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ADAMS DAMAS

MEMÓRIAS DE UM HOMEM
INCOMPLETO
Índice

Introdução, 3

O Enterro, 5

Beatriz, 7

Destino, 9

Inocente, 12

O Retorno, 16
Introdução

O homem, a humanidade, eu, vocês, estamos sempre em busca de alguma coisa.


Já repararam? Parece que temos uma curiosidade insaciável para desvendar o
desconhecido. Saímos do fundo do mar pela primeira vez para o quê? Ver como era
aqui fora? Depois nos erguemos sobre os quatro membros para ver melhor; e, como não
era suficiente, equilibramo-nos somente sobre dois.
Então descobrimos o fogo e com ele pudermos aventurar-nos na noite escura
sem ter medo. Mas só andar não resolvia; era muito lento e a humanidade, como bem
sabem, tem pressa. Criamos a roda para nos locomovermos melhor, porém, os caminhos
eram muito acidentados, por isso, construímos ruas, estradas, rodovias. Contudo, o
homem tem que ir mais rápido. Então, colocamos motores para movimentar as rodas e
também trilhos em algumas estradas para moverem-se sem obstáculos. E como já não
bastasse isso imitamos os pássaros os soberanos originais dos céus.
Ainda assim, com tudo isso, quem sempre ficava com o crédito era um tal de
Deus. Mas quem afinal era Deus?
Para responder essa pergunta que nos sacia de curiosidade até hoje, criamos a
religião. Porém, só uma não era suficiente – estamos falando da humanidade aqui! Claro
que cada um quis falar do seu jeito. Então cada um criou sua religião para explicar
quem é Deus do seu jeito. Mas só ter religião não bastava, por alguma razão, nem todos
acreditaram na história ou histórias. Então fez-se a ciência. Ela explicava como Deus
fez e, melhor, podíamos simular e até copiar o que Deus fez. E o que Deus fez em
primeiro lugar. A vida óbvio!
Começamos então a criar vida. De modo natural primeiro – assim nascemos e
assim nos reproduzimos. Entretanto, descobrimos depois que podíamos nascer e
reproduzir de uma forma não natural, fabricados talvez seja o termo mais próximo.
Primeiro controlamos e produzimos como os animais devem nascer e se reproduzir
porque talvez, abençoados que são, não tinham os questionamentos insaciáveis da
humanidade. Criamos máquinas que simulavam o pensamento humano, mas como uma
jogada de gênios que somos não colocamos nossos questionamentos em tais máquinas,
em parte pelo menos. Então com isso tudo, no ápice da nossa evolução tecnológica,
descobrimos como nos duplicar. Não era nascer como estávamos acostumados a ver, e
nem reproduzir como estávamos acostumados a fazer. Simplesmente duplicávamos.
Mas alguém disse que era errado, que não tínhamos o direito, que não podíamos brincar
de Deus. Só agora nos disseram isso?! Mas e se ao invés de duplicar o homem não o
fabricarmos como fazemos com máquinas. Elas agiriam iguais aos homens até nos
nossos questionamentos insaciáveis. Ninguém havia dito que era errado. Pelo menos,
até agora não.
Foi com essa ideia – ou muito próximo disso – que resolvi brincar de Deus e
criei Davi, um ser de vida artificial ou um androide se preferir. Devo ter escrito a
primeira história lá pelos fins de 2008 (realmente não me recordo – inacreditável eu sei)
sem pesquisa nenhuma, ou seja, sem grandes pretensões. No entanto, resolvi escrever
mais e até o final de 2009 já estava tudo pronto. Foi postado como uma série mesmo
num site1 e depois no meu blog pessoal2. Davi achava que tinha nascido como qualquer
um de nós e quando descobriu que não, fugiu para exatamente descobrir afinal a que
veio.
Assim como a primeira larva que deixou os oceanos, como nós que damos o
primeiro passo e falamos o primeiro “a”, ele também quer respostas, quer um sentido na
vida como todos nós temos feito desde o princípio dos tempos. É claro que eu sei para o
que ele veio ou foi criado. Contudo, não vou contar – não ainda pelo menos. Prefiro que
ele descubra sozinho e vocês também ou perguntem-se o porquê. Afinal, estamos aqui
para isso.

1-www.textolivre.com.br
2-grimorio2.blogspot.com
O Enterro
Havia dois meses que eu fugira do que reluto em chamar de lar. O céu estava
nublado, fazia um pouco de frio, não que eu realmente sinta, mas, para me misturar com
os outros, tenho que pelo menos fingir. Paro em frente a uma loja onde tem uma tela
exibindo o noticiário da manhã. Segundo o apresentador, 2284 não começou tão bem: a
supergripe tem feito mais vítimas e há rumores de que as colônias na Lua e em Marte
querem independência da Terra. Espero para ver alguma notícia sobre o acidente no
Centro de Tecnologia Nacional, entretanto, a única coisa que falam é a respeito da
mudança do CTN de São Paulo para Goiás próximo da capital. Eles encobriram tudo.
Até a fuga dos vinte “hóspedes” como eles chamavam. Fico pensando que a qualquer
momento posso ser encontrado e resolvo continuar andando. Para onde ainda não
sei. Caminhando pelo calçadão, tento encontrar um novo local para descansar quando
sou surpreendido com o barulho de rodas guinchando no asfalto seguido de gritos e
tumulto: alguém tinha sido atropelado. Um sem-teto, como dizem, e - acho que por isso
me solidarizei com ele - porque, de certa forma, eu também sou um sem-teto. Era um
homem, aparentava de quarenta a cinquenta anos, roupas bastante velhas, tinha barba e
estava um pouco sujo. A multidão que havia se aglomerado em volta já estava se
dispersando quando me surpreendi pela segunda vez: o motorista que tinha atropelado o
homem fugiu do local sem ao menos prestar socorro. Não sei se foi por vontade própria
ou por minha “educação” que decido ajudá-lo, mas faço-o assim mesmo e deixo a
dúvida para depois. Consigo ouvir seus batimentos cardíacos e estão fracos; o fêmur e
algumas costelas estão fraturados. Sei que há um hospital aqui perto, no entanto,
ninguém chamou uma ambulância. Resolvo levá-lo mesmo correndo o risco de agravar
sua situação. Chegando ao hospital, percebo que não será fácil conseguir ajuda médica.
O número de pessoas a serem atendidas é enorme – não fazia a menor ideia de que era
assim. Sou obrigado a deixá-lo no chão – não há assentos vagos e não vejo macas por
perto. Vou até o atendimento e relato toda a situação do meu, assim chamado, amigo.
Segundo o atendente, meu amigo, para ser atendido, precisaria estar registrado com
algum tipo de cartão de identificação que dá acesso a vários serviços, incluindo
hospitalares...

