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I N T R O D U Ç ÃO

Na madrugada de 24 para 25 de Janeiro de 1835 centenas


de africanos, escravos e libertos, se insurgiram nas ruas de
Salvador. Constituindo-se, em sua grande maioria, de iorubás
islamizados, os rebeldes malês estavam bem organizados e
uniformizados conforme os guerreiros islâmicos que lutavam nas
guerras santas da África, trazendo versículos do Qur’an
pendurados em seus corpos. Este evento ímpar da História
nacional ficou conhecido como “A Revolta dos Malês”.
A insurreição acabou dominada pelas forças oficiais após
algumas horas de combate. Os rebeldes sobreviventes foram
sujeitos a penas que iam da deportação forçada à África até a
pena de morte, passando por acoites e galés.
Esta pesquisa pretende analisar a erudição religiosa na
comunidade afro-muçulmana dos Malês e o papel por ela
desempenhado na resistência cultural e na insurgência por estes
encabeçada na Bahia da primeira metade do século XIX, em
especial na grande rebelião de 1835. Particularmente, pretende
analisar as relações existentes entre as escolas e mesquitas
clandestinas e dos mestres que nelas ensinavam com a erudição
islâmica presente no Bilad-as-Sudan (África Ocidental, território
onde hoje se localizam países como Nigéria e Senegal) durante
os jihads dos séculos XVIII e XIX e a ascensão do Califado de
Sokoto, bem como a transposição de confrarias místicas da
África para a Bahia.
Raimundo Nina Rodrigues, um dos primeiros autores a
estudar o tema, em seu livro “Os Africanos no Brasil” (1976)
considerou a “Revolta dos Malês” uma continuidade dos jihads
africanos, em especial o movimento encabeçado por Usman dan
Fodio, reformador religioso, professor e jurisconsulto islâmico
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fulani, fundador de um extenso império, o Califado de Sokoto. A


tese de Rodrigues foi contestada, através do século XX, por uma
série de autores de orientação marxista e por outros que
enfatizavam o princípio de solidariedade étnica e desprezavam
os fatores culturais e religiosos ou conjugavam-os, subordinando
os últimos ao primeiro, como fez João José Reis (2003) em seu
volumoso “Rebelião Escrava no Brasil”, considerada “obra
definitiva” sobre os malês.
Neste trabalho a utilização de material em língua
estrangeira foi reduzido ao absolutamente essencial, já que
desprezá-lo de todo tornaria particularmente problemático
abordar o tema do Islão e dos movimentos reformistas na África
Ocidental, em vista da reduzida bibliografia disponível em
português. Os trabalhos de Nina Rodrigues (1976), José Cairus
(2002) e João José Reis (2003) constituem as principais fontes
utilizadas na pesquisa, todavia, o material de referência é bem
mais vasto.
Dividimos o trabalho em cinco capítulos. O primeiro
tratando da historiografia do tema das revoltas malês. O
segundo e terceiro tratam das origens do Islão e da erudição
islâmica na África do Oeste, seu desenvolvimento e
peculiaridades, bem como a ascensão das irmandades sufistas e
dos movimentos reformistas na região. O quarto e o quinto
capítulos tratam da presença do Islão na Bahia da década de
1830, da comunidade afro-muçulmana e de seu intenso
movimento de expansão proselitista no período, da análise dos
perfis, organização e estratégias da erudição islâmica baiana
(malams, alufás) e suas implicações para a grande insurreição
afro-muçulmana de 1835, a Revolta dos Malês.
Ao iniciarmos a pesquisa partimos do pressuposto de Nina
Rodrigues, para quem a Revolta dos Malês tratou-se,
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ideologicamente, de uma continuidade das guerras religiosas


travadas na África Ocidental, inspiradas por lideranças
reformistas e puritanas, particularmente por Usman dan Fodio e
seu movimento de jihad. Levamos em consideração, também, a
proposta de José Cairus que sugere que os malês se
organizavam, na Bahia, em irmandades sufis (turuq, sing.
tariqa).
No presente trabalho preferimos privilegiar, na grafia dos
termos islâmicos, o uso mais corrente entre os eruditos
muçulmanos dos países de língua portuguesa. Assim, grafamos
“Islão” em lugar de “Islã”, “Makka” e “Madina” em vez de “Meca”
e “Medina”. Também utilizamos “Muhammad” e nunca “Maomé”1
pois, além tratar-se de um francesismo tardio, constitui uma
corruptela pejorativa do nome do profeta do Islão. Usamos
“Qur’an” quando se refere ao original árabe e “Alcorão” quando
se trata de traduções ou comentários em língua portuguesa e,
com menor freqüência, utilizamos o termo “moslim”2 (pl.
moslimes) em lugar de muçulmano.

1
De fato, na literatura portuguesa clássica o profeta do Islão é chamado de “Mahamede”. Por
exemplo, nos versos de Camões:
Que aqui gente de Cristo não havia,
Mas que a Mahamede celebrava. (Os Lusíadas Canto I:102)
2
Nisso seguimos o professor Helmi Nasr, responsável pela tradução “oficial” do Alcorão em língua
portuguesa, aprovada e distribuída internacionalmente pelo Ministério dos Assuntos Islâmicos do
Reino da Arábia Saudita.
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1 . A R E V O L T A D O S M AL Ê S E A H I S T O R I O G R AF I A

Em nosso estudo partimos do pressuposto culturalista que


considera as revoltas malês como fenômeno inseparável do
reformismo islâmico no Bilad as-Sudan Ocidental (África do
Oeste) e dos jihads dos séculos XVIII e XIX que deram
nascimento ao Califado de Sokoto e diversos emirados vassalos,
e no percurso dos quais milhares de militantes e eruditos
religiosos caíram cativos e acabavam abastecendo os mercados
de escravos da Bahia. Aqui recriaram instituições e iniciaram um
intenso proselitismo político e religioso, seguindo o mesmo viés
ideológico que os animava na outra margem do Atlântico.
A discussão acerca do real alcance e profundidade da
influência que o Islão teria exercido na Revolta dos Malês fez-se
presente desde os primeiros estudos dedicados ao tema.
Etienne Ignace, padre jesuíta armênio, foi um dos pioneiros
no estudo da Revolta dos Malês de 1835. Tendo por principal
motor de suas idéias um fervoroso sentimento de cruzada, seu
trabalho se caracteriza pela ausência de isenção em sua análise
do movimento e o papel central que atribui a religião. O clérigo
critica, em seu estudo (1970), aqueles que o antecederam, já
que estes não teriam percebido as motivações religiosas do
Levante Malê, tido por este como uma guerra santa maometana,
um jihad, contra a Cristandade. O jesuíta chega a propor a
existência uma conspiração islâmica internacional e a lançar o
alerta para o perigo de uma repetição, em solo brasileiro, do
suposto massacre de armênios pelos turcos otomanos.
Ainda que a obra do sacerdote armênio esteja repleta de
um sentimento racista e eurocêntrico, não devemos nos deixar
cegar por uma antipatia moderna e algo exagerada por seu
trabalho. Devemos, assim, evitar perigo de sermos
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preconceituosos demais com os preconceitos do autor,


perfeitamente consonantes com seu ambiente e época. O
estudo pioneiro de Etienne Ignace (1970), entretanto, possui
seus méritos. Cairus (2002) assinala que o jesuíta foi detalhista,
descrevendo práticas e tradições desconhecidas por muitos que
apenas o rotularam de fanático, o que sem dúvida era, mas sem
examinar mais cuidadosamente seu trabalho. E este possui
inegável importância e uma marcada influência sobre aqueles
que o sucederiam no estudo da tema malê. É, por exemplo, no
trabalho de Etienne Brazil que a visão dos malês como
seguidores de um Islão africano heterodoxo e sincrético (em
oposição a um Islão árabe “puro”), repetido ad nauseam por
autores posteriores (ainda que sem qualquer embasamento
islamológico), debuta.
O primeiro estudioso a analisar o tema das revoltas malês
de modo mais aprofundado foi Raimundo Nina Rodrigues (1976),
médico maranhense radicado na Bahia. Intelectual típico da
virada do século XIX para o XX, evolucionista e partidário das
teorias racistas em voga na época e um contemporâneo de
Etienne Ignace, Nina era movido “não por fanatismo religioso,
mas antes por um fanatismo cientificista”. Os estudos
posteriores sobre os malês foram, de uma forma ou de outra,
baseados em sua pesquisa. Conforme Cairus:

...as chamadas análises marxistas não lograram


estabelecer análises duradouras, mas somente
triunfos efêmeros, enquanto Nina continuou a
ser paradigmático através das vicissitudes do
tempo (CAIRUS, 2002, p.50).

Nina Rodrigues defendia a idéia que as revoltas malês, e


em especial a grande revolta de 1835, tratavam-se de uma
continuidade das guerras religiosas ocorridas em solo africano.
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Referindo-se às revoltas afro-muçulmana, Rodrigues foi


enfático:

Para apreender a sua verdadeira significação é mister


remontar às transformações étnicas e político-sociais que a
esse tempo se operavam no interior da África. Outra coisa
não faziam os levantes senão tentar reproduzir delas pálido
esboço, deste lado do Atlântico, sob influxo dos sentimentos
de que ainda vinham possuídas as levas do tráfico, em que
para aqui se transportavam verdadeiros fragmentos de
nações negras. E estas bem sabiam manter-se fechadas no
círculo inviolável da própria língua, de todos desconhecida.
Essas revoltas de que estudo pouco aprofundado dos
historiadores pátrios não tem feito mais do que explosões
acidentais do desespero de escravizados contra a opressão
cruel e tirânica de senhores desumanos, têm assim alta
significação da mais acabada sucessão histórica. Elas se
filiam todas às transformações políticas operadas pelo
islamismo no Hauçá e no Iorubá, sob a direção dos fulos ou
fulás (RODRIGUES, 1976, pp. 38-39).

As rebeliões malês seriam, no entender de Rodrigues, mais


do que uma previsível resistência ao cativeiro. Mais que isto,
seriam a recriação, em terras americanas, dos conflitos político-
religiosos da África Ocidental.

Por sob a ignorância e brutalidade dos senhores brancos


reataram-se os laços dos imigrados; sob o duro regime do
cativeiro reconstruíram, como puderam, as práticas, os usos
e as crenças da pátria longínqua. O comércio continuado
com a Costa d’África ia-os instruindo dos sucessos
guerreiros e religiosos que por lá se desenrolavam e assim
se lhes ministravam pabulum e estímulo novo para a
conversão e para a luta. O islamismo organizou-se em seita
poderosa; vieram os mestres que pregavam a conversão e
ensinavam a ler no árabe os livros do Alcorão, que também
de lá vinham importados (RODRIGUES, 1976, p. 41).

Nina Rodrigues propõe que os africanos teriam, a despeito


das adversidades da escravidão, conseguido preservar seus
valores culturais e religiosos, bem como os ideais jihadistas que
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fervorosamente defendiam em sua terra natal e, a serviço das


quais, veriam-se sujeitos a condição de escravos. Estes
africanos, de fato, nunca teriam seus laços totalmente cortados
com seus correligionários do outro lado do Atlântico, já que o
comércio supria a Bahia não apenas de mercadorias e escravos,
mas também de noticias da África. Em solo baiano, os malês não
apenas continuariam a cultivar sua versão militante do Islão
como também o fariam florescer através do proselitismo e da
conversão. O autor, que concluiu ter havido uma expansão do
Islão na Bahia no período que antecedeu a rebelião de 1835,
quando proselitismo malê teria alcançado seu ápice, também
descreveu as madrassas3 e as mesquitas clandestinas nas quais
os mestres malês e seus estudantes congregavam-se para a
instrução na escrita arábica e no conhecimento religioso, assim
como para a adoração a Allah. A existência de uma liderança
islâmica erudita, que Nina menciona em seu trabalho, constitui
um elemento indispensável para a compreensão da sociedade e
insurreições malês.
Arthur Ramos, outro médico e, de certo modo, um discípulo
de Nina Rodrigues opôs-se às emergentes teses marxistas. Para
Ramos a peculiaridade das rebeliões malês se encontra em seu
caráter islamita pois “sua agressividade foi uma herança social
direta das lutas seculares de religião, que asseguraram na
África o domínio do Islão” (RAMOS, 1971, p.52).
Edison Carneiro (1964) endossou a origem dos prisioneiros
de guerra dos jihads da África Ocidental e a existência de uma
liderança muçulmana e a afirmação de que os africanos da
região da Guiné seriam portadores de uma civilização mais

3
Madrassa: nome dado às escolas corânicas, onde os estudantes se aprofundam na
memorização, estudo e na arte da recitação do Qur’an.
17

adiantada de modo que os azares do tráfico fizeram aportar à


Bahia o que ele chamou de os “intelectuais do Alto Sudão”.

Os negros muçulmanos, mais inteligentes, mais


solidários entre si, organizavam-se, já sob o governo do
conde de Arcos, para a guerra santa contra os infiéis
(CARNEIRO, 1964, p.67).

Abelardo Duarte (1958) discorreu sobre o Islão na África e


sua chegada ao Brasil com os “sudaneses islamizados”,
sugerindo uma análise de diversos autores que realizaram
estudos sobre os afro-muçulmanos fora da Bahia, em especial
em Alagoas e Pernambuco. Digna de nota é a diferenciação feita
pelo autor entre os grupos islamizados de Alagoas e da Bahia
onde, de acordo este, os alagoanos seriam sincréticos e baianos
mais alinhados a uma ortodoxia. Ortodoxia esta que explicaria o
fanatismo que resultou especificamente no Levante Malê de
1835. O fanatismo, para Duarte algo inerente à fé islâmica,
exortaria ao jihad, sendo a conquista do paraíso a recompensa
daqueles que morressem em combate. Duarte simplificou,
confirmando a tradição historiográfica, propondo que o
fanatismo teria sido a causa dos levantes afro-muçulmanos no
Brasil.
Sylviane Diouf destacou o papel do Islão na Revolta dos
Malês, mas, ao contrário de outros estudiosos, não a considerou
uma guerra santa (CAIRUS, 2002). Diouf considerou necessárias
quatro precondições para se caracterizar um jihad e estas não
se teriam feito presentes em 1835: os fiéis serem oprimidos até
não poderem mais praticar o Islão; constituírem pelo menos a
metade da população local; estarem belicamente nivelados aos
inimigos; a invasão do território muçulmano. Para ela apenas a
primeira dessas condições se apresentou em 1835. Diouf
assumiu uma posição intermediária dentro das correntes
18

interpretativas da Revolta dos Malê, ainda que negando a tese


de “guerra santa”, a autora deu grande ênfase a presença
muçulmana na revolta. Conforme Cairus:

“ ela especifica as consultas feitas aos marabouts que então


realizam a khalwa (o retiro durante o qual o líder jejua, reza e
pratica o dhikr) com o intuito de tentar pressentir o sucesso
ou fracasso do empreendimento. Os imames dirigem preces
especiais para pedir orientação divina, as chamadas salat al
istikharah, que são feitas em situações limite, como, por
exemplo, às vésperas de um empreendimento militar. Os
revoltosos não teriam saído às ruas para defender a pureza,
como o shehu Dan Fodio fez na África, e nem buscavam
converter os infiéis. Os inimigos não foram definidos em
termos de religião: a guerra era contra os brancos. É um
erro, segundo ela, estereotipar qualquer ação militar ou
revolta empreendida por muçulmanos como um jihad”
(CAIRUS, 2002, p. 64).

