionada em períodos, revela que ção é essa que nos liga a objetos de
em determinada época ou geração nossa afeição? Se não tivessem en-
um modelo de estética prevaleceu. canto nem beleza, não causariam
A noção clássica de estética, nenhuma impressão sobre nós”. E
como se viu na educação grega, gi- lemos de forma dispersa em suas
rava em torno da kalokagathia, isto obras:
é, da idéia de uma convergência do Eu amava as belezas terrenas e
valor estético com os valores éticos caminhava para o abismo... Eu, dis-
(utilidade social e política) da comu- forme, lançava-me sobre as belas
nidade. Portanto, a estética clássica, formas das tuas criaturas... Reti-
como se vê em filósofos como Pla- nham-me longe de ti as tuas criatu-
tão, por exemplo, associa esponta- ras, que não existiriam se em ti não
neamente o belo e o bem. Disso de- existissem... Tuas obras te louvam
riva-se o termo grego kalokagathia. para que te amemos. A natureza dá
Esse conceito origina-se da expres- glória a seu Artífice. Ó Sapiência,
são kalos kai agathós, que significa, luz suavíssima da mente purificada!
literalmente, belo e bom ou belo e Ai dos que te abandonam como guia
virtuoso. Portanto, o esteta clássico e se extraviam nos teus vestígios! Ai
compreende um vínculo natural en- dos que, em vez de ti, amam os teus
tre o belo e o bom e, porque não di- acenos e esquecem o que tu insinu-
zer, também, o verdadeiro. Para ser as! Não cessas efetivamente de nos
bom e belo, é preciso ser verdadeiro; insinuar quem e quão grande és, e
e as buscas desses ideais estariam são acenos teus toda a beleza das
interrelacionadas. criaturas. Na verdade, também o
Com o advento do cristianismo artífice, a respeito da própria beleza
(e, para o nosso foco aqui, parti- da obra, insinua de algum modo a
cularmente em sua introdução no quem contempla em sua obra, que
Ocidente), a beleza é associada à não fique todo preso a isso, mas per-
idéia de revelação e à perfeição de corra de tal modo, com os olhos, a
um Deus Criador ou de uma ordem beleza do corpo executado que vá,
28

com o afeto, até junto de quem o visão fundamentalmente nova da fé


executou. Quanto aos que, em vez e da maneira como o ser humano se
de ti, amam as obras que tu realizas, entende como tal.  Infelizmente, o
assemelham-se aos homens que, ao curto espaço aqui não nos permite
ouvir algum sábio de eloqüência no- uma exposição mais ampla e satis-
tável e escutar com excessiva avidez fatória. Não é possível, por exem-
a suavidade da sua voz e a dispo- plo, traçar o contraste que se operou
sição das sílabas, devidamente co- como fruto da reação protestante/
locadas, perdem de vista a primazia reformada ao padrão estético católi-
dos pensamentos de que essas pala- co medieval. Devemos dizer, porém,
vras tinham vibrado como sinais. que, por suas idéias revolucionárias
para a época, tanto Lutero quanto
Agostinho, entretanto, é moder- Calvino foram tachados de icono-
no em um aspecto. Não há dúvida clastas, e disseminou-se o (mau)
de que, para ele, o Belo é belo, e o entendimento de que a fé reforma-
Feio é feio... Nesse sentido, quando da não admitia a arte. Tais idéias
Agostinho fala de não correspondem
Beleza, está falan- à verdade. A arte
do, em rigor, do Os objetivos da arte, luterana no cam-
Belo. No entanto (e segundo Calvino, são po da música tem
isto introduz uma glorificar a Deus e trazer r e p r e s e n t a n t e s
nova tensão na es-
tética agostiniana),
o bem ao homem. A arte de renome como
Buxtehude, Bach,
Agostinho revelou- é um presente do Criador Häendel, citan-
se bastante atento às suas criaturas. do apenas alguns
à distinção entre a exemplos... Tanto
Beleza em geral e Dietrich Buxtehu-
o Belo apenas clássico. Uma contri- de quanto Johann Sebastian Bach
buição valiosa que Agostinho trouxe foram empregados de suas igrejas
à Estética foram suas reflexões sobre como organistas e compositores.
a presença do Mal e do Feio no cam- João Calvino, que pertence à se-
po estético. Os pensadores gregos gunda geração do protestantismo,
identificavam o Belo com a Beleza, recebeu forte influência da estéti-
considerando-o a única forma legí- ca agostiniana. O genial Calvino
tima de Beleza. A beleza é o belo oferece-nos um legado bem rico e
puro. Agostinho, porém, aprofunda próprio. Para Calvino – indo dire-
a fórmula da unidade na variedade, tamente ao coração da questão – a
levando-a às conseqüências últimas; arte nos revela uma realidade mais
isto é, ele diz que a variedade não elevada do que a realidade oferecida
abrange somente as partes belas de por este mundo pecaminoso. Alguns
um todo. teólogos holandeses neocalvinistas,
A Reforma produziu  impactos como Abraham Kuyper, têm sa-
indubitáveis sobre a arte e a estética lientado que o calvinismo compre-
de seu tempo.  Isso porque há uma endeu   a influência horrenda e cor-
Calvino e a Estética 29

