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Texto sobre o
Casamento e a
Família
Philippe Ariès
Texto sobre o
Casamento e a
Família
Sumário
O AMOR NO CASAMENTO............................................... 4
Elqana (1 Sam 1, 4-19) tinha duas mulheres, uma chamada Ana, que ele
amava (diligebat), mas que era estéril (Dominus concluserat valvam ejus). A
outra, de quem gostava menos, era fértil, dera-lhe filhos e troçava cruelmente
da rival.
É desse modo que Isaac a conduz à sua tenda, isto é, que a toma para
esposa (ducere). Era preciso que a futura esposa tapasse o rosto com um véu,
até à noite de núpcias: antes disso deveria esconder-se muito mais ao futuro
marido do que aos outros homens.
Por fim dirigiu-se ao marido. Podia tê-lo deixado morrer, sem intervir:
«Recusei viver sem ti, com filhos órfãos, sacrifiquei os dons da juventude que
fizeram a minha alegria.» Se o pai dele, que a idade tornou inútil e incapaz de
procriar, tivesse aceitado a morte «viveríamos os dois juntos o resta da vida»...
Mas as coisas são como são, pela vontade dos deuses. Faz então um pedido
solene: roga a Admeto que não se volte a casar, o que mais provavelmente
acabaria por acontecer, para que os filhos não viessem a ter madrastas.
Eis, pois, o estranho e anacrônico voto que anuncia com dois mil anos de
avanço, a recusa romântica da morte do outro, as desesperadas tentativas de o
substituir pela sua imagem: Admeto pede que «moldado pelos artistas mais
hábeis, o teu corpo seja colocado no meu leito; ao pé dele me deitarei... Em
1
Quando Saint-Simon narra a morte de Madame de Montespan, pormenoriza o fato de que, ao sentir a morte
aproximar-se, chamou os criados «mesmo os mais inferiores», para se despedir.
sonho visitarás permanentemente meus olhos fascinados; porque quem
amamos, mesmo na noite olhamos com ternura, por pouco que tal dure».
«Recomendarei a meus filhos que lado a lado nos deponham na mesma urna de
cedro. Que nunca mais, nem mesmo na morte, de ti me separe, único ser que
me foi fiel.» Desta forma, é sobre o leito de amor, e talvez no do nascimento,
que Alcestes vem recolher-se antes de morrer, sem que as suas palavras de
algum modo traiam o recato da mulher perfeita, recato que, todavia, não se
opõe ao amor, antes é dele testemunho e o torna evidente.
Apesar das suas tomadas de posição a favor da virgindade, São Paulo, que
foi casado, segundo assegura São Clemente, admite sem reservas o casamento e
exalta a união perfeita do homem e da mulher. «Os maridos devem amar a
esposa como ao seu próprio corpo. Aquele que ama a sua mulher, ama-se a si
próprio.» Convém salientar, entretanto, que, se os maridos são convidados a
amar as mulheres — diligite — estas devem ser-lhes submissas — subditae: a
diferença não é pequena. A submissão aparece como a expressão feminina do
amor conjugal. Apesar da diferença entre eles e por causa da sua
complementaridade, marido e mulher serão apenas um corpo, erunt duo in
carne una, fórmula que não designa apenas a penetração dos sexos, mas
também a confiança mútua, a ligação recíproca, a identificação de um com o
outro.
Acontece que o silêncio é por vezes violado e isso dá-se quase sempre
perto da morte. Os arqueólogos encontraram nos cemitérios merovíngios
túmulos onde os esqueletos dos esposos estão enlaçados no mesmo sarcófago.
Vê-se, nas ilustrações de Juízos Finais, a Ressurreição reunir esposos que a morte
separara, mas trata-se de testemunhos excepcionais, sinais espaçados na
imensidão do tempo. Atestam casos individuais que diferem do modelo comum,
mais discreto — sendo óbvio que existia suficiente jogo no interior desses
modelos permitindo comportamentos originais e aberrantes. No caso do duque
de Saint-Simon, entre outros testemunhos da época, a originalidade reside na
manifestação pública e patética de um sentimento cujo caráter é o de
permanecer secreto.