Em oposição aos estudos de orientação culturalista, que


tratou Revolta dos Malês como jihad, outra vertente propôs uma
análise marxista para decifrar a questão das insurreições afro-
muçulmanas na Bahia.
Clovis Moura, pelos anos 1950, teria sido o primeiro, após
Etienne Ignace e Nina Rodrigues, a estudar os documentos do
levante malê e o pioneiro na busca de uma explicação para a
rebeldia escrava na Bahia do século XIX partindo de uma
análise estrutural. Moura buscaria em seu trabalho explicar,
através da situação política e social da província baiana da
primeira metade dos mil e oitocentos, o fenômeno das
sublevações escravas.
Luiz Luna (1968) escreveu sobre o tema durante os tempos
conturbados da Revolução Cubana, em cuja influência,
possivelmente, encontremos a explicação para o discurso
marcadamente panfletário com relação ao movimento malê.
Para Luna, as revoltas afro-muçulmanas na Bahia estariam
19

destituídas do espírito de libertação do qual seriam exemplo os


quilombos. Muito pelo contrário, seriam, devido a seu caráter
islâmico, uma mera explosão de protesto desmedido e sem
objetivo outro que “matar brancos, tomar o Poder e banir a
religião cristã, em nome de Alá” (LUNA, 1968, p.131). Luna
lastima a presença do elemento religioso no levante,
considerando-o como fanatismo e superstição que prejudicava o
“movimento revolucionário” e impediu as massas de um
anacrônico proletariado negro, de se articularem contra o
“regime”.
Décio de Freitas (1985) publicou um livro dedicado à
Revolta dos Malês, onde o autor propõe que os escravos teriam
se organizado em “formas superiores de luta e tentaram se
libertar mediante a destruição do sistema escravista” (FREITAS,
1985, p. 9).
Freitas objetivou o uso político dos malês a serviço da
esquerda e criticou o trabalho de viés culturalista de Nina
Rodrigues e da tese da guerra santa malê, trabalhando a partir
da hipótese de que a luta dos malês teria por objetivo a
destruição do sistema escravista e que o levante de 1835 se
explicaria “na dialética de uma pluralidade de causas e tinham
por objetivo a destruição do sistema escravista”(FREITAS, 1985,
p.10). Freitas buscou, através da mistificação do evento,
apropriar-se da Revolta dos Malês como bandeira política em
favor de ideologias próprias, transformando, num passe de
mágica, africanos oriundos de sociedades com longa tradição
escravocrata em heróis do abolicionismo. Conforme observou
Cairus: “Teriam os malês se tornado subitamente abolicionistas
ferrenhos em terras baianas?”(CAIRUS, 2002, p.69).
No que concerne a evolução da discussão historiográfica
acerca dos malês, particularmente no que se refere aos
20

trabalhos realizados nas últimas décadas, é perceptível uma


síntese de tendências materialistas e culturalistas.
João José Reis publicou, nos anos 80, seu extenso
“Rebelião Escrava no Brasil: A história do Levante dos malês de
1835”. O autor utilizou-se de vasta documentação em sua obra,
desde processos judiciais dos malês presos, até manuscritos
religiosos, passando pela produção historiográfica que o
antecedeu e diversas outras fontes. As conclusões e
interpretação que Reis expôs em seu estudo ganharam status de
texto canônico e seu livro foi considerado por muitos a “obra
definitiva” sobre os malê e, assim, a obra de Reis constitui-se
no paradigma atual para outros estudiosos interessados no tema
da rebelião escrava na Bahia.
Reis sintetizou em seu trabalho as tendências que
emergiram na discussão historiográfica do tema através do
século XX. Porém, justamente por seu esforço em buscar um
meio termo que escapasse à órbita tanto do mecanicismo
naturalista quanto do materialismo tradicional, não consegue
capturar plenamente a peculiar singularidade dos afro-
muçulmanos da Bahia, descambando na criação do que José
Cairus chamou de “jacobinismo baiano”.

A análise de Reis quase sempre privilegiou a questão da


aculturação, da reinvenção, como se estivéssemos tratando
de objetos completamente diversos. Em um movimento como
o de 1835, essas escalas de abordagem podem fazer a
diferença. Reis argumentou que Nina e Arthur Ramos
hereticamente negam a historicidade dos eventos na Bahia.
Poder-se-ia igualmente argumentar que os muçulmanos
originários de um conflito com forte conteúdo religioso de
afirmação de ortodoxia ou mesmo acomodação, tornaram-se
subitamente afro-baianos sincréticos. Neste caso, Reis
estaria negando a historicidade ao inverso (CAIRUS, 2002, p.
76).

Nas próprias palavras de Reis:


21

Se quisermos definir resumidamente o movimento de 1835,


podemos dizer que a conspiração foi male e o levante foi
africano” (REIS, 2003, p.136).4

Renomado africanista e especialista no tema da escravidão


na África Ocidental, Paul Lovejoy (2000) é autor de um estudo
demográfico dos escravos muçulmanos na Bahia do início do
século XIX. Nesse estudo, Lovejoy traça as origens dos cativos
malês, de etnias diversas, no movimento dos jihads. Lovejoy
propõe que a especificação da origem dos cativos oriundos dos
jihads que deram origem ao Califado de Sokoto e o Emirado de
Ilorin seria fator de grande importância a se considerar no
estudo da rebeldia afro-muçulmana na Bahia. Ele afirma, no
início de seu artigo, que:

... este estudo examina o material biográfico disponível, em


uma tentativa de oferecer subsídios adicionais acerca da
comunidade muçulmana para, assim, estabelecer mais
claramente as ligações entre padrões de resistência à
escravidão na Bahia, que culminariam na insurreição Male de
1835, e o movimento da jihad no interior da Baía de Benin
(LOVEJOY, 2000, p.11).

Seu estudo concentra-se nos eventos ocorridos em solo


africano que, em seu entender, teriam continuidade na Bahia,
fato negligenciado, no geral, pelos estudiosos brasileiros aos
quais faltaria a especialização necessária para compreender a
interligação dos fatos. Em seu trabalho, Lovejoy demonstrou
que:

...os rebeldes transcenderam o que se entende por


resistência escrava. Eles estavam integrados em outro
mundo: o Dar al Islam5” (LOVEJOY, apud, CAIRUS, 2002,
p.81).

4
Os grifos são do próprio Reis.
5
Dar al-Islam: Literalmente casa ou lar do Islão. Refere-se as terras e estados onde predominam
os moslimes e a lei e o modo de vida islâmico estão estabelecidos.
22

Para Lovejoy os elementos étnicos e religiosos estavam,


ainda que de um modo incompleto, interligados, contrariamente
a idéia de Reis, para quem estes estavam em contraposição.
Diplomata, poeta, ensaísta, historiador, africanólogo e
membro da Academia Brasileira de Letras, Alberto da Costa e
Silva é uma das mais respeitáveis vozes que se opuseram as
interpretações de Reis e um dos defensores mais gabaritados da
tese da Revolta dos Malês como jihad. O imortal se utiliza do
próprio estudo de Reis para se contrapor às suas conclusões,
para ele equivocadas, sobre a natureza do levante de 1835:

Não me rendi a tese de Reis, porque tudo em seu livro me


endereça à guerra santa. Procura os possíveis ideólogos,
articuladores e chefes do levante, e encontra muçulmanos.
Vai ver os mortos, feridos e presos e dá com islamitas,
vestidos de islamitas. Nos corpos e guardados dos
revoltosos, os rosários são moslins, e os amuletos e os
demais escritos estão em árabe. O próprio Reis me dirige os
passos (SILVA, 2002, p.10).

Autor de um trabalho recente sobre o tema, José Cairus


propõe que os malês se organizariam em torno de irmandades
místicas sufis. Chamadas de tariqas, são fraternidades
religiosas, onde os discípulos se congregam em torno de um
líder espiritual de quem recebem orientação em práticas como
dhikr (invocação constante de fórmulas piedosas ou de um ou
mais dos 99 nomes de Deus mencionados no Alcorão) e khalwa
(retiro) e se beneficiam das bênçãos de seu carisma espiritual
( b a r a k a ) . C a i r u s ( 2 0 0 2 ) é c o n t u n d e n t e a o a f i r m a r q u e “a Irmandade
Malê aparentemente foi inspirada no modelo sufi” e que:

“Os papéis árabes e os anéis encontrados indicavam que


seus companheiros eram igualmente muçulmanos e
possivelmente muito orgulhosos de fazer parte uma tariqa
sufi” (CAIRUS, 2002, p.80).
23

Cairus enfatizou o caráter islâmico e africano das revoltas


malês, principalmente da grande revolta de 1835, e suas
relações com instituições e processos políticos, sociais e
históricos da África Ocidental. O historiador contesta também
algumas das conclusões de Reis, especialmente quanto a
ascendência da solidariedade étnica sobre a influência do Islão
no levante de 1835.
Por último, devemos mencionar o trabalho de Muhammad
Shareef (1998), autor norte-americano com um profundo
conhecimento das peculiaridades do Islão africano. Shareef
estudou nos centros tradicionais de conhecimento islâmico da
atual Nigéria e no Sudão, com descendentes do próprio Usman
dan Fodio, que lhe permitiram acesso a manuscritos de próprio
punho do fundador do Califado de Sokoto, de seu irmão
Abdullahi e outros ideólogos do jihad. O autor traduziu várias
dessas obras para língua inglesa. Sua posição quanto a
natureza das revoltas afro-muçulmanas da Bahia é explicitada
no título de sua tese de PhD, depois transformada no livro “The
African Muslim Slave Revolts of Bahia,Brazil: A Continuity of the
19th Century Jihaad Movements of W estern Sudan”. O autor
defende, como o fez Nina Rodrigues quase um século antes, que
o fenômeno das revoltas malês é indissociável dos jihads da
África Ocidental, no que é seguido de perto pelos autores do
presente estudo nos capítulos a seguir.
24

2 . O I S L ÃO N A Á F R I C A O C I D E N T A L

As relações entre a África e o Islão datam dos primeiros


anos da revelação corânica. Entre os primeiros seguidores do
Profeta Muhammad estava um ex-escravo abissínio, Bilal, que
tornou-se um dos mais próximos de seus companheiros, o
primeiro muezim6 do Islão e que, no decorrer dos séculos e da
expansão da religião além da Arábia, tornou-se uma espécie de
patrono da África islâmica e dos muçulmanos negros. A África
também foi o destino escolhido pelo Profeta como primeiro
refúgio para seus seguidores durante o endurecimento das
perseguições sofridas nas mãos dos politeístas de Makka.
Muhammad enviou um grupo de seus seguidores encabeçado por
seu primo, Ja’far ibn Abi Talib, para a corte do rei cristão da
Abissínia (atual Etiópia), buscando asilo da opressão dos chefes
árabes pagãos. Segundo a tradição islâmica, o Negus abissínio
acabou por aceitar o Islão, se tornando o primeiro soberano a
fazer-se moslim, embora não tenha incitado seu povo a abraçar
a nova fé.

2 . 1 As o r i g e n s d o I s l ã o n a Áf r i c a N e g r a

O Islão foi introduzido na África através de duas rotas


distintas. Uma originária do leste por via marítima, através do
Oceano Índico e outra, pelo norte, por terra, atravessando as
areias do Saara.

O Islã seguiu as antiqüíssimas rotas de comunicação entre


os países magrebinos e trans-saarianos, sobretudo aquela

6
Designa-se por muezim (al-muadhdhin) aquele que, do alto dos minaretes das mesquitas,
conclama os fiéis para a oração cinco vezes ao dia.
25

pista que sai do Marrocos, passa por Sijilmassa e acaba no


vale do Níger, perto da atual cidade de Gao. Com a
progressiva islamização dos berberes, o número de
muçulmanos nas caravanas que se encaminhavam para o
sul foi cada vez maior, e a mensagem do Islã difundia-se
gradualmente entre os negros sudaneses (REICHERT,1970,
p. 111).

O caráter do Islão do norte da África, região também


conhecida por Maghreb, começou de fato a ser firmado pelos
almorávidas no século XI, que estabeleceram a ortodoxia sunita
pela adoção da escola jurídica maliki. Sob a dinastia almôada,
que os sucederam, o Islão magrebino ortodoxo se misturou a
mística sufi, que se tornou o principal agente da islamizacão na
África depois do século XII. Na África do Oeste os contatos com
as terras centrais do Islão eram feitos somente através do Hajj
(peregrinação a Makka),sendo assim, seria o Maghreb que
estabeleceria o modelo de ortodoxia islâmica para a região.

Devido ao movimento expansionista islâmico na África


Ocidental ter-se originado a partir norte da África, os
muçulmanos daquela região aderiram à escola legal islâmica
malikita, predominante na África do Norte. Na África Oriental,
de forma diversa, o Islã foi influenciado pela península
arábica, onde prevalecia a escola legal shafiíta” (CAIRUS,
2002, p. 84).

A trajetória do Islão na África do Oeste está


intrinsecamente ligada a história e sucessos do Maghreb, como
bem exemplifica o impacto da ascensão dos Almorávidas.
A partir do século XI, quando o movimento Almorávida (Al-
Murabitun) desencadeia ondas de erudição indígena e
reforma, o Bilad as-Sudan Ocidental viu o surgimento de
centros de estudos e a rede de eruditos colocar a religão em
pé de igualdade com seus pares através do mundo. A rede
de erudição ligando as gerações de sábios na região torna-
se cada vez mais clara conforme as pesquisas aumentam.
Abdullah b. Yasin e suas façanhas militares costumavam ser
tudo que se ouvia do movimento Murabitun. Mas, após
26

pesquisa focando em (personagens) como Imam al-Hadrami,


o erudito estudioso trazido por Abu Bakr b. Umar e feito o
Qadi de Azzugi, tem sido lançada luz no desenvolvimento da
erudição local. A ligação entre os eruditos murabitun e a
família Aqit de Timbuktu estabeleceu a continuidade desta
tradição. A influência de Ahmad Baba, seu shaykh
Muhammad Baghayagho, Shaykh Mukhtar al-Kunti al-Kabir e
uma série de outros como eles no pensamento dos líderes
califais de Sokoto é bem evidente a partir de seus numerosos
escritos (BUGAJE, 2004).

O trabalho missionário ou da’wa foi conduzido por eruditos


religiosos ou ulama (sing. alim) que fizeram os primeiros
contatos com os governantes oeste-africanos, que foram os
primeiros influenciados pelo Islão, “o que indica a importância
dos Estados organizados no processo de islamizacão” (CAIRUS,
2002, p.85). Entretanto, a conversão ao Islamismo por um
soberano e por seu círculo administrativo mais imediato não
significava a adesão da aristocracia e nobreza, os quais, em
geral, tendiam a privilegiar os sacerdotes tradicionais. Na nova
ordem, os eruditos muçulmanos prestavam serviços aos chefes
locais e integravam-se ao sistema político e social do Estado,
exercendo um papel outrora reservado aos sacerdotes da
religião ancestral. Sendo politicamente neutros, ou pretendendo
ser, esses primeiros ulama atuavam como mediadores em
disputas que demandassem arbítrio.
Não tardou muito para que alguns dentre os sábios
islâmicos buscassem maior autonomia das cortes dos
governantes, ainda impregnadas de influências pagãs.
Em Tombuctu, os eruditos islâmicos estabeleceram
comunidades autônomas e centros de estudos religiosos sob a
chefia de um magistrado muçulmano (qadi).

