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PODER JUDICIÁRIO

Justiça Federal de Primeira Instância


SEÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DE SERGIPE
1ª VARA FEDERAL
Sentença Tipo A – Fundamentação Individualizada

Processo nº 2007.85.00.001771-0
Classe 1 – Ação Civil Pública
Autor: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Réus: AGÊNCIA NACIONAL DE TELECOMUNICAÇÕES –
ANATEL e OUTROS

S E N T E N Ç A

1. RELATÓRIO

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL propôs ação civil pública


em face da TELE NORTE LESTE PARTICIPAÇÕES S/A (TELEMAR –
Telefonia Fixa e OI – Celular), EMBRATEL – EMPRESA BRASILEIRA
DE TELECOMUNICAÇÕES S/A, INTELIG TELECOMUNICAÇÕES
LTDA., TELESERGIPE CELULAR S/A (VIVO – Telefonia Celular), TIM
– TELECOM ITALIA MOBILE e MAXITEL S/A e CLARO – BCP S/A e
AGÊNCIA NACIONAL DE TELECOMUNICAÇÕES – ANATEL,
visando, cumulativamente, que: 1) as rés (operadoras de telefonia) forneçam, sem a
necessidade de prévia autorização judicial, os dados dos usuários constantes em
seus cadastros quando forem requisitados pelos Delegados de Polícia Civil e
Federal, membros do Ministério Público Federal e Estadual; 2) a ANATEL se
abstenha de opor quaisquer obstáculos ou imposição de penalidades no
atendimento de tais requisições.
Expõe que “as empresas de telefonia .... [se] negam a atender requisições oriundas
das Polícias Judiciárias e dos órgãos do Ministério Público, que têm por objeto o fornecimento de
dados constantes dos cadastros dos seus clientes, tais como número do telefone, endereço, nome
completo etc.”(fl. 03) e que isso tem prejudicado o andamento dos trabalhos do
Ministério Público e da Polícia, principalmente quando é preciso requerer em juízo
a interceptação telefônica de determinada pessoa, pois é necessário expedir ofício a
todas as operadoras para saber se a pessoa possui uma linha para só então a Polícia
ou Ministério Público requerer outro mandado, este dirigido à operadora da qual o
investigado é cliente. Explica que “não se trata de requisições versando sobre as ligações
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efetuadas pelos clientes, como extratos telefônicos, e muito menos que signifiquem o acesso ao
conteúdo de conversas” (fl. 03).
Sustenta que “a negativa das operadoras, com o alegado aval de ANATEL, tem
por efeito burocratizar excessivamente os procedimentos de interceptação telefônica” (fl. 05) e que
tal medida não está abrangida pela reserva de jurisdição. Cita algumas situações em
que a requisição direta dos dados pela Polícia ou Ministério Público pode agilizar os
requerimentos de interceptação telefônica ou sua ampliação, tais como o
cometimento de crimes graves (seqüestro) praticados contra os cidadãos.
Juntou procedimento administrativo oriundo do MPF (fls. 10/47)
Citadas a TELEMAR (fl. 56), a VIVO (fl. 62), a TIM (fl. 68), a
EMBRATEL (fl. 77), a INTELIG (fl. 152), a CLARO (fl. 161), as mesmas
apresentaram, respectivamente, contestações seguidas de documentos 1 nas fls.
208/356, 484/531, 399/431, 433/488, 84/143 e fls. 164/206.
A TELEMAR alegou, preliminarmente: 1) inadequação da via eleita, sob
o argumento de que a ação civil pública fora ajuizada para tutelar prerrogativa
institucional de órgão público, e não para defender o interesse difuso ou coletivo;
2) a incompetência absoluta do juízo cível, porquanto não poderia discutir e decidir
em abstrato uma questão que somente poderia ser examinada pelo juízo criminal à
luz do caso concreto; 3) a impossibilidade jurídica do pedido sob duplo
fundamento: 3.1) este juízo não poderia impor conduta não autorizada em abstrato
pelo ordenamento e afrontosa aos direitos fundamentais da intimidade e
privacidade, já que não há qualquer disposição legal ou regulamentar que assegure
“ao Ministério Público ou a Polícia Judiciária o livre acesso a dados cadastrais de seus clientes,
quanto menos se tratando de pedido genérico, amplo, irrestrito, imotivado e descontextualizado”
(fl. 218); 3.2) o Poder Judiciário não poderia atuar como legislador positivo; 4)
ausência de interesse de agir, uma vez que “[se] não há dano, não há necessidade da tutela
jurisdicional, trata-se, simplesmente, de ser ‘extremamente conveniente’ o provimento pleiteado” (fl.
220), bem assim os dados já poderiam ser obtido por outros meios de acordo com
o devido processo legal. No mérito, defendeu o seguinte: 1) o Parquet “pretende
institucionalizar, por meio desta ação, um quadro de exceção” (fl. 222); 2) não há qualquer
disposição legal ou regulamentar que permita que as rés violem o sigilo dos dados cadastrais de seus
clientes imotivadamente” (fl. 223); 3) “a garantia de sigilo de dados, a que se refere o art. 5º,
XII, da Constituição Federal alcança, de igual modo, os cadastros dos usuários, isto é, nome,
endereço, filiação, número de inscrição no CPF/MF, número de RG, renda mensal etc.”(fl. 225);
4) o art. 1º da Lei 10.703/2003 assegura a necessidade de reserva de jurisdição na
hipótese de quebra dos sigilos cadastrais; 5) o acesso aos dados cadastrais exige
uma decisão judicial proferida em um processo específico em que se analise “uma

1
Procuração, estatuto ou contrato social, designação de representante, cópias de julgados e reportagens sobre
a matéria

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hipótese concreta, com contornos bem delineados, com pessoas identificadas” (fl. 226). E,
arremata: “O que se quer é o conforto de transferir o ônus para as rés, obrigando-as contra legem,
a criar e disponibilizar um grande acervo de cadastros, através de um sistema on line ou através de
uma espécie de lista telefônica especialmente moldada aos fins do parquet, para que o autor e as
demais autoridades policiais tenham ao alcance da mão, sob seu controle, informações privadas de
todo e qualquer cidadão, indiscriminadamente, que seja usuário do serviço de telefonia fixa ou
móvel” (fl. 227).
A Vivo aduziu, preliminarmente: 1) a ausência de interesse processual
sob o fundamento de que o fornecimento do número de telefone não teria
nenhuma utilidade legítima, pois a interceptação telefônica sempre dependeria de
prévia autorização judicial, caso a caso; 2) inépcia da petição inicial referente ao
pedido por ser genérico e impreciso. No mérito, sustenta que: 1) o sigilo de dados
dos usuários é garantido constitucionalmente pelo direito à intimidade e que sua
quebra apenas pode ocorrer caso a caso mediante prévia e específica autorização
judiciária que avaliará as circunstâncias do caso concreto mediante a ponderação de
interesses; 2) violação ao princípio da proporcionalidade, na sua tríplice vertente
(adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito); 3) o autor
pretende através da ação civil pública substituir o administrador na formulação de
um novo modelo de fornecimento de dado, usurpando a sua função.
A TIM não se opôs ao mérito. Alegou, tão-somente, a ausência de
interesse processual, uma vez que já vem atendendo, independentemente de ordem
judicial, as solicitações feitas pelos órgãos policiais e pelo Ministério Público para o
fornecimento de dados cadastrais de seus usuários desde que atendidas algumas
condições.
A Embratel aduziu que: 1) salvo autorização expressa do cliente, os seus
dados pessoais somente podem ser divulgados a terceiros (Ministério Publico e
Polícia Judiciária) mediante autorização judicial à vista de um caso concreto; 2) a
procedência do pedido importaria em delegação de competência do Poder
Judiciário – de autorizar a quebra do sigilo de dados cadastrais – ao Ministério
Público e à Polícia Judiciária; 3) violação ao art. 5º, X e XII, da CF/88.
A Intelig argumenta, preliminarmente, a ilegitimidade ad causam do
Ministério Público, pois não defende através desta demanda interesse difuso ou
coletivo e sim os interesses próprios das instituições responsáveis pela persecução
penal. No mérito, esclarece que as operadoras de telefonia se dividem em local e a
longa distância, sendo que o cadastro de usuários é exclusivo da primeira ao passo
que a segunda se limita “a completar as chamadas telefônicas de longa distância nacional e
internacional, sempre que utilizado seu código correspondente (no caso da parte ré- ‘23’) pelo
usuário da linha telefônica fixa de responsabilidade das Operadoras de telefonia locais” (fl. 90).
Argumenta, ainda, que se encontra obrigada por força de legislação, termo de

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autorização, orientação normativa da Anatel a preservar o sigilo de dados de seus


usuários, salvo consentimento expresso ou autorização judicial.
A Claro argüiu, preliminarmente: 1) a inadequação da via eleita, visto que
não se persegue interesse difuso ou coletivo e sim interesse dos membros da
instituição do Ministério Público e da Polícia; 2) impossibilidade jurídica do pedido
porquanto, se acolhido, implicará usurpação pelo Judiciário da competência
legislativa, ao criar uma verdadeira norma ampliativa dos poderes do Ministério
Público e da Polícia.
Quanto ao mérito, argumentou o seguinte: 1) “o art. 5º, XI[I] da
Constituição Federal é claro ao proteger, além da comunicação telefônica também os dados
cadastrais dos usuários” (fl. 181) e que somente por decisão judicial poderia ser
quebrado; 2) ofensa ao art. 3º, VI e IX, da Lei 9.472/97.
Citada inicialmente na pessoa do gerente (fl. 60), a ANATEL atravessou
petição de fl. 389/394, requerendo a renovação da citação do Procurador-Geral da
entidade, uma vez que o ato recai sob pessoa sem poderes para recebê-la.
O Parquet Federal ofereceu réplica nas fls. 534/537, alegando, em síntese,
o seguinte: 1) os interesses tutelados com a presente ação são, sim, difusos, pois
dizem respeito a toda coletividade nacional; 2) a ação civil pública é a via adequada
para resolver a questão do ponto de vista macro; 3) a impossibilidade jurídica do
pedido se confunde com o mérito e não deve ser acatada como preliminar; 4) “o
sigilo, sob reserva de jurisdição, é o da comunicação telefônica e dos extratos de
ligações, mas não do próprio número do telefone, necessário para que se peça em
juízo a interceptação” (fl. 535). Explica ao final que “não se quer que o poder se exerça de
forma genérica e indiscriminada, só podendo se dar mediante a indicação da existência de inquérito
policial ou procedimento investigatório instaurado pelo Ministério Público” (fl. 537).
Despacho de fl. 543 determinando a conversão do feito em diligência
para que a citação fosse efetivada na pessoa do Procurador-Geral da ANATEL.
Nas fls. 553/558, a VIVO apresentou manifestação acompanhada de
cópia de decisões judiciais, informando que o Presidente do STF suspendeu, em
sede de ação cautelar, acórdão prolatado pelo TRF da 4ª Região que determinava às
“operadoras de telefonia fornecessem dados cadastrais de usuários de serviços de telefonia” (fl.
553).
Citada (fl. 564), a ANATEL apresentou, respectivamente, contestação
(fls. 586/597) e manifestação (fls. 598/599), esta última para justificar a
tempestividade de sua defesa.