– O homem está sangrando e com os ossos partidos, digo a ele, mas de nada
adianta. Diante do descaso e da falta de compaixão sou tomado por algo que nem sabia
que possuía. Uma condição que todo ser humano está submetido e que espero nunca
mais repetir, pois me arrependi amargamente. Descontrole, raiva, fúria, não importa o
nome é algo que nos homens prefiro não espelhar. Arremesso cadeiras a esmo atingindo
quem está no caminho, portas de vidro e janelas são quebradas...

– VOCÊS VÃO AJUDÁ-LO, grito como um louco e só paro quando aparece na


minha frente uma garotinha de olhos grandes e azuis. Vejo meu reflexo neles e começo
a sentir o mesmo medo que ela sente por mim. Olho ao redor e vejo pessoas
machucadas onde deveriam ser tratadas, a entrada do hospital semidestruída e tudo por
minha causa. Quero tanto ser igual a eles e percebo que, por alguns minutos, eu consigo.
Ouço alguém dizer que a polícia está vindo. Toda a minha vida de cárcere volta à
memória e sou forçado a fugir deixando meu amigo a sua própria sorte. Tento correr o
mais longe que posso, mas, não consigo. Não consigo parar de acessar minhas
memórias e ver o que eu causei. Não há justificativas. Não importa o que aconteceu ou
o que eu sou. Apesar de temer pela minha segurança temo também pela vida do velho
sem-teto e decido não ir muito longe para voltar e ver se ele está bem. Acabo
encontrando um desses grandes centros comerciais e entro. Vejo um sanitário e me
escondo nele esperando que ninguém me encontre.

Passam-se cinco horas. São duas da manhã quando saio. Tento ouvir alguma coisa
sobre o incidente no hospital, mas só escuto banalidades e discussões alheias. Se a
polícia realmente foi ao hospital e me procurado, já devem estar longe. Preocupado com
meu amigo, decido voltar, mas tomando o cuidado para ninguém me reconhecer pela
rua. Lembro-me que atrás do hospital existe uma ruela onde deixam o lixo para a coleta;
um portão é usado para colocá-lo para fora. Resolvo usar esse portão para entrar
escondido e evitar chamar atenção. Adentrando a ruela, por entre caçambas e sacos de
lixo, acabo tropeçando num destes. Não sei como ou porque, mas percebo algo de
diferente em um. Era maior que os demais, com formato mais retangular... Uma mistura
de curiosidade e pavor me faz querer abri-lo. Reluto por um instante, mas abro-o assim
mesmo e aquele sentimento de mais cedo volta só que agora junto com outra coisa:
angústia, tristeza, indignação. Não sei se foi um ou todos de uma vez porque era a
primeira vez que eu sentia algo assim e de alguma forma sabia que não seria a última.
Ver o corpo do meu amigo jogado daquele jeito como um verdadeiro lixo me fez
questionar sobre que mundo é capaz de me criar, porém, não consegue ou não quer
salvar alguém como ele. Começo a sentir raiva de novo, mas, desta vez, de mim mesmo
que ao invés de ajudar acabei fugindo para me salvar quando era ele que precisava ser
salvo. Da minha memória encontro uma prática que os humanos costumam realizar
quando alguém morre. Decido fazer o mesmo sem realmente entender o significado
deste ato. Carregando o corpo flácido de quem agora chamo de Daniel, apenas Daniel,
até uma praça com árvores e gramado – uma das poucas que existe – e decido enterrá-lo
ali. Faço uma cruz, de acordo com o procedimento, com alguns galhos e, num pedaço
de madeira, escrevo: AQUI JAZ UM SER HUMANO. Detenho-me ali por alguns
minutos, quando o painel do meu pulso esquerdo se abre indicando baixa quantidade de
energia. Tenho que encontrar um local seguro e esperar o Sol nascer para me recarregar.
Enquanto me afasto do túmulo de Daniel, penso em tudo que aconteceu e mais uma vez
sinto angústia, pois, se foram capazes de fazer isso com um igual, o que farão comigo
quando me descobrirem.
Beatriz
Quatro meses! Já são quatro meses me escondendo, fugindo de um local para
outro para não ser encontrado por eles. No entanto, ando pela cidade como qualquer
pessoa faria. É uma maneira também de se esconder, já que, penso eu, eles podem achar
que ficaríamos escondidos o tempo todo, esperando acontecer algo. Acontecer o que?!
Quando penso nos meus irmãos, fico preocupado. Onde estarão? Será que estão feridos?
Foram encontrados? Tenho esperança que não e que estão bem em algum lugar. Reluto
em tentar entrar em contato com alguém temendo que nos encontrem, entretanto, de
alguma forma, tenho que saber como estão. De repente, como que programado, vejo do
outro lado da avenida alguém que não esperava ver tão cedo, mas, ao mesmo tempo,
como dizem, “morria de saudade”: era Beatriz. Está lá ainda gravado na minha
memória: seus exatos um e setenta e cinco de altura, seu cabelo louro e encaracolado, os
olhos verdes e um pouco castanhos, a pele que era de um branco suave como leite,
surpreendentemente, estava... bronzeada? Decido ir ao seu encontro não importando se
vão nos descobrir. O que eu sentia por ela e ainda sinto será que é amor? Nós realmente
somos capazes de sentir isso? Sem querer puxo do meu banco de memórias nossa época
no Centro: aquele desastrado esbarrão nos corredores foi o primeiro contato; a troca de
olhares nas salas de aula e nas reuniões começou a despertar não só interesse mútuo,
como também, alheio. Por isso começamos a trocar mensagens via intranet do Centro –
mensagens codificadas para que os diretores e tutores não desconfiassem. Numa dessas
mensagens marcamos nosso primeiro encontro, num depósito no subsolo onde
guardavam os mantimentos. No começo só conversávamos sobre nossa vida no Centro e
os sonhos que tínhamos quando estivéssemos fora dele – na época nos prometiam isso.
- Você gosta de mim, ela perguntou no nosso sexto encontro.
- Gosto sim, respondi e o seu sorriso parecia... não sei o que parecia era a
primeira vez que eu sentia algo assim.
- Sabe o que as pessoas fazem quando se gostam?
- Não, o quê?
- Elas se beijam.
- Como fazem isso, perguntei na mais sincera ingenuidade se isso é possível.
Então ela se aproximou e seus lábios tocaram os meus. Eram doces e tenros e parecia
durar uma semana. Os encontros, conversas e os beijos continuaram até o dia em que
aconteceu. Eu estava no dormitório junto com meu colega de quarto, Carlos, quando
ouvimos um enorme barulho: vinha da ala sul onde ficavam as quadras. Corremos até lá
e foi espantoso. Toda a parede simplesmente estava no chão reduzido a blocos
quebrados e poeira e no seu lugar, uma enorme abertura. Outros dos meus irmãos
também estavam no local e começaram a correr em direção da abertura na parede. Entre
os fugitivos estava Beatriz tão afoita quanto os demais.
- Beatriz! - gritei.
- Corra, Davi! Fuja! – ela disse – Antes que os guardas cheguem.
Corri em sua direção e já do lado de fora consigo alcança – lá.
- Para onde nós vamos? – perguntei.
- É melhor nos separarmos, vai ficar mais difícil nos encontrarem. - surpreendi-
me com a determinação e ao mesmo tempo com a ideia dela.
- Mas... - ela não me deixou terminar.
- Daremos um jeito de nos encontrarmos de novo, eu prometo! - e nos
despedimos não com um beijo e sim com cada um indo para um lado. Enquanto ela se
afastava, me perguntava quando aconteceria nosso próximo encontro. E me perguntava
isso até agora, até vê-la e enfim... Paro na frente dela esperando alguma reação, porém
nada acontece.
- Oi, quanto tempo!
- Desculpe, mas eu o conheço? - a impassibilidade na sua voz foi um tapa na
cara.
- Calma Beatriz, disse, não precisa fingir agora ninguém irá perceber quem
somos. - sua expressão de seriedade e espanto, aos poucos muda para raiva e medo.
- Senhor, eu não sei quem você é e meu nome não é Beatriz, é Bianca, Bianca
da Silva Vasconcelos, moro em São Paulo desde que nasci com meus pais e meus
irmãos e nunca vi o senhor na vida! Me desculpe, mas estou com pressa! - a certeza em
seus olhos quando disse aquilo me fizeram duvidar por alguns segundos que aquela
mulher na minha frente poderia não ser a Beatriz que conheci. Mas, era a Beatriz! Os
cabelos, os olhos, a altura, com exceção da pele bronzeada tudo conferia e eu sei que
não fomos criados para nos enganarmos quanto a isso.
- Beatriz, eu insistia, está tudo bem não precisa ter medo estamos juntos agora.
- Senhor, ela continuava convicta, se não me deixar ir vou chamar um policial.
- e de policiais era tudo o que eu não precisava naquele momento. Mas, se aquela não
era a Beatriz, então quem era e como pode ser tão idêntica a minha amada. A não ser...
só pode ser isso! O Centro, além de ter implantado memórias de outras pessoas, pode
também ter nos “fabricados” a partir destas mesmas pessoas, copiando suas feições.
Como puderam ser tão perversos. Ainda estou atordoado com tudo e a Bea... digo,
Bianca, continua com intenção de chamar a polícia
– Me desculpe, devo tê-la confundido com outra pessoa. - ela aceita,
educadamente e continua seu caminho. Eu também tenho que continuar o meu e arranjar
um jeito de encontrar meus irmãos e Beatriz, a minha Beatriz, mas, no momento, só
quero achar algum lugar onde eu possa ficar longe de tudo e de todos.

