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Versão em pdf do livro Manuscriptum

Autor: André Luis Santos da Silva


Registrado pelo Escritório de Direitos Autorais, da Fundação
BIBLIOTECA NACIONAL, sob o número 481.850, livro 909, folha
279 -- pedido de registro deferido em 29 de dezembro de 2009.
Manuscriptum
por André L S Silva

.Ω.
SILVA, André L S. Manuscriptum. Rio de Janeiro, 2009.

Primeira edição
Terceira versão
Quarta impressão

Impresso na casa da irmã mais velha.

Inverno’09
“Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há
lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um
desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de
me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu
me morreria simbolicamente todos os dias. Mas preparado
estou para sair discretamente pela saída da porta dos fundos.
Experimentei quase tudo, inclusive a paixão e o seu
desespero. E agora só quereria ter o que eu tivesse sido e não
fui.”

Clarice Lispector
A hora da estrela
Agradecimentos

Família querida, por me aturar e suportar


Shirley Guimarães, a quem chamo niña, por me induzir a
acreditar

Especial

Ferreira Gullar – precisa justificar?


singular
desconstrutor da construção
visionário da novidade
inquieto
epopeico
coesesconexoerente
fugitivo da linearidade
compatriota,
camarada,
expatriado,
que, apesar dos pesares,
não desistiu
não calou
não arregou
falou e ouviu
e, principalmente,
escreveu
deixou escrito
escreve
escreva
palavra dita
desmesuradamente significativa
gênio de amigos imaginários
vistos nos versos
lidos nos versos
versos que fazem chorar
fazem rir
refletir
que aguçam o repertório
do final ao introito
angariador premístico
saúdo-te
fazendo coro com os deuses
das palavras
dos versos
das prosas
dos cordéis
dos imaginários-reais
dos papéis

Póstumo

Dioniso (?)

Plus

A todas as pessoas que ajudaram a formar esta coisa que vos


escreve: os amigos da infância, os amigos da vida profissional e
os amigos da vida Acadêmica.
Conversemos?

Olá, prezado(a) leitor(a). Gostaria de fazer-te um pedido antes


que prossigas: deixe a seriedade guardada num canto, mas não se
embrenhe muito com a jocosidade. E cuidado com a confusão.
Após ouvir um ou outro comentário sobre alguns textos
escritos por mim, resolvi fazer um aglomerado com eles e
publicá-los. O que espero com estes escritos, real-mente, é que
as palavras divirtam a todos, assim como me divertiram,
escrevendo-as. O que for além disso é bônus.

Advertência!

Antes de seguir para as próximas páginas, devo avisar-te que


alguns textos possuem palavras de baixo calão, de gosto
duvidoso! Mas o que são palavras de calão inferior se comparadas
ao que lemos todos os dias: leis, projetos e benefícios sendo
inventados e aprovados por e para aqueles que deveriam
trabalhar a nosso favor!!!?

Mais um ded’i prosa


Eu desejo tecer mais um comentário sobre o conteúdo
deste. As páginas a seguir têm um bocado do próprio
autor! Filosofia? Perguntas-te. Não! Respondo-te. Creio
não ser amigo da sabedoria (por hora), embora
possamos, desde muito tempo, ser vizinhos. Vizinhos do
tipo que se olham como quem não quer nada, somente
por distração, para saber quem passa ou passou perto ou
longe. Que gostariam de se aproximar, mas o receio do
resultado deste contato os deixa apreensivos; então cada
qual continua na sua.

Gostaria de dizer que esta falta de proximidade é um nada


que faz falta. Deixa-nos um tanto – não acentuo nem
diminuo – perdidos em nossos achados. Reunimo-nos para
um circunlóquio e resolvemos que eles também poderiam
falar, embora não assinassem os textos.

O efeito da carapuça foi contrário: em vez de prendê-los,


libertou-os. Vestimo-nos. O caimento foi plausível,
mesmo não parecendo sensato. Sensatez é aparência, é
superficialidade: encobre a realidade que precisa ser
coberta: por desvios, por desculpas, por não-me-toques,
por cartões de crédito.

Prossiga.
A três Amores

virtudes e defeitos nos compõem


assim somos reconhecidos como humanos
nossa vida é cheia de escolhas que se opõem
e assim amadurecemos, ano após ano
salve ao criador de maravilhosas criaturas
salve pelo invento de uma em especial
a minha amabilíssima irmã,
beleza entre todas as formosuras

.Ω.
kyogen sem farsa, sem lenda nem conto, de uma linda
estrela cujo destino é iluminar-me a existência
louvo pela alegria de irmanar-te, mana querida,
ledo pela graça a mim concedida
y pelo grão-dia do teu nascimento, tua vinda
para perto de minha vida

.Ω.
vim de uma semente graciosa
a qual foi plantada em valorosa terra
local que me acolheu, aqueceu e
é onde encontro tudo de que preciso para
robustecer e continuar vivendo, e quem sabe um dia
inda conseguir retribuir o imenso amor
a mim dispensado, cuja representação ainda
não consegui através das palavras
...Cai

Olhei da janela
está o céu escuro, nublado
e lá vem a chuva

.Ω.
Outonando só
retalhando folhas vá
caindo, caindo
a
i
n
d
o
Metatexti

Script

Há coisas bonitas e feias


Há coisas obscenas
Incrustadas nos lexemas
Das linhas do que escrevo

Há coisas alegres e melancólicas


Não há coisas bucólicas
Representadas nos semantemas
Das linhas do que escrevo

Há coisas ditas e insinuadas


Há coisas latentes
Descritas pelos grafemas
Das linhas do que escrevo

Há coisas claras e obumbradas


Não há coisas aparentes
Inscritas pelos gramemas
Das linhas do que escrevo

.Ω.
Aranha

Meu verso é de prosa


Há prosa no meu verso
Não sei construir na métrica
Nem sei colocar na forma
Tento acertar na rima
E tem coisa mais difícil
Nesse texto que fascina
Criar teia formosa?
documento

estou cismado com o tamanho


ando pra lá e pra cá
vejo e revejo
pego u'a fita métrica
aponto do sul pro norte
penso, penso, e falo
pra mim mesmo
que está na média
mas não me contento
e meço novamente
corroboro as medidas
conformo-me: está tudo fora do esquadro
e assim sigo construindo meu texto
temendo nomear suas linhas de verso
confesso
um dia ainda aprendo
sobre rimas e estrofes
e então poderei acertar
estes adornos
e brincar de Deus
Je ou Moi