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Em sua defesa, argumentou, preliminarmente: 1) a sua ilegitimidade ad


causam sob duplo fundamento: 1.1) nos termos do marco regulatório, a atuação da
Anatel se restringe a normatizar a prestação do serviço de telecomunicação em seus
regimes público e privado, não possuindo “legitimidade para criar direitos ou
obrigações relativos ao limites do direito fundamental à intimidade e vida privada”
(fl. 590); 1.2) o Ministério Público não é parte legítima para defender interesses das
operadoras; 2) incompetência da Justiça Federal em caso de ser acolhida a
ilegitimidade da Anatel.
No mérito, sustentou que a ré possui “o dever de obstar qualquer
conduta das prestadoras de serviços tendentes à divulgação dos dados pessoais dos
usuários” e que a Lei 10.703/03 ratificou o espírito da LGT (Lei 9.472/97) ao
condicionar o fornecimento de dados à solicitação da autoridade judicial.
O MPF formulou réplica de conteúdo idêntico à de fls. 534/537.
A VIVO formulou memoriais de fls. 608/613.
É o relatório. Passo a decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

O mérito da demanda compõe-se de matéria fática e de direito, contudo


não necessita da produção de prova oral em audiência, circunstância que autoriza o
julgamento antecipado da lide, a teor do art. 330, inc. I, do CPC.
Inicialmente, cumpre relembrar, para fins de eventuais embargos de
declaração, que o julgador não se encontra obrigado a rebater, um a um, os
argumentos alegados pelas partes se adotar fundamentação suficiente para decidir
integralmente a controvérsia, utilizando-se das provas, legislação, doutrina e
jurisprudência que entender pertinentes à espécie. A decisão judicial não constitui
um questionário de perguntas e respostas de todas as alegações das partes, nem se
equipara a um laudo pericial. Neste sentido, colacionam-se os seguintes
precedentes:
“O não acatamento das argumentações contidas no recurso não implica
cerceamento de defesa, posto que ao julgador cabe apreciar a questão de
acordo com o que ele entender atinente à lide. Não está obrigado o
magistrado a julgar a questão posta a seu exame de acordo com o
pleiteado pelas partes, mas sim com o seu livre convencimento (art. 131,
do CPC), utilizando-se dos fatos, provas, jurisprudência, aspectos
pertinentes ao tema e da legislação que entender aplicável ao caso
concreto.” 2

2
STJ, AgRg no Ag 512437/RJ, 1ª Turma, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, julgado em 16.10.2003, DJ 15.12.2003
p. 210

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“Processo civil. Sentença. Função prática. A função judicial é prática, só lhe


importando as teses discutidas no processo enquanto necessárias ao
julgamento da causa. Nessa linha, o juiz não precisa, ao julgar
procedente a ação, examinar-lhe todos os fundamentos. Se um deles e
suficiente para esse resultado, não esta obrigado ao exame dos demais.
Embargos de declaração rejeitados.” 3

“(....) A função teleológica da decisão judicial é a de compor,


precipuamente, litígios. Não é peça acadêmica ou doutrinária,
tampouco se destina a responder a argumentos, à guisa de quesitos,
como se laudo pericial fosse. Contenta-se o sistema com a solução da
controvérsia, observada a res in judicium deducta, o que se deu no caso ora em
exame.” 4

2.1. Preliminares
2.1.1 Competência da Justiça Federal
A Anatel alega a incompetência da Justiça Federal ante a sua
ilegitimidade para figurar na lide.
A competência cível da Justiça Federal possui assento constitucional,
distribuindo-se entre diversas hipóteses de incidência previstas nos incisos I, II, III,
VIII, X e XI do art. 109 da CF/88, cuja norma matriz é, sem dúvida, o art. 109, I
da Magna Carta. Por possuírem suportes fáticos distintos, as previsões contidas nos
referidos incisos são autônomas, não lhes sendo lícitas interpretá-las à luz do art.
109, I da CF/88.
Estatui o art. 109, I, da CF/88:
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal
forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes,
exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral
e à Justiça do Trabalho;

A incidência desta regra pressupõe a conjugação de dois requisitos: 1) a


presença na lide da União, autarquia – as fundações de direito público são
equiparadas às autarquias – e empresas públicas federais, na condição de autoras,
rés ou intervenientes, não abrangendo, portanto, as sociedades de economia mista
(Súmula n.º 42 do STJ), nem as concessionárias ou permissionárias de serviço

3
STJ, EDcl no REsp 15450/SP, Rel. Ministro ARI PARGENDLER, 2ª Turma, julgado em 01.04.1996, DJ
06.05.1996 p. 14399. No mesmo sentido: REsp 172329/SP, 1ª Seção, Rel. Ministro FRANCISCO PEÇANHA
MARTINS; REsp 611518/MA, 2ª Turma, Rel. Ministro FRANCIULLI NETTO, REsp 905959/RJ, 3ª Turma, Rel.
Ministra NANCY ANDRIGHI; REsp 807690/SP, 2ª Turma, Rel. Ministro CASTRO MEIRA.
4
STJ, EDcl no REsp 675.570/SC, 2ª Turma, Rel. Ministro FRANCIULLI NETTO, julgado em 15.09.2005, DJ
28.03.2006 p. 206

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público federal; 2) demonstração da existência de interesse jurídico, a ser examinada


pelo Juízo Federal nos termos das Súmulas n.ºs 150, 224 e 254 do STJ.
Insta ressaltar que a competência não se confunde com a legitimidade
ad causam, esta condição da ação. Em regra, a competência antecede logicamente
ao juízo quanto à legitimidade ad causam, contudo, havendo litisconsórcio e excluído
do pólo processual o ente federal que justificou a atração da causa para esta Justiça,
deve o Juiz Federal declinar ou restituir os autos a Justiça Estadual ao invés de
suscitar conflito de competência (Súmula n.º 224 do STJ), não podendo a decisão
de exclusão ser reexaminada pelo Juízo Estadual (Súmula n.º 254 do STJ):
“PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO MOVIDA CONTRA
CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. CORREÇÃO DOS SALDOS DO
FGTS. PLANOS ECONÔMICOS. DEMISSÃO INJUSTIFICADA. MULTA
DE 40% SOBRE O SALDO DO FGTS. DISTINÇÃO ENTRE
COMPETÊNCIA E LEGITIMIDADE. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA
FEDERAL. FALTA DE INTERESSE RECURSAL. ILEGITIMIDADE DA
CEF. FGTS. CORREÇÃO MONETÁRIA. DIFERENÇAS.
HONORÁRIOS. ART. 29-C DA LEI 8.036/90, COM REDAÇÃO DADA
PELA MEDIDA PROVISÓRIA 2.164-40/01. AÇÕES AJUIZADAS APÓS
27.07.2001. APLICABILIDADE.
1. Para efeito de competência, pouco importa que a parte seja legítima
ou não. Essa, a da legitimidade, é uma questão logicamente posterior à
da fixação da competência. A existência ou não da legitimação ativa deve ser
apreciada e decidida pelo juiz considerado competente para tanto, o que
significa que a questão competencial antecede à da legitimidade ativa. O que se
leva em consideração, para aferição acerca da competência do Juízo, é a
parte processual, que não é, necessariamente, parte legítima para a
causa. Parte processual é a que efetivamente figura na relação
processual, ou seja, é aquela que pede ou em face de quem se pede a
tutela jurisdicional numa determinada demanda. Já a parte legítima é
aquela que, segundo a lei, deve figurar como demandante ou
demandada no processo. A legitimidade ad causam, conseqüentemente, é
aferível mediante o contraste entre os figurantes da relação processual
efetivamente instaurada e os que, à luz dos preceitos normativos, ela deveriam
figurar. Havendo coincidência, a parte processual será também parte legítima;
não havendo, o processo terá parte, mas não terá parte legítima, Em suma:
proposta a demanda por ente federal ou contra ente federal, a causa será,
necessariamente, de competência da Justiça Federal, pouco importando que o
autor ou o réu não sejam parte legitimadas.Quem deve decidir sobre a
legitimação, nesse caso, é o juiz federal. (...)”. 5

No caso em exame, como a ação civil pública foi proposta pelo


Ministério Público Federal – órgão federal – em face da Agência Nacional de
Telecomunicações – ANATEL e operadoras de telefonia, em princípio,

5
STJ, REsp 838.278/DF, 1ª Turma, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, julgado em 12.09.2006, DJ
28.09.2006 p. 225

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encontra-se justificada a competência desta Justiça Federal. Contudo, a inclusão


desta última no pólo passivo não a transforma necessariamente em parte legítima
para a causa, o que será analisado em momento ulterior.
Ainda que se concluísse pela exclusão da ANATEL por qualquer
motivo, restaria firmada a competência da Justiça Federal para processar e julgar
ação civil, uma vez que o Ministério Público Federal é órgão da União dotado de
capacidade postulatória.

2.1.2 Impossibilidade jurídica do pedido. Atuação do Judiário


como legislador positivo.
Sem embargo da controvérsia quanto à sua natureza jurídica, a
impossibilidade jurídica do pedido é examinada por exclusão, vale dizer, somente
à vista de proibição expressa no sistema jurídico é lícito ao Juiz acolher a referida
preliminar. Com o pedido formulado pelo Parquet Federal pretende-se eliminar uma
situação de dúvida objetiva mediante a outorga de uma tutela inibitória quanto
ao alcance dos dispositivos constitucionais e da legislação infraconstitucional sobre
a matéria, não havendo óbice ao pleito. A ausência de uma norma específica
não se equipara com esta condição da ação, pois o direito não se reduz à lei,
portaria, regulamento e etc., constituindo um sistema jurídico aberto de normas
e princípios. Ademais, é sempre possível ao Juiz utilizar os meios de integração
(analogia, costumes e princípios) para o julgamento de uma causa. Em relação à
questão de o Judiciário determinar que as rés sejam compelidas a fornecer os
cadastros de seus usuários se confunde com o mérito, logo será apreciada
conjuntamente com este.

2.1.3 Legitimidade ad causam da Agência Nacional de


Telecomunicação – ANATEL e do Ministério Público
Federal
A Anatel aduz que não possui relação jurídica com a parte contrária, pois
não dispõe dos dados requeridos.
A legitimidade ad causam nada mais é do que o exame da pertinência
subjetiva da ação, devendo ser aferida in status assertionis. Conforme asseverado na
inicial, a Anatel orienta as concessionárias e delegatárias do serviço público de
telefonia a não prestarem as informações requisitadas pelo Parquet Federal e pela
Polícia Judiciária, exsurgindo daí a sua legitimidade. A corroborar esta afirmação,
tem-se que inúmeras das operadoras de telefonia fizeram referência ao parecer
normativo expendido pela Anatel. Ademais, a sua presença na lide conferirá maior
estabilidade à questão decidida, pois, em caso de procedência do pleito, ela ficará

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vinculada ao alcance objetivo da coisa julgada, ficando, inclusive, impedida de


impor sanções pelo fornecimento dos dados almejado pelo autor.
Faz-se mister ressaltar que a atitude processual da ré em alegar esta
preliminar beira próximo à má-fé porque, ao mesmo tempo que afirma “não
possui[r] legitimidade para criar direitos ou obrigações relativos aos limites do direito fundamental
a intimidade e vida privada” (fl. 590), exerce seu poder normativo no sentido de
orientar as operadoras de telefonia quanto à negativa de fornecimento dos dados
cadastrais, inclusive, com a expedição de parecer normativo 6 sobre a matéria.
Por sua vez, a Anatel sustenta a ilegitimidade do Parquet para formular
pleito de abstenção da ré para a imposição de penalidades, uma vez que estaria
atuando em nome das operadoras de telefonia como substituto processual destas.
Os pedidos de fornecimentos dos dados cadastrais pelas operadoras de telefonia e
o impedimento de imposição de sanções estão logicamente concatenados e
interligados entre si, visando permitir que o mérito seja decidido com a maior
segurança jurídica possível. De nada adiantaria às operadoras de telefonia serem
obrigadas a fornecerem os dados se, do outro lado, a Anatel pudesse opor
obstáculos ao cumprimento do quanto determinado. Ora, o Parquet Federal não fez
o pedido no interesse das operadoras de telefonia, ainda que vá reflexamente
beneficiá-las, mas para que estas últimas não alegassem ou retardassem o eventual
cumprimento da requisição sob a justificativa de que a Anatel estaria ameaçando
impor sanções.
É sabido que está inserida no campo de atribuições do Ministério
Público a defesa da “segurança pública”, consoante o art. 5º, II, “e”, da LC nº
75/1993 c/c art. 80 da Lei n.º 8.625/93, estando a questão subjacente
intrinsecamente ligada às atividades do Ministério Público e da Polícia Federal no
campo da persecução penal, contudo tal atribuição deve ser interpretada consoante
a sua finalidade constitucional. Decorre da essência do federalismo que para cada
ramo da Justiça coexista um Ministério Público específico, logo é evidente que
o Parquet Federal não poderia pleitear a extensão da medida para os “Delegados
de Polícia Civil” e “Membros do Ministério Público dos Estados”. Tal pedido
deve ser feito pelo Parquet Estadual, cuja competência para analisar a causa será da
Justiça Estadual. Esta questão foi recentemente examinada pelo col. STF em
acórdão assim ementado:
(...)
V - Demarcação entre as atribuições de segmentos do Ministério Público - o
Federal e o do Distrito Federal. Tutela das fundações. Inconstitucionalidade da
regra questionada (§ 1º do art. 66 do Código Civil) -, quando encarrega o
Ministério Público Federal de velar pelas fundações, "se funcionarem no
Distrito Federal".

