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Ritual de acolhida: etnografia de uma casa católica de

atenção à pessoas que vivem com HIV/AIDS1

Luana R. Emil

(Acadêmica UFRGS e bolsista do Projeto Respostas Religiosas a epidemia de


HIV/AIDS no Brasil – ABIA)

Fernando Seffner

(Prof. Dr. do PPGEDU/UFRGS e coordenador do Campo Porto Alegre do


Projeto Respostas Religiosas à epidemia de HIV/AIDS no Brasil - ABIA)

Apresentação

Acolher, esta é a ação organizada e realizada por Freis Menores Capuchinhos numa ONG
voltada a assistência as pessoas que vivem com HIV/AIDS em Porto Alegre, RS/Brasil. Ao
fundarem a Casa Fonte Colombo2, em 1999, essa fraternidade franciscana assumiu o desafio
do diálogo entre Igreja Católica e às estratégias nacionais de contenção a epidemia de
HIV/AIDS. A Casa situa-se no centro deste diálogo, sendo esse palco de já conhecidas
disputas3, pois nela funciona a secretaria nacional da Pastoral da AIDS, assim as relações a
partir da Casa Fonte Colombo constituem um importante foco para as pesquisas que se
preocupam com a resposta nacional à epidemia de HIV/AIDS.

Com a intenção de investigar com mais atenção as relações entre AIDS e religiões que se dá
na intersecção desses mundos4 e que, também, envolvem parcerias e cooperação em torna da
assistência, que a ABIA – Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS, em parceria com o

1
Agradecemos aos colegas do Projeto Respostas Religiosas a epidemia de AIDS no Brasil pelo debate e
comentários. E apesar da obviedade gostaríamos de deixar em nota que essas são reflexões ainda não acabadas
que estamos propondo para discussão do GT 65 da VIII Reunião de Antropologia do Mercosul.
2
Ao longo do texto nos referimos a instituição com o seu nome completo, Casa Fonte Colombo, ou apenas como
Casa.
3
O Programa Nacional de DST/AIDS (PNDSTAIDS) e os representantes públicos da Igreja Católica brasileira
travam há décadas um conflito em torno do uso do preservativo, essa disputa se dá no âmbito da esfera pública, e
envolveram desde questões de ordem técnica (eficácia real da “camisinha” em proteger do vírus) a questões
relativas a moral cristã, associada a concepção de sexo reprodutivo. Vide a última declaração do Papa Bento de
XVI na África http://noticias.uol.com.br/ultnot/efe/2009/03/17/ult1807u49266.jhtm
4
Estamos utilizando “mundos” aqui justamente para forçar a idéia de que o tema da AIDS estaria distanciado da
religião, assim, num primeiro momento nos valemos da formulação ideal, e estereotipada, dessas províncias de
significado. Voltamos ao final com essa discussão, mas ela não é foco principal deste trabalho e ainda alvo de
futuras reflexões de nossa parte.
Centro de Gênero, Sexualidade e Saúde da Escola de Saúde Coletiva da Universidade de
Columbia (Nova Iorque), estruturou um projeto de pesquisa de longo prazo. Busca-se, neste,
desenvolver uma análise comparativa das várias maneiras como a religião católica, as
religiões evangélicas (protestantes históricos e pentecostais) e as religiões afro-brasileiras têm
respondido ao HIV/AIDS no Brasil, nos níveis populacional, institucional e político. É no
interior desse projeto que estamos desenvolvendo o trabalho de campo e os estudos que deram
origem ao presente texto5.

Dentre os estudos de caso conduzidos no Campo Porto Alegre do Projeto Respostas


Religiosas a AIDS no Brasil, encontra o que se debruça sobre as relações na Casa Fonte
Colombo. Ao longo de dois anos (2006 à 2008) temos acompanhado a instituição e produzido
um grande e diferenciado conjunto de dados. Num primeiro momento as observações em
relação à Casa se deram mais fora dela. Na Casa funciona a secretaria nacional da Pastoral da
AIDS, assim, acompanhamos encontros, cursos, congressos em que seus coordenadores
estiveram presentes. Posteriormente, num segundo momento, realizamos entrevistas com os
coordenadores e funcionários, bem como acompanhamos cada tarde de atividade da
instituição. Por fim, durante o ano de 2008 optamos por escolher uma tarde e vivenciá-la
sistematicamente a partir da observação participante. Este trabalho se constrói principalmente
sobre os dados produzidos nesse último momento em que pudemos olhar mais de perto as
relações entre freis, usuários e voluntários.

Acolher, em sua origem etimológica (ad + colligere) colher junto, reunir junto, está presente
na atitude cristã, de confraternizar, comungar. Essa palavra, acolhida, que ouvimos desde o
início do trabalho de campo e que em princípio passou despercebida, por ser recorrente em
outros lugares, é ponto central na atenção a pessoas que vivem com HIV/AIDS. A partir da
observação participante na Casa, então, descrevemos a ação da acolhida desde uma dinâmica
ritual, pautada pelo espaço e tempo de acolher e ser acolhido. A forma, o ordenamento do

5
Os dados coletados para a elaboração deste artigo resultam da pesquisa Respostas Religiosas ao HIV/AIDS no
Brasil (Projeto financiado pelo U.S. National Institute of Child Health and Human Development, 1 R01
HD05118-01. Principal Investigador: Dr. Richard Parker – Columbia University). O estudo, de abrangência
nacional, é realizado em quatro sítios específicos, nas seguintes instituições e com os respectivos coordenadores:
Rio de Janeiro (Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS/ABIA – Dr. Veriano Terto Jr.); São Paulo
(Universidade de São Paulo/USP – Dra. Vera Paiva); Porto Alegre (Universidade Federal do Rio Grande do
Sul/UFRGS – Dr. Fernando Seffner) e Recife (Universidade Federal de Pernambuco/ UFPE – Dr. Luís Felipe
Rios). Informações adicionais sobre o projeto podem ser obtidas pelo e-mail religiao@abiaids.org.br ou através
do site www.abiaids.org.br.
ritual se refere a uma organização tipicamente católica, tempos marcados pelas presenças
compõe o ritual da acolhida, ao mesmo tempo em que transmitem (ensinam) uma ordenação
para a vida.