ruptora do pecado sobre a arte e que no período contemporâneo. A igre-


isso o levou a maior apreciação da ja promove o culto; e o setor público
natureza do Paraíso na beleza da jus- e/ou “secular-privado” promovem a
tiça original. E, guiado por essa re- arte. Um exemplo ilustrativo deste
cordação encantadora, o calvinismo modelo foi o período no qual Bach
também profetizou uma redenção afastou-se da “música luterana” e
da natureza exterior, a ser realizada foi para Köthen, onde trabalhou
no reino da glória celestial. A partir para o príncipe calvinista Leopold
desse ponto de vista, o Calvinismo d’Anhalt-Köthen. Foram cinco anos
honrou a arte como um dom do Es- frutíferos, embora Bach não hou-
pírito Santo e como uma consolação vesse composto música religiosa,
em nossa vida atual, habilitando-nos ficando restrito à “música profana”.
a descobrir em e atrás desta vida pe- Datam dessa época os “Concertos
caminosa um pano de fundo mais de Brandenburgo”, o “Cravo Bem-
rico e mais glorioso. Considerando Temperado”, a maior parte de sua
as ruínas desta criação outrora tão música de câmara e as suítes orques-
maravilhosamente bela, para o cal- trais.
vinista a arte chama a atenção tan- Sob Calvino, se Deus é e conti-
to para as linhas do plano original nua sendo soberano, a arte não pode
ainda visíveis quanto (e isto é ainda produzir nenhum encantamento, ex-
melhor) para a esplêndida restaura- ceto de acordo com as ordenanças
ção pela qual o Supremo Artista e que Deus estabeleceu para a beleza,
Construtor Mestre um dia renovará quando ele, como o Supremo Artis-
e intensificará a beleza de sua cria- ta, chamou este mundo à existên-
ção original. cia. Após a Criação, Deus viu que
Convém destacar que uma gran- tudo era bom. A beleza existe por
de diferença entre Lutero e Calvino si mesma, na condição de criação
foi a implementação prática do pa- divina, e Deus a percebe, tanto es-
trocínio da arte. Para Calvino a arte piritual como corporalmente, desde
não deveria ser tutelada, sustentada o momento da criação. Um artista
economicamente pela religião. A pode observar isso em si mesmo.
arte, embora buscasse sua motivação Se ele compreende que sua própria
no religioso, deveria ser sustentada capacidade artística depende de ter
e estimulada por recursos externos um olho para a arte, deve necessa-
aos da igreja. Para o calvinismo, a riamente chegar à conclusão de que
religião deveria ser eminentemente “o olho” original para a arte está no
logênica (privilegiando a palavra e próprio Deus, cuja capacidade para
a prédica) e investir financeiramente produção artística é plena, e segun-
na capacitação teológica dos fiéis. do essa imagem foi feito o artista
O investimento em arte, incluindo entre os homens.
arquitetura, deveria advir de fontes É equivocada, portanto, a idéia
outras. Enfim, com Calvino temos de que Calvino teria se posicionado
grande medida do início da arte “se- contra as artes em geral; e comumen-
cular” que assistimos, sobretudo, te essa idéia é parcial ou unilateral.
30