Enquanto Davi reflete sobre o que fará de sua vida, a moça que se diz chamar
Bianca segue no sentido oposto deixando cair de seu olho esquerdo um líquido
amarelado, semitransparente, oleoso ao toque e com um leve aroma de cereja.
Lembra uma lágrima humana.
Destino
Desde que fugi do CTN “sem eira nem beira”, com as pessoas dizem, venho me
perguntando o que farei da minha vida. Todos parecem saber qual é o seu futuro, sua
missão no mundo. É mesmo necessário ter uma? Viver por si só já não é o suficiente?
Parece que, para a maioria das pessoas, não. Então, tenho que descobrir qual é a minha
missão. Não nasci como as outras pessoas. Nunca passei pela infância e adolescência,
apesar das minhas recordações dizerem o contrário. Dizem alguns que seu futuro já está
escrito. Será que devo acreditar nisso? Se não sou humano, será que meu futuro está
escrito em algum lugar? Bom, esperava encontrar essas e outras respostas na Casa da
Madame Pandora. Encontrei este lugar por acaso e nas últimas semanas passava em
frente quase todo dia criando coragem para descobrir algo crucial para mim. “Madame
Pandora lê seu futuro por apenas um crédito”, diz a placa na porta ao lado de uma loja
de roupas e utensílios exóticos . Estava aguardando na sala de espera, por pelo menos,
uns vinte minutos. No sofá ao lado do meu mais duas pessoas – uma mulher
aparentando ser de alta classe e um homem com boné e estranhamente com óculos
escuros – esperavam, assim como eu, que Madame Pandora diga-lhes o que o futuro
lhes reserva. A porta do consultório se abre e de lá sai outra senhora com o rosto
vermelho de choro enxugando as lágrimas com um lenço e agradecendo a Madame por
algo que ela lhe disse. Será que foi algo bom ou ruim? – O próximo – ouço vindo de
dentro do consultório. Sou eu. Deixo meus pensamentos para depois. Depois que eu
souber, espero, se tenho ou não e qual é o meu futuro.
- Madame Pandora lhe dá boas vindas ao seu humilde estabelecimento. Sente-
se.
- Obrigado.
- Então, deseja saber o quê exatamente?
- Bem... eu quero saber qual é o meu destino.
- Seu destino. Por quê? Tem medo que algo de mal lhe aconteça?
- Acho que sim.
- Não quer ser mais específico. Não quer saber o que vai acontecer amanhã ou
depois. Saber se vai encontrar um grande amor ou ficar rico!
- Não, eu... apenas quero saber se eu tenho um futuro, um destino.
- Como se chama, meu filho?
- Davi.
- Davi do quê?
- Apenas Davi.
- Davi, me dê sua mão – ela a segura com as suas duas, fecha os olhos e começa
a sussurrar palavras sem sentido. Estranhamente geme e então...
- Davi, você terá uma grande missão pela frente!
- Qual?! – quase desesperado.
- Há um homem em seu caminho, eu o vejo: ele é alto, pele clara e usa um
casaco roxo.
- Mas, quem é ele? – desesperado de novo.
- Ele mudará a sua vida. Ele perguntará de onde você veio, e você responderá:
“eu venho dos campos e trago o novo alvorecer da humanidade!”.
Fico atônito durante alguns segundos. O que ela disse parece fazer sentido. O
Centro ficava afastado das cidades, ou seja, no interior, no campo e de certa forma eu
sou um alvorecer, uma novidade no mundo. Volto para Madame Pandora e ela parece
estar em um estado de transe.
- Eu vejo... eu vejo...você será...será... – ela hesita e depois – Não consigo ver
mais nada.
- Mais nada! Apenas isto: encontrarei um homem e ele mudará a minha vida.
Isso é bom ou ruim?
- Madame Pandora apenas diz o que vê e só o que vê – pareceu-me um pouco
evasiva, mas agradeço assim mesmo. Pago a quantia combinada e me despeço.
- Madame Pandora deseja que você encontre aquilo que procura – agradeço de
novo e ao sair, distraído, esbarro no homem com óculos escuros. Peço desculpas e saio
do consultório com mais perguntas que respostas.
No dia seguinte, ainda pensando sobre o que Madame Pandora disse, me
pergunto se o meu destino se resume a isso ou é apenas o começo da minha verdadeira
missão. De repente paro e percebi que estava indo na direção do consultório da vidente.
Devia ser apenas distração. Mudei a direção para um dos postos de uninet da cidade.
Ainda precisava saber como e onde estão meus irmãos. Atravessei a avenida correndo e
sem querer trombo com um homem. Um homem alto, de pele muito clara e vestindo um
casaco... um casaco roxo! Fico paralisado olhando para ele e ele, para mim. Então, ele
se aproxima um pouco mais e diz:
- Mas afinal de onde você veio – É incrível, exatamente como Madame Pandora
previu. Parece que minha missão enfim vai começar.
- Eu venho dos campos e trago o novo alvorecer da humanidade – respondo de
forma mais clara possível e fico esperando o que ele me dirá em seguida. Então, quando
achei que ele ia falar, alguém atrás de mim me agarra pelos dois braços, o próprio
