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ÁGORA FILOSÓFICA

Orfismo,
uma nova dimensão do homem grego
Anselmo Carvalho de Oliveira1

Resumo: na Grécia, por volta do século VI a.C., surgiu uma religião de


mistérios que teve como fundador Orfeu. As doutrinas e o gênero de vida
adotado pelos seus seguidores, mostram o orfismo como uma religião de
questionamento que rejeita expressamente à religião oficial cuja principal
forma de oferenda aos deuses era o sacrifício sangrento. O orfismo era popular,
e nele se fazia necessária a iniciação pelos orfeotelestaí de seus seguidores os
quais não poderiam revelar os segredos da iniciação e as suas doutrinas a quem
estivesse fora do círculo. O orfismo era fechado, de caráter popular, extra-
oficial e se contrapunha à religião oficial da cidade grega. Palavras-chave:
Orfeu, orfismo, Mundo Grego, religião, homem.

Abstract: in Greece, around the 6th century BC, a religion of mysteries arose
the founder of which was Orpheus. The doctrines and the kind of life adopted
by his followers showed orphism to be a questionning religion which expressly
rejects official religion under which the main form of offering to 0000the gods
was blood sacrifice. Orphism was popular, and it was necessary to be initiated
into it by the orpheotelestaí of its followers who could not reveal the secrets
of initiation and its doctrines to those who were outside the circle. Orphism
was closed, of a popular character, extra-official and was set against official
religion in the Greek city. Key-words: Orpheus, orphism, Greek World,
religion, man.

Introdução

A o lado da religião cívica grega existiam os mistérios, con-


siderados em Platão o ponto nobre da religiosidade grega.
Eles eram caracterizados pela iniciação e pela proibição da comu-
nicação de seus preceitos às pessoas fora do circulo iniciático.
Os Mistérios de Elêusis são os mais estudados e encon-
tramos uma vasta bibliografia sobre eles. Existiam, entretanto,
outros mistérios e, entre eles, destaca-se o orfismo pelas referên-

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cias encontradas em Platão e da alusão de suas doutrinas em vá-


rios escritores gregos.
O orfismo é visto com ceticismo por muitos estudiosos,
as pesquisas atuais, porém, tendem a derruir a tese daqueles que
acreditavam na inexistência desse movimento. E um estudo por-
menorizado sobre os órficos e suas doutrinas torna-se basilar para
compreendermos a espiritualidade grega em todas as suas carac-
terísticas.