6
Fl. 492

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1. Não obstante reserve à União organizá-lo e mantê-lo - é do sistema da


Constituição mesma que se infere a identidade substancial da esfera de
atribuições do Ministério Público do Distrito Federal àquelas confiadas ao MP
dos Estados, que, à semelhança do que ocorre com o Poder Judiciário, se apura
por exclusão das correspondentes ao Ministério Público Federal, ao do
Trabalho e ao Militar.
2. Nesse sistema constitucional de repartição de atribuições de cada
corpo do Ministério Público – que corresponde substancialmente à
distribuição de competência entre Justiças da União e a dos Estados e
do Distrito Federal – a área reservada ao Ministério Público Federal é
coextensiva, mutatis mutandis àquela da jurisdição da Justiça Federal
comum e dos órgãos judiciários de superposição – o Supremo Tribunal
e o Superior Tribunal de Justiça – como, aliás, já o era sob os regimes
anteriores.
3. O critério eleito para definir a atribuição discutida - funcionar a fundação no
Distrito Federal - peca, a um só tempo, por escassez e por excesso.
4. Por escassez, de um lado, na medida em que há fundações de direito
público, instituídas pela União - e, portanto, integrantes da Administração
Pública Federal e sujeitas, porque autarquias fundacionais, à jurisdição da
Justiça Federal ordinária, mas que não tem sede no Distrito Federal.
5. Por excesso, na medida em que, por outro lado, a circunstância de serem
sediadas ou funcionarem no Distrito Federal evidentemente não é bastante
nem para incorporá-las à Administração Pública da União - sejam elas
fundações de direito privado ou fundações públicas, como as instituídas pelo
Distrito Federal -, nem para submetê-las à Justiça Federal.
6. Declarada a inconstitucionalidade do § 1º do art. 66 do Código Civil, sem
prejuízo, da atribuição ao Ministério Público Federal da veladura pelas
fundações federais de direito público, funcionem, ou não, no Distrito Federal
ou nos eventuais Territórios. 7

Assim, acolho parcialmente a preliminar de ilegitimidade ad causam tão-


somente em relação à parcela do pedido referentes aos “Delegados de Polícia
Civil” e “Membros do Ministério Público dos Estados”, dele não o
conhecendo.

2.1.4. Interesse de agir. Inadequação da via eleita.


Sob esta preliminar, serão examinadas as alegações de: 1) incompetência
absoluta do Juiz Cível para decidir em abstrato uma questão que somente poderia
ser decidida pelo Juiz Criminal (interesse-adequação); 2) ausência de interesse-
utilidade sob o argumento de que o fornecimento dos dados cadastrais não traria
qualquer utilidade para a investigação criminal, pois o fim visado (a interceptação
telefônica) sempre dependeria de prévia autorização judicial, caso a caso; 3)
inexistência de interesse-utilidade, calcado na assertiva de cumprimento das
requisições ministeriais e policiais (formulada somente pela TIM); 4) inadequação
7 STF, ADI 2794/DF, Pleno, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, julgado em 14/12/2006

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da via eleita, pois a ação civil pública foi ajuizada para tutelar prerrogativa
institucional de órgão público.
O interesse de agir não se confunde com o interesse primário ou
substancial de usufruir o bem da vida, sendo representado pela necessidade e
utilidade do provimento jurisdicional e a adequação do meio utilizado para a
obtenção da tutela. Divide-se, por conseguinte, em interesse-adequação, interesse-
necessidade e interesse-utilidade.
Inicialmente, afasto a idéia de incompetência absoluta do juiz cível. A
incompetência absoluta leva ao declínio do Juízo incompetente com a anulação dos
atos decisórios e não à extinção do processo. Não se cuida de um julgamento de
uma causa penal, logo falece competência ao Juiz criminal para decidir a questão.
Ainda que possa vir a produzir efeitos na seara do processo penal, discute-se,
dentre outras questões, o alcance de uma prerrogativa dos agentes envolvidos com
a persecução penal.
Grassa na jurisprudência uma divergência quanto ao tema de fundo. As
operadoras resistem em prestar as informações requisitadas sem autorização
judicial, o que demanda o ajuizamento da ação civil pública.
A possibilidade de o juiz criminal autorizar o fornecimento de dados
cadastrais no curso de uma investigação não afeta a viabilidade da ação civil
pública. Ora, a jurisprudência admite a possibilidade de mandado de segurança para
tutelar questão penal – principalmente, nos casos de inexistência de recurso cabível
– e de habeas corpus para questionar matéria cível (prisão civil). Em verdade, ainda
que sejam exercidos no curso de um procedimento criminal, a matéria volta para a
análise de uma prerrogativa – poder de requisição em face de operadoras de
telefonias – que também pode se relacionar com direito administrativo. Destarte, a
ação civil pública constitui um remédio cabível, uma vez que se discute o alcance de
uma prerrogativa, bem assim o Parquet requer ao Estado-Juiz a prestação de uma
tutela inibitória para eliminar uma situação de dúvida objetiva.
Se por um lado é certo que o fornecimento dos dados não autoriza a
interceptação telefônica, é evidente a sua utilidade, pois se trata de instrumento que
visa tornar mais ágil a persecução penal, eliminando supostos entraves burocráticos.
As diversas situações enumeradas pelo autor em sua petição apontam a utilidade da
medida. A par disso, observa-se que as requisições poderão ser utilizadas para
localizar uma pessoa a fim de que o inquérito ou procedimento investigatório não
fique paralisado em razão de um ato que dependeria da sua participação.
Quando à preliminar formulada pela TIM de que já atende as requisições
ministeriais e policiais, entendo que a contestação do pedido, ainda que não

- 11 -
Processo nº 2007.85.00.001771-0

envolva questão de mérito, implica resistência à pretensão, tornando a prestação


jurisdicional necessária.
Quanto à inadequação da via eleita, não se pode confundir o instrumento
– ação civil pública – com o bem da vida buscado, uma vez que pode envolver
direitos de 1ª, 2ª e 3ª dimensão, desde que tenham expressão coletiva. Ora, o
interesse difuso defendido nesta demanda é a segurança pública – o que,
naturalmente, inclui a eficiência da atividade de persecução penal. A segurança
pública é um típico direito de matriz coletiva e não se confunde com as instituições
responsáveis por assegurá-la. O art. 144, caput, da CF/88 quando diz que “a
segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos (...)” nada mais faz do
que reafirmar a sua natureza difusa, cuja titularidade repousa na coletividade.
Os órgãos de persecução penal – Polícia Judiciária e Ministério Público –
devem atuar no interesse da coletividade e não no interesse da instituição, vale
dizer, exercem função pública, consoante a lição de Celso Antônio Bandeira de
Mello:
“É que a Administração exerce função: a função administrativa. Existe função
quando alguém está investido no dever de satisfazer dadas finalidades em prol
do interesse de outrem, necessitando, para tanto, manejar os poderes
requeridos para supri-las. Logo, tais poderes são instrumentais ao alcance das
sobreditas finalidades. Sem eles, o sujeito investido na função não teria como
desincumbir-se do dever posto a seu cargo. Donde, quem os titulariza maneja,
na verdade, “deveres-poderes”, no interesse alheio.
Quem exerce ‘função administrativa’ está adstrito a satisfazer interesses
públicos, ou seja, interesses de outrem: a coletividade. Por isso, o uso das
prerrogativas da Administração é legítimo, se, quando e na medida
indispensável ao atendimento dos interesses públicos; vale dizer, do poder,
porquanto nos Estados Democráticos o poder emana do povo em seu
proveito é exercido.” 8

2.1.5. Inépcia da inicial: pedido genérico e indeterminado.


A Vivo alegou que o pedido é genérico e indeterminado. Todavia, o
pedido é claro quando cotejado com a sua causa de pedir. Em síntese, narra que as
operadoras de telefonia vêm se recusando a fornecer os dados cadastrais quando
requisitados pelo Ministério Público Federal ou pela Polícia Judiciária, tais como
número do telefone, endereço, nome completo e etc., e que esta negativa vem
prejudicando as atividades do Ministério Público e da Polícia. Em razão disso,
pediu-se o seguinte:
“II) .... seja determinado às requeridas, em sentença, que forneçam, quando
lhes for requisitado, as informações constantes dos cadastros de seus usuários

8
Curso de Direito Administrativo ref. ampl. e atual. até a Emenda Constitucional 39, 19.12.2002, São Paulo:
Malheiros, 2003. pág. 62.

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Processo nº 2007.85.00.001771-0

às seguintes autoridades: Delegados de Polícia Civil e Federal e membros do


Ministério Público dos Estados e Federal;
III) seja especificado que tais informações incluem os próprios números das
linhas telefônicas titularizadas pelos clientes e, bem assim, que as operadoras
devem fornecer o nome e outros dados dos clientes quando questionadas a
respeito de determinado número de telefone;
IV) seja determinado à ANATEL que não oponha quaisquer obstáculos às
operadoras, ou penalizações administrativas de qualquer espécie, no que
concerne ao atendimento de tais requisições” (fl. 08/09)

A partir do seu exame, dessume-se que o autor desdobrou a sua


pretensão em três partes com o intuito de alcançar a clareza. É evidente que o item
III não é genérico, pois é delimitado pelos dados informados na causa de pedir –
número do telefone, endereço, nome completo –, bem assim complementa o
alcance do Item I, dele fazendo parte integrante.

2.1.6. Litispendência
Embora não alegado por nenhuma das partes, vale frisar que inexiste
litispendência entre as ações propostas na Seção Judiciária da Bahia (autos nº
2007.33.00.008418-4 9) e Rio Grande do Sul (autos nº 2006.71.00.033295-7 10) e a
presente demanda.
Consoante informação prestada pela 16ª Vara da seção baiana e consulta
ao portal do TRF da 4ª Região, em anexo, as ações que tramitam naquelas seções
judiciárias limitam os seus efeitos ao âmbito dos respectivos estados-membros,
enquanto esta não contém qualquer limitação.
Pela mesma razão, mostra-se desnecessária a reunião dos feitos. Em
adição, a prolação de sentença em um dos feitos afasta a possibilidade de conexão,
a teor da Súmula 235, do STJ.
Rejeitadas as preliminares, examino o mérito.

2.2. Mérito
2.2.1 Considerações Introdutórias
O mérito da causa encerra uma colisão em sentido amplo entre um
direito fundamental e um bem coletivo, ambos inseridos na ordem constitucional
como princípios. O tema, naturalmente, desperta paixões, medos, entre outros. Uns
defenderão o pleito, outros o repudiarão, sendo impossível alcançar um consenso.
9
Fl. 211.
10
Fl. 553.

- 13 -
Processo nº 2007.85.00.001771-0

Tal circunstância decorre da quadra atual em que o Judiciário é chamado a decidir


questões de envergadura política, colaborando e influindo com o destino da
sociedade e do Estado. Neste sentido, quanto ao efeito pretendido por um
princípio, vem a calhar a observação de Ana Paula de Barcellos:
“Por conta da natureza do efeito pretendido, não se trata apenas de
empreender um raciocínio lógico-jurídico para apurar as condutas exigíveis;
cuida-se, diversamente, de escolher entre diferentes condutas possíveis a
partir de distintas posições políticas, ideológicas e valorativas. Se há um
caminho que liga o efeito às condutas no caso das regras, há uma variedade
de caminhos que podem ligar o efeito do princípio a diferentes
condutas, sendo que o critério que vai definir qual dos caminhos a
escolher não é exclusivamente jurídico ou lógico.
Alguns exemplos ajudam a esclarecer o que se acaba de expor. Tome-se, em
primeiro lugar, o princípio da dignidade da pessoa humana: que efeitos ele
pretende produzir? O que ele significa? Ora, que as pessoas tenham uma vida
digna. Sem maiores dificuldades, é possível concluir que matar
indiscriminadamente as pessoas viola a dignidade e, portanto, impedir tal
espécie de ação e assegurar a vida é um dos efeitos pretendidos por esse
princípio. Mas que se dirá da pena de morte, da eutanásia e do aborto, para
ficar apenas no aspecto ‘vida’ da dignidade? Muitas vezes os defensores e
detratores de algumas dessas políticas fundamentais, em última análise,
em concepções diferentes do que seja dignidade humana, influenciada
por posições religiosas, filosóficas, políticas, etc. Muito provavelmente,
haverá opiniões diversas sobre os efeitos da dignidade neste ponto.” 11

A resolução da controvérsia envolve a resposta do Juízo a basicamente


quatro questões:
1) a legitimidade da jurisdição constitucional;
2) o fundamento constitucional da proteção do sigilo e o seu alcance;
3) a eventual necessidade de juízo ponderativo;
4) o alcance da decisão judicial.