Tumbuctu e as demais cidades do Império de Songai tinham


muitos professores e uma antiga tradição de centros de
27

estudos. Em Tumbuctu, por exemplo, a universidade de


Sankore, organizada em torno de três mesquitas (Jingaray
Ber, Sidi Yahya e Sankore), abrigava já no século XII cerca
de 25.000 estudantes, isso em uma população de cerca de
100.00 pessoas, como vimos (COSTA, 2007).

Muhammad Bugaje (2004) escreve que:

A aprendizado no Sudão Ocidental, onde o Califado de


Sokoto está localizado, é perseguido com dedicação total. O
erudito é mais que apenas um professor, ele é também um
mentor, um modelo, uma figura paterna e um líder
comunitário, cuja preocupação vai além de apenas questões
educacionais, mas aborda os problemas sociais, médicos e
conjugais da comunidade (...)
Essa relação entre o erudito e o povo contrasta com a que
existe entre o erudito e a burocracia. Primeiro, o erudito é
financeiramente independente do estado, quanto mais
distante ele está da burocracia, maior é o respeito que lhe é
dispensado. O sábio é normalmente sustentado pela
comunidade, através de seu zakat e sadaqat7 (BUGAJE,
2004. p.4).

Pode-se imaginar, a partir do exposto, que como


conseqüência, nas relações entre os clérigos e o Estado as
tensões eram freqüentes.
Apesar de possuírem eruditos muçulmanos em suas cortes
e se apresentarem como crentes ao exibirem publicamente
sinais externos de Islamismo, como a prática das orações ou a
comemoração dos e i d s 8, os chefes guerreiros não eram
considerados por muitos sábios islâmicos como verdadeiros
moslimes, já que consumiam álcool e promoviam a matança de
fiéis. Aos fins do século XVII, Nasir ud-Din, um dos eruditos do
sudoeste da Mauritânia, insurgiu-se contra os guerreiros da tribo

7
São modalidades de caridade preconizadas pela religião Islâmica. Zakat um tributo obrigatório
para aqueles que tem condições, sendo considerado um dos 5 pilares do Islão. A Sadaqat é
voluntária, às vezes feita para expiar alguma falta ou pecado.
8
Eid refere-se a comemoração dos dias santos Islâmicos do fim do jejum de Ramadan (Eid al-Fitr)
e do fim da Peregrinação a Makka (Eid al-Adha), este último também rememorando o sacrifício de
Abraão (Ibrahim) de seu filho Ismael (Isma’il), substituído no último instante por um carneiro trazido
pelo anjo Gabriel (Jibra’il).
28

de Banu Hassan e, após algum tempo, os wolof e os fulanis


islamizados, etnias do território do que hoje é o Senegal,
uniram-se a seu jihad e depuseram as dinastias reinantes em
Jolof, W alo, Cayor e Futa Toro. Já os estados de Songhai e
Kano foram visitados pelo intelectual militante do norte da
África, Abdul-Karim al-Maghili, que clamava pela purgação de
todas as sobrevivências pagãs no Islão. Al-Maghili declarou
takfir (anátema ou excomunhão) àqueles que aceitavam a
acomodação, dentro do Islão, de crenças e costumes do
fetichismo.
Na região em torno do lago Chade, de Kanem para a África
do Norte, o tráfico de escravos era a principal atividade. O
Islão, dessa forma, não se expandiu ao sul do lago Chade que
permaneceu como terreno para captura de escravos, enquanto
Kanem se expandiu politicamente em direção ao norte até
Fezzan. Nesse cenário os sheykhs sufis fundaram madrassas,
mesquitas e locais de reunião e práticas espirituais. Além disso,
produziram farta literatura jurídica e teológica que contribuiu
para o incremento da erudição islâmica na região. Esses
mestres sufis acompanhavam os comerciantes de escravos e se
empenhavam na conversão e instrução das lideranças locais.

En la elaboración de la identidad del Islam ha jugado un


papel esencial la educación, a través de las escuelas
coránicas. Las escuelas coránicas fueron en su tiempo, y lo
son todavía, aunque en menor escala, la institución escolar
más importante del Islam en África. Los métodos de
enseñanza eran los clásicos de hace todavía poco tiempo: la
vara y la repetición sistemática de textos del Corán, escritos
sobre tablillas de madera…todo ello en torno a un imám, que
disponía de amplios derechos sobre sus pupilos
(GOROSTEGUI, 2007).

Em Kanem, assim como no seu sucessor, o estado de


Bornu, o Islão não ficou restrito apenas os círculos cortesãos,
29

mas chegou a população em geral. Nos séculos XVI e XVII, a


capital de Bornu foi um importante centro de estudos islâmicos.
Em Bornu a existência de exemplares manuscritos do Qur’an
data de princípios do século XVII, com traduções e glossários
em língua vernácula (CAIRUS,2002, p. 89). Esse reino negro
atraiu muitos estudantes das regiões vizinhas e seus eruditos
foram empregados como professores e imames entre povos
hauçás, iorubás, em Borgu e mesmo em regiões mais ocidentais.
Findado o século XVIII, a islamização da população de Bornu já
estava estabelecida firmemente. Todavia, ainda era possível
perceber a sobrevivência de elementos pré-Islâmicos no seu
cotidiano. Tais elementos foram utilizados como justificativa
para o jihad empreendido pelo Califado de Sokoto contra Bornu
no século XIX.
O know-how islâmico na Hauçalândia foi modernizado
através dos povos fulanis, fulás ou peuls que chegaram a região
e m m e a d o s d o s é c u l o X V . V i v i a m e m e n c l a v e s rurais onde cultivavam
a erudição islâmica. Segundo CAIRUS:

Diferentes dos seus correspondentes urbanos de Tombuctu,


eles possuíam conhecimento da arte da guerra e da
cavalaria. Eles não rendiam seus serviços religiosos aos
governantes locais e, portanto, não participavam de
cerimônias não-islâmicas. Mantinham contatos com os
governantes, mas não estavam integrados no sistema
político. As tensões geradas por esse abismo mental e físico
tiveram como conseqüência tardia a confrontação através
dos jihads (CAIRUS, 2002, p. 111).

O já citado Abdul-Karim al-Maghili, intelectual norte-


africano militante, influenciou fortemente Kano e Songhai. Ele
ordenou que Rumfa, o rei de Kano, cortasse a árvore sagrada
sob a qual a mesquita foi construída. Muhammad Rumfa foi
contemporâneo dos soberanos reformistas de Songhai, Askyia
Muhammad e de Bornu, Ali Ghaji.
30

Em Kano, como em Bornu, a devoção e erudição dos soberanos


atingiram seu auge na segunda metade do século XVI.
O movimento de islamização dos iorubás avançou no século
XIX como conseqüência da conquista dos territórios
setentrionais pelo jihad fulani. Entretanto, exceto no Emirado de
Ilorin que faria parte do Califado de Sokoto, entre os iorubás o
Islão se estabeleceu como prática religiosa sem, no entanto,
envolver-se na política e nos assuntos do Estado e o progresso
do Islão entre a população não anulou os padrões de autoridade
tradicionais.

2 . 2 As c o n f r a r i a s s u f i s n a Áf r i c a O c i d e n t a l

No século XIX, uma nova classe de mercadores e


proprietários de terra, com riqueza adquirida no comércio e
agricultura, promoveu um renascimento religioso no Bilad as-
Sudan. Esses novos-ricos foram responsáveis pelo aumento
extraordinário de mesquitas, escolas islâmicas e pelo emprego
considerável de eruditos religiosos. Os mais importantes ulama
eram enviados para aprimorar seus conhecimentos nas cidades
santas de Makka e Madina. Em conseqüência desse boom
cultural, a erudição popularizou-se devido também à crescente
importância das irmandades sufis durante o século XIX. Através
das terras africanas, os marabouts ou “homens-santos” foram
capazes de converter seu carisma espiritual ou “capital
simbólico” (CAIRUS, 2002) em poder econômico e político. Em
um artigo sobre o Islão na África negra, Monteil aponta para o
p a p e l d o s m a r a b o u t s e n t r e o s p o v o s t u c u l e r e s , c i t a n d o Yaya Wane
que teria escrito em 1963 que:

A história individual do touculeur é uma história vivida à


sombra do marabout: imposição do nome e ensino corânico,
31

portanto, de um certo modo, educação; celebração do


casamento, recuperação da saúde; o sucesso que se busca
e o mal que se quer conjurar, sobretudo isso requer a
intervenção do homem de saber, ou sua intercessão
benevolente” (MONTEIL, 1967, p.13).

A África do Norte foi a terra do sufismo por excelência e,


assim como a jurisprudência, este também foi exportado para a
África Ocidental. A princípio não existiam tariqas
hierarquicamente estruturadas, somente zawiyas9 independentes
ou refúgios para os marabouts. Foi apenas pela metade do
século XVII que as novas irmandades se tornam social e
geograficamente mais abrangentes e, desse modo, com um
potencial de alcance superior as tekkes locais.
No século XVI, embora os principais intelectuais de
Tombuctu fossem sufis, assim como as comunidades em Bornu,
não eram afiliados a ordens específicas.

Durante o século XVIII, uma significativa mudança ocorreu


nas irmandades sufis.
Os antigos padrões de descentralização e afiliações difusas
foram substituídos por formas de organização em larga
escala e mais sofisticadas. No processo de reestruturação, o
papel do sheyk expandiu-se e as irmandades tornaram-se
mais centralizadas. As tariqas transformaram-se em
organizações disciplinadas que incluíam uma rede de
prepostos (khalifas). Dessa maneira, a característica
organizacional das irmandades, mais que seu conteúdo
intelectual, foi decisiva para seu peso potencial na política
(CAIRUS, 2002, p.95).

A Qadiriyya foi a primeira tariqa a se instalar nas regiões


saarianas, nos fins do século XV e princípios do XVI. Fundada
no Iraque pelo santo Abdul-Qadir Geylani (ou Jilani) essa
irmandade é uma das mais antigas e difundidas do Islão. No

9
Zawiya: local de reunião sufi, onde o mestre instrui os discípulos nos ensinamentos da ordem e
ladainhas, orações, danças e outras práticas específicas de cada confraria são realizadas.
Também é conhecida pelo nome turco de tekke.
32

princípio, todavia, não foi capaz de se organizar na África do


Oeste e manteve-se social e politicamente ineficaz. Na segunda
metade do século XVIII, encabeçada por Sidi al-Mukhtar al-
Kunti, essa tariqa se reestruturou e, utilizando-se do carisma de
seu líder, conquistou influência política e poder econômico. Sidi
al-Mukhtar al-Kunti reforçou os vínculos de dependência da sua
clientela através da cadeia espiritual da irmandade. Seus
prepostos expandem sua influência por intermédio da Qadiriyya
al-Mukhtariyya, um novo ramo da ordem no Saara, no Sael e
mesmo em Futa Toro. A Qadiriyya atraiu muitos novos conversos
na África Ocidental. O maior impacto da ordem foi incentivar os
afro-muçulmanos a professarem sua fé com mais fervor,
convicção e compromisso através do sufismo (CAIRUS, 2002).
O tassawwuf ou sufismo é parte significativa e inalienável
da história islâmica. Definir o sufismo simplesmente como
“mística islâmica” pode esconder as complexidades de seu papel
e de sua natureza. O sufismo foi o desenvolvimento natural das
tendências esotéricas manifestadas no Islão desde os primeiros
tempos da Revelação e enfatizadas através do desenvolvimento
das ciências religiosas islâmicas, como aspecto essencial da via
profética.

Os sufis levavam um modo de vida que buscava a união com


Deus por meio do amor, do conhecimento baseado na
experiência e ascese que levaria a uma união estática com o
Criador bem-amado. Essa invocação tinha o objetivo de
desviar a alma das distrações mundanas para libertá-la até o
vôo da união com Deus. Uma das formas do dhikr era um
ritual coletivo chamado justamente de hadra: os participantes
repetiam constantemente o nome de Alá, cada vez mais
rapidamente até se chegar a um transe e perda da
consciência do mundo sensível” (COSTA, 2002, pp. 73-74).

Na definição do estudioso do Islão e do tassawwuf Martin


Lings:
33

O sufismo não é outra coisa além da mística islâmica, o que


significa que é a corrente central mais potente desta maré
que constitui a Revelação do Islão; após o dito, ficará claro
que isso não supõe qualquer descrédito, como alguns
parecem pensar. Ao contrário, se trata da afirmação de que o
sufismo é ao mesmo tempo autêntico e eficaz (LINGS, 2003,
p.3).

Inicialmente tariqa significava apenas um método


c o n t e m p l a t i v o e g r a d u a l d e l i b e r a ç ã o d a a l m a o u e g o 10. C í r c u l o s
de discípulos se formavam em volta de mestres, buscando a
prática através da associação e do companheirismo, mas não
por qualquer laço de iniciação ou juramento de fidelidade. A
tariqa foi, de acordo com Cairus (2002), o método prático de
orientar indivíduos traçando um caminho de reflexão e ação
guiadas em meio a uma sucessão de estágios para se
experimentar a divina Realidade (Haqiqa).
Um pressuposto básico dessas ordens era o
relacionamento entre um mestre (murshid) e o discípulo (murid),
pois nada mais coerente que aceitar a orientação e reconhecer a
autoridade daquele que havia passado pelas diversas estações
(al-maqamat) da via sufi.
Nas palavras de Abu Hamid al-Ghazali, um dos mujadidun históricos do Islão :

“...sufismo não pode ser ensinado, pode apenas ser atingido


por experiência direta, êxtase e transformação interior. O
homem embriagado não pode perceber as causas,
definições e condições da embriaguez, embora isto não
mude o fato de estar embriagado, enquanto o homem sóbrio
apesar de ciente de todo processo, não está embriagado”
(Al-Ghazali, 1963, p.136).

10
Nafs em árabe significa igualmente “alma” e “ego”.
34

Assim pode ser entendida a importância da orientação


i n t r í n s e c a d e r e c i t a r d h i k r 11 e e m p r e e n d e r r e t i r o s a t r a v é s d o s
quais se estabelece o limite a ser imposto a cada indivíduo.
Duas tendências contrastantes se estabeleceram nos séculos
IX e X, uma por Beyazid (ou Abu Yazid) Bistami e outra com
Abul-Qasim al-Junayd.

“Ali al-Hujwiri referiu-se aos ensinamentos de Bistami como


caracterizado pela ghalaba (êxtase, arrebatamento) e sukr
(intoxicação) ao passo que os ensinamentos de al-Junaid
eram baseados na sobriedade. Esta ficou sendo a mais
difundida e mais celebrada das doutrinas, adotada por todos
os sheiks não obstante existirem diferenças entre seus
ensinamentos e a ética sufi” (CAIRUS, 2002, p. 99).

Com o surgimento de locais específicos que serviram como


centros para os viajantes - seculares e místicos - nas terras
árabes, muitos se estabeleceram em hospedarias ou postos
fronteiriços chamados ribat.