Em um contexto católico acolher é, diríamos, o esperado. Mas afinal, o que é esse acolher?
Como se acolhe alguém? O que acontece no espaço da Casa, na interação entre Freis,
voluntários e usuários que é chamado de acolhida? Assim, foi somente depois da convivência
que podemos perceber e percebemo-nos em meio a essa prática. Nossas experiências pessoais
na Casa, como antropólogos6, nos permitiu pensar, sentir essa ação enquanto um processo
construção, ou melhor (in)formação de pessoas que se dá em relação a AIDS na interação
com outros em um ambiente religioso. Sendo assim, chamamos de ritual esse processo de
comunicação (ou comum-ação) que se dá a partir do “evento especial” de estar na Casa.
Conforme a primeira premissa que Peirano (2003) levanta ao buscar uma definição operativa,
mas de forma alguma rígida e absoluta, de ritual: “a compreensão do ritual não pode ser
antecipada. Ela precisa ser etnográfica, isto é, apreendida pelo pesquisador em campo junto ao
grupo que ele observa.” Por essa razão evitamos conceituar previamente o Ritual de Acolhida,
sua definição, afinal, é fruto das percepções dos pesquisadores em campo. Portanto o ritual
vai construir-se na medida em tentaremos levar você, leitor, para essa experiência das tardes
de terça feira na Casa Fonte Colombo.

O artigo foi organizado a partir das dinâmicas ou momentos rituais, ou seja, desde a chegada
na Casa Fonte Colombo, quando a acolhida começa até a saída. Na primeira parte, então,
“Chegando na Casa” fazemos uma breve contextualização da instituição enquanto ação
voltada a pessoas que vivem com HIV/AIDS que acontece no interior do catolicismo, bem
como a descrição desse lugar, do espaço físico da Casa. O segundo tempo/espaço ritual é o
“Espaço de Convivência” neste são descritas relações principalmente entre “ usuários, mas
também destes com freis e voluntários que se dão a partir da conversa. Nas “Atividades”,
nosso terceiro tópico, pensamos a relação entre usuários e voluntários a partir do sentir-se
acolhido e estar acolhendo. Para encerrar então, nos encaminhamos para as “Doações e Saída”

6
Nesse sentido corroboramos com o que bem colocou Goldman, numa “Aula Ernesto Veiga de Oliveira” na
Universidade de Lisboa, acerca do fazer antropológico: “ O cerne da questão é a disposição para viver um
experiência pessoal junto a um grupo humano com o fim de transformar essa experiência pessoal em tema de
pesquisa que assume a forma de um texto etnográfico. Nesse sentido, a característica fundamental da
antropologia seria o estudo das experiências humanas a partir de uma experiência pessoal. E é por isso, penso,
que a alteridade seja a noção ou a questão central da disciplina, o princípio que orienta e inflete, mas também
limita, a nossa prática” (GOLDMAN, 2006)
neste tentamos dar fim ao ritual de acolhida, ainda sem defini-lo, mas apontando para a
possibilidade de pensá-lo enquanto um processo pedagógico de (in)formação do cuidado de
si. Deixamos de fora neste trabalho um momento muito importante que por si só esgotaria o
artigo, o momento da “Comida”, que talvez seja o ápice do ritual, neste momento são
estabelecidas as distinções pelo comer junto, e o momento de compartilhar, além de tantas
outras significações que ação de comer recebe, esse é o momento em que a formação da
pessoa é materializada na ação de colocar para dentro aquilo que nos mantém. Comer então
está intimamente ligado ao desenvolvimento da “pessoa humana”, como dizem os freis na
Casa. Faremos referencias a esse momento, mas estamos desenvolvendo em um outro artigo.

Chegando na Casa

Os fundadores remontam à trajetória que levou a formação da Casa partindo da inspiração de


São Francisco de Assis, santo que se dedicou ao cuidado dos enfermos. Fica claro, a partir da
narrativa dos organizadores, que o trabalho com pessoas portadoras de HIV/AIDS não foi
uma decisão simples, menos ainda um mero acaso, mas “um longo processo de discussão e
amadurecimento dos Capuchinhos e da Igreja Católica”. A Ordem dos Freis Menores
Capuchinhos faz parte dos movimentos de inspiração franciscana, que buscam viver o
carisma de São Francisco de Assis optando pela vida simples, pelo cuidado dos doentes e dos
animais. São Francisco de Assis inspira muitos movimentos religiosos, ou posturas de vida,
nem todos reconhecidos pela Igreja Católica. A Reforma Capuchinha é reconhecida pelo
pontificado em 1619, atendendo a demanda dos freis, que queriam viver a experiência de São
Francisco: "viver o Santo Evangelho em pobreza, obediência e castidade" 7. A eles é
permitida a vida fora de mosteiros, e organizam-se em fraternidades "dividindo o tempo entre
missão, trabalho e oração". Neste contexto, a Casa é considerada uma fraternidade, e a
principal ação dos frades da Primeira Província da Ordem dos Freis Menores Capuchinhos do
Rio Grande do Sul que se dá fora de hospitais em relação ao cuidado dos doentes.
A Casa se localiza próxima a uma região de prostituição da cidade, no limite entre uma zona
industrial e uma zona comercial. O prédio quando visto de fora, não tem nenhuma
identificação e pode facilmente ser confundido com o depósito de uma empresa, apesar de sua
pintura impecável. Ao chegarmos à porta, uma grossa e pesada porta de ferro, nos
identificamos no interfone e sorrimos para a bem visível câmera. Ao abri-la nos defrontamos

7
http://www.capuchinhosrs.org.br/historia.php, site da Ordem dos Freis Menores Capuchinhos do RS, acesso em
25 de abril de 2008.
com um comprido corredor de paredes brancas, um espaço organizado, limpo, o que lhe
confere o aspecto de uma clínica. Com o olhar mais atenta percebemos os símbolos
franciscanos, que se perdem ao olhar leigo, mas que estão presentes na decoração, na escolha
da madeira, na estrutura da capela em forma de gruta, no cuidado com o jardim, nos
crucifixos em madeira e quadros com imagens, principalmente de São Francisco.