1 Teogonia e cosmologia: do uno ao múltiplo

A teogonia e cosmogonia órfica representam um rompi-


mento com a tradição de Hesíodo.
Em Hesíodo, o universo surge do Caos, do inorganizado.
A partir daí, organizar-se-á sob a autoridade de Zeus, em etapas
sucessivas. Esse processo marca a soberania de Zeus no universo.
Detienne define essa teogonia e cosmogonia como “o processo
que vai do não ser ao ser” (1988, p.176)
Contrário a esse pensamento e as crenças e formas de
adoração que ele fez surgir no Mundo Grego, aparece o orfismo.
Religião que exalta Zagreu, ou o primeiro Dioniso.
No orfismo, ocorre o processo inverso de Hesíodo. O
universo não tem origem no Caos, mas no Ovo Primordial2, sím-
bolo da vida, a plenitude do Ser. O ovo primeiro e perfeito vai
corrompendo-se pouco a pouco para dar origem a formas distin-
tas e individuais que representam o “não ser da existência” (DE-
TIENNE, 1988, p.176). No orfismo o processo é do ser ao não ser
individual.
No princípio, existia a Noite primomponenda e não ge-
rada. Em seu seio, formou-se o Tempo e, ulteriormente, Caos/
Éter. O Tempo, entrementes, produziu o Ovo primordial do qual
nasceu Fanes, criador do mundo e das divindades subseqüentes,
Céu/Terra, Crono/Rea, Zeus.
Zeus derrota seu pai Crono, devora Fanes e a criação.
Cria, então, um novo mundo tornando-se o princípio do Todo.
Doravante, nasce Dioniso e Zeus cede seu poder a ele, mas, antes
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que assumisse o trono de seu pai, foi morto pelos Titãs a mando
de Hera.
Hera, esposa de Zeus, usa dos Titãs para perseguir Dio-
niso que foge e esconde-se com a ajuda de seu meio irmão Apolo
no monte Parnaso. Os Titãs continuando a perseguição, encon-
tram-no e sacrificam-no, estraçalhando-o e devorando-o em parte
cru, em parte cozido.
O coração de Zagreu foi a única sobra do banquete. Pa-
las-Atena recolheu-o e entregou-o a Zeus, que fez Sémele, sua
amante mortal, comê-lo; ela, logo após, engravida. Hera interfere
novamente e consegue a morte da filha de Cadmo por meio de
artimanhas. Mesmo não tendo ainda terminada a gestação, Zeus
consegue salvar a criança e costura-a em sua perna. Dioniso re-
nasce depois de nove meses. E os Titãs perseguem-no e devoram-
no, repetindo o círculo infinitamente.
Os Titãs que assassinaram e alimentaram-se do filho de
Zeus foram fulminados pelo supremo senhor do Olimpo. Das suas
cinzas surgem os homens, marcados por um lado divino e espiri-
tual ou dionisíaco; outro de origem titânica, material e corporal.
Esse mito representa a dualidade bem e mal no homem.
Segundo Reale (1993, p. 385), “é evidente em que sentido e me-
dida este mito pode constituir a base de uma ética. Ele explica a
constante tendência ao bem e ao mal presente nos homens: a parte
dionisíaca é a alma (e liga-se a tendência ao bem), a parte titânica
é o corpo (e liga-se a ela a tendência ao mal)”.
Para o homem poder libertar-se de sua parte monstruosa
ou titânica e do círculo de reencarnações, ele deve submeter-se a
uma rigorosa acesse e cumprir os preceitos de Orfeu.
Mas quem era Orfeu?

1.1 Orfeu e seu mito

Orfeu, para dar fim ao círculo de reencarnações funda


uma religião: o orfismo.

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O fundador e criador das doutrinas que levarão o homem


à salvação, é, segundo o mito, filho da musa Calíope e de Oeagro.
De acordo com outra versão era filho de Apolo.
Apolo deu-lhe uma lira que, ao ser tocada, encantava to-
dos à sua volta, das plantas às pessoas.
Um acontecimento importante em sua vida foi seu casa-
mento com Eurídice, uma ninfa. Colhendo flores, ela é picada por
uma serpente, causando seu envenenamento e, posteriormente,
sua morte.
O poeta músico, inconformado com a perda de sua ama-
da, decide buscá-la no inferno. Conseguindo vencer todos os de-
safios e obstáculos graças à ajuda de sua música, chega à presença
de Hades e Perséfone, senhor e senhora do inferno, e obtém a
restituição de sua esposa, com uma condição: ele iria à sua frente,
ela o seguiria sem que ele olhasse para trás, enquanto não saíssem
do inferno. Não resistindo à tentação, ele olha-a e, como punição,
perde Eurídece para sempre.
A sua viagem ao inferno instrui-o nos conhecimentos do
mundo inferior e da morte dando-lhe condição e conhecimento
para interromper o círculo de reencarnações. “A viagem ao infer-
no lhe trouxe a sabedoria sobre a outra vida, que lhe cumpria re-
velar a alguns homens privilegiados” (TRINGALE, 1990, p.16).
Orfeu, ao voltar do Hades para a Trácia, é assassinado
por mulheres que o estraçalham e devoram-no, assim como os
Titãs fizeram com Dioniso. As mulheres, porém, que se alimen-
taram de sua carne são libertadas do círculo das reencarnações.
Tornaram-se purificadas.
A morte de Orfeu é um dos episódios mais controver-
tidos em seu mito. Uma versão fala que ao perder Eurídece, ele
desinteressa-se pelas mulheres e volta-se ao homossexualismo
para se vingarem, as mulheres enciumadas assassinam-no. Outra
versão fala que o que aconteceu foi pelo fato de, que após voltar
do inferno, Orfeu revoltou-se com Dioniso e recaiu no culto de
Apolo. O deus do vinho, enciumado com a transgressão de seu sa-
cerdote, incita as “bacantes” a assassiná-lo. Fundamentalmente,
seu assassinato foi devido ao ciúme, assim como o, de Dioniso.