O ribat era uma espécie de convento militar muçulmano


erguido nas fronteiras do dar al-islam (a “Casa do Islã”) e que
acolhia voluntários piedosos que desejavam se retirar do
mundo e que ali ficavam sob as ordens de um veterano
(sheikh) para se purificar e sair em missões conforme o
desejo do sheikh. (COSTA, 2007)

No final do século XII, graças ao trabalho de al-Ghazali, a


posição oficial dos ortodoxos islâmicos em relação ao sufismo
mudou.
O sufismo, no entanto, iria sofrer transformações em
relação aos laços que uniam seus adeptos. No início eles se
integravam espiritualmente, mas a mudança veio com o
desenvolvimento de filiações “genealógicas” e iniciáticas nas
tariqas, onde os membros se ligavam a uma cadeia de mestres e

11
Dhikr em árabe significa “recordação” e refere-se a prática islâmica de recitar os 99 nomes de
Allah ou outras fórmulas piedosas. Vide Qur’an 8:45; 33:35, 4:190 e 29:45
35

discípulos iam até o Profeta Muhammad, o que conferia


autenticidade aos ensinamentos da confraria e seus shaykhs.
O sufismo forneceu a filosofia hierárquica que foi diluída e
adaptada às necessidades da sociedade. Não apenas o grande
shaykh, mas os seus sucessores, herdeiros de sua baraka, eram
intermediários do poder divino. Como em outras vertentes
religiosas, existiam distinções claras entre o sufismo erudito e o
popular.
No Magrebe, essa institucionalização das ordens sufis
surgiu, a princípio, organizada sob matizes étnicos (tawa’if) e
em importantes instituições rurais como o Ribat Titn-Fitr e o
Ribat Asafi. Com a crescente complexidade e a influência dos
ribat, o raio de ação dessas instituições ultrapassou seus limites
originais.
De acordo com Geertz o Islão magrebino é basicamente o
Islã da veneração dos santos, da severidade moral, do poder
mágico e de piedosa agressividade. Isto é, para todos os
efeitos, verdadeiro nos becos de Fes e Marrakech, assim
como nos espaços do Atlas ou do Saara. No período de 300
anos compreendido entre os séculos XVI e XIX, 60 a 80 por
cento de todos os muçulmanos africanos pertenciam a
alguma ordem sufi” ( C A I R U S , 2 0 0 2 , p . 1 0 5 ) .

As irmandades sufis transcenderam, no Bilad-as-Sudan


Ocidental, vínculos de parentela, classe, profissão, que serviam
para integrar esses grupos verticalmente. A manutenção dos
vínculos dessas organizações místicas era concretizada através
das experiências individuais em congregações. Nessas reuniões,
os membros realizavam sessões de hadras e dhikrs e devido à
intensidade dessas experiências emocionais através do círculo
do dhikr, a irmandade estreitava seus laços de devoção e
solidariedade, não apenas entre os novos iniciados na tariqa,
mas também com seus líderes (shayks, murshids). A um círculo
de dhikr, juntavam-se outros localmente e, no caso de ordens
36

maiores, atravessavam fronteiras, criando dessa maneira um


coesivo corpo de membros.
As tariqas mais populares tendiam a se imiscuir mais em
assuntos políticos devido ao maior grau de dependência
emocional entre os seus membros e líderes. Lealdade,
entusiasmo e compromisso com a irmandade são pressupostos
para a atividade política. De forma análoga, o grau de controle
exercido pelo shaykh sobre uma irmandade era fundamental.
Sendo essencialmente organizações místicas, as ordens
permaneciam primordialmente fiéis aos seus propósitos.
Entretanto, essa posição era passível de mudança no caso das
irmandades estarem sujeitas a pressões externas.
O mundo Islâmico no final do século XVIII encontrava-se
sob pressão da Europa. As ordens sufis, assim como toda
comunidade muçulmana, partilhava do medo concretizado com a
perda de terras muçulmanas para países europeus.
B.G. Martin (1976) definiu os lideres dos jihads como
místicos moderados que, por meio da insurgência islamista,
tornaram-se reformadores políticos e sociais. Nesse grupo estão
incluídos os shaykhs ligados a confraria Qadiriyya, Usman dan
Fodio, Amir Abdul-Qadir e o shaykh Uways al-Barawi.
Os três eruditos citados estavam muito mais ligados ao
misticismo e menos comprometidos com a política.

Dotado de grande sensibilidade, amabilidade e de devoção


puramente religiosa, Usman dan Fodio retirou-se da vida
publica e do seu jihad para viver entre os seus estudantes e
práticas místicas (CAIRUS, 2002, p.107).

As irmandades sufistas desempenharam um papel-chave na


ascensão do reformismo Islâmico na África do Oeste e nos
levantes islamistas que se desenvolveriam nos jihads de fulanis
e tuculeres nos fins do século XVIII e por todo o século XIX. Ao
37

fornecerem uma estrutura organizacional que contribuía para a


rápida difusão de ideologias puritanas e alinhadas com as
demandas de pastores e camponeses, as confrarias tornaram-se
um excelente veículo para o proselitismo político e religioso.
Além disso, eram organizações que privilegiavam as lideranças
carismáticas. Eruditos islâmicos lançariam mão de todos os
recursos sociais, políticos e doutrinários das redes de
madrassas e das tariqas para levar a cabo seu empreendimento
de reformar o mundo a sua volta, como faria Usman dan Fodio
no Bilad as-Sudan. E, como veremos mais adiante neste
trabalho, tentariam fazer também os malês na Bahia em 1835.
38

3 . O R E F O R M I S M O N O I S L ÃO A F R I C AN O N O S S É C U L O S X V I I I
e XIX: ERUDIÇÃO RELIGIOS A E JIHAD NO BILAD AS-SUDAN

Religião do livro por excelência, o Islão é indissociável da


palavra escrita. O próprio Q u r ’ a n 12, seu livro sagrado, é
considerado o maior dos milagres de Deus para a humanidade:
um livro cuja beleza e eloqüência desafiaram os mais talentosos
poetas árabes do século VII, que foi revelado por intermédio de
um profeta iletrado, pois, de acordo a tradição islâmica,
Muhammad era analfabeto (ISKANDAR, 2007). O Livro Sagrado
e as tradições proféticas (ahadith) abundam em exortações à
leitura e à busca do conhecimento. De fato, o primeiro versículo
revelado do Qur’an dizia enfaticamente: “Iqra!” (96:1), ou seja,
“Lê!”. Dentre os aforismos do Profeta preservados pela tradição
islâmica são célebres os que dizem que “o conhecimento é uma
obrigação para todo muçulmano e toda muçulmana” e que “deve-
se buscar o conhecimento, mesmo que se tenha de ir até a
China” (LINGS,1973).
Com a vitória dos muçulmanos na Arábia no século VII,
houve a subseqüente expansão do Império Islâmico sobre
territórios anteriormente sob domínio dos impérios Persa e
Bizantino. Estes territórios abrigavam renomadas bibliotecas,
tais como a da cidade de Alexandria no Egito. Os moslimes
ganharam, desse modo, acesso a manuscritos remanescentes da
antiguidade, obras, em geral, esquecidas na Europa. Assim, o
conhecimento filosófico e científico de origens tão diversas
quanto a Índia, Egito, Grécia e Roma antigos, traduzido ao
árabe de tratados abandonados em bibliotecas persas e

12
Alcorão ou Corão designariam mais as traduções do livro sagrado do Islão, onde “Qur’an” refere-
se ao texto original que, segundo esta religião, é de origem divina e precede a eternidade.
39

bizantinas, foi absorvido e aperfeiçoado pelos muçulmanos


durante toda a Idade Média, somente vindo a ser redescoberto
pelos europeus através da presença islâmica na Península
Ibérica (al-Andalus).
Dada a ênfase conferida pelo pensamento islâmico a
instrução, particularmente no que se refere às ciências
diretamente relacionada ao Islão, como a teologia (kalam) e o
direito (fiqh), o papel reservado aos doutos em tais matérias,
quer dizer, dos detentores da erudição islâmica, não poderia
ser outro senão o protagonismo. A eles coube – e cabe ainda
hoje – a liderança de facto das comunidades muçulmanas.
O conceito de tajdid (renovação ou reforma) está
diretamente relacionado à erudição islâmica. Segundo um hadith
do Profeta, a cada século Allah faria surgir um homem para
revivificar o Islão, conforme os moslimes fossem degenerando
em sua crença e prática. Esses renovadores (mujadidun) foram,
quase sem exceção, sábios das ciências jurídico-teológicas,
como Al-Ghazali no século XI e Usman dan Fodio no XIX. Tajdid
foi o motor inicial dos movimentos militantes da África islâmica
dos séculos XVIII e XIX e, por extensão, podemos cogitar sua
influência entre os malês da Bahia, muitos dos quais foram
escravizados no percurso do jihad de Usman dan Fodio.

3.1 O shehu Usman dan Fodio e o reformismo islâmico na


África Ocidental

O crescimento da militância islâmica nos séculos XVIII e


XIX foi o ponto de partida de uma ruptura radical do
relacionamento estabelecido inicialmente entre os clérigos e os
intelectuais muçulmanos, colocados à margem da disputa do
40

poder político por governantes apenas nominalmente


muçulmanos.
Os jihads dos séculos XVIII e XIX foram obras de povos
pastores de língua fulfude (ou peuhl), sob a liderança dos
intelectuais fulanis pertencentes aos grupos Torodbe e
Toronkawa. É significativo o fato de todos os líderes dos jihads
da África Ocidental serem oriundos do campo e não das capitais
e centros comerciais.
O desafio à posição marginal do Islão nas sociedades
africanas não poderia ter vindo daqueles que eram privilegiados
pela ordem política existente. Os principais beneficiários da
ordem estabelecida eram os comerciantes protegidos pelos
governantes e os clérigos cortesãos.
N a s t e r r a s h a u ç á s , o s h e h u 13 U s m a n d a n F o d i o c r i t i c a v a o s
abusos dos governantes, e seu filho e sucessor, Muhammad
Bello, evocava a ira de Allah sobre os emires que tiravam seu
sustento às custas da miséria do povo (CAIRUS, 2002).
O Shehu justificava o jihad devido à sincretização do Islão
com as religiões ancestrais entre grupos hauçás, tais como o
culto bori, ou as consultas dos chefes tribais, nominalmente
muslimes, aos feiticeiros tradicionais.

O culto bori, por exemplo, foi a sobrevivência religiosa mais


comum entre os hauçás. Aos espíritos bori foram dados
nomes islâmicos e simultaneamente, os jinns muçulmanos
ou demônios identificaram-se com os espíritos bori. O fato
dos espíritos bori tornarem-se islamizados dificultou sua
erradicação. (CAIRUS, 2002, p.112)

Para enfrentar os recorrentes ataques de Kworarafa e


Katsina nos séculos XVII e XVIII, os reis de Kano procuraram
refúgio em rituais e mágicas dos sacerdotes tradicionais e dos

13
Corruptela do árabe “shaykh” . Usman dan Fodio era respeitosamente chamado de “o Shehu”
41

clérigos islâmicos locais. Os chefes de Kano vacilavam entre as


duas práticas religiosas, optando por uma ou outra de acordo
com os resultados obtidos.
Até o século XIX, Katsina, ao norte de Kano, foi a mais
importante cidade comercial dos domínios hauçás. Ao longo do
século XVII, o conhecimento islâmico esteve associado a Dan
Marina como ficou conhecido na Hauçalândia o erudito islâmico
Muhammad bin as-Sabbagh. Dan Marina reuniu à sua volta uma
comunidade intelectual versada em todos os ramos do
conhecimento islâmico. Alguns desses eruditos foram
empregados na corte, porém os principais postos na
administração eram ocupados por escravos e eunucos ligados ao
fetichismo tradicional.

Os eruditos islâmicos alienados do poder preferiam viver na


periferia de Katsina, em vilas dentro de um raio de quinze
quilômetros da capital. Nessas localidades, desfrutavam de
grande autonomia e suas mesquitas atraíam mais devotos
que as da cidade grande. Foi dessas vilas que saíram os
partidários do jihad de Usman dan Fodio. Os governantes
ignoravam-nos devido ao seu pequeno número e de sua
localização periférica distante dos principais centros
populacionais e do poder político. (CAIRUS, 2002)

Sidi Mukhtar Al-Kunti não era partidário do jihad militante,


muito embora apoiasse a insurgência de Usman dan Fodio no
que é a atual Nigéria setentrional.
Nos séculos XVII e XVIII, o Islão expande-se dos centros
urbanos para o interior. Eruditos mais zelosos de seus princípios
retiraram-se dos centros de poder político e estabeleceram
comunidades religiosas autônomas.
Ao mesmo tempo que o comércio serviu como base
econômica para a erudição islâmica nas cidades, o Islão rural
era dependente do trabalho de escravos e estudantes (talebes).
42

Pregadores muçulmanos itinerantes percorriam as


comunidades rurais, onde o próprio Usman dan Fodio se dirigia
aos camponeses e arbitrava seus agravos (CAIRUS, 2002).
Segundo B.G. Martin (1976), Usman Fodio foi o homem
talhado para promover a revolução da comunidade islâmica na
África do Oeste. Originário de um tradicional clã fulani torodbe
seus ancestrais imigraram por volta do século XV para a
Hauçalândia.
Erudição e intelectualidade eram partes integrantes do seu
mundo. Usman dan Fodio foi instruído por meio do Qur’an, da
gramática árabe, da interpretação da lei maliki e dos ahadith
proféticos que, seguindo os costumes se seu clã, estudou com
seus tios, ulama islâmicos. Esse conhecimento familiar,
entretanto, foi superado por aquele adquirido de mestres
tuaregues do sul do Saara. Entre esses estava Jibril bin Umar
Al-Aqdasi, que havia vivido no Egito por longo tempo e feito a
peregrinação a Makka por duas vezes.
Atraves de seu mestre Jibril o futuro shehu Usman foi
iniciado nas confrarias sufistas, Qadiriyya, Khalawatiyya e
S h a d i l i y y a ( o u S h a zu l i y y a ) ( D A N T A F A , 2 0 0 4 ) . P u r i t a n o e z e l o s o ,
n o q u e s e t r a t a v a d o s c h a m a d o s k a b a i r 14 o u “ p e c a d o s g r a v e s ” , o
mestre Jibril possuía uma posição próxima a intolerância.
Segundo ele, se cometidos por muçulmanos esses pecados
levaraim a descrença, fazendo de seu praticante um kafir, um
infiel. O pensamento de Jibril estava próximo às doutrinas
te oló gicas islâm ica s me die va is Kh awa ji e Mu ’t a zila . Usman da n
Fodio iria, futuramente, discordar das idéias do seu professor e
estabelecer uma ortodoxia sunita um pouco menos extrema.

14
Al-Kabair podem ser interpretados como os "pecados capitais do Islão". Referem-se aos
pecados graves como, entre outros, o adultério, consumo de álcool, a prática da feitiçaria e
sortilégios, homicídio e, é claro, a idolatria.
43

As experiências místicas de Usman dan Fodio constituíram


elemento fundamental em sua trajetória política (CAIRUS, 2002).
Segundo M. Shareef (2004), no final do século XVIII, por volta
de 1794, dan Fodio teve uma visão desperta, um encontro
místico com o fundador da tariqa Qadiriyya, o santo Abdul-Qadir
Geylani, que o chamou de “ Sayful-Haqq” (“Espada da
Verdade”), que deveria vir a ser empunhada contra os inimigos
de Allah e do Islão. Dez anos depois, em outro encontro místico,
Abdul-Qadir Geylani instruiu Usman dan Fodio a peregrinar a
Degel. Este seria seu último ato antes de se lançar no jihad que
daria origem ao Califado de Sokoto.
Usman dan Fodio inspirou e apoiou muitos outros eruditos
islâmicos através das terras fulanis, hauças e iorubas,
resultando na proliferação de emirados Islâmicos autônomos ou
vassalos de Sokoto. Quando, findado seu jihad e estabelecido o
Califado de Sokoto, que incluía a maior parte do que é hoje a
Nigéria e vastos territórios dos estados vizinhos, o Shehu
abdicou do governo e da vida pública, se retirando de volta a
seus estudantes, ao ensino místico e corânico. O califado
passou, então, para seu filho e sucessor Muhammad Bello que,
como o pai, produziu uma vasta obra jurídica, teológica e
histórica (SHAREEF, 1996).