O reformador francês considerava Ele recrutou músicos para a Igreja


formas de arte como dons de Deus de Genebra e os colocou a trabalhar
a nós. Os objetivos da arte, segun- na produção de novas melodias para
do Calvino, são glorificar a Deus e acompanharem os salmos. Para ele
trazer o bem ao homem. A arte é um havia dois tipos de oração: a falada e
presente do Criador às suas criatu- a cantada. Calvino restaurou o canto
ras. com acompanhamento da melodia e
O posicionamento de Calvino da harmonia voltadas para o canto
possibilitou a criação de toda uma congregacional. Ele acreditava que
nova ordem artística. Na Holanda, o ponto central da música na igre-
por exemplo, com a libertação do ja era primeiramente o conteúdo
jugo espanhol e, por conseqüência, cantado; a música era direcionada
da Igreja Católica, houve um cres- à congregação e devia ser simples,
cente mercado de retratos entre a sem exigir treinamento ou habilida-
classe burguesa local. Os artistas, de teórica daquele que cantaria em
como não havia mais o suporte fi- uníssono na igreja.
nanceiro da Igreja Católica, come- As “igrejas” protestantes de-
çaram a trabalhar para a burguesia. monstraram grandes diferenças ar-
O maior expoente na pintura nesse quitetônicas que provieram da teo-
período foi Rembrandt, membro da logia. No século XVI, as igrejas e
Igreja Reformada Holandesa, cujo catedrais construídas durante a Ida-
pai era calvinista. Apesar de ter pro- de Média eram góticas. Nessas igre-
duzido pinturas sacras, Rembrandt jas, pilares sustentam o alto teto de
as fez por convicção e motivação pedra, os arcos têm forma alongada
própria, e não a fim de serem vendi- e o interior é iluminado por grandes
das para a Igreja. janelas adornadas com vitrais. O
Com relação à música e à liturgia teto alto e os arcos alongados des-
protestante, buscou-se fazer sentir pertavam nos fiéis um sentimento de
no culto seu desejo de reforma na submissão. Quanto mais alto o teto,
Igreja. Em Calvino, o desejo foi o mais distantes do céu e de Deus as
de uma reforma radical, buscando pessoas se sentiam. E a arquitetu-
a construção de uma nova igreja, ra da igreja era pensada justamente
resgatando, da igreja apostólica, ele- para  estimular esse senso de gran-
mentos perdidos nos desvios ao lon- diosidade e de reação. Quando uma
go da história e preservando somen- igreja católica era transformada em
te o que não se teria corrompido. protestante, as imagens eram retira-
Nos atos litúrgicos, os calvinistas das, pois os protestantes não prati-
não fogem às implícitas demandas cam a chamada “veneração dos san-
teológicas do seu brado reformado tos”. Também era retirado o altar,
Soli Deo Gloria (“Glória somente que nas igrejas católicas é utilizado
a Deus!”). Calvino acreditava que a para a celebração da missa com seu
música possuía o poder de inflamar o centro eucarístico. Nas igrejas pro-
coração humano com zelo espiritual, testantes, no lugar do altar podia ser
trabalhando-o para essa finalidade. colocado um órgão. O púlpito, que
Calvino e a Estética 31

nas igrejas católicas tinha menor um ambiente no qual aquele que crê
destaque, se transformava em lugar pode estar em comunhão com um
central, onde o pastor fazia a leitu- Deus próximo, sem necessidade de
ra da Bíblia e a expunha. Assim, a intermediários. Há uma sensação de
arquitetura das igrejas calvinistas acolhimento, de conforto na fé. E,
procura ser fiel à sua teologia, pois se há algum ponto em que o barroco
dá ênfase à Palavra; não é mais um católico colonial e o estilo reformado
lugar para contemplação submissa, calvinista convergem, é justamente
e sim um local de verdadeira comu- este, a saber, o senso de acolhimento
nhão do homem com Deus. e de proximidade. Porém, o barroco
Muitos criticam o fato de as igre- católico impôs-se pela arte, espe-
jas protestantes serem tão despoja- cialmente por meio da arquitetura,
das, tão simples, tão sem ornamentos.  pintura, escultura... na exuberância
Calvino pensou na arquitetura dessas sensorial e na liturgia rebuscada. Já
igrejas como um ambiente que não o modelo calvinista buscou impor-se
produzisse distrações, a fim de que à consciência do fiel com a centrali-
a Palavra de Deus fosse o centro de dade da Palavra e a simplicidade do
toda a atenção, pois era o que se tinha culto.
de mais importante. Podemos dizer Em nosso contexto, quando es-
que com o calvinismo há um esforço tamos presenciando o fenômeno da
de regresso à essência, em lugar da explosão sensorial e artística do cul-
aparência barroca das cortes católi- to evangélico brasileiro, em que o
cas. O ambiente das igrejas reforma- “verbo” vem crescentemente ceden-
das induz a atenção da congregação do lugar à “imagem”, uma reflexão
ao que o pregador diz. As “igrejas” sobre o legado estético calvinista
também não tem mais aqueles pés di- pode oferecer algumas referências
reitos altíssimos, góticos, sugerindo a cruciais, tanto no que tange ao diag-
pequenez do homem frente a Deus. nóstico quanto no plano prático da
Depois de Calvino, a igreja reflete ação litúrgica.

“Ninguém nega corretamente a si mesmo,


se não se entrega por completo ao Senhor e
está disposto a confiar cada detalhe à boa
vontade dEle. Se nos colocarmos nessa atitude
de espírito, então, não importando o que nos
aconteça, jamais nos sentiremos infelizes ou
acusaremos a Deus por nossa situação”.