1
Baltimore, Johns Hopkins University Press, 1978. Desde o aparecimento deste livro, G. DUBY publicou Le
Chevalier, la Femme et le Prêtre (Paris, Hachette, 1981).
2
Il matrimonio nella Societa altomedievale, Spoleto, 22-28 de Abril 1976, Centro italiano di studi sull'alto
medievo, Spoleto, 1977, pp. 233-285.
solenidade, sancionado pela aclamação dos assistentes que testemunhavam
assim da realidade dos fatos. Celebrava-se, com efeito, o momento essencial em
que rapaz e rapariga eram deitados na mesma cama tendo como missão procriar
o mais cedo e tantas vezes quanto fosse possível. A importância e a urgência da
missão dependiam da riqueza ou do poder da família, do peso das estratégias
matrimoniais e das alianças que delas dependiam. Podemo-nos deste modo
interrogar em que medida a realidade do casamento, assim manifesta pelo seu
caráter público e a presença de numerosas testemunhas, não dependia do valor
do que estava em causa: sempre que isso era pouco importante, podia não
haver publicidade nem cerimônia relevante e, por conseguinte, não haver
casamento real, mas, somente, o que vinha dar ao mesmo, um casamento
virtual, com reticências, cuja realidade jurídica dependia da marca que deixava
na memória coletiva. Se essa marca fosse fraca, o casamento era interpretado
como sendo uma ligação passageira, se a marca fosse forte era, ao contrário,
considerado como sendo um casamento legítimo.
3
Os três dias durante os quais, depois da morte, a alma errava em torno do corpo e da casa?
4
O. RANUM, Artisans of glory, Writers and historical thought in XVII th century France, Univ. North Carolina
Press, 1980.
em reserva, do que rapazes. As filhas bastardas, particularmente, constituíam
aquilo a que G. Duby chama «reserva de prazer» das casas nobres. Outras eram
postas em mosteiros familiares, espécie de anexos dos castelos, fundados pelos
chefes de família para guardar as filhas e as viúvas. Os jovens que eram
afastados do casamento, formavam bandos de celibatários (juvenes) que
procuravam a aventura militar, desportiva, sexual, esperando, um dia, a ocasião
de vir a ter um filho honroso (tornarem-se senior), casando com uma herdeira
(que, por vezes, tinham engravidado anteriormente) ou passando a ser o
«senescal», o oficial e homem de confiança de um poderoso chefe de família.
Tal casamento tinha sido concluído pela família com fins determinados.
Se, devido por exemplo a esterilidade, ou a qualquer outra razão, estes fins não
eram atingidos, o casamento perdia a sua razão de ser, era preciso dissolvê-lo,
mandar a mulher de volta para a sua família ou para o mosteiro. Outro
casamento devia suceder-lhe imediatamente.
Na mesma época em que este tipo de casamento era praticado nos meios
aristocráticos, a Igreja, por seu lado, amadurecia um modelo de casamento
radicalmente diferente e ao qual devia assegurar, no século XIII, o estatuto de
sacramento, a par do batismo e da ordem: extraordinária promoção de um ato
privado, de uma união sexual organizada com vista a alianças de linhagem, feita
e desfeita em função de interesses familiares. O próprio fato de o ato, uma vez
consumado e ao mesmo tempo consagrado, não poder mais ser dissolvido,
tornava as disposições familiares mais definitivas e irrevogáveis. Sem dúvida que
os interesses continuaram a pesar e é certo que a Igreja o sabia, mas já não eram
todo-poderosos e tinham de admitir alguns riscos graves, especialmente a má
conduta e a esterilidade, aos quais se tinham que resignar. É contudo notável
que a Igreja tenha levado tanto tempo, não só a impor o seu modelo a uma
aristocracia rebelde mas ainda a esclarecer a sua doutrina, a exprimi-la
claramente e a chegar a uma definição clara e simples da sua concepção de
casamento.