3.2 O reformismo islâmico na Iorubalândia: o Emirado de


Ilorin

No estudo das revoltas malês é indispensável uma análise


da reformismo islâmico nas terras iorubás e dos eventos que
levaram a fundação do Emirado Islâmico de Ilorin, já que,
segundo bem observou Reis (2004), o grosso dos rebeldes
insurgidos em 1835 eram originários dessa região.
44

Há, segundo H.A.S. Johnston (1967), muitas semelhanças


entre os processos pelos quais os fulanis estabeleceram seu
poder em regiões como Nupe e aqueles que levaram à criação
do Emirado Ilorin. A única diferença importante é que os nupes,
sendo muito menos numerosos do que os iorubás, foram
completamente absorvidos pelo Império de Sokoto, ao passo
que, no caso de Ilorin, os fulanis conseguiram assimilar apenas
um dos muitos Estados da região iorubá.
Os iorubás, como os nupes e certamente o hauçás,
olhavam para o passado em busca de um fundador mítico ou
herói cultural. Este seria Oduduwa, que supõem ter sido o filho
do governador de Makka durante os tempos pré-islâmicos, e que
teria imigrado para o Ocidente devido a uma briga com seu pai.
Depois de muitas andanças, ele teria atingido a Iorubalândia e
se estabelecido em Ife. Mais tarde, seus descendentes
espalharam-se e fundaram as cidades iorubás e outros estados.
Entretanto, de acordo com esta lenda, dois de seus irmãos, que
haviam deixado Portugal, ao mesmo tempo, tornaram-se os
governantes de Kanuri e Gobirawa.
As histórias de Bornu e Gobir fornecem paralelos ainda
mais estreitos, tendo eles igualmente preservado a tradição de
uma origem em Portugal, como já foi mencionado e também
reconhecem uma relação de parentesco entre os três povos.
Como em Bornu e Gobir, os estrangeiros do Oriente teriam sido
aceitos como uma aristocracia pelo povo Iorubá, entre os quais
se estabeleceram. Além disso, as artes e as habilidades que
trouxeram com eles provavelmente fizeram uma contribuição
significativa para a cultura avançada e a complexa estrutura da
sociedade que os iorubás, mais tarde, desenvolveriam. Por outro
lado, os imigrantes não parecem ter sido suficientemente
numerosos para ter deixado qualquer vestígio étnico
45

significativo já que, fisicamente falando, os árabes e os iorubás


são bem diferentes. No que se refere a língua não deixaram
qualquer marca, já que a evidência mostra ser o iorubá uma
língua puramente africana (JOHNSTON, 1967).
Nosso conhecimento da Iorubalândia antes do século XVIII
deriva mais de lenda do que história. É de consenso geral,
entretanto, que Oyó, que viria a se tornar o mais poderoso dos
Estados iorubás, surgiu por volta do ano de 1400 D.C. e que a
sua primeira capital, a velha Oyó, foi fundada por essa altura. O
soberano detinha o título de Alafin e a dinastia alegava que o
fundador de sua linhagem havia sido o neto do mítico Oduduwa.
O Alafin de Oyó gradualmente cresceu em força e
autoridade, até haver estendido o seu domínio sobre toda a
região iorubá e tornou-se o suserano dos Estados menores que
a rodeavam.
Em 1700, quando acabava de conquistar o reino vizinho de
Daomé, Oyó estava no apogeu de seu poder e, com o ex-
poderoso reino do Benin já em declínio, agora dominava toda a
região sul e oeste do Baixo Níger.
No século XVIII, no entanto, Oyó começou a mostrar sinais
de declínio. Seu poder militar era baseado em sua cavalaria e
sua prosperidade no comércio terrestre com os estados hauçás.
Com o crescimento do comércio marítimo, o comércio terrestre
diminuiu em importância e com a importação de armas de fogo
papel dominante da cavalaria começou a diminuir. O resultado
dessas mudanças foi que os estados no litoral cresciam em
estatura, enquanto na Velha Oyó, situada numa região de
savana no nordeste e distante do Atlântico, os Alafins
encontravam cada vez mais dificuldade de controlá-los. Foi,
portanto, um sinal dos tempos quando, no final do século,
Daomé se recusou a pagar o seu tributo e Egbá, em outro estado
46

vassalo, jogou fora seu voto de fidelidade completamente.


Os iorubás, neste momento, aderiam a uma complexa
religião. Apesar de os mestres e missionários muçulmanos já
terem aparecido entre eles, o Islão não havia ainda lançado
nenhuma raiz real. Além disso, a presença da mosca tsé-tsé
havia mantido populações pastoris a distância e, assim, os
fulanis não tinham penetrado no país em um número
significativo. Se o caminho não tivesse lhes sido aberto,
portanto, é inconcebível que os fulanis pudessem ter se
estabelecido como a potência dominante em terras iorubás.
Foram, no entanto, as dissensões existentes entre os próprios
iorubás que tornaram possível aos fulanis fazer exatamente
isso.
A sudeste da velha Oyó estava a cidade de Ilorin, um
importante bastião iorubá governado por um comandante militar
chamado Afonjá. Quando o Mallam Dendo, o líder do jihad em
Nupe, havia sido expulso de Raba foi em Ilorin que ele
encontrou guarida, provavelmente porque Afonjá a esta altura já
havia caído sob a influência de um outro erudito fulani,o mallam
Alimi. Seja como for, a visão que Afonjá, em seguida, adquiriu
das qualidades marciais dos fulanis, parece ter-lhe dado a idéia
de usá-los nos planos que estava arquitetanto.
De sua estreita associação com o mallam Alimi podemos
supor que a nessa época Afonjá teria se convertido ao Islão.
Isso por si só seria suficiente para enfraquecer sua lealdade ao
Alafin de Oyó, que continuava a venerar deuses pagãos. Além
disso, Afonjá era um homem ambicioso, que se irritava com sua
posição de vassalo e ansiava se tornar um chefe por direito
próprio. Em todo caso, logo após Afonjá ajudar os fulani de
Nupe a repelir os seus perseguidores, ele fez um pacto com
mallam Alimi para o recrutamento de voluntários fulanis e
47

hauçás do norte. Ele, sem dúvida, convenceu o mallam a


acreditar que o seu objetivo era declarar um jihad e estabelecer
um emirado muçulmano em Ilorin, que deveria fidelidade a
G w a n d u 15 e Sokoto. Todavia parece mais provável que, na
verdade, que se tratasse de apenas parte de um jogo de Afonjá.
Se Alimi tinha quaisquer dúvidas sobre os reais motivos de
Afonjá, não sabemos, mas não havia nenhuma dúvida sobre o
sucesso de seu recrutamento, através do qual ele atraiu para
Ilorin grandes números de voluntários fulanis e hauçás. Por
volta de 1817, ano da morte do shehu Usman dan Fodio, Afonjá
sentiu que chegara sua hora. Desse modo, ele jogou fora sua
fidelidade ao Alafin e Ilorin declarou-se independente de Oyó. O
A laf in imediatamen te rea giu , en viando uma e xped ição pun it iva
contra ele, mas, com a ajuda de seus aliados muçulmanos,
Afonjá venceu os soldados de Oyó e os mandou de volta.
A rebelião de Afonjá em Ilorin foi interpretada como um
sinal por outros vassalos para abandonar seus votos de
fidelidade e o Império de Oyó, já fragilizado, começou a quebrar.
Em 1821, o Alafin já tinha perdido grande parte de sua
autoridade fora da Oyó metropolitana e já não era forte o
suficiente para colocar de volta sob seu poder Ilorin ou outros
ex-vassalos rebelados. Na história iorubá este foi um
desenvolvimento da maior importância, pois a remoção da
autoridade de Oyó iria levar a setenta anos de guerra civil.
Em Ilorin, Afonjá manteve boas relações com seus aliados
fulanis e hauçás apenas enquanto Oyó permaneceu um suserano
a ser temido. No entanto, assim que o poder de Oyó ruiu, e a
ameaça de conquista foi removida, logo surgiram atritos entre
Afonjá e seus aliados islamitas. Há duas versões conflitantes de

15
Gwandu era um emirado islâmico governado pelo irmão e discípulo fiel de Usman dan Fodio, o
erudito Abdullahi dan Fodio.
48

como isso aconteceu. A primeira diz que os combatentes fulanis


e hauçás recrutados pelo mallam Alimi, que assim como os
militantes reformistas do Shehu, eram conhecidos como
Jama’ah, saiu de controle após sua vitória e começaram a
saquear cidades e vilas amigáveis. Uma segunda versão,
contudo, defende que eram o Alafin e as elites iorubás que,
após a ameaça de Oyó ter sido removida, tentaram negar aos
seus aliados os frutos da vitória e expulsá-los do reino que eles
haviam ajudado a criar.
Há provavelmente verdade em ambas as versões. Entre os
voluntários fulanis e hauçás, devem ter existido muitos
aventureiros e soldados da fortuna e não seria surpresa se eles
fossem culpados de algum saque ou pilhagem. Por outro lado, a
motivação de Afonjá parece ter sido a ambição pessoal, e não a
devoção ao Islão. Depois que hauçás e fulanis já tinham servido
a seus propósitos, ele tentou se livrar deles.
Alimi era um soldado e um professor cujos objetivos eram
religiosos e não políticos. Enquanto viveu, ele fez o seu melhor
para manter seus seguidores sob controle, assim como sua
influência moderadora sobre eles. Isso combinado com a
modéstia de seus objetivos pessoais, parece ter impedido uma
violação aberta dos acordos firmados. Quando ele morreu, em
1831, porém, foi sucedido como líder do grupo muçulmano por
seu filho, Abdu Salami dan Alimi, que era um homem dotado de
muito mais ambições mundanas que seu pai.
Afonjá sabia, sem dúvida, com que tipo de homem ele
agora teria que lidar e resolveu partir para o ataque contra os
imigrantes hauças e fulanis e expulsá-los do reino de uma vez.
Para esse fim, ele buscou secretamente o apoio das cidades
iorubás vizinhas. Elas, entretanto, não forneceram a ajuda com
que ele estava contando e o resultado foi que, quando se
49

confrontaram, Abdu Salami foi capaz de virar a mesa contra ele.


Afonjá foi morto no combate que se seguiu e a causa iorubá
desabou.
Através dessa vitória Abdu Salami se fez mestre de Ilorin.
Como seu pai antes dele, ele se voltou para o emirado islâmico
de Gwandu, governado por Abdullahi dan Fodio, irmão do Shehu,
em busca de liderança e proteção. Em troca, ele era agora
presenteado com uma bandeira e investido com o título e as
regalias de um Emir. O Emirado de Ilorin, assim, surgiu em 1831
já como parte de um império.
Abdu Salami não se contentou com os domínios que ele
havia arrancado de Afonjá, mas decidiu ampliá-lo, fazendo
guerra contra seus vizinhos. Ele foi, geralmente, bem-sucedido,
embora incapaz de manter todos os territórios conquistados,
obteve muitas vitórias notáveis contra o poder em desintegração
de Oyó e seus satélites.
Com a expansão da influência de Ilorin na Iorubalândia foi
dado um novo fôlego ao Islão entre os iorubás. Os moslimes
iorubás alistavam-se nas fileiras de Abdu Salami e o fervor
proselitista fazia novos conversos na região. Era dentre esses
iorubás islamizados que encontravam-se o grosso dos rebeldes
islâmicos de Salvador em 1835, durante o levante malê.

3.3 Os movimentos de tajdid e as revoltas afro-muçulmanas


na Bahia

Os movimentos islâmicos de tajdid no Bilad as-Sudan


revelam o ponto alto do papel dos eruditos na difusão e reforma
do Islão africano. Com os ulama ligados às confrarias e
detentores de um sofisticado conhecimento jurídico-teológico, a
reforma ganha contornos aparentemente contraditórios de um
50

Islão ao mesmo tempo intelectualizado e militante. Este


reformismo que tem por bandeira o combate ao tráfico de
escravos muçulmanos enquanto, ao mesmo tempo, aumenta o
tráfico com a oferta crescente de indivíduos originários das
regiões de conflito e que atende a demanda, igualmente
crescente, do tráfico atlântico.
O conflito intenso, no princípio em terras hauçás e
posteriormente em direção à Iorubalândia, produziu prisioneiros
de diversos extratos sociais e religiosos. O tráfico negreiro não
diferenciou nobres de pastores, nem eruditos de muçulmanos
nominais ou de fetichistas.
Contrariando as análises materialistas, é muito difícil negar
a estreita relação existente entre erudição e mística islâmica e
a militância e reformismo jihadista na África Ocidental na virada
do século XVIII para o XIX. Conforme trataremos nos capítulos
seguintes, estas mesmas relações podem ser traçadas entre o
florescimento da erudição religiosa e do proselitismo Islâmico na
Bahia da década de 1830 e a Revolta dos Malês.
Segundo a teoria de Levtzion (CAIRUS, 2002), quando os
clérigos assumem o poder, o Islão torna-se militante, reformador
e revolucionário e segundo esse paradigma, isso pode ser
aplicado, em termos gerais, a todos os movimentos reformadores
islâmicos na África do século XIX, e no século XX a movimentos
mais contemporâneos no Sudão, no Irã e no caso especifico da
ascensão da outrora excluída e agora majoritária e poderosa
comunidade xiita que emergiu após a guerra civil libanesa.
O destino dos eruditos e militantes cativos, em terras
bainas, faz parte de uma nova realidade que abrange uma
grande variedade de atitudes que podiam ir da acomodação à
rebelião aberta. Esses afro-muçulmanos, na maioria adultos e
saudáveis, conforme priorizava o tráfico transatlântico, não
51

poderiam simplesmente ter se “criolizado”, nem se limitado ao


mero cultivo nostálgico de algumas sobrevivências culturais,
mas, muito pelo contrário, dedicavam intensamente suas
energias para restabelecer, em um novo e hostil continente,
suas crenças, valores, enfim, seu modo de vida (Din). E isso se
fez sob a direção dos eruditos islâmicos escravizados no
percurso dos jihads.
Conforme observou José Cairus:

Um aspecto decerto perturbador para alguns poderá ser


percebido na comunidade escrava muçulmana de Salvador,
quando em 1835 os clérigos eruditos assumem a direção dos
negócios dessa comunidade. Dentro de um padrão
historicamente coerente, o Islão tornar-se-á militante,
organizado dentro dos padrões de solidariedade rebelde
(CAIRUS, 2002, p.137).