2.2.2 Legitimidade da Jurisdição Constitucional


O neoconstitucionalismo – movimento que no Brasil ganhou força com
a Constituição de 1988 – reforçou a força normativa da Constituição, a
ascensão dos princípios e a nova hermenêutica constitucional. Essa soma de
fatores refletiu na mudança do papel do juiz na sociedade contemporânea. Na
feliz síntese de Luís Roberto Barroso:

11
Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. págs. 174/175

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Processo nº 2007.85.00.001771-0

“A interpretação jurídica tradicional desenvolveu-se sobre duas grandes


premissas: (i) quanto ao papel da norma, cabe a ela oferecer, no seu relato
abstrato, a solução para os problemas jurídicos; (ii) quanto ao papel do juiz,
cabe a ele identificar, no ordenamento jurídico, a norma aplicável ao problema
a ser resolvido, revelando a solução nela contida. Vale dizer: a resposta para os
problemas está integralmente no sistema jurídico e o intérprete desempenha
uma função técnica de conhecimento, de formulação de juízos de fato. No
modelo convencional, as normas são percebidas como regras, enunciados
descritivos de condutas a serem seguidas, aplicáveis mediante subsunção [12].
Com o avanço do direito constitucional, as premissas ideológicas sobre as
quais se erigiu o sistema de interpretação tradicional deixaram de ser
integralmente satisfatórias. Assim: (i) quanto ao papel da norma, verificou-se
que a solução dos problemas jurídicos nem sempre se encontra no relato
abstrato do texto normativo. Muitas vezes só é possível produzir a resposta
constitucionalmente adequada à luz do problema, dos fatos relevantes,
analisados topicamente; (ii) quanto ao papel do juiz, já não lhe caberá
apenas uma função de conhecimento técnico, voltado para revelar a
solução contida no enunciado normativo. O intérprete torna-se co-
participante do processo de criação do Direito, completando o trabalho
do legislador, ao fazer valorações de sentido para as cláusulas abertas e
ao realizar escolhas entre soluções possíveis.” 13

Ora, a análise da questão constitucional em sede de ação civil pública


já foi alvo de diversos debates na doutrina, tendo sido pacificado que seria possível
desde que o seu exame constituísse fundamento ou causa de pedir e não se
confundisse com o próprio pedido.
A partir da análise do pedido e da causa de pedir, impende verificar se a
questão da inconstitucionalidade está sendo examinada como mera prejudicial de
mérito para decidir um litígio concreto ou se o acolhimento do pedido, implícita ou
explicitamente, implicaria no total afastamento de um dispositivo normativo,
exaurindo a sua eficácia. Na primeira hipótese, inexistiria desvirtuamento algum, ao
passo que, na segunda, a ação civil pública seria inadmissível e o órgão do
Ministério Público que atua na 1ª instância seria parte ilegítima, pois haveria
evidente burla à competência do Supremo Tribunal Federal.
No caso em exame, não se cuida do controle abstrato da
constitucionalidade da ordem jurídica. Não se trata de ADI porque não
envolve o exame abstrato de uma lei ou ato normativo. Nem ADPF porquanto,
embora envolva um preceito fundamental – interpretação de um direito
fundamental – não se volta para a tutela da ordem jurídica. Para resolver a

12
Identificada a norma aplicável, procede-se ao enquadramento do fato no relato da regra jurídica,
pronunciando-se a conclusão. Um raciocínio, portanto, de natureza silogística, no qual a norma é a premissa
maior, o fato relevante é a premissa menor e a conclusão é a sentença.
13
Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus
Navigandi, Teresina, ano 9, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7547>. Acesso em: 05 set. 2008.

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Processo nº 2007.85.00.001771-0

controvérsia, não é necessário realizar qualquer controle de constitucionalidade,


mas tão-somente interpretar o alcance da legislação infraconstitucional em face de
normas constitucionais.
Em verdade, o Judiciário é chamado a decidir uma demanda concreta
envolvendo pessoas determinadas, de um lado, o Ministério Público, e de outro,
as operadoras de telefonia e a agência reguladora quanto à existência ou não de
uma determinada relação jurídica. Isto fica mais evidente quando se verifica que
o Parquet fez juntar aos autos: 1) Ofício do Delegado da Polícia Federal solicitando
o endereço e os dados cadastrais de proprietário de uma linha telefônica (fl. 16); 2)
Resposta da Telemar se negando a fornecer os dados por se “considera[r] impedida por
força de lei a prestar informação e fornecer o documento solicitado” (fl. 15); 3) ata de reunião
entre o Ministério Público Federal com as operadoras de telefonia, as quais
expuseram os seus motivos para não atender às requisições (fl. 39).
O que, em última análise, pretende-se é que o Judiciário elimine uma
situação de dúvida objetiva quanto à existência de um dever mediante a prestação
de uma tutela inibitória. Sobre o fundamento constitucional e possibilidade da
tutela inibitória, ensina o conspícuo Marinoni:
“A tutela inibitória é prestada por meio de ação de conhecimento, e
assim não se liga instrumentalmente a nenhuma ação que possa ser dita
‘principal’. Trata-se de ‘ação de conhecimento’ de natureza preventiva,
destinada a impedir a prática, a repetição ou a continuação do ilícito (10).
(..)
A inexistência de uma ação de conhecimento dotada de meios
executivos idôneos à prevenção, além de relacionada à idéia de que os
direitos não necessitariam desse tipo de tutela, encontrava apoio no temor de
se dar poder ao juiz, especialmente ‘poderes executivos’ para atuar antes
da violação do direito. Supunha-se que a atuação do juiz, antes da
violação da norma, poderia comprimir os direitos de liberdade. (...)
(...)
A ação inibitória se funda no próprio direito material. Se várias situações
de direito substancial, diante de sua natureza, são absolutamente
invioláveis, é evidente a necessidade de se admitir uma ação de
conhecimento preventiva. Do contrário, as normas que proclamam direitos,
ou objetivam proteger bens fundamentais, não teriam qualquer significação
prática, pois poderiam ser violadas a qualquer momento, restando somente o
ressarcimento do dano.
(...)
Lembre-se que a ação declaratória não é capaz de conceder tutela de
inibição do ilícito, uma vez que somente pode declarar a respeito de
uma relação jurídica ou, excepcionalmente, de um fato (art. 4º, CPC). A
sentença declaratória, como é sabido, é a sentença típica do estado liberal
clássico, uma vez que, além de incapaz de permitir ao juiz interferir sobre a
vontade do demandado, tem seu fim restrito a regular uma relação jurídica já
determinada pela autonomia de vontade.

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(...)
A ação inibitória se volta contra a possibilidade do ilícito, ainda que se
trate de repetição ou continuação. Assim, é voltada para o futuro, e não
para o passado. De modo que nada tem a ver com o ressarcimento do dano
e, por conseqüência, com os elementos para a imputação ressarcitória – os
chamados elementos subjetivos, culpa ou dolo (11).
Além disso, essa ação não requer nem mesmo a probabilidade do dano,
contentando-se com a simples probabilidade de ilícito (ato contrário ao
direito). Isso por uma razão simples: imaginar que a ação inibitória se destina a
inibir o dano implica na suposição de que nada existe antes dele que possa ser
qualificado de ilícito civil. Acontece que o dano é uma conseqüência eventual
do ato contrário ao direito (12), os quais, assim, podem e devem ser destacados
para que os direitos sejam mais adequadamente protegidos.
Assim, por exemplo, se há um direito que exclui um fazer, ou uma
norma definindo que algo não pode ser feito, a mera probabilidade de
ato contrário ao direito – e não de dano – é suficiente para a tutela
jurisdicional inibitória. Ou seja, o titular de uma marca comercial tem o
direito de inibir alguém de usar a sua marca, pouco importando se tal uso vai
produzir dano. Do mesmo modo, se uma norma impede a venda de
determinado produto, a associação dos consumidores (por exemplo) pode
pedir a inibição da venda, sem se preocupar com dano.
(...)
A ação inibitória pode atuar de três maneiras distintas. Em primeiro lugar para
impedir a prática de ilícito, ainda que nenhum ilícito anterior tenha sido
produzido pelo réu. (....)
Como se vê, o problema das três formas de ação inibitória é ligado diretamente
à prova da ameaça. Enquanto que duas delas – a que visa inibir a repetição e a
que objetiva inibir a continuação –, ao se voltarem para o futuro, e assim para a
probabilidade da repetição ou da continuação, podem considerar o passado, ou
seja, o ilícito já ocorrido, a outra não pode enxergar ilícito nenhum no passado,
mas apenas atentar para eventuais fatos que constituam indícios de que o ilícito
será praticado.
No caso de ilícito já praticado, torna-se muito mais fácil demonstrar que
outro ilícito poderá ser praticado, ou mesmo que a ação ilícita poderá
prosseguir. Nesses casos, levando-se em conta a natureza da atividade
ou do ato ilícito, não é difícil concluir a respeito da probabilidade da sua
continuação ou da sua repetição. (14) 14

Também é igualmente incabível a alegação de que o Judiciário estaria


atuando como legislador positivo. O ordenamento jurídico é um sistema aberto de
regras e princípios. A inexistência de norma não é um impedimento legal, pois o
juiz não se exime de sentenciar a pretexto de lacuna ou obscuridade da lei. É óbvio
que o Judiciário analisará se a pretensão da parte autora possui embasamento no
ordenamento, competindo-lhe fundamentar as suas conclusões. A questão posta
em exame constitui um hard case em que não se resolve pelo mecanismo subsuntivo,

14
Tutela inibitória e tutela de remoção do ilícito. Prof. Luiz Guilherme Marinoni. Disponível em:
<http://www.professormarinoni.com.br/principal/pub/anexos/20080320041509TUTELA_INIBITORIA_E_TUTELA_
DE_REMOCAO_DO_ILICITO.pdf>. Acesso em: 05 set. 2008.

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Processo nº 2007.85.00.001771-0

cabendo ao Juiz extrair a norma jurídica concreta a partir do contraste do


ordenamento jurídico como um todo. Para isso, examinar-se-á a legislação
infraconstitucional, o direito constitucional e, ao final, extrair-se-á a solução
adequada para a questão.

2.2.3 Fundamento constitucional e infraconstitucional


Os dados dos usuários constantes nos cadastros mantidos por
operadoras de telefonia encontram-se protegidos pelo direito à privacidade,
previsto no art. 5º, X, da CF/88, e não pela inviolabilidade do sigilo de dados,
como pretendem crer as rés. Por conseqüência, afasta-se de imediato a alegação de
que tais dados estariam cobertos pelo princípio da reserva de jurisdição em que
o Judiciário teria a primeira e a última palavra para determinar a quebra de tais
dados.
Com efeito, o STF já decidiu mais de uma vez que o art. 5º, XII, da
CF/88 protege o processo comunicativo e não os dados comunicados em si.
Confira excerto do brilhante voto proferido pelo Ministro Celso de Mello no MS
23.452/RJ, verbis:
“É certo que a garantia constitucional instituída no art. 5º, XII, da Carta
Política objetiva preservar a inviolabilidade do sigilo ‘das comunicações
telefônicas’, não havendo, no preceito normativo em questão (inciso XII),
qualquer referência ao tema da ‘disclousure’ dos registros telefônicos.
Cabe traçar aqui, por necessário, uma distinção entre a interceptação
(‘escuta’) das comunicações telefônicas, inteiramente submetidas ao princípio
constitucional da reserva de jurisdição (CF, art. 5º, XII), de um lado, e a
quebra do sigilo dos dados (registros) telefônicos, de outro, cuja tutela deriva
da cláusula de proteção à intimidade inscrita no artigo 5º, X, da Carta Política.
(...)
Diversa é, porém, a situação concernente ao acesso da CPI aos registros
telefônicos, pois, consoante enfatiza o magistério da doutrina (...), o inciso XII
do art. 5º da Carta Política ‘impede o acesso à própria ação comunicativa, mas
não aos dados comunicados’, mesmo porque estes – os dados comunicados
– protegidos pela cláusula tutelar da intimidade, inscrita no inciso X do art. 5º
da Constituição, ‘não constituem um limite absoluto’ à ação do Poder Público.
(...)
“Desde logo, é preciso salientar. Uma coisa é a ‘comunicação telefônica’
em si, outra, bem diferente, são os registros pertinentes às comunicações
telefônicas, registros esses que são documentados e armazenados pela
companhia telefônica, tais como: data da chamada telefônica, horário,
número do telefone chamado, duração do uso, valor da chamada etc. Vêm
estampados nas denominadas ‘contas telefônicas’, que também integram o
largo espectro da ‘privacidade’ da pessoa. A interceptação telefônica de uma
comunicação telefônica versa sobre algo que está ocorrendo, atual; já a