No interior da Igreja existiam, de fato, duas correntes apostas, cada vez
mais opostas. Uma, ascética, reclamava-se de São Jerônimo: hostilidade ao
casamento considerado como um estado inferior, mal tolerado. Esta corrente
conheceu altos e baixos, eclipses e regressos. Parece impor-se, no século XII,
junto dos clérigos que queriam impedir a Igreja de intervir no casamento e de o
controlar: que se mantenha à parte dessas coisas baixas e vulgares com as quais
ela não tem nada a ver, pensavam. Poderíamos descobrir, entre os cátaros do
Languedoque a mesma tendência, que teria ultrapassado o limiar da ortodoxia.
Contudo, a este modelo do século IX, falta ainda um traço essencial, que
aos nossos olhos caracteriza o casamento cristão, a indissolubilidade, o
stabilitas. Ou, pelo menos, se existe, permanece em reticências, sem que seja
claramente dito. A idéia aparece nitidamente na aproximação entre a união
sacramental dos dois esposos e a união eterna de Cristo e da sua Igreja. Mas o
próprio Hincmar, num texto do De coercendo raptu (o título é explícito), citado
por P. Toubert, dá um exemplo de bom casamento: o repúdio por Assuerus da
sua primeira mulher para lhe permitir casar com Ester! Este segundo casamento
é apresentado como modelo de casamento cristão.
Durante os séculos XI e XII, a Igreja foi levada a intervir cada vez mais
diretamente nos casamentos, a fim de os controlar e de os aproximar do modelo
sacramental que estava a definir e a fixar. Ela não se contentava já em dar
conselhos, como no tempo de Hincmar, conselhos que corriam o risco de não
passar do papel. A partir de agora ela não hesitava em impor o seu ponto de
vista, recorrendo a sanções como a excomunhão, mesmo quando se tratava do
Rei de França. Aconteceu então uma coisa muito curiosa que mostra até que
ponto era difícil para a Igreja, mesmo nesse momento, impor à aristocracia laica
obrigações opostas aos seus costumes tradicionais, particularmente no que diz
respeito ao direito de repudiar a mulher em certas circunstâncias. Quando a
Igreja começou a intervir no casamento, ao princípio, não foi para fazer respeitar
a indissolubilidade; antes se serviu de um pretexto, hesitando ir frontalmente
contra um direito incontestado. Tem-se a impressão que ninguém ousava, no
início, reclamar-se abertamente do princípio da indissolubilidade absoluta.
Valorizava-se esse princípio, mas por vias travessas. Uma delas era o incesto. A
união era considerada incestuosa até ao sétimo grau e, mesmo se o contrato já
tinha sido feito e se tinha consumado a união, ela devia ser anulada qualquer
que tivesse sido a sua duração e a sua fecundidade. Era anulada somente depois
da sua consumação, por vezes muito tempo depois, pois, ao tempo, a Igreja não
controlava ainda nem o noivado nem mesmo a cerimônia. Daí só poder intervir
depois — e quando a descobria.
Assim, nos meios episcopais do século XI, observa-se, por um lado, uma
grande repugnância em condenar um divórcio e um segundo casamento como
adultério e bigamia e, por outro lado, uma hesitação em admiti-los sem
problema. Donde a tentação de os condenar em nome do incesto.
Esta pode ser explicada por três razões. Primeiramente ele já existia no
mundo galo-romano e nada havia a mudar. Esta hipótese, que não é possível
demonstrar, implicaria uma diferença entre o casamento no campo e o
casamento urbano, tal como o conhecemos em Roma e que é definido por um
poder de repúdio, por vezes recíproco, e pela extensão do concubinato. Não nos
deixemos enganar, no entanto, pelas precisões do direito introduzidas na nossa
mentalidade atual, desde há dois ou três séculos. É provável que, no campo, as
condições sócio-econômicas exercessem pressões no sentido da stabilitas e que
na cidade, tal como em Roma, as pressões se exercessem em sentido contrário,
a favor do direito de repúdio, sem que os contemporâneos tivessem consciência
de uma diferença cultural profunda.
A segunda razão é a mais difundida nos nossos dias: foi a Igreja que impôs
o seu modelo de casamento bem como as suas concepções de sexualidade a
uma sociedade que talvez fosse recalcitrante e que, de qualquer forma, não
tomava iniciativa, antes a sofria. Julga-se que com o tempo o modelo foi
interiorizado. Pessoalmente, contesto esta interpretação. Como dizia mais
acima, não se tem a sensação que a Igreja tenha tido de fazer um grande esforço
neste sentido. Os textos citados por P. Toubert no que respeita à época
carolíngia interessam sobretudo à aristocracia militar. É a ela que a Igreja se
dirigia. Sem dúvida porque eram os únicos sobre os quais podia agir.