João Calvino
Calvino como Pastor,
Evangelista e Missionário
Harry L. Reeder

M uitos conhecem a acusação de disso, ele treinava pregadores a ro-


que os calvinistas se preocupam so- garem aos homens e mulheres que
mente com doutrina e são indiferen- seguissem a Cristo. A visitação na
tes à evangelização e missões. Além enfermidade prescrevia uma con-
disso, o calvinismo é acusado de ser versa evangelística. Até uma análise
contraproducente em relação ao em- superficial dos sermões de Calvino
preendimento de evangelização e mostra de imediato um zelo perma-
missões. Isso é errado não somente no nente para que homens e mulheres
que diz respeito à história, conforme fossem convertidos a Cristo.
revela um exame da lista de grandes E o que podemos dizer sobre
pastores-evangelistas e missionários missões? O Registro da Venerável
que eram declaradamente calvinistas Companhia de Pastores relata que
(ou seja, George Whitefield, Charles 88 missionários foram enviados
H. Spurgeon, William Carey, David de Genebra. De fato, houve mais
Brainerd, Jonathan Edwards, etc.), do que cem, e muitos deles foram
mas também no que diz respeito ao treinados diretamente por Calvino.
próprio Calvino. Contudo, missões foram realizadas
A paixão de Calvino como pas- em um nível mais informal. Gene-
tor-evangelista se revelou de várias bra se tornou o imã de crentes per-
maneiras. Calvino evangelizava per- seguidos, e muitos desses imigrantes
sistentemente as crianças de Gene- foram discipulados e retornaram ao
bra, por meio de aulas de catecismo seu país como missionários e evan-
e da Academia de Genebra. Além gelistas eficazes.
Calvino como Pastor, Evangelista e Missionário 33

Quando se acalmaram os tempos seu ministério, foi invadida por mais


turbulentos no ministério pastoral de 1.300 missionários treinados em
de Calvino, surgiu a oportunidade Genebra. Esse esforço, conjugado
para expansão missionária inten- com o apoio de Calvino aos valden-
cional e implantação de igrejas. A ses, produziu a Igreja Huguenote
bênção de Deus sobre os esforços Francesa que quase triunfou sobre a
missionários de Calvino e das igre- Contra-Reforma católica na França.
jas de Genebra, de 1555 a 1562, Calvino não evangelizou e im-
foi extraordinária — mais de 200 plantou igrejas somente na França.
igrejas secretas foram implantadas Os missionários treinados por ele
na França por volta de 1560. Até estabeleceram igrejas na Itália, Ho-
1562, o número crescera para 2.150, landa, Hungria, Polônia, Alemanha,
produzindo mais de 3.000.000 de Inglaterra, Escócia e nos estados
membros. Algumas dessas igrejas independentes da Renânia. Ainda
tinham congregações que totaliza- mais admirável foi uma iniciativa
vam milhares de membros. O pastor que enviou missionários ao Brasil.
de Montpelier informou a Calvino, O compromisso de Calvino com a
numa carta, que “nossa igreja, gra- evangelização e missões não era te-
ças a Deus, tem crescido, e continua órico, mas, como em todas as outras
a crescer tanto a cada dia, que prega- áreas de sua vida e ministério, era
mos três sermões aos domingos para uma questão de atividade zelosa e
mais de cinco ou seis mil pessoas”. compromisso fervoroso.
Outra carta, do pastor de Toulouse,
declarava: “Nossa igreja continua _____________
crescendo até ao admirável número
Extraído do livro John Calvin: a heart for devo-
de oito ou nove mil almas”. A amada tion, doctrine, and doxology. Capítulo 5 – Cal-
França de João Calvino, por meio de vino o Clérigo da Reforma. Editado por Burk
Parsons (Reformation Trust, Orlando, 2008).

“De fato, a glória de Deus resplandece em


todas as criaturas, tanto nas superiores como
nas inferiores. Contudo, em nenhum outro lugar
essa glória resplandeceu mais intensamente
do que na cruz, na qual houve uma admirável
mudança de coisas — a condenação de todos os
homens foi manifestada, o pecado foi apagado,
a salvação, restaurada ao homem; em resumo,
todo o mundo foi renovado, e todas as coisas,
restauradas à boa ordem.” João Calvino
A Supremacia de Jesus Cristo
Eric J. Alexander

Não importa quantos inimigos fortes planejem destruir a igreja, eles


não têm poder suficiente para prevalecer contra o imutável decreto
de Deus pelo qual Ele designou seu Filho como Rei eterno.
João Calvino