Na Casa são oferecidas atividades que incluem desde atendimento psicológico e médico,
atendimento espiritual dos freis, massoterapia, reiki, complemento alimentar, doações de
roupas, oficinas, banhos, palestras informativas, encaminhamentos para obtenção de
benefícios como o passe gratuito, aposentadoria pelo INSS e outras. Essas, não são oferecidas
em todas as tardes de trabalho, a oferta depende da disponibilidade dos voluntários que às
realizam. A médica pediatra, por exemplo, destina suas tardes de quinta-feira para estar na
Casa, então se procura colocar as mães grávidas para essa tarde para que assim possam ter um
reforço no acompanhamento pré e pós-natal. Os usuários, como são chamados as pessoas que
buscam (usam) os serviços da Casa e podem participar de uma tarde por semana, sendo essa
sempre no mesmo dia a cada semana.

Esta ação na Casa, no universo das ONGs AIDS da cidade, é a que sem dúvida atende a
parcela mais empobrecida da população de pessoas que vivem com HIV/AIDS. Os usuários
são moradores de regiões periféricas de toda a região metropolitana de Porto Alegre, há
aqueles que vivem entre os albergues e os hospitais. As pessoas que buscam a Casa são
homens e mulheres desempregados ou sem trabalho fixo, alguns, como dizem, são
“encostados pelo INSS” (recebem auxílio-doença, auxílio-desemprego ou aposentadoria) e
isso que lhes garante o seu sustento. Trata-se de um grupo bastante heterogêneo, sendo que
duas variáveis os unem: “ser pobre e portador de HIV/AIDS”.

No cadastro dos usuários há uma ênfase na família - o cadastro é familiar, inclui filhos,
maridos, mães, sobrinhos. Essa ênfase na família faz com que “pessoas de família” ou com
família, permaneçam, frequentem mais a instituição do que as pessoas que não constituem
família, isso atinge, principalmente, aos homens solteiros, poderia ser um dos fatores do
afastamento desses. O conceito de família, no entanto, tendo em vista a perspectiva da família
católica (um homem, uma mulher e seus frutos), é aqui bastante alargado. Na hora do cadastro
o que define família não é o casamento, mas “aqueles que estão contigo”, “que moram
contigo”. Assim a família é cheia de irmãs, mães, filhas e sobrinhas. A união, o “estar junto”,
independentemente de se envolve sexo, consangüinidade, entre homens, entre mulheres, é
família.

A diversidade do grupo é expressa também por cor, credos e sexualidade. Os usuários,


conforme os dados do cadastro, são em sua maioria negros e pardos. Nesse cadastro há pouco
tempo foi incluído o dado “pertencimento religioso”, esse informa a existência uma maioria
católica e um considerável número de evangélicos entre os usuários. No entanto, alguns
símbolos podem ser lidos no cotidiano, pelas aproximações e afastamentos, pelas posturas,
principalmente nos momentos de espiritualidade (momento da oração). Nunca perguntamos a
Seu J8, por exemplo, sobre sua crença, mais observamos que ele está sempre com suas guias.
Não precisamos perguntar a Gê sobre a religião que professa, pois ela prega em alto e bom
tom suas concepções de bom e ruim, e aponta para os pecadores que precisariam “ver o
espírito santo” – seus comentários, entre amigos, se tornam mais agudos na presença de
travestis na Casa, sendo esses vistos como doentes, tendo um “distúrbio que o pastor cura”.

Depois de participar, mais de uma vez, de todas as tardes de atividades na Casa (que funciona
de terça à sexta), percebemos que tínhamos pouco material em relação aos usuários, por ficar
alternando as tardes de visitas as conversas com usuários não puderam ser tão aprofundadas.
Assim, os objetivos de campo para 2008 se moveram no sentido aprofundar a relação com os
usuários, a fim de perceber como eles vivenciam o espaço da Casa e como são estabelecidas
as relações e trânsitos entre esses, os voluntários e os Freis. Optamos, então, por fixar as
visitas em uma tarde da semana. Todas as tardes de terça-feira. A participação na Casa é
regulada, os usuários não podem participar em todos os dias, pois segundo os Freis não
haveria condições de receber a todos, todos os dias. Como os usuários, escolhemos um dia
para nosso encontro, a escolha pela terça-feira não foi apenas por comodidade de horários,
mas também, e principalmente pela receptividade, foi a tarde que nos sentimos “acolhidos”
pelas pessoas. Outro fator que pesou na escolha foi justamente por ser um grupo heterogêneo,
nas quintas-feiras, por exemplo, a maioria das freqüentadoras são mulheres, no grupo das
terças há equidade entre mulheres e homens.

8
Para reunião do Projeto na ABIA deixamos ainda referencia as pessoas, mas temos que resolver o que vamos
fazer com isso para a RAM.
Ao chegar à Casa, os caminhos de usuários e voluntários são diferentes (diagrama19). O
horário combinado de chegada é as 14h para os usuários, os voluntários costumam chegar um
pouco antes disso. Ao chegarem os usuários já são recebidos por um dos Freis e uma
voluntária, que fazem o que eles denominaram o “momento da acolhida”, desse momento se
verifica a frequência e quantos serão os presentes na tarde (para dizer a cozinheira).
Cumprimentando o Frei e já falando sobre as novidades da semana, os usuários assinam ao
lado de seus nomes em uma lista de presença. Neste lugar, que é ao mesmo tempo a garagem
e o hall da Casa, são atendidas também pessoas que não frequentam a Casa, mas vem para
encaminhar a solicitação do Passe Livre10.