Queria fazer literatura


mas minha mente é LTDA
não sei frases de efeito
não conheço jargões
minha linguagem é imatura

representar as coisas num poema


num conto
num romance
construir um teorema

se fosse amigo da sabedoria


talvez edificasse bom texto
ou costurasse bom contexto
mas o que escrevo é tudo alegoria

.Ω.
Estupor

Sou governado por gente burra!


e potestades inteligentes?
o resultado dessa mistura:
mistério...
eu

Não passo de um matuto


Dias estou astuto
Pego caneta e papel
Depois de ler um cordel
Meto-me a escrever
Resoluto

Sou ainda estudante


Tenho livros na estante
Cujo conteúdo, creio,
Enriquece-me quando leio
Bastante

Não sou mais menino


Conquanto pequenino
Literando a crescer
(pelo menos o intelecto)
Bem aconselhado fui
A, lendo, não perder
O tino

.Ω.
S.TTL

hoje pensei em sacanagens


se quiseres ler meu dito
não te importes com bobagens

passei em frente à livraria


buscava fina iguaria
mas na vitrine só havia coelho

não como este tipo de carne


por aí há melhor encarte
voltei e reli Plínio, o Velho
na amada antiga linguagem
o Latim dos antigos Romanos
não mais ensinada aos formandos

que também só querem pobreza


mensageiros instantâneos, iogurte
melhor é um prato de chucrute

alteram tanto meu querido português


que fica difícil de entender
parece tudo escrito em norueguês

tp assim kra fl p mãe q ñ voje


você entendeu a frase anterior?
e quem escreve isso zomba da linguagem
de quem é do interior!

veja só você que agora lê


precisei quebrar a estrutura
deste texto construído com bravura

pra mostrar linguagem diferente


pra dizer que a educação é ineficiente
que o nós é trocado por a gente

mudei o rumo pra onde ia


queria falar de Gullar, Bilac, Camões
mas receio por quem está preso aos grilhões

dessa astuta e vil falta de ensino


que não os permite melhor conhecer
a riqueza das páginas pra quem sabe ler
ainda não sei!!!

mas ando meio atemorizado


não sei até quando consigo
nesta vida ordinária
bom humor descompromissado

pra rir de mim mesmo


das pacholices cotidianas
das cachorrices balzaquianas
daquilo que vejo a esmo

construo bom texto e festejo


maioria das vezes me perco
misturo manjar com esterco
não entendo muito o lampejo

momento de inspiração
cuja raridade aparente
vezes me deixa descrente
faço-me fanfarrão

do interior das entranhas


sinto comichão no períneo
peço, clamo ao apolíneo
e narro pérfidas façanhas

sinto que sou contagiado


falo, penso, gesticulo
coloco a mão no testículo
sou confundido com viado

recebi a carta do estafeta


fiquei de pé no portão
foi tempo suficiente
vi a vizinha coçar a...
queria mesmo ser poeta
mas não consigo versar
não sei limar meu textum
continuo só a punhetar

desculpe o calão do vocábulo


e do sentido da rima
paro aqui a prosa
falta a porra do senso
recolho-me ao estábulo
pensarei nas coisas de cima

.Ω.
exilé

minha terra
tem paineiras
onde miam carcarás
não sei onde ela fica
se é aqui ou se lá
sei que ela é uma Polis
chamo-a Cudomundópolis
de que gosto

deitar-me e pôr o abdômen à prova


levantar-me e pôr os braços à prova
ajoelhar-me e pôr o pênis à prova
sentar-me e pôr o intelecto à prova
chegar em casa, fatigado, e contemplar
o sorriso do meu sobrinho, feliz
em me ver
segurar sua mão e andar junto com ele
em todas as direções
pôr minha v! t- e*m à prova
e. i/
r:
g’

.Ω.
Rascunho

há tanta merda sendo feita


há tanta merda a fazer
que acabo me convencendo
a um livro escrever

enquanto isso a garotada continua


a caminhar contra o vento
sem pano, sem identificação
na cidade da Boniteza e do Caos
que ferve a 47 graus

e o prefeito continua na paz

e o som que embala o sonho


do povo anônimo do Dona Marta
e do desnônimo de Ipanema
é o do sapo grande
Habeo

casa, conforto
família, apoio
teto, cobertor
mas, sou ser humano
estou humano

.Ω.
assumo

sou consumista
consumidor
desse consumismo
consumador
que tudo consome
inclusive minha dor

.Ω.
Critiquè

os dias de hoje são estranhos


caras e bocas copiadas pelas
pontas dos estiletes
o caráter e a personalidade
não são mais do que enfeites

a garotada só se interessa
pela imagem "atraente"
estampada em magazines
e não procura saber os reais
motivos de tudo isso
do jogo de interesses latente
na virilha

Ontem, um caroço cheio de pus


o verde que reluz
Hoje, uma marca carmesim
do sangue do jardim
Penalizou-me durante semanas
pútridas erupções cutâneas

.Ω.
ant'agonia

desaprendi a falar cousas d'amor


com tanta razão na mente
pareç'um simples dissidente

queria consultar um doutor


um que receitasse cousa forte
pr'eu'squecer um pouco da Sorte

essa Fortuna que traz rancor


e me deixa conturbado
morrend'os dias estagnado

faltam força de vontad'e ardor


pra lutar pela vida que passa
deixando-me tod'essa desgraça

não sei lidar com este estupor


depois de vinte e oito anos
continuo a crer em desenganos
comemorações

foda-se o natal
idem o ano novo
ibidem o carnaval
comemorar
é
mirar-se
no espelho
todos os dias
e
não
atirar
na
própria
cabeça
sufoco
dor
decepções
desilusões
desespero
até que surge o pequenino
com um sorriso maroto
e a vida é resetada

.Ω.
Aguelomalia

Caminho sem paradeiro


À frente, o despenhadeiro

Meus pés não param


Os passos intercalam

O destino, derradeiro,
Me consome por inteiro
No cume do alcantil
Meu coração explodiu