É interessante, e acho que é notável, especialmente no âmbito


significativo, o fato de que os eru- da igreja que se declara cristã — e
ditos, ao buscarem uma palavra para isso é surpreendente, quase além
descrever a teologia, a pregação e o da compreensão. J. I. Packer sugere
raciocínio de João Calvino, têm sido que “a quantidade de distorções às
atraídos, muitas vezes, ao vocábulo quais a teologia de Calvino tem sido
cristocêntrico. Isso nos leva a con- submetida é suficiente para compro-
cluir que, em todos os seus interes- var inúmeras vezes a sua doutrina da
ses, Calvino não permitia que nada depravação total!”
ou ninguém tirasse o Senhor Jesus Se os críticos de Calvino lessem
Cristo de seu lugar de supremacia suas obras, chegariam a uma conclu-
em cada esfera da vida. Essa não era são diferente. Há duas fontes princi-
somente a maneira como Calvino pais para a leitura de Calvino. Uma
pensava, escrevia e pregava; era a dessas fontes é As Institutas da Reli-
maneira como ele vivia e orava. Vi- gião Cristã. Essa obra consiste de 80
sando à completude, alguns eruditos capítulos, 4 livros e mais de 1.000
preferem usar a palavra teocêntrico páginas. Packer chama-a de “uma
ou, pelo menos, acrescentá-la a cris- obra-prima sistemática, que con-
tocêntrico. Ser descrito de ambas as quistou um lugar permanente entre
maneiras era o mais profundo desejo os mais importantes livros cristãos”.
de Calvino. Os comentários bíblicos de Calvino
Sem dúvida, ele tem sido mal in- são outra fonte de leitura. Nenhuma
terpretado e vituperado, de maneira dessas fontes apresenta linguagem
A Supremacia de Jesus Cristo 35

obscura ou difícil. sobre a obra de Cristo como Media-


Essas obras oferecem inúmeras dor por meio de seu ofício tríplice,
percepções para o leitor. Mas reve- como Profeta, Sacerdote e Rei.
lam também, de modo conclusivo, Paul Wells escreveu que “João
que Calvino era um homem humil- Calvino é indubitavelmente o maior
de, piedoso e semelhante a Cristo, teólogo da mediação por intermé-
um homem que se gloriava somente dio de Cristo”. E acrescentou: “Foi
na pessoa e obra de Jesus Cristo, a Calvino que desenvolveu o concei-
quem ele se dedicava totalmente. to do ofício tríplice de Cristo, como
O desejo de Calvino de exaltar sacerdote, profeta e rei, como uma
a Cristo a um lugar de supremacia maneira de apresentar as diferentes
singular é revelado em seus comen- facetas da realização da salvação”.
tários do Novo Testamento. Até uma É claro que o Antigo Testamento é a
familiaridade superficial com esses sementeira dos três ofícios mediado-
comentários demonstra quão exata res, que aguardavam sua plenitude
é a palavra cristocêntrico para des- em Cristo. Por nome e pela ativida-
crever o evangelho que Calvino pre- de de Deus em seu favor, Cristo é o
gava e a ênfase que ele discerniu na “Ungido”.
teologia do Novo Testamento. Nos
comentários, ele escreveu: O ofício de Cristo como Profeta
• Não há qualquer aspecto de nossa Quando começamos a entender
salvação que não possa ser achado todo o escopo da obra de Cristo
em Cristo (Romanos). como Mediador, compartilhamos
• Todo o evangelho está contido em imediatamente do senso de Calvino
Cristo (Romanos). quanto à grandeza e à glória que per-
• Todas as bênçãos de Deus nos al- tencem a Cristo. Calvino escreveu:
cançam por meio de Cristo (Ro- “A obra que seria realizada pelo me-
manos). diador era incomum: envolvia o res-
• Cristo é o começo, o meio e o fim taurar-nos ao favor de Deus, a ponto
— nada pode ser achado à parte de de tornar-nos filhos de Deus, em vez
Cristo (Colossenses). de filhos de homens; herdeiros do
Sinclair B. Ferguson resumiu reino celestial, em vez de herdeiros
bem a supremacia de Cristo na te- do inferno. Quem poderia fazer isso,
ologia de Calvino, dizendo: “Tudo se o Filho de Deus não se tornasse
que nos falta, Cristo nos dá; todo igualmente Filho do Homem e, as-
o nosso pecado Lhe é imputado; e sim, recebesse o que nos pertence
todo o julgamento que merecemos e nos transferisse o que Lhe é pró-
foi suportado por Cristo”. prio, tomando o que Lhe pertence,
Há diversas maneiras pelas quais por natureza, e tornando-o nosso por
se sobressai o desejo de Calvino de graça?”
exaltar Jesus Cristo a um lugar de O acontecimento clássico por
supremacia única. Neste artigo me meio do qual Cristo foi comissiona-
limitarei a apenas uma dessas ma- do e revelado como Profeta foi sua
neiras, ou seja, o ensino de Calvino unção e batismo. Calvino comentou:
36