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Processo nº 2007.85.00.001771-0

quebra do sigilo de dados telefônicos relaciona-se com chamadas telefônicas


pretéritas, já realizadas.
(...)
O ponto de partida para o verdadeiro entendimento do assunto reside em
reconhecer a ‘relatividade’ dos direitos fundamentais (muitos chamados de
‘liberdades públicas’ no antigo direito francês). O princípio do sigilo
absoluto não se coaduna com a realidade e as necessidades sociais.
Os dados pessoais, em conclusão, seja no momento de uma comunicação
(telefônica ou por outra forma), sejam os armazenados (estanques), não
gozam de sigilo absoluto.
E não é o caso (...) de se aplicar a Lei 9.296/96 aos registros (‘dados’)
telefônicos, pois ela só disciplina a interceptação (ou escuta) telefônica.” 15

Esta distinção quanto ao âmbito de proteção do inciso XII do art. 5º


da CF/88, foi objeto de reflexão do Ministro Nelson Jobim, verbis:
O SR. MINISTRO NELSON JOBIM: – Sr. Presidente, a minha dificuldade
é que, normalmente, alguns fundamentam o sigilo bancário no inciso
XII do art. 5° da Constituição; não avanço por essa tese.
Agora, chama-me a atenção a leitura feita por alguns de certas decisões que
têm sido tomadas. Diz o inciso:
“XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações
telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso,
por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins
de investigação criminal ou instrução processual penal;”
Passa-se, aqui, que o inciso XII não está tornando inviolável o dado da
correspondência, da comunicação, do telegrama. Ele está proibindo a
interceptação da comunicação dos dados, não dos resultados. Essa é a
razão pela qual a única interceptação que se permite é a telefônica, pois
é a única a não deixar vestígios, ao passo que nas comunicações por
correspondência, telegráfica e de dados é proibida a interceptação
porque os dados remanescem; eles não são rigorosamente sigilosos,
dependem da interpretação infraconstitucional para poderem ser abertos. O
que é vedado de forma absoluta é a interceptação da comunicação da
correspondência, do telegrama. Por que a Constituição permitiu a
interceptação da comunicação telefônica? Para manter os dados, já que
é a única em que, esgotando-se a comunicação, desaparecem os dados.
Nas demais, não se permite porque os dados remanescem, ficam no
computador, nas correspondências etc.
Não conheço do recurso.” 16

Por fim, a matéria foi recentemente debatida pelo Plenário do STF no


julgamento do RE 418.416/SC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, ao afirmar que a
garantia prevista no art. 5º, XII da CF/88 refere-se à comunicação de dados
e não aos dados em si mesmos, os quais não são invioláveis, podendo ser
apreendidos mediante decisão judicial.

15
STF, MS 23452 / RJ, Pleno, Rel. Min. CELSO DE MELLO, julgado em 16/09/1999. Grifos constam no original.
16
STF, RE 219780/PE, 2ª Turma, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, julgado em 13/04/1999

- 19 -
Processo nº 2007.85.00.001771-0

Informativo n.º 426, de 8 a 12 de maio de 2006:


Inviolabilidade de Dados e Alcance – 6
O Tribunal, por maioria, negou provimento ao recurso extraordinário.
Inicialmente, não foi acolhida a alegação de ofensa aos artigos 5º, LIV e LV, e
93, IX, da CF, por se considerar estarem devidamente motivados a sentença e
o acórdão recorrido. Em relação a este, salientou-se a ausência de
prequestionamento da matéria. Em seguida, reputaram-se prejudicadas
quaisquer alegações referentes ao aludido decreto, tendo em conta que a
sentença e o acórdão não se referiram a nenhuma prova resultante da quebra
do sigilo bancário, bem como porque ocorrera a devolução da documentação
respectiva, em mandado de segurança. No mesmo sentido, aduziu-se inexistir
prejuízo concreto ao recorrente relativamente à extensão dos efeitos da decisão
determinante de busca e apreensão, uma vez que as instâncias anteriores não
valoraram dado daí resultante. Afastou-se, também, a alegada violação ao
art. 5º, XII, da CF, afirmando-se que a garantia nele contida refere-se à
comunicação de dados e não aos dados em si mesmos. Asseverou-se
que, no caso, não houvera quebra do sigilo das comunicações de dados,
mas sim apreensão de equipamentos que continham os dados, mediante
prévia e fundamentada decisão judicial, a qual teria sido específica,
porquanto apenas permitira fossem selecionados objetos que tivessem
pertinência com a prática do crime pelo qual o recorrente fora efetivamente
condenado. Vencido o Min. Marco Aurélio que, por entender não ter havido o
exame de certas matérias de defesa, dava provimento ao recurso para declarar
insubsistente a condenação, a fim de que o juízo julgasse a ação penal
considerando-as explicitamente. Rejeitou-se, ainda, a proposta do Min. Ricardo
Lewandowski, acolhida pelos Ministros Marco Aurélio e Celso de Mello, de
restringir a utilização dos dados obtidos à investigação criminal em curso. Por
unanimidade, julgou-se prejudicado o Habeas Corpus 83168/SC, declarando-
se, de ofício, a prescrição da pretensão punitiva quanto ao delito previsto no
art. 203 do CP.
RE 418416/SC, rel. Min. Sepúlveda Pertence, 10.5.2006. (RE-418416)

Os dados cadastrais se inserem no campo do direito à privacidade,


protegendo o sujeito da bisbilhotice alheia de particulares e do Estado. Quanto ao
fundamento deste direito, leciona o Min. Gilmar Ferreira Mendes e outros:
“(...) O direito à privacidade teria por objeto os comportamentos e
acontecimentos atinentes aos relacionamentos pessoais em geral, às relações
comerciais e profissionais que o indivíduo não deseja que se espalhem ao
conhecimento público. O objeto do direito à intimidade seriam as
conversações e os episódios ainda mais íntimos, envolvendo relações familiares
e amizades mais próximas.
O direito à privacidade é proclamado como resultado da sentida exigência de o
indivíduo ‘encontrar na solidão aquela paz e aquele equilíbrio, continuamente
comprometido pelo ritmo da vida moderna’.

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Processo nº 2007.85.00.001771-0

A reclusão periódica à vida privada é uma necessidade de todo homem, para a


sua própria saúde mental. Além disso, sem privacidade, não há condições
propícias para o desenvolvimento livre da personalidade. Estar submetido ao
constante crivo da observação alheia de terceiros dificulta o enfrentamento de
novos desafios. A exposição diuturna dos nossos erros, dificuldades e fracassos
à crítica e à curiosidade permanente de terceiros, e ao ridículo público mesmo
inibiria toda tentativa de auto-superação. Sem a tranqüilidade emocional que se
pode auferir da privacidade, não há muito menos como o indivíduo se auto-
avaliar, medir perspectivas e traçar metas.
(...)
Tércio Sampaio entende que esse direito é ‘um direito subjetivo fundamental,
cujo titular é toda a pessoa, física ou jurídica, brasileira ou estrangeira, residente
ou em trânsito no país; cujo conteúdo é a faculdade de constranger os outros
ao respeito e de resistir à violação do que lhe é próprio, isto é, das situações
vitais que, por só a ele lhe dizerem respeito, deseja manter para si, ao abrigo de
sua única e discricionária decisão; e cujo objeto é a integridade moral do
titular” 17

Em suma, a privacidade assegura o interesse legítimo de manter o


anonimato sobre si, cedendo somente na existência de interesse público que
legitime a sua quebra.
A privacidade é garantida pelo sigilo dos dados porque estes podem
desvelar diversos aspectos do sujeito – opções, sentimentos, desejos e etc. – que
ponham em risco o livre desenvolvimento da personalidade.
A proteção dos dados não é uniforme na ordem constitucional diante da
sua multiplicidade. Em relação à natureza, pode-se fazer o seguinte quadro
sinóptico:
Registro Público 18 19 Arquivos cadastrais em geral Sigilo bancário, telefônico (das
mantidos por entidades ligações telefônicas) e fiscal
privadas (telefônico e etc.)
Qualquer pessoa pode Há uma discussão sobre a Em regra, pode ser obtido
consultar. Não cabe invocar necessidade ou não de decisão mediante decisão judicial.
proteção constitucional da judicial. Situa-se em uma zona As autoridades tributárias
privacidade em relação a cinzenta. podem ter acesso a esses
registros públicos. dados

Contudo, tal direito jamais foi considerado absoluto. É da necessidade da


vida humana o relacionamento entre os indivíduos, o que provoca exposição à
coletividade e deixa que os dados sobre si mesmos escapem de sua esfera exclusiva.
17
Curso de direito constitucional. Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho, Paulo Gustavo Gonet
Branco. São Paulo: Saraiva, 2007. págs. 367/368
18
Lei 6.015/73, Art. 17. Qualquer pessoa pode requerer certidão do registro sem informar ao oficial ou ao
funcionário o motivo ou interesse do pedido.
19
Lei 8.934/94, Art. 29. Qualquer pessoa, sem necessidade de provar interesse, poderá consultar os
assentamentos existentes nas juntas comerciais e obter certidões, mediante pagamento do preço devido.

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Processo nº 2007.85.00.001771-0

“A vida em comunidade, com as suas inerentes interações entre pessoas,


impede que se atribua valor radical a privacidade. É possível descobrir
interesses públicos, acolhidos por normas constitucionais, que sobrelevem ao
interesse do recolhimento do indivíduo. O interesse público despertado por
certo acontecimento ou por determinada pessoa que vive de uma imagem
cultivada perante a sociedade pode sobrepujar a pretensão de ‘ser deixado
só’”20.

c) Privacidade é o direito que tem uma pessoa de manter sob a sua esfera de
decisão, nos termos do direito vigente no sistema considerado, o
conhecimento de dados relativos à sua pessoa, sejam eles referentes à sua
intimidade, a seus bens, opções pessoais, profissionais, patrimoniais, ou
quaisquer fatos que respeitem à sua vida.
A privacidade opõe-se à publicidade.
Pela primeira, mantém-se no espaço de decisão livre da pessoa, nos limites
juridicamente definidos, como, quando e a quem dar ciência dos dados que se
referem à sua vida. Pela segunda, generaliza-se e expõe-se o que respeita à vida
de alguém, mas que se contingencia pelo interesse público, que determina o
uso da informação. 21

No plano do direito infraconstitucional, as rés resistem ao fornecimento


de dados lastreados nos seguintes dispositivos:

Lei 9.472/97, Art. 3° - O usuário de serviços de telecomunicações tem direito:


III - de não ser discriminado quanto às condições de acesso e fruição do
serviço;
IX - ao respeito de sua privacidade nos documentos de cobrança e na
utilização de seus dados pessoais pela prestadora do serviço;

Lei 10.703/03, Art. 1º (omissis), § 3º - Os dados constantes do cadastro, salvo


motivo justificado, deverão ser imediatamente disponibilizados pelos
prestadores de serviços para atender solicitação da autoridade judicial, sob pena
de multa de até R$ 10.000,00 (dez mil reais) por infração cometida.

Do exame da legislação supra, dessumem-se as seguintes conclusões: 1) o


art. 1º, § 3º da Lei 10.703/03 estabelece o dever de atender à solicitação de
autoridade judicial, sob pena de multa, mas não assegura que somente o Juiz teria
exclusividade de requisitar tais informações. Inclusive, o art. 3º da referida lei
dispõe que “os prestadores de serviços de que trata esta Lei devem disponibilizar para
consulta do juiz, do Ministério Público ou da autoridade policial, mediante
requisição, listagem das ocorrências de roubos e furtos de aparelhos de telefone celular,
contendo nome do assinante, número de série e código dos telefones.”; 2) não
20
Curso de direito constitucional. Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho, Paulo Gustavo Gonet
Branco. São Paulo: Saraiva, 2007. pág. 371
21
ANTUNES ROCHA, Carmen Lúcia. Direito à privacidade e sigilo fiscal e bancário. In: FERRAZ, Luciano et al.
(Coord.). Direito público moderno: homenagem especial ao professor Paulo Neves de Carvalho. Belo Horizonte:
Del Rey, 2003. p. 325-383.

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Processo nº 2007.85.00.001771-0

existe na legislação constitucional ou infraconstitucional regra expressa de que


somente o Juiz estaria autorizado a requisitar tais dados; 3) estas entidades estão
obrigadas nas suas atividades a manter o sigilo dos dados for força de dever legal e
contratual, não podendo divulgá-las a terceiros sem justa causa. Outrossim,
compete às autoridades coletar dados a fim de instruir as investigações, sendo a
requisição de dados um poder inerente às suas funções, respeitadas as garantias
constitucionais (inviolabilidade do domicílio, do sigilo e etc.).