Confundiu-se com o arrebol


Despediu-se do astro sol

A penha que ali me viu


Meu segredo descobriu

.Ω.
bizarro

hoje, assim como ontem, tentei esquecer-me de umas perturbações


outrora liberadas pela inconsciência do âmago humanitário
mas ainda é complexo tornar-se constante em meio a tantas disparidades
oníricas perpassando meu subinconsciente
seja como for, permito-me saber, ainda que
sonhando, como seria minha vida neste mundo paralelo
e por vezes acabo errando, agindo de maneira inconsequente
xinguei-me e castiguei-me prendendo meus quereres
utopicamente, apenas, deixo-os livres
a partir do que penso, quando me deito e viajo sem sair do lugar
logaritmo desconexo que construo todos os dias
Texti

tenho medo da grandeza


da imensidão
como bom ente humanitário
rodeado de confusão
receio pelo caminho que sigo
acompanhado da solidão
temo por causa do código
utilizado na confecção
e pelas ideias expressas
linhas de perturbação
mostrando-me como sou
oblíqua construção

.Ω.
caminhada

enquanto eu caminhava, minh'alma se despedaçava


u'a lágrima eu derramava, enquanto eu caminhava
enquanto eu caminhava, meu credo desvairava
meu pensamento elucidava, enquanto eu caminhava
enquanto eu caminhava, a chuva me molhava
e o vento que soprava
veloz, vil, violento
tentava, a qualquer custo,
violar o meu momento
Credo!

- Religare -
:
:
:
:
:
:
:
:politeísmo
budismo lirismo
altruísmo essencialismo
cristianismo teocentrismo
candomblecismo bucetismo
catolicismo niilismo
messianismo todos são trovadorismo
pirucionismo tudo revolucionismo
ocultismo e me dizem diabolismo
racionalismo nada evolucionismo
protestantismo Evoé! discovoadorismo
umbandismo televisismo
concorrencismo desaforismo
puticismo elenismo
criacionismo suicidismo
monoteísmo
Afraid

todos os dias me desligo


pouco a pouco me desprendo
não sou bom em decisão
por isso escolhi não escolher
aqui e ali há muita opção

.Ω.
deorum

ouvi falar de um tal


de mito

igualmente de
um rito

mas tanto mistério


irrevelado

não me faz conhecer


o rito
do mito

então continuo na mesma


ignorância

desconhecedor dessas
falâncias

não crendo que


o mito

de fato possua
um rito
mas eu queria fazer
uma liturgia

experimentar o momento
do êxtase

o que consegui foi


um Bacanal

tão banalizado hoje


em dia

que, falando, parece


simples orgia

.Ω.
Fe

humanizado, pisoteado
jogado, aqui, lá
após, além
ainda me cobram a prática do bem!

.Ω.
aller en enfer
l’enfer est pavé de bonnes intentions

todos os dias vou ao inferno


desço? subo? não! entro.
entro sem licença pedir
possuo intimidade materna
introito intravenoso
leva-me a sonhar
permito-a agir
lide endovenosa

batalho comigo
venço-o
torno-me amigo

disfarço contigo
beijo-o
torno-me inimigo

enquanto ages
com atos nocivos
todos os dias
obliteram-se motivos

aproveito-me disso
viro, reviro, transviro
faço-me omisso
deleito-me no virtual papiro

aparentemente irreal
continuo-a
ode transformacional

saio da luta ofegante


refuto-a
e retorno, inconstante
Lide

Guerra entre potestades; tenho de escolher um lugar.


Tenho que escolher um lugar?(...) Não escolhi lutar.
Sinto-me inerme! Como um pequenino verme,
Inepto, diante da grandeza de habilidades e poderes.
Governado pelo que vejo e por invisíveis saberes.
Forças inexauríveis rasgam-me ao meio.
Viva parte entrega-se a um lado: razão.
Adormecida parte aquieta-se com o outro: coração.
Ouço a voz da insanidade tentando se impor,
Tirar-me do chão; outras se manifestam com ardor
E trazem-me de volta, embora tenha desistido de viver.
Por maior excelência que tenha o conhecer,
o caminho é sempre morrer.

.Ω.
Trinité

ainda antes de a Terra se formar


bem antes da construção do firmamento
conversei com a Santíssima Trindade
e pedi para não vir
pensava que não conseguiria viver aqui
não do modo que Eles planejavam

havia uma massa inóspita


perfeita para a divina construção
fez-se o planeta terrestre
deu-se forma ao azul celeste
e eu em minha terrível contrição
aguardava o veredicto
novamente solicitei minha permanência
clamei, implorei ao Trino Bendicto
eu mesmo supunha minha incompetência
enquanto assistia (a)o espetáculo criativo
barro, ossos, vísceras, carne, pele
a virtude da vida vindo vigorosamente

até que chegou o grandioso momento


em que fui posto numa criatura humana,
o divino invento
habitei-o e ainda assim Os interpelei
pois não sabia como funcionava
aquele monumento

entretanto descobri aos poucos


talvez cedo, talvez tarde, talvez
na hora precisa
e assustei-me com tal engenho
porque de tanto fuçar suas funções
experimentei suas delícias

a princípio eu seria um dentro de outro


mas acabei por me dividir
depois de aprender todas aquelas
sensações e de sentir todas as comoções
não consegui seguir a linha retilínea
defronte a todas as opções, parti-me

todavia minha volta fora solicitada


e eu, de tão embrenhado que estava,
preferi aqui permanecer
ainda que definhando, a esmorecer
continuei a viver a vida violada
até que chegou o tempo de retornar à fonte
paralelamente

os sonhos têm invadido


deito e fecho os olhos
rápido e ligeiro saio
dois ou três passos, caio
vejo-me perdido

o pesadelo logo aparece


os olhos ainda fechados
aperto u'a mão na outra
os lábios estão inchados
mas continuo a prece

rapidamente derreto
minhas entranhas saem
a pele se torna carmesim
meus músculos contraem
perdi a direção do reto

novamente pareço um feto


deitado de lado, quieto
as águas me acalmam
o cordão me traz afeto
nasço, assusto-me, desperto

.Ω.
Paradigma

um corpo dentro de um corpo


o verme do esgoto
uma alma dentro de um espírito
o grito do aflito
uma respiração dentro de um sopro
o movimento do arredio
um templo dentro de uma acrópole
a morada do vazio
um céu dentro de uma galáxia
o destino da criada
uma encruzilhada dentro de uma via
o arroubo da mestiçada
um sentimento dentro de um tormento
o turbilhão do pensamento
uma palavra dentro de uma frase
a falha da metátese