“A voz que trovejou do céu: ‘Este é Calvino foi o seu compromisso total
meu Filho amado, a ele ouvi’ deu- com o ensino e a pregação do texto
lhe um privilégio especial acima de das Sagradas Escrituras. Sua exposi-
todos os mestres. De Cristo, como ção de maior parte da Bíblia deixou
cabeça, essa unção é difundida aos a igreja, desde a Reforma, com um
seus membros, como Joel antecipou: tesouro inestimável. Contudo, ainda
‘Vossos filhos e vossas filhas profe- mais vital era sua absoluta submis-
tizarão’”. são à autoridade final das Escrituras.
No começo de seu ministério, Em seu comentário sobre a visão
Cristo anunciou sua vocação profé- relatada em Isaías 6, Calvino disse:
tica quando, na sinagoga, durante a “Não me arrisco a fazer qualquer
adoração, manuseou o livro do pro- afirmação sobre assuntos a respeito
feta Isaías. É significativo o fato de dos quais as Escrituras silenciam”.
que Ele leu uma passagem messiâni- De modo semelhante, ele concluiu
ca: “O Espírito do Senhor está sobre com estas palavras uma discussão
mim, pelo que me ungiu para evan- sobre julgamento: “Nossa sabedoria
gelizar os pobres; enviou-me para deve consistir em aceitar, com doci-
proclamar libertação aos cativos e lidade e sem qualquer exceção, tudo
restauração da vista aos cegos, para que é ensinado nas Sagradas Escri-
pôr em liberdade os oprimidos, e turas”.
apregoar o ano aceitável do Senhor” A posição de Cristo como nosso
(Lc 4.17-19). Ele fechou o rolo, Mestre ungido e designado tem im-
devolveu-o ao assistente e assentou- plicações profundas em nossa ati-
se. Em seguida, os olhos de todos os tude para com as Escrituras. Fazer
presentes se fixaram nEle, que disse: separação entre a supremacia abso-
“Hoje, se cumpriu a Escritura que luta de Cristo e a supremacia abso-
acabais de ouvir” (Lc 4.21). E todos luta das Escrituras — o que Calvino
se maravilhavam das palavras de defendia com firmeza — seria para
graça que saíam dos lábios de Jesus. ele impossível e ridículo. De fato,
Calvino explicou: ele descreveu as Escrituras como “o
O propósito desta dignidade cetro real de Cristo”, significando
profética, em Cristo, é ensinar-nos que Ele nos governa por meio delas.
que na doutrina ministrada por Ele Calvino concluía freqüentemente
estava incluída substancialmente a com estas palavras: “Ad verbum est
sabedoria que é perfeita em todos veniendum” (“Vocês têm de vir à
os seus aspectos. Fora de Cristo, Palavra”).
não há nada digno de conhecermos;
aquele que pela fé apreende o verda- O ofício de Cristo como Sacer-
deiro caráter de Cristo, esse possui dote
a ilimitada imensidão das bênçãos O sacerdócio é o segundo dos
celestiais. ofícios para os quais Cristo foi ungi-
do. Um sacerdote era um homem de-
Uma aplicação importante do signado por Deus para agir em favor
ofício profético de Cristo na vida de de outros nos assuntos relacionados
A Supremacia de Jesus Cristo 37

a Deus. Em outras palavras, Ele era não podia outorgar, nem outorgava
um mediador entre Deus e os ho- a realidade da salvação. Terceira, os
mens. O Antigo Testamento prepa- sacrifícios dos sacerdotes eram con-
rou o terreno para este conceito, e a tínuos: aconteciam diariamente no
Epístola aos Hebreus desenvolve-o templo. O trabalho do sacerdote do
intensamente. Calvino explicou a ta- Antigo Testamento nunca acabava.
refa sacerdotal em palavras solenes: Calvino contrastou tudo isso
“A sua função consistia em obter o com a perfeição do sacerdócio de
favor de Deus para nós. Contudo, Cristo descrito em Hebreus 9.12-14.
visto que uma maldição merecida Ele escreveu: “O apóstolo... expli-
obstruía a entrada, e Deus, em seu cou toda a questão na Epístola aos
caráter de Juiz, era hostil para co- Hebreus, mostrando que sem derra-
nosco, a expiação tinha de intervir mamento de sangue não há remis-
necessariamente, a fim de que, como são (Hebreus 9.22)... Todo o fardo
sacerdote escolhido para aplacar a de condenação do qual fomos livre
ira de Deus, Cristo foi lançado sobre
pudesse restaurar- Ele”.
nos ao favor divi- Tudo que nos falta, No entanto,
no”. Cristo nos dá; todo Calvino chama
Este é o aspecto o nosso pecado Lhe nossa atenção para
singular do sacer- outras implicações
dócio de Cristo: é imputado; e todo do sacerdócio de
Ele é não somen- o julgamento que Cristo. Este sacer-
te sacerdote, mas merecemos foi suportado dócio é permanen-
também vítima — por Cristo te e eterno, não
não somente o su- temporário e não
jeito da obra de in- limitado ao estado
tercessão, mas também o meio de re- de encarnação de Cristo. No presen-
alizá-la. Ele apresentou a oferta e se te, Ele está assentado à mão direita
tornou a oferta; por isso, se relaciona de Deus, implicando que completou
com os homens a favor de Deus e sua obra na cruz, mas ainda está ati-
com Deus, a favor dos homens. vo como nosso Advogado e Inter-
Havia três deficiências fatais no cessor. Calvino escreveu:
sacerdócio do Antigo Testamento. A fé percebe que o assentar-se
Primeira, o sacerdote tinha seus pró- de Cristo ao lado do Pai tem gran-
prios pecados que exigiam expiação. de proveito para nós. Depois de
Portanto, sendo imperfeito, ele não haver entrado no templo não feito
podia expiar seus pecados e, quanto por mãos humanas, Ele comparece
menos, os dos outros. Segunda, “é agora constantemente como nosso
impossível que o sangue de touros Advogado e intercessor à presença
e de bodes remova pecados” (Hb do Pai; dirige nossa atenção à sua
10.4). Esse sangue ensinava o cami- própria justiça, a fim de afastá-la
nho de salvação por meio da mor- de nossos pecados; reconcilia-nos
te de um Cordeiro imaculado, mas consigo mesmo e, por meio de sua
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intercessão, repleta de graça e mi- na cruz, como se a cruz, o símbolo