O Islão na Bahia da década de 1830, sob a direção dos


sábios religiosos, retomaria o fervor militante dos tempos dos
jihads de Sokoto e Ilorin e se empenharia no proselitismo
religioso e rebelde, insurgindo-se agora não contra aquele
fetichismo ancestral ou aqueles tiranos apenas nominalmente
muçulmanos da África, mas contra uma sociedade baiana cristã
e escravocrata.
52

4 . P R O S E L I T I S M O E M I L I T ÂN C I A I S L ÂM I C A N A B AH I A D O
SÉCULO XIX

Na noite 24 de Ramadan do ano de 1250 da Hégira,


coincidente com a madrugada de 24 para 25 de Janeiro de 1835,
um grupo formado de centenas escravos e libertos muçulmanos
iniciou uma insurreição armada nas ruas de Salvador. A data
não era desprovida de significados: era uma das dez últimas
noites do sagrado mês de jejum islâmico, entre as quais se
encontraria Lailatul-Qadr, a Noite do Poder ou Noite da Glória,
na qual Allah revelou o Qur’an a humanidade. Era também a
data da festa católica de Nossa Senhora da Guia.
Arquitetado, provavelmente, por um logo período, o plano
fora delatado às autoridades obrigando o levante a ser
antecipado em algumas horas, perdendo a vantagem do
elemento surpresa.
O confronto entre os insurgentes e forças militares e
paramilitares na capital baiana durou toda a madrugada. Os
revoltosos tomaram prédios do governo e instalações militares
até serem finalmente derrotados.
A Revolta dos Malês, como passou a ser conhecida, teria
repercussões em todo o Império e além dele, sendo considerada
a maior rebelião de escravos urbanos nas Américas e vista, por
muitos estudiosos, antigos e modernos, como uma continuidade
dos jihads da África Ocidental no novo mundo.

4.1 – A Noite do Poder de 1835: O Levante dos Malês

Segundo Paul Lovejoy (2000) o jihad de Usman dan Fodio


foi responsável por parcela significativa de das exportações de
escravos da Baía de Benin para a Bahia depois de 1804.
53

Em 1806 a Baía de Benim supria a Bahia com 8.307


indivíduos Gege (Ewe/Fon/Gbe), Ussá (Hauçá) e Nagô
(Iorubá)” (LOVEJOY, 2000, p. 14).

A importância do jihad na geração de escravos entre 1804


e 1810, afirma Lovejoy, é atestada por meio das biografias dos
cativos que haviam sido capturados nessas guerras santas.
Seria o caso daqueles entrevistados por d’Andrada na Bahia em
1819. De acordo a Reis (2003), ao menos 15,8% dos escravos e
forros da Bahia na década de 1830 provinham da região do jihad
fulani. Esse percentual exclui os escravos iorubás, chamados
“nagôs” no Brasil, advindos das áreas de conflito de Oyó e Ilorin
e da expansão de Sokoto sobre as terras iorubás. Lovejoy
observa que “escravos iorubás e libertos constituirão 28,6% nas
amostragens de Reis (699 pessoas), e parece provável que
muitos, senão a maioria deles, resultavam direta ou
indiretamente da jihad” (LOVEJOY, 2000, p. 15). Na insurreição
de 1835 a grande maioria dos rebeldes era de origem ioruba,
que também representavam a maior parte da população afro-
muçulmana na Bahia. Segundo Nina Rodrigues:

Em geral, os nagôs do centro da Costa dos Escravos, os de


Oyó, Ilorin, Ijesá, etc., são quase todos, na Bahia, muçulmis,
malês ou muçulmanos, e a seus compatriotas se deve
atribuir a grande revolta de 1835” (RODRIGUES, 1976, p.
104).

O ato inicial da rebelião, segundo Reis (2003), coube


somente ao grupo que se reunia na casa do mestre malê Manoel
Calafate, na ladeira da praça, nas primeiras horas de 25 de
Janeiro. Manoel Calafate, como veremos ao tratar da
organização e liderança malês, era um dos principais expoentes
da erudição islâmica na Bahia na década de 1830.
Os insurretos atacaram em diferentes pontos da cidade,
tendo por alvos deliberados instalações militares e
54

governamentais, como o quartel de São Bento e o do Largo da


Lapa e a prisão municipal, onde outro mestre malê, Licutan, se
encontrava preso. A estratégia dos malês não seria ocupar
Salvador de imediato, expondo-se a um cerco posterior, mas
tratava-se de agitar a cidade e partir para o Recôncavo. Há aí
paralelos com estratégias utilizadas pelos hauçás na África e
que também não eram desconhecidas dos iorubás islamizados
de Ilorin. Segundo Reis (2003), os malês compreenderam a
posição estratégica do Recôncavo na geografia político-militar
da Bahia. O know-how militar adquirido durante os jihads na
África do Oeste foram colocados em prática no Brasil em 1835.
Um indício que as motivações dos insurgentes estavam
além da mera revolta contra a escravidão, foi que estes não
partiram para a violência indiscriminada contra a população
civil, não invadiram casas, nem se entregaram a saques e
incêndios. Na verdade, não promoveram a violência nem contra
seus senhores e suas famílias, o que teria sido fácil naquele
momento. Todavia, os malês limitaram-se a um enfrentamento
mais clássico (REIS, 2003), lutando somente contra as forças
oficiais organizadas para combatê-los. Aliás, os próprios malês
saíram para luta uniformizados (NINA, 1976; CAIRUS, 2002). O
próprio Reis, que nega o caráter jihadista da revolta malê,
observa que “talvez tivesse havido nisso algo do protocolo
militar muçulmano” (REIS, 2003, p. 149).
O próprio presidente da província via no fato de não
matarem seus senhores e de nada roubarem, um claro indicio de
que buscavam algum fim político. O cônsul francês, diante da
mesma constatação, afirmava que seu objetivo seria “tomar o
governo” (REIS, 2003).
Contando principalmente com armas brancas, os malês
estavam despreparados para uma luta convencional, contra
55

soldados equipados com armas de fogo. Seu melhor armamento


eram as parnaíbas alemãs, grandes facões curvos, semelhantes
às espadas utilizadas pelos combatentes islâmicos na África.
Seu acesso a armas mais modernas foi limitado, mas não
inexistente. Na casa do nagô liberto de 64 anos, Antonio Manoel
Boncaminho, a polícia encontrou 5 espingardas, 2 mosquetes, 8
pistolas e mais 8 espadas e algumas armas de fogo que
necessitavam de reparos. Com os rebeldes também foram
encontrados algumas flechas, similares a utilizadas pelos
hauçás nos jihads africanos (REIS, 2003).
O número de africanos que de fato saíram às ruas de
Salvador para lutar em 1835 é difícil de especificar. O cônsul
francês os calculou entre 400 e 500 e o presidente da província
baiana foi vago em seus números, limitando-se a dizer que
seriam mais de 200 indivíduos. Para o comerciante Gey de
Carter, seriam, em suas contas mais de 500, entre escravos e
libertos. Para João José Reis (2003) seriam 600 combatentes
malês. O mesmo autor calcula que se levarmos em conta os
números menores (200) em 1835, proporcionalmente a
população da capital baiana em 2002, isso equivaleria a uma
insurreição armada de 9000 pessoas em Salvador. Já as forças
oficiais contavam com, pelo menos, 1500 homens equipados com
armas de fogo. Dos malês mortos e feridos, quase todos o foram
por armas de fogo e alvejados a distância.
Quando os combates findaram, o número dos mortos do
lado malê foi de mais de setenta, de acordo a Cairus (2002) e
Reis (2003). Os mortos pelos revoltosos contabilizavam apenas
nove indivíduos, sendo dentre estes, quatro pardos e um crioulo,
todos paisanos que integravam patrulhas que combatiam os
malês.
56

A retribuição das autoridades foi dura. Reis (2003) dá os


números: dos 231 malês presos, 16 foram condenados a prisão,
8 a galés, 45 a açoites, 34 deportados a África e 4 foram
condenados a morte (3 escravos e um forro). Os absolvidos
contabilizavam 28 indivíduos e o restante teve penas não
especificadas. A ostensiva repressão que se seguiu, contra afro-
muçulmanos e o Islão negro ao longo século XIX, não apenas na
Bahia, mas em todo o Império, impediu a continuidade do até
então crescente movimento de proselitismo islâmico na Bahia e
contribuiria para o desaparecimento dessa tradição religiosa no
Brasil nos inícios do século XX. O islamismo malê, todavia, teria
marcada influência sobre usos e práticas das religiões afro-
brasileiras, como o uso de barretes, patuás e vestimentas
brancas e o respeito pela sexta-feira.

4.2 A Comunidade Malê

Nas palavras de Rolf Reichert:

Os muçulmanos usaram e usam, para designar a si próprios,


uma única palavra, em qualquer parte do mundo e em todos
os tempos: a palavra árabe muslim (muslimun no plural, nos
casos oblíquos muslimin). Todas as denominações, ou sejam
as que não derivam da palavra muslim, foram inventadas
pelos adeptos de outras religiões (REICHERT, 1970, p. 109).

No Brasil os afro-muçulmanos eram chamados de “malês”,


não por si próprios, obviamente, mas por aqueles que não
comungavam de sua fé. Nina Rodrigues (1976), que conheceu e
entrevistou os últimos anciões malês da Bahia, observou que
essa expressão era tida como abjeta pelos afro-muçulmanos,
principalmente os de origem hauçá.
A palavra “malê” vem do iorubá imale que tem o significado
de “muçulmano”, “moslim”. Esse vocábulo iorubá, por sua vez, é
57

derivado da palavra árabe mu’allim, que designa os letrados e


clérigos islâmicos. A palavra hauçá mallam (na Bahia “malam”)
tem mesma origem e significado.
A etimologia do termo alufá já é mais obscura. No parecer
de Reichert:

“Trata-se, evidentemente de uma classe análoga aos malemi


dos hauçás, o que nos afirmam também os africanistas
franceses. Monteil dá ao alufá o significado de marabout,
Marty traduz o termo por “professor de escola”, e Ricard por
“advinho muçulmano”. Todas estas funções são
características também do mu’allim. (REICHERT, 1970,
p.116)

De fato, todos essas atribuições (e algumas mais) seriam


desempenhadas pelos eruditos islâmicos em terras baianas.
No que se refere a generalidade dos afro-muçulmanos,
Roger Bastide (1985) caracterizou os malês como,
essencialmente, uma comunidade puritana.

Não só pela moral externa, pela sobriedade, a temperança


que freava consideravelmente a exuberância, a gritaria, o
gosto pela bebida, os cantos e gritos dos outros africanos e
que se notava até na aparência externa, a calma nas
conversas, a moderação dos gestos, o uso da barba “à la
Cavaignac”, como símbolo de diferenciação étnica e
religiosa, mas também porque a fé marcava toda a vida dos
muçulmanos, os diversos momentos de sua existência,
desde o nascimento até a morte, e as diversas etapas do dia,
desde o alvorecer ao pôr do sol (BASTIDE, 1985, p. 208).

É informação recorrente, no trabalho de diversos autores,


que cada ato do malê era precedido da expressão “bissimilai”.
N a v e r d a d e , “ b i s m i l l a h i ” ( e m n o m e d e A l l a h ) 16.
Todas os testemunhos documentais tornam indiscutível que
os malês interagiam ativamente com outros grupos. Todavia,

16
A expressão completa é Bismillahir-Rahmanir-Rahim: em Nome de Deus, Clemente e
Misericordioso. Essa invocação encabeça todas os capítulos do Qur’an, exceto um.
58

ainda que pareça paradoxal, buscavam viver voltados para seu


próprio mundo. O cultivo da sobriedade e temperança de que
fala Bastide fazia o malê ir deitar-se cedo e levantar-se
igualmente antes da alvorada para as orações matinais (salatus-
subh).
A poliginia existia e era praticada por alguns dentre os
afro-muçulmanos da Bahia. As mulheres não velavam o rosto,
um costume quase desconhecido na África Ocidental, mas
cobriam os cabelos com um turbante (BASTIDE, 1985). Não
consta nem mesmo que a célebre filha de Usman dan Fodio,
Nana Asmau, ela própria responsável por uma importante
produção literária, mística e histórica, bem como outras
mulheres de seu clã, velassem o rosto. Também não temos
notícia de nenhum texto do zeloso Shehu que advogasse seu
uso.
A educação era muito estimada na comunidade malê e era
grande o prestigio dos que possuíam maior grau de erudição nos
assuntos islâmicos. Bastide (1985) diz que aos 10 anos os
meninos eram circuncidados e iniciavam-se nos estudos do
Qur’an. As escolas corânicas eram localizadas nas residências
de alufás e malams, locais que também serviam de mesquitas
para as orações, pregações de sexta-feira e tekkes para práticas
sufis. As aulas dos mestres eruditos, que ensinavam a escrever
em caracteres arábicos eram muito concorridas, mesmo com
todas as condições adversas apresentadas pelo cativeiro. Reis
comenta que:

É realmente impressionante que a experiência da leitura e da


escritura disciplinadas pudessem interessar tão vivamente a
libertos e sobretudo a escravos que, embora cansados do
trabalho, sempre arranjavam tempo para se dedicar a elas.”
(REIS, 2003, p. 225).
59

Os neófitos recebiam instrução dos malês, tanto escravos


quanto libertos, que sabiam ler e escrever. Aqueles trabalhando
no ganho se reuniam nas ruas, esquinas ou no porto, para
oferecer seus serviços e, na espera por fregueses, se ocupavam
de religião e rebelião.
A comunidade era dirigida pelos mestres (malams, alufás)
instruídos nas ciências islâmicas e as residências que serviam
de escolas-mesquitas eram o centro ao redor do qual a
sociedade malê gravitava.
Muhammad Shareef (1998) demonstra em seu trabalho que
o Islão permitiu, no Bilad as-Sudan, a união de grupos étnicos
variados – e por vezes antagonistas – sob uma bandeira única.
O autor advoga que o mesmo fenômeno teve lugar na Bahia do
século XIX. De fato, a despeito da maioria dos afro-muçulmanos
ser de origem nagô ou iorubá, os mestres possuíam uma origem
étnica mais variada e um grupo de seguidores que, por vezes,
não correspondia aos padrões de afiliação baseadas em linhas
étnicas. A legitimidade advinda da erudição transpunha as
legitimidades étnicas. Apesar de alguns grupos étnicos como os
hauçás terem a fama de mais instruídos no Islão, era o nível de
erudição e o carisma místico de cada mestre, independente de
sua origem étnica, que determinaria seu status e o tamanho de
seu “rebanho”.

... da mesma forma que os haussás, os nagôs contavam com


velhos muçulmanos em suas fileiras e o prestígio, a
influência e ascendência que tinham não podem ser
subestimados (REIS, 2003, p. 180).

Como indicam os estudos de Reis (2003) e Cairus (2002)


por volta de um terço dos rebelados em 1835 era composto de
libertos e alguns, na avaliação de Nina Rodrigues (1976) seriam
“ricos”. O alufá Dandará, por exemplo, era comerciante de fumo.
60

Cabe aqui salientar que muitos dos libertos africanos, malês ou


não, eram eles próprios donos de escravos. Esse dado é
importante para desmistificar a Revolta dos Malês como uma
revolta escrava com objetivos abolicionistas. Tanto Ettiene
Ignace (1970) quanto Nina Rodrigues (1976) mencionaram o
projeto malê de, após “tomar a terra” e exterminar os brancos,
escravizar a crioulos e mulatos. Os malês eram, principalmente,
escravos de ganho. Não se encaixando naquilo que o imaginário
contemporâneo tem por escravidão: os grilhões nos pés, a
senzala, as plantações de cana-de-açúcar e café. Os escravos
de ganho eram uma categoria de cativos que vivia “livre”,
trabalhando durante o dia prestando serviços variados como
carpinteiro, alfaiate ou carregador, retornado a casa do senhor
apenas para entregar o ganho do dia e dormir. E havia mesmo
aqueles que viviam em residências alugadas, totalmente
separados dos senhores, aos quais entregavam uma quantia
semanal especificada. Normalmente havia um excedente que era
endereçado a um caixa com fins de promover a própria alforria e
a de seus correligionários. Esse caixa também ajudava a manter
os mestres malês e, é claro, financiar a rebelião.