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A semelhança entre ambos remete à influencia do mito


de Dioniso sobre o de Orfeu.

1.2 Orfeu, uma personagem histórica

Na seção anterior, tentamos mostrar o mito de Orfeu;


agora relataremos fatos que tenham algum embasamento históri-
co sobre ele e a doutrina atribuída ao mesmo.
O mais antigo texto que fala de Orfeu é do poeta Íbico
datado do século VI a.C. O texto já traz Orfeu como uma perso-
nagem famosa32. Mas ir além do nome e chegar à personagem é
um trabalho árduo, porque dele não temos nada escrito apenas
algumas idéias copiladas por Onomácrito.
Onomácrito, no século V a.C., segundo Aristóteles,
compilou e interpolou versos atribuídos ao nome de Orfeu, reco-
nhecendo a existência de um movimento espiritual inspirado na
figura do músico da Trácia.
Nos séculos V e IV a.C., encontramos doutrinas órficas
nas obras de Platão e nos restos de um rolo de papiro encontrados
em 1962, em Derveni, região perto de Tessalônica, contendo um
comentário sobre uma cosmogonia órfica.
Os restos do papiro confirmam a tese de que essa religião
estava presente e influenciou a época clássica, mas sua influencia
maior foi no período helenístico, como comenta Vernant (1992,
p.87):

Essa corrente religiosa, na diversidade das suas for-


mas, pertence, quanto ao essencial, ao helenismo
tardio ao longo do qual assumirá maior amplitude.
Mas muitas descobertas recentes vieram confirmar
a opinião dos historiadores convencidos de que se-
ria preciso dar-lhe um lugar na religião da época
clássica.

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2 A chegada de Dionísio à Grécia e o surgimento do orfismo

Dioniso é estrangeiro e foi inserido no Mundo Grego4.


Antes de seu aparecimento, na Grécia existiam duas religiões
principais- cabe notar que não eram as únicas, mas as mais in-
fluentes- a de Apolo e, em Elêuses, a de Deméter.
A religião da grande Mãe era de mistérios, seu culto era
popular e fazia-se necessária a iniciação pare nele participar. A de
Apolo, por outro lado, mantinha um caráter cívico e era conside-
rada mais ou menos oficial em grande parte do território grego.
Em meio a essas religiões, apareceu Dioniso e sua nova
forma de ritual que invadiu e influenciou as outras duas concep-
ções religiosas.
A chegada de Dioniso à Grécia, porém, não foi tranqüi-
la em relação à religião oficial. “Ela se opunha radicalmente à
religião de Apolo. À serenidade olímpica de Apolo contrapunha
um espírito selvagem, bárbaro, orgiástico”(TRINGALE, 1990, p.
18). Para conciliar o espírito “bárbaro” de Dioniso e a “serenida-
de” de Apolo, surge o orfismo.
Orfeu, supõe-se, era devoto ou sacerdote de Apolo con-
vertido à religião de Baco, acaba reformando-a dentro do espí-
rito de Apolo, conciliando o apolíneo e o dionisíaco. A religião
de Dioniso civiliza-se5 e permanece presente na Grécia em duas
correntes de pensamento divergentes entre si: o dionisísmo e o
orfismo.
As diferenças entre as duas correntes tonam-se claras no
sentido das práticas e rituais. No dionisísmo, o ritual consiste em
matar um animal, estraçalhar-lhe e comer-lhe a carne crua. O fiel
que se alimentou com a carne comunica-se com a divindade. O
orfismo prega uma prática radicalmente oposta. Nele a comuni-
cação com o deus é desnecessária, porque o homem carrega em
si uma parte divina, ele é o próprio Baco. A crença do homem ser
deus fica clara ao lermos em uma lamela “eimi Bakkos”, ou seja,
“eu sou Baco” (apud BRANDÃO, 1990, p.31) Essa diferença no
significado da relação do homem com a divindade permanece
presente e justifica toda a prática de ambos os movimentos.
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Outra diferença importante é que o orfismo é secreto e


suas doutrinas acessíveis apenas aos iniciados pelos Orfeotelestaí
e o dionisísmo e suas festas tornaram-se, em Atenas, abertas e de
caráter cívico, embora algumas de suas doutrinas ainda permane-
cessem restritas apenas aos iniciados.