Os voluntários passam direto do hall pelo longo corredor branco até a recepção. Os usuários,
após o acolhimento inicial, seguem também pelo longo corredor. Esse caminho da porta até a
recepção muito faz pensar, esse é momento das conversas altas e cheias de expectativa, quem
encontramos ao final da caminhada? Quem vem e quem não vem hoje? A expectativa de rever
o outro diante da possibilidade de um e outro terem adoentado, ou mesmo de saber do outro
“se estou com uma cara boa”. O longo corredor branco marca o espaço/tempo da expectativa
do encontro e a transição entre o dentro e o fora da Casa, ou seja, entre o espaço da rua, do
cotidiano, onde não falo que tenho HIV/AIDS, para o espaço da Casa no qual é permitido
falar e compartilhar algo que é comum a todos usuários. Essa condição de preparar-se para
estar lá, da possibilidade de explicitar o não-dito, ser uma pessoa que vive com HIV/AIDS, é
um dos fatores que fazem do estar na Casa um “evento especial”, mas principalmente por
cumprirem-se nesse espaço regularidades que garantem certezas. A certeza de ser recebido, a
certeza de estar recebendo, a certeza de ver e ser visto e a garantia do almoço às 16h30min.

9
Acho que não vamos manter o diagrama para a apresentação na RAM. Estamos pensando.
10
As pessoas que vivem com HIV/AIDS na cidade de Porto Alegre tem direito a Passe Livre, ou seja a
gratuidade no transporte coletivo, mas para isso deve-se encaminhar aos órgãos competentes documentos que
comprovem a condição. Há pouco tempo a Casa Fonte Colombo tomou para si a tarefa de ajudar às pessoas à
encaminhar esses documentos, sendo elas usuárias da Casa ou não.
Espaço de convivência

“Oi, Tudo bom? Como vai?”. Assim se chega ao espaço de convivência. Basta esse
comprimento, que geralmente não é encarado como tendo o real objetivo de saber sobre outro,
para conhecer uma vida. Em nossas observações achamos que seria muito difícil estabelecer
relações e possibilidades de conversa no “espaço de convivência”, que é o pátio da Casa. Pois
as pessoas ficam separadas em grupos sentadas nos bancos brancos de praça. Essa hipótese se
demonstrou um equivoco, o espaço de convivência é justamente o espaço da fala, da
conversa, espaço em que as pessoas estão dispostas a contar sobre sua semana, a vida, os
problemas. Nas primeiras experiências ficamos perdidos sem saber nos posicionarmos, em
que grupo conversar, com o tempo bastava chegar e sentar num banco logo vinha alguém e
dizia: “Sabe, essa semana...”.

O pátio não é muito grande, além dos bancos, que ficam ao redor junto ao muro, tem o
vestiário e as bem cuidadas “plantas dos Freis”. No verão as pessoas se agrupam mais, em
função dos lugares de sombra, mas geralmente ficam todos nos bancos, ou seja, ao redor e no
meio circulam os voluntários que passam.

Separamos as conversas nesse tempo/espaço em dois grandes leques de possibilidades


temático devido a ocorrência, percebemos que as conversas não variavam muito em relação
ao tema a cada semana. O primeiro é o das conversas relativas a grandes assuntos midiáticos,
as conversas em relação a outros, e o segundo leque de conversas em relação a mim. As
conversas em relação a outros são pautadas não só pelas novelas, mas pelo sensacionalismo
midiático de “grandes tragédias” (principalmente nacionais). A partir desses eventos, de falar
sobre o que outros fazem ou fizeram, se faz a discussão sobre o que é certo e o que é errado.
No julgamento de casos como da “menina Isabela”, por exemplo, são reforçados valores
morais que orientam a conduta, assim o “que se espera de uma boa conduta de mãe e de pai”.
Olha-se para o drama do outro, seja da vida ou novelesco, desde um lugar externo, mas
trazendo para si o lugar do sujeito da ação, “se fosse eu”.

Nessas discussões sempre presentes é possível observar a diferentes concepções religiosas


atuante na construção de pessoas, e mesmo como cada religião (ou individuo de fé) põe a
religião em lugares diferes, como orientadora da vida, como “ajudinha a mais”, e como boa
moral. Alguns afirmam que a má conduta traz para pessoa, ainda nesta vida, coisas ruins
“fulaninho perdeu tudo porque bebia demais”, neste sentido vão as falas dos evangélicos, em
sua maioria neopentecostais11. Há, pela religião, a legitimação de sua própria conduta como
sendo de “boa moral”, não caras vezes os evangélicos anunciam sua crença: “Eu, como
evangélico, não bebo e não fumo”; “Eu sou evangélica, acredito que a mentira não leva a
nada, pois se tu mente, mente pro outro, pra ti e pra Deus”. Neste sentido afirmar-se
evangélico é ressaltar “eu de boa moral”, essa afirmação pode estar sendo reforçada por
evangélicos que vivem com HIV/AIDS como estratégia de embate ao estigma que lhes é,
ainda hoje, atribuído, na medida em que vem de encontro ao rotulo de “pessoas de moral
duvidosa”. Percebemos aí também a posição da religião para os evangélicos, para esses a
religião é reguladora, moralizante, orienta a ação no mundo, o crer no Espírito Santo de nada
adianta se não agir como “um evangélico de verdade”.