mensageiro da minha missão tapa minha boca com a mão e os dois me levam para
dentro de um veículo e me jogam na parte de trás. Na frente tem outro me esperando e
só mais tarde descobri que não só ele como todos realmente me aguardavam.
- ONDE TÁ? – grita o sujeito da frente – ONDE TÁ?! ME ENTREGA
AGORA!!
- O que, eu não sei o que você quer... – assustado, sou interrompido.
- O pacote, não enrola, me entrega o pacote.
- Mas, que pacote? – agora além de assustado, fico confuso. – Eu não sei que
pacote você... – e sou interrompido de novo, desta vez por uma arma apontada para a
minha cabeça.
- Eu só vou perguntar mais uma vez, onde tá o pacote?
Ele está irado, nervoso. Eu fico paralisado diante dele e daquela arma. O que
está ao meu lado, o alto de casaco roxo, resolve se pronunciar:
- Calma, Liceu, calma. Ele é apenas um fio.
Um fio. Ele disse que sou apenas um fio. Ainda ouviria essa palavra de novo e
aí entenderia o seu significado para essa gente. Eles me revistam e acham o que
procuram.
- Tá aqui, tá tudo aqui, diz o de casaco roxo. Não é exatamente um pacote e sim
três tubos de ensaio amarrados com um elástico. Há um líquido azul dentro deles e eu só
posso imaginar o que é e como foram parar no bolso da minha jaqueta.
- Bom, agora é arranja um jeito de apaga o infeliz – diz Liceu.
- Peraí, Liceu, isso não tava combinado.
- Ele sabe da situação, viu nosso rosto!
- Ele não vai falar nada, diz o outro ao meu lado, vai fingir que nunca
aconteceu, né não Davi?
Ele sabe o meu nome! É claro! O homem na Madame Pandora de boné e óculos
escuros! Ele esbarrou em mim. Foi assim que o “pacote” veio parar no meu bolso.
- É, eu... nunca vi vocês na minha vida – era a primeira de muitas mentiras que
terei que falar para sobreviver neste mundo.
- Tá, tá, só quero ver.
A porta do veículo é aberta e sou simplesmente jogado para fora. O carro sai em
disparada sem nenhum tipo de despedida. Eu fui usado e fico com a impressão que não
será a última vez. Comecei a ficar nervoso e só consegui ver o consultório da Madame
Pandora na minha frente. Sem pensar duas vezes segui para lá. No caminho minhas
lembranças tomam vida e invadem minha mente. Estou no Centro de novo numa das
aulas com um dos tutores e em determinado momento ele fala a nós: “vocês são muito
especiais, lembrem-se sempre disto. Há uma grande missão esperando cada um de
vocês”. Como não lembrei disto antes. Eles nos diziam que teríamos um papel
importante a cumprir no futuro. Será que é disso que estavam falando? Seríamos usados
pelo Centro como eu fui hoje para algum fim obscuro. Deixo minhas reflexões de lado.
Quando chego ao consultório, subo direto as escadas. Na sala de espera há duas
senhoras esperando...
– VOCÊS ESTÃO SENDO ENGANADAS, ELA MENTE! – grito na
esperança que percebam o erro que estão cometendo. Não espero ser anunciado.
Arrombo a porta com o pé para que ela saiba o quanto estou furioso.
– SAIA!! – grito para o senhor que está sendo atendido pela Madame Pandora e
imediatamente me volto a ela.
- VOCÊ ME ENGANOU, ME ENGANOU!!
- Mas o que Madame Pandora pode fazer ... – não a deixo terminar, empurro a
mesa com tudo para a parede e a agarro pelos seus colares no pescoço.
- Por que você me enganou? Que mal lhe fiz?
- Eu não tive escolha, eles me obrigaram.
- Mentira! Eu fui sincero com você, só pedi uma coisa e você me usou. O
quanto ganhou com isso.
- Olha, eu sou tão vítima quanto você. Eu tenho um filho. A única maneira de
me deixarem trabalhar é fazendo o que eles mandam. Acredite em mim, por favor!
- Por que devo acreditar? Por que me escolheu? Será que pareço tão ingênuo?
- Olha, eu não sou uma vigarista completa, tá. Eu realmente vejo coisas. Não
claramente, mas vejo: flashes, lampejos de imagens, alguma coisa. Mas com você não
vi nada, absolutamente nada. Então como precisavam de alguém aproveitei a
oportunidade. Mas não foi nada pessoal, acredite não me machuque, por favor...
Ela está em prantos e eu ainda cego de raiva deixo meu punho em riste na sua
direção. Então, algo em mim desperta. Paro um instante e desisto da insanidade que iria
cometer. Largo-a de qualquer jeito e saio sem olhar para trás.
– Obrigada, muito obrigada – a ouço falando, mas continuo andando. Na rua,
não consigo deixar de pensar no que ela disse. Ela não viu nada do meu futuro. Sei que
não devo acreditar nisso, contudo, não consigo. Não nasci como os humanos, fui
“fabricado”, no entanto, sou bem mais que uma máquina. Sendo assim, parece que meu
destino é delegado por pessoas cujos poderes vão além dos meus. NÃO! Recuso-me a
aceitar isso! Se não tenho um futuro definido, se ele não está escrito, então eu mesmo o
escreverei.
Inocente