4.3 O Islão negro na Bahia

Na década de 1830, estava em curso na Bahia um intenso


movimento de proselitismo islâmico (da’wa). Para João José
Reis (2003) o ambiente urbano teria facilitado sobremaneira o
crescimento do Islão na Bahia, onde a relativa independência
dos escravos de Salvador e a presença de numerosos libertos
somados a interação entre os dois grupos contribuíram para
construir uma dinâmica rede de convívio, proselitismo,
recrutamento e mobilização.
61

Havia, é claro, níveis variados de compromisso e


profundidade entre aqueles que adentravam a comunidade malê.

A penetração muçulmana na comunidade escrava se


realizava em níveis distintos de profundidade religiosa e de
compromisso, porém. Como em toda religião, havia um
centro mais doutrinário e uma periferia menos douta e
relaxada. Num nível mais superficial encontramos a adoção
de símbolos exteriores da cultura muçulmana. O mais
notável e difundido desses símbolos eram os amuletos
malês” (REIS, 2003, p.180).

Esses amuletos constituíam-se, principalmente, de


v e r s í c u l o s s e l e c i o n a d o s d o Q u r ’ a n e d u ’ a s 17 e s c r i t o s e m p a p e l e
guardados em pequenas bolsas de couro ou cilindros de metal e
usados em volta do pescoço. Estão na origem dos “patuás” e
“mandingas” usados pelas religiões afro-brasileiras e pelo
catolicismo popular. De fato, “mandinga” era o nome de uma das
primeiras etnias islamizadas a ser introduzida no Brasil
(RODRIGUES, 1976). A despeito da oposição de grupos
fundamentalistas modernos, a confecção e uso de amuletos
corânicos, chamado s taw iz, é conhecida no Islão desde os
primeiros séculos da Hégira. O próprio malam Alimi
confeccionava tawiz para os guerreiros de Ilorin. Essa prática
não estava limitada ao continente africano, sendo popular da
Turquia à Indonésia. Segundo Reis (2003) esses amuletos
podiam ter funções extremamente especializadas, da proteção
contra intrigas dos inimigos, de demônios e até contra flechas e
balas. Constituíam também, na Bahia, um excelente instrumento
de propaganda islâmica, já que eram muito requisitados pelos
não-muçulmanos que, ao atestarem sua eficácia, podiam muito
bem desejar um maior compromisso com a fé dos afro-

17
Du'a: literalmente "súplica", refere-se a orações oriundas dos ahadith ou da biografia do Profeta
Muhammad, de seus Companheiros ou de autoria de santos e eruditos do Islão clássico.
62

muçulmanos. Os amuletos constituem a principal fonte textual


deixada pelos malês e foram objeto de análise de Nina
Rodrigues (1976) no início do século XX, que os mandou
traduzir por um padre maronita árabe e de Rolf Reichert (1966)
que publicou uma seleção deles com tradução e comentários.
Os “patuás” malês eram confeccionados pelos mestres
religiosos, malams e alufás, que transmitiam seu carisma para o
objeto e assim estreitavam os laços com seus seguidores.
As cinco orações diárias (as-Salah) são a principal
manifestação externa do Islão. Os malês, zelosos moslimes que
eram, não se furtavam a sua prática.

Às quatro horas da manhã, depois de estar vestido (camisa


fechada, calças, gorro com borla caída, tudo de algodão bem
alvo), munido de seu tecebá, um rosário de cinqüenta
centímetros de comprimento, composto de noventa e nove
contas grossas de madeira, e terminado por uma bola, o fiel
abria o dia que começava por orações pronunciadas sobre
uma pele de carneiro. Era o que se chamava de “fazer sala”.
(...) Cada prece era precedida de uma ablução em que o
negro deixava sua vestimenta comum e vestia uma longa
camisa branca de mangas compridas, chamadas abadá”
(BASTIDE, 1985, p. 212).

A vestimenta era outro distintivo islâmico na Bahia,


juntamente com os amuletos. A idéia islâmica de pureza ritual
(tahara), sem a qual não se pode orar ou mesmo tocar o Qur’an,
marcava o uso das vestes brancas envergadas pelos malês.
Chamadas abadá, do iorubá agbda, tratavam-se de uma espécie
de camisolão comprido, habitualmente feito de pano-da-costa.
Diferentemente de seu uso cotidiano na África, na Bahia, devido
à perseguição das autoridades, os abadás foram restritos a uma
função mais ritual. Os malês os usavam em casa, longe de olhos
curiosos, durante suas rezas e outros rituais. E seria com eles
uniformizados que os insurgentes de 1835 sairiam às ruas de
63

Salvador para a guerrear. Os barretes e turbantes constituíam


outra parte da indumentária malê. Como observou Reis:

Outro ponto interessante é saber o que os malês usavam


sobre a cabeça. Esses objetos foram descritos ora como
barretes, ora como carapuças. Tinham alguma função ritual,
porque aos não-iniciados não se permitia que os usassem
(REIS, 2003, p. 211).

O fato do uso de barretes e outras variedades de


indumentárias para cabeça estar condicionado a uma “iniciação”
é bastante significativo, principalmente se levarmos em
consideração outro símbolo islâmico na Bahia, o uso do “anel de
malê”. Pode ser o indicativo de que, como sugeriu Cairus
(2002), os malês estivessem organizados em confrarias sufis.
Voltando aos anéis, uma vez que evitavam sair em público com
suas roupas tradicionais, os afro-muçulmanos baianos
transferiram da África uma forma mais discreta de identificarem
seus confrades: o uso dos chamados kendé, dois grandes anéis
de ferro utilizados no polegar e anular ou dedo médio da mão
esquerda. Quando batidos um contra o outro produzem um ruído
forte e seco. Dezenas desses kendés foram apreendidos pela
polícia após o levante malê. Reis aponta para o depoimento do
nagô liberto João, de que os anéis “eram o distintivo de que
usam os daquela sociedade (malê) para se conhecerem” (REIS,
2003, p. 212). Parece possível que essa “sociedade” da qual
fala o nagô se referisse a uma confraria ou irmandade
específica, de natureza sufista.
Manoel Querino descreve o que Bastide (1985) afirma ser a
oração de sexta-feira (salatul-jumu’a). Entretanto, sua descrição
não possui qualquer similaridade com esse rito islâmico
semanal, e é mais provável que se tratesse de uma cerimônia
sufista realizada pelos afro-muçulmanos na Bahia:
64

“Pela manhã, era servida uma mesa, em que sobressaía a


toalha muito alva, de algodão, ocupando a cabeceira do
chefe Lemano, como, lugar de honra. Após ligeira refeição,
cada um, munido de seu rosário, ouvia do chefe as palavras:
Lá-i-lá-i-lá-lau, mamadú araçá-lu-lai. Sa-la-lai-a-lei-i-salama
(Deus único e verdadeiro, o seu profeta é quem nos guia).
Acheado Ana lá-i-lá, i-la-lau (vós sois o único Deus
verdadeiro). Acheádo-ana-manmadú ara-su-luai (e Teu
profeta é o nosso mestre). Ai-á-la-li-salá (eis as minhas
preces). Ai-á-la-li-falá (eis o meu coração). Cadecama-i-salá
(no monte Sinai). Durante a celebração do ato religioso, as
mulheres, de espaço a espaço, repetiam a frase: Bi-similai.
Em dado momento o chefe levantava-se, dava as costas ao
auditório, soerguia as mãos, descansava-as sobre o peito,
ajoelhava-se, baixava, em sinal de reverência, e proferia as
mesmas palavras do início: Lá-i-lá-i-lá-lau, mamadú araçá-lu-
lai. Sa-la-lai-a-lei-i-salama. Isto feito, o chefe apertava as
mãos de seus imediatos, e estes, das demais pessoas
presentes, e estava terminada a missa. Em plena cerimônia,
a dona da casa se dirigia às pessoas presentes, cruzando os
braços, e, na atitude de quem dobra os joelhos, proferia a
seguinte saudação: Barica da suba môtumbá, que quer dizer:
“Meus respeitos.” (BASTIDE, 1985, p. 212-213) 18

Obviamente, devido a condição escrava em que se


encontrava a maioria dos malês, seria impossível cumprir com o
Hajj (peregrinação) à Makka. Embora, segundo Cairus (2002) e
Reis (2003), o velho Mohammed Abdullah, que na década de
1850 tentou converter o cônsul francês, Francis de Castelnau
por meio do debate teológico, declarasse ter peregrinado a
Cidade Santa antes de seu cativeiro.

18
A "tradução" apresentada por Querino também é incorreta e, por vezes absurda. O correto
significado das frases e sua forma árabe seriam:
Lá-i-lá-i-lá-lau, mamadú araçá-lu-lai. Sa-la-lai-a-lei-i-salama (na verdade: La ilaha il Allah,
Muhammadar Rassulu-Llah. Sallallahu alaihi wa salam = Não há Deus senão Allah, Muhammad é
o Mensageiro de Allah. Que as Bençãos e Paz de Allah sejam sobre ele)
Acheado Ana lá-i-lá, i-la-lau (Ash-Hadu an la ilaha il Allah = testemunho que não há Deus senão
Allah). Acheádo-ana-manmadú ara-su-luai (Ash-had anna Muhammadar Rassulu-Llah =
testemunho que Muhammad é o Mensageiro de Allah). Ai-á-la-li-salá (Haya 'alas-Salah = vinde a
Oração). Ai-á-la-li-falá (Haya 'alal-Falah = vinde à Salvação). Cadecama-i-salá (Qad Qamatis-Salah
= se levantem para a Oração)
65

O jejum do Ramadan, porém, era observado com todo o


rigor e dedicação, a despeito de todas as dificuldades impostas
pelo cativeiro. Foi dentre os últimos dias desse mês,
considerados os mais sagrados, que os mestres malês
escolheram para a data para sua insurreição.
Não nos empenhamos aqui num estudo mais detalhado dos
ritos e práticas malês, pois fugiria do objetivo do presente
trabalho. Esforçamo-nos em demonstrar que, na década de
1830, o Islão e a cultura muçulmana na Bahia estavam em
franca expansão, sob a direção de lideranças e ideologias
político-religiosas estreitamente ligadas aos puritanos
movimentos reformistas do Bilad as-Sudan ocidental. Os malês
recriariam, em terras brasileiras, instituições do Islão africano,
como as escolas corânicas e as irmandades místicas. Tratava-se
de uma comunidade composta majoritariamente por homens
adultos, educados na África em escolas corânicas sob a tutela
de eruditos islâmicos reformistas, quando não eram, eles
próprios, mestres corânicos.
Na Bahia, sob a direção dos detentores da erudição
islâmica, malams e alufás, os malês tentariam repetir os feitos
do shehu Usman dan Fodio em Sokoto e do mallam Alimi e Abdu
Salami em Ilorin. Em 1835 os malês lançariam seu jihad.
Analisaremos, no capítulo a seguir, a erudição islâmica na
Bahia do século XIX, suas lideranças e organização.
66

5 E R U D I Ç ÂO I S L Â M I C A E I N S U R G Ê N C I A: A O R G A N I Z A Ç Ã O E
L I D E R AN Ç A D A “ S O C I E D AD E M AL Ê ”

Os eruditos malês construíram uma ampla rede contatos, que se


espalhavam por toda Salvador e possuía ramificações pelo
Recôncavo baiano. Escolas e mesquitas clandestinas foram o
útero onde a insurreição era gestada, e os principais veículos de
propaganda e recrutamento religioso e rebelde.

5.1 Principais centros malês na década de 1830

Como mencionado no capítulo 4, as casas de africanos livres


serviam como centros de culto, estudo e rebelião.

As casas de africanos libertos abrigavam encontros de malês


para rezar, refeições rituais, celebrações do calendário
islâmico e naturalmente conspirações (REIS, 2003, p. 216)

Além de residências particulares, também serviam como


mesquitas e madrassas estabelecimentos comerciais
pertencentes a malês livres mais prósperos e mesmo as
residências e quintais de alguns senhores.
Em 1835 os principais núcleos malês seriam:
I) A casa do alufá Manoel Calafate.
II) A venda do Mestre Dandará, localizada no Mercado de
Santa Bárbara. Segundo confissão do próprio malam, ele reunia
ali os jovens para ensinar-lhes a palavra de Deus e testemunhas
garantiram que ele liderava orações ao menos duas vezes ao dia
no local.
III) A casa do nagô liberto Belchior, onde os malês se
reuniam sob a direção do alufá Sanin.

Informações sobre o grupo dirigido por Sanin ilustram que os


malês se encontravam em diversos níveis de formação.
Alguns eram provavelmente recém-conversos. Os barretes
guardados na casa de Belchior, por exemplo, não podiam ser
usados pelos iniciantes nesses encontros (REIS, 2003, p.
217).
67

IV) A mesquita construída por James e Diogo, escravos


pertencentes ao inglês Abraham Crabtree. Na direção desta
estavam os alufás Mama, Buremo e Sule, cujos nomes cristãos
eram Dassalú, Gustard e Nicobé.
Essa mesquita malê teve papel importante no movimento de
da’wa malê, sendo que Cairus (2002) e Reis (2003) apontam sua
destruição como uma das motivações para a revolta, portanto
vale a pena nos determos um pouco mais no assunto.
Contando com a autorização do liberal mister Crabtree, os
escravos malês Diogo e James construíram uma espécie de
palhoça no quintal de seu senhor, no distrito de Vitória, que
tinha a função exclusiva de mesquita e escola corânica e, até
prova contrária, foi a primeira construção desse gênero a ser
erguida na história do Brasil.

Este se tornaria talvez o centro muçulmano mais atuante da


Bahia em 1835, ou pelo menos aquele que reunia mais gente
e para onde convergiam principalmente escravos dos
comerciantes estrangeiros moradores do bairro (REIS, 2003,
p. 217-218).