.Ω.
Pasto

Acuado; mão estendida de menina carente


Inocente; corpo franzino mal sustentado
Devastado; coração corrompido, boca maledicente
Presente; tentativa de ajuda, ato frustrado
Jogado; no triunfo do ódio que nasce por gente
Mente; o olhar enxerga o mundo desbravado
Malvado; a cena assistida é repetente
Descrente; o caminhar segue sem rumo traçado
Mudado; vira para a esquerda e bate de frente
Incompetente; o caminho da vida o deixa intrigado
Acabado; a beleza que chora. Da arma, o pente
Recorrente; é fácil, é óbvio, é único, é utilizado
Abastado; e ande, e corra, e pule, e enfrente
Trilhando pela estrada imposta pela Sorte
No fim, todas as direções levam à Morte
Mortuo patre

lembrei-me, ao ler Gullar,


de que agora não adianta falar
as palavras não vieram antes
por que vêm neste instante?
ele não as pode mais escutar
será?
seu corpo, sua carne, entranhas e ossos
e tudo o que era matéria tocável
já foram consumidos pelos vermes
nem o caminho da cova sei
mas lembro-me do seu rosto
todas as vezes que me olho no espelho

.Ω.
demasia
amar demasiadamente
apesar de,
na realidade,
descrente
Plat.

amor... paixão...

Do que somos capazes


é nestas situações que descobrimos
para conquistar, ter e provar
não medimos o modo como agimos

Expostos somos às mais variadas situações


uma roda de amigos, uma foto, um vídeo, uma falta
a presença é alucinante, instigadora
no coração, ela é uma constante, é farta

Como acontece? Difícil explicar


sentimentos tão intensos, tão imensos
não têm dia, hora, nem lugar

.Ω.
Saudade

Há tempos não te vejo


Ainda assim, habitas meu sonho
Em minha mente te componho
Objeto do meu desejo

Delineando tuas partes


Curvas, pele, lábios, carne
Tento, em vão, que tu encarnes
Beleza rara, obra de arte
Devaneio

Minha mão encontrou a tua


Nossos corpos aproximaram-se
Hipnotizado deixaste-me
Percorri tua pele nua

Meu senso deixou-me só


Nossos sentimentos combinaram-se
Singular fizeste-me
Senti no corpo um nó

Meu lábio procurou o teu


Ofegantes estávamos
Ao aproximarem-se, despertei
E o sonho se perdeu

.Ω.
Delírio

Nossos dedos entrelaçaram-se


Juntamo-nos, carne e carne
Equilibrando-nos, o olhar
Parâmetros despedaçaram-se

Respiração tornara-se una


Encostamo-nos, lábios ardentes
Os sentimentos, evidentes
Mas a hora, importuna

Interrompeu-me uma voz


Fazendo-me despertar
Do êxtase algoz
No qual pus-me a delirar
Ansiedade

Minha carícia aproximou-nos


Dedilhei tua pele macia
Abraçando tua nudez
Nossa vontade convocou-nos

Meu sorriso mostrou-se


Prendemo-nos, corpo e corpo
Esquecendo a lucidez
O ato consumou-se

Controlado pelos espasmos


Acordei, ainda inerme
Elucidando a estupidez
De que longe estamos

.Ω.
Clamor

Ó Musa, por que não me deixas esquecer


daquilo que não posso ter? Por que não tornas
meu imaginário real? Acaso despertaste
indômito desejo para não o conceder?

Ó Deuses do Olimpo opulento


onde fora esculpido o mais gracioso
corpo, cujo efeito em mim é ardoroso
a causa, enfim, do meu desalento

Permitis a tão pobre mortal


alcançar tamanha graça corpórea
que a vós entregarei oferenda notória
para que não considereis meu ato imoral
PSYCHO

Quanto tempo e esforço desperdiçados


Trabalho mental sufocado
Trabalho físico iniciado
Quantos fazeres e atos despreparados
Esforço psíquico obstinado
Esforço corpóreo precipitado
Quanta aparência e paciência adquiridas
Pensamento abarrotado
Corpo estagnado
Quantas horas e carícias imbuídas
Pensamento paralisado
Corpo extasiado

.Ω.
Solidão

Ao fim, deitados estávamos. Atrevi-me e percorri, com a


ponta dos dedos, tua pele morena. Acometido por sensações
indecorosas ao ver-te de bruços, acariciei-te: pés, pernas,
nádegas, costas, braço, nuca. Não me contentei. Respirei-te por
todas as partes. Detive-me nas mais íntimas. Não me satisfiz.
Beijei-te de todas as maneiras. Ocupei-me em não deixar pele
sem toque. Virei-te. Meu corpo ocupou-se do teu. Sussurrei em
teu ouvido. Senti que as palavras, além dos toques, provocaram-
te emoções, demonstradas por descargas de tensão e
enrijecimento, sangue em circulação.
O tilintar do despertador trouxe-me de volta. Abrupta
realidade. Acordei, lamentei-me. Levantei e prossegui.
Amicitiae

Minhas amizades são grandes presentes


distantes (algumas) presenças/ausentes
com as quais conversei/desconversei
discuti/dialoguei, ri/chorei

Minhas amizades são enormes dádivas


que tornaram minhas tormentas plácidas
através das quais aprendi a crescer
vi meu inóspito jardim florescer

.Ω.
Minha Família

Instituição de prestimosos nobres laços


À qual muitíssimo agradecido sou
Pelas características que me passou
Semblante, personalidade, caráter, traços

Em todo momento há base para meus passos


Mas a complexa caminhada me transtornou
Meu eu, por inteiro/todo, modificou
Ainda assim livre sou de temidos embaraços

Alegro-me ao saber que nossos sentimentos


Cujos resultados não são efêmeros
Estão compartilhados em diversos momentos

Elos constituídos por linda união


Cujos materiais não são só meros
Artefatos forjados por qualquer artesão
Aline Pretta

intimidou-me pelo tamanho


divertida companheira
falou e ouviu, falei e ouvi
eternas conversas, grandes misturas
sobre tudo coloquiamos
sobretudo sobre nós
fez-me sentir-me menos estranho

.Ω.
Andréa Terra

sempre gostei de ouvi-la


mas nunca discerni o motivo
se pelo tom de voz
ou pelas palavras firmes
mistura explosiva de
beleza com inteligência

.Ω.
Camila Gomes

ela é a grande culpada


(em parte)
esta culta moça educada
pelo "aparecimento" dos meus egos
quando eu ainda confuso
entendendo patavinas
emprestava-me material
a amiga prestativa
Carla Jeucken

estudiosa e sonhadora
chamei-a por muitos "nomes"
da natureza e dos animais defensora
fez-me também sonhar
quando intimei-a a ler uns rascunhos
e ela me escreveu como resposta (a lápis):
carãnnnnlho

.Ω.
Danielle Gonçalves (em memória)

passou pela minha vida


"assim, como quem não quer nada"
e ensinou-me a caçoar
até das adversidades!