/C-A-R-L-O-S H-Á Q-U-A-N-T-O T-E-M-P-O? O-N-D-E V-O-C-Ê E-S-T-Á?/


/E-S-T-O-U E-S-C-O-N-D-I-D-O E-M U-M A-L-B-E-R-G-U-E/E V-O-C-Ê O-
N-D-E E-S-T-Á-?/
/N-O M-O-M-E-N-T-O N-U-M-A L-A-N T-E-C-L-A-N-D-O C-O-M V-O-C-
Ê/O Q-U-E T-E-M F-E-I-T-O/T-E-M C-O-N-T-A-T-O C-O-M M-A-I-S A-L-G-U-É-
M?/
/N-Ã-O I-F-E-L-I-Z-M-E-N-T-E/E-S-T-O-U P-R-E-O-C-U-P-A-D-O/V-A-M-
O-S N-O-S E-N-C-O-N-T-R-A-R E-M A-L-G-U-M L-U-G-A R.
/T-A-L-V-E-Z J-U-N-T-O-S P-O-S-S-A-M-O-S E-N-C-O-N-T-R-A-R O-S O-
U-T-R-O-S/
/C-O-N-C-O-R-D-O/M-E-U T-E-M-P-O A-Q-U-I E-S-T-Á A-C-A-B-A-N-D-
O/V-O-U P-R-E-C-I-S-A-R D-E M-A-I-S C-R-É-D-I-T-O-S/T-E-N-T-E C-O-N-E-C-T-
A-R-S-E N-A U-N-I-N-E-T A-M-A-N-H-Ã N-E-S-S-A M-E-S-M-A H-O-R-A/C-O-B-
I-N-A-R-E-M-O-S T-U-D-O/
/O-K/N-O-S V-E-M-O-S A-M-A-N-H-Ã/
Sinto-me mais aliviado agora que encontrei alguém. Ainda mais Carlos, meu
colega de quarto. Enquanto saio da lan-house, penso em alguma maneira de conseguir
mais créditos para voltar a falar com ele amanhã. Talvez se eu for ao asilo ver se
precisam de mais serviços de jardinagem ou naquela escola de música, parece que
sempre precisam de uma ajuda extra com a faxina. Caminhando pelos corredores do
centro comercial meus pensamentos, de repente, são interrompidos por um...
atropelamento? É um garoto, baixinho, aproximadamente uns nove, dez anos de idade -
“me ajuda moço, me ajuda!” - diz ele desesperado e assustado. É quando vejo vindo
logo atrás dele três seguranças apontando em minha direção e cada um armado com
bastões de contenção. Por alguns segundos fico paralisado de medo também. Os
seguranças troncudos, vestidos de preto me lembram muito os do CTN. Em algumas
ocasiões não mediam esforços para manter ordem no local.
- Foge não ladrãozinho! Agora a gente te pega! – diz um deles pegando o
menino pelo braço.
- Não, me larga! - grita o garoto chamando a atenção de todos ao redor. - Não
deixa eles me levarem moço, por favor, eu não fiz nada!
- Cala a boca, moleque! Fica quieto! - diz outro segurança.
- Esperem, resolvo intervir, o que este garoto fez de tão grave?
- Ele é um ladrãozinho safado, senhor. Não se preocupe. A gente cuida disso.
Os seguranças o levam apesar do garoto se debater e espernear pedido socorro.
Na verdade, só incita mais violência por parte deles e todos que estavam em volta,
olhando o garoto ser puxado e agredido, voltam-se a sua caminhada como se nada de
mais tivesse acontecido. A frieza que as pessoas demonstram em certas situações me
assusta. Ninguém sequer esboçou qualquer reação para ajudar o menino. Nessas horas,
me orgulho de dizer que não sou humano. Recuso-me a pensar ou agir dessa forma.
Resolvo ir atrás deles na esperança de convencê-los a abrandar seu procedimento. Há
maneiras menos agressivas de lidar com essas situações, ainda mais tratando-se de uma
criança. Aperto o passo e consigo vê-los entrando num dos acessos ao estacionamento e
abrindo uma porta numa das paredes no que se parece ser uma espécie de sala. Não
consigo alcançá-los a tempo, eles fecham a porta. Mal encosto meu rosto contra ela e
ouço um som abafado parecendo um tapa. Grudo meu ouvido e consigo ouvir o que
parece um choro de criança seguido de um “pare”. Não suporto mais. Forço a porta com
o pé e no que se abre vejo uma cena de extrema covardia: os três seguranças em cima do
garoto! Enquanto um o segura, outro lhe aplica sucessivos tapas no rosto; o terceiro, o
cutuca nas costas com o bastão de contenção. Com o barulho da porta sendo arrombada,
eles cessam, pelo menos por ora, com a brutalidade.
- Sai daqui, cara, isso não é assunto seu! – diz um deles se dirigindo para mim.
- SOLTE O MENINO! – grito enfático. Um deles vem pra cima de mim. Eu
pego-o pelo colarinho e jogo-o contra a parede. Somente dessa forma os outros dois
largam o menino e voltam sua atenção para mim. O que vem na frente tenta me atacar
com o bastão. Tenta! Sou mais rápido! Seguro-o com a mão, giro e acerto uma
cotovelada no seu nariz. Enquanto este cai no chão, com o rosto em sangue, o que vem
atrás agarra meu braço e esmurra meu estômago. Chego a curvar mais pelo impacto do
que por dor – que não sinto. Então, enquanto ele segura meu braço também agarro o
dele e puxo com toda força fazendo com que minha cabeça se choque contra sua testa.
Com o terceiro e último segurança caído no chão, volto-me para o menino.
– Vamos sair daqui! – puxando-o pelo braço e correndo em disparada em
direção a porta e a saída do centro comercial antes que alguém perceba meu impetuoso
resgate e chame mais seguranças.
Chegando à calçada, levo-o direto a estação de metrô mais próxima. É o
transporte mais rápido que existe evitando assim qualquer tipo de perseguição. O
menino não fala, mas parece concordar.
- Qual é o seu nome? – pergunto já dentro do trem.
- É Pedro, moço, responde meio assustado ainda. Os hematomas no rosto lhe dão
motivo para tal.
- Por que o pegaram, Pedro?
- Porque... - hesita um pouco, mas responde. - Eles acharam que eu peguei
alguma coisa. Mas não peguei nada não moço! Sou inocente!
- Me chame de Davi, Pedro e não se preocupe, está a salvo agora – tento acalmá-
lo dizendo isso. – Onde mora? Levarei você pra casa.
- Moro no campo habitacional trinta e um, na zona norte.
- Tudo bem, chegaremos logo.
Cinco estações e mais três quarteirões a pé depois chegamos ao chamado
CAHESP unidade trinta e um. Segundo o governo, o local servirá em breve para a
construção de moradias para as pessoas de baixa renda. O que se vê na verdade é um
amontoado de barracos colados um ao outro, quase sem nenhuma organização e muito
menos limpeza. Lugares assim eram chamados de favelas no passado. É incrível como a
humanidade evolui em alguns pontos, mas em outros parece simplesmente relutar
quando o assunto envolve pessoas carentes.
- É ali, Davi, o número vinte e dois - Pedro me mostra seu lar, modesto claro
como todos os outros. – Daqui eu vou sozinho, Davi, obrigado – diz ele apressado.
- Espere Pedro, deixe-me levá-lo até a porta, talvez eu deva falar com seus pais.
- Não Davi, não precisa, eu... – ele é interrompido por um homem que sai de sua
casa parecendo mais um bicho do que um ser humano: gordo, sujo, barbudo, roupas
igualmente sujas e rasgadas, mais balbucia do que fala. Obviamente está bêbado.
- Onde tu tava, muleque? Já falei pra num sai sem eu dexá! Vô te ensiná a não
me obedecê!
Ele pega Pedro pela camisa e fecha sua mão em direção ao menino. Ele bateria
em Pedro ali mesmo na rua com todos olhando. Bateria, porque eu não deixo! Quando
ele vai desferir o soco no garoto, seguro seu pulso, é quando ele nota minha presença.
- O quê que... quem é... hu, ahhhhhh! – Não o deixo falar, aperto seu pulso e
imediatamente ele larga Pedro. Com mais força, faço-o ajoelhar-se diante de nós dois.
- Faz isso não Davi, por favor! – tento ignorar os apelos de Pedro, mas é difícil.
A compaixão que ele demonstra pelo pai mesmo com o que estava prestes a fazer é
comovente. – Ele é meu pai Davi, solta ele! – e o faço. Há muita gente em volta e eu
não quero chamar mais atenção. Resolvo ir, mas não antes de deixar um aviso.
- Eu voltarei depois para ver o menino, dirigindo-me ao pai ainda ajoelhado no
chão, se eu ver ou perceber que ele foi agredido, você receberá o triplo! Entendeu? – ele
resmunga algo intraduzível e baixa a cabeça. Espero mesmo que ele tenha entendido.
- Tá tudo bem Davi, pode ir.
- Preciso mesmo ir Pedro. Voltarei o mais rápido que puder.
- Tá Davi, obrigado – me despeço e na saída do campo habitacional dou uma
última olhada para trás e vejo Pedro segurando seu pai pelo braço e o levando para casa.
Sinto um certo arrependimento ao deixá-lo sozinho.