3 O orfismo e sua nova mensagem

3.1 A oposição ao sacrifício sangrento da Pólis e sua acepção

A tradição grega prega o sacrifício sangrento que é pleno


de significações.
O primeiro sacrifício foi a partilha de um boi feita por
Prometeu em Mecone, propondo a reconciliação entre deuses e
mortais. O sacrifício terminou designando a separação entre a ali-
mentação dos mortais e dos deuses, indicando, portanto, a condi-
ção de cada um.
Ao homem foi destinada toda a carne e aos deuses os
odores das carnes. Com esse sacrifício, Prometeu condenou os
homens à necessidade de alimentarem-se para sobreviverem e,
conseqüentemente, a terem fome e estarem sujeitos à morte.
A partilha feita por Prometeu marcava à superioridade
dos deuses em relação aos homens (Cf. DETIENNE, 1988, p.
175).
Para os órficos, o sacrifício sangrento representa o fes-
tim feito pelos Titãs com o corpo de Zagreu. Mas seu significado
é muito mais amplo. Ao rejeitarem comer carne, eles rejeitam es-
sencialmente a superioridade dos deuses em relação aos homens:

A rejeição do sacrifício sangrento não consiste


somente um afastamento, um desvio em relação à
prática corrente. O vegetarianismo contradiz aquilo
mesmo que o sacrifício implicava: a existência de
um fosso intransponível entre homens e deuses, até
no ritual que os põe em comunicação (VERNANT,
1992, p. 89).
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Os adeptos do orfismo rejeitam todo o sistema religioso


e político, o mundo, a visão de mundo vigorante até aquele mo-
mento.

3.2 O orfismo, uma nova concepção de homem

A religião de Orfeu trás para a Grécia uma nova con-


cepção de homem e seu relacionar com o mundo.
No pensamento de Hesíodo, o homem não é digno de um
lugar importante no mundo, o que importa são os deuses imortais.
Para comunicar-se com a divindade era necessária a prática do
sacrifício sangrento.
Ao contrário, a religião de Orfeu considera o homem
como possuidor da alma, de caráter oposto ao corpo, imortal, que
descende da estirpe dos deuses.
O corpo, para os órficos, é a prisão da alma que nele
deve espiar suas culpas cometidas nas vidas anteriores. Após a
morte corporal, a alma é libertada. Se o morto não participou das
iniciações e purificações que o gênero de vida órfico exige, o cir-
culo de reencarnações repete-se.
Segundo Brandão (1990, p. 30), “[orfismo] ensina, ao
contrário da fé tradicional, não como os deuses diferem radical-
mente dos homens, com base na oposição entre imortais e mor-
tais, mas como o homem tem em si algo de divino, podendo al-
cançar a imortalidade.”
A mensagem do orfismo é totalmente nova quando entra
no Mundo Grego, porque formula uma doutrina cujo elemento
importante não é o corpo ou os deuses, mas o homem e sua alma,
enquanto a tradição grega pregava a adoração do corpo e de deu-
ses imortais superiores ao homem. Essa nova crença perante o
mundo, nota Reale (1993, p. 376), “inseriu na civilização euro-
péia uma nova interpretação da existência humana” (grifado do
autor).
A nova concepção órfica de mundo influenciará o pensa-
mento grego de modo marcante em sua filosofia, arte e literatura.

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4 As doutrinas óficas

4.1 As práticas órficas

As crenças órficas são integradas por uma vida prática


rigorosa a qual pode salvar ou condenar a alma do homem. O
corpo do orfismo era composto de uma moral, uma mística, uma
liturgia e uma ascese.
Aos órficos era proibido o “assassinato” e a alimenta-
ção de carne, eles eram vegetarianos, não podiam ser sepultados
com vestes de lã, não podiam entrar em contato com cadáveres,
eram obrigados a vestirem-se de branco. Eram proibidos de te-
rem qualquer contato com o pertencente ao “mundo da morte”
(DETIENNE, 1988, p.175).
O orfismo implicava não só a participação nos ritos
e cerimônias, mas uma moral e ascese que incluíam penitências,
jejuns, preces e a iniciação. Ele abarca a vida dos seus adeptos em
todos os momentos e aspectos.