Perguntamo-nos, com efeito, qual podia ser a sua influência no campo: nuns
sítios não havia ainda paróquias, outros eram servidos por clérigos que, segundo
julgo, deviam integrar-se rapidamente na comunidade, adotar o seu modo de
vida, a começar, justamente, pelo casamento. Como poderiam opor-se
vitoriosamente ao costume enraizado da «bigamia»?
Isto não me parece verossímil e tal hipótese faz supor, da parte dos
historiadores, uma confiança excessiva nos poderes da Igreja sobre a sociedade,
antes do final da Idade Média e mesmo até ao concílio de Trento. Traduz
também a nossa convicção contemporânea de que a indissolubilidade era um
entrave à liberdade sexual que seria natural, original — e que, portanto, só podia
ter sido imposta pela coação.
A coação não foi imposta do exterior, por uma força estranha como a
Igreja, mas aceite e mantida pelas próprias comunidades. Se houve passagem do
repúdio à indissolubilidade, ela foi desejada, se não mesmo consciente, isto é, foi
imposta por uma vontade coletiva que não tinha de modo algum a sensação de
inovar, que acreditava, pelo contrário, no respeito pelos costumes dos
antepassados. Sou, por este motivo, tentado a admitir que qualquer coisa neste
sentido existia já na época galo-romana ou durante a Antiguidade tardia.
*
— Charivari — barulho de vários objetos que outrora se fazia de fronte à casa de um viúvo ou viúva idosos
que se voltavam a casar, ou diante da porta de certas pessoas de quem se desaprovava o comportamento.
(N.T.)
Adotarei, pois, provisoriamente e até prova em contrário, a hipótese
segundo a qual o casamento indissolúvel é uma criação espontânea das
coletividades rurais, escolhida por elas, fora das pressões externas mas que
coincidiu com o modelo eclesiástico e foi fortalecida por este encontro, talvez
aleatório.
Eis alguns exemplos. O caso mais frequente realmente era, como se sabe,
o do casamento negociado pelas famílias. Não é o mala frequente nos processos
pois era o menos contestado e não suscitava recurso à justiça. Há documentos
que, no entanto, permitem imaginar uma cena banal: tem lugar em casa, alguns
amigos e parentes estão presentes, principalmente um tio da rapariga, sem
dúvida o tio materno que assume um papel específico na cerimônia. O pai
convida o rapaz a sentar-se ao lado da que lhe está prometida e a dar-lhe de
beber: a troca da taça tem um valor simbólico que equivale a uma doação. Por
seu lado, o rapaz convida a rapariga a beber com uma intenção determinada. Ele
diz que é «como promessa de casamento» e bebe-se em silêncio. Depois, o tio
materno dirige-se à sobrinha: «Dá de beber a Jean como promessa de
casamento, como ele te deu de beber a ti.» Ela assim faz e o rapaz responde por
sua vez: «Eu quero que recebais um beijo meu, como promessa de casamento.»
5
J.-B. MOLIN e P. MUTEMBLE, Les Rituels de mariage en France du XII° au XVII° siècle, Paris, 1974.
Beija-a e a assistência, constatando o fato com uma aclamação exclama: «Estais
prometidos um ao outro, brindemos.»
Por fim, a última etapa, cerca do século XVII, foi a entrada na Igreja, a
transferência do conjunto das cerimônias da porta da Igreja para o seu interior,
onde, a partir de então terão lugar.
Se ficássemos por esta breve análise dos rituais poderíamos pensar que o
casamento foi objeto, pelo menos desde o século XIII, duma clericalização
decisiva e autoritária. A realidade é completamente diferente. Os compromissos
domésticos, como as promessas de casamento em Troyes, persistiram apesar da
generalização da cerimônia religiosa — e a Igreja hesitou durante muito tempo
em relegá-los para um lugar que já não era essencial, em assimilá-los ao noivado,
no seu sentido atual. De fato, a clericalização do casamento teve como primeiro
efeito acrescentar, simplesmente, uma cerimônia mais aos ritos domésticos que
já existiam e, por conseguinte, prolongar o casamento ainda mais no tempo.