Dois dias depois, volto para ver Pedro. Queria poder voltar antes, mas fiquei
receoso com a atenção que chamei para mim tanto no centro comercial, quanto aqui.
Com o resto dos meus créditos trago um presente para ele: um carrinho em miniatura.
Não há muito destes por aí. Foi mesmo sorte tê-lo achado. Estou bem próximo da casa
de Pedro quando vejo mais abaixo, a minha direita, pessoas correndo e um tumulto
perto do que será no futuro uma praça. Não quero desviar meu caminho e volto-me para
a casa do Pedro. É então que ouço alguém gritando: “É ELE SIM, É O PEDRINHO!”
Mal posso acreditar! Será que é o mesmo Pedro? Fico em dúvida alguns segundos, se
vou ou não ver. Decido ir, não há outra alternativa. Chego até onde está a multidão. Eles
fazem um círculo e no meio tem um corpo. Um corpo pequeno para a idade, penso eu,
nove, dez anos; muito baixinho, mas já falava como um homem. Pedro, um garoto
inocente, morto pelo quê, por quem? É claro que esta pergunta tem uma resposta. Eu
avisei a ele. Se acontecesse algo, se ele fizesse algo... Isso não ficará em pune! Ele não
matou apenas o filho, matou também as esperanças e os sonhos que este garoto tinha ou
poderia ter. Não lhe deu a mínima chance. Eu também não darei! De repente, sinto uma
espécie de aperto dentro de mim. Algo querendo sair. Sinto um líquido oleoso,
amarelado, escorrer do meu olho esquerdo... Não pode ser! Eu posso chorar?! Esqueço
um pouco isto e me volto para Pedro. Resolvo deixar meu presente ao seu lado.
Exatamente como deveria ter sido e vou atrás do seu assassino. Tenho um palpite de
onde ele possa estar. Há um bar em frente ao campo habitacional, atravessando a
avenida. O lugar é pequeno, mas movimentado. Há diversas mesas na entrada e nos
fundos um balcão, onde servem as bebidas. Vejo-o logo de cara, é fácil reconhecê-lo,
está do mesmo jeito e com a mesma roupa. Chego a sentir pena. Aproximo e toco no
seu ombro para chamar sua atenção.
- O quê que é que você quer?
- Não se lembra de mim, eu o avisei.
- Me avisou, avisou do quê mané, sai fora!
Minha paciência se esgota. Puxo-o pela camisa e jogo-o no chão. Ele se assusta
e tenta se levantar, mas eu não deixo. Pego-o pela gola da camisa e lhe dou um soco,
depois outro e mais outro...
- Eu o avisei que se fizesse algo com Pedro você receberia o troco! POR QUE
FEZ ISSO? POR QUE O MATOU? Era apenas uma criança! POR QUÊ?
Não sei quanto tempo o esmurrei até que algumas pessoas do bar me segurassem
e me afastassem dele.
- ME DEIXEM, gritei, não viram o que ele fez, ele merece!
Havia uns cinco ou seis em cima de mim. Eu estava transtornado. Não sei como
consegui ouvir a voz da mulher que o atendia no bar, mas ainda bem eu ouvi, pois
senão, cometeria um grande erro.
- Para moço, para! – ela suplica. – Não foi ele, ele não matou Pedrinho!
- O quê?! Como não foi ele? Ele bate no filho!
- Bate sim, mas só quando tá bêbado. Ele nunca mataria o filho.
- Mas então quem...
- Foi o Tino! Ele é o traficante daqui. O Pedrinho era o fio dele e devia dinheiro.
Não foi o pai moço, ele é inocente!
Inocente! Quem de fato é inocente nesse mundo. Se um garoto que roubava e
vendia drogas é inocente, se um pai negligente e alcoólatra é inocente, então não sei
mais o que é inocência. Será que só eu sou ainda tão inocente, ou será que não mais?
Eles me soltam, então começo a correr. Corro e fujo para longe. Longe destas pessoas,
longe de Pedro, de tudo. Uma, duas horas depois percebo que, por mais que eu corra,
não posso fugir de mim mesmo. Esta fúria que sinto, esta força dentro de mim, não é
normal. Não foi a primeira vez e não será a última. Há apenas uma maneira de saber o
que está realmente acontecendo comigo. Existe uma pessoa que pode me ajudar, mas é a
última pessoa que eu procuraria. Infelizmente, não tenho escolha se eu não quiser
machucar mais alguém. É isso, vou procurá-la e sei exatamente onde ela está. Carlos
terá que esperar mais um pouco...
O Retorno