O distrito da Vitória era cercado por uma densa mata, o


que possibilitava aos escravos se reunirem com muito mais
liberdade que no centro de Salvador. Os malês ali se
congregavam sob a autoridade dos mestres acima citados, todos
os três escravos de Diogo Stuart, que residia na Barra, parte da
freguesia da Vitória. O alufá Sule ocupava uma posição
hierarquicamente superior na mesquita da Vitória, tendo
ascendência sobre Mama e Buremo.
A mesquita da Vitória foi o local de celebração do Lailatul
Miraj, a viagem noturna do profeta Muhammad aos céus, de
onde teria recebido diretamente de Deus a ordem para as cinco
orações obrigatórias. Ocorrida num sábado, 29 de novembro de
68

1834, correspondente ao 26 de Rajab do calendário muçulmano,


a comemoração reuniu grande número de fiéis. O evento porém
foi interrompido pela chegada do inspetor André Marques,
conhecido inimigo dos africanos, que forçou os malês a se
dispersarem sob a alegação de que estavam “quebrando a paz”
na vizinhança. O inspetor informaria o fato ao juiz da freguesia
da Vitória que, por sua vez, dirigiria suas queixar ao inglês
Abraham Crabtree. Para evitar problemas com as autoridades o
inglês ordenou aos dois escravos malês, responsáveis pela
construção da mesquita, que eles próprios a demolissem. Uma
humilhação que não deixaria de ter suas conseqüências.
A exceção da congregação da Vitória, a maioria dos
núcleos de reunião afro-muçulmanos localizavam-se na área
central de Salvador. Na verdade, mesmo o da Vitória estava a
apenas alguns minutos do centro soteropolitano. Licutan reunia
seus discípulos num quarto alugado na Rua das Laranjeiras.
Outros malams e alufás, como Manoel Calafate e Luís Sanin
também atuavam na Cidade Baixa, num raio de ação que ia da
Ladeira da Praça ao Terreiro de Jesus. Dandará, por sua vez,
reunia seus seguidores na Cidade Alta, na freguesia portuária.
Segundo Reis (2003) cada alufá, a maneira africana,
recrutava e reunia em torno de si sua própria turma de pupilos,
os quais possivelmente proviam parte da subsistência de seus
mestres. Isso dava a estes um tempo maior para o estudo, a
meditação, a escrita, a pregação e para conspirar. Existem
indícios também que, ao menos em certas ocasiões, como a
celebração do Lailatul Miraj, se reunissem malês pertencentes a
diversos grupos. Por fim, é bem possível que nem todos os
agrupamentos e lideranças malês tenham sido identificados
pelas autoridades da época ou pelos pesquisadores que vieram
depois.
69

5 . 2 As f a c e s d a e r u d i ç ã o i s l â m i c a n a B a h i a : m a l a m s e a l u f á s

Em seu trabalho José Cairus escreve que:

Por razões óbvias não é possível fazer uma análise


hagiográfica dos principais líderes muçulmanos envolvidos
na rebelião de 1835. Nesse lado do Atlântico eles eram
escravos, e, portanto, as informações sobre origens, cultura
e religião apenas interessavam na medida certa de controlá-
los e puni-los. Infelizmente, suas trajetórias individuais são
desconhecidas, mas dentro dos limites das fontes iremos
propor uma nova abordagem da liderança.
Nos processos, inicialmente, inúmeros africanos foram
apontados como “cabeças”, apesar de nem todos
efetivamente terem tido qualquer papel de liderança. Nina
Rodrigues foi o pioneiro na identificação dos líderes de
acordo com os processos. Reis posteriormente estabeleceu
uma hierarquia de sete “mestres” e outros tantos
“estudantes” não muito diferente de Rodrigues (CAIRUS,
2002, p.182).

De fato, Reis (2003) identificou os indivíduos que seriam


as sete principais lideranças malês em 1835: Ahuna, Pacífico
Licutan, Luís Sanin, Manoel Calafate, Dandará, Sule e Dassalú.
Começamos por Ahuna. Escravo ioruba, provavelmente
natural de Oyó, pois carregava em cada um dos lados do rosto
quatro cocatrizes, marcas que seriam similares ao pelé, comuns
a subgrupos da região.
Ahuna era um nome comum entre moslimes hauçás e
iorubás, e seria uma corruptela hauçá-fulá do profeta corânico
Harun (o Aarão bíblico). Seu nome cristão seria Pedro de Luna.
O mestre malê era escravo de um homem que morava nas
imediações do Pelourinho, onde comerciava bebidas alcoólicas,
tão abominadas pelos sequazes do Islão. Seu senhor o mandava
freqüentemente ao Recôncavo, mais precisamente a Santo
Amaro, onde este possuía um engenho. Alguns meses antes da
70

rebelião foi mandado para lá algemado, sob acusação de algum


delito doméstico e a notícia chegou aos malês, que formaram um
cortejo para acompanhá-lo até porto, onde seria colocado num
barco para o Recôncavo.
As testemunhas de acusação se referiam a Ahuna como “o
Maioral” e, de fato, foi o único dos líderes malês a ser assim
chamado. Para Reis (2003) Ahuna foi o homem-chave do levante
de 1835. Citando o depoimento do nagô Belchior:

"Ele ouviu falar em fazer guerra aos Brancos e somente no


Sábado (...) pela manhã, quando indo comprar cal, que o seu
ofício é de Pedreiro, lhe disseram alguns negros que ‘Ahuna’
já tinha chegado de Santo Amaro.” Esse “já” denota que só
faltava ele, Ahuna, para a rebelião ter início (REIS, 2003, p.
284).

No processo o nome de Ahuna aparece no rol dos


culpados, enquadrado como cabeça da revolta, porém, foi
condenado a revelia. Seu destino final é desconhecido.
Pacífico Licutan era, como Ahuna, de etnia iorubá, porém
pertencente a um subgrupo diferente. Seu rosto era escarificado
com marcas perpendiculares e outras transversais, parecidas ao
gombo, que na época era popular entre os moslimes iorubás.
Tratava-se de um homem idoso descrito como magro, com barba
rala e cabeça e orelhas pequenas. Trabalhava no cais do
Dourado como enrolador de fumo. No interrogatório, alegou
sofrer “mau cativeiro” nas mãos de seu senhor, o médico
Antonio Pinto de Marques Varella, que resistia a todas as
ofertas dos discípulos do velho alufá de alforriá-lo. Estes teriam
levantado grande soma de dinheiro, da qual o médico estava
realmente necessitado. Varella estava endividado, motivo pelo
qual teve seu escravo Licutan confiscado, sendo essa a razão
do mestre malê se encontrar na prisão municipal na data do
71

levante. A prisão servia para guardá-lo até que fosse posto a


leilão para pagar os credores de Varella.
Licutan reunia e instruía seus discípulos, tanto no quarto
da casa onde residia com seu senhor quanto num quarto com
outros africanos e alugado para essa finalidade.

Era um alufá estimadíssimo, um homem de grande influência


e poder na comunidade africana da Bahia, pregador e
recrutador de adeptos para a “sociedade malê” (REIS, 2003,
p. 288).

Nina Rodrigues (1976) acreditava ser ele o imam ou líder


religioso máximo dos malês em 1835.
Licutan era, na verdade, um nome étnico iorubá, mais
corretamente seria Lakitan ou talvez Olakiitan. Recebeu no
Brasil o nome cristão de Pacífico, o que não deixa de ser
irônico. Nos interrogatórios que se seguiram ao levante, ele
revelaria que seu nome muçulmano era Bilal, sem dúvida em
homenagem ao companheiro negro do Profeta e primeiro muezim
do Islão.
Audacioso, forte e influente, o ancião malê não pôde
esconder a amargura que adveio da derrota. No testemunho de
um de seus discípulos, após receber a notícia, o mestre Bilal
Licutan:

deitou a cabeça e não levantou mais, muito apaixonado, e


chorando quanto entravam outros negros de manhã presos,
dos quais um deu-lhe um livro, ou papel dobrado com letras
dessas que têm aparecido, e o mesmo negro se pôs a ler e a
chorar (RODRIGUES, 1976, p. 55-56).

Luís, chamado Sanin entre os afro-muçulmanos, ou talvez,


mais corretamente Sani, que em árabe significa brilhante, era
escravo e trabalhava enrolando fumo no cais, como seu colega
Licutan. A relação entre os dois era, certamente, estreita:
72

irmãos na fé, parceiros de trabalho, com uma formação


intelectual provavelmente similar e igualmente sujeitos a
escravidão. Quando Licutan foi levado para a cadeia municipal,
Sanin ia visitá-lo e levar-lhe comida.
Como Licutan, era também um ancião e, a despeito dos
vários anos de cativeiro, Sanin mal falava o português. Era,
todavia, fluente tanto no hauçá quanto no iorubá, ainda que
fosse, ele próprio, um nupe (chamados tapa na Bahia).
O alufá tinha por centro de ação a casa dos libertos
Belchior e Gaspar, onde era conhecido como “mestre de ensinar
as rezas de malê” (RODRIGUES, 1976).
Pragmático, organizou uma espécie de poupança, com a
qual cada um contribuiria com algo em torno de 320 réis, sendo
esse dinheiro dividido em três partes: uma para comprar tecido e
costurar os abadás, outra para pagar diárias devidas aos
senhores pelos escravos e uma terceira para comprar cartas de
alforria. Reis (2003) considera que o valor reservado a pagar os
senhores se destinasse a: a)pagar as diárias dos mestres, b)
cobrir a diária de sexta-feira, dia reservado as orações e não ao
trabalho e c) cobrir a diária de escravos dedicados a tarefas
ligadas à conspiração. Parece-nos possível que Sanin fosse o
responsável pelas finanças malês.
Manoel Calafate era chamado por seus pupilos
carinhosamente de “Pai Manoel”. Era nagô e liberto, exercendo
a profissão de oficial de calafate, de onde vem seu epíteto.
Como mencionado no capítulo 4, foi de sua casa que partiu o ato
inicial do levante.
Segundo Reis:

Manoel foi inegavelmente um personagem importante no


esquema insurrecional. Relembro sua viagem a Santo
Amaro, às vésperas do levante, aparentemente para
73

mobilizar gente lá.(...) Recordo também o juramento que


seus discípulos faziam de morrer na luta com o mestre, e não
de doença na cama (REIS, 2003, p. 294).

Esse juramento, segundo depoimento de seus discípulos,


era feito diante de um grande lenço ou bandeira branca. É um
dado interessante, já que o Shehu Usman dan Fodio também
exigia que aqueles submetidos a sua outoridade dessem a baya
ou voto de fidelidade sob a bandeira branca de Sokoto.
Manoel Calafate foi, talvez, o único dos idosos alufás a
tomar parte na batalha, na qual foi, quase certamente,
martirizado.
Outro mestre muçulmano dos mais atuante em 1835 foi
Dandará, batizado Elesbão do Carmo no cativeiro. Foi o único
malam hauçá indiciado. Reis (2003) especula que seu nome
seria, numa transcrição mais correta, dan Daura, ou seja “filho
de Daura”, significando “natural de Daura”, um pequeno reino
hauçá que se submeteu pacificamente a autoridade de Usman
dan Fodio, nos primeiros tempos do jihad.
Liberto e proprietário de uma venda de fumo no mercado de
Santa Bárbara, Dandará era o mais próspero dentre os mestres
malês. Em seu comércio reunia seus discípulos para estudo,
orações e práticas piedosas. No interrogatório, foi o único a
confessar ter sido “mestre em sua terra”, indicando sua
profissão de erudito corânico na Hauçalândia.
Como aconteceu com Ahuna, não se sabe que fim levou
Dandará, embora seu nome conste no rol dos culpados. Sua
companheira, Emerenciana, todavia, consta como condenada a
quatrocentos açoites.
Encontramos bem menos informações referentes a Sule e
Dassalú, e o principal já foi exposto quando tratamos da
mesquita da Vitória.
74

Era nosso objetivo neste capítulo fornecer, através da


análise das lideranças malês, seus perfis e estratégias, recursos
que demonstrassem a estreita relação existente entre a
presença de uma elite de eruditos islâmicos na Bahia e a
Revolta dos Malês e os movimentos militantes encabeçados pela
erudição islâmica na África Ocidental e os jihads travados
naquela margem do Atlântico.
75

C O N S I D E R AÇ Õ E S F I N AI S

Ao concluirmos este trabalho, esperamos ter contribuído


para o enriquecimento da discussão historiográfica do tema
malê, assim como para a “redenção” da tese defendida por Nina
Rodrigues um século atrás, obscurecida por gerações de autores
de orientação marxista e tentativas de cooptação da Revolta dos
Malês para uso de ideologias totalmente alheias àqueles velhos
alufás africanos.
Na análise das lideranças e organizações religiosas, que
nas primeiras décadas do século XIX, aglutinavam em torno de
si escravos e homens livres de etnicidade diversa, porém
intimamente ligados por uma fé comum, consideramos ter
levantado argumentos convincentes para determinar o caráter
inegavelmente islamista do movimento de insurgência malê, bem
como suas estreitas relações com a militância islâmica da África
Ocidental.
A Revolta dos Malês foi uma continuidade das guerras
santas africanas, não no sentido de que, ao caírem cativos no
continente americano, os guerreiros e eruditos islâmicos
continuavam lutando por “controle remoto” as mesmas batalhas
do velho mundo. Na Bahia os malês lançariam seu jihad próprio,
com objetivos específicos e conformes àquele tempo e lugar,
porém calcados nos mesmos princípios dos movimentos
reformistas de tajdid do continente negro.
Os malês, antes de serem escravos, negros ou africanos
eram moslimes e ser muçulmano implica em participar do
processo islâmico, e isso não constitui apenas uma observação
histórica, sociológica, política ou antropológica, mas uma
constatação tanto teológica quanto prática. Não vem ao caso o
fato de ser muçulmano militante, herético ou sincrético. Ser
76

moslim é compartilhar da história e cultura Islâmica, do modo de


vida, daquilo que chamam Din, e estar envolvido, de maneira
consciente, em uma orgulhosa herança religiosa e submeter-se
a um Deus Todo-Poderoso por meio de ritos e práticas
particulares.
No decorrer deste trabalho, também pudemos apurar que a
realidade do Islão malê ia além da consagrada fórmula de
"malês = sincretismo afro-baiano". Os afro-muçulmanos da
Bahia, ainda que, como todas as comunidades religiosas,
possuíssem níveis variados de profundidade, eram dirigidos por
uma erudição islâmica absolutamente ortodoxa, em
conformidade com o Islão clássico e medieval. Em sua análise
do Islamismo entre os malê a maioria dos autores, inclusive Reis
e Nina Rodrigues, tomaram por modelo de ortodoxia os
nascentes movimentos fundamentalistas do mundo árabe, os
mais antigos dos quais datam do final do século XVIII, como o
wahhabismo saudita, que invadiu e impôs seu credo nas duas
cidades santas de Makka e Madina apenas na década de 1920.
Cremos que foi possível demonstrar em nossa pesquisa a
existência tanto do maraboutismo popular quanto de um sufismo
mais erudito na Bahia. A tariqa era parte inseparável da
realidade afro-muçulmana.
A insurgência islâmica levada às ruas de Salvador e s ta va
organizada em torno de uma profunda e irresistível simbologia
mística. A intelectualidade muçulmana, representada por malams
e alufás oriundos dos movimentos jihadistas africanos, forjou
uma rede de alianças políticas, econômicas e, acima de tudo,
espirituais. Desses homens, muitos deles eram escravos idosos
demais para almejar os louros da liberdade nesse mundo, e
outros, como o mestre Dandará, alcançaram uma posição
econômica e social que superava as expectativas de muitos
77

brancos de então. Muitos dos malês libertos, africanos oriundos


de sociedades com longa tradição escravista, eram senhores de
escravos. Em vista disso, consideramos ser por demais absurdo
ver motivações abolicionistas no Levante Malê. Relutamos
mesmo em definir o movimento como uma revolta escrava, dado
que um terço dos insurgentes era composto de africanos livres.
A Revolta dos Malês foi uma insurreição islâmica e
africana, filha legítima do jihad de Usman dan Fodio.
78

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82

ANEXO A
83

ANEXO B

Amuleto malê contendo versículos do Qur’an.


84

ANEXO C

Amuleto malê contendo a sura corânica Al-Qadr, onde um dos


versículos diz que “Lailatul Qadr é melhor que mil meses”.
85

ANEXO D

Documento malê preservado no Museu Histórico da Bahia

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