.Ω.
Dayse Castro

fez-me dar um grande passo


bem maior do que minhas pernas poderiam alcançar
ao dividir comigo
meu primeiro grande trabalho acadêmico
apresentando-me o Poeta Magnus
Ferreira Gullar
Diego Cavaleiro

comoveu-me pelo senso idealista


conquistou-me pelo jeito opiniúdo
assustou-me com a defesa partidária
alegrou-me com os causos contados
e todas as histórias divididas
proporcionadas pelo longo trecho caminhado
para chegarmos até a Central do Brasil

.Ω.
Diego Fróes

este camarada fanfarrão


descobri que é mentiroso,
(quando não mais o via
correr para alcançar o Juremão
e não mais dividíamos a mesa de bar)
ao lê-lo escrever, pela internet,
que tenho cérebro privilegioso

.Ω.
Evandro Carlos

primo bastardo, de fato


- posso ser multifuncional? sim -
irmandade significativa
não corroborada pelo sangue
ínfimo detalhe
superado pela consideração
e pela amizade verdadeira
extremada pela busca
ao camarada sumido
Gabriel Rosa

a avançada faixa etária do amigo experiente


jamais expressaria outra grande característica
do dorminhoco: sorridente
o "mais velho" brincalhão só imprimia tom sério
quando o assunto era a fila do bandejão
com opiniões sensatas e eloquentes
fazia as vezes de apaziguador

.Ω.
Geise Correa

antagonismo da mulher frágil/forte


que ouviu meu silencioso desabafo
quando me prendi, apavorado,
ao meu primeiro perfurante
e que me assistiu na luta, ofegante
conquistar tua amizade foi presente da Sorte

.Ω.
Gisele Fernandes

tive a certeza de que fui


agraciado pela Fortuna
sendo aconselhado por uma irmã/não-irmã
cujo trabalho foi árduo para cuidar
de um pateta/descuidado
percebi neste ponto, uma vez mais,
que posso sonhar
mas para realizar
é preciso fazer
Ingrid Freire

grande paixão, raro momento


por sua delicadeza, sua singeleza
seu sorriso e seus atos,
foi a primeira vez na vida
que pensei em casamento

.Ω.
Juliana Vasquez

menina arretada, de quem lembro,


saudosamente, pelo sorriso
pela espontaneidade, pelos abadás vistos nas ruas
e até pelo título da festa
"odeio meu fígado",
pela sinceridade

.Ω.
José Galdino

muitas vezes me fez sorrir


com seu jeitão atrapalhado e perdido
aguçava meu lado debochador
com suas palavras de duplo sentido
só me deixava nervoso
ao proclamar a própria derrota
e não ambicionar alta nota
fiz muito esforço para compreendê-lo
no fim das contas, é um cara maneiro
Marcelo Cardoso

grande mano
de igual coração
sorriso fácil
e cara de pastelão
de habilidosa destreza
em dedilhar o diminuto
violão

.Ω.
Márcia Santos

confiei e não me arrependi


é mais do que uma balada
bem mais do que seios fartos!
seu semblante às vezes zangado,
venci

.Ω.
Marta Batista

descobri a força de um abraço


de ir sem lá chegar
dos resultados da persistência
da fragilidade da autoconsciência
da humanidade do outro
da expressividade do olhar
Priscila dos Santos

a simpatia em pessoa
de ar distraído
e fácil sorriso
que me fez gargalhar
ao vê-la copiar do quadro
um meu poema
com tamanha empolgação
que pensara tratar-se de palavras
de bom autor

.Ω.
Renata Baptista

pensei numa mulher forte


lembrei-me de você
mas não pelo teu porte
e sim pelo teu jeito de ser
pelas gargalhadas contagiantes
apreciadas por este infante

.Ω.
Sérgio Henrique

creio não ter aprendido ainda


mas tive bom exemplo
de como levar a vida, camarada,
na boa, na paz, na maciota
mas sou meio idiota
êta! sarcasmo compatriota
Shirley Guimarães

transmite tranquilidade
mãe coruja de duas lindas princesas
além de grande incentivadora
a estudante de Latim
de cabelo carmesim
descobri que é cantora

.Ω.
Suellen Estevam

que exemplo, professora


faltou a aula hoje
não veio também ontem
virá, talvez, amanhã?
Sendo esperta e esforçada
põe as coisas em ordem
com seu jeito desenroladin'
deve ter assim aprendido
operando telemarketin'

.Ω.
Tiago Estrella

amigo
inexplicável
amigo
inexprimível
amigo
inolvidável
amigo
inestimável
amigo, amigo, amigo
Zandréa Lauria

zuou-me so many times


um anjo que me guiou, me socorreu
livrou-me do cachorro
que a cara não me lambeu
mãe zelosa e batalhadora
que em seu lar me acolheu
Material extra (i)

Gostaria, antes de tudo, de me desculpar com aqueles que lerem


este conto e se sentirem ofendidos. Jamais será esta a intenção
daquilo que passo para o papel. E já agradeço pela compreensão.
Aviso: caso haja neste conto algum nome, ou apelido,
explicitado cuja correspondência exista na realidade, afirmo que
não é nada além de infeliz coincidência.
Segue o texto:

A feijomante
Senhora respeitável, diziam. O adjetivo fora conquistado
em razão de uma vida humilde, numa casa modesta, e sem
família. Embora só, tinha excelente reputação. Nunca se metera
em negócios alheios nem provocara discórdia na vida de outrem.
Havia sempre um sorriso no rosto, cuja função principal era
encobrir os efeitos das adversidades. Desde moça jovem,
trabalhou e construiu aos poucos o que hoje possui.
D. Feitora, como era conhecida, pelo sobrenome,
habitava uma casa simples, de cinco pequenos cômodos. “É o
suficiente!”, nas palavras dela. Nem pouco, posto que acolhia
tudo aquilo de que ela precisava, nem muito, uma vez que não
sobrava espaço inútil. A casa da rua Canhota, nº 27, tornou-se
conhecida e bastante procurada. Os visitantes chegavam ao
estreito portão de ferro e pressionavam o interfone, ansiosos,
sem reparar no aviso que ficava logo acima de um quinto da
metade do mesmo. O informe constava de uma advertência:
ocupado. Quando o placar estava assim assinalado, o visitante
tinha a opção de aguardar ou voltar depois. E a frente da casa,
desse modo, nunca ficava vazia.
A senhora da qual falamos neste instante não aparentava
a idade que tinha. No último aniversário, comemorou 63 anos.
Sim, estimado(a) leitor(a), havia marcas, não só em seu rosto,
mas também no corpo, da chegada da velhice. Entretanto, podes
crer ou não, a impressão, assim como esta pequena observação,
são minhas, o vai-e-vem do sorriso parecia funcionar como
alongamento facial. E, nesta ginástica, seu semblante foi
favorecido, do mesmo modo que a pele, cuja palidez parece ter
sido conseguida pelo uso constante de protetor solar. Era
franzina; parecia uma fina escultura de vidro. Difícil até para
abraçar.
Mas seus dotes físicos se escondiam em suas atitudes:
gostava de cuidar de si e dos outros. Dos outros quando era
solicitada. E foi dessa maneira que descobriu um singular dom:
podia se comunicar com feijões em busca de soluções para
diversas situações. A quem não agradou a leitura desta última
frase, peço perdão. Prossigamos. Lídia Feitora convidara uma
amiga para almoçar em sua casa.
Marlene estava em grande aflição: engravidara não sabia
de quem, aos dezoito anos recentemente completados, no início
da carreira profissional, registrada há apenas um mês e meio.
Tinha uma família humilde e conservadora. Esta última qualidade
era o motivo da lamentação, pois chegava ao extremo. Os pais só
liberaram o namoro aos dezessete anos, mas ela descobrira as
delícias dos encontros aos doze. Ou seja, a gravidez foi uma
pequena catástrofe. Pequena para o pai da criança. Catástrofe
para ela. Sempre prendada e muito ocupada com os estudos, sua
reputação era irrepreensível para a família. Até aquele
momento.
Marlene Costa Brava era a amiga convidada de Lídia para
o almoço. A grávida encontrou em Feitora um porto seguro, uma
pessoa confiável, visto que foi das poucas que não alardeou sua
situação; nem a recriminou por isso. Enquanto almoçavam,
Marlene pediu uma solução para a nova amiga. A resposta
recebida não foi exatamente a que ela precisava ouvir, porém
não chegou a ser uma esquivança. E aqui chegamos ao início da
história de dona Lídia Feitora Silva. Esta ouviu, curiosa, o pedido
da outra; foi este, exatamente: “Você podia tirar minha sorte,
sei lá, lendo alguma coisa, esses feijões que estão no prato”. Elas
se entreolharam. A seriedade das pupilas logo foi substituída por
gargalhadas sinceras. Marlene agradeceu pelo almoço, e pela
conversa, e pela amizade também. Despediu-se e seguiu seu
rumo, enquanto a anfitriã pôs-se a arrumar a casa. A frase de sua
convidada ficou latejando em sua cabeça, mas ela não deu
importância. Engoliu um comprimido de paracetamol e deitou.
Em vão. Seus sonhos foram invadidos por feijões, panelas, água,
temperos e todo aparato utilizado para preparar uma boa
feijoada. Levantou-se da cama às 03h54m18s. A madrugada de
janeiro estava bastante agradável. Passeou de um lado para o
outro e foi parar na cozinha, com a intenção de adiantar algum
serviço posterior, embora estivesse sonolenta. Sentou-se; e
quando abriu um pouco mais os olhos reparou que à sua frente
estavam uma panela e um pacote de feijão. Estranhou um pouco
a situação, deu um muxoxo e pensou em se divertir um pouco: já
que estava com a faca e o queijo na mão, consultaria a sorte
reservada a Marlene. Isso mesmo, ela se lembrou da amiga.
Pegou cinco feijões. Mas não quaisquer cinco. Catou os melhores,
os mais vistosos, os sem máculas. Os perfeitos para o sacrifício.
Tomou para si uma panela rasa, cujo fundo estava amassado por
causa das batidas para socar alho. Desculpe-me por isso também!
Colocou os grãos entre ambas as mãos cerradas, na posição de
prece. Encostou a ponta dos dedos na testa, balbuciou algumas
palavras, as quais não escutei porque foram quase um
pensamento, abriu os olhos para mirar a panela e atirou as
leguminosas. Caiu cada uma para um lado. Ela olhou, meditou,
fez que interpretava algo, soltou, com a boca fechada, um hum e
depois um ham. O sono a venceu.
Como era de seu hábito, a jovem Lídia acordou cedo,
arrumou-se com calma e foi trabalhar. Durante todo o dia não
tivera notícia da amiga grávida, o que a deixou um tanto
apreensiva, principalmente por causa de um desabafo de Marlene
durante o encontro anterior, que apenas agora, devido a esta
situação, lembrei-me; e, novamente, reproduzo suas palavras:
“Ai, amiga, 'tô pensando em dar cabo dessa criança. Mas já me
sinto tão arrependida”, ressaltando vivamente o “tão”. O
pensamento foi repelido por várias palavras de conforto e
esperança. Voltemos ao dia de trabalho. O final do expediente
foi marcado pelo encontro das duas. A gestante explicou à amiga
que se sentiu mal e foi levada a uma consulta médica, que
demorou muito por causa de vários fatores ao longo do caminho.
Ao terminar seu relato, Marlene escutou da amiga umas palavras
firmes e convictas, dizendo para ela não fazer absurdo algum,
pois os pais, embora com certa dificuldade, a acolheriam e
forneceriam toda assistência necessária a ela e à criança. A
futura mamãe ouviu tudo com os olhos atentos, a boca
entreaberta e os ouvidos totalmente voltados para aquela
profecia. Digo profecia porque foi exatamente isto que ela
pensou quando Lídia terminou de falar.
E eis que tudo se cumpriu.
Os anos se passaram, e o que começou por brincadeira,
sarcasmo, ou o que for, se tornou sério. Rendeu frutos. Tanto
para os clientes quanto para D. Feitora, cuja índole não a
permitia ostentar os dons materiais.
Suspeito de que estejas curioso(a), prezado(a) leitor(a),
para saber um pouco mais sobre as consultas da feijomante. E
concedo uma parte do que sei.
D. Maria era esposa valorosa. Virtudes e defeitos a
compunham, como a qualquer ser humano. Às vezes os defeitos
excediam a todo entendimento, principalmente depois de
casada, status adquirido após sete anos de namoro. O marido
estava, oito anos após ter contraído o matrimônio, enfadado com
as balburdias, que se tornaram cotidianas. Chegou a conversar
duas vezes sobre separação, divórcio, ou qualquer coisa que o
valha. A esposa percebeu, depois de insinuação sobre um possível
diálogo abordando o mesmo tema anteriormente citado, que nem
os filhos, um casal de adolescentes, seriam motivo suficiente
para manter o torniquete, responsável pela manutenção do
casamento, ativo. A solução foi uma consulta com a famosa
feijomante.
— Feijomante!?
— Sim. Muito boa, preço accessível. Vamos lá. E cedo,
porque tem fila.
Filas, filas.
D. Maria chegou exclamativa ao lado da pessoa que a
conduziu até lá. Sentou-se e começou a contar a história de sua
vida, acentuando o namoro e o casamento. “Ah! vida de casada”,
suspirou. D. Feitora ouviu tudo atentamente. Finalizada a prosa
da cliente, a leitora de feijões deu movimento ao seu trabalho.
Tomou os cinco maravilhosos grãos negros, encerrou-os entre as
mãos, encostou a ponta dos dedos na testa, sussurrou para seus
próprios ouvidos e dispensou os feijões graciosamente, como num
movimento do Lago dos Cisnes. Esperou que o alimento descosido
tomasse posição. Fitou-os longamente, com o olhar pulando de
um para o outro.
— Hã... latitude 0º, com longitude em 35º, posição
vertical a 136mm e horizontal a 135mm. Noroeste 25”, com o
centro em 18” e leve caimento para a esquerda.
E assim discursou, eloquente e eficaz, a posição de cada
um dos cinco grãos. A habilidade com os números se desenvolveu
com o trabalho de operadora de caixa da juventude. E
conservou-se graças à ideia de informar aos clientes a posição do
seu material de trabalho como uma espécie de introdução ao
resultado investigativo.
D. Lídia não costumava entregar o resultado da leitura
oralmente aos seus clientes. Seguindo a primeira parte, pela qual
ela dizia a posição dos feijões, retirava-se da mesa, deixando o
cliente engolindo a seco, pasmado com a precisão matemática da
consultoria. Nenhum deles questionava esta atitude.
Aguardavam, aflitos, o parecer. E ele vinha em forma de carta, a
qual parecia psicografada, pelas maneiras de a feijomante
escrever: uma mesinha separada no canto da sala, mão esquerda
na testa e a direita marcando o papel.
O resultado da consulta de D. Maria? Ei-lo abaixo
reproduzido.