Mais tarde, o Estado laico substitui a Igreja para impor o seu modelo. Nem
as transformações no interior do casal e da família, hoje bem conhecidas, a
aproximação entre o amor paixão e o amor conjugal, a substituição do
casamento negociado pelo casamento do inclinação, nem mesmo as aberturas
trazidas pela lei à indissolubilidade, nem a possibilidade deixada com certas
precauções aos divorciados de se voltarem a casar, nada disto libertou o
casamento dos seus limites legais e o devolveu ao domínio privado. Permaneceu
sempre um ato público.
E por fim o último episódio: a Igreja, inicialmente, nos séculos XII e XIII, em
seguida o Estado, desde o século XVIII, fizeram com que o casamento entrasse
no domínio das instituições fundamentais da cultura escrita e do espaço público
que elas constituem. Ele permanece aí, ainda hoje, apesar das forças centrífugas
que sobre si agem e que o empurram para o domínio, não verdadeiramente do
privado, mas da intimidade, da pura espontaneidade. Até onde se irá neste
sentido? Última questão à qual o futuro responderá: deixemos-lhe esse cuidado.
A noção importante é, pois, a de domínio. Ora, esse domínio não era nem
privado, nem público, no sentido moderno desses termos. A bem dizer, era uma
coisa e outra ao mesmo tempo. Hoje o chamaríamos privado, porque
correspondia ao comportamento individual, ao caráter do homem, à sua
maneira de estar só ou em sociedade, à consciência de si mesmo, ao seu ser
profundo. Também o chamaríamos público, porque designava o lugar do homem
na coletividade, seus direitos e deveres. Essa estratégia individual era possível
porque o espaço social não estava completamente preenchido. O tecido era
frouxo, e cabia a cada um alargar suas malhas segundo a própria conveniência,
mas dentro dos limites permitidos pela comunidade. Esta admitia a existência de
um jogo em torno dos seres como em torno das coisas. É digno de nota que a
própria palavra "jogo", em francês [jeu], play em inglês, signifique ao mesmo
tempo o fato de jogar e o espaço deixado livre numa reunião. Talvez o jogo
lúdico fosse o meio de criar ou de manter o jogo-espaço1...
1
Ver Yves Castan, Honnêteté et relations sociales en Languedoc, Plon, 1974.
industrialização, o Estado técnico e organizador apagou a fronteira. Não há mais
um lado interior e outro exterior a ela: o olhar e o controle do Estado se
estendem ou devem se estender por toda parte e nada mais devem deixar na
sombra. Não há mais espaço livre, onde o indivíduo se possa instalar como
squatter*. Sem dúvida, as sociedades liberais lhe deixam iniciativas, com etapas
por elas organizadas, mas apenas nas vias que programaram, especialmente as
do sucesso na escola e da promoção no trabalho. A situação ficou inteiramente
diferente. O jogo não é mais aceito, o jogo-espaço, nem entre os seres, nem
entre as coisas. A nova sociedade é mais bem ajustada.
*
N. T. Squatter. Indivíduo que ocupa um prédio ou casa abandonado, sem ter adquirido título de propriedade.
Foucault), ou, de qualquer modo, uma forma de controlar e ordenar.
2
Jacques Donzelot, La police des families, Ed. de Minuit, 1977, e Philippe Meyer, L'enfant et Ia raison
d'Etat,Seuil, 1977, pensam, ao contrário, que a família se tornou também um dos canais do poder.
refúgio: a família. Era um espaço que ela admitia, aliás, como uma "reserva",
fácil de vigiar, e constrangia os recalcitrantes (os concubinos) a entrar nele.3
3
Um processo bem analisado por J. Donzelot e Ph. Meyer.
analista distingui-las. Observemos, no entanto, que os historiadores estão hoje
de acordo em admitir o desenvolvimento, na Europa Ocidental do século XIX, de
uma florescente civilização rural, devido à prosperidade agrícola. Isto deve ser
verdade também n.o caso dos Estados Unidos. Não dizemos que as regiões do
Meio-Oeste conservaram tradições já desaparecidas nos países de origem dos
imigrantes? Esse desabrochar atesta a grande vitalidade da comunidade
camponesa nessa época, que foi, no entanto, a dos progressos da privacidade,
da família, da escola.