2.2.4 Ponderação de interesses:


As Constituições do Pós-Guerra 22 passaram a tutelar bens e valores,
muitas vezes contraditórios e potencialmente conflitantes entre si. Se os meios
tradicionais23 de resolução de antinomia são inadequados para resolver as
controvérsias constitucionais, resta ao juiz a ferramenta da ponderação de
interesses de bens e valores.
Segundo Ana Paula de Barcellos, consiste em “técnica de decisão empregada
para solucionar conflitos normativos que envolvam valores ou opções políticas em tensão,
insuperáveis pelas formas hermenêuticas tradicionais”24 no qual o método subsuntivo é
insuficiente.
Este método não é o melhor ou pior para solver controvérsias
constitucionais em comparação com as demais opções (limites imanentes,
conceptualismo e categorização), mas é um recurso inevitável frente à atual
condição das Constituições do Pós-Guerra, que refletem uma sociedade complexa
e plural.
De outro lado, não se pode perder de vista que o legislador não é neutro
ou indiferente a situações de conflitos e constantemente realiza um juízo de
prevalência de um bem diante de uma determinada situação hipotética. Por
repousar sua legitimidade no voto popular, deve-se reconhecer que compete
primariamente ao legislador conformar as relações jurídico-sociais à luz da
Constituição. Com efeito, além dos direitos submetidos à reserva legal, o legislador

22
“O Direito, como se sabe, é um sistema de normas harmonicamente articuladas. Uma situação não pode ser
regida simultaneamente por duas disposições legais que se contraponham. Para solucionar essas hipóteses de
conflito de leis, o ordenamento jurídico se serve de três critérios tradicionais: o da hierarquia – pelo qual a lei
superior prevalece sobre a inferior –, o cronológico – onde a lei posterior prevalece sobre a anterior – e o da
(61)
especialização – em que a lei específica prevalece sobre a lei geral . Estes critérios, todavia, não são
adequados ou plenamente satisfatórios quando a colisão se dá entre normas constitucionais, especialmente
entre os princípios constitucionais, categoria na qual devem ser situados os conflitos entre direitos fundamentais
(62)
. Relembre-se: enquanto as regras são aplicadas na plenitude da sua força normativa – ou, então, são
violadas –, os princípios são ponderados.” (BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do
novo Direito Constitucional brasileiro . Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 59, out. 2002. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3208>. Acesso em: 05 set. 2008)
23
Segundo Luis Roberto Barroso, a CF/88 é considerada um modelo de Constituição tardia
24
Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. pág. 18.

- 23 -
Processo nº 2007.85.00.001771-0

possui um mandamento para explicitar limites imanentes 25 e até mesmo estabelecer


algum grau de restrição, tendo em conta conflitos específicos envolvendo direitos
entre si e enunciados que consagram fins coletivos. Assim, a ponderação ocorre
naturalmente, no silêncio do legislador, ou quando a regulamentação do legislador
for considerada inconstitucional.
Neste passo, é lapidar a lição de Daniel Sarmento:
“A ponderação de interesses pode ser realizada pelo Poder Judiciário
basicamente em duas hipóteses: (a) quando inexistir regra legislativa específica
resolvendo determinado conflito entre princípios constitucionais surgido em
um caso concreto, ou (b) quando a regra legislativa em questão tiver a sua
constitucionalidade questionada, pela via incidental ou principal.
No primeiro caso, o Poder Judiciário terá, forçosamente, de proceder a
ponderação, uma vez que não poderá furtar-se ao seu dever de resolver a lide,
e a colisão entre princípios constitucionais não tem como ser equacionada
senão através do emprego do método da ponderação de interesses. No
segundo caso, porém, a questão torna-se um tanto mais complexa.
De fato, a necessidade de ponderação na aplicação das normas constitucionais
exacerba o risco de invasão, pelo Poder Judiciário, do campo de
discricionariedade inerente à atividade legislativa. Através da ponderação, os
juízes que não são eleitos, podem tentar impor as suas opções políticas e
ideológicas em detrimento daquelas realizadas pelos representantes do povo.
Porém, é evidente que, em uma democracia, a escolha dos valores e interesses
prevalecentes em cada caso deve, em princípio, ser da responsabilidade de
autoridades cuja legitimidade repouse no voto popular. Por isso, o Judiciário
tem, em linha geral, de acatar as ponderações de interesses realizadas pelo, só
as desconsiderando ou invalidando quando elas se revelarem manifestamente
desarrazoadas ou quando contrariarem a pauta axiológica.
(...)
Trata-se, portanto, da adoção de uma postura cautelosa pelo Poder Judiciário,
que os norte-americanos denominam de judicial self-restraint. A autolimitação
judicial consiste numa formula de convivência entre o Judiciário e os demais
Poderes do Estado, pelo qual o primeiro não abdica da sua magna função de
guardião da Constituição, mas não se arvora à condição de ‘dono da verdade
constitucional’, reconhecendo aos poderes eleitos a primazia na tarefa de
concretização dos direitos constitucionais.
Na verdade o judicial self-restraint traduz-se numa certa deferência, devida pelo
Poder Judiciário, às opções políticas do Legislativo e Executivo, em
decorrência do reconhecimento da legitimidade democrática dos atos
emanados dos representantes destes poderes. As decisões judiciais que afastam

25
Segundo esta teoria, cada direito apresentaria limites lógicos, imanentes, oriundos da própria estrutura e
natureza do direito e, portanto, da própria disposição que o prevê. Os limites já estariam contidos no próprio
direito – que não admite determinada manifestação –, portanto, não se cuida de uma restrição impostos a partir
do exterior.

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Processo nº 2007.85.00.001771-0

tais opções, por contrariarem os desígnios da maioria, expressos através da lei,


só se legitimam na medida em que se ampararem firmemente na Constituição. 26

E complementa Eugênio Pacelli de Oliveira:

“Assim, será preciso, primeiro, que se examine a questão sob a ótica da


existência ou não de lei regulando o eventual conflito entre valores igualmente
protegidos na Constituição; depois, será necessário o exame da
constitucionalidade dessa lei, sob todos os aspectos; por último, na hipótese de
lei regulando a matéria, somente um juízo de ponderação de interesses, isto é,
somente um juízo de proporcionalidade, diante do caso concreto, é que
eventualmente poderá resolver a questão” 27

Se é verdade que a ponderação não consegue despir-se de seu caráter


voluntário – eliminar por completo a visão de mundo do intérprete que a utiliza –
deve necessariamente observar alguns parâmetros para que a atividade não
descambe para uma “decisionismo irracional”, tais como o esforço de alcançar em
regra a concordância prática e, se isto não for possível, a aplicação do princípio
da proporcionalidade, respeitar o núcleo essencial dos direitos fundamentais
e pautar-se por razões de ordem pública28. Em última análise, termina por
estabelecer uma hierarquia móvel, diante das circunstâncias concretas.
Assim, “na ponderação, a restrição imposta a cada interesse em jogo, num caso de
conflito entre princípios constitucionais, só se justificará na medida em que (a) mostrar-se apta a
garantir a sobrevivência do interesse contraposto, (b) não houver solução menos gravosa [e

26
Ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. págs. 113/117
27
Curso de Processo Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. págs. 349/350.
28
“As decisões adotadas pelo Estado, como já se disse, devem ser justificadas em termos de razões públicas.
Imposições que se baseiem não em razões públicas, mas em compreensões religiosas, ideológicas ou
comovisivas particulares de um grupo social, ainda que hegemônico, jamais conquistarão a necessária
legitimidade numa sociedade pluralista, pois os segmentos cujas posições não prevaleceram sentir-se-ão não só
vencidos, mas pior, desrespeitados. (...) Portanto, é imperativo, não só sobre o prisma ético, como também sob a
perspectiva jurídico-constitucional, que os atos estatais, como as leis, medidas administrativas e decisões
judiciais, baseiem-se em, argumentos que possam ser aceitos por todos aqueles que disponham a um debate
franco e racional– mesmo pelos que não concordarem com o resultado substantivo alcançado” (SARMENTO,
Daniel. Legalização do Aborto e Constituição. Disponível na Internet: http://www.mundojuridico.adv.br. Acesso
em 05 de set de 2008.) No mesmo sentido: O Poder Judiciário e, especialmente, as cortes constitucionais estão
obrigados a restringir a justificação de suas decisões à razão pública. Como suas decisões não se legitimam pelo
voto popular, devem se ater ao desiderato de contribuir para a consolidação das condições para a cooperação
social. Para que a jurisdição constitucional seja exercida sem comprometê-la, “os juízes não podem invocar sua
própria moralidade particular”; não podem recorrer, ao justificarem suas decisões, a “visões religiosas ou
filosóficas”. O fundamento das decisões judiciais deve se limitar ao que os magistrados “julgam fazer parte do
entendimento mais razoável da concepção pública e de seus valores políticos de justiça e razão pública”.
Tais valores são aqueles que os magistrados podem esperar que “todos os cidadãos razoáveis e racionais
endossem.”18 Por isso, se os adeptos de determinada doutrina abrangente alentam a intenção de influenciar as
decisões proferidas pelas cortes constitucionais, devem “traduzir” seus valores particulares para os termos
adequados à razão pública, i. e., para a linguagem da democracia, dos direitos humanos e das teorias científicas
incontroversas.(SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Ponderação de princípios e racionalidade das decisões
judiciais: coerência, razão pública, decomposição analítica e standards de ponderação. Virtu – Revista Virtual de
Filosofia Jurídica e Teoria Constitucional. Número 01 – Março / Abril / Maio de 2007 – Salvador – Bahia – Brasil.
Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 05 set. 2008.)

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Processo nº 2007.85.00.001771-0

igualmente eficaz], e (c) o benefício logrado com a restrição a um interesse deve compensar o grau de
sacrifício imposto ao interesse antagônico” 29
Cumpre examinar se a medida almejada constitui ou não grave violação à
privacidade. Para tanto, é necessário realizar a ponderação entre o direito à
privacidade e à segurança pública.
Embora não sujeito à reserva de jurisdição, a jurisprudência majoritária
entende que, para fins de investigação ou instrução criminal, o MPF ou a
autoridade policial não tem poder sponte propria para requisitar dados
referentes ao sigilo bancário ou telefônico, devendo submeter a sua pretensão
ao Poder Judiciário. Agora, quando se trata dos dados cadastrais, grassa uma
verdadeira divergência jurisprudencial sobre o tema, conforme se verifica dos
acórdãos abaixo:
CONTRA:

PROCESSUAL PENAL. DESOBEDIÊNCIA. WRIT PREVENTIVO.


ORDEM JUDICIAL MANIFESTAMENTE ILEGAL. DELEGAÇÃO DA
COMPETÊNCIA PARA AFASTAR SIGILO DE DADOS CADASTRAIS
DE USUÁRIO DE SERVIÇO DE TELEFONIA À AUTORIDADE
POLICIAL. IMPOSSIBILIDADE. CONCESSÃO DA ORDEM.
1. Os dados cadastrais dos usuários do serviço de telefonia móvel estão
acobertados pelo sigilo, a teor do que dispõem os artigos 3º e 72 da Lei nº
9.472/97, ambos ressaltando que os dados pessoais dos usuários do serviço
estão sob o manto da proteção da intimidade.
2. Fixada essa premissa, é de concluir-se que a quebra de tais dados,
pela simples razão de estarem protegidos legalmente por sigilo, somente
pode se realizar mediante a expressa autorização judicial, tomada à base
dos postulados constitucionais que regem a matéria, especialmente no
que diz respeito à necessidade de que a decisão judicial esteja
concretamente fundamentada.
3. Nessa seara, impõe-se a máxima de que o afastamento do sigilo deve estar
dirigido a pessoas determinadas, por meio de decisão judicial fundamentada,
sendo vedada a decretação de quebra do segredo de dados a critério da
autoridade policial.
4. Omitido.
5. Concessão da ordem 30.

HABEAS CORPUS - AMEAÇA DE PRISÃO POR CRIME DE


DESOBEDIÊNCIA – EMPRESA DE TELECOMUNICAÇÕES -
REQUISIÇÃO DIRETA DO MP PARA A QUEBRA DE SIGILO: DADOS
CADASTRAIS - COMPETÊNCIA DO PODER JUDICIÁRIO – ORDEM
CONCEDIDA.

29
Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. pág. 96
30
TRF 1ª Reg, HC 200801000107653/DF, 3ª Turma, Rel. Olindo Menezes, Data da decisão: 14/4/2008, DJF1:
30/5/2008, p. 221.