A viagem dura em média uma hora a partir da estação de trem do centro da


cidade até aqui em São Marcos. Do terminal de trem até o bairro onde ela mora é mais
uma hora a pé, meia se for de ônibus ou de carro. Vou a pé. Chego no tempo estipulado;
não quero ter pressa apesar de tudo. Estranho um pouco o local, muito diferente da
“cidade grande” onde só existem prédios enormes, grandes avenidas e gente que não
acaba mais. Aqui apenas se ouve passarinhos piando nas árvores – há árvores! – e
algumas crianças brincando num jardim próximo. Os sobrados são todos iguais: quintal
grande na frente com um pequeno jardim, não existem cercas ou muros, as portas duplas
na entrada parecem realmente convidar-nos a entrar, contudo, as janelas de fibra de
carbono e vidro reciclado deixam uma certa frieza na paisagem bucólica; o que os difere
são as cores, salvo um ou outro com a mesma pintura, entretanto, estes, encontram-se
em ruas diferentes e os números evitam maiores confusões. É no número vinte da
segunda rua que eu me dirijo. Curiosamente a única casa do bairro todo que é branca.
Fico em frente ao quintal esperando que algo ou alguém me impeça de continuar. Nada
acontece. Então continuo. Em frente à porta, hesito para apertar a campainha. Não sei
quanto tempo fiquei ali parado pensando em outra solução, mas quando a porta abre e
Danielle aparece na minha frente, vejo que não há mais nenhuma escolha. Ela não
mudou praticamente nada: continua esbelta, alta, mesmo de sandálias; o contraste da sua
pele alva com o cabelo liso e preto só exalta sua seriedade; os olhos claros dão um ar
de... sensualidade? O conjunto monocromático em pastel alardeia a sobriedade desta
mulher de trinta e um anos com doutorado em neurociência aplicada em genética e
robótica.
- Não quer entrar, Davi? – a voz é calma e suave, tão suave que faz você se
sentir seguro e tranquilo. Não, não quero penso comigo mesmo, no entanto, não tenho
outra escolha. Quando entro na sala pareço estar dentro de um dos consultórios do
Centro, é bem frio em todos os sentidos. As paredes, assim como as de fora, são
totalmente brancas como se fossem uma extensão de sua pele; há pouquíssimos móveis,
todos feitos de plástico sintético. Não há nenhum quadro na parede ou outro objeto de
decoração, apenas os três sofás e uma mesa de centro no meio. Não ficarei surpreso se
tudo estiver milimetricamente disposto.
- O chá que estou preparando está quase pronto. Por que não se senta?
- Como sabia que eu viria, Danielle?
- Você sempre veio a mim quando tinha algum problema. O que aconteceu não é
diferente. Ou é?
- Mas você estava me esperando, nem apertei a campainha... Como sabia?
- Da mesma forma que você sabia exatamente onde fica a minha casa.
- Como?!
- Cada um de vocês tem na memória a localização de um local específico onde,
por algum tipo de caso especial, poderão encontrar seus respectivos tutores. No seu
caso, eu.
- Mas, como é possível? Vocês sabiam que íamos fugir? E se sabiam, por que
deixaram, foi outro teste?
- Não, não foi um teste, Davi, foi um acidente. Vocês não deviam ter fugido.
Quanto ao resto... bom, Davi, eu sei tudo sobre você.
- Tudo o quê? – o sofá é frio e duro.
- Tudo. O que você quer saber?
- Quem... sou eu?
- Não vou mentir para você, Davi, vocês são o ponto máximo da criação
humana. Uma nova forma de vida. Mais que uma máquina, mais que o próprio homem,
vocês são quase o ser perfeito.
- Então, eu sou um androide não é isso! Um ser artificial!
- Não, Davi, vocês são uma nova espécie de ser vivo, entende. Será que é
necessário que um ser nasça do útero de uma mulher para ser considerado humano?
Séculos atrás, crianças foram geradas em incubadoras e chamadas de “bebês de
proveta”, eles foram considerados artificiais? Em outros casos, mães com problemas de
gestação tiveram a concepção dos gametas masculino e feminino fora do útero e,
posteriormente, introduziam-no o embrião. Um procedimento artificial gerando um ser
natural. E hoje que tem pais que praticamente encomendam seus filhos definindo, antes
de nascerem, a cor do cabelo, olhos, altura, e até prevendo e tratando de possíveis
doenças que possam se manifestar no futuro. Isso também poderia ser considerado
artificial e, no entanto, não é. Você é tão normal quanto qualquer um.
- Isso não faz sentido, Danielle. Meu corpo não é igual ao de um homem normal,
meu cérebro parece mais um computador do que um órgão humano...
- Davi, seu corpo não precisa ser igual ao de todo mundo, ele é diferente, melhor
até do que todos nós e quanto ao seu cérebro, afinal o que é o cérebro senão outra
espécie de computador que...
- PARA, PARA, CHEGA! Pode parar aí mesmo! Eu sei que sou um androide,
certo. Mais que uma máquina, sim, mas menos do que um ser humano porque o que
sinto, minhas lembranças do passado, é tudo falso. Você mesma disse que somos
programados. Eu só quero saber para o que, afinal, fomos programados para fazer.
- Tudo bem, Davi, acalme-se e continue sentado, eu lhe direi o que quer saber.
- Não, eu não vou me sentar! Eu estou confuso, com medo, machuquei algumas
pessoas e não estou conseguindo me controlar. Eu vim aqui porque não tinha mais
nenhum outro lugar onde encontraria ajuda e, infelizmente, você é a única que pode me
ajudar. E então, vai me ajudar?
- É claro que vou ajudá-lo, Davi, sempre ajudei. Conte tudo o que aconteceu,
você disse que machucou pessoas?
- Sim... eu tenho momentos que simplesmente não consigo me controlar e acabo
agredindo certas pessoas ou destruo o lugar em volta. Por que isso acontece?