“A sra. está com sérios problemas no casamento, mas não


deseja se separar do marido. Gosta dele. Ama ele. Tenho uns
conselhos que se a sra. seguir vai poder superar isso.
- Seja agradável e mostre a ele que você tem um
sentimento por ele batendo no coração.
- Quando exigir alguma coisa dele esteja com seus
afazeres prontos.
- Evite discussão. Troque por diálogo.
- Pegue uma calcinha sua mais uma cueca dele e pingue
umas gotas de um perfume amadeirado qualquer. Depois junte as
duas peças na gaveta da intimidade. Troque a posição a cada três
dias.”

Direta e simplesmente objetiva. Sem rodeios nem


floreios. A cliente pagou a consulta, com largo sorriso no rosto,
agradeceu e se foi, ainda sorrindo. Chegou em casa com o mesmo
semblante. O marido a interrogou e ela disfarçou a resposta com
as atitudes da carta em prática. Ao findar da primeira semana
pós-consulta, o clima entre o casal era outro: voltaram a
namorar. Salubre pretium!

Estás satisfeito(a)? Bem sei da tua curiosidade.

Felipe era jovem esforçado. Começou a trabalhar cedo.


No entanto, as obrigações com a família e o pouco ordenado
mensal não eram o bastante para satisfazer suas ambições. A
solução apontada pelos sábios feijões:

“Guarde quarenta por cento do salário numa caderneta


de poupança. Jogue duas vezes por semana na loteria, com uma
combinação aleatória. Pegue um cravo, uma moeda, uma folha
de arruda e coloque eles num saquinho plástico.”
Depois de três longos meses, enriqueceu. A Fortuna o
abençoou através da lotérica.

Para deixar um sentimento de satisfação, apresento mais


um caso - bem concisamente também, como o anterior.

Marcela tinha um agravo de doença nos pulmões. A


feijomante receitara o seguinte:

“Troque o médico que faz o tratamento e siga fielmente


o que ele vai indicar. Engula todo dia de manhã em jejum um
dente de alho cortado em pedacinhos num copo com água não
gelada. Dia sim dia não beba um copo de suco de laranja batida
com agrião e adoçada com mel e própolis.”
Cinco meses, e o pulmão limpo.

Longa jornada de D. Lídia Feitora como feijomante.


Morreu aos sessenta e cinco anos. Antes de contar a morte,
evoco uma situação curiosa.
A casinha da feijomante, ainda que modesta, despertou a
atenção de algumas mentes geniosas. A três quarteirões,
inaugurou-se uma casa na qual as consultas eram feitas por
búzios. A dez esquinas, um estabelecimento no qual o destino
era revelado através de cartas. Numa rua ao lado, pessoas se
ocupavam em ler o caminho traçado nas mãos. E no bairro
vizinho, a adivinhação era comandada por luzes psicodélicas. E
todos conviveram bem durante um ano. Tempo em que os
clientes “experimentavam” as novidades. Porém, os feijões
pareciam mágicos. A ponto de render ouro. A cobiça, cria da
inveja, saculejou os outros comerciantes. Mãe Dulce, dos búzios,
manifestou vontade de encontrar solução para o caso,
compartilhada por Tio Babalorangô, das cartas, Vó Chitana, das
mãos, e Primo Orixangatá, das luzes. Reuniu-se a família.
As estratégias de propaganda e marketing pareciam ter
sido aprendidas em escola superior especializada. Promoções
pipocavam, impressas em folhas do tipo A4 e coladas nos postes.
“Trago a pessoa amada em tantos dias”, alardeava o papel dos
búzios. “Trago a pessoa amada em menos dias e rastejando aos
seus pés”, propagava o papel das cartas.
— Ih, menina, Tio Babalorangô mandou eu passar um óleo
na bacurinha pra amarrar o bofe. Hunf! três dias pra sair a
porcaria do fedor e nada.