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Processo nº 2007.85.00.001771-0

1. O sigilo dos dados cadastrais das empresas de telecomunicações,


como o sigilo bancário, tem proteção constitucional, só podendo ser
quebrado, para fins de investigação criminal, por ordem expedida pelo
Poder Judiciário.
2. Precedentes.
3. Habeas corpus concedido.
4. Peças liberadas pelo Relator em 17/09/2002 para publicação do acórdão. 31

A FAVOR:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. SIGILO DE DADOS.


IDENTIFICAÇÃO DE USUÁRIOS DE TELEFONIA CELULAR.
DISPONIBILIZAÇÃO DE DADOS AO MINISTÉRIO PÚBLICO
FEDERAL. INSTRUÇÃO DE INQUÉRITOS CIVIS E CRIMINAIS.
CONSTITUCIONALIDADE.
1. A Constituição Federal assegura a proteção à honra, à intimidade, à vida
privada, bem como ao sigilo de dados, ex vi do art. 5º, X, XI. Referidos
dispositivos tutelam a esfera íntima do indivíduo em suas relações pessoais e
sociais, como também os denominados dados e informações sensíveis da
pessoa.
2. Os valores constitucionalmente tutelados não apresentam natureza absoluta,
devendo ceder nos casos e situações em que a lei prevê, ou quando o próprio
titular do bem jurídico protegido o divulga ou renuncia à proteção possibilitada
pelo ordenamento.
3. Os dados relativos à identificação do usuário do aparelho celular
referem-se tão-somente à sua identificação e endereço, não sendo,
portanto, dados sensíveis do indivíduo, aos quais se possa impor a
obrigação de sigilo por parte da prestadora em face de requisição
formulada pelo Parquet, e, em especial, quando a conduta imputada ao
usuário do aparelho estiver sendo objeto de apuração em inquérito civil
ou criminal.
4. A Constituição Federal atribui ao Ministério Público a função de zelar pela
“defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e
individuais indisponíveis”. Concomitantemente às diversas atribuições, o art.
26, §2º, da Lei n.º 8.625/93 prevê a responsabilização por eventual uso
indevido das informações a que tem acesso.
5. Legitimidade da requisição pelo Ministério Público de documentos
necessários à instrução de inquéritos e demais procedimentos de sua
competência. Precedentes jurisprudenciais. 32

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LIMINAR. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL.


INQUÉRITO. FORNECIMENTO DE DADOS CADASTRAIS.
USUÁRIOS DE TELEFONIA MÓVEL E FIXA.
A mera identificação e obtenção do endereço dos usuários de telefones
fixos e móveis não configura quebra de sigilo das comunicações
telefônicas (interceptação), ou de “comunicação de dados”.

31
TRF 1ª Reg., HC 2002.01.00.028916-1/AM, 3ª Turma, Rel. Desembargador Federal Luciano Tolentino Amaral,
DJ p.178 de 26/09/2002
32
TRF 3ª Reg., AG 2002.03.00.003153-2/SP, 6ª Turma, Rel. Des. Federal MAIRAN MAIA

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Processo nº 2007.85.00.001771-0

Possui, apenas o Ministério Público Federal, autorização legislativa para


requerer o fornecimento desses dados, independentemente de prévia
autorização judicial, desde que para instruir procedimento investigatório. 33

Pois bem.
No direito constitucional, é sabido que não existem direitos ou garantias
que se revistam de caráter absoluto, podendo ser flexibilizados quando existirem
razões de relevante interesse público, desde que respeitados os limites traçados na
Constituição.
Reprise-se: a proteção dos dados não é uniformidade na ordem
constitucional diante da sua multiplicidade. Esta proteção é mais forte quanto a
questões que revelem aspectos da vida pessoal da pessoa. Ora, os dados em tela –
nome, filiação, RG, CPF e endereço – não revelam aspectos da personalidade da
pessoa e, em conseqüência, não atingem o âmago da privacidade, logo a sua
proteção não pode ser tão forte como no sigilo bancário, fiscal ou telefônico.
Protege-se o sigilo bancário, fiscal ou telefônico porque tais dados, se revelados,
podem fornecer importantes subsídios da vida pessoal – com quem falou, o que
comeu, o que comprou etc.
Com efeito, os dados a que o Ministério Público Federal se refere na
peça vestibular são aqueles utilizados, fundamentalmente, pela pessoa natural ou
jurídica para se identificar nas relações perante a sociedade e o Estado. Embora
privativos dos indivíduos, tais dados estão inseridos em diversos contratos e
registros. Se praticamente em qualquer situação a pessoa é obrigada a se identificar,
tem-se que ninguém duvidou que o poder de requisição atingisse estes dados.
Existem diversas situações em que tais dados são expostos sem que a pessoa tenha
argüido a inconstitucionalidade, podendo assim serem exemplificadas: 1) o estatuto
ou contrato social contém obrigatoriamente estes dados e é sabido que o registro
de empresa é publico, acessível para todos; 2) pode-se retirar pela Internet certidão
negativa de débito, desde que seja fornecido o número do CPF (o nome da pessoa
irá aparecer); 3) o numero de telefone residencial é inserido em listas telefônicas,
podendo o usuário pedir a sua retirada; 4) tais dados estão contidos em diversas
petições iniciais ou contestações, muitas vezes acompanhada de documento; 5)
para se fazer uma denúncia ou outro requerimento ao Poder Público, é necessário
se identificar, uma vez que a ordem jurídica repugna o anonimato; 6) em uma
representação fiscal para fins penais, os dados são transferidos aos órgãos
responsáveis pela persecução penal sem que o Judiciário tenha acolhido uma
alegação de nulidade. Por força de dever legal e contratual, as instituições públicas
ou privadas que tomam conhecimento desses dados – in casu, as operadoras de

33
TRF 4ª Reg., AG 2006.04.00.031773-3 /RS, 4ª Turma, Rel. Des. Federal EDGARD ANTÔNIO LIPPMANN
JÚNIOR. No mesmo sentido: TRF 4ª Reg. , AMS 2004.71.00.022811-2, Sétima Turma, Relator Néfi Cordeiro, DJ
22/06/2005

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Processo nº 2007.85.00.001771-0

telefonia – estão obrigadas a não divulgá-los sem justa causa. Como exemplos de
justa causa, apresenta Hungria, apud Guastini, os seguintes: 1. consentimento do
interessado; 2. faculdade de comunicação de crime de ação pública; 3. dever de
testemunho em juízo; 4. defesa de direito ou interesse legítimo; 5. comprovação de
crime ou sua autoria 34.
Na quadra atual, ficou praticamente impossível manter o anonimato com
o advento da internet. Basta lançar o nome da pessoa em um site de busca (Yahoo ou
Google) da Internet para verificar-se a quantidade de dados disponíveis sobre a
pessoa ou, então, publicar um foto, artigo e etc. O dado, uma vez disponibilizado
na Internet sem qualquer restrição, se perde por este oceano.
E mais, é fato notório de que as operadoras de telefonia
compartilham dados dos usuários de telefonia com seus parceiros
comerciais (terceiros) para facilitar ou assegurar o recebimento dos seus
créditos. Basta ficar com os dois exemplos mais comuns: 1) a inscrição do nome
do consumidor em um banco de dados de proteção ao crédito; 2) qualquer pessoa
pode pagar uma fatura de conta telefônica sem estar de posse do documento,
bastando fornecer algum dado identificador como nome ou CPF.
Em outra perspectiva, quem nunca atendeu em sua residência a uma
ligação de operadores de telemarketing, oferecendo os serviços de alguma companhia
empresarial, a exemplo de cartão de crédito e telefonia celular?
Portanto, o risco de divulgação dos dados existe em todo lugar ante a
profusão de cadastros mantidos por entidades privadas.
Esta multiplicidade de dados e sua proteção foi descortinada por Tércio
Sampaio Ferraz Jr., cujos ensinamentos ajudaram a delimitar o alcance do art. 5º,
X e XII, da CF/88. Confira o seguinte excerto sobre o tema.

“(...) No que diz respeito à vida privada, é a informação de dados referentes às


opções da convivência, como a escolha de amigos, a freqüência de lugares, os
relacionamentos civis e comerciais, ou seja, de dados que, embora digam
respeito aos outros, não afetam, em princípio, direitos de terceiros
(exclusividade da convivência). Pelo sentido inexoravelmente
comunicacional da convivência, a vida privada compõe, porém, um
conjunto de situações que, usualmente, são informadas sem
constrangimento. São dados que, embora privativos - como o nome,
endereço, profissão, idade, estado civil, filiação, número de registro
público oficial, etc. -, condicionam o próprio intercâmbio humano em
sociedade, pois constituem elementos de identificação que tornam a
comunicação possível, corrente e segura. Por isso, a proteção desses
34
HUNGRIA, Nelson apud GUASTINI. Vicente Celso da Rocha Guastini. Código penal e sua interpretação
jurisprudencial, 1993, p 983 in: AVOLIO, Luiz Francisco Torquato. Interceptações telefônicas ambientais e
gravações clandestinas. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 100.

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Processo nº 2007.85.00.001771-0

dados em si, pelo sigilo, não faz sentido. Assim, a inviolabilidade de dados
referentes à vida privada só tem pertinência para aqueles associados aos
elementos identificadores usados nas relações de convivência, as quais só
dizem respeito aos que convivem. Dito de outro modo, os elementos de
identificação só são protegidos quando compõem relações de
convivência privativas: a proteção é para elas, não para eles. Em
conseqüência, simples cadastros de elementos identificadores (nome,
endereço, RG, filiação, etc.) não são protegidos. Mas cadastros que
envolvam relações de convivência privadas (por exemplo, nas relações, de
clientela, desde quando é cliente, se a relação foi interrompida, as razões pelas
quais isto ocorreu, quais os interesses peculiares do cliente, sua capacidade de
satisfazer aqueles interesses, etc.) estão sob proteção. Afinal, o risco à
integridade moral do sujeito, objeto do direito à privacidade, não está no
nome, mas na exploração do nome, não está nos elementos de
identificação que condicionam as relações privadas, mas na apropriação
dessas relações por terceiros a quem elas não dizem respeito. Pensar de
outro modo seria tornar impossível, no limite, o acesso ao registro de
comércio, ao registro de empregados, ao registro de navio, etc., em nome de
uma absurda proteção da privacidade. 35

Não obstante a realidade, isto não significa que os dados devem ficar
sem proteção em razão do risco de serem utilizados indevidamente por terceiros. O
que efetivamente se impõe é o estabelecimento de algumas condições para garantir
a integridade dos dados – não sejam divulgados aleatoriamente ao público em geral
– e a possibilidade de identificar e responsabilizar o agente público pelo seu mau
uso.
Assim, o agente público que receber as informações albergadas por esta
decisão passa a ser detentor do sigilo, devendo a sua utilização ficar restrita para
fins legítimos da investigação e/ou processo judicial em curso. Outrossim, o
servidor que se servir dos dados para fins estranhos deverá ser submetido
cumulativamente à responsabilidade civil (regressiva e improbidade administrativa),
administrativa e penal. Isto porque a revelação de segredo, do qual se tem ciência
por força de suas atribuições, constitui infração administrativa punível com pena de
demissão (dependerá da previsão no estatuto funcional do servidor), ato de
improbidade administrativa que atenta contra os princípios da Administração
Pública e o ilícito criminal de violação de sigilo funcional (modalidade qualificada se
causar dano à Administração e a terceiro). Ademais, os eventuais abusos podem
redundar na ilicitude de determinado meio de prova a ser declarado pelo juiz da
causa.
Lei 8.112/90, Art. 132. A demissão será aplicada nos seguintes casos: (...)
IX - revelação de segredo do qual se apropriou em razão do cargo;

35
Sigilo de dados: o Direito à privacidade e os limites à função fiscalizadora do Estado. Disponível em:
<http://www.terciosampaioferrazjr.com.br/?q=/publicacoes-cientificas/49>. Acesso em: 05 set. 2008

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Processo nº 2007.85.00.001771-0

Lei 8.429/92, Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta
contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que
viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às
instituições, e notadamente:
III - revelar fato ou circunstância de que tem ciência em razão das atribuições
e que deva permanecer em segredo;

Violação de sigilo funcional


Art. 325 - Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva
permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa, se o fato não constitui
crime mais grave.
§ 1º Nas mesmas penas deste artigo incorre quem: (Incluído pela Lei nº 9.983, de
2000)
I – permite ou facilita, mediante atribuição, fornecimento e empréstimo de
senha ou qualquer outra forma, o acesso de pessoas não autorizadas a sistemas
de informações ou banco de dados da Administração Pública; (Incluído pela Lei
nº 9.983, de 2000)
II – se utiliza, indevidamente, do acesso restrito. (Incluído pela Lei nº 9.983,
de 2000)
§ 2º Se da ação ou omissão resulta dano à Administração Pública ou a
outrem: (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 9.983, de
2000)

Por outro lado, a segurança pública, prevista no art. 144 da CF/88, no


entender de Álvaro Lazzarini, constitui “o estado antidelitual, que resulta da observância
dos preceitos tutelados pelos códigos penais comuns e pela lei das contravenções penais, com ações de
polícia repressiva ou preventiva típicas, afastando, assim, por meio de organizações próprias, de
todo perigo, ou de todo mal que possa afetar a ordem pública, em prejuízo da vida, da liberdade ou
dos direitos de propriedade das pessoas, limitando as liberdade individuais, estabelecendo que a
liberdade de cada pessoa, mesmo em fazer aquilo que a lei não lhe veda, não pode ir além da
liberdade assegurada aos demais, ofendendo-a” 36. Por sua vez, pontifica Diogo de
Figueiredo Moreira Neto:

“O sistema da segurança pública pode ser analisado em diversos níveis,


conforme sua natureza jurídica e seus órgãos de atuação.
Distinguirei aqui o nível policial do nível judicial e, depois, o nível policial do
nível político da segurança pública.
O nível policial vale-se do poder de polícia do Estado e se perfaz por órgãos da
Administração Pública:
1 – a polícia administrativa da ordem pública é a que realiza a prevenção e a
repressão imediata, atuando a nível individual ou coletivo;
2 – a polícia judiciária é a que apura as infrações pessoais e auxilia o Poder
Judiciário, realizando a repressão imediata, atuando a nível individual.
36
A Ordem Constitucional de 1988 e a Ordem Pública. Rev. Inf. Legislativa. Brasília a.29. n. 115. jul/set. 1992.
págs. 279/280.