4.2 Orfeotelestaí6

As práticas e iniciações órficas eram transmitidas e en-


sinadas pelos orfeotelestaí. Essas pessoas eram mendicantes que
caminhavam por toda Helade, executando sacrifícios, obtendo
“absolvição e purificação” para indivíduos ou cidades.
Vernant (1992, p.91) fala desses ambulantes comentando
a opinião de Platão na República: “Esses personagens de sacerdo-
tes marginais que, caminhando de cidade em cidade, apoiam sua
ciência dos ritos secretos e encantamento na autoridade de Museu
e de Orfeu, são de bom grado assimilados a um grupo de mágicos
e charlatães explorando a credulidade pública.”
Mas convém observar que o que habilita os orfeotelestaí
a promover ritos e a divulgar as doutrinas do orfismo é seu gênero
de vida marginal semelhante às idéias órficas de contraposição ao
sistema corrente. Segundo M. Detienne (1988, p.174), “uma das
características fundamentais daquele que pratica o gênero de vida
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órfico (bios orphikos) é ser antes de mais um indivíduo marginal,


um vagabundo separado do corpo social”.

4.3 A metapsicose

O orfismo tem como doutrina fundamental a imortali-


dade da alma. O homem possui duas características essenciais:
o bem divino e o mal titânico. Sua parte má deve ser eliminada
para ele voltar às suas origens divinas; para isso deve espiar suas
culpas através da reencarnação, até a liberdade total de sua alma.
A doutrina da reencarnação é embasada em uma ética.
A punição após a morte não explica por que a existência da dor
humana e, principalmente, da dor injusta dos inocentes era per-
mitida pelos deuses. A reencarnação explica: nessa doutrina não
existem inocentes, todos são culpados, em vários graus, por cul-
pas de várias gerações, cometidas nas vidas passadas. E a longa
educação pela qual a alma passará no circulo de reencarnações a
expiará de suas culpas e o seu último passo será a libertação da
metempsicose e o retorno da alma à sua ascendência divina (Cf.
DODDS, 2002, p.153-154).

4.4 As lamelas e o destino último das almas

A maior parte da escatologia órfica foi revelada por ta-


buinhas encontradas em Petéleia, Túrio, Hipônio e Creta. Elas
eram enterradas junto aos iniciados nos mistérios para guiar suas
almas no além túmulo.
As laminas encontradas em Hipônio indicam os cami-
nhos cuja alma deve seguir ao entrar no mundo infernal. A alma
é apresentada como “...filha da Terra e do Céu estrelado” (DE-
TIENNE, 1988, p.177) e deve seguir o caminho da direita que
leva a fonte que brota a água da Memória; em oposição ao cami-
nho da esquerda que representa o Esquecimento.
A Memória é a água da vida e marca o fim do círculo de
reencarnações; o Esquecimento é a água que representa a vida
terrestre destruída pelo tempo e o não ser da existência.

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Em Túrio, uma das lamelas encontradas indica como a


alma do homem, originalmente, pertence à mesma descendência
dos deuses.
Outra das laminas encontradas em Túrio fala de como a
alma passa de homem para deus:

Mas apenas a alma abandona a luz do sol


à direita [...] encenando, ela que conhece tudo junto.
Alegra-te, tu que sofreste a paixão: antes não havias
sofrido isto
De homem te tornaste Deus: cordeiro caíste no leite.
Alegra-te, alegra-te, tomando o caminho à direita
para os prados sagrados e os bosques de Perséfone
(LAMINA ÓRFICA, apud REALE, 1993, p.382)7.

Essas laminas indicam como a alma dos iniciados liber-


tar-se-á do cárcere do corpo e cumprirá seu destino último: tor-
nar-se Deus.