As diferentes crenças podem ser observadas, também, pelas explicações das distintas causas
do infortúnio, “ele tava possuído”, dizem os evangélicos (leia-se neo-pentecostais). Mais
discretos, as pessoas “de religião”, como se denominam as pessoas de crença afro-brasileira,
colocam sua visão sobre as coisas sem deixar de forma tão explicita seu credo, “algumas

11
Sobre isso muito já se falou e discutiu a partir da “Ética protestante e o espírito do capitalismo” de Max
Weber, alguns autores (Pierucci, prefacio a edição brasileira da “´”Ética...”, Cia das Letras, 2004) aproximam o
neo-pentecostalismo brasileiro a ética calvinista, principalmente, trabalhada por Weber. Podemos afirmar que
assim como esses os neo-pentecostais brasileiros praticam a ascese intramundana, talvez não afirmados pelas
mesmas noções de vocação, predestinação e deus transcendente que esses protestantes históricos, mas pela
busca de uma atitude ética que traz para esse mundo as ações “justas do Espírito Santo”.
pessoas não deveriam deixar de organizar a cabeça12”, as afirmações não denunciam a crença,
principalmente a não-iniciados. Como os evangélicos esses também acreditam que a má ação
gera o mal,sendo este mal não necessariamente negativo, no entanto assumem a falta de sorte,
“esse não teve sorte na vida”, como sendo responsável pelo mau, evitável mas presente e as
vezes necessário. Para as pessoas “de religião” esta é uma “ajudinha a mais na vida”, “eu
ajudo o Santo e ele me ajuda”, principalmente em relação aos problemas de saúde. literatura
sobre a pertencimento nas religiões afro-brasileiras, essa é trazida, geralmente, como um
“compromisso” (RABELO, 2008), evidentemente que não nega a “ajudinha”, mas é
interessante perceber que isso é assumido desde este espaço, o “espaço de convivência” na
Casa Fonte Colombo onde eles, usuários, são pessoas que vivem com HIV/AIDS, e assumem
o lugar de quem recebe, acolhida, ajuda.

Há ainda a postura que se identifica com a atitude católica, essa coloca todos como vítimas-
pecadores13. “Eu acho assim ó, Deus olha por todo mundo, agente também não sabe em que
situação desesperadora estava a pessoa para fazer este tipo de coisa”. É a postura de não-
julgar ao próximo, no entanto se julga a ação (separando ação e agente) na medida em que se
dá valor a ação como uma ação errada ao mesmo tempo que se vitimiza a pessoa pelas
condições que ele não sabe lidar, e por isso é tomado pela ação errada. Nesse sentido a ação
parece agir mais sobre o agente, do que o agente sobre a ação. Assim o catolicismo além de
tomar o lugar da religião que conforta pela garantia de inclusão, “Deus olha por todos nós”,
também enfraquece o agente em relação a ação, colocando a pessoa em posição vitimizante.

Até agora falamos das conversas em relação a outros nas quais os usuários vão tomando
posições e de certa forma trocando entendimentos relativos ou não as suas crenças. No
entanto, em relação a essa última postura de vítimas-pecadores vale também uma reflexão
sobre aqueles que acolhem na Casa, voluntários e freis, em relação aos usuários. Freis e
voluntários olham para as pessoas que são acolhidas, como pessoas “portadoras de faltas”,
lhes faltam saúde, lhes faltam informação, lhes faltam educação, lhes faltam recursos e por
isso lhes faltam o “entendimento das coisas”. Isso foi colocado, por exemplo, para explicar

12
“organizar a cabeça” é o termo usado para assentar um Santo, mas a ouvidos outros é apenas organizar as
idéias.
13
Estamos utilizando “vítimas-pecadores”, a partir de uma formulação que ouvimos de uma usuária neste
mesmo espaço de convivência. Ela diz assim: se Jesus morreu na cruz para redimir nossos pecados, então somos
todos pecadores, todos pecam, afinal foi o filho de Deus. Ou seja, todos pecam para fazer jus a morte de Cristo,
então o pecado é inevitável, fazendo das pessoas vitimas do pecado, e por isso ao mesmo tempo vitima e
pecador.
“afinal de contas, porque elas [usuárias, mulheres que vivem com HIV/AIDS] ficam grávidas
?”, numa conversa na hora do café. Sendo o engravidar julgado como uma ação “não
recomendada”, explica-se a persistência desse pela falta de “entendimento”:

a gente diz que tem que usar camizinha, diz que podem passar isso [AIDS] para criança, mas
mesmo assim aparecem grávidas, é difícil né, é difícil para elas terem esse entendimento.
Voluntária

Os usuários então são vistos como pessoas carentes de entendimento, ou agentes que são
tomados pela ação. Olha-se para a falta do outro, novamente pensando a ação dissociada do
agente. Assim a carência desse entendimento, dessa lógica que sustenta que às pessoas que
vivem com HIV/AIDS e com poucas condições não é recomendado ter filhos, e causa que
torna o outro vitima e menos agente, na medida em que menos reflexivo sobre sua ação, que
eu. Principalmente voluntários, sendo esses majoritariamente mulheres de classe média com
formação superior, aqui partem de uma visão do “sujeito do Iluminismo” (HALL,2005), qual
seja, baseado numa concepção da pessoa humana como um individuo totalmente centrado,
unificado, dotado de razão , de consciência de ação.

O segundo leque de conversas possíveis são aquelas em relação a mim, essas giram entorno
dos meus ou nossos problemas. A noção de problema expressa é bastante complexa. O
problema é um acontecimento relacionado à família, saúde, bens materiais, amores, dentre
outras questões. Ele pode ser individual ou compartilhado. Durante as conversas nos bancos
brancos de praça o problema é falado a partir de uma ação performática, anunciar um
problema exige um tom e um roteiro, pois falar sobre, é também, construir o problema. “Sabe,
tenho um problema”, anuncia J, se anuncia um problema e todos parecem ficar atentos para
opinar ou compartilhar, “pois eu já sofri com isso”. Os problemas anunciados não
necessariamente têm sentido negativo, como fardo a ser carregado, mas muitas vezes tomam o
ar de “problemática”, de reflexão, de algo a ser resolvido. Contar o problema é enfrentá-lo.
Alguns problemas são enfrentados ali mesmo nos bancos, um contando para outro, “meu filho
tá dando problema, não sei o que fazer com aquele guri”. Outros, no entanto, são
confrontados levando-os para as pessoas certas, “to com um problema, vou falar com os frei,
to precisando de uns cobertores, com essa chuva molhou tudo lá em casa, vinha água por cima
e por baixo”.
Mas o problema mais falado, ou que recebe maior enfrentamento, é “esse problema que a
gente tem” assim que os usuários da Casa falam da AIDS. Esse enfrentamento que se dá pela
fala, que tem como conteúdo trocas de ensinamentos, ou experiências. Essas falas são sobre
questões do cotidiano e vão desde o que comer:
a gente que tem isso deve maneirar nas gorduras, não podemos ficar com
gordura alta (Gi)