Certamente a grande cidade não era mais o que ainda fora no século XVIII:
uma reunião de bairros, cada um, às vezes urna rua, tendo sua fisionomia
própria e constituindo uma comunidade de fato. Desde o século XVIII, em Paris,
a chegada de uma população móvel, sem domicilio fixo, perturbara o antigo
modelo. Mas uma nova sociabilidade substituirá a antiga, mantendo e
desenvolvendo as funções essenciais da cidade.
*
N.T. Designação francesa para aquele que prepara refeições, pratos a serem levados e consumidos a
domicílio.
**
N.T. No original: l'auberge e l'hôtellerie.
***
N.T. De public house.
sem café, ou sem vários cafés. Nos bairros populares, o pequeno café
desempenha um papel essencial: permite comunicações que de outra forma não
existiriam entre os residentes mal alojados, muitas vezes ausentes, retidos que
são por um trabalho longínquo. O café é o lugar por onde transitam os recados.
Por isso, tornou-se imediatamente o acesso ao telefone de seus freqüentadores,
o lugar onde estes utilizam o telefone, onde podem ser esperados por telefone,
onde se lhes pode deixar um recado. Todos se surpreenderão, com M. Agulhem,
com a prodigiosa quantidade de cafés numa cidade corno Marselha, cada um
reunindo, em torno de um balcão e de um telefone, urna minúscula rede de
vizinhos e de amigos.
4
Citemos aqui o último livro de Maurice Agulhon, Le cercle dans Ia France bourgeoise, Cahier des Annales, no
36, Paris, 1977, mas seria o caso de citar também toda a obra de nosso historiador da sociabilidade.
moderno de vigilância e de ordem e à sua extensão a todo o espaço social.
Existe, pois, no século XIX e no início do século XX, nas cidades, mesmo nas
muito grandes, ao lado da casa e da privacidade, uma vida pública muito real,
diferente daquela das sociedades tradicionais. Por isto é que as cidades dessa
época foram tão vivas e os progressos da privacidade não enfraqueceram nelas a
sociabilidade pública, pelo menos a masculina.
A partir de uma certa época, variável de um lugar para outro, mas que
começa no fim do século XIX, isto é, antes do automóvel, os habitantes mais
ricos fugiram da cidade aglomerada e densa, que consideravam ao mesmo
tempo malsã e perigosa. Buscaram longe dos locais habitados um ar mais puro e
uma vizinhança mais decente. Começaram por ocupar, em massa, bairros
periféricos ainda pouco povoados, como, em Paris, o 16ème e o 17ème
arrondissement, próximos dos espaços verdes, como o parque Monceau e o Bois
de Boulogne. Depois, graças ao trem, ao metrô e, logo, graças ao automóvel,
avançaram cada vez para mais longe. O fato é bem conhecido. É geral em todo o
Ocidente industrializado, mas foi na América do Norte que tomou maior
amplitude e alcançou suas conseqüências extremas. É lá que deve ser
observado.
Tudo se passa como se, durante o século XIX e no início do século XX, os
efeitos da privatização e do novo modelo da família tivessem sido limitados pelo
vigor da vida coletiva nas cidades, assim como nas zonas rurais. Produzira-se o
equilíbrio entre a vida familiar em casa e a vida coletiva no café, no terraço, na
rua. Esse equilíbrio foi rompido e a atração da vida familiar prevaleceu, graças ao
brilho de seu modelo e à inesperada ajuda de técnicas novas, corno o automóvel
e a televisão. Toda a vida social foi então absorvida pela vida privada e pela
família.
CONCLUSÃO
O mundo pós-industrial do século XX, até agora, não foi capaz, nem de
manter a sociabilidade do século XIX, nem de substituí-la por outra forma mais
nova. A família teve de assumir essa impossível substituição. A causa profunda
da crise atual da família não está na família, mas na cidade.