- Muito bem, Davi, diga-me: essas pessoas que você diz ter machucado atacaram
você?
- Por que me pergunta isso?
- Bom, Davi, vocês foram, por falta de um termo melhor, programados com algo
que chamamos de autodefesa. Vocês possuem noções básicas de luta que é ativado
quando sentem que vocês mesmos ou alguém que querem proteger estão ameaçados de
alguma forma. Fale, isso aconteceu? – Lembro-me dos guardas no centro comercial e do
pai de Pedro.
- Sim, aconteceu, mas por que temos isto e por que não consigo controlar?
- Conte-me uma coisa, Davi, como andam seus sentimentos, suas emoções...
tem gostado de alguém, algum tipo de afeição, amizade ou mesmo amor? – Mais uma
vez lembro-me de Daniel, Pedro, Carlos e Beatriz.
- Sim, tenho sentimentos por algumas pessoas e acho que você já sabe disso. E o
que tem a ver, por que é tão importante?
- Bom, Davi, vocês também foram programados com o que chamamos de
emovirtu. É um programa experimental que simula emoções, ou seja, em determinada
situação o emovirtu se ativa e “diz” a você o que ou como sentir.
- O quê?
- Isso mesmo, Davi. Infelizmente, o emovirtu apresentou algumas falhas e
acredito que são essas falhas que o faz se descontrolar. Era por isso que vocês não
podiam fugir e, por isso, vou te pedir agora: volte Davi! Volte para casa. Tenho certeza
de que lá poderei ajudá-lo.
- Voltar! Você quer que eu volte pro CTN? Aquele lugar mais parece uma
prisão! Mal podíamos tomar um simples banho de Sol. Não, eu não vou voltar. Quero
que me ajude aqui mesmo!
- Davi, preste atenção, eu só posso ajudá-lo no CTN. Não tenho o equipamento
necessário aqui comigo. Volte Davi, além do mais, não há mais nenhum sentido que só
você fique aqui fora.
- Como assim?!
- Davi, só falta você. Todos os outros já retornaram. Você é o único que resta.
- Mentira! Não faz menos de dois dias que falei com Carlos! Ele ainda está por
aí e outros também.
- Davi, Carlos foi um dos primeiros que capturamos. Não há mais ninguém, só
você. Por favor, volte.
- Mas como? Eu falei com ele! Como ele foi um dos primeiros capturados se...
não, não pode ser. Eram vocês! Vocês falavam comigo se passando por Carlos. Vocês
me enganaram! Você me enganou, não foi? Vamos, fale alguma coisa! – mas ela não
fala nada, apenas me olha com aqueles olhos, aqueles olhos claros de uma sensualidade
estranha, uma sensualidade fria. São como dois cubos de gelo me fitando.
- Por quê? Por que tudo isso? Por que afinal estamos aqui?
- Davi, ouça-me...
- RESPONDA! Por que vocês nos criaram?
- Acalme-se, Davi. Muito bem, nós criamos vocês... para serem a salvaguarda da
humanidade.
- Salvaguarda?!
- Isso Davi. Veja: nos últimos tempos a humanidade passou por horríveis
catástrofes: no século vinte e um, houve a Terceira Guerra Mundial e o Segundo
Dilúvio; no século vinte e dois, A Grande Seca assolou metade do globo e vitimou mais
gente do que qualquer guerra ou epidemia viral; e agora, temos a supergripe. O homem
está se extinguindo, Davi. Por causa disso tudo as pessoas estão parando de ter filhos.
Sei que as cidades estão superpopulosas, mas isso é porque há poucas ainda com
estrutura de moradia e oferta de emprego. A maioria está preferindo viver nas colônias
lunares ou marcianas mesmo com toda a precariedade. Foi por isso que criamos vocês.
Vocês não envelhecem e, no caso da civilização chegar a níveis muito baixos de
natalidade, serão vocês que guiarão e manterão a vida dessas pessoas, para que, de
geração em geração, o homem floresça novamente e torne-se autossuficiente.
- E nós, Danielle?
- O quê, Davi?
- Quando o homem ficar autossuficiente não seremos mais úteis, certo? Então, o
que farão conosco?
- Ora Davi, vocês ainda terão um lugar nessa nova civilização. O conhecimento
e a experiência que vocês têm e terão será tão importante quanto...
- Não adianta!
- Como, Davi?
- Não adianta, eu não acredito mais em você.
- Davi... eu não sei mais o que posso dizer...
- Então não diga mais nada. Durante todo o tempo no CTN você só mentiu pra
mim e mente agora também. Eu não sei onde estava com a cabeça quando pensei que
podia me ajudar e é óbvio que não pode e nem mesmo quer!
- Eu quero te ajudar, Davi. Não faça isso, pode estar cometendo um erro.
- Meu único erro foi ter confiado em você, Danielle. Não farei isso de novo.
- Davi, não!
- Adeus, Danielle.
Eu devia estar muito distraído com a discussão que não percebi que havia
movimento ao redor da casa. Só quando me volto para a porta é que vejo vultos pela
janela: são três... não, quatro lá fora aproximando-se. Volto-me outra vez para Danielle
e ela está sentada imóvel, é quando mais três guardas do CTN adentram a sala vindo do
interior da casa. Ao mesmo tempo ouço a porta da sala sendo arrombada e os guardas
do lado de fora invadem o recinto. Eles estavam me esperando, ela estava me
esperando, era uma armadilha e só percebi muito tarde. E antes que eu pudesse pensar
em fugir ou atacá-los, sou atingido por um taser nas costas, outro no braço, mais dois no
peito e é o suficiente para que eu caia. Enquanto me debato no chão, Danielle se
aproxima e ejeta com uma seringa laser algo que faz com que meu corpo paralise – Vai
ficar tudo bem, Davi – diz ela com aquela voz suave. Sou colocado em uma maca e
levado para um furgão. Estou voltando para o CTN. Contra a minha vontade por
pessoas que confiei um dia. Voltarei à minha maternidade, meu lar da infância e
adolescência, a minha escola e o meu trabalho. Retorno ao lugar onde nasci e que, muito
provavelmente, será o lugar onde morrerei. Espero morrer um dia.

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