é bom comer bastante bergamota, tem vitamina C, aí a gente previne de ficar


gripado, tem que tomar a vacina e comer bergamota, qualquer gripe pode
derrubar a gente (Milton)

Onde conseguir:
Legumes e frutas assim tu pode e pegar lá na CEASA, é só levar a carteira de
identidade, é nas sextas, eu vou nessa tu pode vir comigo (Dona Teresa)

Passe ? Tu pode encaminhar aqui mesmo com os Frei (Luciane)

Essa injeção aí, a do pulmão, tu tem que pegar encaminhamento pelo Postão, eu
peguei lá, lá eles dão, o encaminhamento, depois tem que ir lá no Hospital
Belém (Amasia)

E até mesmo sobre questões bastante técnicas em relação ao HIV/AIDS:


Teu CD4 tá quanto? [...] Ah, agora acho que ela vai te mandar tomar anti-
retroviral (Amasia)

O [medicamentoX] ta de fazendo mal, tu ta tomando desde quando [...] pede pra


ela trocar para o [medicanmentoY]. E pede receita de XXX para dor. (Gi)

A partir da fala, da troca de experiência e informação os usuários se ajudam a enfrentar seu


problema comum. Problema que para além de ter HIV/AIDS é ser pobre vivendo com
HIV/AIDS14. No entanto esse enfrentamento não se dá somente pelo conteúdo da fala, mas
pela própria ação de falar, de afirmar-se com tendo “isso”, compartilhando essa condição. E

14
Ainda temos que buscar maiores as referências em relação a AIDS e pobreza e a classes populares, há um
texto do Richard sobre a questão, e é importante ver o referencial da Claudia Fonseca.
nesse sentido que entendemos essa fala a partir da composição de um ritual, pois ela
transforma o sujeito. Alí, naquele momento, é permitido e se permite ser uma pessoa com
HIV/AIDS e falar desde esse lugar. A AIDS trouxe uma diferença e uma dificuldade para a
sociedade em relação ao trato dos doentes. A epidemia põe a luz os estimas e preconceitos,
mas ainda mais profundamente põe a luz a pessoa, e não “o doente”. As pessoas vivem com
HIV/AIDS, reclamam, falam, circulam, andam, agem, são vistos, a visibilidade desses que se
esperava invisíveis ou limitados a condição de doentes gera também o que se chamou o
“impacto da AIDS”, ou seja, as mudanças e as possibilidades de re-pensar as condições de
estar-no-mundo ou melhor de viver no mundo assumindo condição de humanos interpelados
por coisas que atuam na nossa formação (produção) de pessoa. Assim a pessoa que vive com
HIV/AIDS ao se afirmar, e nos colocar a possibilidade de “aprender a viver com isso que a
gente tem” está des-naturalizando o humano, ou a idéia de vida como tento uma essência
natural, ou naturalmente pura, completa, sólida. Nos é colocado a possibilidade de viver uma
vida que é penetrada, atravessada, de viver como pessoas contaminadas.

“Doentes de AIDS” falam, e por isso os esforços para silenciá-los foram de tamanha
violência, sendo não só “ inferiorizar-se” mas também bastante insegura a ação de falar15. O
espaço de convivência, contudo, enquanto um espaço/tempo do ritual de acolhida da Casa
Fonte Colombo é um lugar/momento em que a partir das trocas, do afirmar-se e compartilhar
se enfrenta as condições impostas pela AIDS. Pelo menos uma tarde por semana os usuários
se encontram num lugar onde mais do que permitido é seguro dizer-se com AIDS. E onde é
produzida essa comum-ação de compartilhar com os seus essa mesma condição de pessoa que
tem “esse problema que a gente tem que aprender a conviver”. Depois de compartilhar com os
seus, ou porque que não, reunir-se, colher junto, acolher, os usuários são chamados a
participarem das atividades onde o papel de ser acolhido se evidencia.

Atividades
Na Casa as atividades oferecidas a cada tarde dependem da disponibilidade dos voluntários e
vão desde atendimento médico, psicológico ou com a assistência social até massoterapia,
reiki, corte de cabelo e banho. Dentre essas atividades estão também as oficinas, a cada tarde
é oferecida uma oficina que é ministrada por um voluntário ou frei. As oficinas não tem

15
O processo de silenciamento, ou mesmo invisibilização, das pessoas que vivem com HIV/AIDS a partir do
preconceito, mas também de atos extremos como o confinamento, foi um problema trabalhado por Pereira
(XXXX) a partir do caso Fraternidade Assistencial Lucas Evangelista – FALA, em Brasília.
cunho profissionalizante, no sentido de visar a melhoria da situação dos usuários para o
mercado de trabalho. São bem diferenciadas umas das outras mas em geral visam a melhoria
da “auto-estima”, podemos citar algumas das que podemos acompanhar: Oficina de beleza da
mulher, Oficina de Humanização, Oficina de Teatro, Oficina de Alfabetização. Com exceção
das oficinas, que acontecem no pequeno prédio no fundo do pátio, a maioria das atividades
acontece nas salas de atendimento. Os usuários ao chegarem na Casa e passarem pela
recepção se inscrevem na atividade que querem participar, os inscritos na oficina devem
participar todas as semanas da oficina para obterem o certificado. Maria João assim gritando
pelo pátio os voluntários chamam o usuário da vez, conforme a ordem de inscrição, para
participar, ou receber a “atividade” em questão, massagem por exemplo.