sericórdia, prepara-nos um meio de da ignomínia, tivesse sido converti-
acesso ao seu trono, apresentando- da em uma carruagem de triunfo”.
o a pecadores miseráveis, para os Em certo sentido, esse reino
quais, de outro de modo, esse trono já está estabelecido. Como R. C.
seria objeto de terror. Sproul escreveu: “É uma realidade
presente. Está agora invisível ao
Calvino se referiu a diversos mundo. Mas Cristo já ascendeu...
exemplos da intercessão de Cristo Neste exato momento, Ele reina
nos evangelhos. Um desses exemplos como o Rei dos reis e Senhor dos
foi a segurança pessoal que Cristo ou- senhores... Os reis deste mundo e to-
torgou a Pedro dizendo-lhe que, em dos os governantes seculares podem
face do ataque de Satanás, poderia ignorar esta realidade, mas não po-
contar com a intercessão dEle em seu dem desfazê-la”.
favor. Todavia, o principal exemplo Contudo, nesta vida sempre exis-
é a grande intercessão de Cristo em te um “ainda não” em nossas con-
João 17. O valor crucial dessa oração vicções sobre o reino. Não somente
é que Jesus garantiu a seus discípu- nos gloriamos na inauguração invi-
los que Ele mesmo é o grande Inter- sível do reino, como também espe-
cessor em favor deles, não somente ramos com alegria indizível aquele
neste mundo, mas também quando dia em que o invisível se tornará vi-
ascendeu à direita do Pai. Pelo fato sível e todo joelho se dobrará diante
de que os crentes têm acesso ao Pai, do “herdeiro de todas as coisas” (Hb
nós mesmos possuímos um ministé- 1.2). Enquanto isso, precisamos re-
rio sacerdotal de oração. conhecer a verdade da afirmação de
Calvino: “Todo o reino de Satanás
O ofício de Cristo como Rei está sujeito à autoridade de Cristo”.
É claro que o ofício de Cristo Novamente, em seu sermão sobre
como rei também está intimamente Isaías 53, Calvino nos exorta: “Não
conectado com sua obra sacerdotal nos limitemos aos sofrimentos de
de oferecer um sacrifício suficiente Cristo, mas vinculemos a ressur-
na cruz; por isso, Calvino afirmou: reição à morte e saibamos que Ele,
“O reino de Cristo é inseparável de tendo sido crucificado, está assen-
seu sacerdócio”. tado como substituto de Deus, seu
Esse reino ainda não está consu- Pai, para exercer domínio soberano
mado, mas foi inaugurado por meio e possuir toda a autoridade tanto no
do triunfo de Cristo sobre o pecado céu como na terra”.
e Satanás, na cruz. Foi este retra- Calvino enfatizou as seguintes
to maravilhoso do Christus Victor características do ofício de Cristo
(“Cristo, o Vitorioso”) que Calvino como rei:
nos apresentou ao comentar Colos- • O reino é espiritual, não material.
senses 2.14-15: “Portanto, não é sem Ele esclareceu essa afirmação ci-
razão que Paulo celebra com magni- tando as palavras de Jesus regis-
ficência o triunfo que Cristo obteve tradas no evangelho de João: “O
A Supremacia de Jesus Cristo 39