Considerações finais

A importância atribuída ao orfismo e suas doutrinas é


muito variada em cada autor; alguns consideram-nas irrelevantes
ou inexistentes; outros lhes atribuem a origem de todo o pensa-
mento metafísico grego. O papel do movimento órfico permanece
entre esses extremos. Devemos creditar importância as doutrinas
da metempsicose, do corpo como prisão da alma e o fim último
do homem no além-túmulo. Essas novas concepções da realidade
mudaram a forma como os homens eram vistos: passaram de me-
ros joguetes nas mãos dos deuses para agentes de sua própria ação
e assumiram as conseqüências de seus atos.
Sem dúvida a tradição órfica existiu no período clássi-
co e, estudando-a com a relevância necessária, talvez possamos
compreender melhor esse povo que fascina tantas pessoas ao lon-
go dos séculos, os gregos.

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Notas
1
Graduando em Filosofia pela Universidade Federal de São João Del-Rei
– MG.
2
As cinco teogonias órficas conhecidas podem distinguirem-se em dois gru-
pos: as chamadas “cosmogonias da Noite”, presentes na obra de Eudemo e
no papiro de Derveni; e as “cosmogonias do Ovo” que se encontram em Je-
rónimo e Helânico e em Aristófanes. A teogonia nas Rapsódias sintetizam
elementos de ambos os tipos: da Noite e do Ovo. Transcrevemos a última
por representar, de modo geral, o quadro teogonico ófico.
3
“A mais antiga referência à personagem colhe-se do poeta Íbico de Régio,
que viveu no século V.I: a. C, o qual fala do onomaklytón Orfhén (fr. 26,
Adrados), isto é, do ‘renomado Orfeu’” (BRANDÃO, 1990, p. 26).
4
Cf. Brandão (1999, p. 117): “É quase certo que o aparecimento de Dioniso
e sua tardia explosão no mito e na literatura se deveram sobretudo a causas
políticas. [...]Dioniso é um Deus humilde, um deus da vegetação, um deus
dos campônios. Com seu êxtase e entusiasmo, o filho de Sêmele era uma
série ameaça à pólis aristrocrática, a pólis dos Eupátridas, ao status quos
vigente, cujo suporte religioso eram os aristocratas deuses olímpicos”.
5
“Os cultos dionisíacos fazem parte integrante da religião cívica, e as festas
em honra de Dioniso são celebradas, com o mesmo direito que todas as
outras [festas religiosas] em seu lugar no calendário sagrado” (VERNANT,
1992, p. 82).
6
τελετη′: congregação, iniciação, cerimonia dos mistérios, festa religiosa,
solenidade; όρϕεο: relativo à Orfeu e orfismo; όρϕεο−τελετη′: iniciado-
res nos mistérios órficos (Cf. ISIDORO PEREIRA, p. 419 e 469).
7
Lâmina encontrada em Túrio. In: KERN, O. Orphicorum frag-
menta. Berlim: Weidmann, 1922. p. 32.

Referências

BRANDÃO, Jacyntho José Lins. O orfismo no mundo helenístico. In:


CARVALHO, Silvia Maria S. (org.). Orfeu, orfismo e viagens a mun-
dos paralelos. São Paulo: Ed. Universidade Estadual Paulista, 1990. p.
25-34.
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. 10. ed. Petrópolis: Vo-
zes, 1999. V.II
DETIENNE, Marcel. Orfismo. In: RICOEUR, Paul et al. Grécia e mito.
Trad. de Leonor Rocha Vieira. Lisboa: Gradiva, 1988. p.174-178.
DODDS, E. R. Os gregos e o irracional. Trad. de Paulo Domenech
Oneto. São Paulo: Escuta, 2002.

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ISIDRO PEREIRA, S. J. Dicionário Grego-Português e Português-


Grego. 7. ed. [S. l]: Apostolado da Imprensa, 1990.
REALE, Giovanni. História da filosofia antiga: das origens à Sócra-
tes. 9. ed. Trad.de Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 1993. 5v.
TRINGALE, Dante. O orfismo. In: CARVALHO, Silvia Maria S. (org.).
Orfeu, orfismo e viagens a mundos paralelos. São Paulo: Ed. Univer-
sidade Estadual Paulista, 1990. p. 15-23.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religião na Grécia Antiga. Trad. de
Costança Marcondes César. Campinas: Papirus, 1992.

Endereço do Autor:

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