Os voluntários que atuam na casa são majoritariamente mulheres, principalmente se não


considerarmos os freis, estudantes da Escola Superior de Teologia Franciscana, que estão
fazendo estágio pastoral e que também são considerados voluntários pela secretaria da Casa. A
maioria delas – voluntárias - são mulheres casadas ou viúvas acima de 40 anos de idade. Elas
atuam na Casa geralmente conforme sua “especialidade” ou profissão. Há uma voluntária
médica pediatra que atente mães, em especial as mães em pré-natal, todas as quintas-feiras. Há
voluntárias enfermeiras que atendem dando orientação de administração dos medicamentos, de
marcação de exames bem como da interpretação dos mesmos. Há voluntária massoterapeuta, e
a que “aplica Reiki”. Alguns freis aprenderam, na Casa mesmo, as técnicas de massagem
relaxante e Reiki, então, também ocupam essas funções. Algumas voluntárias se especializam
ali mesmo, como Iríde e Dona Júlia, duas senhoras que se especializaram em administrar o
banho e receber os usuários na entrada da Casa. Elas também tem pertencimentos religiosos
diversos, embora, no caso das terças-feiras possamos afirmar que há uma maioria espírita,
depois católicas e uma de religião afro-brasileira. O envolvimento dessas mulheres com o
HIV/AIDS ou com a Casa são relatados a partir de vários motivos:
“Meu irmão tinha HIV, agora meu sobrinho mora comigo, eu falo para
ele se cuidar” (Aposentada,I, 62)
“Aqui eu posso continuar cuidando das pessoas, me sinto útil né”
(Enfermeira aposentada, católica, N, 55)

“Essas pessoas precisam de cuidado, é bom acolher né, isso nos faz
melhor” (Aposentada, espírita, C, 51)
Percebemos que a motivação vem de várias formas, pela lembrança do irmão, pela
possibilidade de continuar exercendo a profissão e assim sentir-se útil, com a finalidade de
sentir-se bem. Essas mulheres, uma ou mais vezes por semana, disponibilizam seu tempo, e
seu saber para acolher pessoas que vivem com HIV/AIDS na Casa Fonte Colombo. As
voluntarias usam jalecos brancos nas “salas de atendimento”e com eles, elas, estão acolhendo.
Parece haver naqueles jalecos com bolsos a potencia de quem está para doar, conversas,
cuidados, toques, presenças, abraços, elogios. Os receptores, os usuários, ao ouvirem seus
nomes no pátio vão ao encontro da pessoa. O encontro entre usuário e voluntário. No pátio
encontram-se, um sorridente “oi, como tu vai hoje, Maria João?”, um abraço ou aperto de mão,
e seguem conversando para dentro da Casa até a sala de atendimento onde a conversa se
estende. Os usuários com seus nomes e com as particularidades de seus problemas, então,
recebem acolhimento. Recebem atendimentos de massagem, são tocados, o toque é muitos
vezes referenciado como ação máxima da acolhida. Acolher é tocar. E tocar uma pessoa que
vive com HIV/AIDS é livrar-se dos preconceitos e da ignorância, é saber que “AIDS não pega
assim de qualquer jeito”.

Pensamos a acolhida como uma dinâmica de ser acolhido e estar acolhendo, nos permite
refletir sobre essas posições. O principio dessa relação é a troca de gestos, sensações e
sentimentos entre irmãos na medida em que a Casa Fonte Colombo é considerada uma
fraternidade franciscana, não só entre freis, mas entre todos que se relacionam a partir dela. Ser
uma fraternidade significa para os Capuchinhos, conforme os estudos que participamos em
uma das experiências de campo, ter uma ação de humildade em relação ao outro companheiro
que chamam de Irmão:

Ser irmão significa evitar qualquer comportamento de


superioridade. Significa viver a atitude da acolhida e da misericórdia, sem
julgamento. [...] Supõe uma relação vital profunda, amorosa, maternal,
comprometida e responsável, que vai muito além da amizade e do estar junto.
Na fraternidade o outro deve ser outro, ele mesmo e não ser um
prolongamento do meu eu. (cartilha Cuidando a Vida nos Passos de
Francisco de Assis, Editora São Miguel)16

16
Cartilha que recebemos e estudamos durante o Encontro dos Voluntários das Obras Sociais da Província dos Freis
Capuchinhos Porto Alegre, Canoas e Bagé em 8 de dezembro de 2007.
No entanto essa posição de irmão desde onde são estabelecidas as trocas partem de um
contexto anterior que define as posições de quem acolhe e quem é acolhido. Os usuários como
já comentamos, são vistos enquanto pessoas portadoras de faltas, a eles , portanto, não cabe
acolher. A dinâmica ritual tem regras, tem posições somente alguns podem ocupar o lugar de
acolhedor (os que não-usuários). Essas posições variam, mas a partir de certa hierarquia que
define quem pode acolher quem. Por exemplo, na chegada, ainda sem os brancos jalecos com
bolsos, voluntários são acolhidos pelos freis e pelos funcionários17 da Casa, e acolhem uns aos
outros na medida em que falam de si, observam com que “clima” chega cada um, uns mais
outros menos sorridentes, uns vem outros não vem. Quando questionados sobre sua
participação e freqüência na Casa os voluntários encontramos falas semelhantes, independente
do motivo pela qual buscaram a Casa, ou ainda que buscaram fazer trabalho voluntário, o
permanecer/estar na Casa e expresso pela mesma razão: “Fui acolhida pelos Freis” (M, 47); “O
pessoal aqui é muito bom, se tornaram todos amigos” (G, 50).

Podemos visualizar o circuito hierárquico que define quem é acolhido a partir do diagrama a
seguir, a flecha aponta para as pessoas que são acolhidas e parte daquele que acolhe.