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O nível judicial detém o monopólio do poder punitivo do Estado e se realiza


pelos órgãos do Poder Judiciário, aplicando sanções penais contra infratores,
na defesa imediata e individual da ordem pública.” 37

Vê-se, pois, que a persecução penal é uma atividade instrumental para


assegurar a segurança pública, tal como plasmada na Constituição.
Ora, o dever de sigilo não pode ser mantido quando existirem razões
para a publicidade, ainda que restrita a determinados agentes públicos. No presente
caso, a restrição ao direito à privacidade é mínima – considerando que os dados
não revelam aspectos da personalidade do indivíduo, que não se trata de devassa
indiscriminada à vida das pessoas e, sim, pontual e específica, condicionada à
satisfação de determinados requisitos – quando comparada com os ganhos da
persecução penal. Além das situações narradas pelo Ministério Público, entendo
que a medida irá agilizar a persecução penal, pois poderá ser utilizada para localizar
pessoas a fim de ouvi-las na qualidade de investigada ou testemunha.
Por seu turno, não se encontra violado o núcleo essencial do direito
fundamental. Com efeito, a disponibilização de informações requeridas pelo
Ministério Público Federal atine a dados cadastrais de natureza acessória e
secundária, cujo sigilo será assegurado com instrumentos de salvaguardas.
Além disso, não há de se falar em quebra indiscriminada dos sigilos
cadastrais, pois somente ocorrerá nas hipóteses de investigação em curso.
No caso concreto, é possível fazer a concordância prática entre a garantia
do sigilo dos dados cadastrais e o direito à segurança. Em verdade, trata-se de
direito que não é absoluto, e que deve ceder justificadamente nas situações de
investigações em andamento.
Assim, nem se afirme que este Juiz estaria privilegiando o interesse
público em direito do individual. Como bem explica Celso Antônio, o interesse
público pertence a todos enquanto membros da polis, podendo ser contraposto a
um dado específico interesse privado. Com exceção da pessoa que violou o
ordenamento jurídico, a ninguém interessa uma persecução penal
ineficiente, que não consiga atender às expectativas da sociedade. Não se
quer dizer que deva prevalecer sempre o interesse público, mas que as
pessoas esperam do Estado uma eficiência razoável na atividade com o
necessário respeito dos direitos fundamentais do investigado ou acusado.
À luz desses parâmetros, tem-se que a medida (fornecimento de dados) é
apta para prover a eficiência da persecução penal, tutelando o bem jurídico da
segurança pública. Inexiste meio menos gravoso e igualmente eficaz, pois a

37
Segurança pública na Constituição. Rev. Inf. Legislativa. Brasília a.28. n. 109. jan/mar.1991. págs. 142/143

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necessidade de intermediação pelo Juiz burocratiza excessivamente o


procedimento, desde que as autoridades adotem as cautelas de praxe que serão
opostas. Por sua vez, a restrição ao sigilo é mínima, considerando que os dados
deverão ser mantidos com caráter sigiloso, ao passo que a persecução penal se
tornará mais eficiente.
As partes objetaram que o deferimento do pedido seria a semente para o
Estado Policial, ou seja, para a criação de um “big brother”. Não desconheço que a
preocupação externada por Ministros dos Tribunais Superiores quanto à possível
criação de um “Estado Policial”, reacendida pela recente notícia de que a conversa
do Presidente do STF com o Senador da República foi grampeada por agentes da
ABIN – órgão vinculado diretamente à Presidência da República – tornam o debate
mais candente. Não penso assim. Tais fatos abalam a credibilidade das instituições
responsáveis por investigar e criam uma zona de incerteza quanto ao seu trabalho,
mas não podem obnubilar a discussão. O argumento pragmático pode reforçar ou
enfraquecer um ponto de vista, porém não constitui motivo suficiente para decidir
a questão. Deve-se, sim, repugnar e também combater a prática de atos criminosos
que insistem em violar a Constituição, pois num Estado Democrático de Direito
ninguém é soberano, devendo as pessoas e as instituições exercerem os seus
direitos nos limites traçados pela ordem constitucional com autonomia e
responsabilidade daí decorrente.
Não consigo vislumbrar a indevida intervenção na atividade econômica,
na medida em que o atendimento da requisição não demorará mais do que alguns
minutos para consultar o sistema. Ninguém duvida que, quando realiza ou presta
auxílio para realizar uma interceptação telefônica, atua na condição de auxiliar do
juízo. Ao acolher esta tese, daqui a pouco, as operadoras se sentirão autorizadas a
recusar realizar a interceptação telefônica, o que constituiria um verdadeiro
absurdo. Mutatis mutandis, é a situação dos presentes autos, pois as operadoras de
telefonia (concessionárias ou autorizatárias) atuam por delegação do Estado na
prestação de um serviço público federal e, por isso, não podem se eximir do dever
de colaborar com a persecução penal.

2.2.5 Alcance da decisão – Art. 16 da Lei 7.347/85


Consoante a observação de Nigro Mazzilli, a qual adiro integralmente,
“na alteração procedida em 1997 ao art. 16 da LACP, o legislador confundiu, lamentavelmente,
limites da coisa julgada (a imutabilidade erga omnes da sentença – limites subjetivos, atinentes às
pessoas atingidas pela imutabilidade) com a competência territorial (que nada tem a ver com a
imutabilidade da sentença, dentro ou fora da competência do juiz prolator, até porque, na ação

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civil pública, a competência sequer é territorial, e sim funcional)...” 38. A regra é de difícil
compreensão. A coisa julgada é a qualidade dos efeitos da sentença, por
conseguinte vale fora ou dentro do foro do juiz. De outro lado, é inimaginável
limitar os efeitos em caso de tutela de interesse difuso ou coletiva, no qual a nota é
de indivisibilidade da situação. Por exemplo, num caso de ação civil pública
proposta para despoluir um rio que corta mais de uma cidade, o Juiz que ordenar a
despoluição do rio não tem como limitar à sua cidade. Parece-me que o dispositivo
somente seria aplicável aos interesses individuais homogêneos.
Não obstante isso, o STF indeferiu medida cautelar em ADIN, devendo
ser aplicado por força do princípio da presunção de constitucionalidade.
SENTENÇA – EFICÁCIA – AÇÃO CIVIL PÚBLICA. Em princípio,
não se tem relevância jurídica suficiente à concessão de liminar no que,
mediante o artigo 3º da Medida Provisória nº 1.570/97, a eficácia erga
omnes da sentença na ação civil pública fica restrita aos limites da
competência territorial do órgão prolator. 39

Destarte, não será possível atender à solicitada abrangência nacional do


pedido, devendo sua eficácia ficar restrita “aos limites da jurisdição do tribunal competente
para julgar o recurso ordinário.” 40, ou seja, ao âmbito dos Estados integrantes da 5ª
Região.

3. DISPOSITIVO

Diante do exposto, acolho parcialmente a preliminar de ilegitimidade ad


causam do Ministério Público Federal para não conhecer de parcela do pedido no
tocante aos “Delegados de Polícia Civil” e “Membros do Ministério Público
dos Estados” e, no mérito, julgo parcialmente procedente os pedidos,
extinguindo o processo com resolução de mérito (art. 269, inciso I, do CPC), para
determinar que:
1) as operadoras de telefonia e suas sucessoras ficam obrigadas a atender
às requisições efetuadas pelos Delegados Federais ou membros do Ministério
Público Federal, que exerçam as suas funções no âmbito dos Estados
integrantes da 5ª Região, para o fornecimento de dados dos usuários constantes
em seus cadastros, desde que sejam observadas as seguintes condições:
1.1) os dados requisitados se restrinjam a nome, filiação, RG, CPF,
endereço e número do telefone;

38
MAZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio
cultural, patrimônio público e outros interesses. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 458
39
STF, ADI-MC 1576 / UF, Pleno, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, julgado em 16/04/1997
40
STJ, REsp 293407/SP, 4ª Turma, Rel. p/ Acórdão Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, julgado em
22.10.2002, DJ 07.04.2003 p. 290

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1.2) em nenhuma hipótese, conterão registros de ligações telefônicas, nº


de conta bancária, comprovante de renda ou qualquer outro dado, que
possam expor a privacidade do indivíduo;
1.3) a requisição deverá ser individual (para cada pedido), em papel com
o timbre da Instituição, assinada pela autoridade devidamente
identificada, conterá telefone ou email para confirmação da autenticidade
e fará referência a um inquérito ou procedimento investigatório em
curso;
1.4) os chefes da Polícia Federal e do Ministério Público Federal enviarão
anualmente as operadoras de telefonia uma lista contendo o nome de
seus membros e suas assinaturas. Em caso de inclusão ou exclusão no
decorrer do ano, farão a comunicação para fins de atualização;
1.5) poderá ser adotado um sistema de informática, desde que seja
assegurado padrões de autenticidade (certificação digital), respeitadas as
condicionantes acima (1.1, 1.2, 1.3, 1.4) e não implique o fornecimento
de senha para o acesso indiscriminado aos dados constantes dos
cadastros;
2) as autoridades que receberem as respostas das operadoras devem
conferir tratamento sigiloso aos dados, lacrando-os em embalagem opaca.
3) a Agência Nacional de Telecomunicações – Anatel se abstenha de
obstaculizar ou de impor penalidades as operadoras de telefonia, com exceção das
que não observarem as limitações previstas nos itens 1.1 a 1.5 acima descritas.
Fixo a pena de multa no valor de R$ 1.000,00 (mil reais) para cada caso
em que haja descumprimento injustificado desta sentença.
Após o trânsito em julgado sem reforma, encaminhem-se cópia da
sentença e dos acórdãos para o Ministro da Justiça e Procurador-Geral da
República para, querendo, adotar as medidas necessárias no seu âmbito de
competência (item 1.4).
Anatel fica isenta do pagamento de custas (art. 4º, I da Lei nº 9.289/96).
Condeno, ainda, os réus ao pagamento atualizado das custas (com exceção da
Anatel) e honorários advocatícios, este arbitrado em R$ 1.000,00 (mil reais) para
Tele Norte Leste Participações S/A (Telemar – telefonia fixa e Oi – celular),
Embratel – Empresa Brasileira de Telecomunicações S/A, Intelig
Telecomunicações Ltda., Telesergipe Celular S/A (vivo – telefonia celular), Claro –
Bcp S/A e Agência Nacional de Telecomunicações – Anatel e R$ 100,00 (cem

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reais) para Tim – Telecom Italia Mobile e Maxitel S/A, por não ter contestado o
mérito da demanda.
Sentença sujeita ao reexame necessário (art. 475, I do CPC).
Publicar. Registrar. Intimar.
Aracaju, 10 de setembro de 2008.

Fábio Cordeiro Lima


Juiz Federal Substituto da 1ª Vara/SE

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