meu reino não é deste mundo” (Jo vida eterna, de modo que possamos
18.36). Calvino escreveu: “Vemos viver pacientemente, no presente,
que tudo que é terreno e do mundo em meio a labuta, fome, frio, despre-
é temporário e logo se desvanece”. zo, desgraça e outras inquietações,
Em seguida, ele ressaltou essa ver- contentes com isto: o nosso Rei ja-
dade dizendo: “Temos, portanto, mais nos abandonará, mas suprirá
de saber que a felicidade prometida nossas necessidades, até que nossa
em Cristo não consiste de vanta- guerra acabe e sejamos chamados
gens exteriores — tais como: levar ao triunfo... Visto que Ele nos arma
uma vida tranqüila e prazerosa, ser e nos capacita pelo seu poder, nos
bastante rico, estar protegido de veste com seu esplendor e magni-
toda injúria e ter abundância de de- ficência e nos enriquece com seus
leites, vantagens essas que a carne tesouros, encontramos nisso o mais
está acostumada a anelar —, e sim abundante motivo de gloriar-nos.
da vida celestial”.
• O reino de Deus está dentro de vós Todo o conceito do ofício tríplice
(Lc 17.21). Calvino pensava ser de Cristo foi aplicado por Calvino à
provável que nessa ocasião Jesus necessidade espiritual do homem.
estava respondendo aos fariseus Cegos por natureza e ignorantes da
que talvez Lhe verdade, precisa-
houvessem pedi- mos da revelação
do, em atitude de Nossa sabedoria deve que veio por meio
menosprezo, que consistir em aceitar, de Jesus Cristo,
mostrasse suas com docilidade e sem pois Ele é nosso
insígnias. Por Profeta e Mestre.
isso, Calvino es- qualquer exceção, tudo Acima de tudo,
creveu: que é ensinado nas Ele nos mostra
Não podemos Sagradas Escrituras onde achamos a
duvidar que se- verdade acerca de
remos vitoriosos nós mesmos, do
contra o Diabo, o mundo e tudo que pecado, da salvação, do perdão para
pode prejudicar-nos... Mas, a fim de o pecado e da paz com Deus — e
impedir aqueles que já estavam so- tudo isso, nas Sagradas Escrituras.
bremodo inclinados às coisas terre- Como J. F. Jansen disse, “Calvino,
nas, por viverem há muito em suas à semelhança de Lutero, jamais es-
pompas, Ele os ordena a incutir em queceu que toda a Bíblia é a man-
sua consciência o fato de que “o jedoura em que achamos a Cristo”.
reino de Deus... é... justiça, e paz, No entanto, a triste situação do
e alegria no Espírito Santo”. Essas homem não é apenas que somos
palavras nos ensinam brevemente o ignorantes quanto a Deus e à ver-
que o reino de Cristo nos outorga. dade. Somos também pecadores,
Não sendo humano, nem carnal, culpados, objetos da ira de Deus e
nem, por isso, sujeito à corrupção, não temos esperança de salvar a nós
e sim espiritual, o reino nos ergue à mesmos. Nesta situação em que não
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temos qualquer acesso a Deus, Jesus A essência de toda a questão é que


Cristo surge como nosso Mediador, Calvino se preocupava, em todos os
conduzindo-nos ao Pai mediante um seus escritos, pregação, oração e vi-
novo e vivo caminho, oferecendo-se ver, com aquilo que Abraham Kuper
a Si mesmo como um perfeito sa- chamou de “um sistema de vida”.
crifício e expiando, por meio desse Esse sistema extraía seu poder de
sacrifício, o nosso pecado. Calvino Cristo em uma vida na qual Ele ti-
fez a distinção de que o sacerdócio nha a supremacia completa. Foi em
anterior podia somente tipificar a ex- benefício de vidas transformadas
piação por meio do sacrifício de ani- que Calvino viveu, pregou, ensinou,
mais e de que Cristo realizou a ex- orou e morreu — tudo que exaltas-
piação pelo sacrifício de Si mesmo. se e glorificasse a Cristo. “Àquele
Finalmente, o pecador necessita que nos ama, e, pelo seu sangue,
do conhecimento da verdade e da nos libertou dos nossos pecados, e
reconciliação com Deus, median- nos constituiu reino, sacerdotes para
te a morte de seu Filho. Necessita o seu Deus e Pai, a ele a glória e o
também da liberdade do poder de domínio pelos séculos dos séculos.
Satanás e de ser transportado para Amém!” (Ap 1.5b-6).
o reino de Deus. Precisamos que a Sempre achei que nada resume
poderosa mão do Rei dos reis esteja tão admiravelmente a vida Calvino
sobre nós para guiar-nos, governar- como as duas estrofes do hino “Sau-
nos e subjugar, diariamente, em nós, dação a Jesus Cristo”, que lhe é atri-
tudo que O entristece. buído:

Saúdo a Ti, que és meu firme Redentor,


Única confiança e Salvador do meu coração,
Que sofreste tanta dor, aflição e infortúnio,
Por causa de minha indignidade e miséria;
Rogo-Te que de nosso coração todo pesar,
Angústia e tolice inúteis cuides em remover.
Tu és o Rei de misericórdia e graça,
Que reinas onipotente em todo lugar:
Vem, ó Rei, digna-te reger nosso coração
E dominar todo o nosso ser;
Brilha em nós por tua luz e leva-nos
Às alturas de teu dia puro e celestial.

Extraído do livro John Calvin: a heart for devotion, doctrine, and doxology.
Capítulo 9. Editado por Burk Parsons (Reformation Trust, Orlando, 2008).

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