Assim, acolher e ser acolhido são posições atribuídas e assumidas não só entre usuários e
voluntários, mas como vimos entre voluntários e freis, e entre os próprios voluntários, (ou
entre os próprios usuários, como acontece no espaço de convivência).

Doações e Saída

Fui ajudar o Frei E. a entregar as sacolas com o rancho na hora da saída, Dona J. tinha
faltado essa terça. Eles vem um por um, ou dois no máximo. Chegou a AA , ainda não
havia conversado com ela hoje, cumprimentei, perguntei sobre as crianças, perguntei como
ela estava, ela me respondeu não em poucas palavras, pedi que ela assinasse, dei a sacola a
ela e sorri, ela sorriu e disse: até terça. E nesse momento me senti fazendo parte de algo, eu
sabia o que fazer, sabia como me portar. (nota de diário de campo)

17
Dessas três voluntárias uma tem muito pouco contato com as atividades da Casa, ou deve pouco contato
conosco, que é a cozinheira. As outras duas compartilham do mesmo status dos freis. A secretário por ser quem
conversa com os usuários a primeira ez que chegam a Casa e por ser capaz de definir quem recebe e quem não
recebe. A recepcionista também porque ela é a pessoa da informação, quem venho e quem não venho, mas
também por que a muito pouco tempo, ainda no inicio do nosso trabalho, quem cumpria esse papel era uma
freira.
Esse trecho do diário de campo ilustra mais uma parte do ritual, o momento da saída da Casa.
Após a refeição às pessoas devem novamente passar pela recepção para sair da Casa. Aquele
mesmo hall de entrada onde as pessoas são recebidas torna-se agora um balcão onde às
pessoas pegam o que lhes foi doado: alimentos, roupas, e, geralmente na última semana do
mês, o rancho. E assim, pela troca de gestos, palavras e coisas se faz a despedida reforçando
as posições daquele que dá e o que recebe. Um momento em que percebemos estar seguindo o
roteiro do ritual proposto - e naquele momento a partir de uma determina posição, a de
voluntário, ou não-usuário, não-portador de faltas. A Casa se encontra entre a definição de
instituição religiosa, e instituição de saúde, sendo a rigor organizacional uma constante em
ambas, e aqui está serve para ordenar, e porque não permitir, a prática da acolhida a partir de
uma dinâmica ritual.
Tomando a formulação de Tambiach de “ação performática” como sendo “um atributo
intrínseco tanto à ação quanto à fala, que permite comunicar, fazer, modificar e transformar”
(PEIRANO, 2003, p. 40). A ação performativa que envolve “esse problema que tenho”, está
relacionada com as possibilidades de enfrentamento deste. A prática da acolhida vista desde
essa dimensão ritual se constitui, então, como uma prática pedagógica de “cuidado de si”, ou
de humanização. Ou ainda nos termos da Casa, processo de (in)formação da pessoa humana.

Vale a pena pontuar ainda que no Ritual de Acolhida se dá o encontre ou a comunicação entre
o mundo da aids e o mundo católico, principalmente a partir do referencial dos Direitos
Humanos. Com a vivencia na pesquisa experiênciamos “dois mundos” o mundo da AIDS e o
mundo da Igreja Católica. O primeiro se pensado a partir das ONGs e dos seminários sobre o
tema demonstra-se e diferencia-se por sua especialização, ou seja, conversas sobre AIDS, que
são primeiramente carregadas por termos técnicos, parecendo ser ao início um discurso
puramente biomédico. Todavia, a segunda grande marca desde mundo são as conversas
bastante positivadas sobre sexo, sexualidade, prostituição e prazer. Este mundo que
inicialmente nos foi apresentado parece constratar em tudo com o mundo da Igreja Católica
marcado pela fé, hierarquias e continuidades.

Estamos pensando em “mundos” enquanto províncias de significados, pois falar em


“mundos” pode parecer um tanto totalizante, além de passar a idéia de distanciamento entre
um e outro. Propomos essa formulação para olhar para a relação AIDS/Igreja com a intensão
de resaltar esses dois lugares de fala a partir de suas formais ideais, para assim percebermos
distanciamentos e aproximações. Poderíamos pensar também, como colocamos em reflexões
recentes (EMIL,Boletim ABIA, Nov. 2006 n 57) como universo ou sistema de significados,
remetendo então ao conceito de cultura para Geertz, no entanto não saberíamos dizer ainda se
estamos falando de uma cultura acerca da AIDS, ou uma cultura religiosa, ou de uma cultura
com a AIDS, com a religião, lidando e se transformando por essas questões. Assumir a noção
de província de significados, nos permite corroborar ainda com formulação da Paula Treichler
(1998 pp357) da AIDS como uma “epidemia de significações”, pensando que os significado
em relação a AIDS, assim como os religiosos, estão no mundo podendo ser acessados pelos
sujeitos a partir de suas pertenças e experiências.

Referências
EMIL, Luana R. O global e o local da resposta Católica à aids. In: Boletim ABIA. N 56,
novembro de 2007.
GOLDMAN, Márcio. Alteridade e Experiência: Antropologia e Teoria Etnográfica. In:
Etnográfica, Vol X(1), 2006, pp161- 173
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10.ed. RJ: DP&A, 2005.
PEIRANO, Mariza. Rituais: ontem e hoje. Jorge Zahar Ed, Rio de Janeiro, 2003.
PEREIRA, Pedro Paulo. Os olhos da meduza....
RABELO, Miriam. Entre a casa e a roça: trajetórias de socialização no candomblé. In:
Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 28(1): 176-205, 2008
SEFFNER, Fernando e EMIL, Luana. 2007
STEIL, Carlos Alberto. A Igreja dos Pobres: da secularização à mística. Religião &.
Sociedade. Volume 19, número 2. Rio de Janeiro: ISER, 1999. p. 61-76.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Tradução de José Marcos
Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004

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