Por essas e outras, os feijões nocauteavam.


Retornemos à notícia pré-óbito. D. Lídia foi visitada pelos
quatro leitores de outras coisas. Recebeu-os com serenidade.
— Esperava vocês. Se acomodem.
Os membros do quarteto olharam uns para os outros.
Nada disseram. Sentaram e ouviram as palavras mansas de D.
Feitora. Saíram atônitos.
Mas antes de continuar, retomemos um fato ocorrido
antes de eles irem procurar a feijomante. Os quatro resolveram
ter certeza do que fazer e para isso decidiram consultar o mestre
Vovô Manco do Cajado e do Cachimbo de Iá-Rá-Rá. Consultaram-
se e foram confiantes com a resposta da fumaça.
D. Lídia Feitora Silva faleceu durante a madrugada, logo
após um grupo de vultos passearem em seu quintal. A causa da
morte não foi sabida.
Material Extra (ii)

O MENINO MILAGREIRO

E então, um menino assim morreu


E um santo se vos deu
Para as bandas do além-mar
Vivia ele com a família
Mas depois de terrível encontro
Que agora vos conto
A criança inocente
Cessou o respirar de repente

Dantes, nasceu cheio de graça


De breve encontro, uma farsa
Cujo resultado foi perfeito
Inesperado, mas certeiro
Nasceu criança linda
Deixou os pais na berlinda
Sem saberem o que fazer
Com o pequenino ser

Os pais pareciam bicho


Jogaram o filho no lixo
Enrolado num cobertor
Protegido por um plástico
O pequeno seguiu partindo
Bactérias em si curtindo
Mas o menino indigente
Foi tomado por novo parente
Criado na dificuldade
De todos ganhou a amizade
Com atitudes idôneas
E largo sorriso no rosto
Apesar da feição grave
A Fortuna não sofria agrave
Pois a todos ajudava
Grandes afeições angariava

Gostava de coisas simples


Não precisava de pirilimpes
Era fácil de se agradar
Com brinquedos e amigos
Fazi'os gracejos da tenr'idade
Curtira bem a mocidade
Valendo-se do seu tempo
Sem nenhum entortamento

"Filho, vem logo estudá"


Aprendeu rápido o beabá
Incentivado pela mãe
Era aluno caprichoso
Cuidava bem do material
Não largava em qualquer local
A mochila era pesada
E a dor, recompensada
Da família tinha apoio
Parecia andar em comboio
Sentia-se especialmente
Querido entre todos
E a todos tratava bem
Sem se importar se alguém
Tinha interesse disfarçado
No agir dispensado

Quand'alguém precisava
Largava tudo e ajudava
Sendo ainda pueril
Não sabia discernir
O verdadeiro espetacro
Do real simulacro
Com intenção sempre boa
Acudia gente à-toa

Tinha coragem tamanha


À frente, não via montanha
Diante do perigo
O menino era leão
Não se dava por vencido
Mesmo quando escarnecido
Perseguindo a vitória
Construía sua história
Sua fala encantava a todos
Rio límpido, sem lodos
No qual todas as pessoas
Queriam se banhar
Infante de convicções
Espalhava suas instruções
Que acalentavam o coração
Na treva, era lampião

Reconhecido após a morte


Feito forjado pela Sorte
A causa não foi sabida
O corpo entre lençóis
Repousava serenamente
Fingia dormir tranquilamente
Aquele que o encontrou
Muitas lágrimas derramou

Filho querido, bom amigo


Não conquistara inimigo
Santo um tanto diferente
De história destoante
Atitudes complacentes
Virtudes não-latentes
Bondade admirosa
Benignidade espantosa
Mesmo quando ocupado
Ou com estômago embrulhado
Arrumava um jeitinho
De se fazer criança
Correndo, pulando, jogando
As tristezas ia enganando
Esquecia da mazel'imbuída
Pelo espetáculo da vida

Apesar do pouco estudo


Aprendera um 'cado de tudo
Crescia sua perspicácia
Pra separar bem e mal
E seu agir inócuo
Atingia também o iníquo
Seus atos admiráveis
Fizeram-se inolvidáveis

Sua figura lembrava candura


Desmantelava tod'amargura
Sofrida na meninice
Tempo da ingenuidade
Quando ainda malformado
Fora num rio lançado
Vítima da malvadeza
De gente sem natureza
Ainda assim, despejado,
Resistiu até ser encontrado
Foi a primeira ousadia
Da criança alumiada
Que a própria vida conduziu
E na angústia sorriu
Fortaleceu-se n'adversidade
Vencendo a dificuldade

Grande tristeza a notícia


Da morte, quase fictícia,
Tamanha a incredulidade
Demonstrada pelos convivas
Muitos amigos e parentes
Em cujas feições eram evidentes
Os sentimentos pesarosos
Pelo guri de atos bondosos

Mesmo morto continuou


Sua saga não encerrou
A ele são atribuídos
Muitos milagres e bênçãos
Agora sem corpo, sem mundo
Seu ato ainda mais profundo
É conceder àqueles que pedem
A graça, pela qual agradecem
E a ele retornam
Em seu túmulo colocam
Em cima do gelado
Bloco de mármore imóvel
Prendas de retribuição
Ofertadas de coração
O santo segue brincando
A todos agraciando

Teu nome ainda é forte


Contrastando com o porte
Embora foste franzino
Revelavas-te gigante
Nas difíceis horas incertas
Nos braços, tu nos carregas
Nome, sobrenome, apelido
Impossível ser esquecido
Sudeste do Brasil, Rio de Janeiro, Baixada Fluminense
Dia qualquer, de algum mês, deste ano

André Luis Santos da Silva


visite: www.conjuntoego.blogspot.com
CVRRICVLVM VITAE

aluno da Faculdade de
Letras, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro,
matriculado no curso de
Português / Latim (migra-do
da almejada área técnica de
processamen-to de dados e
outros cursi-tos de
informática);

o primeiro contato com o


Idioma Clássico ocorreu na
Universidade Gama Filho,
através do badalado curso de
graduação (inconcluí-do) em
Letras – Português / Inglês;

foi paixão avassaladora, bem


como o contato com as
Literaturas, cujo resul-tado
tem sido desastroso!

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